A Linguagem No Contexto Psicopedagógico, Lendo Nas Entrelinhas _ Seminários de Psicopedagogia

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23/09/2015 A linguagem no contexto psicopedagógico, lendo nas entrelinhas | Seminários de Psicopedagogia http://www.seminariosdepsicopedagogia.com.br/alinguagemnocontextopsicopedagogicolendonasentrelinhas/ 1/11 Home Quem Somos Serviços Atividades Espaço Terapêutico Publicações » Blog Contato » A linguagem no contexto psicopedagógico, lendo nas entrelinhas Postado por Levy em 12032014 em Artigos , Slider | 2 Comentários Por Edith Rubinstein Leitura nas entrelinhas significa ler o que não está explícito. Estamos acostumados a fazer a leitura do que está explícito no texto. Porém,“entre as linhas” há um outro discurso, um outro texto. A leitura nas entrelinhas depende da capacidade simbólica do leitor e de sua disponibilidade para fazer uma leitura mais ampla que leve em consideração o que está implícito, o sentido latente. Como afirma Cordié (1996) “Para construir o sentido é preciso recorrer não somente às associações que comandam o discurso consciente, mas mobilizar também seus recursos inconscientes, os da La Lingua, o que chamamos às vezes de intuição”. A possibilidade de fazer uma leitura nas entrelinhas depende também, da própria possibilidade do leitor/psicopedagogo poder considerar sua própria experiência, a sua singularidade. De modo geral, a queixa escolar se manifesta na linguagem escrita. Na escola pública o que mais chama atenção é o fato do fracasso na alfabetização se estender até a segunda etapa do ensino fundamental. Com muita frequência atribuise este fracasso apenas às condições sócioeconômicas e familiares das crianças. Atribuir o fracasso apenas à carência é “desresponsabilizar” os envolvidos e fazer uma leitura parcial do problema. A escola tem se posicionado seletivamente ao não se preparar

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Leitura nas entrelinhas significa ler o que não está explícito. Estamos acostumados a fazer a leiturado que está explícito no texto. Porém,“entre as linhas” há um outro discurso, um outro texto. Aleitura nas entrelinhas depende da capacidade simbólica do leitor e de sua disponibilidade para fazeruma leitura mais ampla que leve em consideração o que está implícito, o sentido latente. Como afirmaCordié (1996) “Para construir o sentido é preciso recorrer não somente às associações quecomandam o discurso consciente, mas mobilizar também seus recursos inconscientes, os da LaLingua, o que chamamos às vezes de intuição”. A possibilidade de fazer uma leitura nas entrelinhasdepende também, da própria possibilidade do leitor/psicopedagogo poder considerar sua própriaexperiência, a sua singularidade.

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A linguagem no contexto psicopedagógico,lendo nas entrelinhasPostado por Levy em 12­03­2014 em Artigos, Slider | 2 Comentários

Por Edith Rubinstein

Leitura nas entrelinhas significa ler o que não está explícito. Estamos acostumados a fazer a leiturado que está explícito no texto. Porém,“entre as linhas” há um outro discurso, um outro texto. Aleitura nas entrelinhas depende da capacidade simbólica do leitor e de sua disponibilidade para fazeruma leitura mais ampla que leve em consideração o que está implícito, o sentido latente. Como afirmaCordié (1996) “Para construir o sentido é preciso recorrer não somente às associações quecomandam o discurso consciente, mas mobilizar também seus recursos inconscientes, os da LaLingua, o que chamamos às vezes de intuição”. A possibilidade de fazer uma leitura nas entrelinhasdepende também, da própria possibilidade do leitor/psicopedagogo poder considerar sua própriaexperiência, a sua singularidade.

De modo geral, a queixa escolar se manifesta na linguagem escrita. Na escola pública o que maischama atenção é o fato do fracasso na alfabetização se estender até a segunda etapa do ensinofundamental. Com muita frequência atribui­se este fracasso apenas às condições sócio­econômicas efamiliares das crianças. Atribuir o fracasso apenas à carência é “desresponsabilizar” os envolvidos efazer uma leitura parcial do problema. A escola tem se posicionado seletivamente ao não se preparar

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para atender às diferentes demandas. Na escola particular a queixa maior é do analfabetismo funcionalo qual contribui para o fracasso escolar como um todo. Nesse segmento está presente a preocupaçãocom a patologia. Mas a grande queixa é que uma boa parte dos alunos está desinteressada edescompromissada com o “oficio de ser estudante”. O discurso consciente é: falta de interesse, faltade responsabilidade. Qual é o discurso latente para esta posição subjetiva diante da escolarização?Compete à Psicopedagogia buscar possíveis respostas e formular muitas questões que permitamampliar a leitura para oferecer subsídios no processo de intervenção psicopedagógica. Estamos emsituação de emergência e urgência. Os alunos não estão respondendo à demanda do “oficio de serestudante”.

A adequada escolarização decorre da transformação do conhecimento em saber, ou seja, daapropriação e domínio. Isto depende de vários e complexos fatores. Neste momento destaco acirculação e transmissão de: valores; sentimentos; conhecimentos, sabedoria dos diferentes atoresenvolvidos no processo de ensino aprendizagem. Esses atores são: a sociedade ampla, a família, aescola, o aluno. Todos são parceiros responsáveis na constituição do sujeito da aprendizagem. Sãoestes atores que mobilizam a circulação enquanto transmissão. O estatuto de ser estudante, de seraluno, dependerá do sujeito bem como dos outros sujeitos que participam desta empreitada. Não seaprende de qualquer um. Para aprender é necessário um outro significativo que transmita o sabor dosaber junto com o conhecimento. Mas é preciso efetivamente que o sujeito se aproprie desteconhecimento através da sua própria e singular conquista. Freud em sua obra Totem e Tabu refere­sea esta transmissão/conquistada através das palavras de Goethe:“ Aquilo que herdaste de teus pais,conquista­o para fazê­lo teu”.

A perspectiva de parceria e co­responsabilidade na constituição do sujeito da aprendizagem tem comointencionalidade questionar algumas tendências de compreender o fracasso escolar, e maisespecificamente o fracasso no domínio da leitura e escrita a partir de uma leitura fenomênica fundadanos entraves do aluno e de seu entorno. É preciso mudar o discurso baseado apenas nasevidências: o aluno pobre não aprende porque é carente, vem de uma família desestruturada;aquele que tem mais condições não aprende por ser portador de algum possível transtorno.Colocar apenas a responsabilidade do sucesso acadêmico no aprendiz e nas condições sócio­econômicas, bem como a expectativa do sucesso incondicional no aprendizado da linguagem escrita éuma atitude injusta e antiética, a qual não tem contribuído para reverter o fracasso escolar. Não hácomo negar que estes fatores estão presentes, porém é preciso encontrar saídas no nível institucionalpara mudança de discurso. A experiência do aluno num contexto onde a circulação do discurso sejadiferente desencadeará mudanças na posição subjetiva, as quais poderão desencadear uma nova formade lidar com o conhecimento. Quando um professor diz: “venha comigo que você aprende”, haverámaiores condições de mudanças. Mas não basta o holding, o acolhimento. É preciso que osprofissionais envolvidos identifiquem quais são os possíveis entraves, podendo então escolher edecidir os possíveis recursos de intervenção.

A leitura nas entrelinhas implica pensar na queixa escolar enquanto um texto onde o explícito e oimplícito convivem simultaneamente e sincronicamente. Este texto se manifesta na linguagem, e maisespecificamente na linguagem escrita. A linguagem enquanto mediadora universal propicia nãosomente a apropriação do conhecimento, mas a constituição do sujeito. O sujeito da aprendizagem semanifesta ao lidar com o conteúdo e forma simultaneamente. É na linguagem e através da linguagemque o sujeito da aprendizagem expressa seu estilo, seu modo de lidar com a vida. É preciso ler nasentrelinhas o modo como ocorre sua relação com o conhecimento e o saber. Por outro lado a escritapermite ao escritor/leitor surpreender­se, re­conhecer­se enquanto sujeito da aprendizagem.

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Na clínica psicopedagógica e mesmo na escola quando há oportunidade para o aluno escrever suasnarrativas livremente é possível observar nas produções conteúdos que expressam os conflitos vividospela criança. A escrita traz a oportunidade para elaborá­los simbolicamente. Escrever implica dominarforma e conteúdo.É preciso submeter­se à forma para que o conteúdo seja compreendido pelo leitor.A escrita envolve sucessivas releituras para poder fazer­se compreender, é preciso descentrar­se,pensando num leitor que não está presente. Na leitura também é necessário avançar e retroceder paracompreender, para construir o sentido. Nem todas as crianças lidam satisfatoriamente com as palavrasdesconhecidas enquanto lacunas. Tentar adivinhar o sentido exige tolerância à frustração, continênciapara lidar com as angústias provocadas pelo desconhecimento. Como afirma Keneth Goodmann, ler éum grande jogo de adivinhação. Sendo “jogo” é preciso imaginar, levantar hipóteses, ter “jogo decintura”. Por todas estas razões é possível afirmar que ler e escrever exige muito mais do quehabilidades psicolinguísticas. O domínio das habilidades psicolinguísticas estão articuladas com ascondições psíquicas do sujeito da aprendizagem como um todo.

Aprender é a condição humana que permite sobreviver, pois contrariamente aos animais, os humanosnão têm inscrições inatas que lhes permitam adaptar ou modificar o seu contexto. A aprendizagemenquanto subsídio para a sobrevivência ocorre numa relação com o outro significativo. É nessarelação com o outro significativo que se devem buscar as raízes que poderão explicar, em parte, omodo como o aprendiz relaciona­se com a linguagem. Aprender de forma geral é complexo, poisenvolve muitas variáveis. Aprender a ler e a escrever com o objetivo de poder apreender o mundo,identificar e relacionar diferentes significados do mesmo e re­significá­los a partir da sua perspectivanão é algo que ocorra espontaneamente.

Feitas as considerações iniciais, seleciono três tópicos para reflexão: a) aprendizagem e sucessoincondicional; b) condições psíquicas para aprendizagem da linguagem escrita; c) vinhetas clínicas; d)algumas propostas.de intervenção

a) Aprendizagem e sucesso incondicional.

O sucesso incondicional do aluno na aprendizagem da leitura e escrita é uma utopia onde aspectospositivos e negativos estão presentes simultaneamente. Por um lado é positivo apostar nas boascondições do aprendiz, esperando que todos possam igualmente aprender. Porém a realidade temmostrado que cada um aprende diferente. Olhar simultaneamente para esses dois lados da moeda nãoé fácil, porém é fundamental. Dolores Durkim, especialista em leitura, afirmou que apenas 5% dapopulação de crianças provenientes de ambiente sócio cultural letrado conseguem desenvolver umaprendizado “espontâneo”, no sentido de que através da auto­aprendizagem conseguiram construirhipóteses que lhes permitiram ler sem que tivessem sido submetidos a um aprendizado sistemático.Diatkine (1970), no Colóquio realizado na França em 1970 que teve como tema “A dislexia emquestão” lembrava que aqueles que aprendem a ler e a escrever fora da escola, de forma espontânea,na relação com os adultos significativos, irão à escola, apenas para “especializar­se”. Essas criançassão exceção e não a regra. As outras crianças precisam aprender de forma sistemática e organizadadidaticamente para que possam desenvolver­se e principalmente obter sucesso e consequentementesentirem prazer em ler e escrever. Os professores nem sempre consideram este fato, esperando que agrande maioria aprenda como aqueles que, enquanto minoria excepcional, obteriam sucessoindependentemente da metodologia utilizada.

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Algumas crianças demoram em corresponder à expectativa e ao esforço do professor. Geram angustiatanto nele, quanto em si mesmas. Este processo acaba por imobilizar os envolvidos. Lembra Diatkine(1970):

“Para que uma criança não veja hostilidade nem do professor nem daquilo que este transmite, oupara que, em todo caso, possa se desembaraçar deste sentimento persecutório, uma das primeirascondições é que o professor não rechace realmente o aluno que não o gratifica”.

Podemos concluir a partir dos posicionamentos de Durkim e de Diatkine, que embora se considerepertinente à escolaridade o esforço necessário para o aprendizado da língua escrita, a disponibilidadepara tal não ocorrerá tão tranquila e espontaneamente para uma parcela significativa dos alunos. Oesforço para dominar a leitura e escrita faz parte do processo, porém, por diferentes razões, nem todosos alunos enfrentarão com a mesma condição este desafio. Paradoxalmente, hoje, são maiores asoportunidades de escolarização para toda a população. São metas a serem alcançadas por todas associedades que se dizem democráticas. Todos devem aprender igualmente. Mas sabemos que, todosaprendem de forma diferente, de acordo com sua história de vida e com seu estilo de aprendizagem. Ogrande desafio do educador é reconhecer e considerar a diversidade no seu projeto pedagógico. Masisso não é fácil, pois considerar a diversidade é uma preocupação bastante recentemente levada emconta. Como educadores, vivemos experiências onde todos deviam aprender igualmente.Possivelmente numa realidade onde apenas uma minoria mais homogênea tinha acesso a escolaridadeos desafios não eram tão grandes como os enfrentados numa realidade marcada pela diversidade. Serealmente o objetivo é oferecer oportunidades a todos, como afirma Maria Helena Souza Patto citandoBenevides: “igualdade é o direito à diferença”.

b) Condições psíquicas necessárias para o aprendizado da linguagem escrita.

Um longo caminho e complexo processo precisam ser atravessados, para que o sujeito daaprendizagem consiga sentir prazer na sua experiência com a leitura e a escrita. Será preciso nãosomente boas condições sociais e culturais, mas, sobretudo condições mentais para poder construireste domínio tão fundamental, ferramenta básica da escolaridade e por que não, da vida.

O perfil do “bom leitor” tem algumas de suas raízes na capacidade de estar só, onde as “personagensdos livros se convertem em companheiros com presença suficiente para que, perdida em sua leitura, acriança já não responda ao chamado de seus pais”(Diatkine,1970). Envolver­se com o objeto deconhecimento para a partir dele construir um saber demanda autonomia para imprimir significadospróprios, o qual dependerá do domínio.

Para se tornar um leitor/escritor é preciso também desenvolver a capacidade de estar só na presençado outro. A realidade interna de inquietude se manifesta com bastante frequência no corpo.Observam­se crianças agitadas, inquietas, dispersas. Para estas é extremamente difícil construir osentido e produzir um texto. Esta inquietude não é decorrente unicamente de fatores internos, pois ogênero do lazer tem forte influência. Para o menino acostumado com games, com personagens que setransformam com muita rapidez, não é fácil entrar em contato com objetos que demandam um ritmomenos acelerado e uma postura reflexiva. Os alunos não adotam a “relação pendular” como hábitoque expressa a capacidade de estar só para refletir sobre sua produção.

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Dominar um objeto envolve também capacidade para aceitação da lei deste objeto. Para o alunocontemporâneo menos propenso à aceitação da disciplina e do esforço necessários para aprender,possivelmente seja mais difícil desenvolver o domínio de certas habilidades que desencadearãoautonomia. Provavelmente um gênero de ensino onde a sistematização esteja presente seja mais fácilespecialmente para aqueles que não fazem parte da minoria que obteria o sucesso incondicional. Paradominar a escrita é preciso levar em consideração forma e conteúdo. Hoje há mais problemas com aforma. Em parte devido ao sistema de ensino que privilegia o conteúdo, porém espera do aluno umaconstrução formal adequada, entretanto sem introduzir a sistematização da escrita que desenvolva aescrita formal. Por outro o aluno contemporâneo é mais resistente a aceitar as normas impostas pelaescrita formal. Há hoje uma quantidade de alunos “disgráficos” e disortográficos “funcionais” nosentido que não são portadores de dificuldades específicas, porém sua produção se assemelha àquelesque apresentam transtornos.

Capacidade para levantar hipóteses, inventar soluções criativas para os desafios, lidar com a incerteza,relacionar informações, tolerar o esforço necessário para a reescrita e a re­leitura são algumas dashabilidades necessárias para se tornar um escritor/leitor funcional. Para compreender é precisorenunciar ao que está explícito, às palavras em si, é preciso construir o sentido fora do texto, nas suasexperiências outros conteúdos. Este desconforto acompanha todos os leitores desde os iniciantes atéaqueles que estão no ensino médio. A leitura nas entrelinhas buscando implica fazer articulações como seu próprio saber. Nem todos estão preparados para desenvolver estas funções, habilidades eatitudes. Para construir as condições necessárias de ser estudante leitor/escritor é preciso que a criançatenha tido alguma experiência satisfatória com os adultos significativos que no ato de transmitircompartilharam suas próprias experiências com a incerteza, frustração, imaginação, admiração.

c) Vinhetas clínicas

Com bastante frequência na queixa escolar está presente a preocupação de que o aluno nãocompreende o que lê; não relaciona o conhecimento com suas experiências de vida; não consegueescrever de acordo com a norma culta; apresenta dificuldades para organizar suas ideias, nãoconsegue organizar graficamente sua escrita; entre outras queixas. A preocupação dos professores edos pais é pertinente, pois sendo a escrita “espinha dorsal da escolaridade”, a vida acadêmica do alunoque não consegue domínio e autonomia nesta área é suscetível ao fracasso, ou no mínimo a umaexperiência acadêmica empobrecida e/ou sofrida pela vivência da insegurança.

A queixa escolar coloca o grande desafio para a Psicopedagogia: como lidar simultaneamente com osdois discursos: considerar as dificuldades específicas, o discurso manifesto, sem deixar de lado aleitura das entrelinhas, o discurso latente.

Para ilustrar esta questão apresento duas vinhetas clínicas.

1) “O reizinho mandão”

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Sou procurada pela mãe de Marcio quando ele tem 5,6. Ele frequenta escola bilíngue. A queixaescolar é: dificuldade para ler e escrever em inglês. Na escola dizem que é bastante disperso edesobediente. Quando contrariado, deitava no chão como um ursinho de pelúcia com as mãos e péspara cima. A mãe contou que o professor particular de natação não conseguia ensinar, pois Marcionão obedecia. A preocupação da escola é que havia uma grande distância entre a produção gráficadele e de seus pares. Ele ainda utilizava as duas mãos indiscriminadamente para escrever. Diante destequadro a família por orientação da professora pergunta à psicopedagoga se o menino é disléxico.

Nos primeiros contatos com Marcio, se comunica muito bem, é curioso, perguntador. Na avaliaçãomostrou dominância para o uso da mão direita. A integração percepto­motora gráfica estava aquém doesperado para a idade. Seu estilo revela um menino transgressor, com baixa tolerância à frustração.Sua brincadeira estava voltada apenas para os Pokemons. Gostava de fazer lutas com os personagensmonstrinhos. O gesto ainda estava presente no graficar. As lutas com os personagens estão presentesem suas garatujas. Ele quer impor/mandar o tempo todo. No início era bastante difícil dele seinteressar por outros objetos que não os monstrinhos do Pokemon. Muito lentamente pudemosintroduzir o jogo de regra através do jogo de percurso com sorteio de dados. Á medida em que sedispôs levar em consideração as leis do objeto e as regras no jogo sua atitude como escolar foimudando. De suas lutas/garatujas emergiam personagens mais estruturados. Começou a se interessarpor outras representações e por outros tipos de produções: dobraduras, recortes. Ele fazia objetos e oslevava para casa para mostrar aos pais. Trabalhou­se também com labirintos com o objetivo dedesenvolver freio inibitório e capacidade de antecipação. Numa ocasião Marcio que sabia ler escolheu um jogo bastante sugestivo: Troca. Neste jogo aprendeu a perder, a esperar a vez. O jogo deregra e de construção de pequenos objetos para os pais foram decisivos para a mudança na capacidade de desenhar e de escrever. Na intervenção atingiu­se de forma indireta a construção dografismo. Mas o que foi decisivo em sua evolução acadêmica foram os seguintes aspectos: a)disponibilidade para levar em consideração “o outro”; b) aceitação de regras; c) tolerância a frustração quando perdia, pôde finalmente deixar cair o gesto e fazer nascer o traço e a partir destemovimento a letra. Ainda falta um grande caminho a ser percorrido por este menino que está deixandode ser o reizinho mandão.

2) “Não sei, não sei…”

Ricardo tem 12 anos, é o filho do meio. Apresentava muita dificuldade para compreensão. O fracassoescolar manifestava­se nas áreas humanas. Embora fosse um garoto com boas condições deraciocínio lógico, esta condição não se manifestava na leitura seja de textos acadêmicos ou denarrativas. Em sua família foi desde muito pequeno colocado na posição de tolo. A mãe orientava­o adecorar textos, isto é, a não falar em nome próprio. Em seu estilo estava presente perguntar o que jásabia. Dito de outra forma: sua capacidade imaginativa estava embotada. Porque Ricardo queria ler einteressava­se por livros, o caminho encontrado em nosso trabalho foi introduzir a literatura, maisespecificamente fábulas que ele mesmo escolhia, levava para casa para contá­las usando suaspróprias palavras, isto é parafraseando. As fábulas foram escolhidas enquanto gênero, poispropiciavam uma experiência de lidar com metáforas. Após uma conversa sobre a fábula ele asrecontava por escrito. Propusemos a construção de um livro com estas produções. Nesta construção doobjeto livro houve um trabalho com a formalização, diagramação e ilustração. Porém o grande saltoocorreu quando ele começou a escrever suas narrativas, suas próprias histórias. Isto começou a ocorrerno momento em que pode falar de sua sensação de raiva diante do irmão mais velho que não o deixafalar. A mãe observava maior independência para estudar e fazer suas lições. O que me chamou muitoatenção foi o fato de que Ricardo aparentemente não resistia diante das propostas, aceitava, solicitavatextos para ler, mas, no entanto não se colocava, não se apropriava, não se autorizava a re­construir o

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que havia sido transmitido. As mudanças começaram a acontecer quando Ricardo pode falarconcretamente de seu mal estar no contexto familiar. O embotamento deu lugar a um sujeito que podese colocar na posição de sujeito, expressando nos seus escritos sua auto­continência e o sonho com osucesso. Isto é possível ler nas entrelinhas de seu texto abaixo:

A hora do jogo na escola

“ Um dia Joazinho estava na escola brincando na hora no recreio. O Joãozinho que gostava de jogarfutebol com os amigos chamou aqueles que gostavam de jogar e montou um time O time foi a chancede juntar a 5a série com a 8a série.

O Joãzinho acabou perdendo de 4 a 3 porque todos eram grandes e bons.

No dia seguinte o professor de educação física deu outro jogo na hora do recreio. A 5a série jogoucom a 6a série. O jogo foi muito disputado, mas a 5a série ganhou por 3 a 1 e o Joãozinho ficou muitofeliz com a vitória.

Depois de 20 anos Joãzinho só queria saber de futebol e acabou ficando no time do Palmeiras evenceu todos os jogos contra o São Paulo e o Tiguês”.

d) Algumas propostas de intervenção

1)Oferecer recursos diferenciados. Na prática, elas consistem em oferecer atividades compatíveiscom os diferentes níveis dos alunos. O “cardápio diferenciado” visa suprir as necessidades daquelesque aprendem mais lentamente. Essas crianças não são, necessariamente, portadores de distúrbios deaprendizagem.

2) Considerar os aspectos simbólicos (emocionais) envolvidos na relação com aaprendizagem.Embora, as crianças com dificuldades no domínio e na autonomia para ler e escrever,apresentem dificuldades específicas na área da consciência fonológica e de outras habilidades deordem psicolinguística e de ordem cognitiva, não devemos deixar de lado na análise e na intervençãoa consideração de aspectos relacionados com a constituição psíquica do sujeito da aprendizagem. Nãose trata de ser psicólogo, mas de considerar as questões de ordem emocionais envolvidas na relaçãodo aluno com o conhecer e com o saber. Será preciso compreender seu estilo de aprendizagem paracompreender os aspectos psicodinâmicos que possam explicar suas resistências e dificuldades para seapropriar deste saber que não é apenas um saber cultural ou de natureza psicolinguística. Aconsideração simultânea dos aspectos cognitivos e emocionais, envolvidos na construção do saber,possibilite intervenções com efeitos mais globais. O aluno que é convocado a assumir suaresponsabilidade nas suas produções, vive uma experiência de formativa. Trata­se de considerar osaspectos simbólicos envolvidos na relação com o conhecimento.Essa atitude pedagógica, que não vêisoladamente e episodicamente as dificuldades específicas do aluno, será mais eficaz no

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desencadeamento de mudanças de estilo de aprendizagem.

3) Oferecer experiências significativas. É fundamental que os alunos tenham acesso a umadiversidade de recursos. Esses recursos devem considerar o interesse dos alunos. Será precisoconstruir com os alunos o significado simbólico, estético, cultural daqueles recursos que sãodesconhecidos por ele. Mesmo para um aluno com dificuldades no processo básico da leitura e escrita,é preciso oferecer oportunidades para apreciar os aspectos estéticos, éticos, culturais envolvidos nostextos. O aluno envolvido com as ideias presentes nos textos, está mais motivado e disponível paraaprender a ler e a escrever. A capacidade para argumentar através da linguagem oral independe dacapacidade para ler e escrever.

4) Adoção e um modelo teórico para subsidiar a prática. É importante a escolha de um modeloteórico com respeito ao processo de ensino aprendizagem da linguagem escrita que esteja emconsonância com o projeto pedagógico. O modelo de Linguagem Integral desenvolvido por Goodman,e de Linguagem Integrada proposto por Condemarin. Esses modelos além de propor o critério deaprendizagem significativa, preocupam­se com a sistematização das habilidades de naturezapsicolinguísticas envolvidas na aprendizagem. Para usufruir criativamente da leitura, o domínio decertas habilidades de natureza psicolinguísticas é fundamental. Sem este domínio, saborear oconhecimento advindo da relação com o mundo da escrita se torna inviável ou no mínimo seconstituirá numa relação de dependência do outro para construir sentidos. O mau leitor precisarásempre de um outro/tradutor.

5) A mediação em sala de aula. O modelo proposto por Feuerstein denominado Experiência deAprendizagem Mediada poderá auxiliar no processo de construção de uma aprendizagemsignificativa. Os critérios envolvidos no processo mediacional envolvem processo de mudança edesenvolvimento da capacidade de construção de significados, aplicação dos conteúdos a outrassituações e desenvolvimento da consciência meta cognitiva. Pretende­se que o aluno saiba verbalizaro seu processo mental nas atividades que realiza.

Conclusão:

O grande desafio do educador e do psicopedagogo que levam em conta o sujeito da aprendizagemque se expressa através de um estilo, é desencadear o domínio da leitura e da escrita semdesconsiderar o desejo, isto é, a singularidade que propicia autonomia para transformar oconhecimento em saber. Autonomia e autoria dizem respeito ao sujeito. Domínio e autonomia sãoduas faces da mesma moeda. Na abordagem da psicopedagogia dinâmica considera­se asincronicidade e simultaneidade dessas duas faces.

Referências Bibliográficas

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1) Ajuriaguerra,J. e outros A dislexia em questão: dificuldades e fracassos na aprendizagem da línguaescrita, Porto Alegre, Artes Médicas, 1984.

2) Rubinstein,E.R. O estilo de aprendizagem e a queixa escolar: entre o saber e o conhecer, SãoPaulo, Casa do Psicólogo, 2003.

2 Comentários

1. João Beauclair ­ 7 de abril de 2015

Excelente Artigo Querida Edith!Sempre são de imensa excelente suas reflexões e textos!parabéns!Abraços de SPA Saúde, Paz e Amorosidade!João Beauclair

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2. João Beauclair ­ 7 de abril de 2015

Excelente Artigo Querida Edith!Sempre são de imensa excelência suas reflexões e textos!Parabéns!Abraços de SPA Saúde, Paz e Amorosidade!João Beauclair

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