A Linguagem Das Ladainhas

download A Linguagem Das Ladainhas

of 14

Transcript of A Linguagem Das Ladainhas

  • 8/14/2019 A Linguagem Das Ladainhas

    1/14

    Estudos Semiticos - nmero trs (2007)

    www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

    A linguagem das ladainhas de capoeira: por umestudo semitico

    Daniel Carmona LEITE (FFLCH-USP)

    RESUMO: Este artigo analisa as estruturas que se podem depreender tanto a partir dolingstico, quanto a partir do musical das ladainhas de capoeira. Por certo tem grandeembasamento na metodologia dos estudos semiticos da cano de Tatit. Ao mesmotempo, um primeiro passo no estabelecimento de recorrncias estruturais desse gnerocancional.

    PALAVRAS-CHAVE: Cano; cultura afro-brasileira; semitica; capoeira.

    ABSTRACT: This article analyzes the structures that can be foreseen through thelinguistic and musical parts of the ladainhas of capoeira. The studies about song madeby Tatit play a very important role to this examination. At the same time, it is a first stepto the establishment of the specific structures that are recurrent inside this song'sgender.

    KEYWORDS: Song; afro-brazilian culture; semiotics; capoeira.

  • 8/14/2019 A Linguagem Das Ladainhas

    2/14

    Estudos Semiticos - nmero trs (2007) LEITE, D.C.

    www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

    No universo musical das canes de capoeira existe uma distinoconvencional entre partes que possuem funes diferentes dentro do ritual. As trsprincipais partes constituintes da musicalidade cantada da capoeira podem serdenominadas de ladainhas, chulas e corridos. Encadeiam-se na musicalidade da roda decapoeira por justaposio, obedecendo ordem em que foram apresentadas na fraseacima.

    Daremos agora, incio anlise de duas verses de uma ladainha especfica, quepossui esta letra:

    1. O mundo de Deus grande2. Cabe numa mo fechada 2. Cabe na palma da mo3. O pouco com Deus muito4. O muito sem Deus nada

    5. Noite de escuro no serve6. Pra caar de madrugada7. Caador d muitos tiros8. De manh no acha nada9. Veado corre pulando10. Cotia corre na trilha 10. O veado corre na trilha11. Se eu fosse governador12. Governasse a Bahia13. Isso que tu t fazendo14. Comigo tu no fazia H H 14. Comigo tu no fazia Camaradinha

    I) Anlise Verbal.

    O corpus do qual foi extrada esta ladainha provm de duas verses distintas deuma mesma ladainha, as quais foram gravadas em 2002 por Mestre Gerson Quadradono CD Encanto Banto num Recanto da Ilha (coluna esquerda) e em 2005 numaapresentao da Orquestra de Berimbaus do Grupo Nzinga de Capoeira Angola no Riode Janeiro, cantando Contra-Mestra Janja (coluna direita). As diferenas de letra entreas duas verses so bastante tmidas, o que refora o grande valor de preservao datradio oral que o canto possui, visto que a transmisso das ladainhas se faz no boca-a-boca.

    Para facilitar a anlise do texto, julgamos ser til separar a ladainha em trspartes, segundo critrios oriundos da anlise do nvel narrativo:A) Na primeira parte (versos1-4), os atores so de ordem enunciva, ou seja: nopossuem participao direta no ato da enunciao. Possuiro, da mesma maneira, umapredominncia da tematizao. Em outras palavras, seus atores no sero simuladoresdos referentes em si (figurativizao), e sim simuladores das caractersticas dosreferentes, mais abstratos.B) J na segunda parte (versos 5-10) os atores ainda so de ordem enunciva. Contudo, apredominncia temtica dar lugar predominncia figurativa.C) Nos versos 11-14, na terceira parte, os atores, de predominncia figurativa,modificaro sua participao graas a sua proximidade da enunciao. Como veremos

  • 8/14/2019 A Linguagem Das Ladainhas

    3/14

    Estudos Semiticos - nmero trs (2007) LEITE, D.C.

    www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

    adiante, porm, esta figuratividade ainda est sujeita a uma tematizao em particular,que constitui o mistrio da ladainha.

    Assim:

    1a parte 2a parte 3a parteEnunciao - - +Figurativizao - + +

    Outro critrio que parece corroborar com esta diviso de partes foi o critrio doencadeamento, ou melhor, da maneira com a qual os versos se juntam. Durante toda aprimeira parte, cada verso possui uma unidade relativamente autnoma. Se parecemcom axiomas, breves e aclaradores sobre algum aspecto da vivncia no mundo. Casofossem separados do resto do texto, cada um sozinho poderia expressar uma unidade de

    contedo.O encadeamento da segunda parte de dois versos e, assim sendo, no se podeentender o verso mpar sem a completude que o par lhe proporciona. Se, semelhanado que foi testado na primeira parte, fossem postos separadamente, no seriam unidadesde significao. Contudo, se fossem agrupados de dois em dois, a sim se poderiacompreender sua expressividade. Esta concluso a respeito da segunda parte, valelembrar, est sujeita a mudanas graas incerteza quanto correta transcrio do verso10, que ser explorada dentro de alguns pargrafos.

    Por fim, na terceira parte, encontramos uma nova maneira de juno dosversos, que de quatro versos encadeados pela sua estrutura sinttica de oraessubordinadas. Nesse trecho o que afirmado no possui a capacidade de, ao ser isolado,manter alguma unidade de sentido.

    Alguns mestres de tradio oral permitem, numa lio de tolerncia, a variaode alguns dos elementos dos cantos que variam conforme a comunidade onde so

    enunciados. Assim, uma determinada msica pode apresentar algumas variantes semque sua autenticidade seja contestada. Outros, porm, preferem uma atitude maisnormativa e deliberam sobre as maneiras corretas e incorretas de se cantar. Na ladainhaO mundo de Deus grande, encontra-se um verso rico em variantes que o verso 10.Na VG Cotia corre na trilha e na VJ o veado corre na trilha. Outras tantasvariantes tambm se difundiram como o diabo corre na trilha. Seria muito custoso etalvez frustrante a tentativa de se encontrar a verso original da ladainha, uma vez queela pertence ao domnio pblico.

    Devemos entender que a tradio oral da capoeira no se vale de um conceitofolclrico, estagnado. A sua natureza dinmica, assim como a natureza das lnguas.

    A ladainha se inicia com um verso que expressa uma caracterizao de umsujeito especfico. Este sujeito, por um lado, nomeado, ou seja, determinado pela voznarrativa como o mundo de Deus. Por outro lado, sua natureza abstrata, torna difcilde precisar os seus limites, o que essencial para definir seu conceito. Seu aspecto de

    ser-grande, se ajuda a caracteriz-lo, tambm dificulta esta mesma definio, poisamplia a extenso de seus limites.Contudo, se olharmos o segundo verso da ladainha, logo nos deparamos com

    uma assero paradoxal: o mesmo sujeito do primeiro enunciado tambm est

  • 8/14/2019 A Linguagem Das Ladainhas

    4/14

    Estudos Semiticos - nmero trs (2007) LEITE, D.C.

    www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

    qualificado com a pequenez. Na verso de Mestre Gerson Quadrado (VG) ele cabenuma mo fechada, na verso da Contra-Mestra Janja (VJ) ele cabe na palma damo, h, ainda, verses como a que se encontra gravada no CD do Grupo Nzinga deCapoeira Angola (2002), cantada pela Contra-Mestra Paula Barreto, em que ele cabeno mato fechado. Bem, nas duas verses que esto sendo comparadas aqui, o traosemntico /pequeno/ aparece. Isso significa que podemos entender o par /grande/ vs. /pequeno/ como, seno o nico, pelo menos o principal dualismo a que se refere a voznarrativa.

    Outra diferena quanto letra est nas diversas expresses que so emitidasentre os versos, no caso particular destas duas performances, especialmente no versofinal. A VG traz a interjeio H-H enquanto a VJ encerra o canto com o vocativocamaradinha. Cabe assinalar a presena bastante constante destas expresses que soinseridas entre os versos de qualquer ladainha e, indo um pouco adiante, podemos fazer

    uma sugesto hipottica sobre como se organizariam estas dentro deste tipo de cantoenquanto linguagem estruturada. Notamos a recorrncia das formas Camar,Camaradinha, Colega vio, Ai meu Deus, H H, entre outras e, a partir destedado, se pde supor que h dois tipos essenciais de expresses inter-vrsicas: as quefazem uso da funo ftica da linguagem (valendo-nos do conceito de RomanJakobson), como o vocativo camar, e as que possuem uma funo mais associada funo emotiva, como a interjeio Ai meu Deus!.

    O uso do verbo caber revela, por estar conjugado no presente do indicativo,um estado de possibilidade no-realizada. Configura-se como um actante atualizado,porm no virtualizado nem realizado. O Poder-ser-pequeno manifestado pelaexpresso cabe numa mo fechada (na VG, porque na VJ o por cabe na palma damo), o que j anuncia, graas presena das figuras das mos, uma tendncia datransformao dos objetos modais temticos em objetos figurativos.

    No texto, constituem-se duas possibilidades de existncia modal,aparentemente inconciliveis: ser grande e ser pequeno. A partir de ento, o sujeitoDeus, que antes ocupava o mero papel de proprietrio do mundo, agora se revelacomo o operador que possibilita a conjuno ainda paradoxal.

    Entramos no que denominei a parte II do texto em questo, que diz respeito,no mais a objetos e actantes tematizantes, mas a figurativos tais como noite deescuro e caar de madrugada. O aspecto mais concreto desta fase do texto nosremete atmosfera da exemplificao, do ensinamento propagado pela via dos relatosde casos.

    At o presente momento, as asseres se fizeram em tempo presente (expressasnum momento da enunciao concomitante ao momento de referncia e ao momento doacontecimento) o que garante um efeito de durabilidade e veracidade. Porm, nos versos7 10, configura-se uma mudana nesta utilizao da presentificao do acontecimentocomo se ele fosse simultneo ao proferimento do discurso. O actante caador enfimexecuta uma atividade. O texto, que at agora operava unicamente com os verbo ser,caber e servir que, por suas naturezas e tambm pela conjugao em que se encontram,no designam nenhuma ao realizada, s enunciados de descrio, passa a retratar umaao, que era antes apenas sugerida pela atualizao que os verbos propunham.

  • 8/14/2019 A Linguagem Das Ladainhas

    5/14

    Estudos Semiticos - nmero trs (2007) LEITE, D.C.

    www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

    Nos versos 11-14, uma transformao drstica ocorre no discurso. A ao queat agora transcorria basicamente desde um local enuncivo (ele(s), l, ento) trazidapara o seio da conversao, o espao enunciativo (eu/tu, aqui, agora). Revela-se onarrador identificvel pelas marcas do eu, anteriormente mascarado por umadebreagem enunciva pois a atividade narrativa ocorria a terceiros. Da mesma maneira, otu, que esteve latente nas partes I e II, aparece.

    A tese levantada pelo eu revela uma tenso implcita durante todo o textoque s se mostra na parte III, muito embora essa tenso esteja em posio-chave para acorreta compreenso do discurso como um todo. , nesse momento, a simulao de umaprojeo actancial (destinador) e um papel temtico (governador da Bahia) em que esseeu se projeta virtualmente num outro arranjo de poderes. To logo estivesse ocupandoesta posio, o eu no seria mais alvo da ao do tu.

    Uma leitura possvel do texto nos permite afirmar que esta ao (que se supe

    que seja) de desrespeito, ou de preconceito para com o proferidor da voz narrativa teria justificado uma delegao de um querer e/ou dever-fazer a ladainha, que partiria dointerlocutor (destinador) rumo ao interlocutrio (destinatrio). Explicando-se, a partirda, a motivao que levou composio deste texto.

    Ao mesmo tempo, h que se levar em conta as afirmaes que Tatit (2004) fazno seu livro O sculo da cano, onde, referindo-se aos tocadores e cantadores dosfundos da casa da Tia Ciata (p. 120), diz: No estavam habituados a fazer canesintegrais. Iam juntando pedaos e acrescentando trecho inditos at que a obra coletivaadquirisse feio de produto acabado. Todos eram autores, no propriamente de umacano, mas de uma brincadeira que seria repetida nas noites seguintes e, com o tempo,poderia ficar retida na memria dos participantes.. Esta concepo de composio trazconsigo uma outra interpretao para explicar a diviso que se d entre as partes daladainha O mundo de Deus grande. Segundo ela, o processo composicional assumecaractersticas coletivas que acabam por transmitir essa natureza diversa ao prpriocanto: uma espcie de colagem de fragmentos independentes agrupadas pela ocasio. Otexto estudado, se visto sob esta perspectiva, no teria um encadeamento necessrio queunisse as suas partes constituintes, e sim um encadeamento contingente, fruto de umagrupamento, talvez at quem sabe, arbitrrio.

    Deixando, contudo, esta tese provisoriamente de lado, a ladainha se revelaenquanto um fazer discursivo especfico, seja como uma denncia da atividade que otu causa sobre o eu ou como um aviso com um tom de ameaa que a voz narrativaprofere ao seu interlocutor. Qual seria esta misteriosa ao que se mantm velada? Ofato do tu ser o sujeito destinador do texto no garante que a ao dele seja reveladadescritivamente, mantendo-se viva a tendncia temtica da ladainha que se encontravapredominante nas duas primeiras partes. Sua natureza imprecisvel adquire, assim, umpotencial abrangente, pois sua essncia se poderia encaixar em diversos contextosdistintos.

    II) Anlise Meldica

    Agora, o presente estudo se dirigir mais atentamente para a anlise dosaspectos meldicos da ladainha nas suas duas verses. Elas parecem possuir muita

  • 8/14/2019 A Linguagem Das Ladainhas

    6/14

    Estudos Semiticos - nmero trs (2007) LEITE, D.C.

    www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

    proximidade a uma primeira vista, porm abundam diferenas. Para consultas, asmelodias esto representadas numa adaptao do diagrama de Tatit, anexadas ao finaldo artigo.

    Ser feita uma anlise comparativa em duas fases: a das distines e a dassemelhanas. Cabe reiterar que a enumerao dos versos foi feita em algarismos de 1 a14. Como ambas as verses trazem consigo uma estrutura muito prxima, foi possvelfazer a enumerao comum.

    Os versos 3, 7, 12 e 13 tm, todos, um desenho meldico muito similar. Nestaconfluncia, porm, encontramos algumas pequenas variaes. Como por exemplo noverso 7:

    VG:

    VJ: O esquema esboado busca ilustrar o percurso meldico diferente nas duasverses. Os dois desvios que ocorrem na VJ representam um intervalo no muitorepresentativo em termos de frequncia: apenas um tom. Na VG, ela no ocorre,havendo ento uma neutralizao da variao meldica da VJ. Da mesma maneiraocorre nos outros versos; de maneira idntica nos versos 3 e 13, e com uma ligeirainclinao ascendente na VG no verso 12, VJ permanecendo igual:VG:

    A tendncia que se pode depreender a partir destas distines a de VG mantero percurso meldico mais contnuo enquanto que VJ tende a descontinuar este percurso,por meio das pequenas curvas meldicas que no parecem possuir funo semnticasignificativa para a execuo da ladainha.

    Nos versos 2 e 4, por sua vez, a VG sai de um tom alto, faz uma curvadescendente se encontra com a tnica. VJ, no mesmo verso, inicia-se nesta, percorrendouma subida e uma descida antes de alcanar novamente o descanso na nota inicial:

    VG: VJ:

    Novamente verificamos uma tendncia que VJ possui para preencher com maisnotas o seu texto meldico, em contraste com a suposta economia de VG.

    No verso 6, VG alcana o seu pice agudo, chegando a uma nota distante novesemitons da principal. Este cume se faz logo na posio inicial do verso, ento descendorumo tnica. A descida referida, inicialmente gradual, depois marcada por umintervalo tonal grande, que separa as slabas "-ar" e "de". J VJ comea na tonalidade,executando uma subida tmida de trs semitons para somente ento voltar ao tom. Essavolta tambm se caracteriza pelo salto.

    VJ, no verso 14 (fechamento da ladainha) inicia com a nota mais grave de todoseu percurso meldico e vai, processualmente crescendo at atingir trs semitons maisagudos que sua nota principal, a mesma abertura utilizada no verso 6. VG sai de um tom

  • 8/14/2019 A Linguagem Das Ladainhas

    7/14

    Estudos Semiticos - nmero trs (2007) LEITE, D.C.

    www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

    bastante agudo, sete semitons de distncia, e executa uma queda vertiginosa seguida deuma ascenso.

    Ainda no verso 14, no podemos deixar de citar a presena das duas expressesde finalizao da ladainha, na VG H H (no mesmo agudo do qual havia sado noincio do verso) e na VJ, o vocativo camaradinha (iniciado, igualmente VG, noponto mais agudo de seu verso). Vale apontar a distino que H H mantm a notanas suas duas slabas, enquanto que camaradinha, no momento de seu proferimento,executa uma melodia descendente/ascendente/descendente.

    Em ambas ladainhas, a posio de terminao vrsica, posio essa jdenominada de Tonema (por Toms, 1966, p. 69), possui uma singularidade bastanteinteressante: praticamente todos os versos terminam em curvas descendentes. Dissoresulta uma assertividade muito acentuada, congruente com a reiterao de verdadesgerais, que caracteriza a letra. S se excluem os versos 11 e 14 da VG da generalizao

    das curvas descendentes.Ademais, os seguintes versos possuem, em seu desenho meldico, estruturas deascendncia e descendncia muito similares na VG e VJ: 1A, 3, 7, 11, 12 e 14.

    Outra posio digna de destaque dentro dos versos a de incio de versos.Propusemo-nos a dispor em um diagrama as posies iniciais das duas ladainhas emcada verso para poder analis-los melhor:

    Iniciao vrsica:Vers/Lad

    I 1(A)

    1(B)

    2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14

    VG 7 a 4 a 2 a 7a

    2a

    7a

    7a

    9a

    2a

    7a

    0 0 2 a 0 2 a 7 a

    VJ 7 a 7 a 7 a 0 2

    a

    0 2

    a

    0 2

    a

    0 4

    a

    0 2 a 0 2 a 5 g

    O nmero apresentado significa a distncia em semitons da nota referida notaprincipal da ladainha. A letra que segue o nmero significa se a distncia se d acima(mais aguda) ou abaixo (mais grave) da tnica. O zero significa conformidade com atnica.

    A anlise da variabilidade das posies iniciais dentro das ladainhas estudadas restrita a um certo nmero de distncias e no a todas as distncias. Vejamos quedentre todas as variaes, pudemos encontrar apenas seis tipos distintos: 9 a (6 maior),7 a (5 justa), 4 a (3 maior), 2 a (2 maior), 0 e 5 g (4 ascendente). Contudo, 9 a e 5 gs aparecem uma vez, cada uma em uma das verses, o que nos permite exclu-las destemodelo de previsibilidade inicial, ficando apenas com quatro tipos de abertura vrsica: 7a, 4 a, 2 a e 0.

    possvel tentar estabelecer uma relao entre a alternncia destas formas. Por

    exemplo, na VJ todos os versos pares, com a exceo do final (14, que abre com 5 g),so iniciados em conformidade com a tnica. Assim, plausvel lanar umaclassificao binria dos versos da VJ em duas categorias distintas:

    S

  • 8/14/2019 A Linguagem Das Ladainhas

    8/14

    Estudos Semiticos - nmero trs (2007) LEITE, D.C.

    www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

    /posio inicial dos versos/

    S1 (0) S2 (9 a, 7 a, 4 a, 2 a e5 g)/Conformidade (com a tnica)/ /No-conformidade/

    S1 e S2 se alternam no texto meldico da VJ. Uma diferena inicial, denatureza binria, marcando a presena e ausncia de um elemento.

    Faz-se necessrio testar se seria possvel pensar na mesma classificao na VG.A uma primeira vista, parece ser mais difcil, afinal, seus versos no se distribuem toexemplarmente como na VJ. Pelo simples critrio da melodia de iniciao vrsicaparece ser impossvel determinar um padro de previsibilidade na VG, que no o j tilpadro estabelecido pela variabilidade restrita das notas. Fez-se necessrio repetir o

    mesmo procedimento para a terminao vrsica.Terminao vrsica:Vers/Lad

    1(A)

    1(B)

    2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 Int.

    VG 0 2 a 0 2 a 0 0 0 2 a 0 0 0 4 a 0 2 a 4 a 7 aVJ 0 0 0 2a* 0 2a* 0 2a* 0 0 0 2a* 0 2a* 4 a 0

    Os asteriscos que seguem as distncias de 2 a da VJ significam uma escolhaque fizemos por dentre duas notas distintas. Por se tratar de versos terminados compalavras paroxtonas (com a exceo do verso 11), seu assento recai sobre a penltimaslaba, dois semitons acima da tnica. Contudo, a ltima slaba faz questo de marcar-sejunto nota principal.

    Vemos uma variao um tanto mais reduzida nas terminaes vrsicas do que

    se v nos incios de versos. H quatro tipos diferentes: 0, 2 a, 4 a e 7 a. Fazendo valer omesmo processo que utilizado anteriormente, temos:S

    /Terminao Vrsica/S1 (0) S2 (2 a, 4 a e 7 a)

    /Conformidade/ /No-Conformidade/

    Porm, ainda possvel ir alm nesta anlise, dividindo o S2 em dois: S3 (2 a)e S4 (4 a e 7 a). E, por fim, para esgotar as possibilidades de terminao, em S5 (4 a) eS6 (7 a).Chega-se a uma rvore que explica a terminao vrsica desta ladainhaespecfica, feita partir do estudo comparativo das duas verses, VG e VJ:

    S

    S1 S2

    S3 S4

    S5 S6

  • 8/14/2019 A Linguagem Das Ladainhas

    9/14

    Estudos Semiticos - nmero trs (2007) LEITE, D.C.

    www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

    A musicalidade da capoeira parece estar bastante fundada sobre duas posiesbsicas: A tonalidade principal (0) e a sua segunda (2 a).

    Tanto a nota finalizadora de verso, quanto o movimentoascendente/descendente, so reas j exploradas pelos estudiosos da cano. Almdelas, neste artigo, se pretende dar ateno, igualmente, s notas que "abrem" os versos.

    Um modelo descritivo para o componente rtmico da ladainha deve serdesenvolvido. Assim como existem posies de importncia para a estrutura meldicada ladainha como a terminao e iniciao vrsicas, deve haver uma disposiotemporal que possui, igualmente, importncia.

    Anlise verbal e meldica.

    Algumas grandezas constatadas nos estudos at agora presentes poderiamservir como pontos de partida para a tentativa de construo de uma anlise conjuntaentre os elementos lingsticos verbais e no-verbais da ladainha: O mundo de Deus grande. preciso investigar cuidadosamente quais os pontos relacionais entre osestudos feitos at o presente instante de maneira relativamente distante, um do outro.

    A melodia de incio da ladainha parece possuir uma forma comum nas duasverses. Ambas se iniciam em tons agudos e acabam tocando a tnica no final do verso1. A presena do grito i (que antecede o canto) , tambm, marca indiscutvel deabertura do canal comunicativo.

    O verso 1, repetido duas vezes, o que expresso no esquema por 1A e 1B.Essa reiterao se d igualmente nas duas ladainhas e sua funo poderia ser, numprimeiro levante, de reforo da idia propagada pelo primeiro verso, de suspenso daprogresso da letra, ou ainda de ttulo/sntese da ladainha. Talvez se justifique por serum momento para o cantor se recordar dos outros versos, de preparao para ajustes deafinao vocal e instrumental.

    Contudo, 1A e 1B na VJ possuem uma melodia que, sob o critrio determinao vrsica so idnticas, da mesma maneira sob o critrio de incio de verso. NaVG o que acontece que nem o incio nem o final dos versos 1A e 1B so iguais.Pensado sob o esquema proposto na anlise da melodia, 1A pertenceria (segundo aterminao) a S1 e 1B a S2. Isso garante uma concepo de ladainha que Mestre Gersonnos passa por meio da forma da expresso na qual o verso repetido uma negao doverso inicial. Esse argumento vem reforar a idia da oposio binria e dialgica quePaulo Dias, em palestra no curso de extenso " A capoeira na academia" (USP, 2003),levantou como imanente musicalidade africana. A Contra-Mestra Janja, enquanto isso,deixa a ladainha em ponto de espera, ao repetir novamente uma melodia de S1 nosegundo verso.

    Cabe concluir que a diferenciao entre versos no se d somente quando hdistino entre tonemas, mas tambm quando h variao interna na curva meldica.Porm essa variao tmida que foi utilizada para a ilustrao no pode ser consideradacomo suficiente para constituir a variedade necessria a uma ladainha inteira. Avariao tonmica parece seguir sendo a de maior importncia estrutural para odesenrolar da melodia das ladainhas.

  • 8/14/2019 A Linguagem Das Ladainhas

    10/14

    Estudos Semiticos - nmero trs (2007) LEITE, D.C.

    www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

    Assim como h o grito de i (expresso iniciadora da ladainha), h tambma expresso terminativa da ladainha, sem contar as outras vrias que acontecem entre osversos (expresses inter-vrsicas). No caso estudado, as duas verses possuem formasdistintas de terminar uma mesma ladainha. Quanto s semelhanas, se pode afirmar aascendncia que antecede ao tonema do ltimo verso (14) e a presena das expressesterminativas. Porm, de maneiras distintas, a VJ acaba em igualdade com a tonalidade ea VG num agudo acentuado (7 semitons).

    As expresses que finalizam cada uma das melodias apresentam variaestanto de ordem meldica como de ordem conteudstica. H H foi hipoteticamenteclassificada sob a denominao de expresso que faz uso da funo emotiva dalinguagem e sua linha meldica est em regio aguda. Ora, a combinao destafreqncia, prxima aos limites da tessitura mxima da composio, com a expresso deemoo ajuda a reiterar a caracterstica passionalizante desta terminao. J a outra

    terminao, camaradinha, se faz em trs curvas(descendente/ascendente/descendente) e foi qualificada como expresso que faz uso da funo ftica da linguagem (exatamente por se tratar de um vocativo), o que permiteafirm-la mais tematizante.

    Apesar de todos os esforos feitos no sentido de buscar um modelo deprevisibilidade que d conta do gnero ladainha, ainda necessria muita reflexo para,inclusive, determinar se possvel falar neste tipo genrico.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BARROS, Diana Luz Pessoa de, Teoria do discurso: Fundamentos semiticos, SoPaulo: Atual, 1988.CARMO JR., Jos Roberto do. Da voz aos instrumentos musicais, 1a ed. So Paulo:Annablume, 2005CMARA CASCUDO, Lus da,Made in frica, So Paulo: Global, 2002.FIORIN, Jos Luiz, As astucias da enunciao : as categorias de pessoa, espao etempo, So Paulo: tica, 1996.HJELMSLEV, L., Prolegmenos a uma teoria da linguagem. So Paulo: Perspectiva,1975.JAKOBSON, Roman,Lingustica e comunicao , So Paulo: ed. Cultrix, s/ data.MUKUNA, Kazadi wa, Contribuio Bantu na Msica Popular Brasileira, So Paulo:Global, (s/d).TATIT, L., O cancionista:, composies de canes no Brasil. So Paulo: EDUSP,1996._________, O sculo da cano. So Paulo: Ateli, 2004._________, Elementos para a anlise da cano popular, In: Cadernos de SemiticaAplicada, vol. 1, n. 2, dezembro de 2003.

  • 8/14/2019 A Linguagem Das Ladainhas

    11/14

    Estudos Semiticos - nmero trs (2007) LEITE, D.C.

    www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

    ANEXO

    Verso do Mestre Gerson Quadrado

    1AL

    Sol I do de Deus

    FMi O Mun

    R

    D Grande

    1BR Mun do de De us gran de2Sol Ca

    F beMi nu

    R

    D ma mo fe cha da

    3R O pou co com De us mui to

    4Sol O

    F MuiMi to

    R

    D sem De us na da

    5Sol Noi cu ro

    FMi te

    de esR no

    D ser

    ve6L Pra

    Sol ca

    F arMi

    R

    D de ma dru ga da

    7R Ca a dor d mui tos ti ros

    8Sol De

    F maMi nh

    R

    D noa cha na da

  • 8/14/2019 A Linguagem Das Ladainhas

    12/14

    Estudos Semiticos - nmero trs (2007) LEITE, D.C.

    www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

    9Sol do co rre

    FMi apu

    R

    D Velando

    10

    Mi a na

    R ti co rre

    D Co trilha

    11R dor

    D Seeu fo sse go ver na

    12Mi sse a Ba

    R

    D Go ver na hia

    13R Isso que tu t fa zendo

    14Sol Co HH

    F MiMi go zia

    R fa

    D tu no

  • 8/14/2019 A Linguagem Das Ladainhas

    13/14

    Estudos Semiticos - nmero trs (2007) LEITE, D.C.

    www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

    Verso Contra-Mestra Janja

    1A

    Sol I Mun do de Deus

    F

    Mi

    R

    D Gran de1B

    L do

    Sol Mun de Deus

    FMi

    R

    D Gran de

    2Sol Pal

    F maMi na da

    R be

    D Ca mo

    3R O pou co sem Deus mui

    D to

    4Sol sem

    F DeusMi to

    R Mui

    D O Nada

    5iR# te de es cu ro ser

    D# Noi no ve

    6F ar

    R# ca

    D# Pra de ma dru ga da

    7R#(Ca) a dor d mui ti

    D# tos ros

    8F no a

    R# cha

    D# De nh nada

    Si b Ma

  • 8/14/2019 A Linguagem Das Ladainhas

    14/14

    Estudos Semiticos - nmero trs (2007) LEITE, D.C.

    www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

    9Sol# do co rre

    F#F Ve a pu

    R#

    D# lando

    10F a(do)

    R# ve

    D# O co rre natrilha

    11R# Se eu fos se go ver do

    D# na r

    12F a

    R# Ba

    D# Go ver na sse hia

    13R# Is soque t t zen

    D# fa do

    14F zi a (ca ra

    R# no fa ma

    D# go t dinha)

    Si b

    L b Co mi

    i Na passagem do verso 4 para o 5, ocentro tonal transfere-se meio tomacima, at o final da ladainha.

    Como citar este artigo:

    LEITE, Daniel Carmona . A linguagem das ladainhas de capoeira: por umestudo semitico. Estudos Semiticos, Nmero 3, So Paulo, 2007.Disponvel em . Acesso em"dia/ms/ano".