A Linguagem Da Ciencia No Tractatus de Wittgenstein

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Intuitio ISSN 1983-4012 Porto Alegre V.2 - No.1 Junho 2009 pp. 101-123 A LINGUAGEM DA CIÊNCIA NO TRACTATUS DE WITTGENSTEIN THE LANGUAGE OF SCIENCE IN WITTGENSTEIN TRACTATUS Marciano Adilio Spica * _________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ * Doutorando em Filosofia-UFSC/ Unicentro Contato: [email protected] RESUMO: O presente trabalho pretende caracterizar as idéias de Wittgenstein a respeito da linguagem científica presentes em sua primeira obra o Tractatus Logico-Philosophicus. Num primeiro momento, para que os escritos sobre a ciência se tornem mais claros, mostraremos as idéias de linguagem presentes em tal obra, clarificando seus principais conceitos. Depois disso, elucidaremos suas idéias a respeito da ciência, mostrando que esta se constitui basicamente de sentenças que representam o mundo. Junto com esta concepção mostraremos a natureza das leis e teorias científicas para o Tractatus, elucidando que estas são modelos que nos ajudam a representar o mundo, portanto não são sentenças que se referem a fatos particulares deste. PALAVRAS-CHAVE: Wittgenstein. Linguagem. Ciência. Tractatus. ABSTRACT: This work aims to characterize the ideas of Wittgenstein on the scientific language in his first work the Tractatus Logico- philosophicus. First, to the writings on the science becomes clearer, we show the ideas of language in this work by clarifying its main concepts. After that, elucidating their ideas about the science, showing that it is basically of sentences that represent the world. With this design show the nature of scientific laws and theories to the Tractatus, clarify that these are models that help us represent the world, so are not sentences that refer to particular fact of world. KEY WORDS: Wittgenstein. Language. Science. Tractatus.

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Filosofia Contemporânea

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    A LINGUAGEM DA CINCIA NO TRACTATUS

    DE WITTGENSTEIN

    THE LANGUAGE OF SCIENCE IN WITTGENSTEIN TRACTATUS

    Marciano Adilio Spica*

    _________________________________________________________________________

    ___________________________________________________________________________

    * Doutorando em Filosofia-UFSC/ Unicentro Contato: [email protected]

    RESUMO: O presente trabalho pretende

    caracterizar as idias de Wittgenstein a respeito da

    linguagem cientfica presentes em sua primeira

    obra o Tractatus Logico-Philosophicus. Num

    primeiro momento, para que os escritos sobre a

    cincia se tornem mais claros, mostraremos as

    idias de linguagem presentes em tal obra,

    clarificando seus principais conceitos. Depois

    disso, elucidaremos suas idias a respeito da cincia, mostrando que esta se constitui

    basicamente de sentenas que representam o

    mundo. Junto com esta concepo mostraremos a

    natureza das leis e teorias cientficas para o

    Tractatus, elucidando que estas so modelos que

    nos ajudam a representar o mundo, portanto no

    so sentenas que se referem a fatos particulares

    deste.

    PALAVRAS-CHAVE: Wittgenstein. Linguagem.

    Cincia. Tractatus.

    ABSTRACT: This work aims to characterize

    the ideas of Wittgenstein on the scientific

    language in his first work the Tractatus Logico-

    philosophicus. First, to the writings on the

    science becomes clearer, we show the ideas of

    language in this work by clarifying its main

    concepts. After that, elucidating their ideas

    about the science, showing that it is basically of

    sentences that represent the world. With this design show the nature of scientific laws and

    theories to the Tractatus, clarify that these are

    models that help us represent the world, so are

    not sentences that refer to particular fact of

    world.

    KEY WORDS: Wittgenstein. Language.

    Science. Tractatus.

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    1. A Crtica da linguagem no Tractatus

    Para Wittgenstein, em sua primeira obra Tractatus Lgico-philosophicus, cabe

    filosofia elucidar nossos pensamentos, torn-los claros, livrando-nos da iluso provocada pela

    falta de clareza sobre o funcionamento da lgica de nossa linguagem. O Tractatus, fiel sua

    noo de filosofia, realiza a crtica da linguagem a partir de seu interior e, como tal, estabelece

    os limites para aquilo que pode ou no pode ser dito. Mas como esta crtica se realiza?

    Comearemos a responder esta questo definindo o que Wittgenstein entende por

    linguagem. A linguagem , para ele, a totalidade das proposies1. Diante disso, fica claro que

    o que ele toma como ponto de partida para sua crtica da linguagem a proposio. A

    proposio entendida como o portador ltimo de sentido da linguagem. ela a nica

    expresso lingstica capaz de expressar com sentido um pensamento. O autor do Tractatus

    nos diz que a proposio articulada e no uma simples mistura de palavras sem sentido. Da

    no ser possvel dizer que uma expresso do tipo Joo mesa sol ver gol uma proposio.

    Como vemos, este conjunto de palavras no est articulado de modo a se tornar algo

    compreensvel. Da mesma forma que um conjunto de sons inarticulados no formam uma

    melodia, tambm um mero conjunto de palavras no forma uma proposio2. A proposio

    exprime de uma maneira determinada, claramente especificvel, o que ela exprime: a

    proposio articulada3. O conceito de proposio do Tractatus deve ser entendido como

    uma sentena que expressa um pensamento e no como um mero conjunto de palavras.

    Wittgenstein escreve: O sinal por meio do que exprimimos o pensamento, chamo sinal

    proposicional e, ainda, o sinal proposicional consiste em que seus elementos, as palavras,

    nele esto, uns para os outros de uma determinada maneira4.

    A totalidade das proposies que formam a linguagem so funes de verdade de

    proposies elementares. Estas so os constituintes ltimos analisveis na crtica da

    linguagem. Elas consistem em uma vinculao imediata de nomes. A proposio elementar

    1 Cf. WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-philosophicus. Trad.: Luiz Henrique Lopes dos Santos. So Paulo:

    Edusp, 1993, 4.001. Doravante indicado por TLP. 2 TLP, 3.141. 3 TLP, 3.251. 4 TLP, 3.12.

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    consiste em nomes. uma vinculao, um encadeamento de nomes5. A anlise lgica da

    proposio deve, segundo Wittgenstein, levar proposies elementares que so, em ltima

    instncia, ligao imediata de nomes6.

    Os nomes so entendidos por tal autor como signos simples que no tm significado

    fora da proposio. Os signos simples no podem ser decompostos e constituem uma

    condio de possibilidade da linguagem. da essncia do nome unir-se um ao outro e assim

    formar a proposio7. Como escreve Wittgenstein: a cada parte da proposio que caracteriza

    o sentido dela, chamo uma expresso (um smbolo)8. O nome uma parte essencial da

    proposio, o constituinte ltimo sem o qual ela no existiria. Mas ele s adquire significado

    no contexto da proposio elementar9.

    Na anlise da linguagem, o nome no pode mais ser desmembrado em algo que tenha

    referncia, ele um sinal primitivo10

    . Aqui, primitivo deve ser entendido como o essencial,

    aquilo que primeiro e no pode mais ser desmembrado. Dessa forma, essencial para a

    existncia da linguagem que existam nomes. Essa necessidade torna os nomes um fundamento

    transcendental da linguagem. Por ser um todo articulado por nomes que denotam objetos do

    mundo, a proposio tem o poder de ir at o mundo e represent-lo. isso que veremos a

    partir de agora.

    A anlise lgica da proposio como tarefa da filosofia ganha mais importncia no

    Tractatus quando entendemos a idia de figurao. Vrios so os desdobramentos que este

    conceito gera na filosofia de Wittgenstein. Vamos nos ater, primeiramente, na herana que

    ajudou Wittgenstein a desenvolver a idia de figurao; em seguida, nos deteremos mais

    detalhadamente no que ela , em suas peculiaridades e dificuldades.

    Para Wittgenstein, o mundo uma totalidade composta de fatos e nossa linguagem

    tem o poder de figurar estes fatos. No aforismo 2.1 Wittgenstein escreve: Figuramos os

    5 TLP, 4.22. 6 Cf. TLP, 4.221. 7 Cf. BLACK, M. A Companion to Wittgensteins Tractatus. Cambridge: Cambridge University Press, 1964. p. 114. Aqui Black desenvolve bem a idia de que j est no nome a possibilidade deste ligar-se com outro

    nome e assim formar as proposies. 8 TLP, 3.31. 9 TLP, 4.23. 10 TLP, 3.26.

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    fatos. Mas o que esta figurao dos fatos? Ela um modelo da realidade11. A proposio

    uma figurao do mundo. Nossa linguagem um modelo do mundo. Esta concepo

    herdade de Hertz. Este foi um filsofo-cientista, autor da obra The Principles of Mechanics

    Presented in a New Form12

    . Nela, Hertz defende a idia de que ns formamos para ns

    mesmos imagens ou smbolos de objetos externos; e a forma que ns damos a elas tal que a

    conseqncia necessria das imagens no pensamento sempre as imagens da necessria

    conseqncia na natureza das coisas figuradas13. Hertz entendia que os smbolos ou imagens

    formados por ns tm uma simetria com o mundo. A imagem que ns formamos sobre

    determinado fato do mundo corresponde, em sua forma, com a imagem que a natureza das

    coisas possuem. Dessa forma, h um ordenamento entre pensamento e mundo que torna

    possvel falarmos e pensarmos sobre o mundo sem precisarmos, a cada vez, estarmos frente a

    um fato determinado.

    Para Hertz, a cincia trabalha com as imagens que fazemos do mundo exterior e, por

    isso, ela tem o poder de antecipar-se aos acontecimentos naturais. Mas, no momento, basta-

    nos mostrar a teoria de Hertz segundo a qual nosso pensamento tem o poder de figurar o

    mundo. O autor em questo argumenta que criamos modelos do mundo. Em sua forma, estes

    modelos devem estar de acordo com os prprios fatos do mundo, mas eles no so os fatos.

    Para ele, as imagens das quais aqui falamos so nossas concepes das coisas14. Elas so as

    representaes que fazemos para ns mesmos dos fatos do mundo.

    As imagens que fazemos das coisas so submetidas s leis de nosso pensamento. Ns

    imediatamente denotaremos como inadmissveis todas as imagens que implicitamente

    contradigam as leis de nosso pensamento15. Dessa forma, para Hertz, no so quaisquer

    imagens que so aceitas por ns. Quando as imagens no respeitam as leis do pensamento

    logo so deixadas de lado e taxadas de inadmissveis. Mas, o respeito s leis do pensamento

    no a nica coisa pela qual as imagens que formamos tm de passar. Elas ainda precisam

    11 TLP, 2.12. 12 HERTZ, H. The Principles of Mechanics Presented in a New Form. New York, Dover Publications, 1956. 13 HERTZ, H. The Principles of Mechanics Presented in a New Form. New York, Dover Publications, 1956, p.

    1. 14 HERTZ, H. The Principles of Mechanics Presented in a New Form. New York, Dover Publications, 1956, p.

    1 15 HERTZ, H. The Principles of Mechanics Presented in a New Form. New York, Dover Publications, 1956, p.

    2.

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    passar pelo nus da prova de validade. Dessa forma, Hertz nos diz: Ns significamos como

    incorreta qualquer imagem permissvel se suas relaes essenciais contradizem as relaes

    das coisas externas16. Assim, as imagens que criamos dos objetos externos a ns podem ser

    verdadeiras ou falsas. Para serem verdadeiras suas relaes internas precisam satisfazer as

    relaes internas dos fatos. Wittgenstein utiliza muitas das idias de Hertz e as desenvolve

    utilizando-se de noes da lgica clssica de Frege e Russell. As leis do pensamento

    propostas por Hertz, por exemplo, ganham nova roupagem em Wittgenstein quando esse se

    utiliza do clculo proposicional de Russell como modelo formal da linguagem, buscando

    estabelecer a verdadeira forma lgica da linguagem. Assim, as leis do pensamento no so

    psicolgicas, mas lgicas. Wittgenstein se utiliza da idia de Hertz, de que fazemos modelos

    do mundo, e com o simbolismo lgico de Frege e Russel, consegue mostrar que figuramos o

    mundo graas a uma forma lgica que existe em nossa linguagem.

    Para o autor do Tractatus quando expressamos nosso pensamento atravs da

    linguagem, expressamos uma situao possvel ou real. Por exemplo, quando afirmamos a

    proposio A caneta est em cima da mesa, no precisamos apontar para tal situao, nem

    mesmo justificar isso, pois a simples proposio mostra-nos uma posio possvel para a

    caneta. A proposio, por si s, mostra uma determinada situao. Wittgenstein sugere ento,

    que a proposio tem o poder de figurar situaes possveis e isto provado pelo seguinte

    aforismo: A proposio uma figurao da realidade: pois sei qual a situao por ela

    representada, se entendo a proposio. E entendo a proposio sem que seu sentido me seja

    explicado17. Ao dizer que A caneta est em cima da mesa estou representando, mostrando

    uma situao possvel e no preciso explicar mais nada se aceito esta afirmao como

    possvel. Se o meu interlocutor estiver ciente do significado dos signos que usei, ele entender

    minha afirmao.

    Wittgenstein entende que uma condio da linguagem significativa que Na

    figurao e no afigurado deve haver algo de idntico, a fim de que um possa ser, de modo

    geral, uma figurao do outro18. Assim, para que a linguagem consiga ir at o mundo e ali

    afigur-lo, preciso que algo torne possvel isso. Vimos acima que a proposio um todo

    16 HERTZ, H. The Principles of Mechanics Presented in a New Form. New York, Dover Publications, 1956, p. 2. 17 TLP, 4.021.

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    articulado de proposies elementares que, por sua vez, so compostas de nomes que denotam

    o mundo. Dessa forma, um dos primeiros requisitos para que uma proposio seja considerada

    como tal que ela seja articulada e no um amontoado de signos simples. A proposio,

    assim articulada, uma figurao da realidade. Tal figurao consiste em seus elementos

    estarem articulados de uma determinada maneira.19

    Tal articulao, representa o mundo que

    tambm um todo articulado de fatos que so compostos de objetos. Assim, a figurao,

    como um todo articulado de elementos que esto uns para os outros de uma determinada

    maneira, representa um estado de coisas que est articulado de uma determinada maneira.

    Wittgenstein chama essa vinculao dos elementos da figurao a estrutura da figurao e a

    possibilidade dessa estrutura sua forma de afigurao20. Essa forma de afigurao a

    possibilidade dos objetos do mundo estarem relacionados da mesma forma que os nomes da

    proposio. essa forma de afigurao que torna possvel linguagem figurar o mundo.

    atravs dela que a linguagem se enlaa com a realidade21

    . Para que a linguagem possa afigurar

    o mundo, Wittgenstein pressupe a necessidade de haver algo comum entre linguagem e

    mundo. Este algo comum a forma de afigurao22

    . Assim como a proposio um todo

    articulado de signos, um fato composto por um todo articulado de objetos. Essa a forma

    lgica comum entre linguagem e mundo que torna possvel a figurao do mundo por parte da

    linguagem.

    A coordenao dos nomes na proposio a possvel coordenao dos objetos no mundo e

    isso faz com que a figurao reflita, toque a realidade. Para Ramsey,

    Quando ns dizemos que uma figurao representa certos objetos que

    esto combinados de um certo modo, ns significamos meramente que

    os elementos da figurao esto combinados neste modo, e esto

    coordenados com os objetos pela relao representacional que pertence

    figurao.23

    18 TLP, 2.161. 19 Cf. TLP, 2.14. 20 TLP, 2.14 21 Cf. TLP, 2.1511 22 TLP, 2.17. 23 RAMSEY, F. P., Review of Tractatus. In.: COPI, I. M. & BEARD, R. W. (orgs.), Essays on Wittgensteins Tractatus. London: Routledge &Kegan Paul, 1966, p. 10.

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    Sempre que pensamos numa figurao, pensamos nela como tendo uma relao que

    representa um estado de coisas.

    Assim, na linguagem, um nome toma o lugar de uma coisa, um outro, o de uma outra

    coisa, e esto ligados entre si, e assim o todo representa como um quadro vivo o estado de

    coisas24. A proposio s tem sentido se afigurar um fato, e ela s pode afigurar um fato se

    for logicamente articulada. A configurao dos signos em uma determinada forma que d

    proposio a possibilidade de ela ser uma figurao do mundo. Entre linguagem e mundo h

    um isomorfismo que os liga. Este isomorfismo se d pela forma lgica. Ao vermos a

    proposio, vemos o fato do mundo se entendemos a que os signos que a compem se

    referem25

    .

    A proposio, como figurao da realidade, no a realidade em si, mas um modelo

    possvel da realidade que guarda em si as mesmas propriedades do mundo. Uma proposio

    escrita ou sonora um fato lingstico que afigura um fato do mundo. Ela um todo

    articulado e, como tal, um fato lingstico. Assim, a proposio um fato que afigura um

    outro fato. Mas no , ela mesma, o fato afigurado. Kenny26

    , ao comentar a teoria da

    figurao do Tractatus afirma:

    Wittgenstein parece ter pensado que para A ser uma figurao de B, A

    no deve ser completamente como B (ou ela ser B e no justamente a

    figurao de B) e nem completamente diferente de B (ou ela no poder figurar B). O que torna A como B, o que ele tem em comum com B ,

    como ns temos dito, chamado por Wittgenstein, a forma pictrica de A.

    O que torna A diferente de B, e torna ele uma figurao e no uma

    realidade duplicada, ns podemos chamar forma representacional de A.

    Ou seja, a proposio tem uma configurao igual ao dos fatos do mundo, mas ela no

    um fato do mundo, ao contrrio, um fato lingstico que representa o fato do mundo. Ela

    possui uma forma representacional. A proposio uma coordenada onde cada ponto est

    24 TLP, 4.0311. 25 importante salientar aqui que para entendermos a proposio preciso sabermos o que determinado signo

    denota. preciso que os significados dos sinais simples (das palavras) nos sejam explicados para que os entendamos (TLP, 4.026). 26 KENNY, A. Wittgenstein. London: Pinguin Books, 1993, p. 57.

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    ligado a fim de identificar o mundo. Os pontos das coordenadas so os nomes que, por si s,

    nada identificam, mas, no contexto da proposio, denotam o mundo.

    A figurao contm em si somente a forma da realidade que ela afigura, no o

    contedo. Ela no contm em si a configurao de coisas que afigura, mas apenas a forma

    desta configurao, ou seja, a possibilidade de tal configurao. Tal possibilidade garantida

    pelo isomorfismo entre mundo e linguagem, o qual torna possvel um tal encadeamento de

    nomes representar um determinado encadeamento de coisas no mundo. Isso a faz ser

    independente da realidade. Por isso, Wittgenstein vai afirmar: A figurao representa seu

    objeto de fora (seu ponto de vista sua forma de representao)27. Mas ela no pode escapar

    da forma de representao28

    . Toda figurao est condicionada a ter em si a forma da

    representao.

    A proposio enquanto figurao lgica do mundo reflete o mundo, mostra-nos o

    mundo. Ao dizer que A caneta est em cima da mesa, tal proposio, se verdadeira, mostra

    que uma determinada caneta est em cima da mesa. Ao ouvirmos ou lermos uma proposio

    como esta, logo fazemos uma imagem para ns mesmos de um tal estado de coisas, como

    diria Hertz. A linguagem s tem este poder porque h entre a linguagem e o mundo a forma

    da afigurao, uma forma lgica comum que permite linguagem refletir os possveis estados

    de coisas presentes no mundo. A proposio afigura o fato, mas no consegue afigurar a

    prpria forma da afigurao. O Tractatus mostra que na proposio h um isomorfismo entre

    linguagem e mundo, mas este isomorfismo no pode ser dito. Ele se mostra na figurao que a

    linguagem faz do mundo.

    A figurao, que tem o poder de afigurar o mundo, no tem o poder de afigurar sua

    forma de afigurao. Sua forma de afigurao, porm, a figurao no pode afigurar; ela a

    exibe29. A relao interna entre linguagem e mundo algo que no pode ser dito pela

    proposio, pois careceria de sentido, j que no poderia ser figurado. No possvel que haja

    uma proposio que consiga figurar a relao figurativa da linguagem. A relao entre o

    mundo e a linguagem no pode ser provada pela linguagem com sentido, mas se mostra nela.

    Ao figurar o mundo, a proposio mostra a forma lgica que liga o mundo linguagem.

    27 TLP, 2.173. 28 Cf., TLP, 2.174 29 TLP, 2.172.

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    Assim, ao dizer A caneta est em cima da mesa, a proposio mostra a estrutura relacional

    que torna possvel a ela figurar o mundo. Tal proposio mostra a lgica existente entre

    linguagem e mundo, capaz de fazer com que a linguagem descreva o mundo:

    Desse modo, toda a figurao j pressupe a forma da afigurao:

    qualquer tentativa de afigur-la estaria fadada ao fracasso porque

    pressuporia aquilo mesmo que pretende afigurar. Em outras palavras,

    dada proposio pode descrever um fato, mas no a estrutura comum

    entre ela e o fato: esta estrutura a condio de possibilidade da prpria

    descrio que a proposio est fazendo e no pode ser descrita.30

    Como vimos at agora, a figurao contm em si a forma lgica do mundo e isso o faz

    representar o mundo. Porm, esta representao anterior comparao com o mundo.

    Mesmo que a caneta no esteja em cima da mesa, a proposio A caneta est em cima da

    mesa continua sendo uma figurao lgica do mundo. Ela contm em si a forma lgica do

    mundo e, por isso, possui sentido.

    Para Wittgenstein, a figurao no necessariamente descreve uma realidade existente,

    mas uma realidade possvel. Uma proposio do tipo A caneta est em cima da mesa pode

    concordar ou no com uma situao real. E isso no faz com que tal proposio deixe de ser

    uma figurao, pois o que a figurao representa seu sentido31. O sentido de uma

    figurao e, por conseqncia, de uma proposio a possibilidade desta ser verdadeira ou

    falsa. Toda proposio que figura o mundo bipolar segundo o Tractatus.

    A figurao no mostra, por si s, sua verdade ou falsidade. S podemos saber se uma

    determinada figurao verdadeira ou falsa comparando-a com a realidade. Somente pela

    anlise da proposio no conseguimos chegar ao seu valor de verdade. Isso faz Wittgenstein

    concluir: Uma figurao verdadeira a priori no existe32. Ou seja, toda e qualquer

    representao que fizermos do mundo contm a possibilidade de ser verdadeira ou falsa.

    Portanto, a figurao no est diretamente ligada realidade das situaes existentes, mas

    independente delas. A forma lgica da proposio figurativa mostra uma possibilidade de

    30 PINTO, P. R. M., Iniciao ao Silncio. Uma anlise do Tractatus de Wittgenstein como forma de

    argumentao. So Paulo: Loyola, 1998, p. 162. 31 TLP, 2.221. 32 TLP, 2.225.

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    estados de coisas do mundo, mas no mostra se tal estado existe ou no. Uma proposio

    representa o mundo independentemente dela ser verdadeira. Em resumo, sua relao com o

    mundo interna33.

    A possibilidade de a proposio ser verdadeira ou falsa que determina seu sentido.

    Se uma proposio no mostrar esta possibilidade ela ser descartada, pois no demonstrar

    sentido algum. Isso possvel porque uma proposio tem em si a forma da realidade. Ela

    articulada por nomes que substituem os objetos do mundo. Os nomes tm o poder de denotar

    os objetos do mundo. Isso leva Wittgenstein a reformular a concepo do sentido e referncia

    de Frege. Para este ltimo, todo signo lingstico era possuidor de sentido e referncia. O

    sentido era o pensamento expresso por tal signo, enquanto a referncia era aquilo que tal

    signo denotava. Dessa forma, a estrela matutina e vespertina tinham a mesma referncia, mas

    seu sentido era diferente34. Wittgenstein entende que S a proposio tem sentido; s no

    contexto da proposio que um nome tem referncia35. Isoladamente, o nome nada significa,

    ele s adquire significado no contexto de uma proposio.

    A proposio, como vimos, um todo formado por nomes que se referem realidade,

    ou seja, que denotam objetos no mundo. Um nome isolado no tem nem mesmo significado.

    O nome o constituinte ltimo da linguagem e nele no h bipolaridade como h na

    proposio. Ao enunciar um nome isoladamente ele no expressar sentido algum e no ter

    nem mesmo referncia. Um nome no bipolar.

    Uma proposio elementar figura o mundo e, tal proposio, composta por nomes

    que denotam os objetos do mundo. Cada nome refere-se a um objeto e a configurao destes

    nomes na proposio ser igual configurao dos objetos no mundo e, ento, se dar um

    sentido. configurao dos sinais simples no sinal proposicional corresponde

    configurao dos objetos na situao.36 Porm, um nome sozinho no capaz de expressar

    33 MOUNCE, H. The Logical System of the Tractatus. In.: Hans-Johann Glock. Wittgenstein: A Critical Reader. Oxford: Blackwell Publishers, 2001, p.50 . 34 Cf. FREGE, G. Lgica e Filosofia da Linguagem. So Paulo: Cultrix, Ed. Universidade de So Paulo, 1978.

    A referncia de um nome prprio o prprio objeto que por seu intermdio designamos; a representao que dele temos inteiramente subjetiva; entre uma e outra est o sentido que na verdade, no to subjetivo quanto

    a representao, mas que tambm no o prprio objeto (p. 65). 35 TLP, 3.3. A traduo do Tractatus feita por Luiz Henrique Lopes dos Santos traduz a palavra alem

    Bedeutung por significado. Entendemos que a melhor traduo para esta palavra seja referncia, por isso, tomamos a liberdade de, nos aforismos em que ela aparece, a traduzirmos dessa forma. 36 TLP, 3.21.

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    tal sentido, dentro da proposio ele significar determinado objeto. O nome denota o objeto.

    O objeto sua referncia. (A o mesmo sinal que A.)37.

    A diferena entre o sentido da proposio e a referncia dos nomes fica mais bem

    explicada quando Wittgenstein faz uma relao entre pontos e flechas: (Nomes so como

    pontos, proposies so como flechas, elas tm sentido)38. A referencialidade dos nomes

    como os pontos de uma figura geomtrica que, articulando-se lado a lado, acabam formando

    tal figura que adquire um sentido. Porm, um desses pontos, isoladamente, nada significa.

    Kenny resume bem a diferena entre a referncia do nome e sentido da proposio na

    seguinte passagem: Compreender um nome compreender sua referncia, compreender uma

    proposio compreender seu sentido39. O sentido da proposio a possvel situao que

    ela descreve, tal situao pode ou no ser real; a referncia do nome o objeto que ele denota

    e que faz parte de uma determinada situao.

    Uma situao do mundo um complexo de objetos. Uma proposio lingstica um

    complexo de nomes articulados. Tanto a situao do mundo, quanto a proposio da

    linguagem respeitam, em Wittgenstein, uma forma lgica de articulao, formando um todo

    articulado. As situaes so formadas por objetos articulados e as proposies por nomes

    articulados. Os nomes denotam os objetos e as proposies descrevem as possveis situaes

    do mundo. Enquanto um objeto nomeado por um nome, uma situao descrita por uma

    proposio. Mas uma situao no pode ser nomeada. Somente os objetos que a compem

    podem ser nomeados40

    .

    Toda vez que uma proposio figura o mundo ela mostra seu sentido. Seu sentido a

    possibilidade dela ser verdadeira ou falsa. Toda proposio , portanto, bipolar, ou seja, tem

    em si a possibilidade de ser verdadeira e falsa. A realidade deve, por meio da proposio,

    ficar restrita a um sim ou no41. Entendemos uma proposio sem saber se ela verdadeira

    ou falsa, mas sabendo desta possibilidade. A proposio representa um possvel estado de

    coisas. Assim, a linguagem tem o poder de criar situaes hipotticas, dentro de um espao

    37 TLP, 3.203. 38 TLP, 3.144.

    39 KENNY, A. Wittgenstein. London: Pinguin Books, 1993, p. 62. 40 TLP, 3.144. 41 TLP, 4.023.

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    lgico definido. Ela pode representar um mundo possvel42

    . Mas s pode fazer isso quando

    logicamente articulada.

    Ento, o sentido da proposio totalmente independente do mundo real. Por isso,

    uma proposio no mera descrio do mundo, mas representao do mundo. Isso tem uma

    enorme influncia na idia de cincia de Wittgenstein, a qual veremos mais adiante. Agora,

    precisamos mostrar como ele concebe ser possvel proposio ser verdadeira ou, ao

    contrrio, falsa.

    Para o filsofo em questo, no podemos saber a priori se uma proposio

    verdadeira ou falsa. A proposio deve conter a possibilidade de sua verdade. No incio deste

    trabalho, mostramos que a anlise da proposio leva a proposies elementares. Essas

    proposies elementares esto em relao direta com o mundo. diante dessas idias que se

    chega concluso de que, para sabermos se uma proposio verdadeira, precisamos analisar

    as proposies elementares que a constituem. So estas ltimas que esto em ligao direta

    com o mundo e que nos podem mostrar se a figurao que fizemos ou no o caso. Assim

    toda a anlise de busca da verdade da proposio se d a partir das proposies elementares.

    No aforismo 5, Wittgenstein escreve: A proposio uma funo de verdade das

    proposies elementares. (A proposio elementar uma funo de verdade de si mesma.).

    Decorre da que, para sabermos se uma proposio verdadeira ou falsa, basta sabermos se as

    proposies elementares que a constitui so verdadeiras ou no. Se as proposies

    elementares que constituem a proposio forem verdadeiras, a proposio ser verdadeira; por

    outro lado, se forem falsas, a proposio ser falsa. por isso que Wittgenstein afirma: As

    proposies elementares so os argumentos de verdade da proposio43.

    Para Wittgenstein, a proposio mais simples, a proposio elementar, assere a

    existncia de um estado de coisas44. Ela representa um todo ordenado de objetos do mundo.

    Este todo ordenado um estado de coisas. Ela faz esta representao por que ela uma

    vinculao, um encadeamento de nomes45. Ela contm em si a forma do que ela representa.

    42 TLP, 4.032. 43 TLP, 5.01. 44 TLP, 4.21. 45 TLP, 4.22.

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    Para Wittgenstein, o nome aparece na proposio apenas no contexto da proposio

    elementar.46 Ela um encadeamento direto e objetivo de nomes.

    Toda proposio elementar, como j dissemos, est diretamente ligada com os fatos do

    mundo. Por isso ela funo de verdade de si mesma.47

    Para sabermos se uma proposio

    elementar verdadeira, faz-se necessrio compar-la com a realidade. Se ela concordar com a

    realidade que representa, ser verdadeira; se no concordar, ser falsa. Somente nesta

    comparao com a realidade que a proposio elementar adquirir sua verdade ou falsidade

    e no de forma a priori. Isso faz Wittgenstein concluir:

    verdadeira a proposio elementar, ento o estado de coisas existe; falsa a proposio elementar, ento o estado de coisas no existe.

    A especificao de todas as proposies elementares verdadeiras

    descreve o mundo completamente. O mundo completamente descrito

    atravs da especificao de todas as proposies elementares, mais a

    especificao de quais delas so verdadeiras e quais so falsas.48

    Cada proposio elementar independente e tem n possibilidade de ligao com

    outras proposies elementares, formando assim vrios grupos de condies de verdade.

    Percorremos at o momento o caminho da crtica da linguagem feito por Wittgenstein

    e vimos que a linguagem representa o mundo porque h um isomorfismo entre linguagem e

    mundo. A proposio tem a mesma forma lgica do mundo. Fizemos este caminho, porque

    sem ele, impossvel entendermos a cincia e, principalmente, as idias sobre a linguagem da

    cincia presentes no Tractatus. Agora, percorrido o caminho da crtica da linguagem,

    podemos falar da Cincia.

    2 Cincia como a totalidade das proposies sobre o como do mundo

    A concepo de cincia presente no Tractatus est intimamente ligada sua

    concepo de mundo. A cincia descreve o mundo, diz como ele e explica a concatenao

    46 TLP, 4.23. 47 Cf. TLP, 5. 48 TLP, 4.25 4.26.

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    de fatos existentes nele. importante salientar que mundo entendido como a totalidade dos

    fatos, no das coisas.49

    Os fatos podem ou no acontecer, esto dentro do campo de

    possibilidades do espao lgico. No podemos, aqui, desvencilhar a concepo de mundo da

    concepo de linguagem. O mundo decorrncia imediata da idia de linguagem do

    Tractatus. Assim como na linguagem h a possibilidade de verdade ou falsidade, no mundo

    h a possibilidade de um fato acontecer ou no acontecer. Mas o acontecer dos fatos

    puramente contingente, como veremos mais adiante.

    A cincia a totalidade das proposies que figuram o mundo. Grande parte dessa

    nfase deve-se influncia de Hertz na concepo de cincia de Wittgenstein. Para aquele, a

    cincia produz imagens mentais que devem estar logicamente de acordo com certas leis

    lgicas de nosso pensamento. A cincia, ele afirma, antecipa-se natureza e consegue, assim,

    prever fatos futuros50

    . S possvel prever tais fatos porque fazemos para ns imagens

    mentais que figuram a realidade e, a partir destes fatos, conseguimos prever o futuro nos

    remetendo a fatos anteriores. Dessa forma, conseguimos dizer que vai chover olhando para o

    cu e vendo nuvens escuras nele, porque est registrada em nosso pensamento tal imagem das

    nuvens escuras como portadoras de gotas de chuva. A cincia, portanto, opera com os dados

    de nosso conhecimento passado. Tais dados s so possveis porque figuramos o mundo.

    Wittgenstein, como j dissemos, usa a idia de Bild (figurao) presente em Hertz e

    entende que todas as proposies logicamente articuladas, que representam fatos possveis,

    so proposies da cincia natural. Elas so as nicas proposies com sentido e, para alm

    delas, nada se pode falar. A cincia trabalha na descrio do mundo, dizendo como o mundo

    ou pode ser. Ela opera no campo dos fatos. Os fatos so concatenaes de objetos e sua

    totalidade o mundo. Logo, a cincia natural ocupa-se dos fatos. Ela faz figuraes do

    mundo, e suas proposies, se comparadas com a realidade, podem ser verdadeiras ou falsas.

    Quando pensamos na cincia como aquela que trabalha com proposies que

    descrevem o mundo, no podemos pensar nela meramente como um conjunto de signos que

    descreve o mundo. Ao contrrio, preciso levar em conta a idia wittgensteiniana de que

    somos, por causa da estrutura lgica de nossa linguagem, capazes de criar um mundo. Por

    49 Cf, TLP, 1.1. 50 Cf. HERTZ, H. The Principles of Mechanics Presented in a New Form. New York, Dover Publications,

    1956, p. 1.

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    isso, preciso ter presente a idia de que quando Wittgenstein fala em mundo no Tractatus

    ele fala em um conjunto de possibilidades. O mundo o que e o que pode ser, de acordo

    com o espao lgico. Os fatos compreendem no somente o que o caso. Nas palavras de

    Wittgenstein: a totalidade dos fatos determina o que o caso e tambm tudo o que no

    caso. Os fatos no espao lgico so o mundo51. Por isso, permitido cincia conjeturar,

    fazer hipteses, enfim, descrever um mundo possvel. A proposio com sentido tem, dentro

    de um espao de possibilidades, a capacidade de criar um mundo possvel, mesmo que este

    no seja o caso52

    . Ora, como a cincia trabalha com estas proposies, logo fica liberada a ela,

    a princpio, a possibilidade de criar um mundo. A cincia no Tractatus, segundo nossa

    concepo, deve ser entendida de acordo com esse reino de possibilidades.

    Se a cincia o campo do saber que opera com as proposies com sentido e ela pode

    representar um mundo possvel, temos que deixar claro tambm que tal representao de um

    mundo possvel, no pode fugir s leis da lgica. Como Hertz dizia, toda vez que fazemos

    para ns imagens do mundo, elas tm de estar de acordo com certas leis de nosso pensamento,

    seno sero logo renegadas. Diante disso, podemos pensar, de acordo com o Tractatus e sua

    concepo de espao lgico e todas as condies que fazem com que as proposies tenham

    sentido, que a cincia, enquanto capaz de representar o mundo, deve somente operar com

    proposies que tenham sentido. Todas as hipteses cientficas teriam de ter em si a

    possibilidade de uma realidade. Assim, se um qumico que pensa ser possvel, atravs da

    unio de dois elementos a e b criar um novo elemento c, ainda no existente na realidade, ele

    estaria operando num reino de possibilidades que podem ou no ser o caso. Sua teoria teria

    sentido apesar de talvez no ser o caso.

    Se a cincia pudesse descrever todos os fatos possveis, mostraria, por conseqncia,

    todos os impossveis; mostraria a totalidade do mundo como ele . Diante disso, o Tractatus

    afirma na proposio 4.11 que A totalidade das proposies verdadeiras toda a cincia

    natural (ou a totalidade das cincias naturais). Se pudssemos descrever o mundo

    completamente, ter-se-ia a totalidade da cincia. A ela no restaria mais nada. Descreveria,

    assim, todas as suas possibilidades e se encerraria a. Aqui nasce um dos limites da cincia.

    Como ela trabalha na esfera das proposies com sentido, ela fica presa ao mundo dos fatos e

    51 TLP, 1.12 1.13.

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    no consegue sair para alm deles. Dada a totalidade da cincia, estaria dada, tambm, a

    totalidade dos fatos.

    Porm, a cincia no meramente um aglomerado de proposies que descrevem o

    mundo; ela trabalha com leis, princpios e teorias. Diante disso, a concepo de cincia e a

    natureza das teorias cientficas do Tractatus no so to simples quanto parecem primeira

    vista. Na proposio 4.11, Wittgenstein agrega a noo de cincia ao reino do dizvel. Caberia

    a ela descrever o mundo, sendo a totalidade das verdades contingentes do mundo. Mas como

    bem aponta Black53

    a observao feita na proposio 4.11 falha ao distinguir doutrina

    cientfica de qualquer agregado de verdades contingentes. Um modo no qual doutrinas

    cientficas diferem de meras colees de declaraes verdadeiras sobre o mundo est em seu

    elevado grau de organizao por meio de leis abstratas e princpios. A idia de que a cincia

    reduz-se a mera descrio de fatos conflita, primeira vista, com todo o aparato de leis,

    princpios, teorias e formas de ver o mundo que esta possui. Mas Wittgenstein no se omite de

    tratar estas questes e jamais se pode considerar que o Tractatus tenha uma viso redutivista

    da cincia. Ao contrrio, ele reconhece todo o aparato de que ela se utiliza para figurar o

    mundo. Ao referir-se lei da induo, ele diz que esta manifestamente uma proposio com

    sentido: A chamada lei da induo no pode, de modo algum, ser uma lei lgica, pois

    manifestamente uma proposio com sentido. E por isso no pode tampouco ser uma lei a

    priori54. A partir da que podemos nos perguntar se as proposies da cincia seriam

    meramente descritivas de um mundo? E tudo aquilo que se refere forma de descrever o

    mundo, a saber, a metodologia, as leis frente as quais uma descrio do mundo deve

    conformar-se, as teorias, os sistemas, satisfazem as condies de possibilidade do sentido?

    Qual seria a natureza da teoria cientfica? Estas so as questes que procuraremos discutir a

    partir de agora.

    Como dissemos Wittgenstein entende que as leis da cincia natural so possuidoras de

    sentido. A lei da induo, o princpio da causalidade, os princpios da mecnica e outros

    princpios regulativos da cincia, possuem um sentido. Porm, preciso lembrar que tais

    princpios e leis no so da mesma natureza de uma proposio natural do tipo: a caneta est

    52 Cf. TLP, 4.023 53 BLACK, M. A Companion to Wittgensteins Tractatus. Cambridge: Cambridge University Press, 1964, p. 344.

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    sob a mesa. Esta uma proposio que representa um evento possvel no mundo de forma

    direta e podemos perceb-lo se buscarmos a verdade de tal sentena. As leis cientficas so

    abstratas e no tm esta relao direta com um determinado fato no mundo. Se elas no tm

    uma relao direta com um fato no mundo, e, segundo Wittgenstein, so possuidoras de

    sentido, como elas relacionam-se com o mundo?

    Para o filsofo em questo, tais leis so modelos, redes, que proporcionam a

    conformao possvel das proposies da cincia.55

    As leis da cincia natural so modelos a

    partir dos quais a cincia pode descrever o mundo. So modelos para unificar uma descrio

    do mundo de uma certa forma. Assim, a lei da causalidade no uma lei, mas a forma de

    uma lei56. Ela simplesmente proporciona uma descrio do mundo de uma determinada

    forma, unindo as proposies que tm a forma da causalidade em um campo especfico,

    porm, ela no uma lei absoluta, mas simplesmente uma maneira de ver o mundo. Da

    mesma forma, Wittgenstein entende que a mecnica de Newton uma forma unitria de

    descrever o mundo57

    .

    Tais leis e teorias so portadoras de sentido por serem proposies generalizadas.

    Wittgenstein herda o conceito de generalidade de Frege. Para este, a proposio do tipo

    Todos gregos so calvos no se analisa em termos de um sujeito e de um predicado, mas

    sim em termos de um nome de funo unitria complexa, se x grego, ento x calvo, um

    quantificador universal, para todo x, que o liga.58 Wittgenstein herda essa idia com

    algumas objees, que no sero aqui tratadas. As proposies generalizadas so descritivas

    de uma classe de proposies que tm uma certa forma lgica constante, elas tratam do

    simbolismo e no do que pode ser simbolizado. Entendemos, aqui, a noo de proposio

    generalizada, a partir da noo de generalidade que aparece na sentena 5.522, no qual

    Wittgenstein nos diz: O que peculiar designao da generalidade , em primeiro lugar,

    que ela aponta para um prottipo lgico de figurao e, em segundo lugar, que ela d realce a

    constantes. Assim, as leis e teorias cientificas so proposies generalizadas na medida em

    que possibilitam a unio das vrias proposies que descrevem o mundo, de uma determinada

    54 TLP, 6.31. 55 Cf. TLP, 6.34. 56 TLP, 6.32. 57 TLP, 6.341. 58 GLOCK, H. Dicionrio Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 188.

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    forma, em um nico sistema. Tal sistema leva em conta as constantes presentes em cada

    proposio. Proposies que tm em si o princpio da causalidade so unidas e delas surge

    uma lei, a qual elas acabam se submetendo. Elas so formas nas quais as proposies que

    descrevem o mundo se adequam. Assim, toda a proposio da cincia acaba por adequar-se a

    uma de suas leis por ter uma forma comum de ver o mundo.

    As proposies generalizadas da cincia no descrevem o mundo de forma direta, mas

    indireta. Elas descrevem o mundo tendo como base as proposies verdadeiras constatadas na

    realidade. Proctor59

    , ao comentar a concepo de leis cientficas no Tractatus diz que elas,

    Sendo proposies generalizadas, tero o carter de modelos lgicos, dos quais toda a proposio, de certa forma lgica, pode ser derivada ou

    formulada e, como tal, so possveis formas nas quais as proposies da

    cincia podem ser determinadas. Como generalizaes empricas baseadas

    em experincias passadas, elas so somas lgicas daquelas proposies de

    certas formas que tm sido constatadas serem verdadeiras descries de

    estados de coisas reais.

    Assim, as leis e teorias cientficas partem de proposies que surgiram a partir de

    observaes feitas na realidade e que so generalizadas a ponto de poderem descrever o

    mundo completamente. Tal generalizao se d a partir de uma proposio de uma

    determinada forma e no de qualquer proposio. Assim, a lei da causalidade uma

    generalizao de proposies elementares que constataram, em experincias passadas ou

    presentes, proposies que descrevem o mundo e que possuem a forma da causalidade e tenta

    generaliz-las a ponto de descrever o mundo completamente. As leis organizam as

    proposies de uma certa forma em um todo unificado. Elas descrevem como uma proposio

    verdadeira de uma certa classe descreve o mundo. Assim, uma lei, tal como a da causalidade,

    um modelo a partir do qual podemos formular proposies descritivas de fatos futuros. Elas

    produzem uma descrio do mundo com uma forma unificada.

    Porm, a descrio da lei no do mundo em si, mas da forma como as proposies

    descrevem o mundo. A lei natural diz como um determinado grupo de proposies descreve o

    mundo. E diz que tais proposies se adequam a uma forma de descrever a realidade.

    59 PROCTOR, G. L. Scientific Laws and Scientific Objects in the Tractatus. In.: COPI, I. M. & BEARD, R. W.

    Essays on Wittgensteins Tractatus. London: Routledge & Kegan Paul, 1966, p. 205.

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    Determinadas proposies tm como caracterstica comum a descrio do mundo a partir de

    uma idia de causalidade, outras a partir de outras idias. Tais descries so comuns a um

    determinado grupo de sentenas e as leis as agrupam formando, a partir delas, proposies

    generalizadas. Assim, como assinala Proctor60, As proposies elementares podem ser

    agrupadas em vrias classes, de acordo com formas comuns, e podem, assim, subjugarem-se a

    uma lei, que o modelo da forma lgica dessa classe de proposio. As proposies

    elementares so as descries dos fatos; a lei natural somente diz como os fatos so

    descritos. Enquanto as proposies elementares descrevem o mundo, as leis mostram qual

    a forma que tal proposio usa para descrever o mundo, e esta forma pertence a uma

    determinada lei. Tal forma de descrever o mundo pode descrever o mundo completamente, j

    que, para Wittgenstein, Pode-se descrever integralmente o mundo por meio de proposies

    completamente generalizadas, ou seja, sem que nenhum nome seja de antemo coordenado a

    um objeto determinado61. Toda a proposio elementar usa uma forma de descrever o

    mundo, as proposies generalizadas da cincia, enquanto leis e teorias, descrevem tais

    formas de descrever o mundo e, conseqentemente, acabam por descreverem o mundo

    indiretamente. A seguinte observao de Black sobre as leis cientficas sintetiza as

    observaes feitas at aqui: A viso de Wittgenstein sobre a relao de tais princpios

    regulativos ao mundo parece surgir disto: elas expressam opes para a sintaxe de possveis

    linguagens da cincia62.

    Todas as proposies sobre eventos futuros derivam-se dessas proposies j

    agrupadas em forma de lei. Assim, uma lei acaba por proporcionar a descrio para o mundo

    de uma determinada forma. Torna-se possvel, ento, a representao de fatos futuros, a partir

    da lei. A lei diz que se um determinado fato preencher tais e tais requisitos, estar subjugado a

    tal lei. Porm, preciso lembrar que de fatos presentes no se infere nenhum fato futuro. Mas

    isso veremos um pouco mais adiante.

    Nessa concepo da teoria cientfica como modelo de descrio da realidade encontra-

    se a mecnica newtoniana. Para Wittgenstein, tal sistema busca descrever o mundo de uma

    60 PROCTOR, G. L. Scientific Laws and Scientific Objects in the Tractatus. In.: COPI, I. M. & BEARD, R. W.

    Essays on Wittgensteins Tractatus. London: Routledge & Kegan Paul, 1966, p. 205 61 TLP, 5.526. 62BLACK, M. A Companion to Wittgensteins Tractatus. Cambridge: Cambridge University Press, 1964, p. 344.

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    forma unitria. A mecnica uma tentativa de construir, segundo um s plano, todas as

    proposies verdadeiras de que precisamos para descrever o mundo63. Wittgenstein compara

    tal processo a uma rede que possui uma malha determinada arbitrariamente. Tal rede, posta

    sobre uma superfcie branca com pontos pretos, determinaria uma configurao para tal

    superfcie. Suponha-se que a malha da rede seja quadriculada, estaria dada a uma forma de

    descrever a superfcie, porm, se a malha for triangular, haver outra estrutura para tal

    superfcie. Descreverei a superfcie de acordo com a malha que eu utilizar. Ao utilizar

    qualquer rede determinada, terei posto a descrio da superfcie em uma forma unitria. O

    mesmo ocorre na descrio do mundo. s diferentes redes correspondem diferentes sistemas

    de descrio do mundo. A mecnica determina uma forma de descrio do mundo ao dizer:

    todas as proposies da descrio do mundo devem ser obtidas, de uma dada maneira, a partir

    de um certo nmero de proposies dadas os axiomas da mecnica64. Assim, todo o mundo

    pode ser descrito de acordo com tal sistema. Mas, a descrio do mundo a partir de tal sistema

    totalmente arbitrria. Pode-se muito bem escolher outro sistema de representao do mundo.

    Pode-se, na linguagem de Wittgenstein, utilizar-se diferentes redes para descrever o mundo.

    Proctor65

    faz uma distino muito interessante entre sistema e lei natural no Tractatus.

    Para ele, tal distino est implcita na obra. Ele afirma:

    Um sistema um modo pelo qual ns podemos produzir as descries

    do universo de uma forma unificada, correspondente s diferentes

    redes que seriam usadas para produzir a descrio da superfcie branca com manchas pretas irregulares em uma forma unificada (...) Leis so

    formas possveis das proposies da cincia, e tratam da rede e no do

    que a rede descreve.

    Assim, enquanto as proposies da cincia natural so representaes do mundo em

    uma forma determinada e as leis as organizam de acordo com suas formas determinadas, um

    sistema um conjunto de leis dentro de um todo unificado. O sistema da mecnica possui

    suas leis que tratam da forma como o mundo descrito, tratam da rede e no do que a rede

    63 TLP, 6.343. 64 TLP, 6.341. 65 PROCTOR, G. L. Scientific Laws and Scientific Objects in the Tractatus. In.: COPI, I. M. & BEARD, R. W.

    Essays on Wittgensteins Tractatus. London: Routledge & Kegan Paul, 1966, p. 203.

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    A Linguagem da cincia no Tractatus de Wittgenstein

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    descreve66

    . Tratam da forma como tal sistema descreve o mundo. As proposies de um

    determinado sistema cientfico tm de se adequar s leis de tal sistema, forma de descrever o

    mundo proposto pelas leis. Todas as possveis proposies cientficas, para serem

    consideradas verdadeiras, devem adequar-se a tais leis. Qualquer proposio que queira

    descrever um mundo possvel ou fazer uma inferncia sobre o futuro deve seguir tal e tal

    forma. O sistema prov a totalidade de leis para descrever um mundo possvel. Da podemos

    dizer, com Wittgenstein, que um sistema prov as pedras para a construo do edifcio

    cientfico e diz: qualquer que seja o edifcio que voc queira levantar, deve constru-lo, da

    maneira que seja, com estas e apenas estas pedras67. As pedras devem ter a forma

    determinada pela lei. Dessa forma, as teorias e as leis naturais possuem sentido, so

    proposies generalizadas que buscam explicar a totalidade do mundo. Elas representam o

    mundo indiretamente, representando a forma de descrever o mundo.

    Tal idia de que as teorias e leis cientficas so modelos pelos quais descrevemos o

    mundo, abre espao, em nosso ponto de vista, para que possamos dizer que nelas fica

    permitindo fazer hipteses sobre fatos futuros. Porm, tais fatos podem ou no acontecer,

    esto dentro do reino da possibilidade. O que se pode descrever pode (grifo nosso) tambm

    acontecer68. Pode, mas no necessariamente acontecer. Para Wittgenstein, a lei da induo

    consiste em adotarmos a lei mais simples que v de encontro nossas experincias. Mas isso

    puramente psicolgico e no lgico. No h nenhuma razo para pensarmos que realmente

    ocorrer o caso mais simples. No h nenhuma necessidade no mundo. S h necessidade

    lgica. De um fato presente ou passado no podemos inferir um fato futuro. Assim, a crena

    de que o Sol nascer amanh porque nunca, at hoje, deixou de nascer, puramente

    psicolgica e no lgica, num sentido humeano. Adotamos tal lei porque ela se adapta melhor

    s nossas expectativas. Escolhemos a induo, como forma de ver o mundo porque a achamos

    mais simples e est mais de acordo com nossas expectativas, mas isso no quer dizer que

    realmente seja assim. As leis descrevem a forma como descrevemos o mundo e dizem, que, se

    uma determinada proposio tiver tal e tal forma, ela corresponde tal lei.

    66 Cf. TLP, 6.35. 67 TLP, 6.341. 68 TLP, 6.326.

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    Mas no assim que costumeiramente vemos a cincia e suas leis. Como diz

    Wittgenstein: Toda a moderna viso do mundo est fundada na iluso de que as chamadas

    leis naturais sejam as explicaes dos fenmenos naturais. Assim detm-se diante das leis

    como diante de algo intocvel, como os antigos diante de Deus e do Destino69. Mas elas no

    so as Explicaes Absolutas do mundo, ao contrrio, so formas de ver o mundo. No so

    algo intocvel e absoluto, mas fruto da engenhosidade da linguagem para descrever o mundo.

    Esto sujeitas verdade e falsidade como qualquer outra proposio. No so leis, mas

    formas de uma lei. A moderna viso do mundo v o mundo todo, toda a natureza e fatos do

    mundo subjugados a tais leis e de forma absoluta.

    Por outro lado, preciso lembrar que Wittgenstein alerta que toda a teoria ou lei

    sempre completamente geral, ela nunca fala de um determinado fato em particular. Ao citar a

    mecnica, ele nos diz: No podemos esquecer que a descrio do mundo por meio da

    mecnica sempre completamente geral. Nela, nunca se trata de falar, p. ex., de pontos

    materiais determinados, mas sempre e somente de pontos materiais quaisquer70. Toda a

    teoria cientfica e a lei cientfica nos d uma forma de ver o mundo, tal forma geral e no

    particular.

    Tudo o que uma lei estabelece que se uma dada entidade ou evento tem tal

    e tal caracterstica, ento sua descrio tomaria a forma de uma lei. Em outras

    palavras, a teoria ou lei somente nos d direes relativas forma na qual

    descrever o estado de coisas particular do mundo, e no nos fala que somente

    tais e tais estados de coisas podem acontecer.71

    A lei no determina os acontecimentos do mundo e da existncia de uma forma de

    descrever o mundo, no decorre que ela seja a nica forma. As leis e teorias podem descrever

    totalmente um mundo possvel, mas as coisas podem acontecer de outra forma. Aqui, a crtica

    de Wittgenstein viso moderna do mundo toma uma forma mais clara. Os modernos

    acreditam que a cincia pode explicar tudo atravs de leis, mas esquecem que muitas coisas

    do mundo podem fugir s redes da cincia. A malha determinar como o mundo ser descrito.

    As leis naturais no so intocveis e definitivas.

    69 TLP, 6.371-6.372. 70 TLP, 6.3432. 71 PROCTOR, G. L. Scientific Laws and Scientific Objects in the Tractatus. In.: COPI, I. M. & BEARD, R. W.

    Essays on Wittgensteins Tractatus. London: Routledge & Kegan Paul, 1966, p. 213.

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    Com o que vimos at aqui podemos dizer que a cincia se reduz a trabalhar no campo

    dos fatos, ela trabalha com uma linguagem que possui sentido. A cincia representa o mundo

    das contingncias, o mundo do sim e do no da linguagem com sentido. Ela, para

    Wittgenstein, no pode tratar de nada de mais sublime ou de mais alto. A cincia tem um

    campo limitado de atuao. Ela vai somente at onde possvel fazer sentido. Depois disso,

    ela deve parar, pois se continuar estar falando meramente absurdos. Diante disso,

    impossvel pensar que um campo do conhecimento cujo limite o mundo dos fatos possa

    tratar daquilo que est para alm desses limites. A cincia, ento, no pode figurar nada de

    mais alto. Ela no consegue descrever o que do mundo. A ela no cabe dar respostas sobre

    questes a respeito da tica, da esttica, da religio e do sentido da vida. Mas isto assunto

    para outro trabalho.

    Referncias

    BLACK, M. A Companion to Wittgensteins Tractatus. Cambridge: Cambridge University Press, 1964.

    FREGE, G. Lgica e Filosofia da Linguagem. So Paulo: Cultrix, Ed. Universidade de So Paulo, 1978.

    GLOCK, H. Dicionrio Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

    HERTZ, H. The Principles of Mechanics Presented in a New Form. New York, Dover Publications, 1956.

    KENNY, A. Wittgenstein. London: Pinguin Books, 1993.

    MOUNCE, H. The Logical System of the Tractatus. In.: Hans-Johann Glock. Wittgenstein: A Critical Reader. Oxford: Blackwell Publishers, 2001.

    PINTO, P. R. M., Iniciao ao Silncio. Uma anlise do Tractatus de Wittgenstein como forma de

    argumentao. So Paulo: Loyola, 1998

    PROCTOR, G. L. Scientific Laws and Scientific Objects in the Tractatus. In.: COPI, I. M. & BEARD, R. W. Essays on Wittgensteins Tractatus. London: Routledge & Kegan Paul, 1966.

    RAMSEY, F. P., Review of Tractatus. In.: COPI, I. M. & BEARD, R. W. (orgs.), Essays on Wittgensteins Tractatus. London: Routledge &Kegan Paul, 1966.

    WITTGENSTEIN, L. Some Remarks on Logical Form. In.: COPI, I. M. & BEARD, R. W. (eds.). Essays on Wittgensteins Tractatus. London: Routledge & Kegan Paul, 1966.

    _________________. Tractatus Logico-philosophicus. Trad.: Luiz Henrique Lopes dos Santos. So Paulo:

    Edusp, 1993.