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A LEITURA E A ESCRITA COMO OBJETO NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR NO PRIMEIRO CICLO1
Dagoberto Buim ARENA2
Resumo: O artigo analisa as relações entre as equipes dos projetos do Núcleo de Ensino e as equipes das escolas públicas, cuja finalidade seria a formação dos professores em seu local de trabalho, no ambiente universitário, e ainda atuação compartilhada diretamente na sala de aula. Para isso, são apontados os conflitos e os acertos entre as equipes que têm como objeto de estudos, discussão e atuação o ensino da língua materna desde os momentos iniciais da alfabetização. Um outro aspecto desenvolvido refere-se a duas metodologias de análise: a análise microgenética e o paradigma indiciário, próprias para analisar as tentativas de escrita de crianças, especialmente os sinais aparentemente óbvios como os que indicam paragrafação e pontuação. As conclusões apontam a necessidade de relacionamento direto com o professor, sem intermediários, pela equipe universitária, para que, em relações intersubjetivas, os dois segmentos possam adequar o olhar investigativo sobre os processos de ensinar e aprender.
Palavras-chave: formação de professores; escrita; leitura; metodologia de análise dados
INTRODUÇÃO
Professores dos múltiplos campi da UNESP têm desenvolvido, há anos, atuações
compartilhadas com professores ou escolas de redes municipais ou estaduais com o objetivo de
atender ao princípio da extensão universitária e da disseminação do conhecimento produzido.
Abrigadas no interior de um grande projeto institucional – O Núcleo de Ensino - essas ações
transcenderam esses objetivos por trazer dentro do seu próprio núcleo, ações de pesquisa pelas
quais, alunos das escolas, alunos da universidade, professores das escolas e professores das
universidades puderam e podem produzir conhecimento no momento em que suas atuações se
entrelaçam, e nos momentos que delas se distanciam para compreender o próprio fenômeno em
seu movimento, com suas nuances nem sempre amplamente percebidas.
A lógica dos projetos apresentados às instâncias da universidade assenta-se,
inicialmente, na manifestação de vontade das escolas onde as ações deverão ocorrer e na
elaboração de arcabouços teóricos como plataformas de ações, cujo desenvolvimento ocorre pela
conjunção de, pelo menos, quatro categorias envolvidas – professores e alunos de duas
instituições – universidade e redes públicas.
Em obediência a essa lógica, em 2004, cinco professores Núcleo de Ensino de
Marília, todos do Departamento de Didática da UNESP-Marília, continuaram com os trabalhos já
1Agência financiadora: Pró-reitoria de Graduação/Reitoria/Núcleos de Ensino. Este trabalho deu origem a um artigo apresentado no GT de Alfabetização, na 29ª. Reunião Anual da ANPEd, em outubro de 2006, em Caxambu-MG. 2 Faculdade de Filosofia e Ciências – Campus de Marília. E-mail: [email protected]
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iniciados, em 2003, na EE Maria Isabel Sampaio Vidal, localizada no distrito de Padre Nóbrega, no
entorno de Marília. Embora articuladas e com múltipla coordenação, as ações recebiam de cada
docente a sua visão específica no interior da área de sua atuação. Sob minha responsabilidade
estavam as tentativas de compreender por que as crianças, na faixa etária de 9 e 10 anos, ainda
não conseguiam escrever, e quais seriam os procedimentos pelos quais teriam melhores
condições de romper as fronteiras pouco delineadas entre o saber idiossincrático e o saber
escolar, socialmente aceito como indicadores de progresso e de reconhecimento do saber
escrever e do saber ler.
Tendo como referência os trabalhos anteriores e a preocupação com os resultados
pouco satisfatórios do ano anterior – 2003 – a coordenação local entendeu que seria melhor a
estratégia de planejar com, três professoras da rede, a programação que seria, todavia,
desenvolvida pelos alunos bolsistas sob a supervisão de um docente da universidade.
Num galpão do salão paroquial, quase em ruínas, do pequeno distrito, com pouca
entrada de luz, carteiras quebradas e gasta lousa de madeira, as aulas do projeto de reforço e
recuperação da Secretaria Estadual de Educação contaram com a colaboração do Núcleo de
Ensino para tentar alfabetizar três turmas de 15 alunos que apresentavam desempenho abaixo
das expectativas no domínio da escrita. Greves na universidade e conseqüente ausência dos
trabalhos seqüenciados provocaram a reorganização da estratégia inicial. Por esta estratégia, os
alunos-bolsistas, sob orientação dos docentes da universidade ministravam as aulas, enquanto os
professores responsáveis pelas turmas apenas observavam. Esse modo de operar, contudo,
trouxe alguns problemas, porque os professores das salas não poderiam ficar como observadores
das ações dos bolsistas, já que eles próprios seriam os responsáveis, junto à Secretaria, pelo
sucesso ou insucesso dos alunos. Conversas sobre -a situação indicaram a necessidade de alterar
o procedimento de modo que os alunos-bolsistas passassem a apenas auxiliar a docente em suas
tarefas, respeitando, desta maneira, a sua relação com a turma de alunos.
No final do ano, apesar das mudanças de atuação, muitos alunos tinham avançado
em suas manifestações escritas, especialmente as relacionadas ao trabalho pedagógico baseado
em eventos de cultura popular – recuperação escrita de provérbios, cantigas e brincadeiras com a
ajuda de pais e mães – e na escrita de cartas trocadas com alunos de cidades vizinhas.
No ano seguinte, em 2005, três professores da universidade decidiram, com seus
projetos aprovados pelo Núcleo de Ensino, compartilhar suas ações com uma escola da rede
municipal de Marília, próxima ao campus. A escola, instalada no início do ano, em prédio recém
construído, acolheu a oferta de um trabalho conjunto, embora, como apontarei adiante, em ações
dessa natureza, as negociações sejam inevitáveis e nem sempre o pensado por um segmento
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pode, considerada a natureza diversa das instituições, ser implementado sem alterações. O
projeto a ser desenvolvido em 2005, sob minha responsabilidade, previa novamente o
desenvolvimento de ações de escrita vinculadas à cultura popular, com o intuito de cuidar do
alfabetizando no interior de sua própria cultura para poder entender a língua como instrumento de
elaboração do modo de pensar, compreender e apropriar-se das manifestações culturais.
Para a execução do projeto, foram acertados encontros quinzenais na escola, entre
docentes da universidade, alunos bolsistas, e a equipe da escola formada por professores
titulares, estagiários, coordenador e diretor. Esses encontros teriam como objetivos iniciais os de
tematizar as práticas docentes, de discutir a colaboração dos bolsistas e de desencadear as ações
contidas nos projetos apresentados ao Núcleo de Ensino. Já nos primeiros encontros, os
professores universitários entenderam que não deveriam ter, antecipadamente, temas de projetos
a ser desenvolvidos nas salas de aula, porque a escola e a secretaria municipal já tinham
elaborado seus projetos, na época do planejamento, no início do ano letivo.
A dinâmica da universidade, entretanto, tem tramitação diferenciada, razão porque
os trabalhos geralmente iniciam-se em março, mês em que as escolas já estão desenvolvendo
suas atividades com muita intensidade. Nesse período, a escola já tinha firmado convênio com
uma associação de funcionários de uma fábrica de produtos alimentícios, pelo qual a associação
comprometia-se a oferecer contribuição mensal para pagamento de profissionais que pudessem
contribuir para o desenvolvimento das crianças por meio de atividades esportivas. Deste modo,
pudemos apenas mediar algumas ações entre a associação e a escola. Entre essas ações,
oferecemos a participação de um professor de educação física e um de capoeira, ambos
vinculados a atividades que vinham sendo realizadas pela UNESP em outros projetos. O trabalho
de natureza pedagógica, entretanto, restringiu-se, desde o início, a discutir as práticas de sala de
aula na didática do ensino da língua materna e dos conceitos de matemática, sem interferência
direta, tanto por professores, como por alunos bolsistas. O projeto com base nas manifestações
culturais, preocupado em criar as condições para a escrita de brincadeiras, casos, cantigas,
provérbios, danças, pareceu mais um instrumento invasor e desestabilizador da organização
pedagógica da escola, controlada pela direção e vinculada à política geral da secretaria. A análise
da situação trouxe para a equipe universitária, e para mim, em especial, que antes de propor
projetos para o núcleo seria necessário ouvir a equipe parceira sobre o foco para o qual deveriam
ser direcionadas as ações metodológicas.
Foi possível, pela estreita interação com os profissionais da escola, compreender as
orientações metodológicas da secretaria e entender os critérios de avaliação de alunos que
acabam determinando os procedimentos didáticos. Em relação à didática da língua materna, os
professores deviam oferecer aos alunos a oportunidade de escrever dois textos por semana, de
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qualquer gênero, cujos registros seriam remetidos para a coordenação da escola e para a
coordenação geral do município, para análise de acordo com as categorias de Ferreiro (1986).
Os encontros quinzenais entre as equipes eram realizados durante o período da
manhã e no período da tarde, compondo, portanto, três equipes, uma das quais formadas por
docentes e bolsistas do núcleo de ensino. Os projetos do Núcleo idealizado pelos professores
universitários cederam lugar a encontros em que eram tematizadas situações de sala de aula, no
ensino de Matemática, de alfabetização e de ensino da língua materna baseado em projetos. A
articulação entre os temas debatidos nas reuniões e as atividades de sala de aula era feita pelos
bolsistas que participavam efetivamente das aulas durante toda a semana e relatavam, em
encontro quinzenal, na universidade, as impressões e as conclusões de sua atuação
compartilhada com os professores da escola.
Novamente, durante dois meses, no segundo semestre, as atividades foram
paralisadas em virtude de movimento grevista na universidade. As atividades foram retomadas nos
últimos meses de 2005, mas, de algum modo, algumas conclusões, tanto na área de formação de
professores, quanto na área de ensino e aprendizagem puderam ser elaboradas. Especificamente,
em relação a minha atuação nessas duas áreas, algumas conclusões podem aqui ser discutidas.
1. A formação do professor em seu local de trabalho
Afastada a possibilidade de desenvolver o projeto que tinha como referência as
manifestações culturais da comunidade dos alunos, e aproximada a possibilidade de realizar
encontros quinzenais com duração de três horas com professores, a proposta inicial feita à direção
da escola, apoiada nos estudos já produzidos a respeito da formação de professores, era a de
contar apenas com docentes da escola que se interessassem realmente em participar nas
reuniões no ambiente físico da universidade. A direção, propôs, em contrapartida, a realização
com todos os professores, com a presença da diretora e da coordenadora, no ambiente físico da
própria escola. Não havia, para a equipe da universidade, outra possibilidade de atuação a não ser
esta, mas esse formato teve o mérito de produzir dados não esperados, como a compreensão de
que a escola pública, instituição articulada a uma rede, padroniza as condutas nas relações com
seus docentes e com as demais instituições. Neste caso, a direção da escola não permitiria
variações na formação de seus professores na relação com a universidade porque os professores
não teriam o direito de participar do Horário de Estudo Coletivo (HEC) fora da escola, em horário
diferenciado dos demais; e não poderia haver diferenciação entre docentes que queriam trabalhar
com a equipe da universidade e os que não queriam, porque todos deveriam participar das
reuniões, mesmo se não se interessassem.
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Estas condições, em que todos obrigatoriamente devem participar de projetos, não
encontram amparo nos estudos sobre formação de professores desenvolvidos no meio acadêmico,
mas não deixam de revelar os procedimentos e intenções contraditórias entre duas instituições
que buscam encontrar-se no campo da extensão. De um lado, a escola pública, com a missão de
cumprir a ação de ensinar a todas as crianças e oferecer formação permanente a seus
professores; de outro, a universidade, com a missão de pesquisar, ensinar e de fazer extensão. O
encontro entre as duas instituições, no caso do Núcleo de Ensino, dá-se na área da extensão, pela
universidade, entretanto é vista pela escola como a oportunidade de formar seus docentes de
forma padronizada e obrigatória. Enquanto a academia pensa em experimentar alternativas de
formação para que a ação docente seja efetiva no que pretende alcançar – ensinar as crianças -, a
escola deseja que a ação seja para todos, de forma global, sem discussão sobre interesses,
necessidades ou particularidades de qualquer natureza, porque o que parece importar é o
desenvolvimento de um projeto amplo, abrangente, sem recortes. Para a universidade, entretanto,
atitudes como esta criam obstáculos para a realização da extensão, porque, articulada à pesquisa
e ao ensino, exige ousadias, experiências e riscos, exatamente tudo o que a escola rejeita.
Os encontros entre equipes das duas instituições espelharam essas contradições
constituidoras das finalidades, dos objetivos e do modo de operar. Esse movimento contraditório,
apesar do esforço da equipe acadêmica, produziu as situações abaixo apontadas:
1. Os professores, convocados e não convidados pela direção, sinalizavam, por olhares e pelo próprio discurso não-explícito, que a equipe universitária viria para desqualificar o trabalho que faziam, de um lado, e de outro, determinar a conduta pedagógica que cada um deveria ter;
2. A atenção ao discurso e às manifestações dos docentes permitia perceber certo receio em respeito à posição hierárquica da diretora;
3. Alguns professores perguntavam e comentavam experiências com o intuito de agradar aos docentes da universidade e à direção, do que propriamente para desencadear ações discutidas nos encontros;
4. Os bolsistas do Núcleo de Ensino encontraram dificuldades para atuar porque: 1. a direção os considerava como estagiários que deveriam fazer qualquer trabalho; 2. os professores queriam que os auxiliassem nas tarefas, mesmo as que se chocavam com as orientações dos docentes universitários; 3. estes docentes esperavam que os bolsistas pudessem, criticamente, participar de atividades de formação, realizar pesquisas e promover a extensão.
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2. O ensino de língua com textos: os desafios
Há, todavia, outros fatores que interferem nas relações professores, direção e
secretaria, especificamente na área pedagógica. As diretrizes oficiais da secretaria municipal de
ensino de Marília prevêem a aplicação de dois textos, pelo menos, em sala de aula; depois da sua
análise pela professora e pela equipe escolar devem ser encaminhados para a sede da secretaria.
O objetivo, segundo depoimentos verbais de todos os segmentos é o de provocar a necessidade
de ensinar a língua materna como prática discursiva, em processo de enunciação. Embora a
preocupação com a aprendizagem da língua esteja centrada nos vários gêneros textuais, os
docentes, de modo geral, não compreendem teoricamente o que fazem, porque, verbalmente,
justificam sua ação com a alegação de que essa é uma prática da secretaria. Compreendem a
importância do texto para o processo de alfabetização, mas não concordam com a quantidade
fixada por semana, independentemente das alterações da dinâmica do trabalho em sala de aula.
Ensinar a escrever, colocando as crianças na situação de leitores e escreventes de
textos, exigiria preparação mais aprofundada sobre aspectos importantes da lingüística textual,
das estruturas dos gêneros, de metodologias específicas e, sobretudo, da concepção de
linguagem que vê o processo de aprender a ler e a escrever como de elaboração social, cultural e
histórica nas relações com um outro. Como esse outro seria, na sala de aula, predominante o
professor, dele esperar-se-ia o domínio ou o desejo de compreender a natureza da língua e seus
usos e também as condutas metodológicas para assumir a posição socialmente definida de
ensinar o aprendiz.
Sem um bom domínio de seu próprio fazer, resta ao docente utilizar as informações
e as experiências que já têm organizadas para poder empreender uma atividade que almeja ser
plena de significação, tanto para quem ensina, quanto para quem aprende. Como a situação de
sala de aula e o processo de formação não contemplam a possibilidade de lidar com atividades
que tenham seus objetivos claramente definidos, resta ao docente oferecer textos para leitura e
provocar situações de escrita, sempre no limite de seu conhecimento, sem ter clareza do que cada
aluno, em seu movimento singular e idiossincrático pode aprender.
Deste modo, parece possível afirmar que as investigações sobre os diálogos ou
sobre as condutas de sala de aula indicam situações em que os professores tentam ensinar, e os
alunos tentam aprender. Entre essas situações, a compreensão dos equívocos da criança, como
indicadores ou apontamentos no processo de escrever textos, ainda necessita avançar. A
definição clara da concepção de linguagem é decisiva para isso. A sua compreensão como uma
forma padronizada e universal, predominantemente pela relação grafo-fônica, tem desenvolvido,
entre os docentes, a segurança em categorizar suas etapas de aprendizagem, conforme
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proposições de Ferreiro e Teberosky (1986). O baixo conhecimento sobre a apropriação do
processo de enunciação tem levado o processo de ensinar e de aprender a dificuldades, em que
talvez as mais perceptíveis delas sejam a de dominar o conhecimento teórico-lingüístico, as
características dos gêneros textuais e as manifestações idiossincráticas, não universais e não
padronizadas praticadas pelo aprendiz.
As orientações oficiais da Secretaria Municipal, de um lado, recomendam a oferta
de textos para leitura e a produção textual escrita de todos os alunos, mas, de outro, solicitam a
categorização das crianças, para quantificar o processo avaliativo, de acordo com os princípios
defendidos por Ferreiro e Teberosky (1986).
Formadas em múltiplos cursos de formação e contaminadas pela própria política
oficial do país, os docentes dispõem, quase somente, desses instrumentos de avaliação dos
equívocos praticados pelas crianças, ou dos chamados erros construtivos na apropriação da
língua, cometidos durante a escrita da palavra. A contradição se estabelece na medida em que é
solicitada a prática textual, mas são desconhecidos os aspectos múltiplos que essa prática
ininterrupta, instável e singular pode desencadear.
Não há, de modo mais ou menos geral, no país, estudos de formação docente em
que o seu olhar de compreensão possa acolher as múltiplas manifestações de equívocos durante
o aprendizado da escrita. Nos últimos tempos, ganharam mais impacto as noções de coesão e
coerência, aliadas às configurações da macroestrutura textual, por terem sido incorporadas nos
cursos de formação e nos documentos oficiais de avaliação de redações em exames regionais ou
nacionais. Outras áreas também começam a receber atenção: a pontuação e a paragrafação.
Embora estejam presentes em recomendações didáticas, a compreensão dos
indicadores das crianças durante o processo de aprender é ainda incipiente do ponto de vista da
lingüística da enunciação, porque, em obediência à lógica já aqui comentada, a proposta de escrita
é avaliada pelo velho modo de olhar: a pontuação é vista como marcas no papel, claramente
concretas, e a paragrafação como o uso do espaço em branco antes da primeira letra maiúscula
da linha, e nada além disso. Estudos recentes de Cardoso (2002) abordam com profundidade
hipóteses das crianças a respeito da pontuação que contribuem para a análise dos procedimentos
utilizados para a construção do sistema de ruptura textual, entre eles, o uso dos espaços em
branco para indicar blocos de significado organizadores dos enunciados.
Para compreender esse processo idiossincrático e singular de aprender, seria
necessário recorrer aos estudos de Goes (2000) sobre os procedimentos da análise microgenética
nos estudos de linguagem e os de Abaurre (1996) e os de Perroni (1996) sobre o paradigma
indiciário.
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2.1. A análise microgenética e o paradigma indiciário
Góes (2000) destaca a importância de uma metodologia de análise, vinculada à
psicologia histórico-cultural vigostkyana, mas estendida aos estudos educativos, conhecida entre
os pesquisadores como análise microgenética. As conclusões da pesquisadora, em artigo em que
procura discutir o paradigma indiciário e análise microgenética apontam, para ela, que
a caracterização mais interessante da análise microgenética está numa forma de conhecer que é orientada para minúcias, detalhes e ocorrências residuais, como indícios, pistas, signos de aspectos relevantes de um processo em curso; que elege episódios típicos ou atípicos (não apenas situações prototípicas) que permitem interpretar o fenômeno de interesse; que é centrada na intersubjetividade e no funcionamento enunciativo-discursivo dos sujeitos; e que se guia por uma visão indicial e interpretativo-conjetural (GOES, 2000, p. 21).
As observações de Góes (2000) a respeito do método de pesquisa merecem
atenção porque apontam para caminhos pouco trilhados na pesquisa acadêmica, ou como
queremos apontar, nos cursos de formação docente e nos materiais de orientação a eles
destinados. Têm-se, aqui, de algum modo, ferramentas para lidar com as contradições apontadas
no corpo deste trabalho a respeito das orientações e das avaliações no trato textual. Góes afirma
que o ato de conhecer, de saber, portanto, de pesquisar ou de analisar as escritas infantis, deve
ser orientado para o detalhe de uma criança única em um processo único, em episódios também
únicos, necessários para compreender o aspecto que se quer conhecer melhor. Esta abordagem,
todavia, só poderia apoiar-se em concepções de linguagem e de aprendizagem, cujas matrizes se
encontrariam na escola de Bakhtin e Vigostky, porque estariam centradas no processo
enunciativo-discursivo da linguagem e na intersubjetividade, ambos constituintes do sujeito e
constituídos pelas relações sociais, culturais e históricas.
Um texto naturalisticamente escrito por uma criança (ABAURRE, 1996) nas relações
culturais, sociais e históricas, mediadas pelo professor que ensina, poderia ser analisado conforme
o interesse do analista, por exemplo, como o olhar orientado para a compreensão do processo de
pontuação ou de paragrafação; ser compreendido no interior da situação criada e do episódio
recortado para análise; ser observado em suas pistas ou sinais, explícitos ou não, das
objetivações e seus indicadores do processo de apropriação dos modos de escrever que podem
revelar, também, as relações intersubjetivas e intrasubjetivas, peculiares daquela criança, naquele
episódio, naquele momento de seu processo de apropriação e objetivação, com aquele saber
específico.
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Estes procedimentos não poderiam ser adotados no interior de um conjunto de
orientações em que são privilegiadas, predominantemente, as categorias previamente definidas,
universais, centradas na palavra, nas quais seriam consideradas as aquisições subjetivas na
relação com o objeto em situação não enunciativa. Nesta perspectiva, “no que concerne ao
método, a investigação não pode descolar-se de uma visão sociogenética, histórico-cultural e
semiótica do ser humano, sendo que as proposições metodológicas devem ser interdependentes e
congruentes teoricamente” (GOES, 2000, p. 12).
Nos anos iniciais da década de 90 do século XX um grupo de pesquisadores do
Instituto de Estudos de Linguagem (IEL) da UNICAMP desenvolveu e publicou investigações
apoiadas em dois princípios básicos de metodologia de pesquisa. O primeiro apóia-se na coleta de
dados conhecida como observação naturalística, por meio de que os dados de linguagem são
analisados com base em escritas realizadas em situações normais e naturais de trabalho
pedagógico, cuja situação de produção também é descrita pelo pesquisador que por ele foi
acompanhada ou não. Para os defensores desta conduta metodológica, cujas raízes encontram-se
na década de 70, do século XX, há algumas vantagens em relação à metodologia de natureza
experimental, porque “a qualidade vem substituir a quantidade, já que não se trata de provocar
respostas, mas de deixar falar a criança” (PERRONI, 1996, p. 22).
No interior desse mesmo conjunto de princípios metodológicos, encontra-se o
segundo princípio que chamamos pouco antes de princípios básicos: o paradigma indiciário.
Trazido à discussão pelo grupo do IEL da UNICAMP, o paradigma indiciário tem sua matriz nas
pesquisas, segundo Abaurre (1996), do historiador Carlo Ginsburg. Ao discutir o paradigma nos
estudos de linguagem, Abaurre procura opor uma conduta de valorizar o episódico, residual,
singular e idiossincrático a dados coletados experimentalmente, com base em método clínico, com
categorias previamente construídas que excluem os dados que não se confirmam repetidamente,
com apontam as pesquisas iniciais de Ferreiro (1986).
São estes procedimentos de análise, fundamentados pela microgenética e pelo
paradigma indiciário, que podem ser utilizados para hipotetizar sobre rupturas de um enunciado,
cujas marcas indicam as tentativas primeiras, por exemplo, de paragrafar um texto com a
utilização de espaços.
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2.2. Pontuação e paragrafação
Em profundo trabalho a respeito de operações sobre segmentação textual com base
nas tentativas de pontuação, como operação de conexão e de segmentação de texto, Cardoso
(2002) apóia-se nos estudos de Fayol, principalmente na discussão que esse estudioso francês faz
sobre “operações de linearização das informações.” Cardoso (2002) destaca que os elementos
lingüísticos tendem a obedecer na superfície textual, ao princípio de proximidade. Isso quer dizer
que no processo de materialização para a resolução do conflito entre a natureza multidimensional
do pensamento em palavras e a natureza da estrutura materialmente linear do discurso, o
escrevente busca, por decisões sucessivas, aproximar os segmentos textuais necessários à
finalidade da exposição, mas, ao mesmo tempo, procura estabelecer bloqueios ou isolamentos de
certos elementos. Há, portanto, uma tensão entre proximidade e distanciamento que impede
movimentos de sobreposição, de um lado, e de esgarçamento da trama, por outro. Essa tensão,
necessária para a construção textual, traz para a superfície as marcas de sinalização de
proximidade e de distanciamento, ou de ligação e de ruptura, em processo também de
interdependência.
Esses sinais seriam “diretamente portadores de sentido” (CARDOSO, 2002, p. 120)
e por isso, pela função com que são utilizados pelas crianças ou adultos, merecem do investigador
de linguagem, amparado pela visão microgenética e pelos princípios do paradigma indiciário, a
atenção para o que seria um detalhe menor e residual, próprio de um aprendiz das letras em um
episódio de sua vida. Essa atenção teria o intuito de desvendar a função dessas marcas e o uso
dos espaços utilizados na enunciação.
3. Hipóteses sobre as marcas de paragrafação
Nos encontros entre as duas equipes – da escola e da universidade – as práticas
docentes eram tematizadas e produções textuais das crianças eram analisadas. Um texto atraiu a
atenção deste pesquisador pelo uso abusivo do conector E no início das linhas e pela ausência
dos espaços em branco indicadores de parágrafo, embora fossem utilizados no final da margem
direita. Esse texto era uma reescrita proposta pela professora da Verdadeira História dos Três
Porquinhos (SCIESZKA, 1993).
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A análise desse texto escrito por V., uma criança do projeto do Núcleo, indicou que
o espaço no final da linha também indica ruptura, portanto, tentativa de paragrafar. Para o aluno,
reiterar a intenção, acrescentando um outro espaço no início da linha é, de certo modo, uma
atitude convencional de praticar a redundância. É possível entender que há dois sinais
redundantes na convenção do escrever que, como ocorre com certa freqüência em outros casos,
nem sempre é aceita imediatamente pela criança. Neste caso, para ela parece ser redundante
indicar a ruptura da enunciação pelo espaço no final da linha e tornar a repetir a operação no início
da linha. É bem possível que para o adulto, essas operações sejam normais, mas para uma
criança aprendiz da linguagem escrita, que procura entender a lógica do adulto, a repetição da
mesma operação pode ser suprimida, sem que a intenção deixe de ser apontada. Nessa mesma
linha de raciocínio hipotético, seria possível supor que o ponto marcado e o espaço se equivalem,
podendo ser, portanto, também marcas redundantes de ruptura e de distanciamento, que podem
ou não ser utilizadas no mesmo segmento do enunciado. Deste modo, o espaço no final da linha
seria indicação de ruptura, razão que dispensaria o uso do ponto porque seria uma indicação
redundante. Uma terceira ação redundante seria a colocação do espaço em branco no início da
margem esquerda. No texto escrito por V. não há nenhuma indicação com espaço em branco no
início da margem. Foi exatamente esta atitude que atraiu meu olhar, porque há insistência, por
parte dos docentes, do uso da marca inicial do parágrafo. Se V. não marcou esse início foi,
provavelmente, porque já tinha indicado a ruptura no final de cada linha. Há ainda outras situações
mas não registradas neste trabalho, em que a criança acrescenta ainda um ponto logo após o
espaço em branco inicial. Deste modo, as operações redundantes seriam quatro, o que de certo
modo agrediria a lógica infantil que se pauta, muitas vezes, pela economia de sinais, porque são
claramente indicadores de sentido. Pelas observações feitas no texto de V., foi possível perceber
que escreve além da margem, com o intuito de não separar elementos lingüísticos de mesma
natureza semântica, apesar das orientações expressas para não atravessar o limite indicado pelo
traço da margem. Por que faz isso? Possivelmente para atender ao princípio da proximidade de
elementos que constroem o enunciado, que se revela muito mais forte que uma determinação
extratextual. V., em vinte e uma linhas, não utilizou em nenhuma o espaço em branco para iniciar
parágrafo, porque a marca eleita por ele para indicar o início de uma nova enunciação foi o
conector E, que, deste modo, se inscreve também na categoria do ponto e do espaço como sinais
indicadores de distanciamento e de aproximação entre elementos lingüísticos.
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CONCLUSÃO
A análise dos detalhes e dos processos de construção, tendo como referência os
princípios da microgenética e do paradigma indiciário, aponta preocupações diferentes entre quem
aprende e quem ensina. A proximidade física entre o adulto e a criança não corresponde a uma
aproximação intelectual; pelo contrário, ambos olham simultaneamente para o mesmo texto em
construção, mas se distanciam porque o foco de interesse não é o mesmo: enquanto o olhar do
docente se dirige para ocorrências ortográficas inusitadas, a criança decide se coloca ponto, se
utiliza apenas o espaço em branco, se ultrapassa a margem, se deixa ou não o espaço em branco
no início do período, ou se coloca o conector E.
Estas reflexões podem contribuir para compreender que a criação compartilhada da
situação de ensinar e de aprender depende dos apontamentos verbais do aprendiz e sua
correspondente compreensão pelo adulto, ou ainda, depende dos apontamentos marcados sobre
o papel que, por não serem perguntas diretas explícitas, solicitam, do adulto, olhares sobre o
detalhe, sobre os sinais, sobre as idiossincrasias, sobre a dúvida, sobre um pequeno dado,
hipotético e ousado. A formação continuada do professor, na área do ensino da língua em seus
momentos iniciais, exigiria um olhar desconfiado para o óbvio, para o aparentemente natural, para
o que de tanto ser praticado acaba embaçando a visão.
Essa formação teria como princípios o desenvolvimento de respeito entre as
equipes de trabalho – da universidade e da escola -; o reconhecimento do fazer do professor,
apesar das condições e das injunções que o trabalho institucional abriga; a necessidade de
relações diretas, sem mediação, entre docente universitário e docente do ensino fundamental; e,
por fim, da compreensão de que as ações pedagógicas evoluem na proporção da evolução das
mentalidades humanas criadas nas relações históricas, sociais e culturais.
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