A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA...

178
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO DOUTORADO EM ESTUDOS LINGÜÍSTICOS A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA ENUNCIATIVA POR: JOSÉ RICARDO CARVALHO DA SILVA Orientador: Prof. Dr: FERNANDO AFONSO DE ALMEIDA Niterói 2007

Transcript of A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA...

Page 1: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO DOUTORADO EM ESTUDOS LINGÜÍSTICOS

A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA

PERSPECTIVA ENUNCIATIVA

POR: JOSÉ RICARDO CARVALHO DA SILVA

Orientador: Prof. Dr: FERNANDO AFONSO DE ALMEIDA

Niterói

2007

Page 2: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

Page 3: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

27

JOSÉ RICARDO CARVALHO DA SILVA

A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA

PERSPECTIVA ENUNCIATIVA

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Universidade

Federal Fluminense como requisito parcial

para obtenção do Título de Doutor, na área

de concentração em Estudos Lingüísticos.

Orientador: Prof. Dr. FERNANDO AFONSO DE ALMEIDA

Niterói

2007

Page 4: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

28

AGRADECIMENTOS A Fernando Afonso de Almeida, pela orientação cuidadosa e estimulante. Minha eterna gratidão pela forma como ajudou a conduzir a produção deste trabalho. À minha mãe, Nair, que me apoiou em todos os momentos para que eu tivesse força e tranqüilidade para realizar esta pesquisa. À professora Carmen Perez que em um momento difícil me fez acreditar que eu podia continuar. Aos professores que contribuíram de maneira decisiva em minha formação, em especial, Edwiges Zaccur, Cecília Goulart, Bethânia Mariani, Mariluci Novaes. Às funcionárias da secretária do departamento de pós-graduação da UFF, Nelma Pedretti e Tânia Maria de Olveira. À minha irmã Marta pela conversas nas horas de intranqüilidade. À amiga Graça pelas palavras de estímulo e revisão desta tese.

Page 5: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

29

JOSÉ RICARDO CARVALHO DA SILVA

A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA

ENUNCIATIVA

Examinado e aprovado em ______/ _______/2007

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________

Professor Doutor Fernando Afonso de Almeida (Orientador)

Universidade Federal Fluminense

__________________________________________________ Professora Doutora Angela Maria da Silva Corrêa

(Universidade Federal do Rio de Janeiro)

__________________________________________________ Professora Doutora Victória Wilson

(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

__________________________________________________ Professora Doutora Edwiges Zaccur (Universidade Federal Fluminense)

__________________________________________________

Professor Doutor David Shepherd (Universidade Federal Fluminense)

SUPLENTES

__________________________________________________ Professora Doutora Márcia Atálla Pietroluongo

(Universidade Federal do Rio de Janeiro)

__________________________________________________ Professor Doutor José Carlos Gonçalves

(Universidade Federal Fluminense)

Page 6: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

30

RESUMO

Esta pesquisa tem o propósito de investigar os recursos de linguagem presentes no gênero

tiras em quadrinhos de humor a partir de uma perspectiva teórica que enfatize os processos

enunciativos que exploram a ambivalência e o implícito para provocar o efeito risível. Para

alcançar tal objetivo, desenvolvemos um estudo sobre o modo de constituição das tiras em

quadrinhos a fim de delinear a construção do gênero tira de humor e o conjunto de

possibilidades icônicas e verbais que ajudam a promover o humor. No interior desta

proposta caracterizamos o funcionamento do domínio cômico-humorístico, especificando a

noção de chiste e de comicidade na compreensão do humor presentes nas tiras em

quadrinhos de nosso corpus de análise: Hagar, o horrível de Dik Browne e Mafalda de

Quino, publicadas em jornais, livros e internet. Em seguida, aplicamos os dispositivos de

análise adotados pela Pragmática, pela Semântica-Argumentativa e pela Lingüística da

Enunciação na interpretação das tiras a fim de estabelecer uma proposta de leitura do

gênero tira de humor em uma perspectiva enunciativa.

Page 7: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

31

RÉSUMÉ Cette recherche se propose d’examiner les moyens langagiers mobilisés par le genre bande

dessinée d’humour à partir d’une perspective théorique qui souligne les processus

énonciatifs responsables de la mise en jeu de l’ambivalence et de l’implicite pour

provoquer l’effet risible. Pour atteindre tel objetif, on a développé une étude sur la manière

dont sont constituées les bandes desinées afin de faire apparaître les contours de ce genre de

discours et l’ensemble des possibilités iconiques et verbales qui aident à la promotion de

l’humour. À l’intérieur de cette proposition on cherche à expliquer le fonctionnement du

domaine comique-humoristique, en spécifiant la notion de mot d’esprit et de comique

nécessaires à la compréhension de l’humour caractéristique des bandes dessinées

composant notre corpus d’analyse: Hagar, o horrível, de Dik Browne et Mafalda, de

Quino, publiées dans des journaux, des livres et sur internet. Pour ce faire, on se sert de

dispositifs d’analyse fournis par la Pragmatique, la Sémantique -Argumentative et par la

Linguistique de l’Énonciation pour l’intérpretation des bandes dessinées dans le but

d’établir une proposition de lecture du genre bande d’humour dans une perspective

énonciative.

Page 8: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

32

SUMÁRIO I- INTRODUÇÃO --------------------------------------------------------------------------------1

- Procedimentos teórico-metodológicos------------------------------------------------------ 4 II - A CONSTITUIÇÃO DAS TIRAS EM QUADRINHOS CÔMICAS E HUMORÍSTICAS ----------------------------------------------------------------------------- 10 - O movimento pioneiro das tiras em quadrinhos------------------------------------------- 11 - O marco fundador das tiras em quadrinhos e a presença do cômico-------------------- 14 - Os diversos gêneros nas tiras em quadrinhos ----------------------------------------------19 - A renovação do humor nas tiras em quadrinhos-------------------------------------------21

III - A NOÇÃO DE GÊNERO DISCURSIVO E AS TIRAS EM QUADRINHOS --- -------------------------------------------------------------------------------------------------------- 26 - O estilo do autor, a sociedade e o texto na constituição do gênero----------------------- 29 - O redimensionamento da noção de gênero e estilo na esfera cotidiana ------------------35 - Gênero do discurso, tipologia e gênero textual----------------------------------------------39 - Humor em quadros para além de uma tipologia narrativa---------------------------------45 IV - O DOMÍNIO DISCURSIVO DO HUMOR -----------------------------------------50 - O cômico e a carnavalização ------------------------------------------------------------------ 52 - Elementos de comicidade ----------------------------------------------------------------------57 - A composição da cena cômica ---------------------------------------------------------------- 60 - O humor ------------------------------------------------------------------------------------------ 65 - O chiste e o discurso do humor --------------------------------------------------------------- 69 - O chiste tendencioso e o chiste inocente----------------------------------------------------72 O chiste tendencioso como descarga do impulso agressivo -------------------------------- 73 O chiste tendencioso em forma de smut --------------------------------------------------------74 O chiste ingênuo ou inocente -------------------------------------------------------------------- 75 Sobre o chiste de palavras e o chiste de pensamento------------------------------------------77 O funcionamento do chiste de pensamento ----------------------------------------------------78 a) nonsense ------------------------------------------------------------------------------------79 b) raciocínio falho ---------------------------------------------------------------------------80 c) representação pelo oposto --------------------------------------------------------------- 82

Sobre as técnicas do chiste de palavras----------------------------------------------------------83

Condensação --------------------------------------------------------------------------------------- 84 a) condensação com formação de palavra composta -------------------------------------84 b) condensação acompanhada de leve modificação --------------------------------------87

Page 9: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

33

Múltiplo uso do mesmo material ---------------------------------------------------------87 a) múltiplo uso como um todo e suas partes --------------------------------------88 b) múltiplo uso do mesmo material em ordem diferente-------------------------89 c) múltiplo uso com leve modificação ---------------------------------------------90 d) múltiplo uso com sentido pleno e sentido esvaziado ------------------------ 90

Duplo sentido -------------------------------------------------------------------------------92

a) significado como um nome e como uma coisa --------------------------------92 b) significados metafórico e literal -------------------------------------------------94 c) duplo sentido propriamente dito (ou jogo de palavras) ----------------------96 d) double entente ---------------------------------------------------------------------97 e) duplo sentido com uma alusão -------------------------------------------------- 97

Ponderações e encaminhamentos -------------------------------------------------------- 99 V – PROCESSOS ENUNCIATIVOS E OS IMPLÍCITOS NAS TIRAS EM QUADRINHOS DE HUMOR -----------------------------------------------------------101 As propriedades da enunciação -----------------------------------------------------------104 Os dêiticos e a não coincidência referencial no discurso ------------------------------106

A constatação e o ato de fala ------------------------------------------------------------- -108 O verbo performativo e a força ilocucional -----------------------------------------------112

A expressão dos atos de fala ----------------------------------------------------------------117 A infração de uma lei conversacional e a produção de implicaturas ------------------119 As implicaturas conversacionais canceláveis ---------------------------------------------125 Posto, pressuposto e subentendido na produção do humor -----------------------------126 O processo argumentativo nas tiras de humor ------------------------------------------- 129 O discurso citado e a heterogeneidade ---------------------------------------------------- 135 Da polifonia na literatura à polifonia no enunciado ------------------------------------- 138 O movimento polifônico da ironia----------------------------------------------------------144 A ironia manifestada pelo personagem/locutor e pelo autor/locutor-------------------146 A importância dos estímulos ostensivos na teoria da relevância -----------------------148

VI – CONCLUSÕES E PONDERAÇÕES ------------------------------------------------153 VII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS -----------------------------------------------159

Page 10: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

34

INTRODUÇÃO

Se fizermos uma viagem no tempo, veremos que o discurso verbal com tendência

cômico-humorística sempre atuou como forma de catarse e de quebra de hierarquia nas

relações de poder. Pela via cômico-humorística, o homem pôde criticar costumes e ações

humanas consideradas execráveis, compondo, assim, um modo menos tenso de se

relacionar com a realidade. Tais fatos podem ser observados tanto nas sociedades mais

primitivas (pela mediação de documentos e relatos de antropólogos e historiadores), como

no mundo contemporâneo em suas diversas esferas comunicativas. Para produzir o riso, os

grupos sociais sempre exploraram, de forma inteligente, diversos recursos de linguagem:

gestuais, mímicos, figurativos, sonoros e verbais. A partir destes elementos expressivos,

configura-se a organização de um sistema semiótico que permite ao sujeito estabelecer o

escárnio, a ironia, a zombaria e conseqüentemente produzir um discurso de feição

humorística.

Apesar da longa tradição da cultura do riso, os textos cômico-humorísticos sofreram

grandes alterações em seu modo de difusão e organização lingüístico-discursiva a partir do

final do século XX. O marco dessa mudança está ligado, principalmente, às inovações dos

meios de comunicação como a imprensa jornalística, o cinema e a televisão. Neste

contexto, o humor é incorporado pela arte seqüencial projetada na mídia, assumindo

horizontes comunicacionais distintos da interação verbal face-a-face.1 Se até a Idade Média

a popularização dos textos de humor se dava, de forma predominante, nos eventos festivos,

nas peças teatrais e no cotidiano da cultura oral, com a difusão dos meios de comunicação

de massa, o risível ganha novos veículos de entretenimento. Dessa forma, os discursos que

conjugam o código verbal com o iconográfico são incorporados às práticas

comunicacionais. Encontramos como fruto destas novas tecnologias, as histórias em

1 O humor produzido em uma dimensão face-a-face conta com a explicitação contínua da expressão facial e gestual dos agentes que produzem os eventos engraçados. Outro fator importante são as entonações dos enunciados que determinam o ritmo da piada, oferecendo uma série de indicações que inspiram o riso. A explosão do riso de um agente da platéia tende a contaminar o riso de outros que ocupam o mesmo papel de espectadores. Já na interação com textos verbal-iconográficos, a manifestação do riso assume uma orientação mais indiv idualizada, isto é, o sujeito ri sozinho diante dos traços engraçados que configuram o discurso humorístico pela mídia. O código visual associado ao discurso verbal, a partir de um recorte dado pelos novos veículos de comunicação, expande as formas enunciativas, gerando outras possibilidades de produção de ditos engraçados.

Page 11: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

35

quadrinhos, as charges e os desenhos animados. Tais textos passam a fazer parte do

cotidiano das pessoas, como um elemento propulsor de prazer e entretenimento.

Durante muito tempo, as tiras em quadrinhos, de maneira especial, foram vistas

como objeto de leitura pernicioso e alienante por diversos intelectuais, portanto banido da

esfera educativa. Geralmente, a leitura deste gênero se dava no dia-a-dia de maneira

espontânea e intuitiva, por meio de jornais e revistas em quadrinhos, no espaço privado. O

leitor se divertia com as piadas encontradas nas tiras, sem se preocupar com os mecanismos

que o autor utilizava para produzir o humor. Contudo, a leitura das tiras passa a ser vista

sob uma nova perspectiva com os estudos discursivos que refletem sobre o uso da língua

nas diversas situações comunicativas. Este novo enfoque passa a valorizar o estudo dos

diferentes gêneros de discurso, estimulando a investigação dos fatores lingüístico-

semântico-pragmáticos voltados para a leitura dos textos de humor.

A tendência de analisar a linguagem das tiras em quadrinhos para identificar

aspectos humorísticos ganha maior visibilidade por volta de 1990. Muitos livros didáticos

de Língua Portuguesa passam a ter seções dedicadas à análise de pressupostos e implícitos

presentes na fala dos personagens. Tornam-se freqüentes, nas provas de interpretação de

textos dos vestibulares, questões sobre procedimentos discursivos que os autores das tiras

utilizam para promover o humor. Tais práticas, incorporadas ao universo didático são

tributárias de um novo paradigma teórico apoiado nos estudos da enunciação2, por assim

dizer, fundados por Bakhtin, Benveniste e Ducrot. Este arcabouço teórico, impulsionado

pelo filósofo da linguagem, Bakhtin (1992), inspira a afirmação de que todo enunciado só

pode ser compreendido no interior de um gênero discursivo.

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas,

2 Segundo Dias (1996), o termo ‘enunciação’ já é encontrado em 1361 nos textos de um autor chamado Oresme, denotando ‘coisa enunciada’. Observando a contribuição de Bakhtin (1995) no deslocamento de sentido da palavra enunciação e a construção de uma teoria sobre esse objeto, Flores (1995) sintetiza: “A teoria da Enunciação é, como se conhece, o conjunto de trabalhos que estuda os fatores e atos que provocam a produção de um enunciado. Refletindo sobre questões de interlocução, intersubjetividade, tempo e lugar, essas teorias buscam preencher as lacunas da lingüística pelo argumento de que o estudo semântico dos enunciados é insuficiente quando não se leva em conta a enunciação”.(Teixeira & Flores, 1995, p. 20).

Page 12: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

36

não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua - recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais - mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissociavelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, aos quais denominamos gêneros do discurso (Bakhtin, 1992, p. 279).

A ênfase do funcionamento da língua no interior do gênero discursivo fez com que a

linguagem fosse vista de uma maneira especial nos diferentes tipos de textos que circulam

no mundo social. Seu aparato teórico, de certa maneira, derivou novos estudos que

apreciam o modo de organização dos signos na produção de efeitos de sentidos. Noções

como gênero textual e tipologia textual são tributários da noção de gênero do discurso e

passam a fazer parte das propostas pedagógicas relacionadas ao ensino da língua materna.

No entanto, essas categorias de descrição de fenômenos discursivos assumem, muitas

vezes, formas divergentes. Elas são apresentadas como um corpo teórico homogêneo,

acompanhadas de um conjunto de dispositivos de análise pasteurizada, sem ênfase nos

aspectos enunciativos. Propostas de grande porte, como a dos PCNs (parâmetros

curriculares nacionais) de Língua Portuguesa, têm gerado grandes confusões do ponto de

vista epistemológico. De acordo com Brait (2000), o documento elaborado pelo MEC não

especifica as diferenças entre a proposta de estudo de Bakhtin e a proposta de estudo de

tipologia textual. Com isso mesclam noções de gênero discursivo com procedimentos

ligados a propostas de análise da superfície do texto:

É a partir daí que aparecem os conceitos de gêneros discursivos, em parte diretamente calcados em Bakhtin, embora não haja referência no corpo do texto, e que ao juntarem com “organização interna a partir de seqüências discursivas – narrativa, descritiva, argumentativa, expositiva e conversacional”, concepção advinda de outra fonte teórica, mesclam, indeterminadamente, gênero discursivo e tipologia textual, estruturando o restante do trabalho com o ensino e aprendizagem da língua, quase que exclusivamente, a partir de tipologias textuais. Não haveria nenhum problema se não se estabelecesse uma nova confusão de gêneros discursivos e tipologias textuais, como se pode perceber no conjunto das sugestões do documento em contraste com um percurso, grosso

Page 13: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

37

modo, dos escritos bakhtinianos que constroem a concepção de gênero (BRAIT, 2000, p.18).

Na verdade, Brait chama a atenção para a não efetivação de práticas voltadas para

questão do gêne ro discursivo nos PCNs. Se do ponto de vista teórico a proposta pedagógica

assume a perspectiva do gênero discursivo, no corpo de sugestões de procedimentos

reduzem as práticas a um conjunto de tipologias. Ao propor um trabalho com gênero

discursivo acabam por restringir-se à descrição de regularidades que compõem seqüências

lingüísticas, promotoras de uma tipologia: narrativa, descritiva, explicativa, argumentativa

e injuntiva. Falta no corpo da proposta do MEC a explicitação de dispositivos que explorem

reflexões sobre os processos enunciativos, do ponto de vista do sujeito que produz e recebe

os enunciados em uma perspectiva semântica e pragmática.

No bojo dessas questões, entram as tiras em quadrinhos que, diante de propostas de

estudo divulgadas sob um viés do gênero do discurso, acabam por se limitar a um estudo

tipológico ou gramatical. Em nossa pesquisa, procuraremos investigar as bases enunciativas

que constituem o gênero tiras em quadrinhos de acordo com os princípios bakhtinianos. A

compreensão dos enunciados, de acordo com a perspectiva de gênero, deve levar em conta

o contexto sócio-comunicativo de sua realização, e não somente o reconhecimento de

estruturas típicas que compõem os gêneros.

Para explicitarmos elementos reguladores do discurso cômico-humorístico e as

implicações teóricas que permitem analisar os enunciados no interior do gênero, elegemos

como corpus desta pesquisa as tiras em quadrinhos Hagar, o Horrível do norte americano

Dick Browne e Mafalda do argentino Quino. A escolha destes dois autores se deve a uma

série de motivos, dentre eles: a) a riqueza de recursos cômico-humorísticos que utilizam nas

tiras; b) a presença de formulações que exploram o implícito no âmbito lingüístico e

pragmático; c) o uso constante destas tiras em livros didáticos e provas de vestibulares para

análise lingüístico-discursiva; e d) o estilo humorístico singular dos dois autores na

formulação de seus quadrinhos.

Page 14: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

38

Procedimentos teórico-metodológicos

Uma das maiores dificuldades para analisar textos que pretendem fazer rir é a

identificação das especificidades do funcionamento da linguagem do humor, diferindo de

outros universos textuais. Muitos estudos não definem a esfera do domínio humorístico

como prática social de interação discursiva, reduzindo as análises a aspectos sociológicos

ou lingüísticos, de maneira isolada. Por conseqüência, questões relevantes que abordam os

dispositivos enunciativos, destinados à produção de efeitos humorísticos, são

desconsideradas.

No que tange à análise do objeto tiras em quadrinhos, as investigações mais recentes

se remetem a diferentes facetas de sua constituição. Alguns pesquisadores dão maior ênfase

aos fatores composicionais no plano figurativo. Ressalta-se a função dos vários tipos de

balões, o uso de vinhetas e legendas, as cores, os recursos onomatopaicos, o modo como os

personagens são desenhados e como os quadros estão organizados. Outros pesquisadores

dão destaque ao plano temático: são observados os assuntos tratados nas tiras, a forma de

representação e a posição ideológica dos personagens, conferidas nos episódios impressos.

No plano lingüístico, muitas pesquisas ressaltam os aspectos fonológicos, morfológicos,

sintáticos, bem como recursos de figura de linguagem geradores de expressão cômico-

humorística.

Em nossa pesquisa, propomos um olhar interativo sobre os aspectos enunciativos

relacionados à produção do efeito cômico-humorístico nas tiras em quadrinhos. Tal olhar

apóia-se na perspectiva de gênero discursivo, concebida por Bakhtin, e na noção de

domínio discursivo (esfera em que se encontra o discurso do humor e se realiza o gênero

tira de humor) proposta por Marcuschi (2002). O enfoque discursivo destes dois autores

reserva algumas diferenças que explicitaremos no decorrer deste trabalho.

As tiras, de uma maneira geral, utilizam muitos recursos icônicos que remetem ao

plano das ações de uma forma distinta das narrativas que utilizam somente a linguagem

Page 15: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

39

verbal. Nelas não há um narrador explícito que conduz o leitor a construir uma imagem dos

personagens e do cenário por meio de palavras. No lugar de textos regulados por signos

verbais, temos a projeção de enunciados constituídos pela associação de dizeres com a

representação icônica do contexto de sua enunciação.

Diferente da narrativa tradicional, promovida pela alternância dos enunciados

verbais assumidos pelo narrador e pelos personagens, as tiras em quadrinhos são

organizadas pelo discurso direto em que os personagens assumem a palavra sob o apoio das

imagens que procuram traduzir o cenário e as circunstâncias enunciativas. Nesse sentido, os

enunciados reservam em sua configuração aspectos formais que os distinguem dos textos

puramente verbais. Sua estrutura é compacta e condensada, as expressões dos personagens

são focalizadas para que o leitor se detenha em pontos específicos para os quais o autor

sugere um olhar crítico. Além destas diferenças, do ponto de vista estrutural e funcional, a

escolha temática sobre os assuntos abordados, em consonância com peculiaridades sócio -

culturais dos interlocutores, vão determinar o efeito risível. De acordo com Mendonça, as

tiras podem ser caracterizadas da seguinte forma:

As tiras são um subtipo de HQ; mais curtas (até 4 quadrinhos) e, portanto, de caráter sintético, podem ser seqüenciais (“capítulos” de narrativas maiores) ou fechadas (um episódio por dia). Quanto às temáticas, algumas tiras também satirizam aspectos econômicos e políticos do país, embora não sejam tão “datadas” como a charge. Dividimos as tiras fechadas em dois subtipos: a) tiras-piadas , em que o humor é obtido por meio das estratégias discursivas utilizadas nas piadas de um modo geral, como a possibilidade de dupla interpretação, sendo selecionada pelo autor a menos provável; b) tiras-episódio, nas quais o humor é baseado especificamente no desenvolvimento da temática numa determinada situação, de modo a realçar as características das personagens (...). Podemos, então, caracterizar provisoriamente a HQ como um gênero icônico ou icônico-verbal narrativo cuja progressão temporal se organiza quadro a quadro. Como elementos típicos, a HQ apresenta os desenhos, os quadros e os balões e/ou legendas, onde é inserido o texto verbal (MENDONÇA, 2002, p.199).

Page 16: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

40

Diferentemente das piadas, que descrevem o espaço enunciativo onde se realiza a

fala por meio de uma descrição verbal, as tiras descrevem o contexto com ilustrações

que representam cenários, gestos e expressões dos personagens. Além de informações

ditas nos balões e ilustradas nos quadrinhos, existe um espaço do não-dito e do não-visto

que configuram implícitos responsáveis pela produção do humor. Insere-se no âmbito

deste gênero um conjunto de elementos responsável pela evolução e graça da narrativa.

Se de um lado, o leitor ri das atitudes e da fala produzidas pelos personagens, de outro

lado, o leitor identifica um trabalho de arregimentação de vozes que o quadrinhista

articula para produzir ironias, paradoxo e nonsense. Junto com a análise das falas e do

comportamento dos personagens, existe a apreciação da orientação argumentativa

incongruente propulsora do riso.

O modo como o autor seleciona e distribui as ações enquadradas funciona como

sistema de referência cronológica e, por que não dizer, um sistema ideológico, já que a

narração é contada a partir de uma determinada perspectiva. Em muitos casos, o

quadrinhista expõe proposições e atitudes defendidas pelos personagens em uma

perspectiva ridicularizante ou contraditória, do ponto de vista da enunciação. Cabe ao

analista observar os contrastes e as pistas projetadas na representação construída pela

linguagem icônica e pelos enunciados verbais.

O gênero tira de humor faz parte da linguagem gráfica publicada nas colunas

jornalísticas. Sua linguagem apresenta semelhanças e diferenças com as charge e os cartuns

na maneira de abordar assuntos polêmicos da vida social. Enquanto a charge tem como

alvo as mazelas sociais de expressão datada, representando de forma crítica as celebridades

do mundo da política, dos esportes e do cenário artístico, o cartum trata de temas mais

universais atacando problemas relacionados aos valores e atitudes dos seres humanos,

diante de determinadas situações no cotidiano. A abordagem dos temas tratados pelos

cartuns ultrapassa o seu tempo; ele pode ser lido em uma época mais distante do seu

contexto de produção, visto que sua formulação estabelece críticas de teor mais genérico

que se estendem a diferentes grupos. Observamos que as tiras abordam os fatos sociais de

uma forma bem próxima à dos cartuns, não deixando, contudo, em muitos momentos de

Page 17: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

41

focalizar acontecimentos situados em uma dada época. É o caso de Quino, que no período

da ditadura militar na Argentina, lançou uma série de tiras que tinha uma relação intrínseca

com os fatos ocorridos naquele momento histórico.

Para caracterizar o gênero quadrinhos em seu aspecto risível, faremos uma revisão

bibliográfica com o objetivo de discutir a fronteira entre humor e cômico, e como seus

elementos se projetam nas tiras. Para nossa pesquisa, o cômico e o humor são duas formas

discursivas convertidas para efeito risível dotadas de princípios distintos. Enquanto o

primeiro trabalha traços críticos manifestados na atividade representada (que leva o

interlocutor a rir imediatamente), no segundo ocorre a utilização de formulações implícitas

que exigem um grau inferencial superior para chegar ao conteúdo risível. Dessa maneira, o

riso cômico é explosivo e provém da exposição de transgressões sócio-culturais localizadas,

de forma imediata, na exposição de ações representadas; já o riso do humor é contido,

proveniente de atitudes mais analíticas sobre as atividades lingüísticas. Enquanto o universo

cômico ganha expressão por meio da carnavalização, subversão da ordem estabelecida, o

humor se realiza por meio de chistes3 e de ironias. Essas relações serão extremamente

importantes para compreendemos a constituição do discurso cômico-humorístico no gênero

tira em quadrinhos. Apesar de trabalharmos as relações entre o cômico e o humor em todo

o estudo, daremos destaque às questões relativas ao segundo item, sobretudo aos

procedimentos lingüístico-visuais que exploram o não-dito e o não-configurado

cenicamente para obter o conteúdo risível.

Diante desta breve caracterização das tiras, dois procedimentos deverão ser

desenvolvidos em nosso estudo: a) retomaremos os estudos que investigam o uso dos

3 Os chistes são ditos espirituosos que obedecem a formulações lingüísticas geradoras de ambigüidades e implícitos em seu ato enunciativo. Sua função essencial, do ponto de vista da psicanálise, é descarregar o impulso agressivo de forma lúdica, provocando o riso como efeito.

Page 18: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

42

recursos da linguagem verbal e visual na constituição dos quadrinhos; b) especificaremos

os elementos discursivos que promovem o efeito risível no gênero tiras de humor no plano

enunciativo. Quanto ao primeiro item, propomos uma revisão histórica sobre dados

relevantes de como se consolidou a associação do discurso verbal com o icônico nas tiras

em quadrinhos.

Para refletirmos sobre os procedimentos enunciativos que geram efeito risível, no

interior do gênero tiras, partimos do pressuposto de que os dispositivos humorísticos

derivam de formulações implícitas apresentadas em diversos níveis da linguagem. Neste

contexto, identifica-se que não há uma teoria específica ligada ao discurso do humor. De

acordo com Possenti (1998, p.21), não há uma lingüística do humor, pelo menos, por três

razões:

a) não há uma lingüística que tenha tomado por base textos humorísticos para

tentar descobrir o que faz com que um texto seja humorístico, do ponto de vista

dos ingredientes lingüísticos;

b) no caso de se concluir que o humor não tem origem lingüística, que ele não é

da ordem da língua, não há uma lingüística que explicite ou organize os

ingredientes lingüísticos que são acionados para que o humor se produza;

c) não há uma lingüística que se ocupe de decidir se os mecanismos explorados

para a função humorística têm exclusivamente essa função ou se se trata do

agenciamento circunstancial de um conjunto de fatores, cada um deles podendo

ser responsável pela produção de outro tipo de efeito em outras circunstâncias ou

em outros gêneros textuais.

Estas constatações levam-nos a reafirmar uma abordagem enunciativa para

compreender a linguagem humorística das tiras. Além disso, levaremos em conta a

contribuição de estudos específicos sobre o humor e as discussões realizadas no campo das

ciências da linguagem. A exposição desses pressupostos teóricos nos ajudará a refletir

sobre o modo de produção dos enunciados de humor encontrados nas tiras. Sendo assim,

esta pesquisa tem o objetivo de estudar o modo de orga nização e funcionamento da

Page 19: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

43

linguagem do humor presente no gênero tira em quadrinhos e a repercussão das novas

teorias das ciências da linguagem no modo de analisar seu discurso. Neste contexto,

procuraremos comprovar a seguinte tese: a) as formas enunciat ivas relativamente estáveis

geradoras de humor encontradas nas tiras em quadrinhos vão além de estruturas narrativas

que objetivam contar uma história; seu processo de construção humorística obedece a

formulações argumentativas expostas pelo jogo de vozes apresentadas pelo quadrinhista. b)

Os estudos da Semântica Argumentativa e da Pragmática dão visibilidade ao

funcionamento discursivo do humor por meio de suas categorias de descrição enunciativas,

ampliando, assim, o olhar de gênero do discurso proposto por Bakhtin.

Do ponto de vista da organização da pesquisa, investigaremos as especificidades do

discurso do humor e sua relação com as tiras em quadrinhos, levando em conta as seguintes

noções: domínio discursivo do humor; gênero do discurso e gênero textual; tipologia

textual. Neste enfoque, configuraremos a noção de domínio discursivo cômico-humorístico

a partir de pesquisas sobre a comicidade em Bakhtin (1996), Bergson (1987) e Propp

(1992) e a noção de humor proposta por Freud (1977). As definições destes autores nos

ajudarão a esclarecer os limites formais do humor e do cômico que conformam as práticas

sociais humorísticas. A partir da exposição das teorias mencionadas, iremos demonstrar

como os dispositivos teórico-analíticos eleitos dão visibilidade ao funcionamento do

discurso do humor no gênero tiras em quadrinhos. Não pretendemos estabelecer aqui uma

fórmula para ler tiras em quadrinhos, mas refletir sobre o estilo da língua nos enunciados

das tiras e o modo enunciativo com que os quadrinhistas organizam as tiras para provocar

humor.

Acreditamos que este trabalho contribuirá com os estudos enunciativos voltados

para a leitura do gênero tira de humor. Tal proposta poderá estimular uma ampla reflexão

sobre os processos estilísticos do gênero na dimensão bakhtiniana, rompendo com

paradigmas da estilística tradicional. Neste processo de renovação de estudos estilísticos,

incluiremos as categorias advindas da Semântica e da Pragmática para uma nova forma de

abordar os enunciados definidos na esfera humorística. Deduzo que estas reflexões poderão

Page 20: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

44

impulsionar as práticas de interpretação sugeridas pelos materiais didáticos, e

conseqüentemente o trabalho desenvolvido pelos professores de Língua Portuguesa.

A CONSTITUIÇÃO DAS TIRAS EM QUADRINHOS CÔMICAS E

HUMORÍSTICAS

As tiras em quadrinhos são narrativas que se expressam por meio da articulação da

linguagem verbal com a linguagem visual. Apesar da grande influência dos Estados Unidos

na sedimentação das convenções do gênero tiras em quadrinhos, o modo de constituição e

denominação das tiras em diferentes países se deu de forma distinta. Nos Estados Unidos

elas são conhecidas como comics, pois as primeiras tiras tinham como princípio a

comicidade. Em Portugal e na França, “banda desenhada”, na Itália, “fumacinha”, no Japão,

“mangás”, na Espanha “tebeos” (nome derivado de uma revista chamada TBO), na

Argentina, historieta e no Brasil, tiras em quadrinhos.

Os estudos sobre a origem das tiras em quadrinhos apresentam muitas controvérsias,

no entanto podemos traçar uma breve trajetória de sua constituição. Diremos que o embrião

de sua formulação encontra-se na pré-história, quando o homem imprimia imagens de

animais nas paredes das cavernas como forma de representação gráfica. Por serem pintadas

em áreas muito escuras, que só podiam ser vistas à luz do fogo, arqueólogos acreditam que

esses desenhos estavam relacionados a rituais mágicos para dar sorte às caçadas e proteção

diante das intempéries.

Na Antigüidade, os desenhos ganharam arranjos singulares, visto que a arte de

narrar história por meio de seqüências de imagens comparecia em diversas civilizações,

como a dos sumérios, dos egípcios e gregos. Dependendo do tipo de sociedade e da esfera

de comunicação, tais registros eram produzidos em diferentes suportes (pedras, papiro,

tapeçarias, vasos), com finalidades diversas. De acordo com Feijó (1997), as narrativas

produzidas por imagens, além da função decorativa, reforçavam crenças religiosas e

ajudavam a produzir uma memória sobre os fatos históricos. Esta forma de representação

Page 21: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

45

da realidade era bastante eficaz, visto que alcançava toda a comunidade que não sabia ler o

código escrito. Por meio dos mesmos recursos, a Igreja, na Idade Média, produziu vitrais

que ilustravam os episódios narrados na Bíblia para converter os indivíduos ao

Cristianismo.

O movimento pioneiro das tiras em quadrinhos Com a invenção dos tipos móveis por Gutemberg, a reprodução de textos impressos

multiplicou-se, possibilitando a publicação de livros, jornais e propagandas. De acordo com

Santos (2002), os primeiros jornais que noticiavam os fatos, com certa periodicidade,

ocorreram no século XVI, na Europa, no entanto sua consolidação se deu a partir da

Revolução Industrial, no século XVIII, com a ascensão da burguesia e disseminação dos

ideais liberais.

Neste contexto, o jornal impresso passou a adquirir funções relevantes, difundindo idéias e transformando fatos em notícias, que se tornavam conhecidas rapidamente. A literatura também se utilizou desse veículo de comunicação: diversos escritores publicaram suas histórias em capítulos nas páginas dos jornais, popularizando, dessa maneira, suas obras. Além disso, para atrair atenção dos leitores, os veículos impressos começaram a publicar ilustrações, histórias ilustradas e charges humorísticas (que geralmente, satirizavam figuras públicas da época). Este é o embrião do que seria chamado no futuro de História em quadrinhos (SANTOS, 2002, p.50).

O aperfeiçoamento de recursos gráficos e o aumento do número de pessoas

alfabetizadas estimularam a criação de novos gêneros discursivos para entreter a população

letrada. No campo humorístico, além das caricaturas, as narrativas ilustradas ganham

repercussão na imprensa. Um dos pioneiros deste movimento foi o pintor e caricaturista,

inglês, William Hogarth (1697-1764). Ele satirizava a moral da sociedade inglesa por meio

de seqüências de imagens que retratavam os fatos cotidianos. Para McCloud (2005), este

artista contribuiu para a formulação do gênero quadrinhos de maneira ocasional. Tudo

começou, quando Hogarth expôs um conjunto de imagens que deviam ser apreciadas lado a

lado, formando uma seqüência narrativa. Em seguida, suas pinturas foram reproduzidas e

distribuídas como um pequeno portifólio para venda comercial. O sucesso de uma das suas

histórias chamada “O progresso de uma prostituta” foi tão grande que resolveram publicá-la

Page 22: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

46

em um jornal britânico, no ano de 1731. A partir de então, muitas sátiras, no formato de

quadrinhos, são difundidas nos jornais da época de maneira mais constante.

Outro precursor da história em quadrinhos foi um professor da Universidade de

Genebra chamado Rodolphe Töpffer (1799-1846). Suas histórias desenhadas,

acompanhadas de legendas, inicialmente, tinham a finalidade de divertir os seus alunos,

mas a repercussão foi tão grande que ele acabou lançando, entre os anos de 1833 e 1846

diversos álbuns cômicos, aliando a imagem à linguagem verbal de forma interdependente.

Goethe, um de seus maiores admiradores, dizia que suas histórias correspondiam a uma

espécie de “romance caricaturado” que devia ser lido aos poucos, por tamanha

profundidade. O enredo era composto de histórias fantásticas e humorísticas, recheadas de

situações absurdas. Os protagonistas de suas narrativas sempre almejavam coisas

relativamente simples, todavia as ações para obter o objeto do desejo desencadeavam uma

série de desastres. Esta fórmula encontra-se presente nos desenhos animados até os dias de

hoje. Para Moya (1993, p.10), o autor “reduz os personagens a nada mais do que bonecos

na vida cotid iana diante dos problemas comuns”. Um dos seus álbuns mais famosos “Les

Amours de Monsieur Vieux-Bois (1827) narra a vida de um homem que deseja viver uma

história de amor, no entanto sofre uma série de recusas. Desiludido, tenta se matar, mas

suas tentativas são vãs. Durante toda a história, o personagem se envolve em uma série de

confusões, não conseguindo realizar nenhum de seus objetivos. Vejamos, então um

pequeno trecho desta narrativa traduzido por Moya (1993):

Les Amours de Monsieur Vieux-Bois

Page 23: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

47

(MOYA, 1993, p.7).

Rodolphe Töpffer preocupa-se, não somente, com a produção de histórias

legendadas, mas desenvolve, também, reflexões teóricas sobre a atividade de aliar texto e

imagem na formação de um novo tipo de literatura. Sobre este assunto o autor redige em

1845 Essai de Physiognomie. Neste estudo, o autor cogita a fundação de uma literatura

icônica com princípios narrativos regidos pela ilustração.

Outra contribuição significativa para o surgimento das tiras cômicas, destinada ao

público infantil, foi a produção de álbuns ilustrados com título de Max e Moritz4. Eles

eram desenhados e escritos em versos pelo alemão Wilhelm Busch (1832-1908). Os

protagonistas dessas histórias eram dois garotos travessos que aprontavam confusões para

se divertir. Muitas de suas narrativas foram condenadas pelos pedagogos, visto que os

garotos apresentavam comportamentos transgressores do ponto de vista ético. Apesar disto,

houve uma grande aceitação do público infantil na Europa e no Brasil, sendo acolhidas pelo

mercado editorial.

4 Os versos de Max e Moritz de Wilhelm Busch foram traduzidos por Olavo Bilac no Brasil e publicados em 1901 com o título de Juca e Chico.

Page 24: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

48

As histórias de Max e Moritz não tinham, propriamente, uma estrutura de texto em

quadrinhos, pois eram acompanhadas de pequenos versos legendados que traduziam as

imagens. Podemos caracterizar as histórias de Busch como um livro de literatura infantil

que valorizou acima de tudo as ilustrações que falam por si mesmas. Observemos, a seguir,

como as ilustrações de Max e Moritz, mesmo com a ausência dos versos que constituem a

versão original, contam uma seqüência cômica.

MAX E MORITZ

1

2

3

4

5

6

7

8

9

(BUSCH, 2006, p.1-3). O marco fundador das tiras em quadrinhos e a presença cômica

Em meados do século XIX, há publicações constantes de histórias ilustradas e

legendadas em jornais, por toda a Europa, e também no Brasil. Contudo, considera-se como

Page 25: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

49

primeiro personagem do gênero tiras cômicas um menino oriental orelhudo apelidado de

Yellow Kid (menino amarelo). Seu criador, Richard Outcault, publicou-o pela primeira vez

no jornal New York Word, em forma de charge, no dia 5 de maio de 1895. Com o objetivo

de satirizar a vida dos imigrantes que viviam nos cortiços da capital dos Estados Unidos,

ele desenhou um grupo de imigrantes com faixas na mão, cujo destaque era a figura

engraçada de um garoto feio que se encontrava no centro da lâmina. O sucesso da imagem

foi tão grande que o garoto se tornou personagem de pequenas histórias editadas

semanalmente. Geralmente, vinha escrito em seu camisolão enunciados com jogos de

palavras que remetiam a dizeres do personagem. Aos poucos, Richard Outcault introduziu

balões no interior dos quadrinhos que correspondiam à fala dos personagens. Essa criação o

projetou e o consagrou como fundador do gênero das tiras em quadrinhos. Por se tratar de

histórias engraçadas, esses textos foram denominados de comics nos Estados Unidos.

Vejamos uma de suas primeiras narrativas.

Page 26: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

50

Além de personagens fixos e uso de balões implementados por Outcault, a arte

seqüencial publicada nos jornais foi aprimorada com a inclusão de outros recursos icônicos

que tornaram as narrativas mais dinâmicas. Destacamos duas contribuições significativas

que repercutiram na feitura das histórias em quadrinhos. Primeiramente, o alemão Rudolph

Dirks (1877-1968) publica em 1897, nos Estados Unidos, as tiras cômicas Os sobrinhos do

capitão. Ele insere em suas gags cômicas as primeiras onomatopéias e sinais gráficos que

passaram a corresponder a sons e idéias, configurando novos recursos semióticos para

projetar a narração5. Dirks também foi responsável pelo uso de molduras que contornavam

as seqüências. Sobre a criação de convenções, Gubern (1980) explica:

[...] os fonemas onomatopaicos ingleses integraram-se no código internacional do comics, tal como aconteceu com as metáforas visualizadas. Estas metáforas foram criadas para exprimir o estado psíquico dos personagens através de sinais icônicos de caráter metafórico e metonímico. Figuram entre estas convenções: o ponto de interrogação em cima da cabeça de um personagem, para indicar perplexidade; a lâmpada para exprimir a idéia < luminosa>; as <estrelas>, quando se recebe uma pancada (...) Muitos destes sinais são, à puridade, metonímias, provenientes da linguagem verbal (GUBERN, 1980, p.63).

A transposição das metáforas e das metonímias, presentes no repertório verbal,

materializa-se literalmente no discurso gráfico. Para expressar um dito censurado,

projetam-se no interior dos balões ícones como caveiras, cobras e lagartos, correspondentes

a símbolos culturais negativos. Juntamente com as metáforas visualizadas, análogas ao

discurso verbal, surgem as convenções gráficas sinestésicas que expressam o movimento

das ações decorrentes de sua natureza icônica. Por meio de pequenos traços descontínuos, é

possível representar a trajetória de uma bala de revólver na busca de um alvo. Com isso, a

linguagem dos quadrinhos rompe com a natureza estática dos desenhos, imprimindo o

5 Observamos que houve pouca preocupação com a tradução das onomatopéias nas tiras em quadrinhos. Geralmente, as formulações onomatopéicas da língua inglesa eram traduzidas sem nenhuma relação com os sons da língua em que os textos foram reeditados.

Page 27: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

51

efeito de deslocamento e velocidade. Muitos artistas daquela época chamavam este recurso

de “fotografia mexida”6.

Diante de uma série de publicações que procuram seguir a padronização dos

quadrinhos incutida pelos pioneiros, George Herriman, com a criação de Krazy Kat, em

1910, explora a metalinguagem, construindo ilustrações nas quais os próprios protagonistas

pegam o lápis para desenhar o cenário, promovendo, assim, referências sobre a produção da

ficcionalidade gerada pelos personagens. Com isso, Herriman expressa graça, não somente

pelos indicadores do enredo, mas também, pela exposição lúdica do código narrativo

responsável pela feitura do gênero no interior do enunciado. Este mesmo quadrinhista cria

cenas em que os personagens ultrapassam os limites da moldura das tiras, transgredindo o

código já instituído no gênero tira.

Os sobrinhos do capitão

Rudol

ph Dirks

Krazy Kat

George Herriman,

Observamos que as convenções da linguagem das tiras em quadrinhos foram se

fixando de maneira gradativa com a contribuição de diversos artistas na produção dos

argumentos e no modo de projeção das imagens. Tal processo fez com que houvesse uma

preocupação maior com a padronização das tiras e o controle de sua comercialização nos

jornais. Todavia, a formalização destas convenções se consolidou quando as tiras saíram da

6 Neste mesmo período, as vanguardas européias, sobretudo o Cubismo, redimensionavam a idéia de movimento nas artes plásticas, exprimindo a idéia de perspectiva tridimensional o que muito contribui para a linguagem dos quadrinhos.

Page 28: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

52

tutela das redações dos jornais para agências responsáveis pelos direitos autorais dos

artistas gráficos, denominadas de syndicate. A primeira agência foi fundada em 1912, nos

Estados Unidos, por Hearst, Syndicate International News Service, dando origem à King

Features, em 1914. A partir daí, uma série de sindicatos entraram em concorrência,

impondo um modelo de qualidade a ser seguido neste tipo de arte gráfica. De acordo com

Furlan, os sindicatos tiveram um papel fundamental na normatização dos quadrinhos.

Os “Sindicates”, além de possuir direitos sobre os trabalhos dos desenhistas (direitos sobre a venda e a distribuição), funcionam como agência de veiculação das histórias, preparando e emitindo milhares de matrizes a serem vendidas não só nos EUA como também em outros países. São responsáveis por alguns cuidados, ou seja, devem seguir um código de ética: as histórias não devem ofender nenhum leitor; não devem conter palavrões explícitos, que poderão ser substituídos por sinais convencionais; não devem conter sugestões de imoralidade; devem evitar controvérsias quanto à religião, raça ou política; devem evitar cenas de violência com mulheres, crianças e animais; não devem incentivar o crime, que será sempre punido (FURLAN, 1989, p.29).

Como vemos, a evolução do gênero tira em quadrinhos se deu sob o efeito de vários

fatores reguladores. Outro fator que determinou a forma constitutiva das tiras foi a demanda

do público leitor. É possível observar que nas duas primeiras décadas do século XX, havia

um predomínio das tiras cômicas difundidas nos suplementos dominicais. De acordo com

Feijó, os temas tratados nos quadrinhos vão se alterando gradativamente, das travessuras de

crianças perversas, as tiras cômicas passam a tratar de temas familiares7, visto que, além

das crianças, os adultos também eram leitores assíduos deste gênero.

A fórmula para fazer sucesso foi inventar coisas absurdas e

engraçadas, a partir de situações típicas do cotidiano das famílias.

A história começava e acabava na mesma tira (ou página

dominical). Prevalecia o desenho caricatural, não havendo nenhum

7 “Pioneira e modelo arquetípico desta tendência foi a ‘sátira familiar’, prolongação de uma vertente da ‘comédia de costumes’ e que em forma de narração desenhada, teve como fundador o desenhista francês Christophe (Georges Colomb), autor da aplaudida Famille Fenouillard (1989), série protagonizada por um casal com duas filhas, Artémise e Cunégonde, família provinciana e vaidosa que no primeiro episódio, visita a Exposição Universal de Paris” (GUBERN, 1980, p.33).

Page 29: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

53

realismo estético, ou seja, os personagens nunca pareciam seres

humanos ou animais reais, na melhor das hipóteses eram apenas

desproporcionais (FEIJÓ, 200, p.19).

A fisionomia dos quadrinhos foi bastante modificada com inclusão das histórias de

aventuras e a migração dos desenhos animados (O Gato Félix, de Pat Sullivan, e Mickey

Mouse, de Walt Disney). O mercado editorial passou a valorizar o desenho artístico na

comercialização das tiras em quadrinhos, sobretudo, as histórias de aventura. As tiras

ganharam cenários mais detalhados e desenhos procuravam reproduzir o enquadramento

explorado pelo cinema.

Os diversos gêneros nas tiras em quadrinhos

Em 1929, ano do crack da bolsa de Nova Iorque, é lançada nas páginas diárias dos

jornais norte-americanos a série Tarzan, produzida por Hal Foster. O argumento da

narrativa se apoiou no romance Tarzan, o rei da selva (1912) de Edgar Rice Burroughs. A

edição em quadrinhos fez um grande sucesso, estimulando a produção de novos heróis com

o mesmo protótipo. Paralelas às aventuras do homem-macaco, surgem em 1929, as tiras de

Buck Rogers, adaptação da novela Armageddon 24198 de Phil Nowlan. Com esta série foi

inaugurado, então, o gênero ficção científica em quadrinhos. As histórias de Tarzan e Buck

Rogers rompem com o desenho caricatural dos personagens cômicos. As gravuras ganham

representações mais realísticas e os protagonistas assumem formas anatômicas mais

próximas do homem. Os heróis, em sua grande maioria, são adultos, inteligentes e têm

corpos musculosos.

A partir da década de 30 do século XX, há uma expansão do mercado editorial

devido à grande aceitação das histórias de aventuras. Neste contexto, uma legião de heróis

ganha espaço nas folhas suplementares dos jornais diários. Diferentes das tiras cômicas,

que se constituíam de pequenas piadas ou sátiras apresentadas em poucos quadros, as tiras

8 Esta ficção tem como protagonista o piloto Buck Rogers que, ao sofrer um acidente, desperta quinhentos anos depois da Primeira Guerra Mundial para defender a terra.

Page 30: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

54

de aventuras demandavam um espaço gráfico maior, pois os enredos comportavam séries

mais longas. Tais episódios, então, eram apresentados em pequenos capítulos diariamente.

A fragmentação das narrativas nas tiras de jornal exigiu a criação de um novo suporte: as

revistas em quadrinhos (Comics Books). No interior deste formato, novas temáticas e novos

gêneros são incorporados à linguagem dos quadrinhos. De acordo com Viana, vários tipos

de heróis surgem para dialogar com as questões sociais daquele período.

O herói que combate a criminalidade é um bom exemplo. Nos EUA, a emergência do “crime organizado” e o crescimento da criminalidade a partir da crise de 1929, bem como o surgimento do FBI, promove o aparecimento de toda uma safra de heróis detetives, policiais e coisas do gênero, tal como Dick Tracy (1931); Agente X-9 (1934), Rip Kirby (1946), entre outros. As aventuras policiais marcam o nascimento de um subgênero no interior do gênero aventura, fazendo emergir a figura do “herói policial”, segundo expressão de Marny, sem ter o brilho que os demais possuem por suas limitações devido a sua ligação com a figura real do policial, inclusive aparência física, que, segundo alguns, encaixaria muito bem nos vilões (Marny, 1970). Outros subgêneros, expressando outros tipos de heróis, como o herói das selvas (Tarzan, Jim das Selvas, Ka-Zar, Tantor), o herói cômico (Popeye, Lucky Luke), o herói fantástico (Mandrake, Tabu – O Feiticeiro da Floresta), o herói de ficção científica (Buck Rogers, Brick Bradford, Flash Gordon), o herói-cowboy (Red Ryder, Bronco Bill – ex-Bufallo Bill Jr., Lone Ranger – O Zorro Cowboy, como ficou conhecido no Brasil) entre outros, manifestam, sob formas diferentes, as características básicas do gênero aventura. O herói cômico era uma tentativa de juntar dois gêneros, no qual a comicidade e o desenho caricatural se uniam com a narrativa seqüencial e longa na qual o herói buscava cumprir a sua missão justiceira (VIANA, 2004, p.3).

Ao final da Segunda Guerra Mundial, reflexões sobre valo res expressos nas tiras em

quadrinhos são intensificadas. Muitas histórias em quadrinhos produzidas pelos Estados

Unidos foram criticadas por servirem de instrumento de propaganda ideológica, sendo

proibidas em diversos países. Prevalece nas histórias de aventura a visão maniqueísta em

que se minimizam as contradições do capitalismo. Sociólogos e psicólogos afirmam que as

questões sociais são esvaziadas e os problemas do mundo são resolvidos por meio de

superpoderes. Em 1954, o psiquiatra Fredric Wertham escreve Seduction of the Innocent, e

Page 31: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

55

rebaixa o valor das tiras, ainda mais, afirmando que os heróis das histórias de aventuras

estimulam a delinqüência juvenil com a alta exposição de violência e cenas de apelo

sensual. Tais críticas afetaram diretamente a hegemonia do parque industrial norte-

americano. Diante da censura aos quadrinhos por intelectuais e entidades religiosas, os

syndicates investem nas tiras cômico-humorísticas de cunho reflexivo.

A renovação do humor nas tiras em quadrinhos

Em 1950, destacam-se, na linha dos quadrinhos cômico-pensantes, as tiras de

Charles Schulz (1922- 2000) com a série Peanuts (conhecido no Brasil como Minduim ou a

turma de Charlie Brown). Em suas histórias, o cachorro Snoopy e as crianças reproduzem

os conflitos do universo psicológico infantil e as contradições do mundo adulto. Observa-se

que os aspectos cômicos e humorísticos ganham contornos distintos das tiras anteriores. De

acordo com Luyen (1990), os quadrinhos de formulação reflexiva sobre a linguagem dão

maior relevo aos ditos espirituosos expressos nos balõezinhos. O risível encontra-se mais

marcado no que é dito pelos personagens do que no enredo da narrativa. No lugar do

enquadramento cinematográfico das histórias de aventura, com cenários grandiosos e

mudanças de plano de expressão realística, as novas tiras humorísticas obedecem ao

enquadramento teatral em que o personagem entra e sai de cena como se estivesse atuando

em um palco com fundo branco. As tiras irão apresentar comportamento similar ao dos

esquetes que tratam de temas cotidianos de forma breve, porém de maneira crítica.

A simplicidade dos cenários e a valorização da palavra em uma esfera contingente

serão a base para pequenas narrativas que irão explorar trocadilhos, lapsos e atos falhos

como mote para provocar o riso no leitor. Seguindo esta trilha, Charles Schulz,

considerado o “Freud do comics”, traz para tiras em quadrinhos temáticas que evidenciam a

complexidade do universo infantil, explorando o discurso verbal como principal elemento

do efe ito risível. Em muitas de suas tiras destaca-se o tropeço lingüístico, isto é, atividades

verbais geradoras de equívocos ou ambivalências sob a esfera do contexto social. Por meio

de pequenas encenações, as crianças reproduzem o universo adulto denunciando as

contradições existentes nas relações sociais. Como vemos a seguir:

Page 32: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

56

PEANUTS

( SCHULZ, 2006, p.3).

Charles Schulz foi um dos principais inovadores da argumentação humorística dos

quadrinhos na década de 1950, visto que explorou o balão do pensamento como recurso de

exposição de monólogos dos personagens. Dessa forma, o leitor passou a ter acesso à

esfera mais íntima dos personagens em seus aspectos inusitados. Neste novo terreno, é

fortalecida a convenção de os bichos expressarem suas idéias por meio do balão do

pensamento. O principal destaque é o cachorro Snoopy que apresenta raciocínios

filosóficos e lingüísticos que normalmente se atribui aos humanos. Com isto, o argumento

das narrativas reside em pequenos comentários irônicos, que ganham graça quando ditos

sob a perspectiva de um cachorro.

PEANUTS

( SCHULZ, 2006, p.3).

Seguindo a trilha das tiras cômico-humorísticas, sob o viés da carnavalização, é

publicada na França, em 1959, a série Asterix, produzida pelo roteirista René Goscinny

(1926-1977) e pelo desenhista Albert Uderzo. As histórias destes artistas denunciam a

invasão cultural norte-americana de forma alegórica e parodística, na medida em que a

maioria dos episódios tem como base a tentativa de invasão do Império Romano a uma

pequena aldeia gaulesa defendida pelos heróis Asterix e Obelix . A graça da série consiste

Page 33: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

57

nas referências a grandes personalidades e na emissão de ditos absurdos em conjunção com

o período da Antigüidade. O jogo de intertextualidade remete a diversas questões político-

sociais vinculadas a acontecimentos históricos do mundo ocidental, exigindo do leitor

informações enciclopédicas para captar as relações críticas que produzem o efeito risível.

Albert Uderzo

Na década de 1960, os super-heróis das histórias de aventuras ganham nova

roupagem se aproximando do perfil do homem comum que tem suas fraquezas e conflitos

existenciais. Aparecem neste período as primeiras heroínas que rompem com o protótipo da

mulher frágil, dependente de um protetor, como Olívia Palito na série Popeye. Dentre as

personagens femininas do humor pensante de maior destaque, encontra-se a personagem

Mafalda, idealizada pelo argentino Joaquin Salvador Lavado (pseudônimo Quino). A

personagem foi criada para uma campanha publicitária de eletrodomésticos Mansfiel, em

1962, mas acabou sendo engavetada, pois a propaganda não foi veiculada na mídia. Em

1964, Quino reaproveita a personagem, publicando-a na revista Primera Plana até a época

de sua falência, em março de 1965. Neste mesmo ano, as tiras de Mafalda passam a ser

publicadas no jornal El Mundo, período em que Argentina vive a tensão do golpe militar.

As tiras da Mafalda tinham como princípio o diálogo com os acontecimentos da

época, funcionando como pequenas crônicas humorísticas. Diferente de Charles Brown,

que reflete sobre as questões existenciais, os temas tratados nas tiras da Mafalda têm como

foco predominante o dogmatismo expresso nas diferentes instituições sociais e o processo

de alienação e marginalização gerado pelo sistema capitalista. Para ironizar as diversas

Page 34: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

58

instituições sociais, inclusive a família, o quadrinhista expõe atitudes incongruentes dos

personagens, denunciando suas falhas e defeitos por meio do discurso que os mesmos

produzem. Ao contrário dos textos críticos que procuram apresentar fatos para denunciar os

equívocos sociais, as tiras de Quino evidenciam as próprias ações para que o leitor perceba

as mazelas sociais. A criticidade de Mafalda efetua-se a todo instante por meio de

insinuações em que prevalecem os pressupostos e os subentendidos que devem ser

interpretados pelo leitor.

(QUINO, 2000, p.8).

Na década de 1970, as tiras cômico-humorísticas assumem a hegemonia nos

suplementos jornalísticos voltados para o público adulto. Na esteira dos quadrinhos de

formulação reflexiva sobre a linguagem, estréiam em 1973 as tiras do viking “Hagar, o

horrível”, produzidas pelo norte-americano Richard Arthur Allan Browne (1917-1989),

conhecido como Dick Browne. Esta série teve como referência as lendas nórdicas

protagonizadas por guerreiros vikings, que o autor contava para seus filhos quando eram

crianças. No lugar de personagens com características míticas, o quadrinhista cria um anti-

herói cheio de vícios e defeitos (mente, bebe, come muito, não toma banho, rouba e não

paga impostos) que vão de encontro aos padrões de conduta aceitos socialmente. Desta

forma, o autor ataca as relações e os papéis sociais que o personagem desempenha no seu

dia-a-dia de forma ambivalente. Se em um dado momento Hagar é aquele que detém o

poder, em outro assume um papel subserviente, chegando a ser ridicularizado por sua

esposa Helga. Se por um lado, o personagem incorpora a imagem de saqueador valente,

vivendo uma série de situações desafiadoras, por outro, Hagar se projeta como um

Page 35: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

59

bonachão, sem credibilidade diante das coisas que diz para sua família, inclusive para seu

cachorro. Para superar as frustrações mais imediatas, os diversos personagens que

compõem a série sempre emitem, nos diálogos ditos espirituosos, cheios de jogos de

palavras e subentendidos. Com a morte de Dick Browne, em 1989, as tiras Hagar, o

horrível passam a ser escritas por seu filho, Chris Browne 9, apresentando estilo de

produção humorística similar, com ligeiras modificações.

Observamos que a tendência dos quadrinhos humorísticos se consolidou em uma

vertente crítica, do ponto de vista do uso da linguagem, assumindo uma perspectiva

hegemônica em nossa contemporaneidade nos jornais. Além desta proposta humorística,

destacam-se na virada do século os quadrinhos underground10 que se apresentam em uma

perspectiva mais transgressora, trazendo temas mais polêmicos como drogas, prostituição,

homossexualismo etc. Tal proposta significa um movimento de abertura temática, que até

meados dos anos 60 eram abolidas pela sociedade. A existência de uma variedade de

gêneros que se apropria da linguagem dos quadrinhos convida-nos a refletir sobre

procedimentos específicos de análises que nos permitem identificar diferenças entre os

tipos de textos que circulam socialmente, configurando um olhar mais voltado para o

gênero tira de humor, como faremos no capítulo seguinte.

9 Neste trabalho apresentaremos as tiras Hagar, o horrível criadas por Dik e Browne e a de seu filho Chris Browne que dá continuidade a trabalho de seu pai, mudando ligeiramente o estilo da linguagem da série original. 10 O movimento underground foi deflagrado no período da guerra do Vietnã e do movimento hippie quando parte da sociedade demonstrava um olhar cético em relação ao destino da humanidade. No campo das histórias em quadrinhos iniciou-se um movimento de profundas críticas aos Syndicates que buscavam uniformizar o processo criativo das tiras em uma perspectiva moralizante. De acordo com Furlan (1989), em 1966 foi fundado o Underground Press Syndicate com o intuito de ditar regras das tiras marginais, assumindo uma postura contraditória à proposta do movimento inicial. Segundo Paixão Junior (2006, p.10) “Robert Crumb foi o mais importante autor underground, responsável pelo primeiro gibi independente da história, a Zap Comix (com “x”, para se diferenciar dos comics correntes). Antológico entre suas várias criações é o gato Fritz, possuidor tanto de um visual que remete ao infantil universo Disney, quanto de uma trajetória emblemática: de universitário boçal passou a hippie decadente para, em seguida, tornar-se um abjeto astro da mídia.” No Brasil, o principal representante da literatura underground é o cartunista Angeli, criador na década de 80 da revista da contra-cultura Chiclete com Banana com as histórias de Bob-Cuspe e da Rê. Esta revista divulgou o trabalho de diversos artistas que seguiam a mesma linha de seu fundador, como Laerte, Luiz Gê, Cláudio Paiva e Glauco.

Page 36: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

60

A NOÇÃO DE GÊNERO DISCURSIVO E AS TIRAS EM

QUADRINHOS

Em meio à diversidade de projeções enunciativas, uma das maneiras de observar a

identidade de um texto são os traços semelhantes que ele apresenta, em seu aspecto formal

e funcional, na relação com outros textos. Ao qualificar os textos em gêneros,

desenvolvem-se classificações idealizadas por um conjunto de critérios que não são

organizados por princípios lógicos, mas por abstrações condicionadas a fatores sócio -

históricos. As primeiras conceituações de gênero do discurso derivaram dos estudos

literários, vigorando, somente no século XX, as contribuições da lingüística, reconhecida

como ciência. Em muitos momentos, a noção de gênero ainda é confundida com a noção de

tipologia, como veremos no decorrer de nossa discussão. Podemos afirmar que a concepção

de gênero ou de tipo textual determina a relação que os sujeitos estabelecem com os textos.

Por isso desenvolveremos uma reflexão sobre a construção de critérios para identificar

regularidades e formas de funcionamento da linguagem que indicam a formação de um

gênero. A partir desse parâmetro, iremos esclarecer princípios que ajudam a caracterizar e

compreender o gênero tira de humor.

A palavra gênero vem do latim genus-eris que significava origem, família, espécie,

agrupamento de indivíduos dotados das mesmas características. Platão e Aristóteles

desenvolveram essa noção para categorizar os textos artísticos que circulavam na

Antigüidade, a fim de classificá- los, do ponto de vista estético e literário. Estes primeiros

estudos tinham como pressuposto a existência de: imutabilidade, fixidez das formas e

unidade de emoção em cada gênero identificado. Se por um lado, houve a percepção de

regularidades existentes nos textos, por outro, prescreviam-se formas providas de valor

literário a partir de um padrão preestabelecido. Desta maneira, as pessoas que escreviam em

um dado gênero, procuravam seguir as convenções ditadas nas grandes poéticas escritas por

Aristóteles e Horácio entre outras. Algumas classificações, produzidas na Antigüidade,

Page 37: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

61

atravessaram a História, apresentando princípios modelares de “boa literatura”

considerados até os dias de hoje.

A organização dos critérios para classificação dos gêneros literários obedeceu,

essencialmente, a domínios formais e funcionais no âmbito artístico. Havia a distinção entre

o discurso sério e o cômico, dividindo os textos teatrais em tragédias e comédias. A noção

de prosa e de poesia era determinada pela rima e o ritmo das palavras no discurso.

Obedecendo à perspectiva de Platão, no livro III de A República, esboçou-se uma visão

tripartida de Literatura que distingue os gêneros em: épico, lírico e dramático. Neste

contexto, o gênero lírico manifesta-se como expressão subjetiva da realidade, sob a

angulação e a voz do eu- lírico; o gênero dramático seria aquele que se organiza pelo

discurso direto em que os personagens assumem a palavra (expressa nas tragédias e nas

comédias); já no gênero épico, os textos são resultantes da combinação do ponto de vista do

narrador com o dos personagens, podendo ser exemplificado com as epopéias e textos

similares. Este tripé abriu brecha para o diálogo de Aristóteles com Platão sobre os textos

mais próximos da mímese (imitação e representação da realidade), instigando, na

contemporaneidade, o debate sobre a construção de perspectiva discursiva.

Além dos gêneros literários, foram estudados por Aristóteles (1999) os gêneros

retóricos produzidos na modalidade oral. Seu livro a Arte Retórica, além de expor as regras

fixas que ordenam um discurso (exórdido, narração, provas e perolação), reflete sobre os

recursos que promovem a persuasão de uma platéia. Para ele, nenhum discurso pode ser

pensado somente em termos de sua estrutura verbal. Para persuadir um auditório é preciso

levar em conta o caráter moral do orador (ethos), o apelo emocional que atinge o ouvinte e

gera simpatia (pathos) e o modo de organização do discurso (lógos). A forma de

interpelação do orador e sua relação com a platéia sofrem variação de acordo com os

objetivos do ato verbal. Sendo assim, Aristóteles classifica os gêneros de acordo com

relações no espaço público em três formas discursivas: deliberativo, epidítico e judiciário11,

como vemos no seguinte quadro de Reboul (1998):

11 O discurso epidítico é demonstrativo e tem o objetivo de revitalizar valores de uma determinada comunidade, manifestados no presente (com valor atemporal), servindo de base para toda argumentação. O discurso judiciário visa determinar o justo e o injusto sobre uma ação passada, por meio de silogismo que

Page 38: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

62

CATEGORIAS DE GÊNEROS DISCURSIVOS OU ORATÓRIOS ANÁLISE JUDICIÁRIO DELIBERATIVO EPIDÍTICO

AUDITÓRIO Juízes Membros de uma Assembléia

Espectadores/ Público

ATO ou FINALIDADE

Acusar/ Defender

Aconselhar/ Desaconselhar

Louvar/ Censurar

OBJETO ou VALORES Justo/ Injusto

Útil/ Prejudicial

Belo-nobre/ Feio-vil

TEMPOS Passado Futuro Presente RACIOCÍNIO ou

ARGUMENTO-TIPO Entimema (dedutivo)

Exemplo (indutivo)

Comparação/ Amplificação

LUGARES COMUNS

Real/ Não-real

Possível/ Impossível

Mais/ Menos

( REBOUL, 1998, p. 47).

Um dos pontos de destaque da visão de Aristóteles foi a valorização da platéia para

quem o discurso é dirigido. De acordo com a sua perspectiva, toda expressão de

convencimento está ligada às circunstâncias e à finalidade. Ele afirma que o bom discurso

deve contar com silogismos parciais que permitam ao interlocutor deduzir e chegar às suas

conclusões. Uma das principais estratégias de adesão a um ponto de vista são os

entimemas, isto é, silogismos que contam com a participação do interlocutor para completar

o raciocínio. Esta será uma das estratégias preferidas de quem deseja acusar ou estabelecer

uma ironia. Com este procedimento, o orador valoriza as inferências que a platéia

estabelece, tornando seu discurso mais eficaz. O entimema é um recurso, também, bastante

utilizado nos enunciados irônicos dos personagens das tiras em quadrinhos para produzir

humor.

HAGAR – Dik Browne

conta com inferência do jurado. Já o discurso deliberativo aponta caminhos favoráveis a uma comunidade diante do futuro.

Page 39: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

63

(BROWNE, 2005, p.14).

Observamos no quadrinho de Browne uma cena de muita alegria, como se fosse de

uma grande festa. Um personagem indaga o motivo da alegria. O segundo comunica que

Hagar está tomando banho. Diante deste fato, o leitor pode deduzir: se os festejos ocorrem

somente em momentos especiais, e se a razão do festejo é o banho de Hagar, então significa

que Hagar raramente toma banho. O entimema convida o leitor a deduzir pelos elementos

demonstrados e afirmados no discurso que Hagar não tem hábitos de higiene; sua sanção é

o riso com função corretiva. A produção de discurso, baseada em silogismos, valoriza o

ouvinte, tornando mais fácil a adesão da platéia ao que se quer afirmar. Tal procedimento

dedutivo é bastante utilizado na publicidade para convencer o seu destinatário sobre a

qualidade do produto anunciado.

O estilo do autor, a sociedade e o texto na constituição do gênero

De acordo com Brandão (2000), a tradição de classificar os textos perdurou por toda

a história da cultura ocidental. Na Idade Média cultivou-se a teoria dos três estilos,

denominados de elevado, médio e humilde. Estes três gêneros eram exemplificados por

meio de três obras de Virgílio: “a Eneida, representando o estilo elevado, as Geógicas, o

estilo médio, e as Bucólicas, o estilo humilde”(2000, p.18/19). Na opinião da autora, essa

distinção era ao mesmo tempo literária (baseada na escolha lingüística e no tipo de

vocabulário utilizado) e sociológica, na medida em que cada obra retratava grupos sociais

distintos: guerreiros, camponeses e pastores. Nessa mesma época, eclodem na Europa

cantigas, baladas, trovas e novelas de cavalaria, ampliando a diversidade textual que se

multiplicará ainda mais com o advento da imprensa.

Com a circulação de uma variedade de formas textuais no Renascimento, a

referência de obra literária recai sobre os modelos de tradição greco-latina defendida,

principalmente, pela poética de Boileau (1636-1711). Concebida sob o viés racionalista, a

concepção de gênero prevê a imitação dos grandes clássicos da Antigüidade como motivo

Page 40: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

64

inspirador das novas obras. Essa forma dominante exercerá alta influência sobre o modo de

produção dos gêneros literários até o Romantismo.

Moisés (1989) afirma que no século XVIII ocorre um movimento de ruptura à

concepção de gênero ditada por regras seculares. O Romantismo difundido na Alemanha e

na Inglaterra fez cair por terra a discriminação do gênero impuro, valorizando os “gêneros

mistos e comunicantes”. A fusão dos gêneros tragédia e comédia como elemento derivante

do gênero drama passa a ser vista como um fator enriquecedor nas artes. Difundem-se

maior liberdade de criação e aceitação das formas que rompem com padrões fixos do

cânone literário. É defendida, nesse período, a idéia de originalidade e de autor como gênio,

capaz de imprimir uma forma singular de expressão, inovando, assim, os gêneros

existentes.

Com a visão cientificista, a questão do gênero volta a ser discutida sob outros

moldes. De acordo com Moisés (1989), o crítico literário Ferdinand Brunetière, baseado na

teoria evolucionista de Hebert Spencer, publica um estudo sobre a evolução dos gêneros em

L’ Évolution de Genres dans l’Histoire Littéraire (1890). Este autor defendia a idéia de que

os gêneros literários são como seres biológicos: eles nascem, desenvolvem-se e morrem.

Em conseqüência disto, os gêneros eram vistos como entidades que desaparecem em

decorrência das novas demandas sociais. Tais estudos assumem uma perspectiva

sociológica determinista, justificando a formação e a permanência dos gêneros por fatores

externos ao texto. A partir deste ponto de vista, algumas correntes sociológicas procuram

explicar a origem do gênero em decorrência da superestrutura (condicionamentos políticos

e econômicos). Teóricos desta vertente justificavam, por exemplo, o surgimento do

romance pelo nascimento da burguesia, vendo a literatura como mero reflexo dos

acontecimentos históricos. Tal perspectiva toma a linguagem literária como instrumento de

comunicação, sem atentar para o processo de produção de realidade que ocorre a partir da

elaboração artística12.

12 A análise pode ser reducionista quando se absorve o texto como reflexo dos condicionamentos sociais. A abordagem sociológica identificava a obra como reflexo do que acontecia no sistema social, e não como um construto que cria realidades. Este tipo de análise não vê a obra literária em si, não observa a sua linguagem e o estilo do autor como fator fundamental na produção dos enunciados. Para a sociologia da

Page 41: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

65

Correntes textualistas como o Formalismo Russo, na União Soviética e o New-

Criticism13, nos Estados Unidos, estabeleceram no início do século XX novas indagações

sobre a formação dos gêneros e o que gera um texto literário. Contrapondo-se à

supervalorização do elemento extratextual para analisar os gêneros literários, sob seu

aspecto temático, as duas vertentes mencionadas valorizaram o texto enquanto construto

mediado por sua estética. A significação de um texto não decorre somente de seu conteúdo,

mas também dos elementos estéticos que desempenham uma função na projeção da forma.

Os Formalistas Russos, grupo de autores vinculados à Teoria da Literatura na União

Soviética, contestaram a visão de estétic a da linguagem em uma perspectiva historicista ou

subjetivista; os gêneros literários não têm um fim em si, ocorrem processos criativos de

transmutação e retorno de formas artísticas. Ao invés de estudar os elementos

extraliterários (vinculados à História Geral da Literatura) para refletir sobre os gêneros,

preferem identificar procedimentos geradores de literariedade como a escolha lexical, as

associações semânticas e a disposição dos enunciados na forma de comunicação. Para

determinar os princípios geradores de literariedade, Chklosvsky (1978) vê a Literatura

como expressão artística capaz de abalar os princípios de automatização da linguagem

verbal encontrados na vida cotidiana. Ele observa que as atividades artísticas provocam

desvios de linguagem promotores de percepções singulares dos objetos ou fenômenos

contemplados.

O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o reconhecimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato da percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do

literatura a linguagem é meramente instrumental. Sabemo s que a linguagem não é um instrumento de comunicação simplesmente, as mudanças que ocorrem no plano da linguagem têm a capacidade de alterar a relação do homem com o mundo, por isso todas atividades artísticas, que atuam sobre o modo de expressão, desempenham um papel revolucionário. 13 Corrente de estudos literários norte-americana que surgiu nos anos 1930 com o intuito de analisar os textos enquanto objeto estético. Seu método de estudo fundamentava-se no close reanding (leitura fechada no próprio text o) se opondo ao reducionismo sociológico e a falácia da intencionalidade do autor.

Page 42: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

66

objeto, o que é já “passado” não importa para a arte (Chklosvsky, 1978, p.45).

Chklosvsky afirma que a estética literária produz um efeito de “estranhamento”

que gera um olhar diferenciado sobre a própria linguagem. Um dos principais

procedimentos para garantir esse efeito é a repetição e a formulação de imagens verbais e

visuais que rompem com a percepção automatizada encontrada na esfera de comunicação

cotidiana. Em seu estudo, evidencia-se a contraposição da linguagem cotidiana à linguagem

artística para identificar traços de literariedade em um texto. Para ele, a obra de arte é

resultado da exposição de uma percepção singular sobre a realidade, provocando um

sentimento de contemplação (ou uma espécie de “estranhamento”). Observamos que o

posicionamento deste autor é bastante discutível, visto que a construção da categoria

“estranhamento” para refletir sobre o modo de projeção dos enunciados na produção de

efeito de sentido não corresponde a um fator exclusivo dos textos literários. Apresentamos

dois exemplos de expressão que exploram os recursos da linguagem verbal de forma

singular, a seguir:

HAGAR - Dik Browne

(Folha de São Paulo,13/12/04).

Na linguagem corrente o falante utiliza a estrutura congelada da língua “bens de

consumo”. Para contrapor com o uso trivial desta expressão, o quadrinhista cria o sintagma

“males de consumo”. A contraposição dos dois termos coloca em xeque a própria noção de

“bens de consumo” ao expor a existência de algo a ser vendido com a denominação “mal de

consumo”. Além disso, a venda dos males de consumo é colocada como um bem mais

barato, gerando aí o efeito risível. Na prosa cotidiana ocorre também o mesmo fenômeno

Page 43: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

67

estilístico por meio da sintaxe e do jogo de palavras. Quino procura retratar essa situação

em um diálogo de Mafada com Felipe:

(QUINO, 2000, p.33).

Como vemos, o “uso especial da linguagem” não se constitui como recurso

exclusivo da literatura; as adivinhas, as parlendas e as piadas também fazem uso deste

procedimento. Quino propõe a repetição da palavra “barbaridade”, enquanto expressão

idiomática, usada no cotidiano com sentido de ser custoso ou no sentido de ser

ultrapassado, “pouco civilizado”. A mesma expressão “barbaridade” é repetida diversas

vezes, levando o leitor a perceber a convergência de sentidos que o uso do vocábulo é

capaz de estabelecer na esfera comunicativa. Com isso, observamos que o estatuto da

literatura ou de qualquer outro domínio discursivo é decorrente de outros fatores que

ultrapassam os limites da linguagem por si só.

Percebemos que o emprego singular da linguagem não tem a ver especificamente

com valores intrínsecos à linguagem poética, mas está diretamente vinculado aos usos

sociais da língua nas esferas sociais. A forma verbal da carta de Pero Vaz de Caminha, em

1500, correspondia a um uso da língua na esfera cotidiana, já no século XX as mesmas

sentenças produzem um efeito diferenciado no âmbito da comunicação. Nesse sentido, o

que pode causar estranhamento no plano da linguagem, em dado momento histórico, pode

ser naturalizado e constituir-se em um clichê em outra época. Sendo assim, os princípios de

desautomatização da linguagem é um trabalho que ocorre tanto no discurso literário como

na prosa cotidiana, sendo bastante freqüente nos textos de humor.

Page 44: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

68

Dois pensadores do formalismo russo, Tynianov e Jakobson, ampliam a discussão

sobre literariedade, afirmando que todo estudo literário só pode ser investigado em seu

território cultural. Para eliminar a visão subjetivista, os formalistas tomam a obra literária

como sistema constituído de elementos internos interdependentes que dialogam com um

conjunto de outras séries literárias e não- literárias. Tynianov (1978) no artigo Da Evolução

da Literatura desenvolve a noção de sistema para se livrar do psicologismo personalista e

da visão historicista dos estudos literários evolucionistas fechados na tradição. O sistema

literário seria constituído por meio da linguagem verbal com um uso específico que só pode

ser compreendido na relação com a linguagem de outras esferas sociais. Nesse sentido, todo

gênero literário só poderia ser estudado a partir da função que desempenha no âmbito de

um sistema maior. “A existência de um fato como fato literário depende de sua qualidade

diferencial (isto é, de sua correlação seja com a série literária, seja com uma série

extraliterária), em outros termos, de sua função” (Tynianov 1978, p.109). Com esta

premissa, toda tentativa de definição de gênero se encontra vinculada à função dos

elementos que constituem um texto sob a determinação de um conjunto de séries com as

quais dialoga.

Jakobson (1978) reafirma os mesmo postulados, demonstrando que os textos

devem ser pensados como um sistema dinâmico e dialético. Tal perspectiva prevê formas

“dominantes”14 que orientam o modo de produção de escrita, sem descartar outras

manifestações de linguagem que se encontram à margem. Desta maneira, em cada período

histórico existe uma dominante que atua como instância reguladora do processo discursivo

dos textos literários que circulam socialmente.

14 Jakobson, no texto “O dominante”, afirma que em cada período literário uma forma de trabalho poético instala-se como parâmetro do fazer artístico. Na Renascença, o critério estético dominante era guiado pelas artes visuais, já no Romantismo a poesia direcionava seus olhos para a música; a estrutura dos poemas obedecia a uma estrutura melódica. Já na estética realista, o dominante na poesia foi a arte verbal, fazendo com que os valores poéticos se voltassem para a articulação da palavra em diversos níveis do discurso. Podemos notar que houve uma variação do dominante, também, nas tiras em quadrinhos, visto que no início do século XX vigoraram as sátiras e o pastelão. Já nos anos 1930 a 1950 prevaleceram as tiras de aventura, e a partir dos anos 1960, a valorização do humor reflexivo com enfoque nas atividades enunciativas de efeito risível.

Page 45: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

69

O redimensionamento da noção de gênero e estilo na esfera cotidiana

A noção de gênero ganha uma nova configuração com os estudos de Mikhail

Bakhtin, quando este conclui que as diferentes manifestações da linguagem nas interações

sociais assumem formas enunciativas relativamente estáveis. Ou seja, em toda situação

comunicativa, oral ou escrita, existe um modo de organização verbal, socialmente

constituído, que consagra um repertório de estruturas enunciativas que orienta o falante no

uso da língua. Nesse sentido, a definição de gênero não se restringe, somente, às atividades

literárias, mas corresponde a todo sistema regulador de produção discursiva, sedimentado

em uma sociedade, com a finalidade de produzir um determinado efeito sobre o

interlocutor. Bakhtin, então, faz uma série de críticas aos antigos estudos em torno da

diversidade textual:

Estudaram-se, mais do que tudo, os gêneros literários. Mas estes, tanto na Antiguidade como na época contemporânea, sempre foram estudados pelo ângulo artístico- literário de sua especificidade, das distinções diferenciais intergenéricas (nos limites da literatura), e não enquanto tipos particulares de enunciados que se diferenciam de outros tipos de enunciados, com os quais, contudo têm em comum a natureza verbal (lingüística). O problema de lingüística geral colocado pelo enunciado, e também pelos diferentes tipos de enunciados, quase nunca foi levado em conta. Estudaram-se também – a começar pelos da Antigüidade – os gêneros retóricos (e as épocas posteriores não acrescentaram nada de relevante à teoria antiga). Então dava-se pelo menos maior atenção à natureza verbal do enunciado, a seus princípios constitutivos tais como: a relação com o ouvinte e a influência deste sobre o enunciado, a conclusão verbal peculiar ao enunciado (diferente da conclusão do pensamento), etc. A especificidade dos gêneros retóricos (jurídicos, políticos) encobria a natureza lingüística do enunciado (BAKHTIN, 1992 p.280).

Page 46: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

70

Bakhtin ainda critica os estudos sobre o gênero do discurso cotidiano com base na

escola saussuriana, promovidos pela vertente Behaviorista, presa a estruturas verbais fora

do contexto de uso da língua. Para ele, tais pesquisas não apresentavam uma definição

satisfatória sobre a natureza lingüística dos enunciados. Sendo assim, Bakhtin investiga os

processos comunicacionais e conclui que a natureza dos enunciados se encontra nas

interações sociais e na relação entre os gêneros primários e gêneros secundários 15. A

natureza dos gêneros primários decorre da produção de enunciados concretos em dada

situação de comunicação, seguida de escolha lexical, composição de enunciados e projeção

de individualidade do locutor com traços regulares. Nesse sentido, todo falante pode agir

criativamente ou assumir um estilo mais controlado de acordo com a situação discursiva.

Nesta perspectiva, a noção de gênero está vinculada à noção de estilo lingüístico, visto que

toda variação do gênero envolve a circunstância, posição social do falante e o tipo de

relacionamento entre os interlocutores, ocasionando assim um discurso (com um estilo)

mais espontâneo ou mais padronizado. Bakhtin então difere o estudo estilístico de sua

abordagem com o da visão tradicional.

O estilo entra como elemento na unidade de gênero de um enunciado. Isso não equivale a dizer, claro, que o estilo lingüístico não pode ser objeto de um estudo específico, especializado. Porém, para ser mais correto e produtivo, este estudo sempre deve partir do fato de que os estilos da língua pertencem por natureza ao gênero e deve basear-se no estudo prévio em sua diversidade (BAKHTIN, 1992, p.284).

O estudo do estilo dos enunciados deve levar em conta as diferenças e a inter-

relação entre o gênero primário e o gênero secundário no qual os enunciados estão

incorporados. Enquanto os gêneros primários se expressam de forma espontânea tanto no

universo íntimo (cartas, diários) como nas interações sociais imediatas, constituídas pela

“linguagem das reuniões sociais, dos círculos de linguagem familiar cotidiana, linguagem

sociopolítica, filosófica, etc.”, (Bakhtin, 1992, p.285) os gêneros secundários aparecem em

circunstâncias comunicativas mais complexas, sob a mediação, principalmente, do discurso

15 “A inter-relação entre os gêneros primários e secundários de um lado, o processo histórico de formação dos gêneros secundários de outro, eis o que esclarece a natureza do enunciado e, acima de tudo, o difícil problema entre língua, ideologias e visões de mundo” (BAKHTIN, 1992, p.282).

Page 47: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

71

escrito (da literatura, da ciência, da filosofia e da política). Além disso, há gêneros

marcados por maior subjetividade do autor na produção dos enunciados, enquanto outros

devem obedecer a um construto mais padronizado como é o caso dos formulários e dos

documentos oficiais.

Verificamos que as piadas, os ditados populares e as adivinhas que se encontram no

gênero primário ganham uma nova configuração nos gêneros secundários (o teatro, o

romance, o discurso científico, os quadrinhos). Dessa forma, um chiste realizado em uma

conversa cotidiana, ao ser incorporado em um gênero secundário como o das tiras em

quadrinhos, extrai e acrescenta novos elementos responsáveis por sua composição

estilística. Agora o chiste recebe tratamento focalizado, em que um conjunto de estratégias

elaboradas pelo autor, instância situada fora da produção material do texto, tem o objetivo

de tornar engraçada uma fala ou a ação de um personagem.

Enquanto o chiste na oralidade é executado de maneira espontânea em determinado

momento da conversa, nas tiras o autor estabelece um recorte, considerando-o como um

enunciado em si, na relação com outros enunciados16. Tal perspectiva modifica, assim, a

relação dos enunciados recebidos na esfera comunicativa oral e na dimensão dos

quadrinhos (gênero secundário). Existe aí um trabalho do quadrinhista apropriar-se de

segmentos do gênero primário para projetar diálogos risíveis. Nesse sentido, as

formulações chistosas deixam de se instalar em uma es fera privada para desempenhar outro

papel na instância pública. Estamos abordando, então, a encenação do chiste e não mais a

consumação do chiste sob a esfera íntima de comunicação. Cabe aqui entender os

condicionantes de sua formulação e o papel do autor no processo de arregimentação e

promoção de um estilo.

16 Se no dia-dia o chiste é realizado entre os agentes que interagem em uma situação concreta de comunicação na esfera íntima, correndo o risco de se tornar um recalque, caso não seja bem sucedido, os chistes nas tiras em quadrinhos, por sua vez, são configurados em outro nível de comunicação, ocupando uma função interacional distinta. O insucesso de uma encenação de um chiste não pode ser conferido pelos agentes que os produz, visto que são seres ficcionais, portanto na relação chiste encenado-leitor a questão do recalque se encontra fora de cogitação.

Page 48: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

72

De acordo com Bakhtin (1992), podemos observar que os gêneros, da mesma forma

que a língua, são determinados por duas forças opostas: centrípeta e centrífuga. A primeira

voltada para a regulação, unidade e permanência de formas enunciativas de acordo com os

propósitos interacionais. Seus princípios atuam sobre os usos regulares dos signos,

fornecendo parâmetros de comunicação, mais ou menos estabilizados. Já a força centrífuga

diz respeito aos condicionamentos histórico- ideológicos que mobilizam e reconfiguram o

modo de produção de significação de um dado gênero. Muitos gêneros podem passar por

profundas transformações, ganhando novas configurações e uma nova identidade. Neste

sentido, existem princípios heterogêneos que regem a forma de organização e renovação

dos gêneros. Uma das formas marcantes de transformação de um gênero é o estilo que um

determinado autor pode imprimir no processo de composição de um texto. Por isso,

consideramos, como Bakhtin, que uma das maneiras de compreender os gêneros

discursivos é nos remetermos ao estudo da dinâmica concreta dos enunciados, levando em

conta os seguintes princípios na esfera do estilo, resumidos por Souza (1999 p. 113):

a) estilo é indissociavelmente vinculado a unidades temáticas determinadas

e, o que é particularmente importante, a unidades composicionais: tipo de

estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o locutor e

os outros parceiros da comunicação verbal;

b) estilo entra como elemento na unidade de gênero de um enunciado;

c) o enunciado, seu estilo e sua composição são determinados pelo objeto do

sentido e pela expressividade, ou seja, pela relação valorativa que o

locutor estabelece com o enunciado;

d) uma análise estilística que queira englobar todos os aspectos do estilo

deve obrigatoriamente analisar o todo do enunciado e, obrigatoriamente,

analisá- la dentro da cadeia da comunicação verbal de que o enunciado é

apenas um elo inalienável ( 1997, p.113).

Page 49: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

73

Gênero do discurso, tipologia e gênero textual

O que nos parece interessante discutir nesta secção é a dificuldade de enquadrar as

tiras de humor em uma tipologia narrativa, em que se observam, simplesmente, as

transformações ocorridas na passagem de um quadrinho para outro. O estudo do gênero tira

humor apresenta uma série de aspectos, em sua forma de funcionamento discursivo, que

torna difícil submetê-lo a descrições tipológicas que apreciem somente a organização dos

acontecimentos. Pretendemos reconsiderar alguns aspectos relacionados ao estudo das tiras

em quadrinhos para além das tipologias, retomando as questões enunciativas que ajudem a

caracterizar a noção de gênero do discurso proposta por Bakhtin. Sendo assim, retomamos

as questões relacionadas aos efeitos que os enunciados produzem em uma instância

discursiva. Para alcançarmos esse objetivo, pretendemos fazer algumas distinções entre a

noção de gênero textual filiado à noção de tipologia textual e a idéia de gênero do discurso

apoiada na teoria da enunciação. Nesse sentido, faremos uma breve retrospectiva dos

estudos de gênero textual, observando avanços que eles propiciaram na caracterização do

gênero do discurso, como também, pontos críticos no que se refere ao modo de analisar as

tiras em quadrinhos.

A partir dos anos 1970 a noção de gênero de discurso desenvolvida por Bakhtin

ganhou novas abordagens, enfocando outros critérios e finalidades para a sua determinação.

Novas terminologias surgem para caracterizar os textos que circulam socialmente: unidades

seqüenciais, tipologia textual e gênero textual. Nesse novo período prevalecem os estudos

apoiados na Lingüística Textual, na Psicolingüística e posteriormente na visão

sociointeracionista com organização de tipologias voltadas para o processo ensino -

aprendizagem.

Page 50: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

74

A dificuldade de delimitar as fronteiras móveis dos gêneros do discurso, devido à

sua heterogeneidade e ao número infinito de gêneros, abre campo para novas discussões

sobre a identidade dos textos regidos por parâmetros (cognitivo, lingüístico e

sociointeracionista). Partindo do princípio de que os textos se constituem de estruturas

relativamente estáveis, surge um grupo de investigações que procura caracterizar a

identidade dos textos partindo da análise dos segmentos lingüísticos (produto da

linguagem) que os compõem. Adam (1985, 1987) e Werlich (1975) procuram identificar

estruturas homogêneas de seqüencialidades que estão presentes no diversos gêneros de

discurso. Werlich (1973, apud Marcuschi 2002) identifica-as em segmentos como “Os

passageiros aterrisaram em Nova York no meio da noite”. Nesta seqüência haveria uma

base narrativa justificada pelo verbo no pretérito, indicações circunstanciais de tempo e

lugar com realização de uma ação. Tais estruturas verbais determinariam um conjunto

mínimo de tipologias no qual os textos se enquadrariam. Coutinho (2003), assinalando a

retrospectiva dos estudos tipológicos de Petitjean, apresenta o seguinte quadro:

Classificação proposta em Werlich 1975 (segundo Petitjean, 1989:97)

Tipo Marcas lingüísticas de superfície Descritivo Ligado à percepção no espaço Acumulação de imperfeitos Narrativo Ligado à percepção no tempo Ocorrência de passé simple Expositivo Ligado à análise e síntese de representações

conceituais. Acumulação de conectores lógicos.

Argumentativo Ligado ao ato de julgar e à tomada de posição. Acumulação de conectores lógicos.

Instrutivo Ligado à previsão de comportamento(s) futuro(s).

Densidade de imperfeitos e de verbos de ação no infinitivo.

Classificação proposta em ADAM 1985, 1987 (segundo PETITJAN 1998:98) Estruturas seqüenciais de base

Seqüencialidade narrativa Romance, novela, fait divers, publicidade, narrativa... Seqüencialidade injuntiva-instrucional Guia de montagem, instruções, regulamentos, guia de

itinerário, boletim metereológico... Seqüencialidade descritiva Descrição (no interior da narrativa), publicidade, guia

turístico... Seqüencialidade argumentativa Editorial, publicidade, texto de tese...

Seqüencialidade explicativa –exposit iva Página de um manual, artigo de vulgarização, artigo de informação...

Seqüencialidade dialogal-conversacional Conversa telefônica, entrevista, diálogo de vulgarização, artigo de informação...

Seqüencialidade poética-autotélica Poema, prosa poética, slogans publicitários ou políticos...

(COUTINHO 2003, p.61).

Page 51: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

75

Os estudos de Jean Michel Adam (1985) deram contribuições significativas sobre as

formas lingüísticas recorrentes responsáveis pela caracterização dos textos empíricos. Para

ele, os textos são compostos por unidades seqüenciais que apresentam autonomia relativa

diante de sua estrutura global, definindo, assim, a sua identidade. Os tipos textuais

correspondem a uma espécie de protótipo, modelos abstratos, que o usuário de uma língua

opera para organizar proposições, preservando uma estrutura hierárquica dos enunciados.

Dos sete tipos textuais, apresentados em sua pesquisa inicial, ele reduz o número para

cinco: narrativo, descritivo, argumentativo, explicativo e dialogal. Adam (1992) vai

redefinindo, aos poucos, a noção de tipologia textual como uma estrutura composta de

seqüências, que podem se configurar em uma base homogênea, ou se articular com outras

bases, constituindo-se de forma heterogênea. Nesse sentido, observa-se que em um texto

narrativo, pode haver seqüências descritivas ou argumentativas no interior de sua

formulação.

Compartilhando de princípios semelhantes, Marcuschi defende a noção de tipo textual

como modalidades discursivas ou seqüências textuais de natureza lingüística, determinada

por aspectos sintáticos, lexicais, verbais e estilísticos que atuam no âmbito estrutural do texto.

Tais seqüências correspondem a um conjunto finito de fo rmas cristalizadas responsáveis pela

composição do texto. Marcuschi (2002) enfatiza a importância do critério lingüístico de

seqüenciação para melhor compreensão dos gêneros textuais, tomando como motivo, as

questões didáticas que aí estão envolvidas.

Não é difícil tomar os gêneros textuais e analisá-los com esses critérios, identificando-lhes as seqüências. Para o caso do ensino, pode-se chamar a atenção da dificuldade que existe na organização das seqüências tipológicas de base, já que elas não podem ser justapostas. Os alunos apresentam dificuldades precisamente nesses pontos e não conseguem realizar as relações entre as seqüências. E os diversos gêneros seqüenciam bases tipológicas diversas. (MARCUSCHI, 2002, p.29).

Se por um lado, os estudos das tipologias de Adam esclarecem recorrências

lingüísticas responsáveis pela feição textual e pela formação das macroproposições, por

outro lado, as investigações sobre as unidades seqüenciais não dão conta de outras

Page 52: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

76

questões condizentes com a natureza social da linguagem no processo interativo. Bastos

(1998), ao retomar os estudos sociolingüísticos de Labov e Waletzky, sintetiza como as

questões formais e funcionais interagem na formação da narrativa oral na pesquisa destes

dois autores. Do ponto de vista estrutural, as narrativas são organizadas por seis funções

responsáveis pela ordem, progressão e unidade do enunciado: resumo, orientação,

complicação, resolução, avaliação e coda17. Além dos condicionamentos formais, existem

no ato de contar histórias processos interlocutivos, com funções comunicativas, que

medeiam a relação do narrador com o ouvinte no discurso narrativo oral.

Ao estudarem narrativas orais, Labov e Waletzky definiram esse tipo de texto, informalmente, como um “método de recapitular a experiência passada, através da correspondência de uma seqüência verbal de cláusulas a uma seqüência de eventos que realmente ocorreram”. Essa recapitulação deve respeitar a ordem de acontecimentos originais’. Segundo Labov e Waletzky, ‘a narrativa se define como entidade formal e funcional. Formal, na medida em que se identifica como discurso constituído à base de padrões recorrentes, característicos, discriminados desde o nível da oração, passando por unidades maiores, até o nível da narrativa simples completa. Funcional, na medida em que esses padrões são identificados a partir das funções que o discurso narrativo cumpre na situação de comunicação: uma ‘função referencial’, uma vez que uma de suas finalidades é recapitular experiências passadas, com a particularidade de que a seqüência das orações narrativas se organiza de maneira semelhante (mimética) à seqüência temporal dos acontecimentos vividos pelo personagem-narrador, e uma ‘função avaliativa’, desde que, normalmente, o relato da experiência passada reve la o empenho pessoal do narrador no sentido de valorizar os fatos narrados de forma a acentuar o seu caráter ‘narratável’. (Explicando melhor: a função avaliativa da narrativa tem a ver com o interesse pessoal do narrador em justificar, implicitamente, a própria ocorrência de seu discurso narrativo, de corresponder, enfim, à expectativa que ele próprio criou ou supõe ter criado em seu interlocutor de que ocorreria um relato de uma experiência interessante. Para tanto procura realçar determinados aspectos dos narrados, lançando mão de recursos variados.) (BAST0S, 1998 p.23/24).

17 Para os pesquisadores, na estrutura das narrativas pode ocorrer a eliminação de uma das funções, sendo indispensável a efetivação da complicação, e da resolução( responsável pelo desenlace dos acontecimentos, constituindo uma sanção e um estado final). Já a coda constitui-se de um comentário sobre os acontecimentos transpostos para o tempo presente.

Page 53: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

77

Notamos neste estudo a descrição de um narrador que projeta efeitos sobre o seu

interlocutor a partir da seleção de alguns recursos (exposição de ações e enunciados

atraentes). Desta maneira, Bastos, ao retomar a pesquisa de Labov e Waletzky, abre uma

perspectiva para compreender o funcionamento discursivo da narrativa em seu aspecto

formal e funcional sob um viés sociocomunicativo. Contudo, tal perspectiva não se voltou

para a diversidade textual e as formas de interação de textos entre si na formulação de

discursos. Visando a um estudo que integre a composição relacionada aos usos sociais,

Bronckart (1999) afirma que os textos são produtos das atividades humanas articulados a

partir das necessidades dos sujeitos sociais, determinados pelas condições de seu contexto

histórico. Nesse sentido, as formas textuais estão imbricadas com formas discursivas. Tal

constatação leva Bronckart18 a estabelecer a relação entre texto e gênero da seguinte forma:

Chamamos de texto toda unidade de produção de linguagem situada, acabada e auto-suficiente (do ponto de vista da ação ou da comunicação). Na medida em que todo texto se inscreve, necessariamente, em um conjunto de textos ou em um gênero, adotamos a expressão gênero de texto em vez de gênero de discurso.(...) Enquanto, devido à sua relação de interdependência com as atividades humanas, os gêneros são múltiplos, e até mesmo em número infinito, os segmentos que entram em sua composição (segmentos de relato, de argumentação, de diálogo, etc.) são em número finito, podendo, ao menos parcialmente, ser identificados por suas características lingüísticas específicas (BRONCKART, 1999, p. 75).

Partindo da premissa de que os textos se inscrevem em uma relação com outros textos

que exercem realização similar nas atividades humanas, os gêneros podem ser agrupados de

acordo com as funções que eles exercem no meio social. Essa perspectiva é adotada pelo

grupo de pesquisadores de Genebra, ISD (interacionismo sócio-discursivo)19, que tem como

18 Bronckart prefere designar os tipos textuais como tipos de discurso, visto que os diferentes segmentos que entram na composição de um gênero são produto de um trabalho de “semiotização ou colocação em forma discursiva”, o que leva os recursos da língua a se atualizarem. 19 “No interacionismo sócio-discursivo (ISD) tal como é proposto por Bronckart parte-se, primeiramente, do exame das relações que as ações de linguagem mantêm com os parâmetros do contexto social em que se inscrevem, a seguir das capacidades que as ações colocam em funcionamento e, sobretudo, das condições de construção dessas capacidades. Em relação às ações de linguagem e aos textos que concretizam o ISD propõe que primeiro se faça análise das ações semiotizadas (ações de linguagem) na sua relação com o mundo social e com a intertextualidade. A seguir, a análise da arquitetura interna dos textos e do papel que aí desempenham os

Page 54: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

78

principais colaboradores Jean-Paul Bronckart, Joaquim Dolz, Bernard Schneuwly. Estes

pesquisadores defendem os princípios epistemológicos defendidos por Vygotsky sobre os

processos de ensino -aprendizagem pela via das interações sociais. Segundo Schneuwly

(2005), os gêneros textuais correspondem a uma espécie de ferramenta psicológica que

permite as interações sociais. Os gêneros seriam o organizador global do tratamento do

conteúdo e das operações comunicativa e lingüística. A composição e o estilo dos textos

devem ser adaptados de acordo com o destinatário e a finalidade de seu uso. Tal ferramenta

corresponde a um artefato material ou simbólico que possibilita a ação do sujeito em

determinadas situações comunicativas. Schneuwly (2005) concebe o gênero, além de

ferramenta cognitiva, como um mega-instrumento:

Poderíamos aqui construir uma outra metáfora: considerar o gênero como um “mega- instrumento”, como uma configuração estabilizada de vários subsistemas semióticos (sobretudo lingüísticos, mas também paralingüísticos), permitindo agir eficazmente numa classe bem definida de situações de comunicação. Pode-se assim compará-lo ao mega- instrumento em que se constitui uma fábrica: conjunto articulado de instrumentos de produção que contribuem à produção de objetos de um certo tipo; este mega-instrumento está inserido num sistema complexo de mega-instrumentos que contribuem para a sobrevivência da sociedade (SCHNEUWLY, 2005, p.5).

Ao nosso ver a concepção de gênero defendida por Schneuwly (2005) retorna à

velha concepção de linguagem como instrumento semiótico de comunicação. Nesta

perspectiva prevalece a idéia de um agente que opera sobre a linguagem, escolhendo os

recursos mais adequados para efetivar uma ação discursiva no mundo social: narrar, expor,

descrever, argumentar e descrever. Os gêneros são vistos como grandes blocos, divididos

em graus de complexidade no que diz respeito ao desenvolvimento das capacidades de

linguagem voltadas para o uso dos textos como ferramentas sociais. O que está em jogo,

nesta abordagem, é o domínio de estruturas recorrentes nos diversos gêneros, deixando de

lado questões estilísticas presentes no funcionamento da linguagem no âmbito da

enunciação. Adotamos procedimentos similares aos de Bezerra (2005 p.39): “Assim,

elementos da língua. Enfim, que se analise a gênese e o funcionamento das operações (psicológicas e comportamentais) implicadas na produção dos textos e na apropriação dos gêneros textuais”. (Cristóvão e Nascimento, 2006 p.39).

Page 55: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

79

falarmos em tipos e gêneros textuais implica considerarmos a sua estrutura e uso; falarmos

em gênero discursivo implica considerarmos a interação entre interlocutores e a

enunciação”. Observamos que o termo gênero textual se encontra comprometido com

aspectos cognitivos, voltados para questões relativas ao processo de ensino-aprendizagem

em uma esfera instrumental, por isso em nosso estudo, retornamos à categoria de gênero

do discurso ou gênero discursivo.

Humor em quadros para além de uma tipologia narrativa

Na perspectiva de Bakhtin (1992) a questão do estilo ocupa papel de destaque no

estudo dos gêneros. Para tanto, este só pode ser observado a partir da materialização dos

enunciados em um horizonte enunciativo. O autor alerta para o fato de a unidade do gênero

não ser a frase nem a oração ou o parágrafo, mas sim o enunciado. Sendo assim, as

estruturas formais descontextualizadas não são as unidades que promovem a realização de

um gênero discursivo. Para refletir sobre o gênero ele propõe que se avalie o processo de

estilização tanto da língua quanto do modo de projeção dos enunciados por parte de quem o

produz, em conjunto com as condições de sua produção. Na busca de compreensão dos

fenômenos envolvidos na projeção dos enunciados, pelo menos, duas perspectivas apontam

para procedimentos de análise distintos: a dos gêneros do discurso e a dos gêneros textuais.

Como vimos, a proposta do gênero textual vê as questões estruturais como eixo

central na caracterização da identidade dos textos. Prevalece nos estudos de gêneros

textuais um enfoque tipológico que se detém à estrutura global do texto, ao

reconhecimento de traços lingüísticos e à vinculação instrumental que direciona a ação

cognitiva em um ato de interação social. Em uma perspectiva tipológica, o reconhecimento

de estruturas regulares na formatação e no modo de composição permite a identificação de

um gênero, como por exemplo: “Você conhece aquela do português?...”. Imediatamente, o

destinatário identifica a seqüência apresentada como início de uma piada com um

propósito humorístico.

Page 56: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

80

Já os estudos de gênero do discurso recorrem às questões de estilo voltadas para o

sujeito da enunciação e as condições em que um enunciado é formulado. Nesta última

perspectiva aprecia-se o funcionamento da linguagem voltado para a produção de efeitos

de sentidos entre interlocutores. Existe neste âmbito, uma base determinada pelas condições

históricas e intertextuais que apóiam a configuração dos textos.

Veremos que o aspecto dominante na linguagem das tiras de humor não é processo

narrativo como no gênero aventura. Observamos que as tiras de humor, de formulação

chistosa, desenvolvem aspectos enunciativos que rompem com o propósito narrativo. Nesse

sentido, não podemos rotula r as tiras de humor como um gênero correspondente à ordem do

narrar em decorrência da estrutura típica encontrada nas tiras de aventura, que têm o objetivo

de contar uma história. Em grande parte das tiras de humor não há preocupação em narrar

uma história, mas sim de estabelecer uma visão crítica sobre um fato, prevalecendo aí

aspectos críticos sem uma sucessão de fatos com transformação de um evento na vida dos

personagens. Será que podemos situar a tira de Quino, a seguir, no interior de uma tipologia

narrativa? Que traços me permitem classificá- la como uma narrativa?

CLUBE DA MAFALDA

(QUINO, 20/12/06).

Diremos que do ponto de vista formal não há nenhuma indicação para afirmarmos

que tira apresentada se trata de uma narrativa. A seqüência lingüística expressa pela

personagem Mafalda gera graça por se tratar de uma comparação inusitada entre sopa e

comunismo. Tal discurso é composto, não só pela estrutura do enunciado verbal, mas

também, pela própria imagem como a personagem faz a comparação. O olhar voltado para

Page 57: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

81

o horizonte e a postura de intelectual, em defesa de um postulado, faz com que Mafalda

ocupe uma posição discursiva distinta daquela que se espera de uma criança de seis anos.

Não se espera que um enunciador criança faça comparações entre sopa e comunismo.

Desse modo, as tiras de humor de caráter chistoso obedecem a princípios argumentativos

em que vigoram comentários irônicos20 ou posições discutíveis no plano da enunciação. Tal

modo enunciativo acaba por produzir ditos absurdos ou insustentáveis no plano

argumentativo, caso haja observação das condições em que é projetado determinado

enunciado.

HAGAR – Dik Browne

(BROWNE, 2005, p.26).

Nosso olhar sobre a tira que acabamos de ler não está atrelado a uma estrutura

narrativa, mas a exposição argumentativa de um personagem que não sustenta seu discurso,

gerando um efeito risível. A defesa do ponto de vista de Hagar, organizado pelo

quadrinhista, contrapõem-se ao conhecimento enciclopédico que afirma que o mundo é

redondo e com a própria maneira do personagem estabelecer o desfecho de sua defesa de

maneira duvidosa. O que prevalece neste discurso não é então o desenvolvimento de uma

narrativa, mas a constatação de um jogo argumentativo falho que provoca riso.

Acreditamos que para estudar os gêneros de humor de reflexão sobre a linguagem

torna-se necessário ir mais a fundo nas questões discursivas, levando em conta a esfera de

enunciação humorística e modo de organização dos enunciados no interior deste gênero

20 Ironia, nesta perspectiva, não se refere ao conceito tradicional de figura de linguagem que corresponde um dito contrário ao que se pretende afirmar em um enunciado. Ironia corresponde a um jogo de vozes, em que uma perspectiva enunciativa é colocada de maneira insustentável no discurso, repercutindo no assentamento de uma orientação argumentativa diferente daquela que o locutor profere no enunciado.

Page 58: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

82

específico. Para tanto, dividiremos nosso trabalho em duas partes. A primeira cuidará do

modo de funcionamento do discurso do humor em uma dimensão genérica, observando os

princípios semiótico-discursivos que levam os diversos gêneros humorísticos (piada,

parlenda, publicidade, tiras em quadrinhos) a provocar o riso. A essa esfera

denominaremos, como Marcuschi (2003), de domínio discursivo.

Entende-se aqui como domínio discursivo uma esfera de atividade humana, como lembrou Bakhtin (1979). Não é um princípio de classificação de textos e indica instâncias discursivas, tais como: discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso, discurso militar, discurso acadêmico etc. Não abrange um gênero em particular, mas dá origem a vários deles, constituindo práticas discursivas dentro das quais podemos identificar um conjunto de gêneros textuais que às vezes lhe são próprios ou específicos como práticas ou rotinas comunicativas institucionalizadas e instauradoras de relações de poder etc. (MARCUSCHI, 2003, p. 4/5).

Vale a pena ressaltar aqui, que a noção de domínio discursivo humorístico não

corresponde a uma função tipológica, mas a uma esfera de interação definida por um

conjunto de práticas sociais voltadas para um efeito risível. O domínio discursivo

corresponde ao campo em que determinados modos de formulações enunciativas são

recorrentes na produção de efeitos de sentidos no processo interacional. Percebemos, por

exemplo, no domínio discursivo religioso, a prevalência da ordem do sagrado com

exaltação a Deus, em busca de um efeito de purificação da alma; no domínio discursivo

político ocorre a defesa de direitos e deveres pela via de argumentos em favor de uma

comunidade, em um processo de disputa. Diferente dos dois arcabouços mencionados, no

domínio discursivo humorístico ocorre a ridicularização das condutas humanas por meio de

formulações enunciativas, dotadas de jogos de linguagens, configuradas por ambigüidades,

deformações, exageros e nonsense que promovem o efeito risível.

É na compreensão do trajeto do efeito risível que investigaremos os enunciados

irônicos, enunciados irreverentes, enunciados satíricos. Nosso caminho então, passa,

primeiramente, por maiores esclarecimentos sobre o domínio discursivo do humor, fazendo

algumas distinções entre as fronteiras do cômico e do humorístico, a verificar no próximo

capítulo. Já na última parte, cuidaremos dos processos enunciativos e os implícitos nas

Page 59: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

83

tiras, desenvolvendo investigações sobre as formulações risíveis presentes nas tiras de

Mafalda e Hagar sob a perspectiva teórica da Semântica Argumentativa e da Pragmática.

Page 60: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

O DOMÍNIO DISCURSIVO DO HUMOR

O fato de haver enunciados verbais ambivalentes vinculados à linguagem dos

quadrinhos não garante que os mesmos se constituam como uma atividade humorística.

Existe um trabalho estilístico de expor os enunciados de forma ambígua e teatral, em

conjunto com uma série de formulações de representação da conduta humana,

responsável por um efeito risível. Dizemos que o efeito de sentido produzido pelos

textos tem a ver com aspectos peculiares de articulação dos enunciados em conjunção

com as circunstâncias enunciativas. Ratificamos, assim, a afirmação de que cada gênero

do discurso detém um estilo próprio de projeção dos enunciados, como defendia

Bakhtin. Tal projeção, entretanto, está vinculada à esfera de produção do discurso,

remetendo-se ao propósito comunicativo, à maneira como os temas são abordados e ao

tipo de relação que os interlocutores exercem no processo interativo. Apesar de os

discursos serem heterogêneos, é possível perceber formas recorrentes que configuram

sua composição. O domínio discursivo 1, enquanto esfera responsável pelo modo de

elaboração do gênero, estabelece mecanismos que condicionam determinados efeitos de

sentidos em uma esfera de comunicação. Se no domínio discursivo acadêmico prevalece

o rigor formal para expor e defender uma idéia, no domínio religioso prevalece a

evocação do sagrado com a finalidade de se ligar a Deus, no domínio humorístico

prevalecem a ambigüidade e a subversão da ordem para gerar o riso.

O domínio discursivo em que as tiras de Hagar e Mafalda se encontram é o

humorístico. Existem, nesses textos, procedimentos específicos no manejo da

linguagem atribuído aos personagens cômicos que não correspondem propriamente a

outros domínios, como o religioso, o político, o jurídico, o acadêmico etc.

Eventualmente, a forma cômico-humorística pode se encontrar no interior do discurso

religioso, em pequenas adaptações de histórias bíblicas; no discurso político, panfletos

irônicos sobre os benefícios que um determinado candidato realizou para uma

comunidade; ou mesmo no discurso didático, com a demonstração de fatos sobre um

fenômeno físico-social por uma via espirituosa. Contudo, certificamos de que não é

suficiente determinar a noção de domínio discursivo a partir de comunidades

1 Marcuschi (2002) afirma que existe uma esfera em que não se encontram presentes nem o texto nem o discurso, mas aquilo que possibilita o surgimento dos gêneros, denominado por domínio discursivo.

Page 61: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

discursivas, visto que os princípios geradores dos textos de humor remetem a um

trabalho específico que promove efeitos risíveis no processo de interação com leitor,

ouvinte ou platéia. Este fator será determinante na identidade dos gêneros piada,

parlenda, propaganda publicitária, programa humorístico, cartum, charge, provérbio,

ditado popular, adivinha, tira em quadrinhos etc.

Para compreender o domínio discursivo em que as tiras de Quino e Browne se

encontram inscritas é preciso ir além da estrutura formal dos quadrinhos, visto que tais

elementos não são suficientes para depreender uma análise deste gênero. Isto, porque no

interior da linguagem dos quadrinhos encontramos as histórias de aventuras, as

narrativas de suspense, e até as séries pornográficas. Cabe então, refletir sobre que

fenômenos enunciativos fornecem um estatuto específico de tira de humor a um grupo

de quadrinhos. Por isso indagaremos sobre as condições que levam um determinado

gênero a se filiar ao domínio discursivo do humor. Que marcas textuais ou que forma de

composição podem certificar que um determinado texto é pertencente ao domínio do

humor? O que caracteriza um texto de humor? Qual o papel da comicidade na atividade

humorística?

Para respondermos a essas perguntas torna-se necessário aprofundarmos a noção

de humor e investigarmos que atividades são responsáveis pelo efeito risível no

discurso. Identificamos, em nosso estudo, dois processos que geram o efeito risível de

maneiras distintas. Trata-se do riso proveniente das atividades cômicas que explora

atitudes de subversão da ordem, promovendo a gargalhada da audiência, e do riso

decorrente das atividades humorísticas expressas de maneira mais introspectiva, em

vista de uma postura mais reflexiva sobre formulações implícitas no plano da linguagem

verbal e não-verbal. Em muitos momentos, os dois processos se combinam, erigindo a

prevalência de um dos dois sobre a produção do efeito risível. Parece importante, então,

detalharmos as especificidades do cômico e do humor como forma constitutiva do

domínio discursivo humorístico.

Page 62: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

O cômico e a carnavalização

O riso e o cômico são literalmente indispensáveis para o conhecimento do mundo e para apreensão da realidade plena. Sua positivação é clara: o nada ao qual o riso nos dá acesso encerra uma verdade infinita e profunda, em oposição ao mundo racional e finito da ordem estabelecida (ALBERTI,1999, p.26).

Segundo Bakhtin, a força das narrativas cômicas tem forte ligação com as

tradições vivenciadas na Antigüidade por meio da carnavalização2. A carnavalização

seria uma cosmovisão revitalizadora que tem como princípio o redimensionamento das

relações do homem com o mundo. Bakhtin buscou nos documentos e registros do

mundo ocidental, momentos de afrouxamento das fronteiras entre o sério e o cômico, o

oficial e o extra-oficial, o sublime e o escatológico em eventos culturais vivenciados no

período de transição entre a Idade Média e o Renascimento. Em sua perspectiva, este

período engendrou novas formas de realização do riso, possibilitando a fecundação de

novos gêneros discursivos, inclusive do romance.

De acordo com Bakhtin, o elo entre o sério e o cômico já existia desde os

primórdios da humanidade. Por meio de investigações do folclore de povos primitivos,

ele observou que os rituais sérios se coadunavam com os rituais que parodiavam os

mitos, os acontecimentos e os heróis que as comunidades cultuavam. O divino e o

profano conviviam sem maiores problemas, atuando de maneira íntegra na vida social

desses povos. Os romanos primitivos, por exemplo, tinham como hábito chorar e

ridicularizar o defunto em seus funerais, simultaneamente.

A prática do elogio e do escarnecimento fazia parte das cerimônias oficiais das

comunidades antigas. Todavia, o sério e o cômico passaram a ser dicotomizados com o

surgimento do regime de classes e de Estado. Com a divisão de classes se estabeleceu a

diferença de direitos entre os indivíduos na sociedade. Determinadas formas cômicas

deixam de ser autorizadas, só podendo ser executadas em situações extraordinárias. A

partir daí, se consolidou uma cultura oficial, delimitando as condições de realização do

2

Page 63: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

riso. O espaço da subversão, da gargalhada, da chacota tende a restringir-se aos

momentos festivos. A divisão do riso e do sério, da cultura popular e da cultura erudita

se intensificou através dos tempos, fazendo com que a comicidade fosse vista como

uma expressão menor, inclusive no campo da cultura letrada.

Foi na excentricidade das festas populares que o sagrado e o profano se

consubstanciaram na Antigüidade. Neste espaço, ocorreu o desbotamento da fronteira

entre o sério e o cômico, o fantástico e o real, projetando o mundo carnavalizado em

que tudo se manifestava de forma ambivalente. Na praça pública, havia a proclamação

da liberdade e a quebra da hierarquia de classes. A inversão de papéis era um jogo em

que se permitia fazer críticas de maneira lúdica e mordaz. O sujeito deixava de ser

alienado, ganhando voz para dizer o que pensava, por meio de gestos e de um

vocabulário que lhe convinha. Não se fazia distinção entre atores e platéia, sobretudo

porque todos ocupavam os dois papéis. Mesmo os espectadores mais passivos não

assistem ao carnaval impunemente, vivem as situações que são colocadas em jogo.

Diferente das narrativas épicas, difusoras da saga dos deuses e dos heróis

mitificados, o carnaval é uma festa profano-religiosa que proclama a visão de mundo e a

linguagem cotidiana do homem do povo. Muitas das celebrações são agradecimentos

aos deuses que proporcionaram boa colheita e fertilidade às terras cultivadas. Nos dias

de carnaval, homens e mulheres se embriagam, imitam bichos e fazem gestos obscenos

na praça pública. Dentre as festas mais importantes, Macedo (2000) ressalta:

As Saturnálias, como o próprio nome indica, eram oferecidas a Saturno, deus da fertilidade ao qual estava associado um reino de abundância. Na Antigüidade, por ocasião dos festejos, os escravos tornavam-se momentaneamente senhores dos seus amos, sendo-lhes permitido ser servidos por aqueles e dirigir-lhes as mais contundentes críticas, em meio a muita comida e muita bebida (Finley, 1989, p.112-116). Em fevereiro, comemorava-se ainda as Spurcalia (dia do porco, Spurcus) e as Lupercalia , dedicadas ao deus Faunus ou Lupercus, protetor dos rebanhos, em cujo ritual eram sacrificadas cabras, seguindo o cortejo propiciatório de jovens “sacerdotes lobos” visando à fecundidade das mulheres (MACEDO, 2000, p.229).

Nestas festas, os lugares sociais eram dessacralizados. Quem era rei assumia o

papel de escravo e vice-versa. A inversão de papéis sociais permitia que muitas

Page 64: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

verdades fossem ditas em tom de brincadeira. Nesse contexto, não há um único alvo de

escarnecimento; todos os atores sociais são objetos de chacotas quando se encontram no

cenário carnavalesco. Por isto, dizemos que o carnaval assume uma perspectiva

dialógica e polifônica, sua forma de expressão não visa emocionar, mas provocar o riso,

representando ações ridículas do homem. As festas profanas na Idade Média, toleradas

pela Igreja, tiveram um papel preponderante na formação de novos textos

correspondentes ao espírito da carnavalização.

[...] o papel da paródia na Idade Média foi vital, pois ela preparou a nova consciência lingüística e literária, preparou o grande romance da Renascença. (...) A Idade Média, com maiores ou menores restrições, respeitava a liberdade do gorro burlesco e concedia ao riso e à palavra cômica direitos bastante amplos. Esta liberdade limitava-se às festas e às recreações escolares. O riso medieval era um riso de festa. Eram famosas a “festa dos bobos” e a “festa do burro”, de caráter paródico-travestizante, que eram celebradas pelo baixo clero nas próprias igrejas. Muito característico era o risus paschalis, o riso de Páscoa. Durante o tempo de Páscoa, a tradição permitia o riso nos santuários... (BAKHTIN, 1993, p. 387).

Investigações sobre a realização das formas cômicas também foram revisitadas

por Bergson sob um outro enfoque. Para este autor, o riso, além de ser um fenômeno

social, é um fenômeno psicológico. O sujeito ri de situações constrangedoras com as

quais não se envolve afetivamente. O cômico é provocado pela observação das falhas

humanas em uma perspectiva corretiva, diante dos olhos do observador. O cômico

estaria ligado à capacidade de explicitar e identificar o ridículo humano projetado no

exagero caricaturado, na encenação do automatismo extremado, nos gestos de

transgressões e nos clichês desgastados. Seguindo os postulados de Aristóteles, Bergson

acredita que a comédia pinta os homens piores dos que eles são, ressaltando, assim, os

seus defeitos físicos e morais. A título de exemplificação, vejamos uma caricatura de

Dercy Gonçalves:

Page 65: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

Caricatura de Darcy Gonçalves realizada por Marcos Quinho de Souza (24º Salão Internacional de Humor de Piracicaba, 1977).

Vemos que o cômico explora o exagero para explicitar o ridículo expresso na

figura humana. Assumindo a mesma perspectiva, Propp (1992) afirma que existem três

formas de exagero que produzem o efeito cômico: a caricatura, a hipérbole e o

grotesco. a) A caricatura teria a função de captar a falha imperceptível e ressaltar um

pormenor que demarca um alvo de crítica. Apesar disto, alguns pontos positivos sobre a

imagem construída são resguardados. b) A hipérbole é uma variedade da caricatura que

ressalta exageradamente os aspectos negativos, não aproveitando nenhum aspecto

positivo. Geralmente, ela é utilizada como pilhéria com objetivos satíricos. c) O

grotesco consiste na forma mais extremada de exagero; ele aumenta o alvo do relato em

uma proporção monstruosa. O grotesco explora construções artificiais e fantásticas,

ocultando os princípios espirituais para produzir o distanciamento da realidade imediata.

Tal elaboração é a forma preferida de comicidade manifestada pela cultura popular.

Page 66: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

Um ponto essencial para caracterizar um personagem cômico é a maneira como

o quadrinhista retrata fisicamente o personagem. Geralmente, o corpo é desproporcional

e com traços fisionômicos pouco detalhados. O ilustrador Michael Paulus costuma

brincar com celebridades ficcionais do mundo dos quadrinhos. Suas imagens

demonstram como seria, hipoteticamente, a estrutura óssea dos personagens, se eles

fossem seres de carne e osso. Dessa maneira, é possível perceber como os personagens

obedecem, do ponto de vista físico, a uma estrutura antianatômica.

(PAULUS, 01/ 05/2006).

Page 67: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

Elementos de comicidade

De acordo com Propp, os caracteres cômicos não existem por si só, eles têm

relação com as atividades do homem no mundo social. Mesmo quando estamos rindo de

um macaco em um zoológico, na verdade, não rimos do próprio animal, mas dos gestos

que conotam determinados significados na coletividade humana. Em toda sociedade há

um conjunto de estereótipos discriminados pela evidência de automatismos e vícios na

maneira de proceder, como vemos na tira a seguir.

(QUINO, 2000, p.154).

Bergson afirma que o riso é sempre grupal, sendo determinado por um conjunto

de atitudes que são execradas e colocadas como desvios de acordo com os padrões

sociais. A identificação de uma atitude cômica ou humorística aponta para o

reconhecimento de gestos sociais que rompem com uma conduta ideal. Esse desvio é

manifestado pelo comportamento dos seres que agem de maneira involuntária, sem se

darem conta das ações que cometem. Na maioria das vezes, a sua ridicularização

decorre de uma parte do corpo enrijecida, de um tropeço em algum obstáculo ou

realização de um quiproquó 3. Bergson explica que o cômico é provocado pela

inadaptação dos sujeitos a determinadas regras sociais, sendo o riso uma medida 3 De acordo com Kupstas (1992, p.61), qüiproquó refere-se ao humor de objeto e de engano. Geralmente o teatro cômico utiliza-se de um conjunto de ações que giram em torno de um objeto que todos desejam. Para conquistar esse objeto, alguns personagens mentem, gerando, assim, uma série de peripécias. “... a origem da palavra ‘qüiproquó’ confirma sua antigüidade: quid pro quo é latim, significando ‘isto por aquilo, uma coisa pela outra’. É a situação cômica baseada em equívoco, em troca”.

Page 68: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

corretiva. Compartilhando dos mesmos pressupostos, Saliba (2002) apresenta o

posicionamento do autor de teatro Pirandello sobre o cômico em proximidade com a

atividade humorística.

Para Pirandello o cômico nasce de uma percepção do contrário, como no famoso exemplo, de uma velha já decrépita que se cobre de maquiagem, veste-se como uma moça e pinta os cabelos. Ao perceber que aquela senhora velha é o oposto do que uma respeitável velha senhora deveria ser, produz-se o riso, que nasce da ruptura das expectativas, mas, sobretudo do sentimento de superioridade. A percepção do contrário, porém, pode transformar-se num “sentimento do contrário” – quando aquele que ri procura entender as razões pelas quais a velha se mascara na ilusão de reconquistar a juventude perdida. Neste passo, a velha da anedota não está mais distante do sujeito que percebe, porque este último pensa que também poderia estar no lugar da velha – seu riso se mistura com a compreensão piedosa e se transforma num sorriso. É aqui que Pirandello começa a diferenciar o cômico do humorístico. Para passar da atitude cômica para a atitude humorística é preciso renunciar ao distanciamento e à superioridade (SALIBA, 2002, p.24).

No cômico não se pode levar em conta o estado de alma de quem estamos rindo,

já no humor há um processo de reconhecimento do ridículo em nós mesmos. Enquanto

no cômico, a estratégia discursiva recorre ao apagamento daquilo que nos solidariza

com o outro, enfocando o ridículo humano, no humor há um processo de renúncia ao

sentimento de superioridade em relação ao sujeito de quem rimos. Aquele que ri

percebe que as falhas localizadas no outro estão presentes também em seu próprio

comportamento. Neste sentido, cômico e humor estabelecem um paradoxo em que se

evidencia uma perspectiva corretiva que isola a sensibilidade e exalta a criticidade ao

mesmo tempo em que gera uma auto-reflexão sobre as atitudes humanas.

Sobre o cômico, especificamente, o caráter humano é configurado de maneira

estereotipada, criando assim: o pão-duro, o amante, a submissa, o deslumbrado, o

obsessivo etc. O modo como estes personagens reagem às situações desencadeia uma

série de atitudes extremadas, em defesa de um temperamento. Neste sentido, o cômico

Page 69: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

gera uma visão ridicularizante que não encontra lastro de identificação afetiva com o

público, visto que os personagens não expressam as complexidades humanas, no que se

refere à gama de sentimentos voltados para os conflitos existenciais. Kupstas (1992), ao

descrever o personagem que nos leva a rir, distingue duas formas de manifestação

cômica: o “tipo” e a “caricatura”:

Tipo é o personagem com características definidas, que representa um grupo social – o avarento, a viúva. O exagero do tipo é o estereótipo, um personagem simples, mas sempre associado a algum comportamento ou imagem. Por exemplo, um desenho de homem com cartola nos induz a defini-lo como industrial ou capitalista. Já caricatura é o personagem com poucas e negativas características, que são realçadas para provocar o grotesco e o riso. Quando Chico Anísio, por exemplo, cria um jogador de futebol de pernas tortas, dentes falhos e falando errado, ele está caricaturizando uma espécie de jogador (KUPSTAS, 1992, p.46).

A distinção de tipo e caricatura nos ajuda a entender os elementos que permitem

acentuar defeitos dos sujeitos sociais. O leitor ri do tipo social, encarnado pelo

personagem, identifica falhas provenientes dos vícios gerados pelas exigências

institucionais, podendo se aproximar da atividade humorística. Seguindo este raciocínio,

o sujeito ri, indiretamente, daquilo que as instituições cobram dos homens. A imposição

de determinados padrões de comportamento acaba por fazer o ser humano deixar

sucumbir a sua individualidade. Exemplo marcante sobre o que acabamos de comentar

é o filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin. Uma das cenas mais interessante do

filme é a experiência de uma máquina que reduz o tempo de almoço em quinze minutos.

A graça decorre da inadequação do movimento da máquina ao ritmo natural de quem

faz a refeição.

(Imagem do filme Tempos Modernos)

Page 70: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

No decorrer do filme, Carlitos, personagem central da trama, acaba por

apresentar comportamentos estranhos dentro e fora da indústria. Com movimentos

automatizados e tiques nervosos, o personagem repete o movimento de apertar parafuso

na esteira em outras circunstâncias não cabíveis, como o de apertar a chave de rosca nos

botões do vestido de uma mulher. Chaplin estabelece, assim, uma crítica social a partir

das evidências do automatismo corporal e dos equívocos cometidos pelo operário

estressado pelo excesso de trabalho. Dessa forma, o aspecto humorístico atua em

fronteira com o cômico para refletir sobre as conseqüências das exigências do mundo

capitalista.

A composição da cena cômica

Já dissemos que o cômico explora aspectos ridicularizantes que ajudam a

configurar personagens a fim de provocar um efeito risível. Paralelamente a isto, é

possível perceber que a própria estrutura de um evento cômico decorre de uma situação

ambivalente que provoca a disjunção de dois fatos. Neste exercício, o texto rompe com

um determinado tópico discursivo que seguia uma dada direção argumentativa para

enfatizar outro aspecto, provocando uma sensação de fato absurdo. Em um artigo sobre

a realização do cômico em historietas publicadas no France-soir, Morin (1973) observa

este procedimento uniforme em uma seqüência de 180 piadas. Ela afirma que na

estrutura da narrativa cômica há três funções que se organizam na seguinte ordem:

a) função de normalização: no primeiro momento ocorre a apresentação dos

personagens e as circunstâncias em uma situação regular.

b) função de deflagração: apresentação de um problema a ser solucionado.

c) função interlocutora de disjunção: resolução do problema de forma cômica,

por meio da inversão de expectativa no plano discursivo.

Desta maneira, Morin (1973) demonstra que as piadas obedeceriam à sucessão

de funções a seguir:

Page 71: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

FUNÇÃO NORMALIZADORA

FUNÇÃO LOCUTORA DE DEFLAGRAÇÃO

FUNÇÃO INTERLOCUTORA DE

DISJUNÇÃO Mulher dirige o carro com o marido ao lado.

Mulher: Ah, esses pedestres!

O marido: De acordo querida, mas desça da calçada.

O guarda do Zôo chora o elefante morto.

O dono: Console-se, será substituído.

O guarda: Vê-se bem que não é o senhor que vai enterrá- lo.

Seguindo o mesmo esquema de organização de procedimentos cômicos proposto

por Morin, as funções se repetem também nas tiras em quadrinhos.

(QUINO, 2000, p.298).

(a) normatização: Brincando de boneca, Susanita idealiza uma vida familiar

centrada no filho (até a terceira vinheta).

(b) – deflagração: O filho, depois de formado, apresenta uma nova namorada pela

qual está apaixonado.

(c) – função interlocutora de disjunção: Susanita descarrega a sua raiva em um

boneco que representa seu filho, por motivo de uma suposta decepção na vida futura.

Page 72: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

HAGAR – Dik Browne

(BROWNE, 1996, p.38).

(a) normatização: Helga sonha com um castelo em que, previsivelmente, deve ser

uma princesa ou rainha.

(b) deflagração: Helga se vê no interior do castelo limpando uma imensa escadaria.

(c) função interlocutora de disjunção: Helga manipula seu sonho e projeta uma

casinha bem pequena onde terá menos trabalho e será mais feliz.

TIRAS DE HAGAR

(BROWNE, 20/12/06).

(a) normatização: venda de um cão de guarda com aspecto amedrontador por um

bom preço.

(b) deflagração: questionamento sobre o motivo do preço barato.

(c) função interlocutora de disjunção: o cachorro mia no lugar de latir.

Page 73: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

Além dos eventos que promovem a quebra de expectativa por meio de atitudes

inusitadas dos sujeitos cômicos, o discurso verbal também pode exprimir comicidade.

Ele pode se configurar apoiado nos palavrões, na imitação de um jeito de falar

(regional) ou em pequenos equívocos no ato de expressar uma idéia por meio de

palavras.

Bergson, aproximando-se das propriedades do humor, investiga a razão de a

própria linguagem se tornar cômica, produzindo uma maneira espirituosa de lidar com o

discurso. Diz o autor: “Captamos uma metáfora, uma frase, um raciocínio, e os

voltamos contra quem os faz ou poderia fazê-los, de maneira que tenha dito o que não

queria dizer e que venha cair na própria armadilha da linguagem” (Bergson, 1987,

p.59). Podemos dizer que o modo de exprimir um pensamento, por meio de um dito

espirituoso, denota um estado psicológico, uma predisposição para rir de um terceiro ou

de nós mesmos, assim como do próprio discurso. O uso de dois sistemas de idéias

divergentes, em referência a uma expressão, e/ou a utilização de inversões e

transformações de proposições agem como elementos determinantes na produção do

humor espirituoso.

Dizíamos que o espirituoso consiste muitas vezes em prolongar a idéia de um interlocutor até o ponto em que exprime o contrário do seu pensamento e no qual venha a cair, por assim dizer, em uma armadilha do seu discurso. Acrescentamos agora que essa armadilha é também quase sempre uma metáfora ou uma comparação cuja materialidade jogamos contra ele. É conhecido o seguinte diálogo entre a mãe e o filho em Les Faux Bonshommes: “Meu amigo, a Bolsa é um jogo perigoso. Ganha-se um dia e perde-se no seguinte. – Pois bem só jogarei de dois em dois dias” (BERGSON, 1987, p. 63).

O filho, fazendo-se de inocente, promove a réplica do enunciado, “ganha-se um

dia e perde-se outro”, levando em conta a ambigüidade que este apresenta. Ao

considerar as palavras da mãe ao pé da letra, afirma que jogará somente de dois em dois

Page 74: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

dias, evitando assim a situação de azar. A formulação do enunciado de maneira

espirituosa se distancia dos procedimentos cômicos para atuar sobre a esfera do discurso

verbal de maneira lúdica. Tal procedimento humorístico será aprofundado no próximo

capítulo.

Até aqui, compreendemos que as pesquisas sobre o riso de Bergson, de Propp e de

Bakhtin identificam, predominantemente, procedimentos envolvidos na produção do

texto cômico-humorístico no plano do conteúdo representado. Tais elementos são

fundamentais para se desenvolver uma análise sociológica dos hábitos culturais. A

partir desta perspectiva teórica, é possível confrontar aspectos temáticos relevantes que

geram o efeito risível em uma dada comunidade discursiva. Nós brasileiros, por

exemplo, criamos uma imagem típica do português e, constantemente, fazemos piadas

sobre algumas de suas atitudes que nos causam estranhamento ou sentimento de

superioridade. Nesse sentido, o riso ganha uma dimensão social, rimos daquilo que

achamos ser diferente de nós mesmos.

TIRAS DE HAGAR

(BROWNE, 20/12/2006).

Concluímos nesta seção, que os efeitos risíveis do cômico podem decorrer de uma

figura típica com falhas comportamentais e/ou desvios morais, de uma situação

constrangedora do ponto de vista das convenções sociais, das imposições institucionais

que deformam o caráter humano ou da própria maneira como o discurso é organizado e

proferido. Desta maneira, compartilhamos com Bergson que as fontes de comicidade

Page 75: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

essenciais se encontram em: o cômico de gestos e formas (que exploram o automatismo,

o enrijecimento e deformações do corpo físico); o cômico de caráter (relativo à fraqueza

moral ou ao temperamento contundente dos personagens); o cômico de situação

(confusões e equívocos ocorrido em uma dada situação) e o cômico de palavras

(organizado, predominantemente, em forma de jogo de palavras).

O Humor

O significado da palavra humor, em sua trajetória semântica, aponta para um

conjunto de acepções que no decorrer da história apresentou uma série de

deslocamentos, em um contínuo processo metafórico. Podemos dizer que o

reconhecimento do termo humor, do latim humore, aparece no século III a.C. através da

distinção que o médico Hipócrates faz de quatro tipos de líquidos (a bílis amarela, a

bílis negra, o sangue, a fleuma) que circulam no organismo humano e atuam como

secreções reguladoras do seu funcionamento e conseqüentemente do temperamento dos

indivíduos. A partir dessa denominação, outro médico chamado Galeno (séc. II a.C.)

lança a tese de que a causa das doenças estava vinculada à predominância de um destes

fluidos, provocando, assim, o desequilíbrio do organismo de maneira geral. Seguindo

este raciocínio, Pinto (1970) esclarece a vinculação do temperamento humano com a

distribuição de fluidos que os sujeitos apresentam:

a) os sujeitos que tinham humores mais agradáveis eram menos malignos e portanto

seriam pessoas de bom-humor;

b) os sujeitos que tinham humores coléricos de forma predominante poderiam ser

considerados pessoas de mau-humor;

Page 76: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

c) os sujeitos quem tinham humores bem equilibrados eram os indivíduos bem

humorados;

d) aqueles que apresentassem desequilíbrios (tanto físico como mental) eram tidos

como mal-humorados;

e) e aqueles que tinham o domínio sobre as sensações, assim como a capacidade de

lidar com elas eram considerados indivíduos detentores do senso de humor.

Fazendo uma analogia similar dos humores (fluídos) com o temperamento

excêntrico dos personagens teatrais, Ben Jonson (1572-1637), comediógrafo inglês

contemporâneo de Shakespeare, aproximou o conceito da palavra humor com o de

cômico. De acordo com Almeida (2000, p.42), Ben Jonson “utiliza a teoria humoral

para caracterizar personagens teatrais: o colérico, o atrabiliário, o impetuoso, o

fleumático, e todas as combinações intermediárias, que definem sua concepção de

comédia”. O termo humor passa a ser associado, na tradição literária inglesa, à

excentricidade dos personagens. Tal concepção de humor, no entanto, foi sendo

modificada a partir do século XX com estudos sobre o riso.

A fronteira entre o humor e o cômico

O humor, diferentemente do cômico, se manifesta nos ditos espirituosos como

um grande jogo discursivo que proporciona prazer e auto-reflexão. O motivo do riso

não está ligado exatamente ao que se diz, mas à maneira como um discurso é expresso

em uma dada situação enunciativa. Segundo Alberti (1999 p. 20):

[...] na tradição teórica alemã, o objeto do riso freqüentemente divide-se em cômico (das Komische) e chistes (Witz)... Das Komische em geral referem-se ações, gestos ou expressões corporais, como os que se observam no teatro ou nas ruas, enquanto Witz diz respeito aos chistes e piadas (ALBERTI, 1999, p. 20).

Page 77: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

O reconhecimento dos caracteres cômicos, isolados das formulações

humorísticas no plano verbal, reduz as possibilidades de análise dos textos cômico-

humorísticos. Esta constatação abre brechas para refletirmos, mais detidamente, sobre

as implicações da relação entre o cômico e o humor na configuração do domínio

humorístico. Um cartum que ilustra bem a diferença das duas facetas do discurso,

voltadas para o riso, pode ser lido a seguir.

(EL FARO de Vigo – 10.04.2001).

A noção de humor descrita no cartum indica a existência de um conjunto de

atividades que antecede ao riso. Apesar de o cartunista delimitar a diferença entre o

cômico e o humor, colocando como ponto chave o pensamento, sua definição ainda é

restrita, visto que o processamento do humor envolve outros elementos que medeiam

essa relação. Entre o pensamento e o riso há formulações discursivas que desencadeiam

um conjunto de atitudes. Além de uma reflexão sobre o conteúdo expresso nas

atividades humorísticas, é preciso refletir sobre a linguagem que a constitui e no tipo de

interação que os sujeitos desenvolvem em uma troca verbal. Nesse sentido,

caracterizamos o humor, provisoriamente, como uma atividade verbal que explora a

condensação de idéias de maneira lúdica e ambivalente, provocando o efeito risível.

Freud, em seu livro Os chistes e sua relação com o inconsciente, publicado em

1905, fez uma profunda revisão bibliográfica de pesquisas que investigavam o

Page 78: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

funcionamento do discurso do humor. Ele retoma os estudos de diversos intelectuais

(Lipps, Fischer, Kraepelin, Kant) que procuravam caracterizar as anedotas e os ditos

engraçados proferidos na vida cotidiana como chiste4. Para Freud (1977), o conceito de

chiste se confundia com os processo relacionados ao cômico, impedindo de observar

uma série de mecanismos que convergiam para a linguagem do inconsciente

manifestada no sonho. Para tanto, o psicanalista desenvolveu um projeto voltado para a

compreensão da linguagem do humor, recapitulando as diversas noções de chistes,

apresentadas por seus contemporâneos.

a) Para Lipps (1898), um chiste é algo cômico do ponto de vista subjetivo.

b) Fischer (1889) relaciona chiste com cômico, ressaltando a caricatura. Seu

interesse é a questão do feio à luz da comicidade. O chiste manifesta-se como um juízo

lúdico em contraste com a comicidade.

c) Para Jean Paul, o chiste consiste em um jogo de idéias formuladas a partir da

liberdade de expressão. O chiste teria a propriedade de fundir diversas idéias de maneira

surpreendente e rápida.

d) Para Kraeplin, o chiste consiste na conexão de duas idéias que se contrastam

por meio de uma ligação arbitrária.

e) Para Kant, uma das características do cômico é a propriedade de enganar

apenas por um instante; propriedade que, sob a visão de Heymans (1896), também

pertence ao chiste.

4 De acordo com Corominas (1967), o significado da palavra chiste no séc. XVI, em castelhano, se referia a um dito gracioso ligeiro manifestado em um tom chiado: “Chiste 1534, ‘dicho agudo y gracioso’. Tuvo especialmente el significado de ‘chiste obsceno’, S. XVI (y chista con ese sentido ya s. XIII), que parece haber sido el originario, pues se trata de un derivado de chistar ‘hablar en voz baja’, 1587, ‘hacer ademán de hablar’, ‘sisear, llamar siseando’, debido a que esta clase de chistes se dicen en voz baja o al oído; en cuanto a chistar, proviene de la voz ssst, onomatopeya del cuchicheo y empleada también para llamar a personas” (COROMINAS, 1967, p. 197).

Page 79: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

Freud não discorda inteiramente do posicionamento daqueles que descreveram

as propriedades do chiste de forma similar ao cômico. Mas recusa-se a reduzir os

procedimentos do chiste a fenômenos mecânicos que geram o riso. Sendo assim, ele

propõe uma revisão do conceito de chiste, a partir de uma combinação em que se

considere “um todo orgânico” mediado pelo inconsciente. Por isso, indaga: o que a

brevidade de um chiste tem a ver com a produção de um juízo lúdico? Será que chiste e

cômico geram satisfação aos indivíduos da mesma forma? Existem diferenças na forma

como eles se organizam e a quem se dirigem? Os chistes são todos do mesmo tipo? Que

diferenças há entre eles? Desta forma, Freud aponta para uma série de questões que, ao

final deste capítulo, devem nos ajudar a esclarecer diferenças entre processos cômicos e

humorísticos, já que caracterizaremos chiste e humor como formulações dotadas de

propriedades similares calcadas na economia mental.

Page 80: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

O CHISTE E O DISCURSO DO HUMOR

Freud (1977) compara o domínio do chiste com o domínio dos sonhos, na

medida em que se pode observar um conteúdo expresso e um conteúdo latente no modo

de formulação dos dois fenômenos discursivos. Por meio da análise dos mecanismos

expressivos da linguagem dos sonhos e dos chistes, é possível se chegar ao

inconsciente, ou pelo menos, compreender o seu funcionamento de maneira geral. De

acordo com a sua perspectiva, o sonho e o chiste reservam processos psíquicos

similares.

O trabalho de condensação nos sonhos produz, não estruturas compostas, mas quadros que nos recordam com exatidão uma coisa ou uma pessoa, exceto por um acréscimo ou uma alteração derivada de alguma fonte: modificação precisamente do mesmo tipo encontrado nos chistes (...). Não podemos pôr em dúvida que em ambos os casos somos confrontados com o mesmo processo psíquico, ao qual podemos reconhecer devido a seus resultados idênticos. Uma analogia tão abrangente entre a técnica do chiste e a elaboração onírica sem dúvida aumentará nosso interesse na primeira e suscitará em nós uma expectativa de que uma comparação dos chistes com os sonhos ajudará a lançar luz sobre os chistes (FREUD, 1977, p. 43).

Freud confirma que a elaboração onírica revela conteúdos do inconsciente, por

meio de uma linguagem condensada e substitutiva, enquanto o chiste organiza seus

códigos de expressão por uma via substitutiva e indireta, encobrindo desejos ou

expondo verdades que se opõem às pressões sociais e aos mecanismos de inibições

internas. “Entre as técnicas do chiste propriamente ditas, são particularmente o

deslocamento e a representação por algo absurdo que, além de suas outras qualificações,

suscitam também a distração da atenção desejável para o curso automático do processo

Page 81: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

chistoso” (FREUD, 1977, p.176). O objetivo do chiste é resgatar fontes do prazer por

uma via econômica de energia.5

Observemos, na tira a seguir, o relato de Susanita sobre um sonho com um

amigo pouco inteligente chamado Manolito. Talvez ele nos ajude a esclarecer a

comparação que Freud faz entre a elaboração onírica e o funcionamento discursivo do

chiste.

(QUINO, 2000, p.190).

Podemos observar no sonho de Susanita a expressão de uma idéia condensada a

respeito do personagem Manolito. Na maioria das tiras, o personagem apresenta-se

como um sujeito cabeça dura e com pouca compreensão das coisas que giram ao seu

redor. O trabalho de associação desenvolvido por Susanita substituiu o sujeito por outro

objeto, estabelecendo uma representação simbólica produzida por um deslocamento

metafórico, ou seja, Manolito passa a ser visto como uma pedra impenetrável.

O autor da tira explora a visão psicanalítica e traz para a cena elementos que nos

fazem pensar no conceito de inconsciente proposto por Freud. A associação pode ser

conduzida por outra manobra. Do ponto de vista do significante, ‘Manolito’ tem a

mesma quantidade de letras e a mesma terminação da palavra ‘Monolito’ (pedra de

5 Freud adota a hipótese de que o chiste é elaborado na primeira pessoa, nesse sentido: “um pensamento pré-consciente é abandonado por um momento à revisão inconsciente e o resultado disso é imediatamente capturado pela percepção consciente” (FREUD 1977, p. 190).

Page 82: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

grandes dimensões; obra ou monumento feito de um só bloco). Dessa forma, há um

deslizamento sonoro implícito dos termos ‘Manolito’ e ‘Monolito’. O jogo entre a

semelhança de significantes ‘Manolito’ e ‘Monolito’ gera uma comparação inusitada,

expressando o pensamento latente (ou implícito) de Susanita.

Page 83: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

O funcionamento do chiste tendencioso e do chiste inocente

(QUINO, 2000, p.95).

Os chistes são desencadeados a partir de situações que envolvem desejos

reprimidos. Diferente do recalque, que inibe e repreende toda energia psíquica

propulsora de prazer, o chiste é um ato verbal em que o sujeito deixa escapar algo de

que, aparentemente, não tinha consciência ou não desejava demonstrar por meio de

palavras ou atitudes. O chiste, como ocorrência involuntária, tem a possibilidade de

revelar pensamentos livres das repressões sociais. De acordo com a teoria de Freud,

podemos observar dois tipos de chiste: o tendencioso e o inocente. O funcionamento

dos dois tipos de chistes pode ser identificado como Rosas (2002) apresenta:

No chiste tendencioso sempre está em vigor uma finalidade substitutiva da ação – a realização de um desejo recalcado, seja agressivo, seja sexual – que opera no sentido de acrescentar ao prazer da técnica do chiste o prazer de fugir a um recalque. Porém, ao lado do chiste tendencioso (ou “carregado”, por assim dizer), Freud reconhece a existência do que denominou ‘chiste inocente’: aquele que, não visando substituir a ação, contém em si mesmo seu fim, ou seja, não tem que ocultar um conteúdo recalcado, um tabu ou interdito (ROSAS, 2002, p. 28).

O chiste, em sua grande maioria, corresponde a uma agressão bem empacotada,

constituindo uma ação substitutiva pela via da expressão verbal. Nos estudos do chiste

tendencioso, observa-se o ato de promover a descarga de uma excitação mental voltada

para a produção do prazer e alívio de tensões. Freud nos explica que esse tipo de chiste

é organizado por dois procedimentos: a) o jogo lúdico com a linguagem e com o

pensamento; e b) a manifestação de mecanismos de defesa para melhor lidar com as

frustrações, exorcizando os medos, as ansiedades e o sentimento de hostilidade. Sendo

Page 84: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

assim, Freud considerou o chiste como uma atividade de juízo lúdica e engenhosa,

realizada por meio de alusões, ironias, fusões de idéias, omissões, expressões

ambivalentes ou esvaziadas de seu sentido usual.

Em seus estudos, Freud demonstra que os chistes tendenciosos têm alvos de

ataque distintos, o que o leva a categorizá- los, especificando suas particularidades.

Apresentamos a seguir os dois tipos de chistes tendenciosos que visam à descarga de

energia. O primeiro diz respeito aos impulsos agressivos e o segundo aos impulsos

sexuais.

O chiste tendencioso como descarga do impulso agressivo

HAGAR – Dik Browne

(BROWNE,1996, p. 39).

Talvez, no chiste, esteja o segredo dos relacionamentos humanos e a maneira

adequada de lidar com a vida. Se atribuirmos ao personagem, projetado pelo

quadrinhista Browne, a capacidade de representar formulações chistosas, veremos que

Hagar pede algo gelado para beber; entretanto, sua mulher que está muito ocupada

retruca- lhe com um olhar incisivo. Hagar poderia se sentir extremamente desconcertado

com essa situação, recalcando e produzindo uma sensação de mal estar imediata, mas o

Page 85: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

personagem responde com senso de humor e faz uma alusão ao olhar da esposa de

forma espirituosa. Sua resposta demonstra que deseja algo gelado, mas não tão gelado

quanto o olhar da esposa. Dessa maneira, cria-se uma ambivalência com o termo

‘gelado’. Isto possibilita que o personagem expresse o seu desapontamento,

estabelecendo uma saída discursiva que evita o constrangimento e produz prazer. “O

ego se recusa a ser afligido pelas provocações, a permitir que seja compelido a sofrer.

Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo...” (FREUD, 1996,

p.166).

O chiste tendencioso em forma de smut

(O GLOBO, 5/10/04)

Alguns chistes têm uma conotação estritamente sexual; eles funcionam como um

cortejo verbal cheio de insinuações. Seu propósito é a sedução ou desnudamento do

alvo que se quer atacar. Quem produz esse tipo de chiste utiliza palavras ambíguas que

tendem a levar o interlocutor a associá- las a um sentido sexual. Nesta perspectiva, o

ouvinte é inspirado a imaginar partes do corpo ou situações que sugerem obscenidades,

provocando, em muitos casos, excitação e satisfação voltadas para os instintos

primários. Podemos encontrar nas camisas de universitários do curso de Direito o

seguinte enunciado: Se o seu namorado não faz direito, eu faço. Tal enunciado utiliza-

Page 86: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

se de um trocadilho com a expressão ‘fazer direito’ que indica dois sentidos: o primeiro

é o de freqüentar a faculdade de Direito; o segundo corresponde à afirmação de dar

prazer sexual ao parceiro. Para tanto, o locutor utiliza o item lexical ‘direito’ associado

à palavra ‘namorado’ como propulsor da ambigüidade. Por conseguinte, o mesmo

enunciado pode ser lido como uma declaração de orgulho por cursar a faculdade de

Direito, ou a capacidade do dono da camisa fazer sexo “direito”.

Freud denomina esse tipo de chiste de smut6. “Uma pessoa que ri de um smut

que escuta, está rindo como se fora espectador de um ato de agressão sexual” (FREUD,

1977, p. 117). Geralmente, esse tipo de chiste produz prazer ao locutor, entretanto, ele

pode provocar constrangimento à pessoa que escuta. O smut é um tipo de chiste

tendencioso extremamente perigoso, visto que o receptor pode se sentir ofendido,

revidando de uma forma agressiva e constrangedora.

O chiste ingênuo ou inocente

É muito comum a criança brincar com as palavras, rompendo com qualquer

lógica estabelecida, já que ainda não há consciência dos limites das coerções sociais. As

crianças investem constantemente em brincadeiras voltadas para a segmentação das

palavras, mudando a sua significação acidentalmente. Também são recorrentes a

produção de neologismos e a elaboração de hipóteses equivocadas sobre o sentido de

uma palavra no âmbito do discurso.7 Observemos um exemplo narrado por Freud:

6 1 A palavra smut em inglês tem dois significados: fuligem em sentido concreto e pornografia no sentido figurado. 7 “O período em que uma criança adquire o vocabulário da língua materna, proporciona-lhe um óbvio prazer de ‘experimentá-lo brincando com ele’, segundo as palavras de Gross. Reúne as palavras, sem respeitar a condição de que elas façam sentido, a fim de obter um gratificante efeito de ritmo e rima. Pouco a pouco esse prazer vai lhe sendo proibido até que só restam permitidas as combinações significativas de palavras. Quando mais velho, tenta ainda emergir ao desrespeito das restrições que aprendera sobre o uso das palavras. Estas são desfiguradas por pequenos acréscimos particulares que lhes faz, suas formas sendo alteradas por certas manipulações. (...) Tais tentativas são reencontradas entre certas categorias de doentes mentais” (FREUD, 1977, p. 148).

Page 87: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

Uma menina de três anos e meio avisa o seu irmão: Olha, não como pudim, senão vai ficar doente e tomar um ‘Bubizin’. ‘Bubizin’? pergunta a mãe, ‘O que é isso’? ‘quando fico doente’, disse a menina autojustificando-se, ‘tenho que tomar Medizin.’ A criança pensava que aquilo que o médico lhe prescrevia chamava-se Mädi-zin’ quando era para uma Mädi [garotinha]’e concluíra que, quando era para ‘Bubi [garotinho]’, devia chamar ‘Bubi-zin’(Freud, 1977, p. 209).

Apesar do efeito chistoso ter sido provocado pela técnica verbal (trocadilho), o

chiste inocente não contém a característica do chiste genuíno na visão de Freud, visto

que o locutor não tem a intenção de gerar um jogo de múltiplos sentidos e nem liberar

uma energia diante de uma situação que o oprimia. Este tipo de expressão oscila entre o

cômico e o chiste tendencioso, sendo intitulado de ‘ingênuo’ ou ‘abstrato’. “O

ingênuo deve se originar, sem que tomemos parte nisso, nos comentários e atitudes de

outras pessoas, que assumem a posição de segunda pessoa no cômico e nos chistes”

(Freud, 1907, p. 208). Mais próximo do cômico, o chiste inocente é descoberto

(constatado), enquanto o chiste tendencioso é elaborado com a finalidade de produzir

um determinado efeito pelo sujeito que o produz. A graça do chiste inocente decorre de

equívocos cometidos, em termos conceituais ou lingüísticos, por parte de seu produtor,

sem que este tenha consciência do ato realizado.

Freud exemplifica outro chiste inocente com o relato de uma representação

teatral organizada por dois irmãos: uma menina de doze anos e um menino de onze. As

duas crianças resolveram inventar uma história e dramatizá- la para seus tios. O drama

contava a história de um pobre pescador obrigado a se separar de sua mulher para

ganhar dinheiro em outra cidade. Depois de muitos anos, o pescador retorna rico e

mostra à honesta esposa uma mala cheia de dinheiro. A mulher, em um gesto de

retribuição e gratidão, diz ao marido: “Também eu não fiquei ociosa”. Abre a porta de

sua cabana, mostrando doze bonecas correspondentes aos bebês que havia feito durante

a sua viagem. Os adultos que assistiam a esta dramatização caíram na gargalhada, visto

que os jovens atores ignoravam como os bebês nasciam.

A execução do chiste ingênuo tem como protagonista, na maioria das vezes, uma

criança ou uma pessoa de pouca instrução, sem consciência do valor de sua

Page 88: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

argumentação. O sujeito que comete um equívoco, via de regra, não percebe

ambigüidades ou equívocos postulados em seu discurso, agindo de forma inocente.

Vejamos como isso acontece na tira da Mafalda.

CLUBE DA MAFALDA

(QUINO, 20/12/06).

Podemos afirmar que enquanto o chiste tendencioso deseja extravasar sua

hostilidade por meio de ditos maliciosos, utilizando-se de um tom mais agressivo, o

chiste inocente assume uma perspectiva lúdica, sem que o sujeito tenha noção do

trabalho discursivo ambivalente por ele realizado.

Sobre o chiste de palavras e o chiste de pensamento

O que torna um dito espirituoso é o trabalho sobre o seu modo de organização

(conceitual e/ou lingüística) no interior de um contexto discursivo. Nesse sentido, a

preocupação imediata não é com a transmissão da informação, mas com a produção de

um efeito risível, assentado sobre o princípio da economia. Nos diálogos cotidianos, os

chistes são concebidos de forma automática e inconsciente, mas alguns se organizam no

plano de elaborações pré-consciente pela via de um imaginário já estruturado. Freud

(1977) exemplifica tal processo, com a seguinte história: Conta-se que um homem

conhecido por sua falta de escrúpulo e suas mentiras, querendo se vangloriar de seu

Page 89: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

êxito profissional, perguntou a um amigo “Você sabe quanto eu ganhei no ano

passado?”. O amigo responde: “A metade”. Nota-se, na resposta, a expressão de um

pensamento abreviado elaborado previamente. Isto ocorre porque o efeito de uma fala

sintetizada torna-se mais eficaz do que a produção de um enunciado do tipo: “sei que

você vai exagerar com suas histórias, por isso sei que o que dirá corresponde à metade”

(FREUD, 1977, p.69).

Freud estabelece, então, a distinção entre os chistes que se expressam,

predominantemente, em forma de jogos de pensamento daqueles que se constituem por

jogos de palavras, explorando formas de representação verbais e/ou conceituais

imprevisíveis. Para aprofundarmos esta noção, examinaremos as diversas formas de

realização dos chistes de pensamento.

O funcionamento do chiste de pensamento

Nos chistes de pensamento, podemos encontrar raciocínios falhos, representação

pelo oposto, nonsense e pensamentos céticos. Para Freud, a elaboração do chiste de

pensamento consiste no desvio de uma rota conceitual que adota um discurso

silogístico. Sua construção rompe com premissas anteriormente proferidas no discurso,

sendo normalmente reticente. Quando alguém faz um chiste intelectual é como se

estivesse afirmando: “Enganei você com uma lógica que você nem imaginava. Te

peguei, hein...!”. A base do chiste de pensamento se apóia no deslocamento e no

absurdo encontrado em sua forma chistosa, tal como exemplifica Jolles (1986):

Um grego sonha ter passado a noite com uma célebre cortesã e vai contar seu sonho em praça pública. A cortesã ouve-o e exige ser paga. O caso chega à justiça. O juiz ordena ao homem que coloque o dinheiro sobre uma mesa, manda vir um espelho e autoriza a cortesã a apanhar o reflexo do dinheiro em pagamento dos prazeres imaginados em sonho (JOLLES, 1986, p. 207).

Page 90: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

Podemos notar que este chiste não se constitui por meio de jogos de palavras,

mas sim pelo estabelecimento de representações que rompem com o quadro de

expectativas previsíveis. O argumento absurdo de a cortesã cobrar honorários pelo

serviço realizado em um sonho é combatido por outro mais incongruente, produzindo,

assim, um desfecho surpreendente. Ou seja, se o grego deve pagar honorários pelo

sonho, sem de fato ter tido contato físico com a cortesã, é justo que o pagamento seja

feito com o reflexo do dinheiro. O jogo de lógicas disparatadas permite ao ouvinte se

divertir e tomar como engraçado o paradoxo expresso na situação narrada.

a) nonsense

Em nota de rodapé, Freud (1977, p.161) afirma que somente os chistes de

pensamento carregam consigo a condição de produção do nonsense, visto que sua forma

trabalha a ruptura dos sentidos preestabelecidos nas representações conceituais. Seu

objetivo principal é produzir a sensação de desconcerto no interlocutor, provocando

uma explosão de riso involuntário.

Na realização de um chiste nonsense não se busca um sentido oculto sob as

palavras, pois sua lógica não se sustenta em parâmetros pré-concebidos. O humor neste

tipo de chiste reside, justamente, neste poço sem fundo, em que os referentes e as

intenções presentes no discurso não apresentam um ponto de determinação. Vejamos

um exemplo dado por Freud: “A vida é uma ponte suspensa’ disse um homem. ‘Por que?’,

perguntou o outro. ‘Como posso saber?’, diz o primeiro” (FREUD, 1977, p. 162).

Observa-se que o dito do primeiro locutor corresponde a uma trapaça, na medida

em que seu proferimento não se sustenta em um contexto enunciativo concreto. Tal

Page 91: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

comportamento leva seu interlocutor a indagar sobre os motivos da declaração. Por não

encontrar resposta para a questão, em parâmetros concebidos na esfera concreta, o outro

responde: “Como posso saber?”. Alguns chistes nonsense têm em seu modo de

constituição a duplicação de dizeres absurdos pelos dois locutores. Esta técnica consiste

em um dito absurdo expresso por um locutor, seguido de um contra-ataque que adota as

mesmas premissas absurdas.

(QUINO, 1992, p.131).

A grosso modo, para uma pergunta desconcertante dá-se uma resposta mais

audaciosa. Ou seja, a réplica vem em forma de resposta pronta, agindo cinicamente

como se a premissa lançada pudesse ser efetivada nas circunstâncias concretas de

enunciação. Sendo assim, o opositor paga na mesma moeda com outro dito chistoso.

b) raciocínio falho

Um outro tipo de chiste de pensamento, que Freud situa em uma região

fronteiriça com o cômico, é a exploração de um sofisma no qual se identifica a

ocorrência de um raciocínio falho. Essa técnica consiste na defesa de um argumento

aparentemente lógico por meio de um raciocínio silogístico, em que uma (ou mais de

uma) das premissas é inválida. Para garantir a sustentação do discurso calcado no

raciocínio falho é preciso dar relevo à fantasia em comparação à realidade

circunstancial. Neste sentido, o discurso enganoso tem como principal estratégia o

apagamento dos defeitos de suas premissas, consolidando uma enunciação absurda.

Page 92: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

Vejamos como o agente matrimonial (Schadchen) transforma defeitos em qualidades

para convencer o cliente a se casar com uma moça por ele selecionada.

O Schadchen defendia a jovem por ele proposta, dos protestos do rapaz. ‘Não gosto da sogra’, dizia o último. ‘Ela é uma pessoa desagradável e estúpida.’ – ‘Mas afinal você não vai se casar com a sogra. Quem você quer é a filha dela.’ ‘Sim, mas esta não é jovem, nem se pode dizer que seja bonita.’ – ‘Não importa. Se ela não é jovem nem bonita, será por tudo isso mais fiel a você.’ – Nem tem muito dinheiro.’ – Quem está falando em dinheiro? Você vai casar-se com o dinheiro? Afinal é uma esposa que você quer.’ – ‘Mas ela também tem uma corcunda nas costas’. ‘Bom, e o que você quer mais? Não terá ela o direito de ter um único defeito?’. (FREUD, 1977, p.79)

De acordo com o pretendente, a noiva tem diversos defeitos: a mãe da noiva é

desagradável, a família é pobre e a noiva é feia. Além destes defeitos, a candidata

possui uma corcunda. A graça da piada reside na forma como o Schadchen constrói um

raciocínio, aparentemente lógico, buscando invalidar cada afirmação do rapaz. Ele

transforma todo atributo negativo em uma vantagem para a felicidade matrimonial. A

percepção da não sustentação de seu discurso e a constatação de que não existe um

“único defeito” tornam a defesa de sua proposição absurda, comprovando, assim, a

presença de um raciocínio falho.

Outra técnica do chiste de pensamento, baseada no raciocínio falho, é elaborada

a partir do desnudamento de uma proposição por meio de um gesto automático que

contradiz o que havia sido dito. É o caso de algumas piadas organizadas a partir da fala

de um personagem que rompe com um conjunto de expectativas que seguem uma lógica

cartesiana, inserindo no discurso uma resposta automática que não condiz com a linha

de argumentação defendida.8 Vejamos como um agente matrimonial, ajudado por seu

assistente, tenta convencer seu cliente a casar com uma mulher corcunda.

Um Schadchen devendo propor a alguém uma noiva levou consigo um auxiliar, que confirmasse tudo o que ele tinha a dizer. ‘Ela é esbelta como um pinheiro’, disse o Schadchen. – ‘Como um

8 Freud alega que o automatismo tem um aspecto mais voltado para o cômico, o que coloca em dúvida o teor chistoso desta técnica “O desvelamento de automatismo psíquico é uma das técnicas do cômico, exatamente como qualquer tipo de revelação ou auto-traição. Repentinamente somos defrontados a esse ponto pelo problema da relação do chiste com o cômico, relação que pretendíamos evitar” (FREUD, 1977, p. 83).

Page 93: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

pinheiro’, repetia o eco. – ‘E tem uns olhos que merecem ser vistos!’- ‘Que olhos ela tem!’ confirmava o eco. – ‘Melhor educada que qualquer outra!’ – ‘Que educação!’, ‘ela tem uma corcunda.’ – ‘E que corcunda!’ o eco confirmou mais uma vez (FREUD, 1977, p.82).

A reafirmação descuidada9 da última qualificação com a explosão do eco: “E

que corcunda!”, invalida a possibilidade de levar a sério a fala do Schadchen. A

manifestação de elogio a uma corcunda desestrutura a fachada lógica, invalidando o

reforço do eco nas proposições anteriores. Tal chiste demonstra um teor crítico, na

medida em que desmascara a fachada estabelecida pelos agentes matrimonias,

colocando em dúvida a reputação dos mesmos.

c) representação pelo oposto

Uma das técnicas do chiste, provocadora de efeito humorístico, é a representação

dita ao avesso do que se desejava dizer, chamada por Freud de representação pelo

oposto. O locutor produz um enunciado que vai em uma direção inversa ao conteúdo

informativo de sua declaração. Para tanto, o locutor demonstra uma atitude ou há

elementos ostensivos na circunstância enunciativa que comprovam o contrário da

premissa defendida. Para ilustrar esta técnica, Freud (1905, p.90-91) conta a anedota de

um judeu que tenta demonstrar seu hábito de limpeza com o seguinte enunciado: “Dois

judeus discutiam sobre banhos. ‘Tomo banho anualmente’, disse um deles, ‘quer precise ou

não’.”.

Identificamos a mesma proposta de chiste, com representação pelo oposto na tira

elaborada por Quino a seguir: 9 Na fala do assistente matrimonial observa-se um acidente de percurso de raciocínio devido ao automatismo do discurso por ele produzido. Tal mecanismo apresenta a característica do “cômico acidental” discutido nos estudos de Bergson (1987).

Page 94: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

(QUINO, 2000, p.185).

Sobre as técnicas do chiste de palavras

Freud comprovou a existência de uma variedade de técnicas de uso do verbal

que determinam a forma de organização dos chistes de palavras. Por meio de uma

análise atenta sobre o modo do funcionamento lingüístico das piadas, ele detectou um

conjunto de propriedades que lhe permitiu categorizar os chistes verbais em três

modalidades: a condensação de palavras; o múltiplo uso de uma mesma palavra e o

duplo sentido. Essas propriedades são subdivididas por Freud (1977, p.57), da seguinte

forma:

I – CONDENSAÇÃO

(a) condensação com formação de palavra composta;

(b) condensação com modificação;

II – MÚLTIPLO USO DO MESMO MATERIAL

(a) como um todo e suas partes;

(b) em ordem diferente;

(c) com leve modificação;

(d) com sentido pleno e sent ido esvaziado.

III- DUPLO SENTIDO:

(a) significado como um nome e como uma coisa;

(b) significados metafórico e literal;

Page 95: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

(c) double entente;

(d) duplo sentido com uma alusão.

Page 96: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

84

CONDENSAÇÃO

A condensação tem como base a construção de um novo vocábulo a partir de duas

palavras que apresentam coincidências de sílabas em sua formação (homofonia), sem

necessariamente haver uma relação de parentesco semântico entre elas. Podemos dizer que

no processo de condensação, duas palavras que denotam idéias diferentes se integram,

formando um termo novo que fornece um sentido desejado na situação discursiva. Ou seja,

aquilo que era “inominável” ganha uma forma de designação expressiva, ao se

condensarem dois vocábulos de campos semânticos distintos. Sendo assim, surge uma

palavra, até então inexistente, em razão da necessidade de transmitir uma idéia difícil de ser

comunicada ou expressar um pensamento de forma singular e econômica. Tal processo é

explicado por Freud por meio de duas técnicas que demonstramos a seguir.

a) condensação com formação de palavra composta

Freud exemplifica a técnica deste tipo de chiste com a clássica história de Heine que

se encontra na peça Os Banhos de Lucca. Um pobre agente de loteria e calista, chamado

Hirsch-Hyacinth, se gaba por ter tido um contato breve com o rico Barão Rothschild,

dizendo: “É certo como Deus há de me prover todas as coisas boas, Doutor, sentei-me ao

lado de Salomon Rothschild e ele me tratou como um seu igual – bastante

familionariamente.” (FREUD, 1977, p. 29)

O chiste decorre do enunciado de Hirsch-Hyacinth abreviar a idéia de um milionário

tê-lo tratado de forma familiar com a invenção de um termo. Para redimensionar a

importância desse evento e demonstrar um alto grau de intimidade com o Barão Salomon

Rothschild, ele associa as expressões ‘familiar’ e ‘milionário’, condensando-as em um

único termo: ‘familionariamente’.

Page 97: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

85

Dessa forma, aquilo que estava no plano do ‘inominável’ ganha um sentido por

meio da condensação de duas palavras. A articulação do chiste decorre de um trabalho de

linguagem que reflete uma apreciação positiva do enunciador de ter uma eventual

aproximação com o Barão. De acordo com Freud, tal procedimento se realiza por meio de

arranjos involuntários, ocasionando a organização de uma cadeia de significantes que

manifesta conteúdos latentes do pensamento de Hirsch-Hyacinth. Observamos a utilização

da mesma técnica chistosa elaborada pelo quadrinhista Quino a seguir:

(QUINO, 2000, p. 256).

Na tira em quadrinhos que acabamos de ver, a professora pergunta sobre antípodas1

das pessoas que se encontram em uma sala de aula. A resposta certa ser ia os japoneses.

Contudo, Miguelito inventa uma nova palavra com a justaposição do vocábulo ‘japonês’ e

o morfema ‘idos’: “japonésidos”. A resposta não é aceita como correta, levando a

professora a resgatar a mesma terminação “ido”, utilizada na resposta de Miguelito e

chamá- lo de estúp ido.

O aluno ao rebater a ofensa da professora não diz ‘antipática’, mas sim ‘antipátida’.

Se dissesse ‘antipática’ seu enunciado causaria um desconforto e seria visto como uma

atitude de desrespeito. Todavia, sua opção pela palavra condensada revela um jogo verbal

que produz um efeito humorístico. No ato de fundir o vocábulo ‘antípoda’ com ‘antipática’,

o locutor coordena as duas idéias que expressam seu pensamento a respeito da professora.

1 O significado da palavra antípoda encontrado no dicionário de Bueno (1970) é: “Antípoda, s.m. e adj. 2 gên. Habitante que, em relação a outro do globo, se encontra em lugar diametralmente oposto; o mesmo que antíctone; (fig.) o contrário, o oposto”. Observamos que os japoneses são antípodas dos brasileiros e vice-versa.

Page 98: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

86

O conteúdo latente, expresso em seu enunciado, denota indícios de que a professora é

antipática, ao mesmo tempo em que se apresenta como uma antípoda, sob a perspectiva do

aluno .

Dessa forma, o processo de condensação do chiste “familionariamente” pode ser

comparado com o chiste “antipátida”. Para isso, devemos atentar para a composição de um

novo substitutivo constituído por meio da aglutinação das sílabas coincidentes que se

atraem.

famili armente milionari o familionária mente

Antíp odas Antipáti ca

Antipáti da

Page 99: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

101

b) condensação acompanhada de leve modificação

A técnica deste tipo de chiste reside no estabelecimento de uma ligeira

modificação na estrutura fonética de uma expressão que compõe o enunciado. Sua

qualidade está diretamente ligada à sutileza envolvida na modificação de uma expressão

verbal, condensando duas idéias na composição do enunciado. A técnica faz uso da

redução de uma expressão pela semelhança que ela tem com outra, deixando inscrita no

texto a tensão entre os dois sentidos.

Todos nós conhecemos a expressão ‘tête-a-tête’ que quer dizer estar frente a

frente como um determinado sujeito ou situação. Esta expressão foi modificada em um

chiste contado pelo Herr N., com a seguinte composição: “Viajei com ele tête-à-bête”.

A substituição do fonema ‘t’ pelo fonema ‘b’ forma a palavra ‘bête’ que significa em

francês o mesmo que ‘besta’. Nesse sentido, o locutor está querendo dizer “Viajei com

X tête-à-tete, e X é uma besta”. A mudança de um único fonema na expressão ‘tête-à-

tête’ sugere um deslocamento da expressão utilizada no senso comum. Este recurso é

muito utilizado nas propagandas publicitárias, visto que uma leve modificação na

camada acústica estabelece um deslocamento responsável pela elaboração de uma nova

proposição expressa de forma condensada.

MÚLTIPLO USO DO MESMO MATERIAL

Diferentemente da técnica baseada na condensação, o múltiplo uso de um

mesmo material lingüístico não funde palavras para constituir um substitutivo.

Aproveitando-se da sonoridade, da semelhança entre as palavras, provoca-se a repetição

de um mesmo material verbal, explorando mecanismos de alteração em sua pauta

sonora e/ou em seus arranjos frasais. Tal procedimento lida com a reaparição de um

mesmo material lingüístico, já exibido no enunciado, com um outro valor semântico.

Esta técnica tem como princípio a quebra de expectativa sobre o valor de uma

expressão ao término da leitura de um enunciado como um todo. Devido à semelhança

com o jogo de palavras, Freud prefere chamar esse fenômeno de múltiplo uso do mesmo

Page 100: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

102

material, visto que não está atrelado somente à ambivalência das palavras, mas também

ao conjunto de proposições vinculadas à reutilização de um mesmo termo, de maneira

distinta da sua primeira ocorrência.

a) múltiplo uso como um todo e suas partes

O chiste múltiplo uso como um todo e suas partes “... consiste no fato de uma

mesma palavra – nome – aparecer usada de duas maneiras, uma vez como um todo, e

outra vez segmentada em sílabas separadas qual uma charada” (FREUD, 1977, p.45).

Ex: Um jovem de cabelos vermelhos, um pouco desajeitado, foi apresentado em uma

festa da alta sociedade parisiense como parente de Jean-Jacques Rousseau. A anfitriã

comenta, em tom de ironia, para o cavalheiro que trouxe o rapaz: “Você me fez

conhecer um jovem que é roux (ruivo) e sot (tolo), mas não um Rousseau” (FREUD,

1977, p.44).

Esse chiste ao fazer um jogo acústico com as palavras Rousseau [ruso] e roux

sot [ru] [so], permite uma representação psíquica que exterioriza uma opinião em forma

de gracejo. Segundo Freud, o bom chiste é aquele que consegue estabelecer um elo

entre um jogo de idéias (conexão interna) e um jogo sonoro de palavras (associação

externa), tal como encontramos no dito popular italiano “Traduttore, Traditore”

(Tradutor, traidor) comentado pelo autor em uma nota de rodapé:

As duas idéias discrepantes, aqui ligadas por uma associação externa, são também unidas em uma relação de significante que indica um parentesco essencial entre elas. A associação externa meramente toma o lugar da conexão interna; serve para indicá- la ou torná- la clara. Um ‘tradutor’ não é simplesmente chamado por um nome semelhante a ‘traidor’; ele de fato é uma espécie de traidor e assume, pois apropriadamente esse nome (FREUD, 1977, p. 143).

Page 101: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

103

Mais do que um chiste fônico, esta técnica restaura o prazer do jogo sonoro das

palavras que convergem para o mesmo sentido, isto é, o tradutor ao mesmo tempo em

que traduz o texto de um autor, adiciona novas informações que não havia no texto

original, assumindo a postura de traidor. Desta maneira, as palavras ‘tradutor’ e ‘traidor’

convergem para o mesmo campo semântico.

b) múltiplo uso do mesmo material em ordem diferente

Este tipo de chiste decorre da realização de dois valores semânticos em expressões

que aparecem mais de uma vez em um enunciado: “A distinção entre professores

ordinários e extraordinários é que os ordinários nada fazem de extraordinário enquanto os

extraordinários nada fazem ordinariamente” (FREUD, 1977, p.55). A engenhosidade

deste chiste decorre da correlação entre as palavras ‘ordinário’ e ‘extraordinário’ com

múltiplos sentidos, em decorrência da função sintática das palavras no interior do

enunciado.

(QUINO, 2000, p.274).

A recorrência do mesmo vocábulo em dois segmentos do mesmo enunciado

promove nesta tira a técnica do múltiplo uso. A primeira ocorrência “... peço que o

senhor melhore o estado em que está a situação” refere-se às dificuldades que a família

de Mafalda vem passando pelo atraso do pagamento de seu pai. No segundo momento,

seu questionamento se volta para a situação crítica em que se encontra o Estado.

Page 102: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

104

Observa-se um forte deslocamento da temática, duplicando o sentido da enunciação “o

estado em que está a situação” de sua família e “a situação do Estado”.

c) múltiplo uso com leve modificação

A técnica do chiste múltiplo uso com leve modificação guarda semelhança com o chiste

por condensação com leve modificação (Viajei com ele tête-à-bête), na medida em que

ambas trabalham com o jogo sonoro das palavras. Entretanto, no múltiplo uso não há

condensação de palavras, isto é, tudo o que se tem a dizer encontra-se expresso no

próprio chiste, não depende do recurso alusivo a um outro termo oculto para sobrepor

uma significação. Para exemplificar, Freud conta que um homem, ao ouvir um

comentário malévolo sobre os judeus, por um descendente chamado Herr Hofrat, lança a

seguinte observação: “seu ante-semitismo me é bem conhecido; o que é novo para mim é

seu anti-semitismo”. Apoiando-se na atribuição dos predicados ‘ante-semitismo’ e ‘anti-

semitismo’ de Herr Hofrat, confronta-se com a idéia de um judeu que fala mal de seus

antepassados. Observa-se que a modificação de um único fonema provoca um

deslocamento de sentido, reforçando uma visão crítica do preconceito de um semita a

seus antepassados. Por meio da similaridade acústica das duas expressões, o locutor

expõe um ponto de vista em forma de trocadilho.

d) múltiplo uso com sentido pleno e sentido esvaziado

Fazendo alusão aos judeus da Galícia, que não gostam de tomar banho, Freud

relata a piada de um judeu que perguntou ao amigo: “Você tomou um banho?” O amigo

respondeu prontamente: “Por quê? Está faltando um?”. Analisando a técnica do chiste,

Freud constata que a palavra ‘tomar’ tem duplo sentido. O efeito bem-sucedido do chiste

Page 103: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

105

consiste na escolha da expressão ‘tomou banho’, se fosse utilizado o termo ‘banhou-se’

não produziria o mesmo efeito de ambigüidade gerador do efeito risível.

Nesta perspectiva, instala-se o nonsense, visto que o sintagma ‘tomar banho’ não

pode amparar a palavra ‘tomar’ com o sentido de ‘roubar’ um banho. Marca-se aí o termo

pivô que provoca a fuga temática da conversa estabelecida. O deslocamento do tema tem

como sustentação um novo enquadramento sobre o que estava sendo dito. Neste caso, o

foco volta-se para os próprios aspectos expressivos dos enunciados, retomados com outra

possibilidade de sentido. “Se substituímos a expressão ‘tomou banho’ pela equivalente

mais simples, ‘banhou-se’, o chiste se esvai” (FREUD, 1977, p.66). Este tipo de chiste se

realiza porque ataca alguém que não gosta de tomar banho, ao mesmo tempo em que

esvazia o sentido convencional da expressão ‘tomar banho’. Vejamos um chiste

produzido por Mafalda que utiliza os mesmos dispositivos.

(QUINO, 2000, p.156).

A formulação do chiste da tira apresentada tem em sua base a ruptura com sentido

convencional da expressão ‘levar uma vida decente’ (viver com dignidade), para fazer

vigorar o sentido ‘levar um objeto para um determinado lugar’. A expressão ‘vida

decente’ passa a ser tratada como um objeto concreto, capaz de ser transportado para uma

Page 104: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

106

localidade. O absurdo deste enunciado é a confirmação de que o termo ‘vida’ só pode ser

referido na instância da linguagem verbal, visto que não há referência no plano de

existência material. O jogo de linguagem aí estabelecido explora os limites da literalidade

para desenvolver um trocadilho.

DUPLO SENTIDO

Diferentemente da técnica do múltiplo uso em que um significante aparece duas

vezes com significados diferentes, o duplo sentido decorre do uso de uma determinada

expressão ambivalente que não se repete na estrutura do enunciado, mas sustenta duas

interpretações. Isto é, no enunciado é possível captar um estado de tensão que não deixa

negar a possibilidade de duas representações diferentes, organizadas por meio de uma

única unidade lingüística. Apoiando-se no contexto e na identificação de item lexical

com dupla significação, o ouvinte é atraído pelo sentido mais malicioso da enunciação,

sem, no entanto, negar a segunda possibilidade de interpretação. É aí que reside a graça

desta técnica.

a) duplo sentido: significado como um nome e como uma coisa

Esse tipo de técnica se realiza por meio da coincidência de um nome designador

de dois referentes. Tal procedimento revela a construção de uma representação baseada

na identidade de um nome que expressa dois referentes, sem que um recuse o outro.

Percebemos o duplo sentido do nome ‘Banko’, personagem da peça Macbeth de

Sheskepeare: “O vil Macbeth não reina aqui em Hamburgo: o rei aqui é Banko [dinheiro

bancário]”. Evidencia-se o mesmo procedimento, quando Hagar enuncia a palavra

‘escocês’ com dupla referência.

Page 105: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

107

HAGAR – Dik Browne

(Folha de São Paulo, 13/09/04).

O quadrinhista Browne, de forma bem humorada, expõe a mesma formulação

chistosa a partir do nome ‘escoceses’ com dupla significação: cidadão da Escócia e

bebida alcoólica. A afinidade de Hagar com os escoceses decorre da bebida que eles

produzem, daí a adoração por eles.

b) significado metafórico e literal

As noções de sentido literal e metafórico das palavras vêm sendo bastante

contestadas pelos lingüistas na atualidade. A própria visão de metáfora como linguagem

figurada é questionável na medida em que nos comunicamos por meio de expressões

que, com o passar do tempo, conquistaram um valor de literalidade no uso corrente da

língua. Tradicionalmente, o sentido literal diz respeito à permanência de significação

de uma frase ou expressão, independente do contexto em que ela é apresentada. Tal

perspectiva deixa uma série de brechas para compreendermos a fronteira entre sentido

metafórico e sentido literal. Podemos, no entanto, estabelecer o confronto entre sentido

metafórico e literal voltado para os estudos do chiste em Freud de outra maneira. A

relação metáfora- literalidade se estabelece no confronto de dois termos categóricos que

assumem maior/menor grau de concretude no plano de representação estipulada por

convenções. A tentativa de estabelecer relações diretas entre os dois termos acaba por

revelar não coincidências, podendo provocar a quebra das evidências ou a produção de

Page 106: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

108

discursos absurdos. A literalidade neste contexto é vista na relação entre dois termos

que se encontram em níveis de significação distintos, no interior de um enunciado.

Um médico, meu amigo afamado por seus chistes, disse certa vez a Arthur Schnitzler, o dramaturgo: 'Não me surpreendo que você tenha se tornado um grande escritor. Afinal seu pai susteve um espelho para seus contemporâneos'. O espelho sustido pelo pai do dramaturgo, o famoso Dr. Schnitzler, era o laringoscópio. Um famoso dito de Hamlet fala -nos que o objetivo de uma peça, tanto quanto do dramaturgo que a cria é suster, como se fora um espelho à natureza; mostrar à virtude sua feição própria, ao escárnio sua própria imagem, ao torso e à longa idade do tempo sua forma e premência (FREUD, 1977, p. 52).

O chiste retratado explora a noção de espelho que instrumentaliza duas

profissões. Tanto o pai, Schintler, inventor do laringoscópio, quanto o filho,

dramaturgo, desenvolveram modos de projetar imagens. A diferença observada é que as

contribuições do pai e do filho ocorreram em campos díspares de conhecimento.

Enquanto o pai situa-se no campo da medicina, trabalhando com um espelho encontrado

no mundo material, o filho estabelece reflexões sobre o homem por meio da produção

de peças teatrais. Neste contexto, a comparação entre as duas profissões gera um

estranhamento sutil, na medida em que o objeto inventado pelo pai visualiza órgãos do

corpo humano (espelho no sentido literal), enquanto o espelho produzido pelo

dramaturgo refere-se à reprodução da imagem da alma humana (espelho em um sentido

metafórico). Ao dizer que “o dramaturgo reflete sobre a alma humana” não teríamos

uma linguagem figurada, mas sim uma linguagem desgastada com o tempo que o

aproxima do sentido literal.

Sobre este chiste, Freud anuncia o efeito do humor por justaposição de dois

elementos concebidos em esferas de existências distintas. Exaltando-se o lado

espirituoso deste enunciado, o quadrinhista pode projetar situações em que um

enunciado pode ter significados distintos em dois planos de existência, produzindo a

ambigüidade que desencadeia o riso. O emprego de um termo que atua sobre duas

esferas representacionais pode ser notado na seguinte tira:

Page 107: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

109

(O Globo, 02/04/03).

Observamos duas significações para o termo ‘iluminar’ nas duas vinhetas: na

primeira, iluminar significa trazer conhecimento e sabedoria ao homem; na segunda

vinheta, iluminar diz respeito a um homem capaz de fornecer claridade a um espaço

físico por meio de luz artificial, no caso, velas. A multiplicidade de sentidos de uma

palavra em planos de significação distintos, em muitos casos, pode gerar incompreensão

por um ouvinte mais distraído, gerando mal-entendidos e incompreensão. É justamente

este aspecto que o quadrinhista utiliza para provocar humor. A incompreensão da

expressão ‘iluminar’, por parte de Eddie, acabou por conduzi- lo a um equívoco que gera

um efeito risível. Nesta tira, observamos de forma mais nítida um chiste inocente, visto

que Eddie não tem noção do jogo que faz com os dois níveis de significação do termo

‘iluminar’. Contudo é possível perceber a predominância de um sentido mais literal e

outro mais metafórico na enunciação projetada pelo quadrinhista.

c) duplo sentido propriamente dito (ou jogo de palavras)

O duplo sentido com jogo de palavras é um “caso ideal de múltiplo uso” de uma

mesma palavra com dois sentidos diversos, sem que haja um trabalho de mudança em

Page 108: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

110

sua estrutura sintática, morfológica ou fonética. Uma tirada bastante significativa desta

técnica, que Freud buscou nos estudos de Fischer, foi a seguinte: Quando Napoleão III

foi assumir o poder da Casa de Orleans, disseram: “C’est le premier vol de l’aigle”. [Eis

o primeiro vol da águia] (FREUD, 1977, p.52). A palavra ‘vol’ em francês pode

significar tanto ‘roubo’ como ‘vôo’. Para Freud, o jogo de palavras é uma condensação

sem formação de substitutivo: “O duplo sentido da palavra ‘vol’ torna tal substituição

desnecessária; seria igualmente verdadeiro dizer que a palavra ‘vol’ contém um

substitutivo do pensamento suprimido sem que se faça qualquer acréscimo ou mudança

no primeiro” (FREUD, 1977, p.59).

Em alguns chistes, a ambigüidade do duplo sentido é produzida no plano da

enunciação. Vejamos em Freud (1977, p.53): “Um médico afastando-se do leito de uma

dama enferma, diz a seu marido: ‘Não gosto da aparência dela’. ‘Também não gosto há

muito tempo’, apressou-se o marido a concordar”. Para produzir este chiste, identifica-

se no primeiro momento o comentário do médico sobre a aparência física, do ponto de

vista da saúde da paciente. O marido, aproveitando a deixa, desloca o tópico da

discussão para aparência estética da esposa e sua insatisfação com o casamento. Em

diversos textos inscritos no domínio humorístico, aproveitam-se estas coincidências

enunciativas para provocar um efeito risível.

d) double entente

(O Globo, 17/01/03).

Page 109: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

111

O double entente está ligado ao chiste de conotação sexual. O procedimento mais

utilizado é o apelo a alusões que indicam a realização dos instintos voltados para o

prazer do corpo (smut) e ao canibalismo. Nessa tira em quadrinhos, podemos observar o

duplo sentido da palavra ‘cebolinha’. Isto é, o termo é dotado de duas significações

distintas: nome do personagem e hortaliça que serve para comer em saladas. A

formulação do chiste consiste em colocar na primeira vinheta uma menina que afirma

ser vegetariana para o personagem Cebolinha sem revelar o motivo da declaração. O

questionamento de Cebolinha faz a garota formular uma cantada de forma ambígua, já

que o nome ‘cebolinha’ determina dois referentes distintos no contexto.

e) duplo sentido com uma alusão

O duplo sentido por alusão decorre da comparação de dois universos discursivos

distintos que apresentam algo em comum. Freud toma como exemplo a tirada

espirituosa de Heine: “Esta dama se assemelha em muitos aspectos à Vênus de Milo: ela

é também extraordinariamente velha, não tem dentes e há manchas na superfície

amarelada de seu corpo” (FREUD, 1977, p.88). A menção feita à Vênus de Milo para se

referir a uma determinada dama, não se atém aos traços físicos da deusa da beleza, mas

ao aspecto da estatueta carcomida pelo tempo. Quando o produtor do chiste dá

prosseguimento à descrição da Venus de Milo, especificando os atributos negativos a

serem destacados, ele cancela a alusão à beleza, comparando o desgaste da dama com o

desgaste da estatueta. Aqui percebemos que o deslocamento no plano lingüístico não é

determinado, somente, pela alusão e comparação a um objeto, mas por um jogo

argumentativo em que um determinado pressuposto é cancelado para fazer vigorar um

outro sentido diferente à proposta de elogio.

As alusões com tons maliciosos também podem ser feitas de forma auto- irônica,

ou seja, o próprio sujeito pode fazer alusões que depreciam a si mesmo. Freud narra a

história de um professor universitário que tinha mania de apresentar a matéria por meio

de chistes. Certo dia, na ocasião do nascimento de seu filho mais novo, recebe

Page 110: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

112

congratulações de seus alunos. O professor que já tinha uma idade avançada, responde:

“Bem... é notável o que podem fazer as mãos humanas” (FREUD, 1977, p.76).

Pode-se inferir que a alusão às mãos, em substituição aos órgãos sexuais, acaba

por estabelecer uma declaração absurda; a de que o filho não foi concebido pela

copulação, mas pela atuação das mãos. Com este chiste seu produtor zomba de si

mesmo, provocando em seus interlocutores um riso instantâneo.

Ponderações e encaminhamentos

Podemos observar, nos estudos de Freud (1977), a apresentação de um conjunto

de técnicas voltadas para a produção do chiste. Identificamos a manifestação dos

mesmos procedimentos estruturantes em boa parte das tiras em quadrinhos de Hagar, o

Horrível e Mafalda. Os ditos espirituosos dos pequenos diálogos decorrem de um

comentário ou de uma réplica que rompe com o curso de uma linha de raciocínio

esperada pelo interlocutor, provocando, assim, um efeito risível.

Na maioria dos exemplos ressaltados neste trabalho, identificam-se inversões,

substituições e mecanismos que rompem com um sistema de representações previstas.

Em boa parte dos chistes prevalece o jogo de pensamento e o jogo de palavras

trabalhados de forma integrada. Em muitos chistes há combinação e integração das

técnicas exploradas nos estudos de Freud, tais como: uso múltiplo de palavras, duplo

sentido e condensação.

Para compreender a formulação de um texto humorístico o destinatário, em

muitos momentos, precisará estabelecer inferências semânticas e pragmáticas. Além

disso, o leitor das tiras deverá se ater à combinação dos elementos cômicos

(automatismos, exageros, absurdos, caricaturas) que contribuem para a intensificação do

efeito risível. Sendo assim, apresentamos um quadro que esclarece a diferença entre

humor e cômico em nosso trabalho.

Page 111: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

113

Cômico (carnavalização)

Humor (chiste)

Jogo de representações e ações que subvertem a ordem preestabelecida. Utiliza-se do equívoco, da zombaria, do estereótipo, do grotesco, do nonsense para fazer rir. Vê e ri. O prazer decorre do rebaixamento do homem e dos valores promovidos pelos conteúdos representados. Conteúdo determinado pelo reconhecimento de subversões da ordem preestabelecida ou de paródias de textos.

Jogo discursivo espirituoso realizado por meio de incongruências exploradas no uso da língua e nas representações proposicionais. Vê, pensa e ri. O prazer decorre do modo de organização do discurso marcado por implícitos em sua formulação. Conteúdo determinado por inferências no âmbito da situação enunciativa.

Observamos que o cômico está relacionado às transgressões sociais no plano das

atitudes gestuais e verbais, de forma mais explícita no conteúdo representado, enquanto

o humor vincula-se ao discurso verbal marcado por implícitos e ambivalências

enunciativas no plano de sua formulação.

Apesar de Freud não utilizar a metalinguagem adotada pela teoria da

enunciação, seu trabalho problematiza muitas questões que os estudos de análise do

discurso, atualmente, abordam. Dentre os vários aspectos ressaltados, destacaremos

aqueles que envolvem a compreensão de atos de fala, as implicaturas, a polifonia e a

explicatura. Nossa tarefa a partir de agora é analisar os recursos que geram humor sob

uma perspectiva enunciativa, dando visibilidade a alguns procedimentos inscritos nos

enunciados geradores de humor.

Confirmamos a hipótese de que as tiras em quadrinhos assumem em sua

dinâmica um comportamento similar ao dos chistes analisados por Freud. Propomos,

doravante, ampliar a discussão sobre as propriedades da linguagem. Para tanto,

pretendemos fazer, no próximo capítulo, uma análise da contribuição dos estudos

desenvolvidos por Bakhtin, Benveniste, Austin, Grice, Ducrot e Sperber & Wilson, a

fim de compreender melhor o funcionamento do discurso do humor. Tais pesquisas,

apesar de não se debruçarem sobre os aspectos do humor especificamente,

desenvolveram modelos de análise que ajudam a compreender o uso da linguagem e

Page 112: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

114

seus efeitos em uma situação comunicativa. Com base nesses estudos,

desenvolveremos, paralelamente, uma proposta de análise de tiras em quadrinhos que

contribua para uma reflexão sobre o gênero discursivo tira em quadrinhos de humor.

IV - PROCESSOS ENUNCIATIVOS E OS IMPLÍCITOS NAS TIRAS EM QUADRINHOS DE HUMOR

(QUINO, 2000, p.172).

Nesta seção pretendemos explorar as possibilidades de compreensão dos

enunciados de efeito humorístico nas tiras em quadrinhos em uma perspectiva

enunciativa. Para tanto, faremos uma retrospectiva dos estudos que embasam esta

tendência. Este quadro teórico pretende tornar mais visíveis procedimentos utilizados

pelo quadrinhista na produção de enunciados que promovem o efeito risível. Nossa

principal tese é a de que há diversas formas enunciativas de mobilizar formulações

implícitas e ambivalentes no plano do discurso que geram procedimentos humorísticos.

Para que isso aconteça é preciso que o leitor das tiras leve em conta quem, onde, porque

e para quem o locutor dirige a palavra, tal como a personagem Susanita sugere em seu

discurso na tira acima. O trabalho do quadrinhista consiste, justamente, na atividade de

colocar em tensão o sistema de referência que sustenta o discurso, abalando a

possibilidade de interpretação somente com o que se encontra escrito nos balões.

Distanciando-se de uma tendência tipológica que analisa a tira sob uma perspectiva

narrativa, a proposta enunciativa deste trabalho tem como principal objetivo demonstrar

as marcas de subjetividade e intersubjetividade na linguagem em que os locutores

apóiam seu discurso para produzir enunciados ambíguos e chistosos. Além disso,

pretendemos observar como se dá a interação do discurso verbal e não-verbal diante de

um conjunto de convenções fixadas nos quadrinhos.

Page 113: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

115

A própria linguagem dos quadrinhos dispõe de uma organização que impõe

atividades dedutivas. Em muitas tiras, o implícito não se encontra no plano verbal, mas

na passagem de uma vinheta para outra, isto é, entre uma atividade exercida pelo

personagem e um novo acontecimento. Sendo assim, há um conjunto de ações omitidas

que são deduzidas em decorrência da própria linguagem dos quadrinhos que é dotada de

formulações implícitas responsáveis pela progressão da seqüência.

Ação omitida

HAGAR – Dik Browne

(BROWNE, 2002, p.21).

Podemos observar a omissão de fatos na passagem de uma vinheta para outra na

tira apresentada. Na mudança de vinheta ocorre a omissão do momento em que Helga

deixa de limpar o chão de sua casa para limpar o chão do barco de Hagar. É justamente

esta mudança abrupta e abreviada que nos permite compreender que a fala de Hagar foi

mais uma trapaça do que um gesto de preocupação com sua esposa.

Para Cagnin (1975), o modo de disposição dos quadrinhos determina uma sintaxe

que confere uma seqüência linear constitutiva de uma unidade de significação. “... ao se

juntarem duas ou mais imagens, se estabelece uma comparação entre as formas

percebidas (identificação, qualificação, função) na leitura de cada uma” (p.156). Neste

sentido, a sucessão de projeção de imagens é responsável por uma noção de causa e

efeito percebida pela variação entre uma imagem e outra. Tal mecanismo se comporta

Page 114: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

116

como um sintagma, visto que qualquer inversão ou troca de posição das imagens

significa mudança de significação do enunciado como um todo.

[...] assim como o discurso verbal, as palavras em sintagmas por

regras sintáticas de coordenação e subordinação, produzindo

mensagens lingüísticas, também as imagens podem vir a

significar em força das relações hierárquicas que se estabelecem

entre elas (CAGNIN, 1975, p.163).

A linguagem dos quadrinhos é responsável pelo ritmo de expressão dos

enunciados e pela organização temporal e espacial em que se passam os eventos

discursivos. Toda seleção de imagens corresponde a um recorte em que o quadrinhista

direciona o olhar para determinados aspectos da cena. Neste contexto ocorre a passagem

de tempo e/ou de mudança de cenário que contribuem com a significação dos enunciados

inscritos nos balões. Cagnin descreve três modos de configurar as imagens que ajudam a

compreender o funcionamento da linguagem dos quadrinhos.

a) redução: consiste na apresentação de uma única imagem que sintetiza o enredo

da história. A passagem temporal é deduzida pela disposição dos elementos que

compõem a cena;

b) expansão: uma ação apresentada de forma detalhada como se estivesse em

câmera lenta. Pode ocorrer uma superposição de movimentos para demonstrar um

movimento, produzindo a sensação de lentidão ou tempo prolongado;

c) elipse: entre um quadrinho e outro há um fato subentendido que é preenchido

por inferências produzidas a partir do conhecimento de mundo. Um som pode substituir

a própria ação em um processo metonímico.

Processos enunciativos inscritos nas tiras em quadrinhos

Para pensar sobre os processos envolvidos na interação verbal, retomaremos

algumas reflexões apresentadas no livro Marxismo e Filosofia da Linguagem escrito por

Bakhtin (1995). Esta obra investigou os fenômenos lingüísticos, levando em conta os

Page 115: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

117

aspectos históricos e ideológicos no processo de sua constituição. Fazendo uma ampla

revisão dos estudos da linguagem organizados, sinaliza duas tendências que reduzem a

língua a uma substância de ordem subjetiva, orientada por um prisma individual

(subjetivismo idealista) e uma segunda vertente dominada pela descrição sistemática de

formas gramaticais (objetivismo abstrato).

Considerando que o signo se constitui no processo de comunicação verbal,

Bakhtin (1995) questionou a possibilidade de se estudar os mecanismos de significação

de forma neutra e descontextualizada do universo social. Ele propôs o método marxista,

como meio de chegar às questões problemáticas da linguagem e concluiu que todo signo

é ideológico e de natureza interindividual, portanto, nenhum enunciado pode ser

analisado como estrutura estática e abstrata.

Bakhtin observa que a substância da língua ultrapassa os limites de um sistema de

códigos; em sua visão os estudos lingüísticos devem incluir a fala e o contexto de

realização dos discursos. Sendo assim, procura desenvolver uma teoria da enunciação

atenta ao processo de significação das palavras, frases e enunciados no contexto de sua

projeção.

As propriedades da enunciação

Bakhtin (1995) toma a enunciação como uma atividade em que a língua atua de

forma dinâmica em uma extensão concreta de interação. De acordo com esta orientação,

a enunciação se constitui de elementos verbais e não verbais que interagem em um

processo catalisador de construção de sentido diante dos objetos simbólicos (palavras,

gestos, imagens) envolvidos em uma situação de comunicação. Segundo Bakhtin, é no

espaço da enunciação que a palavra ganha ancoragem para a produção de sentidos. Esta

posição fica mais clara, quando este autor faz a distinção de duas propriedades da

enunciação: tema e significação.

O tema é “uma propriedade que pertence a cada enunciação como um todo”, seu

sentido é sempre único, indissolúvel, completo, individual e não reiterável.

Apresentando-se em um contexto histórico concreto (sujeitos e circunstâncias

Page 116: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

118

localizáveis) fornece uma orientação espaço-temporal aos enunciados. O tema configura

as condições que possibilitam o surgimento de enunciados em um dado momento,

orientando-se para uma dada interpretação. Sendo irredutível a análise, visto que sua

constituição não se cristaliza, o tema só pode ser tomado em sua totalidade no momento

da enunciação. Sua natureza se expressa na ordem do acontecimento, em que um

conjunto de fatores (psicológicos, históricos, lingüísticos, ideológicos, etc.) se articula

em função de uma formulação de sentido.

Isto pode ser exemplificado, se pensarmos na exclamação de um sujeito: “Como

está frio aqui!”. A repetição do mesmo enunciado dois minutos depois, no mesmo local,

com os mesmos sujeitos, poderá provocar um novo efeito e conseqüentemente um novo

tema se consagrará a partir da dinâmica instaurada. O tema seria o ponto de sustentação

contextual no processo do funcionamento lingüístico (discurso). Apesar disto, a

realização do tema só se torna possível no plano lingüístico diante dos mecanismos de

significação (frase).

A significação é o “aparato técnico” que fornece instruções lingüísticas,

permitindo a realização do tema. A esta propriedade da enunciação, Bakhtin chama de

significação. Seus elementos são reiteráveis, idênticos, cada vez que são repetidos. Em

termos estruturais, ocupam as mesmas funções em diferentes enunciados. Os

componentes constitutivos da significação se organizam a partir de convenções que

fixam sentidos ao signo verbal, podendo ser analisados através de um conjunto de

saberes lingüísticos constituídos de uma forma abstrata (domínios morfológicos,

sintáticos, fonéticos e lexicais). Neste sentido, a significação corresponde a um conjunto

de elementos arbitrários que possibilitam a produção dos enunciados. Para Bakhtin

“tema” e “significação” são propriedades interdependentes da enunciação. Não existe

tema sem significação, nem significação sem tema. Vejamos um exemplo de

manifestação do tema e da significação na tira produzida por Quino.

Page 117: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

119

(QUINO, 2000: 295).

Observamos pela fala em coro, na segunda vinheta, dos três personagens –

“...Quando cheguei no cruzamento vi aparecer aquele animal correndo feito doido,

porque só mesmo louco para cruzar...” - que se trata de uma descrição de um acidente

narrado pelo pai de Mafalda em momento anterior. A história foi contada tantas vezes

que Mafalda e sua mãe já decoraram todo o enunciado e o repetem em coro. Apesar de

expor a mesma estrutura sintática e a escolha lexical ser idêntica, a retomada do

enunciado diante dos mesmos sujeitos produz um efeito diverso da primeira vez em que

ele ocorreu. Com isso, observamos que a mudança de tema e o recorte dos enunciados

não estão nos limites da oração, mas no processo de interação verbal.

Os dêiticos e a não-coincidência referencial no discurso

(QUINO, 2000, p. 278)

A noção de enunciação é enriquecida com os estudos de Benveniste (1989)

sobre a inscrição da subjetividade na própria língua. Este lingüista se opõe à noção de

natureza do signo lingüístico proposta por Saussure no texto Semiologia da linguagem.

Para Benveniste (1989) a relação do significante/significado não é arbitrária, ela é

Page 118: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

120

necessária. Para explicar melhor seu postulado, Benveniste distingue dois níveis de

significância da língua, o semiótico e o semântico. No primeiro nível, ele descreve a

língua como sistema, tal como é apresentado por Saussure. Já no nível semântico, os

fatos lingüísticos resultam de relações referenciais organizadas pelo sujeito da

enunciação. Todo enunciado tem como centro de determinação do espaço e do tempo o

sujeito que enuncia para um tu inscrito na enunciação.

Em O aparelho formal da enunciação, Benveniste (1989) afirma que o ato de

colocar a linguagem em funcionamento implica um sujeito tomar a palavra em direção a

um Tu imediato (seja individual ou coletivo). O sujeito ao se apropriar da língua a atualiza

para efetuar uma atividade discursiva. Nesta instância, o sujeito da enunciação constrói um

conjunto de referências sustentadas lingüisticamente pelos dêiticos (indicadores de pessoa,

tempo e espaço). É a partir deste sistema de coordenadas que um sistema de referência se

constitui. Sendo assim, a enunciação seria o ato, o elo que promoveria a mediação entre a

língua e o discurso. O enunciador, diante de determinadas circunstâncias enunciativas,

produz um sistema de referências particular, marcando de uma maneira singular o uso da

língua, deixando, assim, marcas de subjetividade naquilo que enuncia.

Esta propriedade subjetiva da linguagem pode gerar uma série de ambivalência

sobre o enunciado, já que o sistema de referência de uma língua não é determinado

somente por uma instância exterior, mas depende, também, do sistema de referência

instituído por quem enuncia quando toma a palavra. Em diversas situações o uso de

dêiticos não coincide com o sistema de referência do destinatário, provocando assim uma

série de equívocos. O quadrinhista, aproveitando-se desta propriedade ambivalente da

linguagem, explora esse fato para provocar humor nas tiras em quadrinhos. Vejamos um

destes casos estabelecido na tira de Chris Browne.

Chris Browne

(O Globo, 12/07/06).

Page 119: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

121

A exploração de equívocos decorrentes da ambivalência de dêiticos inscritos nos

enunciados é uma das formas de promover o efeito risível arquitetado pelo quadrinhista.

Na tira que acabamos de ler, a pergunta – ‘Será que ainda vou estar aqui em duas

semanas?’ – é constituída pelo dêitico ‘aqui’ se referindo a existência do próprio Hagar na

terra em um momento futuro. Contudo, a resposta de Eddie revela que interpretou o dêitico

‘aqui’ como o lugar em que estavam naquele momento: “Aqui fecha às onze da noite,

lembra?”. A incompreensão de Eddie sobre o sistema de referência proposto no enunciado

de Hagar acaba por gerar um equívoco que provoca um efeito risível. A mesma estrutura

é repetida de modo similar na tira a seguir.

TIRAS DO HAGAR

(BROWNE, 20/12/06).

A constatação e o ato de fala

A reflexão sobre os efeitos que um enunciado pode causar no âmbito discursivo

ganha uma nova dimensão nos estudos da linguagem com o surgimento da noção de

performativo. O inglês John Langshaw Austin (1911-1960), um dos principais

representantes da Pragmática2, explorou a interpretação do enunciado, trazendo a

exterioridade como elemento constitutivo da linguagem. Durante muitos séculos, o

estudo dos enunciados se fundamentou em princípios de descrição e constatação da

verdade encontrada nos proferimentos. Os enunciados eram lidos como uma declaração

que poderia ser identificada como falsa ou verdadeira. Em uma série de conferências

proferidas em 1955 e publicadas, depois de sua morte, no livro How to do things with

2 “... a Pragmática analisa, de um lado, o uso concreto da linguagem, com vistas em seus usuários e usuárias, na prática lingüística; e, de outro lado, estuda as condições que governam essa prática. Assim, em primeiro lugar, a Pragmática pode ser apontada como ciência do uso lingüístico. As pessoas que a estudam esperam explicar antes a linguagem do que a língua” (PINTO, 2001, p.48).

Page 120: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

122

words (1962), Austin afirma que a palavra nem sempre está representando coisas no

mundo, mas promovendo ações. Ao dizer “eu te batizo” ou “eu aposto duzentos reais”,

o falante não está fazendo uma declaração sobre um estado de coisas existente, mas

executando uma ação. Neste caso, o que está em jogo não é o valor de verdade de uma

sentença, e sim o tipo de atividade exercida no ato de proferir um enunciado.

Austin, durante a exposição de sua teoria sobre os atos de fala, vai reformulando

seu posicionamento diante dos impasses que ele próprio apresenta. Inicialmente, tenta

contrapor os enunciados constatativos e perfomativos. Para ele, os enunciados

constatativos têm como princípio a condição de serem falsos ou verdadeiros. Já os

enunciados performativos estão sujeitos a critérios de felicidade ou infelicidade, isto é,

se o ato de fala for bem sucedido do ponto de vista da ação realizada pelo falante,

diremos que o ato de fala foi feliz.

Para identificar as condições de felicidade de um enunciado performativo,

Austin afirma que a noção de ato de fala está ancorada em duas premissas básicas: a

idéia de comunicação como ato social concreto, mediado por convenções produzidas

por uma comunidade discursiva, e a visão de linguagem como forma de ação capaz de

gerar efeitos de sentidos sobre o outro no ato de dizer. Com isso, ele desloca o estudo

dos enunciados centrados na frase para o estudo dos atos de fala. Para que um ato

performativo seja bem-sucedido, é preciso que um conjunto de condições atue,

concomitantemente, como argumenta Austin (1990 p.31):

(A.1) Deve existir um procedimento convencionalmente aceito, que apresente um determinado efeito convencional e que inclua o proferimento de certas palavras, por certas pessoas, e em certas circunstâncias; e além disso, que (A.2) as pessoas e as circunstâncias particulares, em cada caso, devem ser adequadas ao procedimento específico invocado. (B.1) O procedimento tem de ser executado, por todos os participantes, de modo correto e (B.2) completo. (Γ.1) Nos casos em que, como ocorre com freqüência, o procedimento visa às pessoas com seus pensamentos e sentimentos, ou visa à instauração de uma conduta correspondente por parte de alguns dos participantes, então aquele que participa do procedimento, e o invoca deve de fato

Page 121: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

123

ter tais pensamentos ou sentimentos, e os participantes devem ter a intenção de se conduzirem de maneira adequada, e, além disso, (Γ.2) devem realmente conduzir-se dessa maneira subseqüentemente.

A investigação dos enunciados performativos se fundamenta na noção de papéis

sociais determinados por convenções estabelecidas em um ritual de fala. Determinados

atos de fala só têm valor efetivo se forem proferidos por alguém autorizado em uma

comunidade discursiva. Só poderá dizer: “Eu os declaro marido e mulher”, um

representante da Igreja que assuma o papel de padre em uma cerimônia de casamento.

Se este mesmo proferimento for dito por um convidado, o casamento não se efetivará.

Se o noivo disser ‘sim’ e já for casado com outra mulher, tal ato não efetivará o

casamento. Ou seja, a performance pode ser nula, se o falante e os participantes não

estiverem investidos de condições para a realização de tal ato. Austin esclarece que o

fato de um ato ser nulo, não significa que ele deixou de ser realizado. Contudo, o ato

pode ser cometido de forma infeliz. Desta forma, Austin (1990, p.33) descreve seis

casos de infelicidade no esquema a seguir, por nós adaptado:

INFELICIDADES

AB Insucessos

Ato intencionado nulo

Γ Abusos

Atos vazios

A Apelos indevidos

Ato rejeitado

B Falhas na execução do ato (defeituoso o incompleto)

Γ1 Insinceridade (pensamentos, sentimentos e

intenções)

Γ2 ?

(A1) (A2) (B1) (B2) Procedimento

não-convencional não-atuação

Má formulação de acordo

com as circunstâncias Má-atuação

Desempenho inadequado

dos participantes

para execução do

ato. Má

execução.

Ação correspon-dente abortiva por parte do

ouvinte. Não execução.

Dissimulação

?

Exemplos de atos de fala infelizes em tiras, piadas e situações do cotidiano:

Page 122: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

124

(A1) – Mafalda vai até o chaveiro e se expressa por meio de uma metáfora:

“Bom dia, moço, quero que faça a chave da felicidade”. O homem responde: “Com

muito prazer, trouxe o modelo?”. No lugar do pedido de uma chave comum, Mafalda

solicita a chave da felicidade. O ato lingüístico de Mafalda produz uma fórmula

lingüística não-convencional e a não-execução de seu pedido.

(A2) – Felipe, ao lado de Mafalda, lê um cartaz em que está escrito: “Não deixes

para amanhã o que podes fazer hoje”. Felipe diz: “Amanhã mesmo começo”. Felipe

não assume as palavras inscritas no cartaz, dizendo o contrário do que está sendo

preconizado.

(B1) – Neste caso, tanto as pessoas quanto as circunstâncias são adequadas, mas

é executado de forma incorreta. Um falante diz: “Aposto que a corrida não se realizará

hoje”, quando mais de uma corrida está marcada naquela localidade. O falante não

explicita que corrida não acontecerá.

(B2) – A tentativa de uma cantada, como Hagar tenta realizar, dirigindo-se a

uma moça em um bar: “Às vezes canso de minha mulher!”. A moça aborta a cantada

como a seguinte resposta: “Sorte dela se você de vez e sumir!”.

(Γ1) – O homem diz para a esposa “prometo voltar à noite”, sabendo que tem

um encontro com a amante, sem retorno. O ato da promessa é realizado, mas é vazio de

intenção.

(Γ2) – O juiz estabelece a sentença: “Eu julgo o réu inocente das acusações de

corrupção”. O réu de fato é uma pessoa corrupta, mas o juiz não tem consciência de tal

fato (ou não deseja demonstrar). Neste caso, o ato de fala não é nulo, mas é infeliz, visto

que o falante executa o ato pretendido, mas os interlocutores identificam argumentos

insatisfatórios. Apesar de os interlocutores não terem condições de invalidar o ato do

julgamento, sua performance pode ser considerada abusiva.

A infelicidade de um ato de fala decorre da violação das condições que

possibilitam a sua efetivação de maneira satisfatória. Nos casos (A) e (B) os atos são

considerados nulos, enquanto que nos casos (Γ1) e (Γ2) são tidos, apenas, como infelizes,

Page 123: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

125

visto a ação ser executada de forma abusiva ou vazia de intenção. Apesar de o estudo

sobre os enunciados performativos de Austin não levar em consideração atos de fala de

entidades ficcionais, podemos reconhecer no desempenho dos personagens das tiras de

humor a execução de atos de fala infelizes como fator de produção do efeito cômico. Da

mesma forma que o tropeço do palhaço nos leva a rir, o trabalho de linguagem em

muitos chistes consiste na realização de um ato de fala por um personagem de maneira

inadequada à situação enunciativa.

(Folha de São Paulo, 08/1/03).

Apesar de Eddie Sortudo utilizar a fórmula lingüística correta para fazer um

pedido de uma bebida refinada, o contexto no qual é realizado o proferimento não

permite o sucesso de seu ato de fala. Eddie se encontra em um bar de terceira categoria

e não em um restaurante fino. Neste local, não há muita escolha de bebida, portanto seu

esforço para pedir um vinho importado, bem envelhecido, delicado ao paladar foi em

vão. Podemos dizer que o humor deste tipo de tira consiste em atos de fala que

exprimem inadequação e conseqüentemente a não-concretização de um propósito. Para

tanto, os personagens executam atos que são mal-sucedidos ou anulados. Nesse sentido,

para interpretar um ato de fala é preciso estar atento aos papéis sociais desempenhados

pelos locutores, às escolhas lingüísticas, às condições de produção dos enunciados.

Page 124: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

126

O verbo performativo e a força ilocucional CLUBE DA MAFALDA

(QUINO, 20/12/06).

Austin, no decorrer de suas conferências, desenvolve critérios gramaticais para

explicitar a ordem dos performativos. Em um primeiro momento, ele assume que a

realização do performativo é gerada por meio de enunciados inscritos na primeira

pessoa do singular do presente do indicativo. A produção do enunciado de Mafalda -

“Quero te avisar que o Manolito está aprendendo a jogar bilboquê, e é um desastre!” -

foi proferido em primeira pessoa, explicitando o desejo de avisar sua amiga do perigo

que corria com o bilboquê de Manolito, produzindo assim uma ação com

conseqüências. Neste caso, o verbo performativo aparece de maneira explícita, cabendo

ao destinatário, diante da força ilocucional, reconhecer a ação inscrita no enunciado.

Contudo, o ato de avisar, realizado por Mafalda, não se caracterizou como uma

antecipação de um perigo eminente, visto que Susanita já havia sido atingida pelo

bilboquê. Sob essa perspectiva, o ato de fala de Mafalda foi insatisfatório devido ao

conjunto de acontecimentos que antecederam situação discursiva.

A felicidade de um ato de fala um enunciado depende da situação de interação

entre os interlocutores. Vejamos como o enunciado de Eddie foi organizado pelo

quadrinhista para provocar humor sob a perspectiva aqui abordada.

Page 125: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

127

(Folha de São Paulo, 08/1/03).

Page 126: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

119

A força de um ato de fala é determinada pelo contexto em que um enunciado é

projetado. Hagar, ao ver Eddie correndo e gritando: “Corra!”, imediatamente obedeceu

a voz do amigo. A força do enunciado proferido por Eddie promove uma ordem de

fuga, devido a um suposto perigo iminente. Este ato de fala, no primeiro momento,

manifesta-se como uma forma bem-sucedida, visto que a ordem de Eddie foi levada em

consideração por Hagar. É somente nas duas últimas vinhetas que Hagar descobre que a

razão da ordem não se trata de um aviso de perigo, mas de recomendações médicas que

afirmam que correr faz bem à saúde. Tal constatação faz com que a força do enunciado

de Eddie se esvazie e a ação deixe de ser executada.

Com este exemplo, percebemos que a força ilocucional não está ligada, somente,

à intenção do falante, mas às condições favoráveis para a realização de um ato.

Cavalcanti (1989, p.64) retoma os estudos de Van Dijk (1980), para apresentar

condições mínimas para atribuir força ilocucionária a um ato de fala. O ouvinte, ou o

leitor, em uma situação de interação, deverá levar em conta os seguintes tópicos:

A. Propriedades da estrutura do enunciado (atribuídas com base nas regras

gramaticais); B. Propriedades paralingüísticas, tais como acento, entoação, etc., de um lado,

gestos, expressão facial, movimentos corporais, etc., de outro; C. Observação/percepção do contexto comunicativo (presença e propriedade

de objetos, freqüentemente pessoas, etc.); D. Conhecimento/crenças na memória sobre o falante e suas propriedades, ou

sobre as propriedades da situação em questão; E. Mais em particular: conhecimento/crenças com respeito ao tipo de interação

em progresso, e às estruturas dos contextos anteriores à interação; F. Conhecimento/crenças derivadas de atos de fala anteriores referentes a

partes anteriores do discurso, ambos no nível micro (ou local) e no nível macro (ou global);

G. Semântica geral, em particular o conhecimento convencional sobre (inter-) ação, regras, etc., especialmente aquelas da pragmática;

H. Outras espécies de conhecimento geral de mundo.

É possível perceber, nas tiras em quadrinhos, mal-entendidos decorrentes da

discrepância entre valores ilocucionais, atribuídos pelos personagens a um determinado

enunciado. Um ato infeliz decorre, assim, de equívocos e atitudes de resistência a um

determinado posicionamento em uma interação verbal. Sendo assim, os atos de fala não

devem ser analisados isoladamente, visto que o sentido se constitui em uma cadeia de

sentidos entre os participantes em um processo de negociação. Quando um falante

profere um enunciado, seu dizer é confrontado com um estado de coisas existente e com

Page 127: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

120

um conjunto de crenças e expectativas. Desta maneira, um ato de fala pode inspirar um

efeito contrário ao intencionado pelo locutor.1 Em muitos episódios retratados nas tiras

em quadrinhos, observamos que as falas atribuídas aos personagens têm um intuito de

projetar um determinado efeito sobre seu destinatário, no entanto seus resultados

divergem do que foi inicialmente calculado pelo sujeito responsável pelo ato de fala.

Tal procedimento é um dos recursos explorados para a produção do discurso do humor,

como no exemplo a seguir:

(Jornal O Globo, 07/8/06).

Vemos na tira organizada por Browne uma encenação cômico-humorística por

meio de um tropeço lingüístico cometido por Eddie. O ato de fala de Eddie - “Você

percebeu que este é Hagar, o horrível?” - imprime uma força ilocucional de intimidar o

garçom a oferecer uma mesa, imediatamente, devido à fama de mal que seu amigo

Hagar possui. Todavia o efeito do enunciado gera conseqüências contrárias àquelas

esperadas por Eddie, visto que o garçom não se deixa intimidar. Consolida-se assim,

mais um ato infeliz que não realiza um intento diante das divergências de um outro

participante.

Prosseguindo com suas indagações teóricas, Austin constata que não há um

critério absoluto, gramatical ou lexical, para se chegar ao performativo, cabendo

investigar mais a fundo as fórmulas verbais que geram um ato de fala. Ele conclui que

na produção de muitos enunciados não há um verbo na primeira pessoa do presente do

indicativo que explicite a ação que está sendo realizada. Por isso, Austin chama atenção

1 “Devemos considerar de modo global a situação que fez o proferimento – isto é, o ato de fala em sua totalidade – para que se possa perceber o paralelismo que há entre a declaração e o proferimento performativo, e como um e outro podem dar errado. Em casos especiais, a importância do ato de fala total, na totalidade da situação de fala emerge progressivamente da lógica; e assim podemos ir assimilando o proferimento supostamente constatativo ao performativo”. (AUSTIN, 1990, p.56).

Page 128: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

121

para dois tipos de performativos: a) performativo explícito: ‘Prometo que estarei lá’. ; b)

performativo primário 2: ‘eu estarei lá’. No primeiro tipo de performativo o ouvinte

poderá identificar que o ato de fala corresponde a uma promessa, evidentemente,

inscrita no enunciado. O mesmo não acontecerá com o performativo primário, visto que

não há nenhuma indicação verbal que anuncie a intenção do locutor. A força ilocucional

do enunciado ‘eu estarei lá’ pode corresponder uma ameaça, uma promessa ou a

confirmação da presença em um dado lugar. Nesse sentido, todo enunciado em que há

um performativo primário pode haver mal-entendidos ou brechas que intervenha sobre o

seu valor ilocucional, de maneira espirituosa, como vemos a seguir.

HAGAR – Dik Browne

(BROWNE, 23/07/02)

Na tira que acabamos de ler, o perfomativo primário “Café?”, produzido por

Helga, configura o ato de oferecer sem a explicitação do verbo no enunciado. Isto

possibilita que o quadrinhista Browne possa atribuir ao personagem Hagar um

contraponto sobre o valor ilocucional do enunciado “Café?”, diferente daquele que foi

colocado como propósito de Helga. Observa-se que é justamente a propriedade

ambivalente dos performativos primários um dos principais recursos para promover o

efeito risível. Por meio deste procedimento, o quadrinhista pode colocar em confronto

dois valores ilocutórios que assumem perspectivas diferentes. Desta forma, o

oferecimento do café, feito por Helga, é tomado por Hagar como uma pergunta que visa

à constatação de que aquilo que ela tem na mão é de fato café. Acompanhando esse

trajeto, a resposta de Hagar - “Sim... acho que é!” - leva a concluir que a própria

2 Do ponto de vista da origem dos tipos de proferimentos, Austin afirma que os performativos explícitos são posteriores aos performativos primários. Ele justifica este postulado pelo fato de o homem, nos primórdios, ainda não ter clareza para distinguir os diversos tipos de atos exercidos em uma interação verbal. Sob esta perspectiva, as formas primitivas dotam os enunciados de maior ambigüidade e vagueza. O proferimento “touro”, nos primórdios, por exemplo, poderia ser uma advertência, uma informação ou uma predicação.

Page 129: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

122

aparência do que há no bule inspira dúvida. Tal postura leva a crer que o café de Helga

é muito ruim.

A expressão dos atos de fala

Austin, depois de estabelecer uma lista de verbos performativos e descrever

critérios gramaticais de seu uso, observou que a oposição entre enunciados

performativos e enunciados constatativos demonstrava impasses epistemológicos. Ele

conclui que, de alguma forma, todo enunciado constatativo compreende um valor

ilocutório. Sendo assim, começa a se indagar em que medida o ato de dizer, de fato,

corresponde a fazer algo.

Austin reformula sua teoria e afirma que o simples fato de abrir a boca e emitir

um enunciado corresponde a uma ação que mobiliza um estado de coisas. Em sua nova

investida, ele assume que o enunciado comporta três atos simultâneos: ato locucional,

ato ilocucional e ato perlocucional. O ato locucional resulta da produção de sons de uma

dada língua com um sentido e uma referência. Podemos dizer que a própria formulação

lingüística terá diversos valores, dependendo da circunstância de sua enunciação. O ato

ilocucional é o ato de proferir um enunciado atribuindo- lhe um dado valor e

restringindo o seu campo semântico de significação. Tal ato aponta para um conjunto de

expectativas vinculadas ao locutor no ato de realização de seu proferimento. O ato

perlocucional é o efeito que o proferimento gera no momento de sua enunciação aos

interlocutores. Vejamos como o humor é explorado quando se trabalha com essas três

instâncias do ato de fala.

(QUINO, 2000, p.162).

Page 130: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

123

O enunciado “Você vai ver” se repete nas cinco vinhetas. Nas quatro primeiras

vinhetas, Susanita antecipa uma parte do filme para Mafalda, utilizando o enunciado

‘Você vai ver’ como recurso para chamar a atenção dos momentos mais emocionantes

do filme. O ato ilocucional equivale a uma ordem (Eu ordeno que você veja agora).

Contudo, o sentido e o efeito da expressão, retomada em cada quadro, apresentam

gradações. A cada ato de fala de Susanita, a expressão facial de Mafalda demonstra

mais irritabilidade. Ao final, a menina tagarela é colocada para fora da sala e ameaça

Mafalda: “Você vai ver”. A força de seu ato é um juramento de vingança: “Eu juro que

você vai ver”.

Percebemos que muitas expressões produzem efeitos distintos, dependendo da

situação de comunicação. No processo enunciativo de Susanita, o ato perlocucional

expressa a rejeição de Mafalda aos comentários da locutora. O cômico deste quadrinho

é, justamente, o uso do mesmo material lingüístico “Você vai ver” com uma força

ilocucional divergente das investidas anteriores, produzidas por Susanita. Se nas quatro

primeiras vinhetas Susanita encontra prazer em contar a história para sua amiga, no

último quadrinho há um juramento de vingança com a mesma formulação verbal -

“Você vai ver!!” - dito com raiva.

O trabalho de Austin é uma excelente ferramenta teórica para explicar o

funcionamento discursivo humorístico de atos de fala mal sucedidos ou anulados, em

decorrência de convenções transgredidas ou formulações interpretativas equivocadas.

Da mesma forma que o cômico explora tropeços para provocar o riso, pode-se

evidenciar atos de fala infelizes que assumem um papel importante nas análises do

ponto de vista discursivo. Além de regras sociais envolvidas no ato lingüístico, a

própria conversa é determinada por um conjunto de regras.

Page 131: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

124

A infração de uma lei conversacional e a produção de implicaturas

Durante muitos séculos, a lógica formal, através de sua concepção de linguagem,

impôs um dispositivo de interpretação fundamentado no uso de uma língua ideal. O

objetivo era controlar o domínio de informações contidas em uma sentença por meio de

categorias generalizantes. Desta forma, as sentenças eram reduzidas a um conjunto de

fórmulas com a finalidade de estabelecer paráfrases dedutivas do conteúdo inscrito em

seu interior.

Grice (1992), em seu artigo “Lógica e Conversação”, inspirado em análises

opostas ao formalismo sentencial, busca o desenvolvimento de uma teoria que explique

a lógica do intercâmbio verbal, investigando as leis que governam a comunicação das

conversas. Ele revê a noção de implicação, pressuposto e acarretamento diante da

incorporação do contexto situacional. Com isso, ele investiga as condições de realização

das deduções sobre os enunciados em uma atividade comunicativa. Grice constata a

ocorrência de princípios que coordenam a negociação de sentido entre interlocutores no

uso da linguagem natural. Tais princípios permitiram a explicação de fenômenos

implícitos atuantes no processo de significação na interação verbal.

De acordo com Grice (1992), o ato comunicativo não se restringe somente ao

que é dito pelo enunciador, mas inclui o conjunto de deduções que o receptor estabelece

para interpretar os enunciados de forma cooperativa. Tal constatação leva o autor a

investigar princípios cooperativos que regem a significação de um proferimento. De

acordo com a sua visão, existem certas regras utilizadas pelos falantes para estabelecer

trocas cognitivas e intencionais. Para ele, toda conversação depende de um esforço

cooperativo entre os participantes que tornam os enunciados expressivos em uma

situação comunicativa. Observamos que uma das estratégias do quadrinhista para

produzir humor é a organização de situações em que um dos personagens não age de

forma cooperativa para a progressão da conversa.

Page 132: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

125

(QUINO, 2000, p.74) Podemos dizer que uma conversação é uma sucessão de turnos de fala,

realizadas por falantes que obedecem a regras de ordem semântica, sintática e

pragmática. A menina, ao lado de Mafalda, se recusa à manutenção da conversa,

utilizando a fórmula lingüística “não” para impedir a comunicação. Contudo,

observamos uma discrepância entre o ato de dizer “não” e o gesto de apanhar a bolacha

diante da oferta de Mafalda. O contexto da enunciação foi determinante para que se

depreendesse o conjunto de implicações responsáveis pelo sentido do enunciado. O

verbal por si só não esclarece a cena. No entanto, o contexto enunciativo evidencia as

condições de realização do enunciado. Constatamos que apesar de não atuar de forma

cooperativa na conversa, a menina aceitou a oferta de Mafalda. Com isso, o

quadrinhista Quino problematiza o próprio ato de comunicar no dia-a-dia.

Para refletir sobre as leis que regulam uma conversa, Grice estabelece máximas

conversacionais que os falantes devem seguir para tornar a interação verbal cooperativa.

a) Máxima da quantidade: os participantes de uma conversa devem fornecer

somente as informações requisitadas e necessárias na interação verbal. b) Máxima da qualidade: os participantes devem dizer somente o que acreditam ser

verdadeiro e que tenha elementos de comprovação. c) Máxima da pertinência (relação): os falantes devem emitir considerações

relevantes sobre o assunto tratado. d) Máxima de modo: os falantes devem produzir enunciados claros, ordenados,

evitando ambigüidades.

Quando um falante não obedece às máximas conversacionais, ele pode estar

querendo dizer algo de forma implícita, ou então, evitar a entrada em um assunto não

desejado. Neste caso, ele estará dizendo algo a mais por meio de implícitos. Vejamos a

quebra de uma máxima da pertinência encontrada na piada a seguir:

Page 133: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

126

O mordomo fala para seu patrão - Perdão patrão, o meu salário está baixo.

- Pois não, está desculpado.

Neste diálogo observamos o rompimento do princípio cooperativo com a quebra

da máxima da pertinência. Por uma questão de conveniência, o patrão descarta a

informação relevante transmitida pelo mordomo: a existência de seu salário baixo. O

patrão se detém na primeira parte do enunciado do mordomo “perdão, senhor...”. Com

isso, o patrão se desobriga de comentar sobre o salário do mordomo, deixando implícito

que não dará aumento a seu empregado. Esta formulação implícita, deduzida pela

quebra de uma das máximas dos princípios cooperativos, em um contexto enunciativo,

Grice denomina de implicatura.

Quando uma máxima é violada pelo falante, o interlocutor busca compreender

os motivos que o levaram a infringir uma das regras. O falante transgride uma máxima

para significar algo que não é dito de forma explícita no enunciado, mas demonstra uma

intenção comunicativa. Tal procedimento acaba por produzir uma implicatura, ou seja,

uma informação que deve ser presumida pelo ouvinte. Nos textos de humor é bastante

recorrente o uso de implicaturas que exigem o estabelecimento de inferências a partir de

dados contextuais para compreensão dos enunciados. Vejamos a ocorrência de uma

implicatura na tira a seguir:

HAGAR – Dik Browne

(Jornal O Globo, 09/2/02).

Page 134: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

127

Hagar quebra a máxima de modo, pois não fornece informações

solicitadas na pergunta de Helga de forma direta e clara. Sua resposta elogia a

preocupação de Helga e cogita uma mudança repentina da casa onde moram. Tal

raciocínio leva a crer que Hagar perdeu no jogo de pôquer e deve pagar a dívida com a

venda do imóvel. O quadrinhista encena a quebra da máxima de modo realizada pelo

personagem para produzir uma implicatura, ou seja, a perda da casa.

Como vimos, as implicaturas são inferências pragmáticas não

correspondentes aos rigores da lógica standard. Elas se realizam dentro de um

intercâmbio conversacional, considerando o conhecimento compartilhado nas trocas

realizadas pelos sujeitos em uma atitude comunicativa. O termo implicatura, proposto

por Grice, busca uma abrangência maior sobre os processos inferenciais, diante das

circunstâncias de comunicação. Tal implicatura pode ocorrer de três formas: (a)

nenhuma máxima é violada explicitamente; (b) uma máxima é violada para que outra

não seja violada; (c) uma máxima é abandonada para produzir uma implicatura

conversacional.

A implicatura é um recurso de que o comunicante dispõe sobre o uso da

linguagem para dizer “p” e implicar “q”. Diferente do pressuposto que explora o

implícito em uma relação lógica no nível da frase, independente dos elementos extra-

verbais, a implicatura apóia-se no contexto enunciativo para tornar mais significativa a

manifestação verbal.

Para deduzir que uma implicatura conversacional determinada se faz presente, o ouvinte operará com os seguintes dados: (1) o significado convencional das palavras usadas, juntamente com a identidade de quaisquer referentes pertinentes; (2) o princípio da cooperação e suas máximas; (3) o contexto, lingüístico ou extralingüístico, da enunciação; (4) outros itens de seu conhecimento anterior; e (5) o fato (ou fato suposto) de que todos os itens relevantes cobertos por (1) – (4) são acessíveis a ambos os participantes e ambos sabem ou supõem que isto ocorra (GRICE, 1992, p. 93).

A produção de uma implicatura é gerada por dados extraídos do co-texto, isto é,

dos elementos que se encontram no interior do enunciado ou do contexto efetivo de uma

realização enunciativa. As implicaturas instituídas por inferências derivadas dos

Page 135: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

128

elementos lingüísticos são chamadas de implicaturas convencionais, isto é, por meio de

operadores lógicos encontrados no enunciado, o interlocutor identifica o propósito

comunicativo. De outro lado, os enunciados vinculados a um conjunto de

conhecimentos prévios, acionados pelo ouvinte, são chamados implicaturas

conversacionais. Elas podem ser de dois tipos: generalizadas ou particulares. As

implicaturas generalizadas são produzidas por implícitos relacionados ao conjunto de

conhecimentos compartilhados entre os interlocutores. Para inferir informações deste

tipo de implicatura o interlocutor não precisa se apoiar em elementos extralingüísticos

que constituem a troca verbal.

TIRAS DO HAGAR

(BROWNE, 20 /12/2006).

No caso do “diálogo” de Helga e Hagar temos como implicatura conversacional

generalizada a evidência de que o casal realmente não dialoga. A conclusão deste fato

se deve à própria demonstração de não entrosamento em um ato comunicativo. Já as

implicaturas particularizadas estão apoiadas nos elementos concretos de realização da

enunciação. As inferências estão submetidas às circunstâncias em que um determinado

enunciado foi efetivamente proferido. Para refletirmos sobre as implicaturas

particularizadas, tentaremos ler o enunciado no quadro a seguir, sem o apoio do

contexto em que se realiza a conversa.

Page 136: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

129

Helga- Eu não acredito nisso!

Hagar- Slurp! Slurp! Slurp!

Hagar- É claro que não… Eu não falei nada

ainda!

Hagar- Slurp! Slurp! Slurp!

A dificuldade de compreensão do enunciado – “Eu não acredito nisso!” – deve-

se ao apagamento do contexto particular em que a fala foi realizada. Observa-se que só

se pode deduzir o que Helga não acredita, por meio do contexto em que a sua fala foi

dita. Por isso o estabelecimento desse tipo de implicatura ocorre em um universo

particularizado, apoiado em dados expressivos no contexto constitutivo do dizer. Como

pode ser notado na tira a ser demonstrada.

TIRAS DO HAGAR

(BROWNE, 20/12/2006).

Page 137: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

130

As implicaturas conversacionais canceláveis

Segundo Grice (1992), as implicaturas conversacionais compartilham de alguns

procedimentos: elas são dedutíveis, podem ser canceláveis, apresentam um grau de

indeterminação, e a atribuição de sentido de um enunciado pode depender de fatores

externos ao lingüístico. Apesar de as implicaturas conversacionais apresentarem um

grau de dedução, elas são perfeitamente canceláveis. As implicaturas deste tipo podem

ser anuladas, se houver o acréscimo de uma nova informação que desfaça o conjunto de

suposições estabelecidas no primeiro momento da conversa. É possível identificar, em

uma série de tiras em quadrinhos, o cancelamento de implicaturas para provocar o efeito

humorístico.

(Jornal O Globo, 01/05/03). O enunciado da primeira vinheta leva a supor que o funcionário real não aceita

suborno. Somente na segunda vinheta há indicações sobre os motivos de contestação do

funcionário real. O enunciado - “Não acredito que você esteja tentando subornar um

membro do conselho real com algumas moedas de ouro!” - acompanhado do segmento

– “vai precisar de muito mais” - cancela a leitura de indignação diante da tentativa de

suborno, visto que a insatisfação do funcionário real se refere à quantia irrisória para se

deixar subornar e não ao próprio ato Hagar tentar suborná- lo.

Observamos que a significação dos enunciados decorre da relação em seu

conjunto, e não, dos enunciados isolados. As suposições são reconfiguradas em

decorrência de um novo dizer. Neste sentido, as implicaturas são canceláveis. Outra

Page 138: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

131

manifestação de cancelamento da implicatura encontra-se no enunciado de Hagar, a

seguir.

HAGAR – Dik Browne

(Folha de São Paulo, 6/7/03).

A declaração “Não quero que você pense que o dinheiro é tudo”, realizada por

Hagar, leva a deduzir que seu argumento se direciona para a necessidade de se

considerar outras coisas importantes na vida, além da riqueza material. Contudo, o

segmento conclusivo, exposto na segunda vinheta, fortalece ainda mais a idéia de que a

riqueza é o mais importante, e por isso Hagar descreve outra forma para se ganhar

dinheiro: “Ações da bolsa também são importantes!”. O cancelamento de implicaturas

nas tiras em quadrinhos é uma das formas preferenciais de produzir o efeito risível,

visto que quebra um conjunto de expectativas do leitor. A teoria proposta por Grice

(1992) apresenta-se como um excelente instrumento para dar visibilidade aos

mecanismos discursivos que promovem um desvio argumentativo. O cancelamento de

implicatura demonstra como um conjunto de regras é burlado, ou supostamente burlado,

para provocar um efeito inesperado. Tomando como referência o trabalho de linguagem

aí realizado, podemos nos aproximar mais um pouco das regras de funcionamento

lingüístico no discurso do humor. Para estreitarmos este estudo, refletiremos sobre o

fenômeno da quebra de expectativa por um outro viés; pelo enfoque argumentativo

proposto por Ducrot (1977).

Page 139: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

132

Posto, pressupostos e subentendidos na produção do humor

Observamos no trabalho dos quadrinhistas um jogo com os pressupostos

inscritos nos enunciados dos personagens ou no conhecimento de mundo do leitor.

Muitas situações provocadoras de risos, nas tiras em quadrinhos, decorrem de um

embate velado entre os pressupostos que cada personagem defende em seu enunciado.

As relações de discordância entre os personagens, ou de um conjunto de crenças que

não coincidem com as do leitor, são determinadas pelo modo como os argumentos são

apresentados em cena. Para refletirmos um pouco mais sobre o assunto, revemos como

a noção de pressuposto, posto e subentendido pode ganhar um enfoque enunciativo,

ajudando na análise do efeito humorístico produzido nas tiras.

De acordo com Koch (1996), os estudos de posto e pressuposto ganharam

destaque quando Frege (1982) examinou a referência das proposições de frases como:

Aquele que descobriu que a órbita dos planetas é elíptica morreu na miséria3. Nesta

frase, haveria um conteúdo pressuposto, de que alguém descobriu a órbita dos planetas,

em substituição a Kepler, e um conteúdo posto que afirma a morte deste alguém na

miséria. Tal enunciado poderia ser considerado falso, se a descoberta da órbita dos

planetas não tivesse ocorrido, invalidando, assim, o conteúdo posto. Frege, então,

desenvolveu procedimentos, do ponto de vista técnico, para comprovar a presença de

pressuposições, observando a permanência de um conteúdo informativo, a partir da

transformação de uma frase assertiva em uma frase interrogativa e uma frase negativa,

como se apresenta em:

a) Aquele que descobriu que a órbita dos planetas é elíptica não morreu na

miséria. b) Aquele que descobriu que a órbita dos planetas é elíptica morreu na miséria?

De acordo com Koch (1996), a existência da descoberta da órbita dos planetas

permanece irrefutável, diante das duas frases, levando Frege a concluir que a

pressuposição pode ser comprovada por meio da operação demonstrada. Ducrot (1977)

se opõe aos critérios clássicos para se chegar ao conteúdo pressuposicional, visto que

3 Apesar da sentença não ter referência, ela apresenta um sentido. Dessa forma, para os lógicos, a sentença não é nem falsa e nem verdadeira em termos de proposição.

Page 140: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

133

são tratados de forma atemporal, sem considerar a situação particular em que os

enunciados são proferidos. Desta forma, os encaminhamentos propostos pela lógica são

insuficientes para explicar o funcionamento dos pressupostos em uma situação de

interação verbal. Sob a perspectiva enunciativa, a proposta de Frege (1982) deixou de

lado questões semântico-pragmáticas que, ao ver de Ducrot, são essenciais para se

desenvolver a noção de pressuposição.

Para dar início ao seu projeto, Ducrot (1977) critica a noção de língua como

código, instrumento de comunicação, defendida por Saussure (1974). Para ele as línguas

não são meros códigos, visto que os conteúdos expressos pela língua não são explícitos.

Não há uma relação biunívoca de um dizer com um estado de coisas ou um pensamento

em uma atividade comunicativa. Toda frase está relacionada com um locutor que a

pronuncia em determinadas circunstâncias. Nessa perspectiva, Ducrot propõe que se

inclua nos estudos da língua a fala, observando, assim, como se organizam os

enunciados em um discurso.

Ducrot (1977) defende que língua é essencialmente argumentativa, visto que as

palavras e as estruturas frasais determinam os encadeamentos argumentativos,

delimitando as possibilidades de sentidos dos enunciados, manifestados implicitamente.

Podemos observar incompatibilidades de dizeres do ponto de vista argumentativo, pela

própria escolha das palavras colocadas pelo locutor para defender determinada idéia.

Quando um locutor uma seqüência de enunciados com orientação argumentativa oposta,

imediatamente sua fala é refutada ou se torna objeto de riso. Tal falha é bastante

explorada pelos quadrinhistas ao expor um personagem defendendo uma idéia

acompanhada de asserções incompatíveis.

(QUINO, 2000, p.312).

Page 141: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

134

Susanita, jamais, poderia escolher as palavras “negros sujos” para negar a

afirmação de que era preconceituosa. Dessa maneira, a própria forma de nomear

pressupõe uma visão que direciona sua argumentação para um lado contrário ao que

deseja afirmar. Tal dimensão da linguagem é mais percebida se a análise não recai

somente sobre as frases do ponto de vista formal, mas das circunstâncias em que estes

enunciados são pronunciados. A partir, daí não se trata apenas da significação das

frases, mas dos encadeamentos entre os enunciados e seus possíveis efeitos em uma

situação discursiva. Por conta disto, Ducrot (1987) desenvolve, inicialmente, um projeto

de estudo de descrição semântica das línguas naturais com base na descrição dos

componentes semânticos observados na frase (significação) e dos componentes

retóricos relacionados à enunciação (sentido4, decorrente da produção de um enunciado

produzido por um locutor). Ducrot propõe a integração da semântica à pragmática na

análise dos enunciados.

É a partir das palavras que a enunciação e seu contexto devem ser caracterizados, porque a escolha das palavras cria uma imagem da fala e essa imagem é pertinente para a compreensão do discurso. Semântica e pragmática não se separam, já que o estudo do contexto e da representação da enunciação são integrados ao sentido do enunciado. A articulação semântica/pragmática tem sua origem na relação língua/fala (BARBISAN, 2006, p.4).

O processo argumentativo nas tiras de humor

No interior do enfoque semântico-argumentativo, Ducrot (1987) distancia-se da

noção de pressuposição desenvolvida por Frege, apoiada sobre a questão da verdade e

da falsidade das proposições, diante dos conteúdos informativos embutidos em uma

sentença. Ducrot constata que a questão essencial para refletir sobre a linguagem é a

distinção entre aquilo que é pressuposto e posto em um enunciado, para assim

compreender os processos argumentativos. No exemplo “Pedro parou de fumar”, temos

dois conteúdos informativos: a) Pedro fumava (pressuposto) e b) Pedro não fuma

atualmente (posto). De acordo com a sua perspectiva, essas duas conclusões não devem

ser colocadas no mesmo plano do discurso. Para dar continuidade ao enunciado, o

4 “... o sentido do enunciado constitui assim uma representação parcial da enunciação pelo enunciador. O sentido de um enunciado é o que o enunciador afirma X, ordena Y, pressupõe Z, etc. Esta concepção não exige que o enunciado tenha um único sentido”.(DUCROT, 1987, p.90).

Page 142: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

135

locutor se apóia no pressuposto que se mantém irrefutável, permitindo concluir que

“por isso está mais atento à sua saúde”. O pressuposto, e não o posto, é responsável pelo

quadro geral da enunciação, enquanto o posto corresponde às novas informações

acrescidas. Toda fala é desencadeada a partir de determinados pressupostos que

direcionam a argumentação para determinadas conclusões. A não aceitação do

pressuposto em uma conversa, por exemplo, implica discordar do que havia sido dito

antes, criando uma indisponibilidade com as premissas do locutor. Dessa forma, o ato

de pressupor corresponde a um ato ilocucional que fornece limites de sentidos sobre os

enunciados, criando obrigações e atribuições de papéis em defesa de um argumento.

(QUINO, 2000, p.156). O recurso humorístico reside justamente na pressuposição pouco polida de

Mafalda, ao negar que a mãe viva por meio do pressuposto inscrito na frase “Mamãe o

que você gostaria de ser se você vivesse?”. Em sua pergunta está embutida a afirmativa

de que a mãe só poderia ser alguma coisa se vivesse. Nesse sentido, a pressuposição

corresponde a um tipo de enunciado implícito em que o locutor não tem como negar o

que disse, posto que seu conteúdo informativo está marcado na frase. Podemos dizer

que a pressuposição promove, ao mesmo tempo, um ato ilocucional que transforma a

relação entre falantes-personagens. Com este procedimento, inscrito no enunciado de

Mafalda, foi colocado em jogo um conjunto de crenças e verdades que direcionam a

argumentação para uma dada conclusão.

No caso do quadrinho apresentado, o destinatário, a mãe de Mafalda, pode

aceitar o pressuposto, dando continuidade ao tema da conversa e assumindo o

encadeamento argumentativo com o gesto de lamentação sobre a vida vazia que tem, ou

agir contrariamente ao pressuposto, comprovando que de fato vive, rompendo, desta

Page 143: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

136

maneira, com a cadeia argumentativa proposta por sua filha. Observa-se, entretanto, que

o autor da tira em quadrinhos prefere deixar em suspenso a reação da mãe, expondo

somente a afirmação da filha, em forma de pressuposto, com a exposição dos serviços

domésticos que a impedem de aproveitar a vida. Desta maneira, a fala de Mafalda,

organizada pelo quadrinhista, realiza-se como um chiste em que delega o riso a um

terceiro que observa o encaminhamento do dito de forma implícita, deixando em

silêncio a voz da mãe de Mafalda. Contudo, existem outras estratégias discursivas que

rompem com o jogo cooperativo entre os enunciadores para provocar humor. Vejamos

como os pressupostos inscritos nos enunciados de Hérnia são tratados por Hamlet.

(Jornal o Globo, 5/6/05).

Diferente da mãe de Mafalda que não demonstra nem adesão nem recusa ao

ponto de vista apresentado por sua filha, o personagem de Browne, Hamlet, refuta todos

os pressupostos inscritos nos enunciados pronunciados por Hérnia, a partir de outros

pressupostos que invalidam a imposição de compromisso matrimonial no futuro. O

quadrinhista Browne projeta a recusa de pressupostos inscritos nos enunciados,

demonstrando a disputa argumentativa entre os personagens.

Hérnia, ao perguntar: “Hamlet, quando você quer casar?” e “Então onde nós

vamos morar?”, força a existência da pressuposição de que eles se casarão e irão morar

em um determinado lugar. Todavia, Hamlet justifica a impossibilidade de se pensar em

Page 144: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

137

tal assunto, visto que são crianças e não sabe como vai se sustentar quando for adulto.

Hamlet recusa todas as premissas levantadas por Hérnia, mas a personagem para

sustentar os pressupostos, por ela postulados, prefere não levar a sério os argumentos

de Hamlet e considerar que o mesmo só estava brincando. Desta forma, o quadrinhista,

não só demonstra a disputa argumentativa entre os personagens, como também acaba

por produzir a imagem de uma garota egocêntrica que não considera a vontade de seu

amigo, atrapalhando-o em sua leitura. Outra forma de organização discursiva é o

subentendido. De acordo com Ducrot (1987), podemos distingui- lo do pressuposto, da

seguinte forma:

Dizer que pressuponho X, é dizer que pretendo obrigar o destinatário, por minha fala, a admitir X, sem por isso dar- lhe o direito de prosseguir o diálogo a propósito de X. O subentendido, ao contrário, diz respeito à maneira pela qual esse sentido é manifestado, o processo, ao término do qual deve-se descobrir a imagem que pretendo lhe dar de minha fala (DUCROT, 1987, p.42).

Para refletir sobre o papel do subentendido no discurso, sob uma perspectiva

argumentativa, Ducrot avalia em que bases se encontram a sua formulação. Enquanto na

pressuposição há um locutor responsável pelo conteúdo semântico inscrito no

enunciado proferido, no subentendido o locutor não se responsabiliza pelo enunciado,

visto que não deixa marcas que o acusem de ter feito uma determinada afirmação. A

produção de subentendidos em um enunciado decorre de duas ou mais possibilidades de

sentido, em acordo com as circunstâncias em que o mesmo foi projetado, de modo que o

destinatário seja obrigado a considerar o valor do ato de fala. Tal fato faz com que toda

interpretação sobre o enunciado seja de responsabilidade do destinatário e não do

locutor. É importante salientar que todo subentendido está apoiado em uma situação

discursiva em que se avalia a razão de X dizer Y em determinado contexto.

TIRAS DE HAGAR

(BROWNE, 20/12/2006).

Page 145: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

138

O noivo de Honi pergunta que música ela deseja ouvir. Sua resposta se organiza

em forma de chiste, fornecendo duas possibilidades de interpretação ao seu ato de fala.

A primeira descrição semântica corresponderia ao sentido literal de ouvir a música

marcha nupcial. Tal possibilidade, entretanto, seria menos viável, visto que a música

mencionada costuma ser tocada em rituais de casamento e pouco ouvida em situações

mais informais. O fato de a jovem Honi pedir ao namorado que toque a marcha nupcial

deixa subentendido o seu real desejo, expresso em diversos episódios da série Hagar: o

sonho de se casar. É razoável que seu namorado entenda que ela está sugerindo a

definição da data do casamento. No entanto, Honi, para se preservar de uma resposta

negativa, manifesta sua vontade de casar por meio do subentendido, deixando que outro

o interprete em seu favor.

Ducrot (1987) conclui no desenvolvimento de sua teoria que é difícil separar

subentendido de pressuposto, visto que em uma situação discursiva eles estão

correlacionados a todo instante. Em toda atividade verbal, o pressuposto pode gerar um

subentendido, assim como um subentendido pode promover um pressuposto. Ducrot

(1987, p.37) afirma “...a noção de subentendido não designa um ato de fala particular.

Ela envia a um processo particular de codificação e decodificação, no fim do qual

aparecem todas as formas de atos ilocutórios, notadamente a pressuposição”. Vejamos

como esses procedimentos discursivos comparecem na tira a seguir.

HAGAR – Dik Browne

( BROWNE, 2002, p.33).

Observamos nesta tira que o quadrinhista articula um jogo de pressupostos e

subentendidos que surpreende o leitor. O enunciado “O marido da Irma parou de beber”

traz um conteúdo subentendido que vai além da informação pressuposta do marido de

Irma ter bebido em um período de sua vida. Ou seja, há um conjunto de saberes

Page 146: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

139

compartilhados entre os interlocutores que ultrapassa o nível do posto e do pressuposto.

Tal fato faz com que as duas amigas não desencadeiem a conversa sobre o pressuposto,

mas sobre implicações inferidas pelo subentendido. Desta forma, o encadeamento não

recai sobre motivos que levaram o marido de Irma a parar de beber, mas a

impossibilidade de tal fato acontecer, a não ser depois de morto. Sendo assim, é no

contexto de enunciação que a amiga de Helga vai além das informações inscritas no

enunciado, deduzindo que o marido de Irma só deixaria de beber se estivesse morto. Tal

fato é evidenciado quando a amiga pergunta pela realização do enterro, deixando como

pressuposto a morte do marido de Irma. Com isto podemos afirmar que a relação entre

pressuposto e subentendido ocorre constantemente na oralidade a todo o momento, sem

que haja uma fronteira nítida entre a passagem de um mecanismo para o outro.

Page 147: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

135

O discurso citado e a heterogeneidade

Sobre o recorte das enunciações, retomamos os estudos de Bakhtin (1995) que

chamam atenção para o fenômeno do discurso citado1. Uma parte de uma enunciação

pode ser retomada fora de seu contexto de origem, sendo assimilada por uma outra

enunciação. Isto pode acontecer, graças à mobilidade das fronteiras e à autonomia

relativa das enunciações, permitindo, assim, a inclusão de parte de uma situação

enunciativa em outro discurso. Essa elaboração, entretanto, exige que o falante, ao

retomar a enunciação de um outro, venha a fazer reformulações no plano de sua

composição sintática e estilística, de modo que a palavra e os sentidos de uma

determinada situação enunciativa sejam resgatados em seu discurso.

A partir da configuração enunciativa proposta por Bakhtin, foi possível constatar

que todo discurso é heterogêneo, isto é, toda enunciação carrega referências e células de

sentidos de outros discursos. Não é possível significar sem retomar significações da

palavra de outrem. Este processo dialógico pode ser notado através da heterogeneidade

de nossa fala. Todas as vezes que nos referimos a algo, trazemos de alguma forma o

discurso de outrem. Na maior parte das vezes, quando isto acontece, deixamos marcas na

superfície do texto que podem ser identificadas em um processo de análise.

Este mecanismo foi investigado por Jaqueline Authier-Revuz (1990) que se

fundamentou na abordagem psicanalítica lacaniana. Para ela, todo discurso é

determinado por um já dito de forma inconsciente. O produtor de um discurso não tem

total controle sobre o seu dizer. Ao formular um enunciado, os sentidos das palavras e

das expressões são tomados por uma significação pré-construída. A esse fenômeno

Authier denomina heterogeneidade constitutiva. Observa-se que todo discurso é produto

de uma memória do dizer (interdiscurso). O discurso do Outro comparece nas

formulações enunciativas do sujeito, sem que este tenha consciência. Sendo assim, não

1 “O processo de citação de um enunciado dentro de outro, conforme as relações estabelecidas entre discurso citante e discurso citado, pode se dar através da realização de três estratégias diferentes: como discurso direto (DD) que preserva a independência do discurso citado em relação ao citante; como discurso indireto (DI) que subordina o discurso citado ao ato de enunciação do discurso citante e, finalmente, como discurso indireto livre (DIL) que é mais restrito ao campo literário e vale-se dos dois anteriores para um tipo de enunciação específico (...) Segundo Maingueneau, enquanto no DD tem-se a crença de que há repetição das palavras de um outro ato de enunciação, dissociando, portanto, dois atos de enunciação, no DI só há citação do sentido, constituindo-se, assim, em tradução de uma enunciação citada” (FLORES, 1999, p. 144/145).

Page 148: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

136

podemos localizar e demonstrar na superfície do texto a fonte que determina seu dizer. A

razão de seu dizer está vinculada ao processo de identificação com discursos produzidos

no universo social. Vejamos no exemplo a seguir:

(QUINO, 2000, p. 118).

A heterogeneidade no discurso de Susanita não se encontra marcada de forma

nítida. Podemos identificá-la pelo modo como ela se filia a um discurso que vê a mulher

voltada para as funções domésticas na sociedade. Susanita, ao se dirigir à personagem

Mafalda que está ausente nas vinhetas, de forma agressiva, realiza um protesto.

Reparamos que ela não cita palavras exatas de nenhum discurso, contudo é possível

observar uma linha de argumentação que condiz com o discurso machista. Desta forma

Susanita defende a idéia de que a mulher não deve ocupar os cargos de engenheira,

arquiteta, advogada e médica, pois estes descaracterizam a identidade da mulher. A graça

do enunciado reside na atitude de Susanita se exprimir como uma militante que adere a

um posicionamento político desfavorável à sua condição de mulher, reproduzindo um

posicionamento tipicamente machista.

Além da heterogeneidade constitutiva, Authier observou outra forma de

heterogeneidade capaz de ser demonstrada na superfície textual, trata-se da

heterogeneidade mostrada. De acordo com a síntese de Mussalim (2001, p.128) esta

heterogeneidade pode se manifestar de três formas:

a) aquela em que o locutor ou usa de suas próprias palavras para traduzir o discurso de um Outro (discurso relatado) ou então recorta as palavras do Outro e as cita (discurso direto);

Page 149: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

137

b) aquela em que o locutor assinala as palavras do Outro em seu discurso, por meio, por exemplo, de aspas, de itálico, de uma remissão a outro discurso, sem que o fio do discurso seja interrompido; c) aquela em que a presença do Outro não é explicitamente mostrada na frase, mas é mostrada no espaço do implícito, do sugerido, como nos casos do discurso indireto livre, da antífrase, da ironia, da imitação, da alusão.

Para Authier (1990), a heterogeneidade mostrada revela uma não-coincidência do

discurso fonte com o discurso derivado. Todo dizer, ao retomar um discurso, produz

deslocamentos, favorecendo rupturas de sentidos. Desta maneira, a heterogeneidade

mostrada pode se manifestar de duas formas, organizadas no quadro a seguir:

HETEROGENEIDADE MOSTRADA

MARCADA NÃO-MARCADA

Discurso direto, discurso indireto, itálico, negação, paráfrase, negrito.

Discurso indireto livre, ironia, paródia, provérbio, imitação, slogan, pastiche.

Para exemplificarmos um caso de heterogeneidade marcada, tomaremos a leitura

de uma tira em quadrinhos.

(QUINO, 2000, p.406).

Identificamos, nesta tira, trechos de uma oração católica O pai nosso. Evidencia-

se aí a heterogeneidade marcada no discurso em que se observa uma fronteira entre o

discurso religioso e o discurso da personagem Susanita. O discurso religioso é repetido

por dois personagens tal como ele é apresentado na bíblia. O mesmo discurso bíblico,

Page 150: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

138

apropriado pela personagem Susanita, assume uma panorâmica diversa de sua fonte, ou

seja, o locutor produz uma novo sentido, convertendo a prece em uma fofoca. Com isso,

observamos um deslocamento na formulação do discurso religioso com enunciados

advindos do Pai nosso, assinalando marcas de heterogeneidade mostrada no discurso. A

produtividade das relações constatadas está, exatamente, na tensão entre dois discursos

que a rigor não se combinam, ou seja, ao mesmo tempo em que Susanita se dirige a Deus

por meio de uma oração reconhecida no espaço católico, incorpora ao texto comentários

sobre a vida alheia. Desta forma, o quadrinhista encena situações em que o falante não

tem controle sobre a linguagem, projetando de alguma forma formulações que advém de

dois campos discursivos distintos.

Authier (1998) aponta para um sujeito cindido, disperso e dividido em que a

exterioridade da linguagem tem relação, justamente, com o inconsciente. Com isso, o

olhar dos mecanismos enunciativos de Authier dá visibilidade aos lapsos, atos falhos e

chistes que estão constantemente sendo enfocados nas tiras de humor. Ao contrário desta

pesquisadora, o lingüista Ducrot trará uma outra perspectiva para retratar o sujeito da

enunciação por meio do desdobramento de entidades enunciativas. No lugar de pensar o

sujeito cindido, reflete sobre a multiplicidade e o desdobramento do ato de dizer realizado

por locutores e enunciadores.

Da polifonia na literatura à polifonia no enunciado

A consolidação de uma proposta de estudo polifônico no enunciado é apresentada

por Ducrot (1987) em seu artigo “Esboço de uma teoria polifônica da Enunciação”.

Nesse texto, recusa os postulados de unicidade e de homogeneidade do sujeito falante,

isto é, a presença de uma única voz como fonte e origem do sentido, sustentando uma

concepção referencial de significação restrita. Ducrot esclarece que esta crença se

encontra presente na lingüística moderna e também nos estudos literários.

Para romper com esta tradição, Ducrot propõe uma discussão lingüística, a partir

da visão polifônica elaborada por Bakhtin nos estudos literários. Sob o viés do

Page 151: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

139

funcionamento da língua, ele reflete sobre a relação entre o autor empírico, o narrador

(construção ficcional) e os personagens no enunciado. Ducrot transfere as categorias

estudadas na Literatura para explicitar a heterogeneidade inscrita nos enunciados

produzidos pelos falantes. Sua hipótese é de que, em cada enunciado, existe a presença de

três entidades discursivas, com funções distintas na projeção de um dizer. Estas instâncias

permitem analisar semanticamente um segmento discursivo, organizado da seguinte

forma: o sujeito empírico (instância externa, não expressa no enunciado, correspondendo

ao autor de uma narrativa), o locutor (entidade responsável pelo que foi dito) e o

enunciador (correspondente ao ponto de vista dos acontecimentos desenvolvidos na

narrativa). Desta forma, Ducrot contestará a unicidade do sujeito falante, quando produz

um enunciado. O falante, ao produzir um enunciado, coloca em cena argumentos que

assumem desdobramentos.

Em torno das marcas lingüísticas mostradas no enunciado, Ducrot (1987)

investiga a presença de ecos nos dizeres retomados a partir da fala de outrem. Ele

conclui que toda fala tem em seu bojo uma relação com dizeres, afirmações, negações de

outros sujeitos em uma cadeia de sentidos. Isto direciona o olhar de Ducrot para as

formas de representação do sujeito no enunciado. De acordo com este autor, a

manifestação de três entidades discursivas – a do produtor empírico, a do locutor e a do

enunciador – possibilita compreender o modo de funcionamento discursivo de um

enunciado.

O produtor empírico (falante que tem propriedades psico-fisiológicas) é o sujeito

formulador do dizer que constrói o enunciado a partir de um jogo de intenções e

elaboração intelectual. Corresponde ao ser no mundo, instância fora do discurso (de carne

e osso). É este que possibilita a construção material do discurso. Atua como se fosse um

Page 152: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

140

encenador de uma representação; não aparece, mas produz as condições materiais de sua

viabilização como faz o quadrinhista na produção das tiras em quadrinhos.

Para Ducrot (1987) a origem do sentido não está no sujeito empírico, mas no jogo

de vozes confrontado no discurso. Quando se projeta um enunciado, colocam-se em cena

figuras (personagens) enunciativas que são denominadas de locutores e enunciadores. O

locutor é a pessoa que se marca no enunciado através da designação de primeira pessoa. É

aquele que abre a boca para se referir como o “eu” do discurso, se responsabilizando pelo

que é declarado. Diferente do produtor empírico (autor efetivo), o locutor é uma ficção

discursiva manifestada na linguagem. Dito de outra forma, um locutor pode assimilar a

visão do autor empírico, quando há uma coincidência das duas entidades comunicantes.

Observemos como estas entidades se distinguem através do exemplo a seguir. Se um

locutor A diz: “Eu fui à aula do professor Fernando”, marcando-se como aquele que

estabeleceu a articulação psico-fisiológica do dizer (instância externa organizadora do

discurso), ao mesmo tempo em que é a pessoa responsável pelo dito no enunciado,

podemos dizer que houve coincidência de papéis: locutor e sujeito empírico são

correspondentes na enunciação.

O mesmo não acontece quando um pai deve assinar uma circular para seu filho

participar de um passeio organizado pela escola. Vejamos o enunciado:

ESCOLA X

Eu, _____________, autorizo meu filho_________________ a visitar o Parque da

Gávea no dia 17 de abril no turno da manhã, com a turma 501.

______________________

Assinatura

Page 153: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

141

Quem produziu o texto foi um funcionário da escola (sujeito empírico), todavia

quem assina, responsabilizando-se pelas declarações e utilizando marcas de primeira

pessoa, é o pai da criança. Nesta situação, o produtor empírico do bilhete e a pessoa que

assume a responsabilidade do discurso inscrito no enunciado são sujeitos distintos.

Ducrot (1987) demonstra a heterogeneidade do locutor por meio das marcas

lingüísticas e posições discursivas deixadas no enunciado. Desta forma, o sujeito

enunciativo não pode ser concebido como entidade homogênea, visto que um enunciado

pode refletir a presença de mais de uma instância enunciativa. Digamos que Pedro profira

o seguinte segmento: “João me disse: eu virei”. Encontramos aí, marcas de primeira

pessoa assimiladas por dois seres do discurso, ou seja, por dois locutores em um mesmo

enunciado. O primeiro segmento assimilado por Pedro e o segundo, por João. Revela-se o

mecanismo denominado de “dupla enunciação”2, posto que não existe um único sujeito

responsável pelas afirmações do enunciado.

O pronome ‘eu’ e outras marcas de primeira pessoa não são suficientes para

determinarmos se as declarações são de responsabilidade do locutor que as pronunciou.

Em alguns casos, o locutor toma a palavra para mencionar um enunciado de um outro.

Quando este diz: “Pedro disse: eu venho”, na verdade o locutor (L1) está citando uma

fala de outro locutor (L2), portanto não pode se responsabilizar pela afirmação de Pedro.

O discurso citado seria uma forma de dupla enunciação, no qual se pode

identificar a presença de dois locutores em um proferimento. Um locutor (L1),

responsável pelo enunciado global que traz para a cena a afirmação de Pedro, e um outro

locutor (L2), no caso Pedro, responsável pela segunda parte do enunciado “eu venho”.

2 De acordo com Ducrot (1987) este fenômeno pode se manifestar no enunciado através de ecos, diálogos internos, monólogos e apagamento do porta-voz em relação à pessoa que ele faz falar.

Page 154: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

142

Constataríamos a presença de dois locutores, também, no discurso indireto

“Pedro disse que vem”. Neste caso, o L1 não reproduz exatamente as palavras de L2, mas

o conteúdo semântico expresso na fala de L2. Ao contrário do discurso direto, que

supostamente preserva a materialidade das palavras do locutor citado, tal como elas

teriam sido ditas; no discurso indireto, o locutor insere em seu discurso a palavra alheia

por meio de uma reconstituição lingüístico-semântica, apagando marcas de primeira

pessoa. Além da dupla enunciação aqui demonstrada, Ducrot salienta outras formas de

manifestações polifônicas.

No enunciado “Ah! Eu sou um imbecil; você não perde por esperar!”,

encontramos um novo caso de dupla enunciação.O locutor (L), produtor das palavras,

designado com marcas de primeira pessoa no enunciado, na verdade não está dizendo que

é um imbecil, mas sim, retomando a fala de seu alocutário (AL). A responsabilidade do

ato ilocutório de afirmação de (L) ser imbecil é do (AL). Diremos que o enunciado de (L)

é um eco imitativo da fala do (AL). É a partir do resgate da produção enunciativa do (AL)

que (L) organiza uma encenação e estabelece comentários sobre a fala retomada.

Além do locutor que se constitui no nível do dizer, Ducrot apresenta outra

entidade discursiva que poucos percebem na interpretação de um enunciado. Trata-se do

enunciador (E), ou seja, o lugar de onde se diz um determinado enunciado. O enunciador

corresponde ao ser da enunciação não marcado pelo material lingüístico, mas pela

exposição de pontos de vista na cena discursiva. Estes pontos de vista revelam posições

enunciativas, presentes nas formulações proferidas pelo locutor.

As posições manifestadas nas representações enunciativas podem ser assimiladas

pelo locutor ou não. Ou seja, o locutor pode expor um ponto de vista do qual discorda,

contrastando com outra perspectiva para a qual dirige a sua argumentação. Em analogia à

construção de um romance, podemos pensar no caso do autor, criador de uma

Page 155: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

143

personagem, com cujas atitudes e posicionamento não se identifica. Retomando a teoria

da narrativa de Genette, voltado para o estudo semântico-pragmático dos enunciados,

Ducrot nos esclarece o papel do enunciador:

Ao enunciador igualmente posso fazer corresponder um dos papéis propostos por Genette. Vou colocá-lo em paralelo com o que Genette denomina às vezes “centro de perspectiva” ( o “sujeito de consciência” dos autores americanos), ou seja, a pessoa de cujo ponto de vista são apresentados os acontecimentos. Para distingui-lo do narrador, Genette diz que o narrador é “quem fala”, enquanto que o centro de perspectiva é “quem vê”. (...) O locutor fala no sentido em que o narrador relata, ou seja, ele é dado como fonte de um discurso. Mas as atitudes expressas neste discurso podem ser atribuídas a enunciadores de que se distancia – como os pontos de vista manifestados na narrativa podem ser sujeitos de consciência estranhos ao narrador (DUCROT, 1987, p.195/196).

Compreendemos melhor o papel do enunciador quando nos deparamos com um

acontecimento, em que o locutor, em um diálogo, se contrapõe a uma determinada

situação, produzindo uma declaração do tipo: “Lula não é um bom presidente”. Quando

o locutor (L2) faz esta contestação, coloca em cena dois enunciadores, visto que ao negar,

deixa como pressuposto a existência de um outro que sustenta a afirmativa “Lula é um

bom presidente”. L2 se identifica com a perspectiva negativa (E2), deixando o ponto de

vista que admite Lula ser um bom presidente para (E1). Manifesta-se, aí, a recusa do

enunciador E1 por L2 que assimila o ponto de vista aderido por E2.

Na maioria das vezes, o fenômeno lingüístico da negação3 manifesta-se como uma

atividade que expõe perspectivas antagônicas, produzindo, assim, uma dupla enunciação

no âmbito dos enunciadores. Para Ducrot (1987), o fenômeno de oposição a uma

determinada perspectiva não se manifesta, somente, através da negação explícita com a

expressão ‘não’, mas por mecanismos implícitos formulados no discurso. Na língua não

3 Não abordaremos, neste texto, as negações do tipo descritiva e metalingüística da teoria de Ducrot. A negação descritiva é fenômeno de negação que não tem a pretensão de refutar ou julgar um ponto de vista, mas descrever um estado de coisas que ocorre no mundo. Já a negação metalingüística contradiz os próprios termos da fala efetiva do locutor, da qual só uma parte é atribuída à sua responsabilidade, a outra parte do enunciado refere-se à retomada da fala de um outro em uma perspectiva oposta.

Page 156: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

144

se faz distinção entre enunciador e locutor e nem se percebe, em muitos casos, a presença

de um enunciador distinto do locutor. Essa distinção é feita no processo enunciativo,

existindo vários efeitos da negação na fala, sem que se demonstre através de marcas

lingüísticas precisas. Na ironia, o processo de negação não se dá de forma explícita. As

marcas lingüísticas de refutação não são localizadas em um ponto restrito, mas no

contexto da enunciação.

O movimento polifônico da ironia

(QUINO, 2000, p. 278)

Podemos dizer que Quino, por meio da cena de Mafalda escrevendo um diário,

retrata o próprio movimento de produção de enunciado no qual o seu autor empírico não

compartilha das opiniões que inscreve no texto. Identificamos a representação de uma

produção polifônica composta de três instâncias enunciativas: Mafalda, autor empírico; o

locutor-diarista que diz as coisas que a mãe deseja ouvir (e com o qual Mafalda não se

identifica) e a voz da direção do diário que estabelece a observação de que a autora não é

responsável pelo que é dito. Com isso Mafalda demonstra que foi coagida a escrever

daquela maneira e que a responsabilidade sobre o que foi dito não é dela.

Na ironia, o locutor faz afirmações na superfície do texto pelas quais não se

identifica e nem se responsabiliza, visto que estas são posições absurdas e insustentáveis

Page 157: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

145

dentro do contexto em que são apresentadas. Para que isto aconteça, em um diálogo, é

necessário o apagamento de marcas de relato do locutor, fazendo com que o discurso seja

sustentado na enunciação.

Diferente das declarações negativas, a ironia refuta a posição de um enunciador,

sem utilizar morfemas de negação. É possível examinar na ironia gestos de interpretação

que denotam repugnância a um determinado ponto de vista, sem entrar em conflito com a

perspectiva discordante. O locutor retoma um enunciado ou os pressupostos do mesmo,

sem compartilhar das opiniões do discurso citado. Diante deste fato, ocorre a

desqualificação da perspectiva enunciativa alheia, sem que o locutor se responsabilize

pela defesa do proferimento. Vejamos como isso acontece na tira de Quino.

(QUINO, 2000, p. 301).

O pai de Mafalda (L2) poderia refutar a posição da personagem Liberdade (L1)

dizendo, simplesmente, que ela não cresceu com uma declaração negativa. Dessa forma,

haveria dois enunciadores, dois pontos de vista sobre o crescimento de Liberdade. L2

assimilaria a perspectiva (E2) de que Liberdade não cresceu, enquanto L1 assimilaria a

perspectiva do enunciador E1 (Liberdade cresceu). No entanto, o locutor (L2) preferiu

utilizar o recurso da ironia para se comunicar.

Page 158: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

146

No primeiro quadro, encontramos a personagem Liberdade que é uma criança de

estatura baixa, apresentando a declaração afirmativa “... Quando eu era pequena me

levaram ao zoológico e tinha uma tartaruga”. A declaração feita por Liberdade (L1) não

apresenta grandes problemas, na medida em que este enunciado é dito sob a perspectiva

de um tempo anterior, quando era um pouco mais nova e menor do que no tempo

presente. No entanto, o fragmento da enunciação “Quando eu era pequena” é retomado

pelo pai de Mafalda (L2), em forma de eco, colocando em dúvida a declaração de L1. Ele

nega a pressuposição de que L1 deixou de ser pequena algum dia por meio de uma

pergunta: “Quando era pequena?”. Dessa forma, o enunciado de L1 é desqualificado,

assumindo uma perspectiva absurda, quando se compara o tamanho de Liberdade aos dos

outros participantes da conversa.

Liberdade (L1), percebendo o tom de ironia, apresentado por seu interlocutor,

ataca-o, quando modifica o rumo do diálogo. Ela desloca a questão do tamanho para a

questão da idade do pai de Mafalda, dessa forma, desqualifica a fala do locutor (L2).

Observa-se que não há confronto direto (oposição de idéias) dos locutores. O conflito é

manifestado, de forma implícita, por meio dos enunciadores que assumem visões

distintas.

A ironia manifestada pelo personagem/locutor e pelo autor/locutor

Por meio das representações enunciativas desenvolvidas na teoria polifônica de

Ducrot, tivemos a oportunidade de observar o modo de funcionamento discursivo da

ironia na interação verbal. A percepção da ironia, em determinados tipos de tiras, se dá

em virtude da movimentação de vozes articuladas pelo autor/enunciador que não se

manifesta concretamente na história, mas organiza pontos insustentáveis de sentido para

Page 159: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

147

provocar efeitos de incongruências. Pensaremos no discurso dos quadrinhos como um

discurso citado, identificando o “discurso no discurso, enunciação na enunciação”, sendo

ao mesmo tempo “um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre uma

enunciação”. (BAKHTIN, 1995, p.144). Vejamos a tira a seguir:

(QUINO, 2000, p. 233).

O discurso insustentável, nesta tira, não é percebido pelos personagens envolvidos

na situação enunciativa (com exceção de Mafalda, que manifesta a percepção de

incongruência por meio da expressão facial). O autor da tira sinaliza uma perspectiva

absurda, quando os alunos respondem em inglês, em uma aula voltada para o sentimento

de nacionalidade. Somos levados a crer que Quino, criador das personagens, atua como

se estivesse contando uma história, confrontando, assim, perspectivas díspares.

Concluímos que a ironia não é dizer o contrário do que havia sido dito, mas a

exposição de um enunciado que assume uma perspectiva de confronto com o enunciado

de outro locutor, promovendo, assim, um comentário crítico sobre um determinado ato

enunciativo. A ironia pode acontecer em dois níveis nos quadrinhos. No primeiro nível,

os personagens no interior da enunciação agem de forma irônica diante de outros

personagens, instalando, assim, vozes, que a serem confrontadas com o discurso do

opositor, faz o discurso alheio se tornar absurdo. Em um segundo nível, o autor que

arregimenta discursos confronta pontos de vista incongruentes. Um dos enunciadores,

Page 160: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

148

colocado em cena, postula uma perspectiva absurda diante da enunciação. Neste caso o

efeito risível não decorre de um locutor propriamente dito, mas das condições em que um

enunciado é proferido. As saídas para refletir sobre a ironia, em uma perspectiva

enunciativa, proposta por Ducrot, trazem uma série de contribuições na interpretação dos

textos humorísticos, dando visibilidade a procedimentos que atuam na produção de

enunciados de efeito cômico-humorístico.

A importância dos estímulos ostensivos na teoria da relevância

De acordo com Sperber e Wilson (2005), a compreensão da linguagem verbal

depende do estabelecimento de inferências, visto que o conjunto de códigos utilizados

pelo falante não é transparente; ele depende do contexto comunicativo. Esse contexto é

determinado pelas operações cognitivas voltadas para a organização das informações

provenientes dos estímulos recebidos. Se o conjunto de conhecimentos armazenados

pelo sujeito não for condizente com os estímulos oferecidos, a comunicação não se

efetivará satisfatoriamente. Sendo assim, nem todo processo inferencial pode ser

explicado por uma lógica demonstrável, como previa Grice (1992). Muitas situações de

inferências são derivadas de processos cognitivos que colocam em jogo conhecimentos

enciclopédicos ou informações compartilhadas pelos agentes envolvidos em uma

situação comunicativa.

Neste horizonte, a compreensão de um enunciado deve se fundamentar, não

apenas por procedimento de dedução lógica ou observação de quebra de uma máxima,

advinda dos postulados de Grice, mas pelo desdobramento de elementos que atuam na

formulação global de um enunciado. Tais fatores podem ser captados pela percepção

dos elementos ostensivos, pela decodificação lingüística, pela identificação do conjunto

de suposições dos interlocutores e pela dedução dos elementos envolvidos na

enunciação. Essas operações sofrem determinações da cognição humana que tendem a

dirigir a maximização da relevância das informações em uma situação comunicativa.

Sendo assim, Sperber & Wilson (2005) fazem as seguintes críticas ao modelo proposto

por Grice:

Page 161: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

149

Grice parece não ter observado (ou ao menos não ter desenvolvido a idéia) de que o seu Princípio Cooperativo e as máximas poderiam ajudar em outros aspectos da interpretação pragmática além dos recobertos pelas implicaturas: com a desambiguação e a atribuição de referências, por exemplo, que ele viu como contribuindo não com aquilo que é implicado, mas com aquilo que é (explicitamente) dito. Em Logic and conversation, ele dá a impressão de que o significado da sentença e os fatores contextuais são suficientes para dar conta da desambiguação e da atribuição de referência, e a maioria dos pragmaticistas griceanos simplesmente o seguiu nisso. Esse descuido teve duas importantes conseqüências. Primeiro, os pragmaticistas griceanos foram lentos para reagir aos extensos trabalhos psicolingüísticos feitos sobre a desambiguação e atribuição de referência. Segundo, eles tentaram garantir que os princípios pragmáticos não contribuem para o conteúdo explícito, e que qualquer aspecto da interpretação do enunciado, nos quais os princípios pragmáticos desempenham algum papel, é automaticamente uma implicatura (SPERBER & WILSON, 2005, p.37).

Sperber e Wilson afirmam que as quatro máximas postuladas por Grice podem

ser reduzidas a um único princípio, ao da relevância. Para deduzir informações

implícitas de uma interação verbal, devemos buscar uma inferência global do

enunciado. De acordo com esse prisma, a relevância4 não é determinada, somente, pelas

marcas lingüísticas encontradas na interação verbal. O contexto enunciativo é

determinado por estímulos ostensivos que atuam junto à produção do enunciado verbal.

Na concepção destes dois autores, a interação é determinada por fatores relevantes

otimizados no processo comunicativo. Vejamos os contrapontos entre a teoria de Grice

e a de Speber e Wilson, a partir da análise da tira em quadrinhos a seguir:

4 Sperber e Wilson (2005, p.7) definem relevância como uma propriedade voltada para inputs destinados a processos cognitivos: “relevância é uma propriedade potencial não somente de enunciados e outros fenômenos observáveis, mas de pensamentos, memórias e conclusões de inferências. Nos termos da Teoria da Relevância, qualquer estímulo externo ou representação interna que fornece um input para processos cognitivos pode ser relevante para um indivíduo em algum momento”.

Page 162: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

150

(BROWNE, 2002, p.72). Sob a perspectiva de Grice, o estabelecimento da implicatura é decorrente da

violação de uma das máximas. Quando Hagar pergunta há quanto tempo estão casados,

Helga responde, ferindo a máxima de modo. Ela declara com a precisão de dias o

período em que estão casados, e não o tempo aproximado como ocorreria em uma

situação cotidiana. Além deste fator, podemos adotar outra forma de deduzir a

informação proposta sob o viés da teoria da relevância. Sob a perspectiva de Sperber &

Wilson, outros estímulos ostensivos levam à mesma conclusão apontada pela primeira

teoria. Podemos visualizar a expressão facial de Helga triste, cortando batatas, e na

parede um conjunto de riscos, indicando os dias contados. Tais estímulos levam o leitor

a acionar outros conhecimentos armazenados em sua mente, concluindo que o

casamento de Helga é um exemplo de felicidade.

De acordo com o conhecimento de mundo, o conjunto de riscos na parede

ocorre, na maioria das vezes, quando alguém está na cadeia e não quer perder a noção

do tempo. Estar na cadeia significa deixar de viver e não ter liberdade. Como ninguém

risca a parede de sua casa para contar os dias de casado, tal como fez Helga, é possível

deduzir, por meio do tópico de discussão da conversa, que a união matrimonial é vista

como uma prisão. Tal dedução é facilitada pelos estímulos ostensivos evidenciados na

enunciação. Sendo assim, o propósito comunicativo, instaurado pelo quadrinhista,

alcança o efeito humorístico por meio de críticas à relação conjugal deteriorada de

Helga e Hagar. Seguindo os princípios interpretativos exemplificados, Silveira & Feltes

(2002) esclarecem diferenças entre o enfoque de Grice e Sperber & Wilson :

Page 163: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

151

Diferentemente de Grice e dos pragmatistas que seguem sua linha teórica, os autores (Sperber & Wilson) não consideram que qualquer aspecto da interpretação do enunciado pragmaticamente determinado é sempre uma implicatura, com exceção da desambiguação e atribuição do referente. Para eles, a combinação de características conceituais contextualmente inferidas e lingüisticamente decodificadas constitui a explicatura, que é uma suposição explicitamente comunicada, e argumentam que todas as explicaturas podem ser inferidas do contexto, da forma proposicional do enunciado e da atitude proposicional do falante (SILVEIRA & FELTES, 2002, p.110/111).

Sobre o processo global de compreensão de um texto, Sperber e Wilson (2000a,

p.5) chamam a atenção para a articulação de procedimentos voltados para a

interpretação. Uma das formas de garantir uma comunicação efetiva é trabalhar com um

conjunto de suposições a serem confirmadas ou refutadas no percurso da leitura. Os

autores apontam três subtarefas que devem ser desempenhadas no processo da

compreensão global da ação comunicativa.

a. Construção de uma hipótese apropriada sobre o conteúdo explícito (EXPLICATURAS) por meio da decodificação, desambiguação, resolução de referência e outros processos de enriquecimento pragmáticos. b. Construção de uma hipótese apropriada sobre suposições contextuais pretendidas (PREMISSAS IMPLICADAS). c. Construção de uma hipótese apropriada sobre implicações contextuais pretendidas (CONCLUSÕES IMPLICADAS).

É a partir da eliminação dos fatores não relevantes que o leitor constrói a

intenção comunicativa do locutor. A valorização dos elementos constitutivos da tira, no

que tange à relevância, é colocada em jogo, promovendo a sustentação para uma dada

interpretação do enunciado. Para o êxito da comunicação é necessário levar em conta

estímulo intencional de quem dirige a mensagem, os estímulos dirigidos ao interlocutor

e as modificações ocorridas em determinado contexto. Desta forma, somos capazes de

identificar as informações que estão sendo marcadas ostensivamente em direção a uma

busca de uma relevância ótima. Os elementos ostensivos em uma atividade de

decodificação podem fornecer a base para a interpretação de um texto.

Page 164: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

152

Uma das características das tiras criadas por Dik Browne é não apresentar o

contexto situacional de realização de um grupo de enunciado na primeira vinheta. Tal

fato tem o objetivo de levar o leitor a estabelecer um conjunto de suposições que não

condizem com reais condições de realização do ato de fala. Para desenvolver esta

estratégia, o quadrinhista focaliza o corpo dos personagens sem expor o cenário e a

situação de produção do enunciado. Tais informações são reveladas em uma vinheta

posterior, obrigando o leitor a refazer o percurso de interpretação que havia feito em um

momento anterior. Podemos visualizar esta estratégia no quadrinho a seguir.

TIRAS DO HAGAR

(BROWNE, 20 /12/2006).

Se analisássemos o enunciado “Não brinque com sua comida Hamlet”, de

maneira isolada, deduziríamos que a Helga deseja que seu filho não fique mexendo, o

tempo todo, na comida que está no prato, sem de fato comer. Ao ser reconfigurada a

cena com a exposição de Hagar e Hamelt brincando de ping-pong com a comida,

contata-se que o enunciado ultrapassa as suposições sobre a descrição do ato de brinca

com a comida. Os estímulos ostensivos indicam que a comida de Helga tem um aspecto

de borracha capaz de servir de bola de ping-pong. Por meio de processo hiperbólico o

quadrinista demonstra como a comida de Helga não tem uma consistência agradável.

Page 165: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

153

CONCLUSÕES E PONDERAÇÕES

A linguagem dos quadrinhos mobiliza uma série de procedimentos discursivos

que procuramos evidenciar neste trabalho. As tiras de humor, particularmente, em

decorrência da escolha temática, da abordagem ridicularizante, da produção de

enunciados ambíguos e de formulações implícitas no plano lingüístico e no plano da

enunciação são responsáveis pela projeção do efeito risível, configurando, assim, o

gênero que estudamos.

Freud, ao desenvolver um estudo sobre o chiste, descreveu o funcionamento da

linguagem em torno do efeito risível. Além de determinar aspectos formais do chiste,

enriqueceu a sua noção ao configurar tal processo como resultado de formulações

inconscientes voltadas para a liberação de energias psíquicas diante das pressões sociais.

Sua abordagem analítica prenunciou os estudos enunciativos dos textos de humor,

levando em conta o sujeito que produz os enunciados e a atividade de recepção dos

mesmos. Apesar de sua pesquisa promover analogias entre o sonho e o chiste, suas

explicações sobre o funcionamento da linguagem se ativeram ao modo de organização

do discurso e às regularidades enunciativas. Desta forma, podemos dizer que Freud foi

um dos precursores das análises de texto de humor em uma perspectiva de gênero do

discurso.

Bakhtin, ao afirmar que todo gênero é configurado em função do estilo, da

temática e sua composição, forneceu uma nova base para se analisar os textos.

Percebemos na história dos quadrinhos que a constituição do gênero tira de humor,

subordinado ao domínio em que está inserido, é resultante de diversos fatores que se

organizam de maneira dialética. Se, por um lado, as tiras apresentam regularidades,

decorrentes de acordos sociais para promover canais de comunicação, por outro lado, o

processo de produção está vinculado à recepção e ao estilo em que cada autor mobiliza

e renova o gênero. Enfatizamos em nosso trabalho o modo como os enunciados se

estruturam no discurso do humor sob uma perspectiva enunciativa.

Quanto aos aspectos estilísticos das tiras de humor, notamos a existência de

mecanismos lingüísticos recorrentes que buscam a promoção do efeito risível. Dentre os

processos mais constantes na produção do humor foi observada a ambivalência dos

Page 166: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

154

enunciados em diversos níveis (lingüístico, pragmático e semântico). O sentido dos

enunciados é sustentado na maioria das vezes: a) pelo tipo de comportamento que os

personagens conferem na série; b) pelo sistema de referência ostensivo que enquadra as

ações dos personagens e c) pela formulação de implícitos inscritos no discurso verbal.

Desta maneira, as combinações chistosas, organizadas pelo quadrinhista, podem ser

analisadas sob um enfoque diferente do que foi proposto no início do século XX por

Freud. Avaliamos como fator positivo a análise das tiras de humor sob a perspectiva

enunciativa que conta com a contribuição da Teoria da Enunciação (Bakthin e

Benveniste), da Semântica Argumentativa (Ducrot), da Pragmática (Austin), da Análise

da Conversação (Grice) e da Teoria da Relevância (Sperber & Wilson), como fizemos

neste trabalho.

Com a aplicação do arcabouço teórico mencionado à leitura das tiras, pudemos

colocar em evidência alguns procedimentos discursivos que ajudam a compreender o

funcionamento da linguagem do humor. Observamos que a produção do humor decorre

da exploração da ambivalência da linguagem no nível da língua e no plano da

enunciação. Sendo assim, em muitos momentos, observamos a exploração, por parte do

quadrinhista, de atos de fala infelizes, cometidos pelos personagens; da violação das

regras de cooperação comunicativa; de jogos de pressupostos e subentendidos para

criticar o interlocutor; da ironia, a partir da exposição de vozes que tornavam uma

determinada perspectiva enunciativa absurda. Além disso, a própria heterogeneidade do

discurso e a capacidade da linguagem se auto-referenciar são pontos altos para se

refletir sobre condicionamentos propulsores da linguagem humorística. Acoplamos,

ainda, os elementos ostensivos que junto aos dizeres inscritos nos balões corroboram

para produzir o efeito cômico-humorístico.

Adotando a perspectiva bakhtiniana, observamos que existem gêneros que

evidenciam maior grau de autoria do que outros. As tiras em quadrinhos de humor são

um exemplo de gênero dotado de um trabalho singular realizado por cada autor. Isto

acontece porque os quadrinhistas expressam de maneira única um conjunto de escolhas

temáticas, um modo de ilustrar e caracterizar os personagens de uma maneira peculiar.

Nas tiras de Browne e Quino é possível perceber formas distintas de realização do

humor. Enquanto o personagem protagonista, Hagar, personifica os defeitos criticados

socialmente, demonstrando-os por meio de seu comportamento extravagante; a

Page 167: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

155

personagem Mafalda critica os defeitos da sociedade que são reproduzidos pelos outros

(pais, amigos e instituições) com pequenos comentários irônicos. O modo de

composição dos personagens de Quino nas tiras de Mafalda é bem diferente da

composição dos personagens de Dik Browne e Chris Browne nas tiras de Hagar, o

horrível.

Mafalda não se expressa como uma criança de sua faixa etária, apresentando-se

como uma menina prodígio. Todo o seu discurso apresenta um tom crítico acerca dos

problemas ético-psicológico-políticos da humanidade. Se analisarmos o comportamento

de cada um dos personagens das tiras de Quino, veremos que todos representam tipos

que se encontram presentes na sociedade burguesa. A mãe e o pai de Mafalda assumem

uma postura resignada e alienada diante das condições de vida na sociedade capitalista.

Manolito, apesar de ter uma inteligência limitada, assume a perspectiva capitalista,

reproduzindo a lógica de ganhar dinheiro a qualquer custo. Seu sonho é possuir uma

filial de supermercados. Susanita assume a visão de mulher fútil, preconceituosa e

egoísta. Seu maior sonho é se casar com um homem rico e ter filhos para conquistar

uma vida doméstica feliz. As contraposições dos personagens, em relação ao modo de

compreender as questões sociais e existenciais, permitem a projeção de disputas

argumentativas. Muitos chistes derivam dessa incompatibilidade de opiniões em forma

de ironia ou pequenos insultos.

Outro fator que contribui para o desenvolvimento da cadeia humorística nas tiras

do Quino é o processo de carnavalização decorrente, na maioria das vezes, das

inversões promovidas pelo posicionamento crítico de Mafalda no lugar dos adultos, que

assumem um posicionamento ingênuo. Em outras situações, as próprias brincadeiras das

crianças reproduzem o mundo adulto sustentado sob o viés de paródia.

Sobre o enquadramento das ações dos personagens, Quino assume um

perspectiva teatral, retratando as cenas criadas no plano médio, com um cenário

simples, pouco ilustrado. Além disso, o quadrinhista tem como proposta de trabalho a

reflexão sobre o próprio processo de produção do discurso representado, colocando em

destaque o conflito de vozes que comparecem em um evento discursivo, situado no

interior das tiras em quadrinhos.

Page 168: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

156

Já nas tiras de Dik Browne, o protagonista é configurado como o anti-herói que

comete uma série de gafes e deslizes no convívio social. Diferentemente de Mafalda,

que assume uma postura ética diante das questões sócias que a afligem, Hagar gosta de

levar vantagem em tudo, procurando, sempre que possível, burlar as leis e as regras para

alcançar seus objetivos. Apesar de ter pouca instrução e não saber ler, Hagar tem um

poder de argumentação que o ajuda a reverter as situações desfavoráveis em seu

benefício. Tal modo de articulação, projetado pelo quadrinhista, é expresso por meio de

chistes atribuídos ao personagem para escapar de situações constrangedoras e de

cobranças sociais, por uma via bem-humorada.

As personagens femininas (Helga, Hérnia, Honi), nas tiras de Hagar, tentam

exercer uma relação de domínio, principalmente, sobre os personagens masculinos por

meio da manipulação da linguagem. Para persuadi- los, elas procuram partir de um

determinado pressuposto que force seus interlocutores a aceitarem o seu ponto de vista.

Muitas situações humorísticas decorrem, exatamente, da não aceitação da direção

argumentativa que atua como tópico inicial de uma conversa. Outra formulação

recorrente para provocar o efeito risível é a falta de raciocínio de Eddie para realização

de uma tarefa ou interpretação de um enunciado proferido por outro personagem. Por

meio dessa característica de Eddie, o quadrinhista lança mão de uma série de

estratagemas em que a comicidade e o humor confluem para projetar o discurso

humorístico. Destaca-se, ainda, o enquadramento das ações nas tiras de Hagar. Uma

estratégia singular, não encontrada nas tiras de Quino, é o uso do close na primeira

vinheta, descontextualizando a cena enunciativa. No primeiro quadro há um enunciado

que assume uma perspectiva enganosa, que só é percebido em um contexto mais amplo,

demonstrado na vinheta seguinte. Observa-se aí, um desvio de orientação argumentativa

em decorrência da explicitação do contexto em que um enunciado é dito.

Observamos que Browne e Quino retomam diversos discursos que circulam

socialmente, explorando, cada um, à sua maneira, princípios similares para produzir

tiras cômico-humorísticas. Ressalta-se, no trabalho destes dois quadrinhistas, a riqueza

de formulações enunciativas implícitas e ambivalentes que provocam riso. Tal

perspectiva exige uma apreciação especial sobre o trabalho de linguagem realizado

neste âmbito. Acreditamos que o conjunto de teorias abordadas dá maior visibilidade

não só aos recursos humorísticos, mas à compreensão de mal-entendidos e a formas de

resistência a um ponto de vista divergente por meio da realização de chistes.

Page 169: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

157

Procuramos valorizar as marcas lingüísticas e o modo de articulação dos

enunciados, apoiados no discurso icônico, para refletir sobre os processos que atuam

sobre a interpretação. Não buscamos uma fórmula única que regulasse a linguagem dos

quadrinhos, mas apontamos possibilidades de análise do gênero tira de humor sob

diversas perspectivas teóricas, que mesmo incompatíveis em relação à natureza da

linguagem, convergem para uma perspectiva enunciativa. Acreditamos que o

aprofundamento das relações enunciativas, iniciadas neste trabalho com as tiras de

humor, pode gerar outras indagações sobre o funcionamento da linguagem em seus

aspectos: estilístico, subjetivo, intersubjetivo, performático, ostensivo e argumentativo.

A contribuição de cada abordagem teórica, sob uma filiação enunciativa, aviva os

estudos do gênero em questão, evidenciando a possibilidade de diálogo entre a

Estilística, a Pragmática, a Lógica Conversacional, a Semântica Argumentativa e a

Análise do Discurso.

Deixamos de fora outros estudos que enfocam a relação do sujeito com a

linguagem em uma situação discursiva que poderiam ampliar mais o nosso leque de

compreensão dos fenômenos relativos à projeção do humor nas tiras em quadrinhos.

Dentre outras contribuições significativas, chamamos a atenção para as investigações de

Erving Goffman e Algirdas Julien Greimas. Certamente, outras discussões teóricas

ampliariam, ainda mais, o olhar sobre o funcionamento da linguagem voltado para o

efeito humorístico. Preferimos, no entanto, enfocar teorias que são adotadas, de forma

predominante, nos cursos de graduação em Letras, nas cadeiras de Lingüística e Análise

do Discurso. Sendo assim, interessou-nos abrir um canal para analisar as tiras de humor

sob uma perspectiva de gênero do discurso de uma maneira diferente das propostas que

as reduzem a uma mera estrutura tipológica narrativa, instigando a apreciação dos

aspectos cômico-humorísticos sob uma perspectiva enunciativa.

Page 170: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

158

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADAM, Jean Michel y LORDA, Clara Ubaldina. Lingüística de los textos narrativos, Barcelona: Ariel Lingüística, 1991. ______. Types de séquences textuelles élémentaires. In: Pratiques, n. 56, Metz, 1987. ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Fundação Getúlio Vargas, 1999. ALMEIDA, Fernando Afonso de. Linguagem e Humor: comicidade em Les Frustrés, de Claire Bretécher. Niterói: EdUFF, 1999. ALMEIDA, Guido Antônio. Aspectos da Filosofia da Linguagem. In: MARCONDES, Danilo (org.). Significação, verdade e ação; ensaios de filosofia analítica da linguagem. Niterói: EDUFF, 1986. AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer – palavras e ações. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990. _________. “Performativo-constativo”. In: OTTONI, Paulo Roberto. Visão perfomativa da linguagem. Campina: Ed. UNICAMP, 1998. AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Palavras Incertas: as não-coincidências do dizer.Campinas: UNICAMP, 1998.

______________. Heterogeneidade(s) enunciativas. In: Caderno de Estudos Lingüísticos. Campinas (19): 25-42, jul/dez., 1990.

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. São Paulo: Ediouro, 1999.

BAKHTIN, M. M./ VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995.

_________. Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: Hucitec, 1993.

__________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. __________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento – o contexto de François Rabelais, São Paulo: Hucitec, 1996. BASTOS, Lúcia Kopschitz. Coesão e coerência em narrativas escolares. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BENVENISTE, Émile. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas: Pontes, 1989.

Page 171: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

159

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987. BEZERRA, Maria Auxiliadora. Texto: Seleção Variada e Atual. IN: DIONÍSIO, Ângela Paiva ; BEZERRA, Maria Auxiliadora (Org.) O livro didático de Português: múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

BONINI, Adair. Gêneros textuais e cognição: um estudo sobre a organização cognitiva da identidade dos textos. Florianópolis: Insular, 2002.

BRANDÃO, Helena Nagamine. Texto, gêneros do discurso e ensino. In: BRANDÃO, Helena Nagamine (org.) Gêneros do discurso na escola: mito, cordel, discurso político, divulgação científica. São Paulo: Cortez, 2000.

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos. Por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: Educ, 1999.

BRAIT, Betth. PCNs, gêneros e ensino de língua: faces discursivas da textualidade. In: ROJO, Roxane (Org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC; Campinas: Mercado de Letras, 2000. BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: MEC, 1970. CALVALCANTI, Marilda do Couto. Interação leitor-texto: aspectos de interpretação pragmática. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989. CIRNE, Moacyr. Para ler quadrinhos: da narrativa cinematográfica à narrativa quadrinizada. Petrópolis: Vozes, 1972. ____________. Uma introdução política aos quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982.

CLARK, Katerina; HOLQUIST. Michael. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988.

CHKLOVSKI, Victor. A arte como procedimento. In: BRIK, O. et al. Teoria da Literatura: Formalistas Russos. Porto Alegre: Globo, 1978. COROMINAS, Joan: Breve diccionario etimológico de la lengua castellana. Madrid: Gredos, 1967. COUTINHO, Maria Antónia. Texto(s) e competência textual. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. CRISTÓVÃO, Vera Lúcia Lopes; NASCIMENTO, Elvira Lopes. Gêneros textuais e ensino: contribuições do interacionismo sócio-discursivo. In: KARWOSKI, Acir Mário et al. Gêneros textuais: reflexões e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.

Page 172: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

160

DIAS, Luiz Francisco. Os sentidos do idioma nacional: bases do nacionalismo linguístico no Brasil. Campinas: Pontes, 1996. DUCROT, Oswald. Esboço de uma Teoria Polifônica da Enunciação. In: O Dizer e o Dito. Campinas: Pontes, 1987. ___________. Dizer e Não-Dizer: princípios de semântica lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977.

FEIJÓ, Mário. Quadrinhos em Ação. São Paulo: Editora Moderna, 1997.

FLORES, Valdir. Lingüística e Psicanálise: princípios de uma semântica da enunciação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. FREGE, Gottob. Sobre o sentido e a referência. In: Lógica e Filosofia da linguagem. São Paulo: Cultrix, 1982. FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. v.8. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

FURLAN, Cleide. HQ e os ‘Syndicates’ norte-americanos. IN: LUYTEN, Sonia M. Bibe.(Org.) Histórias em quadrinhos: leitura crítica. São Paulo: Edições Paulinas,1989

GUBERN, Roman. Literatura da imagem. Rio de Janeiro: Salvat do Brasil, 1980.

GRICE, H. P. Lógica e Conversação. In: DASCAL, Marcelo (Org.), Fundamentos metodológicos da Lingüística v. 4. Pragmática. Campinas: UNICAMP, 1992. JAKOBSON, Roman. O dominante. In: BRIK, O. et al. Teoria da Literatura: Formalistas Russos. Porto Alegre: Globo, 1978. JOLLES, André. Formas Simples. São Paulo : Cultrix, 1986. KAYSER, Wolfgang. O grotesco. São Paulo: Perspectiva, 1986. KUPERMANN, Daniel. Ousar rir: humor, criação e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. KUPSTAS, Márcia. Sete faces do humor. São Paulo: Moderna, 1992. LYONS, J. L. C. Semântica. São Paulo: Zahar, 1980. LUYTEN, Sonia M. B. O que é história em quadrinhos São Paulo: Brasiliense. 1990.

MACEDO, José Rivair. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Média. Porto Alegre/São Paulo: Ed. Universidade/UFRGS/ Editora Unesp, 2000. MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise de discurso. Campinas: Pontes e UNICAMP, 1989.

Page 173: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

161

MARCUSCHI, Luiz Antônio. A questão do suporte dos gêneros textuais. In: DLCV: Língua, lingüística e literatura, João Pessoa, v. I, n. 1, p. 9-40, 2003.

___________. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: Dionísio, Ângela Paiva; Machado, Anna Rachel; Bezerra, Maria Auxiliadora. (Org.). Gêneros Textuais & Ensino. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2002.

____________. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In: KARWOSKI, Acir Mário et al. Gêneros textuais: reflexões e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.

McCLOUD, Scott, Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 2005.

MENDONÇA, Márcia Rodrigues de Souza. Um gênero quadro a quadro: a história em quadrinhos. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERA, Maria Auxiliadora.(Orgs.) Gêneros Textuais. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. MOISÉS, Massaud. A criação literária. São Paulo: Cutrix, 1989. MOYA, Álvaro de. História da história em quadrinhos. São Paulo: Brasiliense, 1993.

MORIN, Violette. A historieta cômica. In: BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1973. MOURA, Heronides Maurílio de Melo. Significação e contexto: uma introdução a questões de semântica e pragmática. Florianópolis: Insular, 2000. MUSSALIM, Fernanda. Análise do Discurso. In: MUSSALIM, Fernanda (org.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras, v.2. São Paulo: Cortez, 2001. OLIVEIRA, Roberta Pires. “Semântica”. In: MUSSALIM, Fernada (org.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras,v.2. São Paulo: Cortez, 2001.

ORLANDI, Eni. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 1987.

PAIXÃO JUNIOR, Marcio Mário da. A história dos Quadrinhos sob uma perspectiva baseada em Raymond Willians. 2006, (mimeo)

PINTO, Joana Plaza. Pragmática. In: MUSSALIM, Fernanda (org.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras, v.2. São Paulo: Cortez, 2001. PINTO, Ziraldo Alves. Ninguém entende de humor. Revista de Cultura Vozes. Petrópolis: v.64, n.3, p.21-37, abr. Vozes, 1970. POSSENTI, Sírio. Os humores da língua: análises lingüísticas de piadas. Campinas: Mercado de Letras, 1998.

Page 174: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

162

____________. Os limites do discurso: ensaios sobre discurso e sujeito. Curitiba: Edições Criar, 2002. PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática,1992. RASKIN, Victor. Semantic mechanisms of humor. Dordrechet: D, Reidel,1985. REBOUL, O. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998. RIANI, Camilo. Linguagem e Cartum... Tá rindo do quê? Um mergulho nos salões de humor de Piracicaba. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2002. ROSAS, Marta. Tradução de Humor: transcriando piadas. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. Salão Internaciona l de Humor de Piracicaba. Catálogo, Piracicaba: 10 anos de humor/ 1974-83, Piracicaba 1983. SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

SANTOS, Roberto Elísio dos. Para ler quadrinhos Disney: linguagem, evolução e análises de HQs.São Paulo: Paulinas, 2002

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 1974. SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros e tipos de texto: considerações psicológicas e ontogenéticas. Trad. Roxane Rojo. In: REUTER, Y. (ed.) Les Interations Lectures-Écriture (Actes du Colloque Théodile- Crel): Ber: Peter Lang. (mimeo), 2005. SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim et al. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. SILVEIRA, Jane Rita Caetano; FELTES, Heloísa Pedroso de Morais. Pragmática e cognição: a textualidade pela relevância. Porto Alegre: Edipucrs, 2002.

SOUZA, Geraldo Tadeu. Introdução à Teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedv. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1999.

SPERBER, Dan; WILSON, Deirdre. Relevância: comunicação e cognição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. _________.Posfácio da edição de 1995 de “relevância: comunicação e cognição”. IN: Revista Linguagem em Discurso.Vol. 5. Santa Catarina: Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem 2005 _________. Teoria da Relevância. IN: Revista Linguagem em Discurso. Santa Catarina: v. 5. Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem, 2005 a.

Page 175: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

163

TEIXEIRA, Marlene; FLORES, Valdir. Da subjetividade na linguagem: lingüística e psicanálise. Ijuí: Editora INJUÍ, 1995. THÁ, Fábio. Uma semântica para o ato falho. São Paulo: Annablume, 2001. TYNIANOV, J. Da Evolução Literária. In: BRIK, O. et al. Teoria da Literatura: Formalistas Russos. Porto Alegre: Globo, 1978. VAN DIJK, Teun A. Cognição, discurso e interação. São Paulo: Contexto, 1992.

_________. Text and context: explorations in the semantics and pragmatics of discourse. Longman, 1980.

VIANA, Nildo. A Era da Aventura no Mundo dos Quadrinhos. Revista Espaço Acadêmico. n. 35, abril, 2004. Disponível na Internet: http://www.espacoacademico.com.br/ 035/35cviana.htm. Acesso: 18/10/2006.

ZAMBONI, Lilian Márcia Simões. Cientistas, jornalistas e divulgação científica: subjetividade e heterogeneidade no discurso da divulgação científica. Campinas: Autores Associados, 2001. REFERÊNCIA DE TIRAS E CHARGES Livros : BROWNE, DICK. O melhor de Hagar, o Horrível 1. Porto Alegre: L&P, 1996.

_________. O melhor de Hagar, o Horrível . Porto Alegre: L&P, 2001.

_________. O melhor de Hagar, o Horrível. Porto Alegre: L&P, 2002.

QUINO. Toda Mafalda. São Paulo: Martins fontes, 2000.

Jornais: JORNAL EL FARO DE VIGO – 10.04.2001

FOLHA DE SÃO PAULO. Folha Ilustrada. Tiras de “Hagar, o Horrível”.

JORNAL O GLOBO. Segundo Caderno. Tiras de “Hagar, o Horrível”.

JORNAL O GLOBO. Segundo Caderno. Tira da Turma da Mônica.

Endereços eletrônicos

Page 176: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

164

CLUBE DA MAFALDA.http://clubedamafalda.blogspot.com/2006_08_01clubedamafalda_archive.html. Acesso: 20 /12/2006.

PAULUS, Michael. http://tiras-snoopy.blogspot.com/2006/02/ltima-tira-original.html . Acesso: 20 /12/2006.

PEANUTS. http://tiras-snoopy.blogspot.com/2006/02/ltima-tira-original.html. Acesso: 20 /12/2006.

TIRAS DE HAGAR. http://tirashagar.blogspot.com/2006_07_01_tirashagar_archive.html. Acesso: 20 /12/2006.

Page 177: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Page 178: A LEITURA DO GÊNERO TIRA DE HUMOR EM UMA PERSPECTIVA …livros01.livrosgratis.com.br/cp100300.pdf · 2016-01-25 · e) duplo sentido com ... O humor produzid o em uma dimensão face-a

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo