A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS...

28
A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR JUDICIALMENTE POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS Rodrigo Cesar Pacheco 1 Cézar Paulo Lazzarotto 2 RESUMO: Há casos em que as autoridades policiais necessitam de uma autorização judicial para efetuar diligências que afetam direta ou indiretamente direitos individuais. Comumente, tem-se possibilitado que as autoridades representem diretamente ao juízo pela restrição de determinados direitos individuais. Este trabalho tem por escopo analisar se essa conduta é legítima. A jurisdição é inerte, principalmente no campo penal. É necessário o impulso para que uma relação jurisdicional se realize. Somente aqueles processualmente aptos, sob a teoria eclética da ação, podem requerer medidas jurisdicionais. Baseado nas modernas teorias processuais, este trabalho percorre os sistemas de instrução preliminar e de relação entre os órgãos de investigação e acusação, para identificar aqueles que melhor se adequam à situação brasileira, principalmente ao encontro das normas constitucionais e os devidos princípios processuais delas decorrentes. Constata-se que o modelo ope legis de legitimidade extraordinária, em que o legislador define os reais legitimados, não é o mais adequado ao campo processual penal. Assim, sobrepesa-se as inúmeras situações, princípios e tendências sistemáticas do ordenamento jurídico brasileiro, a exemplo da teoria dos poderes implícitos, filtro processual, valor probatório, grupos de atuação especial, ausência de suspeição da autoridade policial, legitimidade recursal, tramitação direta do inquérito policial, sistemas de relação entre órgãos de acusação e investigação, para, ao final, concluir-se pela ilegitimidade e desnecessidade da autoridade policial representar diretamente ao juízo por medidas cautelares restritivas de direitos individuais. PALAVRAS-CHAVE: inquérito policial; legitimidade extraordinária; medidas cautelares; representação. 1 Acadêmico do Curso de Ciências Jurídicas da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel. 2 Mestre em Processo Penal e Cidadania pela UNIPAR/PR; Especialista em Direito Penal pelo Inbrape/UNIVEL; Advogado Criminalista; e Professor do Curso de Ciências Jurídicas da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel. 1

description

Há casos em que as autoridades policiais necessitam de uma autorização judicial para efetuar diligências que afetam direta ou indiretamente direitos individuais. Comumente, tem-se possibilitado que as autoridades representem diretamente ao juízo pela restrição de determinados direitos individuais. Este trabalho tem por escopo analisar se essa conduta é legítima.

Transcript of A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS...

Page 1: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA

REPRESENTAR JUDICIALMENTE POR MEDIDAS CAUTELARES

RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

Rodrigo Cesar Pacheco1

Cézar Paulo Lazzarotto2

RESUMO: Há casos em que as autoridades policiais necessitam de uma autorização judicial para efetuar diligências que afetam direta ou indiretamente direitos individuais. Comumente, tem-se possibilitado que as autoridades representem diretamente ao juízo pela restrição de determinados direitos individuais. Este trabalho tem por escopo analisar se essa conduta é legítima. A jurisdição é inerte, principalmente no campo penal. É necessário o impulso para que uma relação jurisdicional se realize. Somente aqueles processualmente aptos, sob a teoria eclética da ação, podem requerer medidas jurisdicionais. Baseado nas modernas teorias processuais, este trabalho percorre os sistemas de instrução preliminar e de relação entre os órgãos de investigação e acusação, para identificar aqueles que melhor se adequam à situação brasileira, principalmente ao encontro das normas constitucionais e os devidos princípios processuais delas decorrentes. Constata-se que o modelo ope legis de legitimidade extraordinária, em que o legislador define os reais legitimados, não é o mais adequado ao campo processual penal. Assim, sobrepesa-se as inúmeras situações, princípios e tendências sistemáticas do ordenamento jurídico brasileiro, a exemplo da teoria dos poderes implícitos, filtro processual, valor probatório, grupos de atuação especial, ausência de suspeição da autoridade policial, legitimidade recursal, tramitação direta do inquérito policial, sistemas de relação entre órgãos de acusação e investigação, para, ao final, concluir-se pela ilegitimidade e desnecessidade da autoridade policial representar diretamente ao juízo por medidas cautelares restritivas de direitos individuais. PALAVRAS-CHAVE: inquérito policial; legitimidade extraordinária; medidas cautelares; representação.

1Acadêmico do Curso de Ciências Jurídicas da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel. 2 Mestre em Processo Penal e Cidadania pela UNIPAR/PR; Especialista em Direito Penal pelo Inbrape/UNIVEL; Advogado Criminalista; e Professor do Curso de Ciências Jurídicas da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel.

1

Page 2: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

1 INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico brasileiro nitidamente adota um sistema processual

acusatório, sem juizados de instrução, de modo que os juízes não exercem a função

acusatória, tampouco investigativa, durante a instrução preliminar.

Isso significa dizer a adoção de um sistema de investigação preparatória em

que o sistema judicial restou substituído, sendo as diligências preliminares

reservadas a outro órgão ou instituição de política penal.

Atualmente, dentre aqueles que atuam nessa fase processual, destaca-se a

autoridade policial, presidente do inquérito policial e realizadora dos diversos atos e

diligências de investigação nele existentes.

O inquérito policial constitui, hoje, no ordenamento jurídico brasileiro, um dos

mecanismos mais utilizados na persecução criminal. Não se pode negar que a

polícia é um importante órgão de apuração de infrações penais, ante as capacidades

técnicas que desenvolveu especificamente para esse fim.

Contudo, pode ser que as únicas diligências possíveis de serem efetuadas

nesse procedimento estejam limitadas pelos efeitos de uma norma constitucional

fundamental, a exemplo do sigilo telefônico e de dados.

Embora constituam verdadeiras proteções em favor do indivíduo, contra os

abusos externos, os direitos individuais não devem ser óbices à apuração de

existência de um fato delituoso. Não se pode utilizar um direito para prática de

delitos, sob pena de uma incoerência com as suas reais finalidades.

Sob esse fundamento, é possível que, durante a instrução preliminar, o

encarregado da investigação represente pela diminuição desses direitos.

Como tais medidas representam a diminuição de direitos individuais, em

decorrência da reserva de juízo, o órgão jurisdicional é provocado a decidir sobre

essa relativização.

As alterações legislativas mais recentes, ao tratar do tema, optam por manter

poderes relacionados às representações em favor das autoridades policiais. Atribui-

se à autoridade policial o direito de representação, em juízo, pela autorização

dessas diminuições investigativas.

Comumente, os delegados de polícia, em interpretação às normas acima

citadas, representam diretamente ao órgão jurisdicional.

2

Page 3: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

Contudo, a questão é polêmica. Inconformados, presentantes do parquet

aduzem não ser possível essa atuação. Sustenta-se a ilegitimidade dos delegados

de polícia, sob o fundamento de que por não serem titulares da ação penal principal,

também estão impossibilitados de representar pelas medidas cautelares.

A adoção da teoria eclética da ação implica na necessidade do preenchimento

de uma condição básica para o exercício da jurisdição: a legitimidade das partes.

Nesse contexto surge a dúvida. Sob o ponto de vista científico e jurídico, a

autoridade policial pode e necessita representar direta e judicialmente por medidas

restritivas de direitos individuais?

Há de se verificar a compatibilidade do sistema processual penal brasileiro com

esse quadro legislativo, de modo a interpretar qual a situação que melhor atende aos

objetivos esperados pelas normas constitucionais.

Percorrendo a moderna doutrina, propõe-se seguir um pequeno estudo

acerca do tema:

2 SISTEMA ACUSATÓRIO

Ao longo de sua história, a humanidade conheceu basicamente dois sistemas

processuais principais: o sistema acusatório e o sistema inquisitivo.

O sistema acusatório, primeiro a surgir, teve seu advento no direito grego,

com a participação direta do povo no exercício da acusação penal. Seguiu-se

durante a época romana, onde se observou um certo desenvolvimento em sua

concepção3.

Notadamente a partir do século XII, sob o fundamento de se defender

interesses religiosos, instituiu-se, na maioria dos países europeus, o sistema

inquisitivo. Suprimida a publicidade do processo, o juiz atuava de ofício, promovendo

a acusação. Saía de sua função jurisdicional para assumir a ativa de inquisidor4.

O sistema inquisitivo (ou inquisitório), além de outras características não

menos importantes, é nitidamente regido pela cumulatividade, no mesmo órgão, das

3MENDRONI, Marcelo Batlouni. Curso de Investigação Criminal. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p.8.4MENDRONI, Marcelo Batlouni. Obra citada, p. 30.

3

Page 4: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

funções acusatória e jurisdicional5. Em outras palavras: o juiz exerce a função de

acusar e de julgar.

Isso causou uma mudança significativa na fisionomia processual.

Abandonava-se um duelo leal e franco entre o acusador e a defesa, transformando-

se o procedimento em uma luta desigual entre o juiz e o acusado.

Esse acúmulo das funções de julgar e acusar fez com que inúmeras vezes os

juízes cedessem a convicções pessoais, ou políticas, para julgar a lide. Isso, de

encontro aos reais fins do processo, ocasionava a perda da imparcialidade

necessária ao exercício da jurisdição.

A busca pela proteção dos direitos individuais em detrimento de poderes

exacerbados fez com que o sistema inquisitório fosse substituído pelo sistema

acusatório moderno, onde prevalece uma nítida separação das partes processuais6

(acusação e defesa).

Dessa forma, há o reconhecimento de órgãos distintos para o exercício das

funções matrizes do processo penal, de modo que o julgador deve se colocar

equidistante7.

Tal separação de partes, como afirma FERRAJOLI8 , é a “más importante de

todos los elementos constitutivos del modelo teórico acusatorio, como presupuesto

estructural y lógico de todos los demás”.

O sistema acusatório exige um juiz expectador, e não um juiz ator (típico do

modelo inquisitório)9. Por tal razão, nos ordenamentos em que se adotou

nitidamente o sistema acusatório, a gestão da prova deve estar nas mãos das

partes, assegurando-se que o juiz não irá dispor de iniciativa probatória, mantendo-

se suprapartes e preservando a sua imparcialidade jurisdicional10.

5NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 106.6FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Madri: Editorial Trotta, S.A., 1995, p. 561.7MARQUES, José Frederico. Estudos de Direito Processual Penal. Campinas: Editora Millenium, 2001, p. 18.8FERRAJOLI, Luigi. Obra citada, p. 563. Tradução livre: mais importante de todos os elementos constitutivos do modelo teórico acusatório, como pressuposto estrutural e lógico de todos os demais.9STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri – símbolos & rituais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 34.10LOPES JR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 14.

4

Page 5: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

2.1 Função Acusatória no Processo Penal Brasileiro

Conforme se depreende da Exposição de Motivos do Anteprojeto do Novo

Código de Processo Penal, “em um sistema acusatório público, a titularidade da

ação penal é atribuída a uma instituição que represente os interesses de igual

natureza (públicos), tal como ocorre na previsão do art. 129, I, da CF/88, que

assegura ao Ministério Público a promoção privativa da ação penal pública, nos

termos da lei”11.

O Direito Penal possui a função de prevenção específica e geral. Por tal

razão, o Direito Penal abrange toda a coletividade e não somente as vítimas diretas

do fato criminoso12.

As particularidades do processo penal, aliadas ao predominante interesse

público, não permitem, em regra, a discricionariedade na propositura da ação

penal13. A pretensão penal não há de ser distribuída, em regra, à vítima direta do

delito, que ligada a diversos fatores subjetivos, ou dificuldades burocráticas, poderia

dispor da punição criminal14.

Fundamenta, ainda, a Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código de

Processo Penal, que “Nesse contexto, não nos parece haver lugar para uma ação

penal que esteja à disposição dos interesses e motivações do particular”15.

Deve-se garantir a efetividade da persecutio criminis, impondo-se o dever de

investigar e perseguir todos os fatos com aparência delituosa. Busca-se a

imparcialidade do juiz. Intenciona-se, ainda, a outorga a um órgão público, com

características judiciais, do controle sobre a persecução criminal16.

O Ministério Público se encontra em uma posição sui generis face aos

diversos poderes do Estado, o que lhe conferiu autonomia e subordinação

hierárquica vertical, características importantes para busca da imparcialidade.

Isso significa, pois, que o Ministério Público possui o jus postulandi necessário

ao exercício da acusação.

11Projeto de Lei n. 156/09. Exposição de Motivos do Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal. Acesso em: http://www.juareztavares.com/Textos/anteprojeto.pdf , em 29.08.2011.12Exclui-se, aqui, os delitos de ordem privada.13Excetuam-se aqui as ações de natureza privada e a ação penal subsidiária da pública.14Sobre o tema: FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Madri: Editorial Trotta, S.A., 1995.15Projeto de Lei n. 156/09. Exposição de Motivos do Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal. Acesso em: http://www.juareztavares.com/Textos/anteprojeto.pdf , em 29.08.2011.16MENDRONI, Marcelo Batlouni. Curso de Investigação Criminal. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p.11.

5

Page 6: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

Dada a influência democrática de elaboração da “Constituição Cidadã”, bem

como as necessidades de um órgão técnico capaz de satisfazer os interesses da

coletividade, o Constituinte de 1988 outorgou ao Ministério Público, na forma legal, a

titularidade da ação penal.

3 INSTRUÇÃO PRELIMINAR

A persecução criminal, no atual sistema jurídico brasileiro, suporta duas fases

distintas: a instrução preliminar e a ação penal17.

A instrução preliminar – ou investigação criminal, embora dispensável, tem

por finalidade o fornecimento de um embasamento mínimo para que se possa atuar

em juízo18.

Quando do ajuizamento da ação penal, a acusação deve estar munida dos

elementos de prova (lato sensu) que ensejarão a necessidade de um

pronunciamento jurisdicional. Tal exigência, absolutamente indeclinável, atua em

favor do indivíduo, contra a arbitrariedade e o abuso estatal.

A pretensão penal, assim como a civil, não pode ser absolutamente carente

de substrato19. O processo penal exige a demonstração da possibilidade de

existência do direito que se pretende assegurar.

Isso não significa a exigência de uma prova cabal e segura acerca da autoria

ou materialidade do delito, mas uma prova indiciária de sua ocorrência (é importante

destacar que indícios são da autoria; da materialidade deve haver prova), nos limites

da razoabilidade20.

A investigação criminal (investigatione criminale) traduz justamente essa

atividade de procurar e indagar sobre esses aspectos relativos às infrações penais21.

É o conjunto de atividades realizadas concatenadamente pela acusação, com

17TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 25ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 191.18LOPES JR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 45.19TASSE, Adel El. Investigação Preparatória. Curitiba: Juruá, 1998, p. 21.20STF, HC n. 96581, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Julgado em 17.03.2009. 21CALADO, Antônio Marcos Ferreira. Legalidade e Oportunidade na Investigação Criminal. Lisboa: Coimba Editora, 2009, p. 49.

6

Page 7: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

caráter prévio e de natureza preparatória, a fim de justificar eventual exercício da

ação penal22.

3.1 Sistema Acusatório sem Juizado de Instrução

Na fase da investigação criminal, nos modelos Ibero-Americanos, como no

Brasil, tem-se buscado o afastamento do juiz da iniciativa probatória, bem como do

contato com os indícios do fato delituoso, como medida de garantia e efetividade

penal na busca pela imparcialidade.

Baseando-se nesse modelo, nosso ordenamento tende a restringir o ativismo

judicial23, na busca pelos elementos da acusação.

A investigação não serve e não se dirige ao judiciário; ao contrário, destina-se a fornecer elementos de convencimento, positivo ou negativo, ao órgão da acusação. Não há razão alguma para o controle judicial da investigação, a não ser quando houver risco às liberdades públicas, como ocorre na hipótese de réu preso24.

O ordenamento jurídico brasileiro explicitamente tem adotado um sistema

acusatório sem juizado de instrução25.

Isso significa um procedimento prévio, de índole administrativa, com a

supressão dos juizados de instrução, substituídos por investigações preliminares

destinadas a eventual convencimento da acusação26.

Ada Pellegrini Grinover, tomando por base relatórios nacionais apresentados

a ela na condição de Relatora Geral da XIV Jornadas Ibero-Americanas de Direito

Processual, realizado em Abril de 1994, de forma magistral bem delineou as

principais características e aplicações desse sistema quanto à investigação prévia27:

a) finalidade de colher elementos informativos para o convencimento da acusação, a fim desta poder, oportunamente, acusar ou não, na base de sua opinio delicti;

22LOPES JR, Aury. Opus citatum, p. 36.23GRINOVER, Ada Pellegrini. O Modelo Acusatório de Instrução Processual Penal como Garantia dos Direitos Humanos. Conferência Latino-Americana realizada em Abril de 1994. p. 285. Acesso em 18.09.2011.24Projeto de Lei n. 156/09. Exposição de Motivos do Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal. Acesso em: http://www.juareztavares.com/Textos/anteprojeto.pdf , em 29.08.2011.25GRINOVER, Ada Pellegrini. Obra citada, p. 294. 26GRINOVER, Ada Pellegrini. Obra citada, p. 294.27GRINOVER, Ada Pellegrini. Obra citada, p. 294

7

Page 8: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

b) durante a investigação, o juiz intervem necessariamente para autorizar as medidas cautelares requeridas pela acusação, bem como para presidir a colheita das provas antecipadas, em contraditório;

c) o juiz das medidas cautelares é diverso do do processo no Código Modelo, na Guatemala e no Anteprojeto da Costa Rica; é o mesmo juiz da futura instrução e julgamento, no Brasil28;

d) a etapa das investigações é dirigida pela acusação, com o auxílio da polícia judiciária, no Código Modelo, na Guatemala e no Anteprojeto da Costa Rica. No Brasil, é a polícia que dirige as investigações, submetida ao controle externo do Ministério Público, que pode a qualquer momento intervir nelas. Ainda, no Brasil, a investigação prévia, nos crimes falimentares, é conduzida pelo próprio juiz da instrução e julgamento;

e) fase regida pelo contraditório mitigado29, que se justifica abaixo, estando nela prevista a presença facultativa do defensor;

f) elementos informativos colhidos na fase de investigação prévia não são admitidos no processo como provas, salvo quando se tratar de provas irrepetíveis (como o exame de corpo de delito), sendo neste caso submetidas a contraditório no próprio processo, ou quando se tratar de provas colhidas antecipadamente em contraditório, perante o juiz; É menos rigoroso no Brasil, onde os autos de investigação permanecem apensados aos do processo, acabando frequentemente por influir sobre a formação do convencimento do juiz30;

g) em todos os países pesquisados, o juiz do mérito não pode formar seu convencimento com base nos elementos informativos colhidos na etapa da investigação31.

As vantagens desse sistema, como bem aponta a jurista, revelam-se na sua

eficácia, agilidade, domínio sobre a investigação, e, principalmente, no seu perfil

garantidor, já que restam preservados pelo campo jurisdicional os direitos

fundamentais do indivíduo32.

Trata-se de uma profunda evolução na busca pelo sistema acusatório ideal33,

além de uma verdadeira democratização do processo penal, de forma a preservar os

direitos do indivíduo enquanto ser individual e individualizável34.

28Aqui, destaque-se para o Anteprojeto do Novo CPP, que busca instaurar o juiz das garantias, para atuar da mesma forma como nos demais países.29Posteriormente, Ada Pellegrini Grinover, por questões terminológicas, preferiu dizer ser essa fase regida por um contraditório diferido ou postergado.30Aqui, destaque-se o Anteprojeto do Novo CPP, que busca se adequar a essa postura.31Aqui, assim como Ada Pellegrini Grinover, tomamos por base a nota anterior, para dizer que embora o Anteprojeto do Novo CPP busque se adequar a isso, ainda há resquícios de dessa prática no Brasil.32GRINOVER, Ada Pellegrini. Obra citada, p. 294.33GRINOVER, Ada Pellegrini. Obra citada, p. 293.34CALADO, Antônio Marcos Ferreira. Legalidade e Oportunidade na Investigação Criminal. Lisboa: Coimba Editora, 2009, p. 15.

8

Page 9: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

4 POLÍCIA JUDICIÁRIA

No ordenamento jurídico brasileiro há uma peculiariedade em relação aos

demais países. Embora em alguns países somente o titular da ação penal principal

possa colher os indícios para o início da fase judicial, por clara opção

constitucional35, reservou-se, também36, a um órgão técnico, diferente do titular da

ação penal, essa tarefa investigativa (art. 144, da CF/88).

Preconiza a norma constitucional:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:I - polícia federal; [...]IV - polícias civis; [...]§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; [...]IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. […]

§ 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. {…] (destacou-se)

A polícia investigativa é um dos primeiros órgãos públicos a tomarem contato

com a ocorrência de um delito. Não há dúvidas de que sua atuação pode se

concentrar em qualquer canto do território nacional, representando um mecanismo

eficiente de contato com o fato criminoso. Esse, aliás, foi um dos motivos para que o

constituinte delegasse a atividade investigativa aos órgãos policiais37.

35Art. 144, da CF/8836Aqui damos os sentido de cumulatividade, vez que o STF já reconheceu a legitimidade do MP instruir preliminarmente os autos, sem que se recorra à autoridade policial.37LOPES Jr. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 14.

9

Page 10: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

4.1 Inquérito Policial

Enquanto o Ministério Público pode se utilizar das Peças Informativas

Criminais, instauradas no seu âmbito de atuação38, para a colheita de elementos de

um fato delituoso, a Polícia Judiciária deve se utilizar do seu próprio instrumento: o

inquérito policial.

O inquérito policial é uma forma de exteriorização da instrução preliminar. Sua

finalidade é a apuração da autoria e da existência da infração penal, para que o

titular da ação penal disponha de elementos para a atividade jurisdicional.

O inquérito policial nada mais é do que um procedimento, com o fim especial

de colher elementos de um fato delituoso. É o conjunto de diligências realizadas pela

polícia investigativa, para apuração de uma infração penal e sua autoria39. É ele que

irá levar à acusação os informes acerca da infração40.

4.2 Autoridade Policial

O inquérito policial deve ser presidido por uma autoridade policial.

A autoridade nada mais é do que um poder, pelo qual uma pessoa, atuante

em um cargo público, impõe aos demais, em virtude de sua especial capacidade

(estado ou situação) de fato41.

Toda autoridade exerce um poder público, agindo nos limites da lei, podendo

ordenar e traçar normas para atingir os fins estatais. Diferente dos agentes estatais,

as autoridades representam e expõem os interesses do Estado.

Na administração pública, a autoridade é aquela pessoa física, que age em

nome da pessoa jurídica, editando atos administrativos42.

38 Precedentes: RE 535.478/SC, Rel. Min. ELLEN GRACIE - HC 91.661/PE, Rel. Min. ELLEN GRACIE - HC 85.419/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 89.837/DF (HC 94173, CELSO DE MELLO, STF, DJ 27/10/2009) 39SALES JUNIOR, Romeu de Almeida. Inquérito policial e ação penal. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 4.40SALES JUNIOR, Obra citada, p. 4.41LAZZARINI, Álvaro. Direito administrativo da ordem pública. Rio de Janeiro:Forense, 1987, p. 55. 42LAZZARINI, Álvaro. Obra citada, p. 53.

10

Page 11: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

A autoridade policial constitui, pois, uma ramificação das autoridades

administrativas. Engloba o exercício do poder emanado pela administração, porém

relativamente a aspectos específicos.

No inquérito policial, ela é representada pelos delegados de polícias civis ou

federal, devidamente aprovados em concurso públicos, técnicos, e superiores, que

exercem uma função especial e necessária, mediante atos administrativos legais.

4.3 Natureza Jurídica do Inquérito Policial

A natureza jurídica da instrução preliminar é delineada principalmente pela

análise de sua função, estrutura e órgão encarregado.

Podemos dizer que a natureza jurídica da instrução preliminar é bastante

complexa. Nela são realizados diversos atos de distintas naturezas.

Por tal razão, duas correntes distintas buscam definir essa atividade:

Há quem defenda ser a instrução preliminar um procedimento judicial pré-

processual. É assim considerado quando o órgão que dirige a investigação pertence

ao sistema judiciário, mas não intimamente ligado à atividade jurisdicional43.

Ou seja, embora o órgão que dirige a investigação seja pertencente ao

sistema judiciário, isso não significa que possui atribuições da jurisdictio, que é

exclusiva dos juízes.

Por outro lado, levando-se em consideração a regra das naturezas jurídicas

dos atos predominantes nessa fase processual, tem-se classificado a instrução

preliminar, no sistema jurídico brasileiro, como possuidora de uma natureza

administrativa44.

Isso se deve pelo fato de sua direção estar a cargo de uma autoridade de

ausente potestade jurisdicional, sendo seus atos, essencialmente, de natureza

administrativa.

43LOPES Jr. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 38.44LOPES Jr. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 14.

11

Page 12: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

5 MEDIDAS RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

Feitas as considerações iniciais, passamos ao cerne do presente trabalho.

Como visto acima, embora dispensável, a atividade policial representa, hoje, uma

das mais importantes atividades da persecução criminal.

Sua função processual, por expressa disposição constitucional, consiste na

apuração das infrações penais, a fim de buscar elementos de convicção da

acusação, para a formação de sua opinio delicti, ensejando a manifestação

jurisdicional necessária ao início da ação penal.

É possível que esses indícios-elementos sejam visualizados ou buscados

imediatamente, mediante uma seleção atenta da autoridade policial ou do próprio

legitimado para a propositura da ação principal.

Contudo, há casos em que esses indícios, para sua exposição processual,

dependem de uma regulação de direitos constitucionais. São casos em que as

únicas diligências possíveis a se chegar nesses elementos indiciários estão

limitadas pela norma constitucional.

Como nenhum direito é absoluto, também não poderia o legislador

constitucional deixar com que direitos individuais servissem como amparo à prática

ou ocultação delituosa.

Por tal razão, é possível que tais direitos constitucionais sejam diminuídos,

relevados, de forma a tornarem possível que a acusação diligencie na apuração das

infrações penais daqueles fatos ocultos ou criminosos.

A título de exemplo, podemos destacar a busca e a apreensão, a prisão e o

sequestro de bens, conforme os arts. 14, 127, 149, 244 e 311, todos do Código de

Processo Penal.

Outrossim, os poderes de representação das autoridades policias não se

esgotam no Código de Processo Penal, havendo outros na legislação processual

penal, tais como no art. 2º da Lei n. 7.960/1989 (trata da prisão temporária) e art. 3º

da Lei n. 9296/1996 (trata das interceptações telefônicas).

12

Page 13: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

São medidas que se mostram aptas a uma restrição de direitos fundamentais,

mesmo ausente um juízo condenatório e final.

6 RESERVA DE JUÍZO

“A proteção da intimidade, da privacidade e da honra, assentada no texto

constitucional, exige cuidadoso exame acerca da necessidade de medida cautelar

autorizativa do tangenciamento de tais direitos individuais”45.

A reserva de juízo se apresenta como o controle judicial dessa relativização,

exerce uma atuação garantidora do indivíduo contra todo e qualquer abuso estatal.

Sua finalidade principal não é controlar a investigação criminal, mas assegurar os

direitos constitucionalmente previstos.

“O juiz é o responsável pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à

tutela imediata e direta das inviolabilidades pessoais”46.

Ao remeter o inquérito policial para o juízo, com uma representação, a

autoridade policial dá início a um procedimento judicial, apto a ensejar uma

manifestação jurisdicional.

7 JURISDIÇÃO

Da mesma forma que se quer evitar a sujeição do mais fraco ao mais forte,

também não se pode conceder à administração pública (lato sensu)47 desenfreados

poderes de punição, consoante a difundida noção de contrato social.

Daí surgem diversos princípios, dentre os quais se destaca a jurisdição, que,

em apertada síntese, atua como um terceiro imparcial, que realiza o direito de

modo imperativo, reconhecendo, efetivando e protegendo situações jurídicas

concretamente deduzidas48.

45Projeto de Lei n. 156/09. Exposição de Motivos do Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal. Acesso em: http://www.juareztavares.com/Textos/anteprojeto.pdf , em 29.08.2011.46Anteprojeto do Novo CPP47TOURINHO FILHO, Obra citada, p. 11.48DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 10ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2008, p. 65.

13

Page 14: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

Sua importância reflete na premissa material e lógica para a efetividade dos

direitos fundamentais.

7.1 Condições da Ação

Devemos levar em conta que direito de ação se configura em um conceito

abstrato, garantidor do direito ao provimento jurisdicional, qualquer que seja sua

natureza. Mas, suas características não impedem que o legislador crie condições

para o seu exercício49

O ordenamento jurídico brasileiro, ao consagrar a teoria eclética da ação,

optou por condicionar a ação à existência e preenchimento de determinadas

condições para a atuação jurisdicional50.

O procedimento, por representar um verdadeiro mecanismo de finalidade, sob

a teoria constitucional eclética da ação51, exige a demonstração das matérias do

processo e da ação (strictu sensu), a fim de que a atuação jurisdicional seja cabível.

Assim, embora não esteja imune de críticas, por clara opção evolutiva, essa

tem sido a teoria adotada para a movimentação judiciária no processo brasileiro52.

Para que a tutela jurisdicional se faça presente, necessário se faz o

preenchimento das condições da ação, tanto no processo civil, como no processo

penal53, sob pena de frustração dos próprios objetivos da jurisdição.

49CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Teoria Geral do Processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 216.50DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 10. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2008, p. 171.51LIEBMAN, Enrico Tullio. L’azione nella teoria del processo civile. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. Milano: Giuffrè. Anno IV, 1950. 52DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 10. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2008, p. 171.53CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Teoria Geral do Processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 216.

14

Page 15: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

7.1.1 Legitimidade de Partes

Diversos processualistas afirmavam que as condições da ação estavam

expostas de maneira negativa, em artigo já revogado do codex processual,

traduzindo-se estas nas causas de rejeição da denúncia54.

Dentre aquelas condições, enquadrava-se a legitimidade de partes, que se

traduz na premissa de que apenas o titular do direito subjetivo material pode pleitear

em juízo pelo resultado dele decorrente55.

Muitas doutrinas dão mais importância à legitimidade de parte como marco

divisor das espécies pública e privada. Porém, ressalte-se que muito além disso está

o seu valor.

É constitucionalmente garantido o direito de pleitear em juízo. Mas, é

importante frisar a necessidade de se levar em juízo apenas as pretensões que se

esteja autorizado, ante a oponibilidade da existência de um vínculo entre os sujeitos

da demanda e a situação jurídica afirmada56.

Assim, o acesso ao judiciário está condicionado à existência de um vínculo

entre o sujeito da lide e o direito material pleiteado. Sua exigência baseia-se em

regras de direito material57.

7.1.1.1 Legitimidade Extraordinária no Procedimento Cautelar

Em regra, nosso ordenamento jurídico, assim como a maioria dos outros

ordenamentos jurídicos, confere a legitimidade processual e ad causam somente

àqueles que são detentores do direito material que pretende se pleitear em juízo.

Contudo, há casos em que a lei e o sistema jurídico autorizam alguém ir ao juízo, em

54GEBRAN NETO. Inquérito policial: o arquivamento e o princípio da obrigatoriedade. Curitiba: Juruá, 2001, p. 43.55CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Teoria Geral do Processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 218.56DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 10. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2008, p. 176.57DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 10. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2008, p. 176.

15

Page 16: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

nome próprio, para defender direito alheio: são as chamadas legitimidades

extraordinárias processuais.

A legitimidade extraordinária nada mais é que uma espécie do gênero

legitimidade processual. É uma qualidade daquele que pode ingressar em juízo, em

nome próprio, para tutela de lide alheia, desde que autorizado expressamente pelo

ordenamento jurídico.

No processo civil, por exemplo, admite-se que medidas cautelares sejam

propostas por legitimados extraordinários. No processo penal, também entendemos

haver essa possibilidade, como no caso da ação penal subsidiária da pública .

Embora não titulares de direito material que garante a propositura da ação

penal principal, os delegados de polícia, por previsão legal, comparecem em juízo,

extraordinariamente, para postular medidas cautelares inerentes à investigação

criminal. Trata-se de exceção ao princípio de que somente o titular da lide pode

deduzi-la em juízo, mediante o exercício do direito constitucional de ação.

7.1.2 Críticas ao Modelo Ope Legis de Legitimidade

Em razão do direito positivo, não se exige que o legitimado extraordinário

tenha qualquer interesse (jurídico ou econômico) na lide, bastando a autorização

legal para que defenda, em juízo, afirmação de direito alheia.

Dos diversos processualistas cíveis, absorvemos o ensinamento de que para

a verificação do fenômeno da legitimidade extraordinária basta a previsão legal. Diz-

se a adoção de de um sistema de legitimação ope legis. Contudo, entendemos que

no campo processual penal, em razão da matéria, critérios diferenciados devem ser

fixados.

Embora a lei tenha previsto que os delegados de polícia, enquanto

autoridades policiais, possam representar por medidas cautelares, isso não significa

dizer, certamente, que o texto legal é adequado ao sistema processual e ao

ordenamento jurídico adotado. É preciso, antes de tudo, estabelecer critérios para as

escolhas desses legitimados.

16

Page 17: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

Além da escolha desenfreada de legitimados na investigação preliminar afetar

sensivelmente o investigado, quebrando o duelo leal entre defesa e acusação, não

leva à coerência técnica que o direito exige.

Ora, o direito, como ciência, há de ser técnico, desimpedido de subjetivismos,

ainda que do legislador. A escolha do substituto processual (lato sensu) não há de

ser renegada como opção legislativa discricionária. É preciso, antes de tudo,

sobrepesar os valores do nosso sistema processual penal, sob pena de se ferir o

princípio da legalidade.

8 ARGUMENTOS DE PONDERAÇÃO

Levando-se em consideração essas ponderações, buscamos identificar,

abaixo, os pontos favoráveis e desfavoráveis à atuação judicial da autoridade

policial:

8.1 Princípio dos Poderes Implícitos

O princípio dos poderes implícitos, como um princípio basilar da hermenêutica

constitucional, significa dizer que quando a norma constitucional concede os fins, dá

os meios.

Não se deve negar assento constitucional e legal reservado à autoridade

policial como presidente do inquérito policial, e às polícias investigativas civis e

federal, no papel de apurar as infrações penais.

Sustenta-se que, no caso das normas que reservam às polícias civil e federal

a apuração de infrações penais, o poderes inerentes à representação judicial

decorrem da própria normal constitucional.

Se a atividade de apuração das infrações penais é outorgada às polícias

judiciárias, não se concebe como não lhe oportunizar a colheita de prova para tanto,

mesmo que se utilizando da atividade jurisdicional.

17

Page 18: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

8.2 Filtro Processual e Valor Probatório

A instrução preliminar deve ser limitada ao imprescindível. Os atos de

investigação não são afirmações, não formam juízos de certeza, não passam pelo

crivo da publicidade, da contradição e da imediação, não sendo admissíveis,

portanto, como provas judiciais.

Nesse sentido, destacamos o art. 33, do Anteprojeto do Novo Código de

Processo Penal, ipsis literis:

Art. 33. Os elementos informativos da investigação deverão ser colhidos na medida necessária à formação do convencimento do Ministério Público sobre a viabilidade da acusação, bem como à efetivação de medidas cautelares, pessoais ou reais, a serem decretadas pelo juiz das garantias

A fase probatória processual é o momento correto para que se produza o

conhecimento de dados complementários da matéria58.

A repetição na produção da prova é um dos problemas que apontam os

doutrinadores, no caso brasileiro. Defende-se a busca pela sumariedade da

instrução, qualitativa e quantitativamente.

Qualitativamente, no campo horizontal, surge o campo probatório, limitado

às circunstâncias do fato punível, e, no campo vertical, o direito, como elemento

jurídico referente à existência do crime visto a partir do seu conceito formal.

As limitações nas investigações surgem pela limitação horizontal, em que a

acusação se vê submetida a elementos superficiais do fato, apenas tendentes a

formar o elemento de convicção do recebimento da denúncia, e verticalmente pelo

contentamento com um juízo superficial da tipicidade, ilicitude e culpabilidade do fato

e do autor.

Sua existência é consagrada pelos sistemas processuais modernos para

limitar o nível de cognição do objeto da instrução preliminar59.

Quantitativamente, limita-se a investigação criminal a um limite temporal.

Considera-se a gravidade do delito e o fato de estar o sujeito passivo submetido a

uma cautelar ou não.

58ALONSO ARAGONESES, Pedro. Instituciones de Derecho Procesal Penal, p. 223.59LOPES Jr. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 105.

18

Page 19: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

Os problemas desse critério, aplicado com impacto, surgem com os

resultados finais imperfeitos, porque de nada serve chegar à certeza de um

determinado ponto e desconhecer os demais, imprescindíveis ao exercício e

admissão da ação penal.

Adotar-se critérios quantitativos, no caso brasileiro, parece-nos um equívoco

de aplicabilidade. Não se deve negar que a inutilizzabilitá (inutilidade da instrução

preliminar) como pena aos limites quantitativos infringidos se revela inaplicável dada

a morosidade dos trabalhos efetuados pela polícia brasileira.

Ainda que a consequência seja investigações demoradas, que ao final se

torne inviável a repetição probatória em juízo, restringir a investigação, em um limite

temporal muito inferior ao que já se aplica levaria a impunidade à milhares de casos,

todos os anos.

Por tal razão, defendemos, aqui, uma solução qualitativa de investigação

preliminar, sendo a limitação quantitativa alcançada gradualmente, por

investimentos em políticas de segurança pública e contratação de autoridades

policiais, preservando-se os direitos individuais e coletivos do cidadão, protegendo-o

de uma investigação arbitrária e excessiva, sem que haja impunidade estatal.

Por falta de sintonia com o presentante do parquet, por vezes a autoridade

policial investiga em excesso – e o pior, produzindo uma prova de má qualidade. A

instrução preliminar não deve ser uma fase cognitiva, não pode servir como alma do

processo principal. O órgão ministerial é o primeiro interessado no bom andamento

das investigações60.

Conforme aponta Aury Lopes Jr. (2008, p. 103):

o grande erro está na falta de controle da investigação policial por parte do Ministério Público - destinatário final do inquérito e titular da ação penal - , que deveria ser o responsável em definir o que e o quanto a ser investigado, pois, como titular da ação penal, saberá definir que nível de cognição deve existir naquele caso específico.

Convertendo-se em plenária, a investigação não só atrasa todo o processo,

mas também tem por efeito tornar atos de investigação – praticados muitas vezes

em segredo e sem qualquer contraditório – atos de prova, transformando-se a fase

processual apenas em um trâmite para valorar e sentenciar.

60LIMA, Marcellus otastri. Ministério Público e persecução criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 124-125

19

Page 20: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

Assim como na ação penal, a fase investigatória é regida por determinados

princípios, dentre os quais se destaca o do menor sacrifício.

A investigação não pode ser desgastante ao investigado, sob pena de se ferir

o estado de inocência, princípio basilar no estado democrático de direito,

constituindo-se a investigação, por vezes, em ônus exacerbado e desnecessário,

mais sacrificantes que a própria pena61.

8.3 Formação de Grupos de Investigação no Ministério Público

Começam a surgir, no Ministério Público, órgãos ligados a Grupos de

Investigação Preliminar. Grande exemplo disso são os Grupos de Atuação Especial

de Repressão ao Crime Organizado – GAECO, já constituídos na maioria dos

Estados Brasileiros62.

São grupos formados por autoridades policiais e membros do Ministério

Público, previamente escolhidos/indicados, dados os conhecimentos particulares na

investigação de certo tipo de criminalidade.

Nesta parceria, é claramente assumida a direção formal e material do

inquérito63 por parte dos membros do Ministério Público, já que as autoridades

policiais tem uma atuação muito mais passiva no que toca ao direcionamento das

linhas investigativas.

8.4 Ausência de Suspeição da Autoridade Policial

Não se nega, faticamente a autoridade policial está condicionada a uma

estrutura hierárquica, cujo respeito é imposto por aquele detentor do maior poder.

Em outras palavras: o delegado de polícia, ante a ausência de direitos como a

inamovibilidade e a independência funcional, não se sente a vontade para definir as

táticas realmente necessárias à investigação, sem que pra isso tenha de pensar o

domínio dos dirigentes da instituição, ocupantes de cargos políticos.

61TASSE, Adel El. Investigação Preparatória. Curitiba: Juruá, 1998, p. 29.62 No Paraná, por exemplo, há 07 (sete) grupos regionais, nas cidades de Curitiba, Londrina, Foz do Iguaçu, Cascavel, Guarapuava, Guaíra e Maringá.63CALADO, Antônio Marcos Ferreira. Legalidade e Oportunidade na Investigação Criminal. Lisboa: Coimba Editora, 2009, p. 93.

20

Page 21: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

Um ponto que nos chama a atenção é a suspeição da autoridade policial. Há

quem sustente que, ainda que a autoridade policial seja dependente politicamente,

não haveria razão para lhe impedir a representação, em razão de suposta

contaminação, vez que a atividade jurisdicional é que deve ser imparcial.

A nosso ver isso não suporta razão. Ora, se até mesmo o membro do

Ministério Público, como parte, pode receber as penalidades da suspeição, não

existe razão para a previsão do art. 107, do CPP, que impede se arguir suspeição da

autoridade policial:

Art. 104. Se for argüida a suspeição do órgão do Ministério Público, o juiz, depois de ouvi-lo, decidirá, sem recurso, podendo antes admitir a produção de provas no prazo de três dias. […]Art. 107. Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal.

A razão maior da suspeição é que o órgão público, justamente por expressar

as vontades do Estado, não se deixe ser levado por subjetivismos particulares. É

preciso preservar a moralidade e a impessoalidade, requisito constitucional de

qualquer ato da administração.

8.5 Legitimidade Recursal

Imaginemos a situação da representação negada pelo jurisdicional, no

tocante às medidas restritivas cuja previsão recursal se encontra expressa, a

exemplo do indeferimento de requerimento de prisão preventiva, com previsão para

recurso em sentido estrito, nos termos do art. 581, V, do Código de Processo Penal.

Nos parece claro que todo legitimado processual, até mesmo nos casos

extraordinários, possuem o direito ao duplo grau de jurisdição. Entretanto, essa

regra não pode ser aplicada no caso das representações policiais.

21

Page 22: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

8.6 Tramitação Direta entre Polícia Judiciária e Ministério Público

Uma das elogiáveis medidas tomadas por alguns tribunais brasileiros é a

tramitação direta de inquéritos policiais entre a Polícia Judiciária e o Ministério

Público.

Anteriormente, quaisquer pedidos, como a dilação de prazo para conclusão

das investigações criminais, primeiramente passavam pelo Ministério Público, eram

remetidos ao Judiciário para análise, e retornavam à Delegacia de Polícia.

Atualmente, não se faz mais necessário o crivo judicial. Os inquéritos

tramitam desde logo entre polícia e acusação. Só são levados à autoridade judicial

quando requerem medidas cautelares ou acautelatórias, além dos casos de

arquivamento e denúncia.

Essa medida fez com que se agilizasse a conclusão das investigações

criminais, diminuisse os riscos da prescrição penal, resguardasse o sigilo dos

procedimentos sob segredo de justiça e melhor distribuísse os trabalhos dos juízes

criminais64.

8.7 Sistemas de Relação entre Órgãos Administrativos e Acusatórios

Mas, como conjugar que uma autoridade administrativa, intimamente ligada

ao Poder Judiciário, e um órgão de acusação, de um poder independente, participe

do normal desenvolvimento de um processo criminal, com a existência de uma

instrução preliminar?

Há três modelos tradicionalmente enunciados pela doutrina:

Partindo-se da perspectiva das entidades administrativas de cariz policial, os

modelos adotados são: a) da autonomia funcional e administrativa; b) da

dependência funcional e autonomia administrativa; e c) da dependência

administrativa e funcional65.

64 Resolução conjunta n. 1, de 30 de setembro de 2009, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.65CALADO, Antônio Marcos Ferreira. Legalidade e Oportunidade na Investigação Criminal. Lisboa: Coimba Editora, 2009, p. 49.

22

Page 23: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

O modelo da dependência funcional e autonomia administrativa seria um

meio caminho entre os modelos existentes.

Agrega as vantagens de um sistema e de outro, em duas máximas. Suas

críticas apontam para exigências contraditórias e descoordenadas que a submissão

a dois tipos de direção trazem66.

O modelo da autonomia funcional e administrativa face à acusação,

primeiro deles, é normalmente ligado aos regimes totalitários.

Significa dizer que as autoridades policiais possuem autonomia para decidir

pelas estratégias de investigação, bem como não são subordinadas

administrativamente ao órgão da acusação.

Apesar de respeito ao princípio da legalidade, as ações da polícia

investigativa atuam de forma autônoma à acusação, organizando-se de acordo com

as diretrizes do poder (geralmente executivo) que as tutela. Isso, mormente criticado

pela doutrina, tende a propiciar uma politização destas entidades administrativas67.

A acusação é tida apenas como um destinatário dos resultados obtidos,

atuando de forma passiva, estando condicionada pelos resultados que as entidades

administrativas atingiram e lhes fizeram chegar. Em outras palavras: a acusação se

subordina subordinar ao que lhe é apresentado.

Ao que nos parece, legalmente, esse tem sido o modelo adotado pelo

ordenamento jurídico brasileiro, embora a jurisprudência e hermenêutica tenham

dado um significado muito mais amplo, chegando-se à dependência funcional como

uma exceção aplicável.

Nesse sentido:

HABEAS CORPUS. NÃO CONFIGURA CONSTRANGIMENTO O PEDIDO DE NOVAS DILIGÊNCIAS POR PARTE DO MP, COM A DEVOLUÇÃO DOS AUTOS À AUTORIDADE POLICIAL. ORDEM DENEGADA. [...] 3. O Ministério Público, como titular da ação penal, caso entenda necessário para a formação de sua opinio delicti, pode requisitar novas diligências imprescindíveis ao oferecimento da denúncia, determinando o retorno dos autos à delegacia de origem. Inteligência do art. 16 do CPP. Ordem denegada, em conformidade com o parecer ministerial. (HC 200900763336, NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, STJ - QUINTA TURMA, 01/02/2010) (destacou-se)

66 CALADO, Antônio Marcos Ferreira. Legalidade e Oportunidade na Investigação Criminal. Lisboa: Coimba Editora, 2009, p. 49.67 CALADO, Antônio Marcos Ferreira. Obra citada, p. 59

23

Page 24: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

Já no modelo da dependência administrativa e funcional, observa-se

coerência com as concepções liberais da separação de poderes, diminuindo-se as

influências do poder executivo às magistraturas judiciais. Aponta-se, também, a

unidade de coordenação e direção da globalidade dos assuntos relacionados à

acusação.

É, pois, considerado o modelo mais vantajoso de relação entre polícias

investigativas e órgãos de acusação68.

Mas, assim como todos os outros elencados, não está livre de críticas. Seus

problemas se referem ao esvaziamento das funções de cariz policial e a

incapacidade ou inadequação de organização e gestão administrativa e disciplinar

dessas entidades.

9 CONCLUSÕES

A busca por um sistema acusatório sem juizados de instrução traça um perfil

garantidor do devido processo legal, principalmente contra os abusos cometidos por

uma investigação judicial, parcial. Essa tendência, adotada por grande parte dos

países circunvizinhos, trata-se de uma profunda busca pelo sistema acusatório ideal.

Embora haja previsão legal para que a autoridade policial represente em

juízo, isso não significa que a necessidade dessa atuação esteja comprovada pelo

texto legal.

O critério ope legis de legitimidade extraordinária não é adequado ao sistema

processual penal brasileiro, tampouco à necessidade técnica de justificativa que a

ciência do direito exige.

Ora, adotar-se como correta uma conduta, somente porque o legislador assim

o quis, não nos parece, no campo penal, uma medida acertada. É preciso

sobrepesar os valores, consequências e necessidades dessa legitimação.

Inicialmente, sendo o inquérito policial atos de natureza administrativa,

excetuar-se representações, de cunho judicial, traduz-se na quebra desnecessária

da própria natureza deste. A existência de uma magistratura judicial, como no caso

68 CALADO, Antônio Marcos Ferreira. Obra citada, p. 60.24

Page 25: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

do Ministério Público, atuando nessa fase processual, desde logo já demonstra a

incoerência em se permitir que a autoridade policial represente pelas medidas

restritivas. Em outras palavras: se o inquérito policial envolve, além da autoridade

policial, outra autoridade, com natureza judicial, não se mostra plausível a atribuição

à autoridade policial, nitidamente administrativa, desses atos de representação

judicial.

Sustenta-se que o princípio dos poderes implícitos atua em favor das

autoridades policiais, reservando os meios para se atingir os fins, para que estas

possam representar em juízo por medidas acautelatórias.

In casu, o Ministério Público, como acusação, levando-se a cabo tal teoria,

também concorreria, então, na legitimação concebida pelos poderes implícitos;

também seria legitimado a propor tais medidas, já que a acusação também envolve

a investigação.

Bem verdade, além da teoria dos poderes implícitos ser uma construção

hermenêutica aberta, o que já revela sua inaplicabilidade no processo penal, deve

ser aplicada somente quando os fins não possam ser atingidos, nem por outra

maneira legal, e, principalmente, acertada.

Ainda, sobrepesando os valores dessas duas organizações estatais, parece

ser mais proveitoso que aquele que é incumbido à defesa de tais direitos também

possa representar por sua diminuição. Ou seja, se o Ministério Público é o zelador

dos direitos individuais, acertada parece a decisão de a ele, e somente a ele, pugnar

pelas diminuições cabíveis.

Também, importante argumento em desfavor das representações feitas pelas

autoridades policiais surge quando se fala em filtro processual e valor probatório.

A instrução preliminar deve ser limitada ao imprescindível. A acusação é que

irá levar os informes colhidos ao juízo.

Se a investigação é limitada, reputando-se indevidos atos maiores, que

nenhum valor probatório terão, além de, eventualmente, se mostrarem contrários à

estratégia adotada pela acusação, delegados de polícia podem ensejar um sacrífico

de direitos que sequer é exigível.

A falta de sintonia com o presentante do parquet por vezes leva a uma

investigação em excesso. Os elementos informativos devem ser colhidos na medida

25

Page 26: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

necessária à formação do convencimento da acusação, e não para satisfazer egos

de investigação. Há de ser lembrado o princípio do menor sacrifício.

Não menos importante, a tendência de formação de grupos especiais de

investigação tem diminuído a necessidade de direção da investigação por parte da

autoridade policial, que atua de forma passiva, arquitetando e executando as

medidas pleiteadas pela acusação. Isso, em que pese criticado por alguns

delegados de polícia, tem contribuído para uma maior eficácia das investigações, já

que, na maioria dos casos, tais grupos são formados por autoridades e membros do

Ministério Público com grande experiência naquela espécie de delito e os requisitos

de admissibilidade da denúncia, o que mais uma vez privilegia o menor sacrifício do

investigado.

A falta de critérios de suspeição da autoridade policial também colabora para

que estas não possam representar em juízo por medidas restritivas de direitos

individuais.

Ora, o inquérito policial já se mostra bastante inquisitivo, mesmo no sistema

acusatório, onde se deveria garantir um contraditório. Conceder poderes à

autoridade policial, para que represente por medidas cujo contraditório sequer é

exercido, ainda que sob um controle jurisdicional, é menosprezar a condição do

investigado, que na maioria das vezes sequer possui advogado, e que pode ser alvo

de uma investigação política, estratégica, mas não imparcial e impessoal, como se

exige da administração pública.

Também, de que adiantaria uma representação da autoridade policial, que se

negada fosse, não possibilitaria um segundo exame, em um duplo de grau de

jurisdição, como no caso da ausência da legitimidade recursal das autoridades

policiais.

Mas, sem dúvida, o mais forte argumento para que a autoridade policial não

tenha poderes inerentes à representação judicial é a tendência sistemática que

envolve os países que adotaram o modelo acusatório sem juizados de instrução.

Critérios mistos se mostram ineficientes na ciência jurídica do direito,

enquanto sistemas processuais penais. É que moldar o sistema processual com este

ou aquele ponto, de um ou outro sistema, muito reflete a discricionariedade que não

pode existir no campo penal.

26

Page 27: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

Nitidamente, o ordenamento jurídico brasileiro tem adaptado suas legislações

para se moldar ao sistema acusatório sem juizados de instrução. Exemplo dessas

mudanças é a instauração dos juízes das garantias e a criação de um contraditório

mitigado, na fase da instrução preliminar.

Ora, se o nosso ordenamento jurídico caminha para um sistema completo

acusatório sem juizados de instrução, não há razão para que autoridades policiais

representem em juízo por medidas cautelares e acautelatórias, contrariando as

bases desse sistema, que prevê, explicitamente, que as investigações devem ser

dirigidas pela acusação.

Não se trata somente de um modelo, criado a subjetivismos e opiniões

próprias de doutrinadores. A direção da investigação pela acusação tem sua razão

de ser.

A autonomia na investigação, pela autoridade policial, tem se mostrado

autoritária. O modelo da autonomia funcional e administrativa tem se mostrado

prejudicial aos regimes democráticos, se aproximando, muito mais, dos regimes

autoritários.

Apesar de repeito ao princípio da legalidade, as ações da polícia investigativa

atuam de forma autônoma à acusação, organizando-se de acordo com as diretrizes

do poder (geralmente executivo) que as tutela.

A dependência administrativa e funcional da autoridade policial, à acusação,

se mostra muito mais vantajosa no campo processual penal. Além de propiciar uma

melhor ligação entre as autoridades policiais e a acusação, seguindo-se uma linha

investigativa somente, a dependência funcional da autoridade policial faz com que

se investigue somente aquilo que realmente será útil à investigação, já que o

promotor tem pleno domínio sobre os elementos que irá utilizar, e como os utilizará.

Por tais razões, entende-se não ser legítima e necessária a representação da

autoridade policial, em juízo, pela restrição de medidas restritivas de direitos

individuais.

REFERÊNCIAS

CALADO, Antônio Marcos Ferreira. Legalidade e Oportunidade na Investigação Criminal. Lisboa: Coimba Editora, 2009.

27

Page 28: A LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL PARA REPRESENTAR EM JUÍZO POR MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE DIREITOS INDIVIDUAIS

DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 10ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2008.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Madri: Editorial Trotta, S.A., 1995.

GRINOVER, Ada Pellegrini. O Modelo Acusatório de Instrução Processual Penal como Garantia dos Direitos Humanos. Conferência Latino-Americana, 1994. Disponível em: Acesso em: 18.09.2011.

GEBRAN NETO. Inquérito policial: o arquivamento e o princípio da obrigatoriedade. Curitiba: Juruá, 2001.

LIEBMAN, Enrico Tullio. L’azione nella teoria del processo civile. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. Milão: Editora Giuffrè, 1950.

LOPES JR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

MARQUES, José Frederico. Estudos de Direito Processual Penal. Campinas: Editora Millenium, 2001.

MENDRONI, Marcelo Batlouni. Curso de Investigação Criminal. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

SANTIN, Valter Foleto. O Ministério Público na Investigação Criminal. São Paulo: Editora Edipro, 2011.

STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri – símbolos & rituais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 25ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003.

TASSE, Adel El. Investigação Preparatória. Curitiba: Juruá, 1998.

Projeto de Lei n. 156/09. Exposição de Motivos do Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.juareztavares.com /Textos/anteprojeto.pdf, Acesso em: , em 29.08.2011.

28