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A JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS DE JUSTIÇA DISTRIBUTIVA NO BRASIL: O PROCESSO JUDICIAL NO PÓS-1988 Tese apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação do Prof. Titular Dr. José Roberto dos Santos Bedaque, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito Processual. Candidato: Marcos Paulo Verissimo Universidade de São Paulo Faculdade de Direito Departamento de Direito Processual São Paulo, janeiro de 2006

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A JUDICIALIZAO DOS CONFLITOS DE JUSTIA

DISTRIBUTIVA NO BRASIL:

O PROCESSO JUDICIAL NO PS-1988

Tese apresentada Faculdade de Direito da

Universidade de So Paulo (USP), sob a

orientao do Prof. Titular Dr. Jos Roberto

dos Santos Bedaque, como requisito parcial

para a obteno do ttulo de Doutor em

Direito Processual.

Candidato: Marcos Paulo Verissimo

Universidade de So Paulo

Faculdade de Direito

Departamento de Direito Processual

So Paulo, janeiro de 2006

Banca Examinadora:

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Para Erica, e para os dois pequenos milagres

que ela carrega consigo (Ana e Pedro).

Abandonemos, pois, esse ensino inoperante de regras e excees.

Estudemos a lngua.

(Celso Cunha, Uma poltica do idioma, 1965)

Agradecimentos

costumeiro dizer que os trabalhos acadmicos so sempre obras coletivas. Esse

um costume justo porque, para alm do esforo individual de organizao de certas idias e

redao de um texto, h sempre, por trs das idias e dos textos, um sem nmero de

leituras, conversas, debates, concordncias, discordncias, surpresas e indignaes, ligadas

interlocuo do autor com terceiros, que formam um conjunto de relaes capazes de

moldar repertrios e formas de pensar. Minha tese de doutoramento no foge a essa regra.

Suas falhas, como se costuma dizer com a mesma justeza, so creditveis apenas ao autor.

Mas as virtudes que ela tiver so fruto da ajuda de vrias pessoas, muitas mais do que eu

poderia mencionar neste espao restrito.

Sou grato, antes de tudo, a meu orientador. O Prof. Jos Roberto dos Santos

Bedaque foi quem primeiro confiou em mim, aceitando-me, recm sado dos bancos da

graduao, no programa de ps-graduao da Faculdade de Direito da Universidade de So

Paulo. Teve a pacincia de corrigir-me os erros e de orientar minha dissertao de

mestrado. Depois, confiou novamente em meu trabalho e aceitou orientar a elaborao

desta tese, sugerindo-me caminhos e idias. Se eu no pudesse ter contado com sua ajuda,

orientao e confiana, este trabalho certamente no existiria. Professor inato, colecionador

de homenagens de seus alunos, alm de marcar-me a formao acadmica ainda infundiu

em mim o gosto por dar aulas. Sou-lhe grato tambm por isso.

A pesquisa que originou este trabalho foi empreendida em grande parte ao amparo

de um programa de visiting scholar que desenvolvi, durante o primeiro semestre de 2005,

junto Faculdade de Direito da Universidade de Yale (New Haven, CT, E.U.A.). Em Yale,

fui atenciosa e gentilmente acolhido pelo Prof. Owen M. Fiss, que pacientemente se disps

a debater comigo muitas das idias contidas nesse texto. Por sua acolhida, por colocar os

fantsticos recursos da Yale Law School minha disposio e por ouvir pacientemente

minhas dvidas e inquietaes, sou-lhe imensamente grato.

Alguns amigos colaboraram decisivamente para viabilizar a realizao desse

programa em Yale. Por isso, e por tantas outras coisas, sou grato a Carlos Alberto de

Salles, a Paulo Todescan Lessa Mattos, a Jean Paul Cabral Veiga da Rocha e a Caio Mrio

da Silva Pereira Neto. Carlos foi-me, ainda, interlocutor atencioso e constante no Programa

de Ps-Graduao da USP, abrindo-me as portas para um sem nmero de oportunidades

acadmicas, incluindo a grata oportunidade de trabalhar como seu assistente. Fez, tambm,

crticas cruciais a este texto, sobretudo quando examinou-o em sede de qualificao. Paulo,

entre tantas coisas, fez comentrios valiosos sobre a terceira parte do texto. Caio teve a

gentileza adicional de acolher-me, junto com a Fernanda, em minha chegada a New Haven,

fazendo meu processo de acomodao muito mas fcil e agradvel.

Tambm em New Haven recebi a ateno e a ajuda de Mariana Mota Prado e

Mrcio Soares Grandchamp. Alm de zelarem pelo meu conforto e de me apresentarem os

recursos da faculdade, foi de uma conversa com Mariana que surgiram quase todos os

exemplos que uso na segunda parte do trabalho. A partir das conversas com Mrcio foram

delimitadas outras tantas linhas divisoras construdas em meu texto entre as categorias da

distribuio e da comutao.

Nos ltimos oito anos, encontrei no programa de ps-graduao da USP

inumerveis interlocutores para minhas idias. Esses interlocutores foram tantos que eu

teria o receio de, enumerando-os, cometer graves injustias. Por isso, agradeo a todos na

pessoa de meu querido amigo Sidnei Amendoeira Junior. Ainda no contexto do programa

de ps-graduao da USP, sou especialmente grato aos professores Ada Pellegrini

Grinover e Kazuo Watanabe, que me aceitaram como assistente em suas disciplinas de

ps-graduao. O Professor Kazuo Watanabe fez, ainda, importantssimos comentrios a

uma verso embrionria deste texto, por ocasio de meu exame de qualificao.

Ao Professor Calixto Salomo Filho sou grato tambm pela interlocuo, e por

admitir-me na delegao brasileira do SELA (Seminario en Latinoamrica de Teora

Constitucional y Poltica).

Pela interlocuo constante agradeo tambm a meus colegas do Ncleo de Estudos

e Debates do CEBEPEJ (Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais), fazendo-o na

pessoa de sua coordenadora, Professora Maria Tereza Sadek. Agradeo ainda,

especialmente, a Susana Henriques da Costa, por franquear-me extenso material relativo ao

Ministrio Pblico do Estado de So Paulo, e a Fernando da Fonseca Gajardoni, por

esclarecer-me quanto existncia de vasto contencioso objetivando a implementao de

abrigos para menores em So Paulo. Ao meu amigo Paulo Eduardo Alves da Silva

agradeo, entre tantas coisas, por ouvir com pacincia meus devaneios.

Na Sociedade Brasileira de Direito Pblico tive a oportunidade nica de colocar as

idias centrais deste texto prova e no melhor dos laboratrios: a sala de aula. Sou grato

a Carlos Ari e a Roberta Sundfeld, e tambm a Conrado Hbner Mendes por me acolherem

na SBDP e por me deixarem organizar, a partir das preocupaes que circundam esta tese,

todo um mdulo de seu curso anual de direito constitucional. Conrado teve, ainda, a

gentileza de ler e comentar a primeira parte do texto.

Os originais foram tambm lidos e gentilmente revistos por Flavia Serizawa e

Silva. Thiago Junqueira, dedicado aluno, ocupou-se da reviso geral de referncias. As

ltimas idias foram discutidas, durante o fechamento do texto, com Rafael Oliva.

Dois extraordinrios advogados no estiveram implicados, diretamente, na

elaborao deste texto, mas so amigos que me ajudaram em tantas coisas que eu no

poderia deixar de referi-los aqui. A Moshe B. Sendacz e a Domingos F. Refinetti fao,

portanto, um agradecimento especial.

Sou enormemente grato, por variadssimas razes, a Debora Ins Kram Baumhl.

Ela tem se mostrado, ao longo dos ltimos oito anos, uma amiga insupervel. Outro amigo

insupervel tem-me sido, na vida e na academia, Diogo R. Coutinho. Ele reviu meu texto

todo, ouviu-me falar em Tiradentes das primeiras idias que geraram esta tese, fez

comentrios fundamentais e, como se no bastasse, saiu da minha casa poucos minutos

antes destes agradecimentos comearem a ser escritos, pois aqui tinha vindo para saber se

eu precisava de alguma ajuda com a editorao final do texto.

A Erica, por fim, sou grato por tudo. Por absolutamente tudo (e, por que no, pela

reviso do texto tambm...).

ndice

Introduo ....................................................................................................................... 11

Primeira Parte

Judicializao da Poltica: Conceito, Caminhos, Problemas Introduo ....................................................................................................................... 22 I. Medo da maioria e medo da minoria: dois paradigmas para a atuao das cortes de justia.............................................................................................................................. 32 II. O papel da justia na histria americana recente.......................................................... 44 III. A justia na europa do sculo xx................................................................................ 52 IV. Justia, autoritarismo e transio democrtica: o papel do judicirio na Amrica Latina............................................................................................................... 59 V. A judicializao da poltica no Brasil da Nova Repblica ........................................... 67 VI. A crtica ao expandida do poder judicirio........................................................... 76

Segunda Parte

Entre Direito e Poltica: A Crtica Instrumental (e uma Proposta para sua Interpretao)

Introduo ....................................................................................................................... 86 I. Os limites do contencioso judicial............................................................................. 87 II. Justia distributiva e justia corretiva: uma perspectiva de anlise............................. 103 III. A transio do direito para o interesse...................................................................... 125 IV. A estrutura da justia entre a retribuio e o direito subjetivo: crise do modelo liberal e emergncia de um novo modelo..................................................................................... 138

Terceira Parte

Transformaes na Justia Civil: a Dcada de 1990 e o Juiz-Heri Brasileiro

Introduo ..................................................................................................................... 145 I. Transformaes na justia e no processo: uma imagem do contencioso civil brasileiro em fin de sicle................................................................................................................ 149 II. A transformao interpretada: a admisso em juzo entre bilateralidade e policentrismo .............................................................................................................. 164 III. O ministrio pblico: novo ator social...................................................................... 177 IV. O juiz, a lei e o modo de ser do processo.............................................................. 192

10

V. Tempo e autoridade na estrutura das decises ........................................................... 198 VI. Racionalidade, Irracionalidade e Isonomia: concentrao decisria e vinculao pelo precedente nas tentativas recentes de reforma ................................................................ 206

Concluso...................................................................................................................... 216

Resumo ......................................................................................................................... 237 Abstract......................................................................................................................... 238 Sommaire...................................................................................................................... 239

ndice remissivo ............................................................................................................ 240 Bibliografia ................................................................................................................... 244

11

Introduo

Genericamente falando, este um trabalho que trata do processo de judicializao

da poltica no Brasil. Como o tema, assim vagamente considerado, excessivamente vasto

para ser objeto de uma tese de doutoramento, foi preciso empreender nele um recorte

temtico substancial. Como resultado, o enfoque aqui proposto restringe-se anlise desse

processo sob a perspectiva dos reflexos desestruturadores que ele parece ter lanado sobre

os mecanismos judiciais de soluo de controvrsias no direito brasileiro, sobretudo no

plano dos conflitos coletivos.

A hiptese de trabalho , basicamente, a de que a estrutura normativa fundamental,

organizadora do processo judicial no Brasil, tem transformado-se silenciosa mas

importantemente, sobretudo a partir de necessidades ligadas soluo de conflitos

coletivos conectados, direta ou indiretamente, a problemas distributivos (conflitos

envolvendo, grosso modo, decises sobre bens comuns, sobre bens ainda no apropriados

ou sobre bens impossveis de serem apropriados individualmente por algum).

Subvertendo certos cnones da atividade judiciria ditados pela tradio liberal, a

judicializao dos conflitos polticos tem mudado a face e o modo de ser do processo

judicial brasileiro, que passa a condicionar-se pela necessidade nova de dar conta desses

conflitos distributivos e de empreender uma atividade de gesto de interesses, sendo difcil,

contudo, prever, desde logo, os efeitos de longo prazo que disso decorrero.

Sobre o tema da judicializao da poltica muito se tem falado, inclusive no Brasil,

e sob muitos prismas diferentes. A par dessa multiplicidade de enfoques, a maior parte do

debate passa ao largo do enfoque aqui proposto, circundando, apenas, questes

representativas e de teoria democrtica, ou ligadas a problemas institucionais relacionados

s ineficincias geradas pelo aparelho judicirio em relao economia nacional.

12

Em sua primeira vertente, o debate acima referido assume uma feio crtica e ataca

a expanso do aparelho judicirio sob o ponto de vista da produo e aceitao de suas

decises. Em suma, nesse vis, os crticos da expanso recente do papel das cortes de

justia apontam graves dficits democrticos que seriam gerados pela intromisso de juzes

em questes de poltica pblica.

Sobretudo, segundo certo mainstream da crtica acima apontada, gravitaria em

torno do fenmeno um problema duplo de legitimidade, revelado tanto a priori quanto a

posteriori.

Por um lado, os juzes estariam se tornando atores polticos, mas sem que suas

aes tivessem respaldo anterior de cunho representativo (os juzes brasileiros no so

eleitos por voto popular, ao contrrio do que acontece com os membros do Congresso

Nacional, com os membros das casas legislativas estaduais e municipais e com a chefia do

Executivo nos diferentes nveis da federao).

Por outro lado, esses juzes tambm no so pessoalmente responsabilizveis por

suas decises, ao menos no que se refere ao mrito delas, e no podem ser destitudos do

cargo em virtude do exerccio equivocado da judicatura, como ocorre, por exemplo, com

os maus administradores pblicos, que por meio de eleies peridicas tambm podem, em

regime de controle posterior, ser punidos pelas ms escolhas que acaso tenham feito.

verdade que, para alm desse mainstream, considervel literatura tambm tenta

demonstrar o exato oposto, isto , que a ao das cortes de justia sobre temas de poltica

pblica tem, sim, potencial democrtico importante, na medida em que permite a

introduo na agenda poltica de questes que, de outro modo, no ingressariam nela, por

incapacidade dos grupos de interesse respectivos de atuar efetivamente no espao poltico

representativo formal.

Conforme procuro demonstrar, ainda que incidentalmente, mais adiante neste

trabalho sobretudo em sua concluso isso acontece, ao menos no caso brasileiro,

porque, entre outros fatores, as cortes de justia acabaram se tornando particularmente

permeveis ao de grupos minoritrios originalmente excludos do processo poltico

tradicional, sobretudo nos segmentos intermedirios da sociedade.

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De qualquer forma, quer apontando dficits, quer indicando potenciais

democrticos, esse debate que procurei referir acima trabalha o tema da judicializao,

como dito, sob o prisma da legitimidade, envolvendo, em ltima anlise, diferentes

concepes de democracia, diferentes leituras do princpio majoritrio e diferentes

consideraes sobre a funo da adjudicao constitucional no Estado de Direito.

Como j referido, um enfoque bastante diferente desse, mais ainda assim comum,

aquele institucionalista, focado nos problemas postos pela democratizao latino-

americana e pela abertura das economias perifricas ao jogo do comrcio mundial. Esse

enfoque preocupa-se, basicamente, com as externalidades geradas pela ao judiciria

inflacionada em um contexto de desenvolvimento incompleto e de necessidade de atrao

de investimentos, cuidando, bem assim, de debater os custos de uma mquina judiciria

ineficiente e imprevisvel.

Nesta abordagem confundem-se, especificamente no que diz respeito ao debate

brasileiro, dois problemas algo distintos. Um , propriamente, o da expanso do papel

poltico das cortes de justia, nos moldes desenhados acima e que sero melhor discutidos

ao longo deste trabalho. O outro diz respeito ao funcionamento da mquina judiciria no

desempenho de suas funes mais tradicionais de soluo de conflitos privados,

adjudicao e garantia de direitos de propriedade. Em comum no enfoque desses

problemas distintos h, sobretudo, o tema da eficincia.

No que respeita questo do papel poltico das cortes, ainda segundo esse enfoque

institucionalista, ele retiraria do rgo judicirio sua condio de aplicador neutro das

garantias de propriedade outorgadas pela legislao civil e comercial, espalhando, em

primeirssimo lugar, incertezas sobre o ambiente econmico. Na linha desse argumento,

cada deciso que interfere com uma poltica regulatria, por exemplo, ou que deixa de

reconhecer um crdito com base em princpios sociais ou em consideraes ligadas ao

sinalagma real dos contratos, em outro exemplo, agregaria uma sensao de incerteza no

contexto dos negcios que seria imediatamente interpretada pelos agentes econmicos

como um risco de investimento, o qual, por sua vez, imediatamente precificado. Atravs

do cdigo preo as incertezas criadas por um judicirio politizado seriam continuamente

transformadas em custos adicionais de investimento, criando-se, assim, ineficincias

crescentes que funcionariam como um freio importante para o desenvolvimento das

economias perifricas como a brasileira.

14

J no que diz respeito ao desempenho da mquina judiciria em suas funes

tradicionais de adjudicao de conflitos, o argumento muda um pouco de rumo, encarando

o judicirio agora como um grande prestador de servios de cobrana. Quanto mais

eficiente ele for, mais baratas e simples ficam sendo as garantias, menores sero os spreads

bancrios, menores os custos e riscos de investimentos. Reversamente, quanto mais morosa

e ineficiente for a mquina judiciria, quanto menor a sua capacidade de efetivar os

direitos de crdito, mais difcil ser o investimento, maiores e melhores tero que ser as

garantias oferecidas pelos potenciais tomadores de crdito, maiores sero os spreads

bancrios.

Na linha desse argumento, que tento aqui resumir de forma brutalmente

simplificadora, a politizao da mquina judiciria nacional, espalhando suas incertezas

sobre o ambiente econmico, adicionada profunda morosidade e ineficincia do

judicirio em sua feio de cobrador de contas, fazem dele uma instituio atravancadora

do desenvolvimento nacional. Em um recente estudo conduzido pelo economista Armando

Castelar Pinheiro1, aduz-se que tal ineficincia roubaria, anualmente, um quinto do

potencial de crescimento econmico do pas.2

Como dito acima, esse vis institucionalista, ao lado das discusses de

legitimidade, tem representado o ncleo fundamental do debate relativo judicializao da

poltica no contexto brasileiro ps 1988. Ainda que ambos esses temas remetam a questes

que perpassam todo o texto desse trabalho, o enfoque que quis dar aqui foi diferente.

Para melhor compreend-lo, preciso fazer referncia a uma terceira linha de

anlise, que se centra naquilo que os americanos chamam de institutional capacity e que

prefiro referir por capacidade instrumental.3

Na linha desse debate, faz-se a critica da invaso dos espaos polticos pelos rgos

judicirios sob o ponto de vista da incapacidade de seus instrumentos para resolver esse

1 V. Armango Castelar Pinheiro (org.), Judicirio e Economia no Brasil. 2 Segundo Castelar, uma melhor do Judicirio que o situasse em padres de primeiro-mundo

indiretamente faria o Produto Interno Bruto nacional crescer a taxas anuais 25% mais elevadas. Idem, p. 188.

3 A expresso crtica instrumental, que prefiro utilizar para evitar confuses com aquela que estou chamando de crtica institucional, usada por Owen M. Fiss em The Forms of Justice, p. 31. Esse texto e todos os demais artigos de Owen M. Fiss citados neste trabalho podem ser encontrados vertidos para o portugus na seguinte coletnea, organizada por Carlos Alberto de Salles: Owen M. Fiss, Um Novo Processo Civil: Estudos Norte-Americanos sobre Jurisdio, Constituio e Sociedade.

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tipo de disputa. Os rgos judicirios, diz-se, so formuladores de polticas errticas e

geralmente regressivas, por suas prprias caractersticas institucionais, e pelas prprias

caractersticas do tipo de procedimento que utilizam para desempenhar seu mister.

Novamente, crtica e elogio rodam em torno das mesmas notas institucionais que marcam a

atuao do rgo judicirio, fazendo, cada qual, leituras prprias dessas suas caractersticas

fundamentais.

Invertendo a ordem em que esses discursos foram apresentados no pargrafo

anterior, comeo por referir a linha tradicional pela qual se conduz o elogio ao poltica

das cortes de justia, fundado em suas caractersticas institucionais mais marcantes

(imparcialidade, inrcia, deciso conforme o direito e os inputs das partes, necessidade de

fundamentar as decises em princpios racionais principled decisions e no em

simples preferncias, etc.).

Em um trecho de The Forms of Justice, Owen Fiss resume o argumento.4 Segundo

Fiss, a funo jurisdicional, sob o prisma dos instrumentos para seu exerccio, desenhada

de tal sorte a forar os juzes a serem objetivos, impedindo-os de expressar suas opinies

pessoais ou de simplesmente acolher preferncias majoritrias encontradas no corpo social.

As cortes possuem garantias que asseguram sua independncia em relao a presses de

grupos e instituies e suas decises exigem um dilogo antecedente marcado por quatro

qualidades bastante especiais. Nesse dilogo em que os juzes so obrigados a engajar-se (o

contraditrio judicial), (a) no so eles que escolhem a agenda nem os termos do debate,

sendo assim obrigados a resolver questes que talvez de outro modo preferissem ignorar,

(b) no so eles que determinam quais so as vozes que devero ser ouvidas, obrigando-se

assim a ouvir todos aqueles que tm interesse direto no conflito, (c) so obrigados a

responder, no podendo deixar sem anlise um pedido que lhes seja endereado e (d) suas

respostas tm que ser motivadas, e apenas contam como motivos aceitveis aqueles que

no se assentem em preferncias pessoais. Por no serem eleitos (Fiss pensa aqui nos

juzes federais americanos, em raciocnio vlido para o ambiente institucional brasileiro),

os juzes no precisam expressar vontades majoritrias, assegurando-se assim sua

independncia em relao s presses polticas. Com essas caractersticas institucionais,

eles podem manter-se imparciais, distantes e descolados dos litigantes, garantindo-se que

a deciso final no seja uma expresso das preferncias destes, mas sim a garantia de

4 Cf. Owen M. Fiss, The Forms of Justice, p. 13-14.

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preservao de certos valores que se entenderam relevantes o bastante para que fossem

includos no texto constitucional. Da soma dessas caractersticas resultaria a legitimidade

das cortes para funcionarem como contrapesos aos rgos representativos no jogo

poltico do Estado de Direito contemporneo.5

Sob o prisma da critica capacidade instrumental das cortes de justia para o trato

de conflitos polticos, essas mesmas e exatas caractersticas so as que fazem do judicirio

um formulador errtico de polticas pblicas.

Sendo inerte, ele no pode identificar os problemas sociais que esto necessitando

mais urgentemente de uma dada poltica pblica. Ele s pode atuar ou deixar de atuar nas

5 This conception of the judicial function, which sees the judge as trying to give meaning to our

constitutional values, expects a lot from judges - maybe too much. The expectation is not founded on a belief in their moral expertise, or on a denial of their humanity. Judges are most assuredly people. They are lawyers, but in terms of personal characteristics they are no different from successful businessmen or politicians. Their capacity to make a special contribution to our social life derives not from any personal traits or knowledge, but from the definition of the office in which they find themselves and through which they exercise power. That office is structured by both ideological and institutional factors that enable and perhaps even force the judge to be objective - not to express his preferences or personal beliefs, or those of the citizenry, as to what is right or just, but constantly to strive for the true meaning of the constitutional value.29 Two aspects of the judicial office give it this special cast: one is the judge's obligation to participate in a dialogue, and the second is his independence. The judge is entitled to exercise power only after he has participated in a dialogue about the meaning of the public values. It is a dialogue with very special qualities: (a) Judges are not in control of their agenda, but are compelled to confront grievances or claims they would otherwise prefer to ignore. (b) Judges do not have full control over whom they must listen to. They are bound by rules requiring them to listen to a broad range of persons or spokesmen. (c) Judges are compelled to speak back, to respond to the grievance or the claim, and to assume individual responsibility for that response. (d) Judges must also justify their decisions. The obligation to justify a decision has given rise to neverending debates as to the proper sources of judicial decisions - text, intentions of the Framers, general structure of the Constitution, ethics, the good of the nation, etc. For the notion of justification, as opposed to exdanation, implies that the reasons supporting a decision be "good" reasons, and this in turn requires norms or rules for determining what counts as a "good" reason. My intention is not to participate in the debate about the rules for justification, but to stress two facts that all seem to agree on as to what might count as a "good" reason. The first is that the reason cannot consist of a preference, be it a preference of the contestants, of the body politic, or of the judge. The statement "I prefer" or "we prefer" in the context of a judicial, rather than a legislative decision, merely constitutes an explanation, not a justification." Second, the reason must somehow transcend the personal, transient beliefs of the judge or the body politic as to what is right or just or what should be done. Something more is required to transform these personal beliefs into values that are worthy of the status "constitutional" and all that it implies - binding on society as a whole, entitled to endure, not forever but long enough to give our public morality an inner coherence, and largely to be enforced by courts. The judge is required to listen and to speak, and to speak in certain ways. He is also required to be independent. This means, for one thing, that he not identify with or in any way be connected to the particular contestants. He must be impartial, distant, and detached from the contestants, thereby increasing the likelihood that his decision will not be an expression of the self-interest (or preferences) of the contestants, which is the antithesis of the right or just decision. The norm of impartiality also requires that the judge be independent from politics, in this instance understood as the process of expressing the preferences of the people. The judge must not view his job as one of registering those preferences. Independence is clearly the norm in the federal system with its promise of life tenure, but is present also in those state systems in which judges are elected. The judge might be vulnerable to the body politic when he stands for election, but that does not determine how he should define his job, or how the body politic should use its power. (Owen M. Fiss, The Forms of Justice, p. 13-14).

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polticas que lhe so submetidas, ainda que elas sejam irrelevantes em relao a outros

problemas sociais mais urgentes que tenham ficado margem da vontade das partes de

provocar a interveno judiciria respectiva. Desdobrando-se a inrcia judiciria no dever

de adstrio da sentena ao pedido, o judicirio tambm no pode desenhar a poltica

pblica de sorte a acomodar os vrios interesses em jogo, exercendo o papel criativo e

flexvel que se espera de um engenheiro social. Segundo a crtica que estou descrevendo,

se a soluo propugnada pelo autor no for a melhor o juiz ficar entre a difcil escolha de

rejeit-la, deixando o problema social sem resposta, ou acolh-la, dando ao mesmo

problema uma resposta que sabe ser, ao menos parcialmente, inadequada.

Tambm as pretenses objetividade e deciso com base em direitos e no em

preferncias das partes podem ser vistas criticamente como deficincias instrumentais para

o tratamento de conflitos polticos. Isso porque esses conflitos no se formulam em termos

de titulao, mas de desejo, ou, por vezes, necessidade. Os conflitos polticos no se

resolvem pela investigao de quem seja o proprietrio dos bens em conflito, mas sim pela

acomodao das diferentes preferncias a respeito desses mesmos bens, as quais so, por

sua vez, fundadas em desejos e necessidades, mas no em relaes de propriedade.

A pretenso objetividade da norma jurdica preexistente, centrada em relaes de

titulao fracas dadas por um texto constitucional extremamente contraditrio, torna mais

agudo esse problema. Segundo a crtica que estou tentando caricaturizar, faz com que se

desmonte a distino entre esses dois universos da titulao e da necessidade, dizendo

queles que precisam de sade que, em razo de sua necessidade, so por isso apenas

titulares de um direito sade, ainda que esse direito implique polticas redistributivas que

por sua vez interferem com direitos alheios, ligados propriedade de outros bens, os quais

so identicamente protegidos pelo texto constitucional e devem, igualmente, ser

preservados.6

A incapacidade de pensar em termos de preferncias, a incapacidade de lidar com a

barganha em plano coletivo (no se transacionam direitos indisponveis, como aqueles de

6 [I]t is all very well to base human rights on material need, but other people may already have property

rights over the resources that would have to be used to satisfy these needs (Cf. Jeremy Waldron, Rights, in Robert Goodin and Philip Pettit (ed.), A companion to contemporary political philosophy, Blackwell, 2005, 579. Note-se que Waldron est, nesse trecho, referindo, mas no endossando, a critica tradicional caracterizao dos direitos de segunda gerao como direitos, reportando-se assim, sobretudo, ao pensamento de Nozick.)

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natureza coletiva ou os que envolvem as polticas do Estado, diz o cnone), a necessidade

de transformar pontos de vista parciais em direitos que precisam ser ou no ser titulados

por quem os afirma, em um jogo de tudo ou nada, a necessidade de adstrio ao caso

concreto e a correlativa impossibilidade de extrapol-lo ou ampli-lo de sorte a contemplar

outras necessidades sociais e, enfim, a incapacidade de gerir a prpria agenda e de

determinar as prprias solues fariam do Judicirio, ao fim e ao cabo, um pssimo

alocador de recursos. As caractersticas instrumentais elogiadas por Fiss agregariam ao

Judicirio uma rigidez institucional que faria dele um formulador errtico de polticas

pblicas.

Meu propsito com este trabalho no o de demonstrar a correo de uma ou outra

dessas vises. apenas o de apresentar em maiores detalhes essa crtica de capacidade

instrumental, o de explorar em profundidade seus principais argumentos e o de tentar

entender luz dela certas transformaes que parecem ter ocorrido na justia brasileira ao

longo dos anos 1990, sobretudo.

A partir de 1988 (a data aqui usada muito mais como um marco simblico,

coincidente com a promulgao de um texto constitucional que quis congregar em seus

termos abertos toda a sorte de valores conflitantes, todo o tipo de aspiraes sociais e de

desenvolvimento econmico igualitrio, em um contexto de pobreza, dirigismo estatal

ineficiente e extrema concentrao de renda), qualquer observador atento poderia perceber

o curso de um certo movimento, mais ou menos identificvel na sociedade brasileira, cujo

sintoma mais claro seria a crescente presena dos atores judiciais na mdia, fossem eles

juzes, Ministros do Supremo Tribunal Federal, advogados, promotores de justia,

delegados de polcia ou quaisquer outros de semelhantes ttulos.

Crescentemente, boa parte das questes nacionais passou a compreender, ainda que

incidentalmente, incurses mais ou menos organizadas pelas cortes de justia. Isso ocorreu

com o bloqueio dos saldos de poupana empreendido pelo Plano Collor I e, de forma muito

mais intensa e sofisticada, pde ser visto durante todo o perodo em que foi implementado

o Plano Diretor da Reforma do Estado, por meio da reestruturao dos setores de servio

pblico e da privatizao das empresas estatais.

Esse processo de judicializao da vida pblica parece extrapolar, todavia, o

contexto nacional. Parece referir-se antes a um movimento global de expanso do papel

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poltico reservado aos rgos judicirios, identificvel a partir do final da Segunda Guerra

Mundial. A primeira parte deste trabalho trata, por isso, de circunscrever esse processo,

traando-lhe as origens histricas recentes e reconhecendo suas peculiaridades nos

contextos europeu, americano, latino-americano e brasileiro. Essa parte tambm apresenta

em maiores detalhes o argumento fundamental das crticas referidas acima inflao de

poder que atingiu as cortes de justia na experincia global recente.

Separada entre essas crticas aquela relativa capacidade instrumental dos tribunais

para lidar com conflitos polticos, dela passa a cuidar a segunda parte do texto. So

associadas ao modelo paradigmtico de justia referenciado pela crtica instrumental as

noes de comutao e defesa de direitos subjetivos, de modo a demonstrar que essa crtica

refere-se sobretudo ao modelo liberal de justia e de processo judicial, tendo ocorrido,

contemporaneamente, mudanas importantes nesse modelo. A essas mudanas, aduz-se,

corresponderam alteraes importantes no prprio arsenal instrumental da justia.

A terceira parte do trabalho aborda, portanto, o desenho especfico dessas

mudanas no contexto brasileiro, sobretudo no mbito da tutela de interesses difusos e

coletivos, buscando compreender essas mudanas luz de certas dinmicas que tero sido

explicitadas em maiores detalhes nas duas partes anteriores do texto.

A tese que sustento aqui que vrias das alteraes recentes no mbito da justia e

do processo civil brasileiro podem ser compreendidas como reaes (ou contra-reaes)

institucionais transformao material ocorrida nos tipos de litgio judicializados, que

deixam de referir-se apenas a questes de justia retributiva e passam cada vez mais a

envolver litgios de justia distributiva, passando tambm de um modelo de adjudicao de

direitos para outro de gesto de interesses.

As anlises feitas ao longo da primeira, segunda e terceira partes do texto so

fundamentalmente analtico-descritivas. Procuram compreender transformaes

efetivamente ocorridas na dinmica social e jurdica atribuindo-lhes uma explicao que

lhes possa acrescentar um sentido de conjunto. A concluso do trabalho veicula, contudo,

um juzo de valor mais claro quanto ao concreta da justia brasileira no campo das

polticas pblicas, sugerindo um modelo de atuao que poderia contornar as crticas

referidas acima, potencializando contribuies positivas que as cortes de justia parecem

poder dar, efetivamente, ao avano de ideais democrticos.

20

Trs notas finais, de carter metodolgico, fazem-se necessrias. A primeira diz

respeito ao recurso freqente comparao da experincia brasileira com a americana. A

ntida preferncia por essas comparaes justificou-se pela imensa semelhana que h

entre os arranjos institucionais pertinentes aos dois pases (no plano do direito, por

exemplo, a unidade de jurisdio e a existncia de controle difuso de constitucionalidade e

de uma tutela coletiva de interesses difusos bem estruturada). Como se ver adiante, a

experincia americana conheceu, com uma antecedncia de aproximadamente trinta anos,

problemas muitssimo semelhantes queles que se apresentam, agora, realidade

brasileira, tendo sido gerada, at mesmo por isso, uma extensssima literatura referente

ao poltica das cortes de justia, a seus problemas e s suas condicionantes. No

obstante, isso no significa que este seja um trabalho propriamente de direito comparado,

elaborado nos limites prprios a esse mtodo de anlise.

A outra nota final diz respeito ao uso da primeira pessoa do singular ao longo do

trabalho. Esse um costume ainda pouco comum nos trabalhos acadmicos brasileiros de

direito e, por que no dizer, um costume que, nesse meio, as vezes tido como uma m

prtica, como quebra da etiqueta acadmica desejvel. No entanto, boa parte dos trabalhos

acadmicos brasileiros produzidos no bojo das demais cincias humanas (especialmente na

cincia social e na cincia poltica) faz uso corrente da primeira pessoa do singular, como

tambm ocorre, normalmente, com os trabalhos americanos de direito. Essas ltimas

opes pareceram ao autor mais desejveis, por uma srie de motivos.

Em primeiro lugar, porque a redao do texto no impessoal torna, muitas vezes,

difcil compreender os momentos em que o autor est exprimindo (i) um juzo pessoal e

descritivo sobre a realidade, (ii) um juzo pessoal e normativo sobre a realidade, (iii) uma

descrio sobre o juzo descritivo da realidade corrente na comunidade acadmica, ou (iv)

uma descrio sobre um certo juzo normativo corrente na comunidade acadmica. Isso

efeito comum e bem documentado dos expedientes de ocultao do sujeito e apassivao

das frases que se tornam necessrios para evitar, em todas essas descries, o uso da

primeira pessoa do singular.

Alm disso, a forma impessoal pode servir, nos trabalhos acadmicos, para

mascarar o carter necessariamente pessoal e subjetivo de suas concluses, manipulando o

discurso para fazer com que ele parea necessrio, impessoal, neutro, universal. O

discurso cientfico (e tambm o tecnolgico) para ser aceito como verdadeiro procura

21

parecer que no um discurso, mas o enunciado das relaes necessrias entre as

coisas.7 O expediente conhecido em filologia como manipulao dialtica do discurso.8

A opo pela primeira pessoa do singular foi utilizada, portanto, tambm para contornar

esses riscos.

A ltima observao diz respeito s referncias literatura e demais documentos

em lngua estrangeira. Por razes de acessibilidade e fluidez, optei por verter para o

portugus todas as citaes de fontes estrangeiras feitas no corpo do texto, deixando-as em

redao original apenas quando constantes das notas de p de pgina. Salvo quando

expressamente referido de outra forma, portanto, todas as tradues so de

responsabilidade do autor.

7 Cf. Maria Margarida de Andrade, Estratgias da impessoalidade nos discursos cientfico e tecnolgico,

Cadernos do Congresso Nacional de Lingstica e Filologia, Srie VIII, n. 5, publicao disponvel eletronicamente no endereo http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno05.html (ltima consulta em 28 de maro de 2005).

8 Os mecanismos de manipulao dialtica produzem mudanas formais no discurso cientfico, pela utilizao de recursos que tm por objetivo torn-lo neutro, impessoal, tais como o emprego das formas impessoais do verbo, da voz passiva, e determinadas expresses que o despersonalizam. Procura-se, tanto quanto possvel, separar o enunciado da instncia da enunciao, a fim de que parea como discurso, no da pessoa, mas como discurso objetivo, que no pertence a ningum, cujo sujeito seria a cincia, a fazer-se por si mesma. Cf. Maria Margarida de Andrade, id.)

22

PRIMEIRA PARTE

Judicializao da Poltica:

Conceito, Caminhos,

Problemas

Quais so os quadrantes de atuao legtima do Poder Judicirio? Para o exerccio

de quais atividades ele capacitado? Como se delimita o trabalho de aplicao das normas

jurdicas por ele, supostamente, desenvolvido? H criatividade nesse trabalho? H espao

para preferncias pessoais? H espao para argumentos ou preferncias de ordem poltica,

econmica, utilitarista ou conseqencialista? Por que todas as demais disciplinas sociais

pensam no Poder Judicirio como um ator poltico, ao passo em que o direito insiste em

identific-lo como uma instncia decisria neutra, independente de influncias exteriores

e, por isso, legitimada ao trabalho de aplicao objetiva das regras jurdicas? Como que

as mesmas caractersticas institucionais do Poder Judicirio (independncia e isolamento

do jogo poltico representativo) podem ser vistas de forma to diferente por certos

mainstreams de duas disciplinas acadmicas to prximas como o direito e a cincia

poltica (a primeira apontando essas caractersticas como sendo os prprios fatores de

legitimao da ao judicial objetivamente conforme ao direito, e a segunda vendo-as

como demonstraes de ilegitimidade de uma ao poltica contra-majoritria e blindada

contra os mais singelos controles sociais9)?

9 Penso, aqui, especialmente, nas vertentes da cincia poltica americana ou de inspirao americana que,

simultaneamente, (i) vem a regra da maioria como nico princpio normativo racional para a construo de uma teoria normativa da poltica e (ii) colhem do estudo emprico do funcionamento das cortes de justia concluses bastante negativas quanto aos resultados, procedimentos e efetividade desse trabalho. Creio que ambas essas aproximaes estejam na base de boa parte do pensamento de Robert Dahl, que acabou por influenciar toda uma gerao de cientistas polticos nos Estados Unidos (v., sobre um e outro pontos referidos acima, Robert A. Dahl, A Preface To Democratic Theory, e Robert A. Dahl, Decison-Making in a Democracy: The Supreme Court as a National Policy-Maker). Outros exemplos contundentes da segunda aproximao mencionada acima so os trabalhos empricos de Gerald Rosenberg, The Hollow Hope: Can Courts Bring About Social Change? (procurando demonstrar que, em

23

Essas questes tm a paradoxal peculiaridade de manterem-se na ordem do dia ao

menos durante os ltimos duzentos e poucos anos. So questes atuais e pertinentes,

prioritrias na agenda dos estudos jurdicos e de outras disciplinas sociais neste incio de

sculo, mas que circundam as preocupaes dos cientistas polticos, dos juristas e de outros

acadmicos, de uma forma ou de outra, desde o final do sculo XVIII10. Historicamente, a

origem das perplexidades que se escondem por trs dessas perguntas remonta ao processo

de diferenciao do direito pblico e do direito privado, por meio do qual se forjou a

distino hoje corrente entre as idias de direito e poltica.11 Mas por que esse tema

alcana, hoje, tamanho destaque? Em parte, um dos objetivos principais desta primeira

sesso do trabalho consiste em identificar essas razes, definindo tambm, da melhor

maneira possvel, o problema que se esconde por trs dessas questes.

Esse problema, como enuncia o ttulo desta parte inicial, vem sendo identificado

contemporaneamente pela idia de judicializao da poltica. Essa expresso, por sua vez,

toda a histria dos Estados Unidos, a ao da Suprema Corte no foi responsvel, ela mesma, por

qualquer avano em termos de igualdade social ou proteo de direitos humanos), e de Jeffrey A. Segal e Harold J. Spaeth The Supreme Court And The Attitudinal Model Revisited (sustentando que as posies assumidas pelos juzes da Suprema Corte americana em seus votos so explicveis empiricamente apenas

e exclusivamente com base nas respectivas preferncias polticas, i.e., com base em suas posies

ideolgicas pessoais a respeito de questes como direitos humanos e ao regulatria do executivo, em

um contexto no qual aspectos jurdicos como o respeito a precedentes jurisprudenciais, ao prprio texto da lei, ou a critrios de interpretao histrica, sistemtica ou semelhantes desempenham pouco ou

nenhum papel efetivo). De outro lado, quando confronto esse tipo de aproximao com aquilo que chamo

de mainstream da cincia jurdica, penso sobretudo nas vrias defesas das noes de constitucionalismo e de justia constitucional, que esto na base desse mainstream, e que dependem umbilicalmente da existncia de um Poder Judicirio que se legitima pelas caractersticas expostas acima. Alguns exemplos

paradigmticos desse tipo de pensamento, ainda que bastante diferentes entre si, podem ser encontrados

em Mauro Cappelletti, Juzes Legisladores?, Cndido R. Dinamarco, A Instrumentalidade do Processo, ou em Alexander Bickel, The Least Dangerous Branch: The Supreme Court at the Bar of Politics, entre tantos outros trabalhos. Mas claro que h inmeras vises diferentes dessas tanto nos domnios da cincia poltica quando do direito. Exemplos respectivos disso podem ser encontrados, v.g., em toda a

literatura de cincia poltica influenciada pelos papis federalistas (da qual Democracy in Amrica, de Tocqueville, talvez seja o exemplo mais antigo) e, de outro lado, na tradio jurdica francesa avessa a

qualquer noo de controle ordinrio de constitucionalidade (v., por exemplo, Edouard Lambert, Le gouvernement des juges et la lutte contre la lgislation sociale aux tats-Unis: l'exprience amricaine du contrle judiciaire de la constitutionnalit des lois), ou mesmo na literatura jurdica americana contrria, em maior ou menor medida, ao chamado judicial activism (v., sobretudo pelas referncias bibliogrficas, John Hart Ely, Democracy and distrust).

10 As revolues liberais do final do sculo XVIII e os arranjos poltico-institucionais que se seguiram a elas tiveram, sem dvida, essas questes em foco. Solues bastante diferentes foram encontradas, no entanto, por cada um dos dois exemplos mais importantes desse movimento histrico: o processo de independncia das colnias americanas e a revoluo francesa. Enquanto o modelo Madisoniano de democracia gerou, nos Estados Unidos, a opo por um constitucionalismo baseado em um sistema de checks and balances, produzindo um judicirio forte como resultado da Conveno da Filadlfia, a revoluo burguesa na Frana acabou por gerar, a seu turno, um judicirio fraco, centrando seu arranjo institucional na noo de separao de poderes e na idia de supremacia parlamentar.

11 Esse processo examinado com mais cuidado na segunda parte deste trabalho.

24

acaba sendo utilizada para designar uma srie enorme de fenmenos, muitos dos quais

bastante diferentes entre si. Por exemplo, esto envolvidos nessa idia problemas como (i)

a crescente interferncia judicial em polticas pblicas formuladas pelo Executivo, (ii) a

reviso de textos legais com fundamento em mecanismos diversos de controle de

constitucionalidade das leis, (iii) a formulao de demandas buscando a efetivao judicial

de direitos humanos de cunho social e econmico, inseridos em Constituies social-

democratas e tratados internacionais, (iv) a introduo de uma racionalidade poltico-

ideolgica no discurso judicial, permeada por noes de justia social ou por outras noes

congneres, (v) a organizao de certas categorias ligadas aos setores judicirios em rgos

classistas, (vi) a adoo de procedimentos de tipo judicial em rgos executivos e

legislativos, (vii) a criao de instncias supra-nacionais de resoluo de conflitos e

produo de polticas pblicas, como o caso do Tribunal de Justia das Comunidades

Europias, ou das Corte de Strasburgo e (em menor medida) San Jose da Costa Rica, etc.

Em contrapartida ao carter ancestral de boa parte desses temas (ao menos o do

controle de constitucionalidade das leis remonta, pelo menos, aos idos de 180312), o termo

judicializao da poltica, ele mesmo, de formulao bem mais recente, constando ter

sido utilizado pela primeira vez, com o objetivo de descrever toda essa variada gama de

fenmenos, nos papers apresentados ao seminrio homnimo realizado em junho de 1992

em Forl, Itlia, pelo Centro di Studi sullOrdinamento Giudiziario di Bologna.13

Segundo Vallinder, a essa idia de judicializao da poltica corresponderiam,

grosso modo, duas vertentes distintas mas inter-relacionadas de um mesmo movimento

contemporneo de expanso global do Poder Judicirio: (i) o processo de transferncia

de certas prerrogativas decisrias dos rgos executivos e legislativos para os rgos

judicirios, ou, em outras palavras, o processo de ampliao da capacidade de criao de

regras jurdicas por parte das cortes de justia, s expensas das prerrogativas detidas pelos

rgos polticos tradicionais, cuja legitimidade deriva da representao popular, e (ii) o

12 Essa a data em que foi publicada a famosa deciso da Suprema Corte americana proferida no caso

Marbury v. Madison (5 US 135). Sobre o contexto em que a deciso foi proferida e sua importncia para o desenvolvimento posterior do sistema americano de controle de constitucionalidade, v. meus comentrios lanados no item I, adiante.

13 V. http://www.spbo.unibo.it/bologna/dipartim/dosp/cesrog.htm. Vrios desses papers foram subseqen-temente publicados em uma edio especial da International Political Science Review (vol. 15, n. 2, abril de 1994 ed. Torbjrn Vallinder), sendo depois coligidos em um volume tambm homnimo editado em 1995 por C. Neal Tate (professor de cincia poltica na University of North Texas) e Torbjrn Vallinder (professor do departamento de cincia poltica da Universidade de Lund, Sucia) (C. Neal Tate e Torbjrn Vallinder, The global expansion of Judicial Power, p. vii-viii).

25

concomitante processo de absoro dos mtodos de deciso prprios aos rgos judicirios

por parte dos rgos legislativos e executivos.14

Quanto ao primeiro aspecto indicado acima, preciso destacar que esse processo de

transferncia de prerrogativas dos parlamentos e dos rgos executivos s cortes de

justia no se d sem um certo desencontro de paradigmas institucionais. Isso porque,

como anota ainda Vallinder, nas democracias, primariamente em suas assemblias eleitas

pelo povo, os processos de tomada de deciso so baseados no princpio da maioria e em

um debate livre e pblico entre iguais15. Naturalmente, esse no o modo de produo de

decises utilizado pelas cortes de justia.

A ao dessas cortes implicaria, sobretudo, as seguintes caractersticas

institucionais: (a) pessoal especializado (juzes), normalmente com treinamento legal, (b) a

resoluo de conflitos entre duas partes de modo regular e imperativo, de acordo com (c)

regras preestabelecidas, envolvendo, portanto (d) o estabelecimento dos fatos do caso e o

sopesamento dos argumentos das partes em conflito, com (e) efeitos prospectivos para

casos similares no futuro.16

Vallinder desenha um quadro exemplificativo atinente s diferenas entre os modos

judicial e poltico de resoluo de conflitos. Esse quadro segue reproduzido abaixo

(Quadro 1).17

Se ao modo de operao tpico das cortes de justia parece corresponder a soluo

de litgios interindividuais, no plano da teoria poltica a funo tpica desses rgos seria a

de proteger os cidados contra abusos do Estado, ou seja, garantir a efetivao de certas

liberdades, de cunho negativo, garantidas constitucionalmente. De outro lado, a funo

tpica dos corpos parlamentares seria a de definir direitos e obrigaes. Conforme aponta

Vallinder, pode-se dizer esquematicamente que a judicializao da poltica significa a

majorao do primeiro princpio em detrimento do segundo18.

14 Cf. Tobjrn Vallinder, When the Courts Go Marching In, p. 13. 15 Idem, ibidem. 16 Idem. p. 14. 17 V., tambm, Lon Fuller, The Forms and Limits of Adjudication. 18 Ob. Cit. p.15.

26

(Quadro 01)

Comparao entre uma Corte e um Corpo Legislativo

Caractersticas

Corte

Corpo Legislativo

Atores duas partes e um terceiro participante (o juiz)

vrias partes

Mtodos de trabalho audincias pblicas sopesamento de argumentos

barganha, frequentemente a portas fechadas, compromissos, trocas de favores

Regras bsicas de tomada de deciso

deciso tomada por um juiz imparcial

princpio majoritrio

Resultados resoluo de casos individuais (mas com a criao de precedentes, especialmente no controle de constitucionalidade)

regras gerais (leis, oramentos), definio de polticas pblicas

Implicaes determinao dos fatos (o que aconteceu) e da regra a ser aplicada (o que deve ser aplicado), a nica soluo correta

alocao de valores (frequentemente econmicos), a soluo politicamente possvel

Uma das formas pelas quais o processo se desenvolve , claramente, o controle

judicial de atos do Poder Executivo e Legislativo. Se esse controle se d por meio da

aplicao de uma carta de direitos particularmente aberta, seu escopo amplia-se

consideravelmente. Vallinder entende ser essa uma forma de judicializao da poltica

vinda de fora19. Outras formas de judicializao vindas de dentro corresponderiam

introduo ou expanso de pessoal ou mtodos de trabalho prprios esfera judicial no

setor administrativo.20

De fato, a histria recente das reformas administrativas mostra uma alterao

significativa no modo de operao da administrao pblica, que incorpora,

gradativamente, mecanismos de ao judicial e parlamentar.

Os ltimos relacionam-se sobretudo s exigncias de consultas e audincias

pblicas na atividade regulatria, sobretudo de carter normativo. Na experincia

brasileira, um exemplo claro desse tipo de tendncia pode ser encontrado na chamada Lei

Geral de Telecomunicaes, que diz ser de competncia da Agncia Nacional de

19 Idem. p. 16. 20 Idem, ibidem.

27

Telecomunicaes a prtica de diversos atos normativos, condicionando sua validade,

todavia, submisso prvia das minutas desses atos consulta pblica, formalizada por

publicao no Dirio Oficial da Unio, devendo as crticas e sugestes merecer exame e

permanecer disposio do pblico na Biblioteca.21

Mas a adoo de mecanismos de ao judicial pela administrao que parece

chamar mais a ateno na histria recente dos ordenamentos nacionais. No plano

institucional, um marco inicial importante coincide com a promulgao, em 1946, do

Administrative Procedure Act, nos Estados Unidos. Reformas legislativas atinentes

reestruturao de procedimentos administrativos, com vistas a dot-los de garantias de

participao de cunho quase judicial so empregadas tambm na Espanha, em 1958, na

Alemanha, em 1976, na Itlia, em 1990, em Portugal, em 1992, e no Brasil, sobretudo com

a edio da Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Esse processo j foi chamado de

processualizao do direito administrativo22 e, para Vallinder, significa um caminho,

dentro da Administrao Pblica, em direo a mais adjudicao, menos

administrao23.

Esse caminho em direo processualizao do direito administrativo,

judicializao vinda de dentro, como sugere Vallinder, corre paralelo ao

desenvolvimento da judicializao vinda de fora, ocorrida sobretudo no perodo

posterior Segunda Guerra Mundial, quando o papel das cortes e dos juzes se expande

consideravelmente.

Nesse sentido, trata-se de um movimento que acompanha, de certo modo, a prpria

burocratizao do Estado Social, funcionando, como definiu Cappelletti, como um

contrapeso ao agigantamento do Poder Executivo e conseqente perda de espao

poltico das casas legislativas, no curso do chamado welfare state.24

Sob o ponto de vista instrumental, esse movimento caminha paralela e

conjuntamente a diversas outras transformaes estratgicas ocorridas no corao do

direito do Estado Social de Direito, por meio das quais foram positivados, nos planos

21 Cf. Lei n. 9.472 de 16 de julho de 1997, artigo 42. 22 Cf. Odete Medauar, A Processualidade no Direito Administrativo. 23 Ob. Cit. p. 16. 24 V. Mauro Cappellett i . Juzes Legisladores?, p. 50.

28

internacional, comunitrio ou local, direitos humanos de variada ordem, incluindo os

chamados direitos de segunda e terceira gerao ou sociais e de solidariedade, tais como

os direitos humanos de natureza econmica e social tratados no Pacto Internacional de

Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (1966), ou mesmo como os direitos ligados

proteo do mercado de consumo, do meio ambiente, ou de outros interesses de natureza

difusa ou coletiva, objeto de inmeras inovaes legislativas nos planos nacional25 e

internacional26 e, tambm, objeto de variadas diretivas da Comunidade Europia,

produzidas na segunda metade do sculo passado.

O processo de judicializao da poltica acompanha, tambm, o movimento de

crescente indeterminao normativa que marca a produo do direito no perodo do Estado

Social.27

Essa crescente indeterminao normativa identifica-se com o uso de expresses

abertas pelo direito e com a preferncia do legislador pelo uso de princpios genricos ao

invs de regras particulares, diretas e especficas, at como conseqncia da necessidade,

sentida pelos parlamentos, de outorgar nveis cada vez maiores de discricionariedade28 aos

rgos do Poder Executivo, responsveis pelo desenvolvimento das polticas welfaristas.

A abertura maior dessas normas forneceu os instrumentos para uma maior atuao

do Judicirio frente aos demais rgos e Poderes do Estado, assim como tambm ocorreu

com os mecanismos de controle de constitucionalidade que foram previstos, de forma mais

ou menos uniforme, pela maior parte das legislaes europias.

25 Cf. , v.g., o Cdigo de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990), a Lei da Ao

Civil Pblica (Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985) ou a Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, que disps sobre a Poltica Nacional do Meio Ambiente.

26 Nos Estados Unidos, cf., v.g., o National Environmental Policy Act (NEPA); 42 U.S.C. 4321-4347 (1969), ou o Consumer Credit Protection Act (CCPA); 15 U.S.C. 1601 (1968).

27 V. a respeito Marcos Paulo Verissimo, Controle judicial da atividade normativa das agncias de regulao brasileiras.

28 A idia de discricionariedade tm muitos sentidos para o direito. V., a respeito, Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, p. 31-39. V., tb., Marcos Paulo Verissimo, Controle judicial da atividade normativa das agncias de regulao brasileiras. No texto acima, a expresso indicada para designar o grau maior de liberdade que outorgado ao Executivo, pela legislao do Estado Social, para a formulao concreta de polticas pblicas que possam vir a atingir, ulteriormente, os objetivos normativos estabelecidos de forma principiolgica por essa mesma legislao. Aqui, no pretendo referir, com esse uso da palavra discricionariedade, qualquer juzo especfico quanto possibilidade de controle dessa ao normativa particular pelo Poder Judicirio, no obstante a associao, comumente feita pelo direito brasileiro, entre as idias de discricionariedade administrativa e impossibilidade de controle judicial. Sobre esse tema, v. Marcos Paulo Verissimo, idem.

29

Mas por que, afinal, passam a ser previstos esses mecanismos de controle de

constitucionalidade na maior parte das legislaes europias do ps-guerras? Quais seriam

as explicaes de cunho jurdico, social e poltico para a insero desses instrumentos de

controle do poder poltico nos ordenamentos jurdicos nacionais? E, alm disso talvez at

mais importante que isso quais teriam sido as condies institucionais que se fizeram

presentes para que fosse possvel (talvez necessrio) ao Judicirio desempenhar um papel

poltico cada vez mais importante nas sociedades contemporneas, fazendo uso,

justamente, desses instrumentos legais?

As explicaes para esse fenmeno so vrias e talvez nem todas elas interessem

aos propsitos mais restritos deste trabalho, mas uma primeira impresso a respeito do

problema parece mais ou menos intuitiva. Nesse sentido, no parece despropositado

imaginar que o horror de duas guerras tenha gerado certo clamor pelo aprofundamento de

alguns princpios inerentes ao Estado de Direito (clamor por rule of law), gerando

demandas pela adoo de princpios prprios a um constitucionalismo do tipo checks and

balances. De outro lado, no despropositado pensar que a insero desse movimento em

um contexto de crescente welfarismo tenha moldado as novas Constituies europias em

larga medida inspirao do modelo Weimariano29 de Constituio. Em um ou outro

contexto (checks and balances e proteo dos direitos humanos, inclusive os de cunho

social), o papel reservado s cortes de justia por esse determinado constitucionalismo

evidentemente relevante. Elas, as cortes de justia, consistem nos rgos que

tradicionalmente so chamados a aplicar e interpretar as regras prprias a esse tipo de

Constituio, rgos esses ligados, direta ou indiretamente, estrutura do Poder Judicirio

(no caso europeu, cortes constitucionais inspiradas pelo modelo austraco, no caso

29 A Constituio alem de 1919 (a Constituio de Weimar) tornou-se, ao final da segunda guerra

mundial, verdadeiro modelo de inspirao para as constituies dos estados social-democratas europeus emergentes. H, verdade, um certo paradoxo nisso, na medida em que essa mesma Constituio no se mostrou capaz, na prpria Alemanha, de conter os avanos autoritrios do partido Nacional Socialista. No entanto, duvidoso imaginar que qualquer arranjo poltico institucional poderia ter contido, naquele contexto histrico especfico, o avano do nazismo na Alemanha. De uma forma ou de outra, a Constituio de Weimar foi primeira constituio (na verdade, a segunda, se considerada a Constituio Mexicana de 1917) a incorporar aos tradicionais princpios de constituio do Estado todo um rol de direitos cunho econmico e social, que depois seriam transportados para a esfera internacional por meio da International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights, de 1966, em vigor a partir de janeiro de 1976. V., a respeito, Fbio Konder Comparato, Afirmao histrica dos direitos humanos, passim.

30

americano, quaisquer cortes de justia, com papel destacado para os rgos de cpula do

Poder Judicirio).30

Essa rpida e intuitiva explicao d conta, contudo, de uma parte pequena da

questo. Se correspondente de fato realidade, ela pode talvez responder por um dos

motivos que teria levado expanso do controle de constitucionalidade na Europa.

Contudo, o chamado movimento de judicializao da poltica bem mais amplo.

mundial e abrange uma srie de outros fenmenos relacionados, mas muitos deles distintos

do simples controle de constitucionalidade das leis. As crticas feitas a esse mesmo

processo (extremamente relevantes aos propsitos deste trabalho) tambm transitam por

problemas mais abrangentes.

Algumas das explicaes sugeridas acima so confirmadas por Vallinder. Para o

autor, um fator importante foi o crescimento na dcada de 1930 dos regimes totalitrios

na Europa e sua horrvel investida contra os direitos dos cidados, especialmente durante a

guerra. Depois da guerra, contra esse contexto, democratas em toda a parte tiveram que

fazer a si mesmos algumas perguntas cruciais: Como isso pode ter acontecido? Como se

pode prever a recorrncia desse tipo de coisa? Em outras palavras: Como podemos

proteger os direitos dos cidados no futuro?31 Na Alemanha, a reao se d logo em 1949,

quando o Grundgesetz promulgado, contendo uma extensa carta de direitos, uma corte

constitucional e a previso de controle judicial.32 Mas haveria tambm outros fatores

importantes, como o dirigismo estatal sobre a economia, o crescimento do sistema

capitalista e sua crescente tendncia oligopolizao, por exemplo. Nesse contexto, o

judicirio passa a abarcar entre suas funes a de defender o indivduo dos oligopolistas e

dos oligarcas que ameaam sua liberdade.33

Outro fator de contexto estaria, finalmente, na retomada das teorias do direito

natural durante a segunda metade do sculo XX, at ento subjugadas por uma filosofia

30 Digo direta ou indiretamente ligadas estrutura do Poder Judicirio porque o Conseil Constitutionnel

francs, que tem, no mais, boa parte das feies de uma corte constitucional, no ligado diretamente estrutura do Poder Judicirio, tendo, alm disso, um mbito de atuao bem mais restrito e incorporado, de certa forma, ao prprio processo legislativo. V., a esse respeito, as consideraes feitas com mais vagar no item III, adiante.

31 Ob. Cit. p. 19. 32 Idem. p. 20. 33 Idem. p. 21. (Vallinder est, aqui, citando Crossman).

31

mais ou menos Benthamista, utilitarista, emulando Hume e portanto adotando posturas

extremamente crticas em relao ao direito natural.34

Finalmente, Vallinder aponta ainda uma explicao de cunho algo imperialista,

ligada ao assombroso crescimento do domnio americano sobre a economia e a geopoltica

mundial, ao qual seguiu-se, diretamente, uma tendncia exportao do modelo poltico

americano para outros pases, nele includo, naturalmente, o importante papel reservado s

cortes de justia,35 sobretudo no perodo da chamada Warren Court (1953-1969), cujo

trabalho melhorou fortemente a reputao da corte e da idia de controle judicial, dentro e

fora dos Estados Unidos. 36

Nos itens seguintes, procuro dar conta dos principais problemas envolvidos no

movimento de expanso global dos domnios de ao do Poder Judicirio, tentando

fornecer, tambm, uma moldura geral dentro da qual esse movimento possa ser concebido.

Para tanto, tento traar, primeiro, uma caracterizao dos dois paradigmas principais de

ao judiciria desenvolvidos pelo direito das naes ocidentais no final do sculo XVIII,

quais sejam, o americano e o francs, para mostrar como esses paradigmas endeream,

cada qual, vises profundamente distintas a respeito do papel poltico que deveria ser

reservado s cortes de justia, mostrando, tambm, como essas vises foram, cada qual,

invariavelmente influenciadas pelos momentos histrico e poltico respectivos. Depois

disso, procuro propor um panorama geral dentro do qual possa ser compreendido o

movimento de expanso do Poder Judicirio em trs experincias recentes distintas: (i) a

americana, (ii) a europia, e (iii) a latino americana. Em seguida, procuro mostrar como se

coloca o processo de judicializao da poltica no Brasil, focando a anlise respectiva,

tanto quanto possvel, nos dados empricos disponveis.

Uma vez desenhado esse panorama geral, procuro finalmente expor as crticas mais

comuns lanadas ao processo de expanso do Judicirio sobre os demais poderes do Estado

(crticas fundadas em problemas de legitimidade, de construo institucional e capacidade

instrumental). A anlise mais detida da crtica ligada incapacidade instrumental do

judicirio para lidar com questes de fundo poltico conduzir s discusses subseqentes,

travadas na segunda e terceira partes deste trabalho.

34 Idem, ibidem. 35 Idem. p. 22 36 Idem, ibidem.

32

I

MEDO DA MAIORIA E MEDO DA MINORIA: DOIS PARADIGMAS PARA A ATUAO DAS

CORTES DE JUSTIA

Compreender o papel importante reservado pelo constitucionalismo americano para

as cortes de justia implica analisar, sobretudo, dois eventos igualmente relevantes na

histria norte-americana: (i) o debate poltico travado por ocasio da aprovao e

ratificao da Constituio de 1787, em larga medida reproduzido nos papis federalistas37

e anti-federalistas38 e (ii) a deciso proferida dezesseis anos mais tarde pela Suprema Corte

americana, no caso Marbury v. Madison39, julgado em 1803.

Quanto ao primeiro tema, no necessrio dizer demais. bastante conhecida a

importncia dada pelos Federalistas (em geral, oligarcas proprietrios de grandes glebas de

terra, ou grandes comerciantes do nordeste americano) existncia de um Poder Judicirio

forte, que pudesse funcionar como freio, ou contrapeso s instituies majoritrias, cujo

funcionamento traria intrnseco o risco de tiranizao das minorias por parte das

maiorias. Robert Dahl chama esse modelo de democracia, baseado na figura de uma corte

de justia com poderes de judicial review, de Democracia Madisoniana.40

certo, como se ver abaixo, que o poder de reviso judicial das leis no foi

expresso claramente na Constituio Americana. A concepo desse poder, no entanto, j

circundou os debates que caracterizaram a Conveno da Filadlfia, que durou de maio a

setembro de 1787 (a Constituio americana foi assinada em 17 de setembro). Mas os

debates mais intensos seriam travados no processo subseqente de ratificao da

Constituio, que precisaria ser aceita por ao menos nove das treze ex-colnias para entrar

em vigor41.

A campanha em favor da ratificao tomou os jornais. Tanto o Partido Federalista

quanto o Partido Anti-Federalista expuseram a pblico suas posies. Pelos Federalistas

37 V. Alexander Hamilton et al., The Federalist Papers. 38 V. Ralph Ketcham (ed.), The Anti-Federalist Papers and the Constitutional Convention Debates. 39 5 US 135 (1803). 40 Robert A. Dahl, A Preface to Democratic Theory, p. 4 41 O nono Estado a ratificar a Conveno (New Hampshire) o faz em 2 de julho de 1788. Dois meses depois,

com a adeso da Virgnia e de Nova Iorque, as treze ex-colnias o tero ratificado.

33

falaram James Madison, John Jay e Alexander Hamilton. Publicaram seus textos entre

outubro de 1787 e maio de 1788, no Independent Journal, no New-York Packet e no Daily

Advertiser. Como sabido, os textos passaram a ser conhecidos como papis federalistas.

O Federalista n. 10 expressa a noo de medo das maiorias que caracteriza o

arranjo constitucional defendido por Madison. Segundo o autor, entre as inmeras

vantagens prometidas por uma Unio Federal bem construda, nenhuma merece ser mais

cuidadosamente desenvolvida seno sua tendncia de quebrar e controlar a violncia das

faces, entendidas como um certo nmero de cidados, quer consistindo em uma

maioria ou em uma minoria, que esto reunidos e motivados por algum impulso comum de

paixo, ou de interesse, contrrio aos direitos dos demais cidados, ou ao interesse

permanente e agregado da comunidade.

Segundo Madison, haveria apenas dois modos de curar os desvios de

comportamento prprios s faces. O primeiro consiste em remover suas causas. O

segundo, em controlar seus efeitos.

possvel remover as causas que levam formao das faces por dois modos,

ambos, todavia, igualmente inaceitveis. O primeiro consiste em acabar com a liberdade

que essencial sua existncia. O segundo resolve-se em atribuir a todos os cidados as

mesmas opinies, as mesmas paixes, os mesmos interesses, evitando-se assim o dissenso.

A nica forma de afastar os perigos representados pelas faces , portanto,

controlar os efeitos de sua existncia. Quando a faco consiste em uma minoria, isso pode

ser facilmente alcanado pelo princpio republicano, consubstanciado na regra da maioria.

O problema para Madison est, pois, nas hipteses em que a faco consiste na prpria

maioria. Quando isso acontece, a forma popular de governo... permite maioria que

sacrifique sob o julgo regulador de suas paixes e interesses tanto o bem comum quanto os

direitos dos outros cidados.

Para Madison, a nica forma de evitar a tirania das faces majoritrias , nesse

caso, impedir a formao de paixes ou interesses comuns a um nmero tal de pessoas que

possa constituir-se em uma maioria, o que evidentemente impraticvel, ou ento a

maioria, tendo tais paixes e interesses comuns, deve ser tornada, por seu nmero e

situao local, incapaz de levar a efeito esquemas de opresso.

34

Comea a nascer assim o princpio contra-majoritrio na experincia americana:

[d]esse ponto de vista, deve-se concluir que uma democracia pura, compreendida como

uma sociedade consistente de um pequeno nmero de cidados, que se renem e

administram o governo pessoalmente, no consegue engendrar remdio algum contra os

desgovernos das faces. Qual o sistema de governo que pode faz-lo? Apenas uma

repblica, na qual algum esquema de representao toma o lugar do governo direto

pelos cidados. Neste esquema, as diferentes opinies podem ser interpretadas por um

corpo escolhido de cidados, cuja sabedoria pode melhor distinguir o verdadeiro interesse

de seu pas, e cujo patriotismo e amor justia sero menos provavelmente sacrificados em

favor de consideraes parciais e temporrias. 42

A virtude desses representantes garante-se tambm pelo fato de no reunirem todos

os poderes da repblica em si, dividindo-os entre os ramos legislativo, executivo e

judicirio do Estado. Garante-se, ainda, pela realizao de eleies peridicas. Mas estas,

por si ss, no so suficientes a garantir que o poder no seja utilizado de forma tirnica.43

A melhor garantia para tanto a prpria Constituio e, eis aqui o carter distintivo do

sistema americano, a existncia de um judicirio independente, capaz de aplic-la e

interpret-la.

O panfleto federalista de n. 78, escrito por Hamilton em junho de 1788, tendo por

mote o rgo Judicirio, d conta do tema, na forma seguinte:

A completa independncia das cortes de justia particularmente essencial em uma

Constituio limitada. Por Constituio limitada entendo aquela que contm certas excees

bem especificadas autoridade do legislativo, como, por exemplo, a de que ele no poder

editar leis de exceo, leis com efeitos retroativos e assim por diante. Limitaes dessa espcie

no podem ser preservadas na prtica de outra forma que no por meio de uma corte de justia,

42 Um extraordinrio panorama da chamada dificuldade contra-majoritria oferecido por Barry Friedman

em cinco artigos publicados sob o ttulo comum de The History of the Countermajoritarian Difficulty. O primeiro (The road to judicial supremacy) foi publicado em 73 N.Y.U. L. Rev. 333 (1998). O segundo (Reconstruction's Political Court), em 91 Geo. LJ 1 (2002). O terceiro (The Lesson of Lochner), em 76 N.Y.U. L. Rev. 1383 (2001). O quarto (Laws politics), em 148 U. Pa. L. Rev. 971 (1999-2000). O quinto (Birth of an Academic Obsession) em 112 Yale L.J. 153 (2002-2003). Segundo aponta Friedman no primeiro texto citado, The "countermajoritarian difficulty" has been the central obsession of modern constitutional scholarship.. tambm dele a constatao de que After all, the Framers appear to have constructed the judiciary in deliberately countermajoritarian fashon (idem, p. 344)

43 V. O Federalista n. 49. Ver tambm Robert A. Dahl, A preface..., p. 14.

35

cujo dever deve ser declarar nulos todos os atos contrrios ao teor manifesto da Constituio.

Sem isso, toda a reserva de direitos ou privilgios particulares resultaria em nada44.

Neste panfleto e nos de nmero 79, 80, 81, 82 e 83 Hamilton faz a defesa do

modelo de rgo judicirio definido pela Conveno da Filadlfia, incluindo as principais

caractersticas que, incorporadas, v.g., Constituio brasileira de 1988, do o feitio

institucional bsico a esse rgo tambm no Brasil dos dias atuais. Essas caractersticas

so, em resumo, vitaliciedade (tenure), irredutibilidade de vencimentos (a power over a

mans subsistence amounts to a power over his will), diviso em vrios rgos com

competncias especficas, independncia funcional, impossibilidade de perda do cargo com

base em fatos ligados ao prprio exerccio da judicatura e, finalmente, poder de reviso da

constitucionalidade das leis e atos executivos pelo prprio rgo judicirio independente.

Esta ltima , sem dvida, a caracterstica marcante. No incio do Federalista n. 81,

Hamilton d conta de fazer sua defesa contra os ataques que lhe eram desferidos pelos

Anti-Federalistas, antecipando, mais uma vez, as eternas discusses que se seguiriam em

torno da tal dificuldade contra-majoritria:

Os argumentos, ou melhor, sugestes, sobre os quais esse ataque fundado, vo nesta linha: A

autoridade da Suprema Corte proposta para os Estados Unidos, que se quer formar como rgo

separado e independente, ser superior quela do parlamento. O poder de interpretar as leis de

acordo com o esprito da Constituio ir permitir corte que as molde e transforme em

qualquer forma que ela possa entender apropriada, especialmente na medida em que suas

decises no iro estar de maneira alguma sujeitas reviso ou correo por parte do rgo

legislativo. Isto no tem precedentes e perigoso. Na Inglaterra, o Poder Judicirio, em ltima

instncia, reside na House of Lords, que um ramo do legislativo; e essa parte do governo

britnico tem sido imitada pelas Constituies dos Estados em geral. O parlamento da Gr-

Bretanha e os parlamentos de diversos Estados podem a qualquer momento retificar, por meio

da lei, as decises excepcionveis de suas respectivas cortes. Mas os erros e usurpaes da

Suprema Corte dos Estados Unidos sero incontrolveis e irremediveis. Este, como

demonstrarei, se mostrar de uma s vez como um raciocnio falso efetivado a partir de um fato

mal compreendido.

44 O famoso texto, que se transformou no cnone do constitucionalismo de feio americana, assim no

original: The complete independence of the courts of justice is peculiarly essential in a limited Constitution. By a limited Constitution, I understand one which contains certain specified exceptions to the legislative authority; such, for instance, as that it shall pass no bills of attainder, no ex post facto laws, and the like. Limitations of this kind can be preserved in practice no other way than through the medium of courts of justice, whose duty it must be to declare all acts contrary to the manifest tenor of the Constitution void. Without this, all the reservations of particular rights or privileges would amount to nothing.

36

Em primeiro lugar, no h nem uma slaba no plano [de Constituio] sob anlise que d, direta

ou indiretamente, s cortes nacionais, o poder de interpretar as leis de acordo com o esprito da

Constituio, ou que lhes d qualquer maior amplitude nesse aspecto que aquela reclamada

pelas cortes de cada Estado. Eu admito, contudo, que a Constituio deva ser o parmetro

fundamental de interpretao das leis, e que, ainda que haja evidente oposio a isso, as leis

devam ceder lugar Constituio. Mas essa doutrina no dedutvel de nenhuma circunstncia

particular do plano da conveno, mas apenas da teoria geral de uma Constituio limitada; e,

na medida em que isso verdadeiro, igualmente aplicvel maioria, seno a todos os

governos dos Estados. No pode haver objeo, portanto, nesse aspecto, judicatura federal,

que no acabe tambm ferindo as judicaturas locais em geral e que no sirva para condenar

qualquer Constituio que tente estabelecer limites discricionariedade legislativa.

Da leitura dos textos de Hamilton ficam bastante claras as enormes esperanas que

o projeto constitucional americano deposita na figura dos juzes federais, sobretudo os da

Suprema Corte, cujos atributos de retido de carter e conhecimento do direito os

tornariam sujeitos acima da mdia das pessoas, capacitados, portanto, a distinguir as boas

das ms leis, e a proteger os verdadeiros interesses de Estado, em conseqncia, das

maiorias passageiras e eventualmente tirnicas. Para Hamilton, h muito menos razo

para temer que o hlito pestilento das faces possa contaminar as fontes da justia.45 De

outro lado, uma das razes a justificar a vitaliciedade dos juzes seria a necessidade de

longo e laborioso estudo para adquirir o competente conhecimento das leis.46 Homens

especiais precisariam por isso ser chamados funo e no haveria seno poucos deles

com conhecimento suficiente das leis a qualific-los para o cargo.47 E fazendo as

dedues necessrias em virtude da depravao ordinria da natureza humana, deve ser

ainda menor o nmero daqueles que renem os requisitos de integridade com aqueles de

conhecimento.48

O que haveria a temer, ento, desse ramo to especial do governo? Para Hamilton,

muito pouco, uma vez que o judicirio, sem poder fazer as leis que aplica, e sem ter fora

prpria para executar suas decises (neither force nor will), seria, entre os ramos do poder,

o menos perigoso para os direitos polticos estabelecidos pela Constituio.49

45 O Federalista n. 81. 46 O Federalista n. 78. 47 Idem, ibidem. 48 Idem, ibidem. 49 Idem, ibidem. A expresso the least dangerous branch tornou-se, a partir do texto de Hamilton, clebre,

transformando-se depois no ttulo de uma das mais importantes obras a enfrentar, no contexto da segunda metade do sculo passado, o papel crescente das cortes de justia nos Estados Unidos: Alexander M Bickel, The Least Dangerous Branch..

37

luz do debate federalista que se deve entender, tambm, a deciso proferida pela

Suprema Corte americana em Marbury v. Madison.50 Mas algumas notas adicionais a

respeito do contexto especfico em que o caso foi julgado fazem-se, igualmente,

necessrias.

Nesse sentido, preciso repisar, como j dito acima, que a Constituio americana

de 1787 no outorgou explicitamente, Suprema Corte dos EUA, o poder de invalidar leis

que confrontassem os termos da prpria Constituio Federal, ainda que inmeros trechos

do documento pudessem suportar essa concluso, como o explicita o prprio texto de

Hamilton51. O tema, quando dos debates que geraram o texto constitucional, era

particularmente controverso, e foi deixado sem soluo explcita no texto posteriormente

promulgado52.

Com o silncio do texto constitucional, abriu-se uma lacuna que viria a ser

preenchida apenas uma dcada e meia depois. Em Marbury v. Madison, a Suprema Corte

entendeu que o texto constitucional lhe dava, efetivamente, competncia para a invalidao

de leis federais contrrias Constituio, o que serviu de mote para a declarao incidental

de inconstitucionalidade da Sesso 13 do judiciary act de 178953. Essa deciso tornou-se o

marco fundador do constitucionalismo americano.54

O contexto em que se inserem os fatos referidos no caso o da sucesso do

presidente John Adams, que foi substitudo na chefia de governo dos Estados Unidos por

Thomas Jefferson, como resultado da eleio conduzida em 180055. Esse foi um momento

importante na histria poltica dos Estados Unidos, pois a chefia de governo mudava de

mos, deixando os Federalistas de Adams, de vis poltico mais conservador e elitista,

basicamente formado, como dito, por grandes comerciantes e latifundirios, e passando

para os Republicanos de Thomas Jefferson, quase todos pequenos proprietrios de terras,

de vis poltico mais liberal, republicano e laico56. Naquele tempo, a Suprema Corte

americana era, ela mesma, dominada por juzes ligados ao Partido Federalista de Adams, 50 5 US 135 (1803). 51 O Federalista n. 81. 52 William E. Nelson. Marbury v. Madison: The Origins and Legacy of Judicial Review. Landmark

LawCases and American Society. Lawrence: University Press of Kansas, 2000. p. 2. 53 Idem. p. 1. 54 Idem, ibidem. 55 Idem. p. 40. 56 Idem, ibidem.

38

sendo que o prprio presidente do tribunal, John Marshall, fora conduzido ao cargo por

indicao de Adams, logo no incio de 1801 (Marshall havia sido, alis, Secretrio de

Estado de Adams).57

A histria dos EUA anota um papel particularmente importante para John Marshall

durante a transio de governo entre Adams e Jefferson, inclusive como articulador

poltico dessa transio. Marshall, apesar de Federalista, era um homem relativamente

moderado e, aparentemente, tinha especial interesse em que aquele delicado processo de

transio de governo se desse sem qualquer risco de ruptura institucional.58

John Adams, logo antes de terminar seu mandato, nomeou William Marbury como

juiz de paz para o Distrito de Colmbia, sendo que o efetivo empossamento de Marbury no

cargo ficava dependente da expedio de um determinado documento oficial (a comission

ou comissionamento). O mandato de John Adams acabou terminando antes que o

documento fosse, de fato, expedido, e o novo presidente, ao tomar posse, acabou

determinando ao Secretri