A Irmandade de Nossa Senhora Do Rosário Dos Pretos Do Arraial de Viamão

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1 II Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional” A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos do Arraial de Viamão (1780-1820): fontes primárias e perspectivas de pesquisa. Cristiane Pinto Bahy Aluna de pós-graduação em História Social no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UFRGS Introdução: O objeto deste estudo é a confraria religiosa fundada por leigos “Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos de Viamão” identificada como uma confraria de escravos. Erigida por volta da segunda metade do século XVIII - seu compromisso data de 1756 – e situada no Arraial de Viamão no atual estado do Rio Grande do Sul, a confraria se insere no fenômeno das associações leigas trazidas ao Brasil Colonial por Portugal. Associações leigas de cunho católico, as irmandades religiosas possuíam como finalidade o culto a um santo católico, o aumento desta devoção e a proteção dos seus irmãos. Segundo Eduardo Hoornaert “o que caracteriza a confraria é a participação leiga no culto católico. Os leigos se responsabilizam e promovem a parte devocional(...).” 1 Dentro delas os irmãos se responsabilizavam pela suas devoções, mantendo sua associação em torno de um santo devocional, também conhecido por orago, organizando para este uma vez por ano uma grande festa em sua homenagem, mostrando toda a sua devoção em procissões. 1 HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil. Tomo II. São Paulo. Ed: Vozes. P. 234, 235.

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Texto sobre espaços de sociabilidade através da irmandade do rosário.

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II Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”

A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos do Arraial de

Viamão (1780-1820): fontes primárias e perspectivas de pesquisa.

Cristiane Pinto Bahy

Aluna de pós-graduação em História Social no

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UFRGS

Introdução:

O objeto deste estudo é a confraria religiosa fundada por leigos “Irmandade de

Nossa Senhora do Rosário dos pretos de Viamão” identificada como uma confraria de

escravos. Erigida por volta da segunda metade do século XVIII - seu compromisso data

de 1756 – e situada no Arraial de Viamão no atual estado do Rio Grande do Sul, a

confraria se insere no fenômeno das associações leigas trazidas ao Brasil Colonial por

Portugal.

Associações leigas de cunho católico, as irmandades religiosas possuíam como

finalidade o culto a um santo católico, o aumento desta devoção e a proteção dos seus

irmãos. Segundo Eduardo Hoornaert “o que caracteriza a confraria é a participação

leiga no culto católico. Os leigos se responsabilizam e promovem a parte

devocional(...).”1

Dentro delas os irmãos se responsabilizavam pela suas devoções, mantendo sua

associação em torno de um santo devocional, também conhecido por orago,

organizando para este uma vez por ano uma grande festa em sua homenagem,

mostrando toda a sua devoção em procissões.

1 HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil. Tomo II. São Paulo. Ed: Vozes. P. 234, 235.

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As irmandades seguiam, apesar das diferenças entre as populações e as

localidades, um padrão comum herdado das irmandades portuguesas.2 Ao seguir este

padrão todas as confrarias possuíam o chamado compromisso definido como uma “lei

que estabelece os estatutos da organização, que deve ser conhecida e seguida por todos

os membros que antes da admissão prestam juramento [...] Apesar de independentes

umas das outras, essas agremiações têm base comum, um Compromisso lavrado em

termos semelhantes, o que lhes dá certo caráter de organização coesa”3. Este

compromisso é escrito pelos irmãos de cada irmandade, e traz as bases da confraria, ou

o que Russel-Wood chama de “os dois pilares” das irmandades4. São eles: a

propagação da doutrina e a filantropia social. Ou seja, a devoção ao orago por parte dos

irmãos e a procura por aumentar o número de devotos deste orago, e a caridade para

com os irmãos pertencentes à confraria.

A estrutura interna destas associações consiste de cargos devocionais e

administrativos. Os cargos executivos são os ocupados pela mesa administrativa, sendo

estes o de juiz - indivíduo responsável em “manter a ordem” da irmandade - o de

escrivão e o de tesoureiro, por exemplo. Estes cuidavam da direção da irmandade,

sendo cargos eletivos. É importante destacar que os cargos de tesoureiro e escrivão,

mesmo em confrarias somente de escravos, eram geralmente preenchidos por brancos,

já que era exigido que aqueles que ocupassem estes cargos fossem alfabetizados. Os

cargos devocionais eram encontrados nas confrarias de escravos, sendo estes o de “rei”

e “rainha” e lideravam os chamados “reisados” ou “folias”, as festas propriamente

ditas. Tanto os cargos devocionais, quanto os executivos são importantes de serem

analisados devido ao fato de que através deles podemos saber quem são os indivíduos

que ocupam estes lugares, na tentativa de descobrir acerca de diferenciações entre os

irmãos ou de privilégios, por exemplo.

Para que houvesse um controle sobre os gastos das confrarias - tanto por parte

dos irmãos - quanto por parte da Igreja Católica - estas deveriam registrar seus gastos.5

2 “Partindo de modelos portugueses, procuravam elas [as irmandades] adaptar-se ás circunstâncias locais, sem perder, entretanto, as características de seus modelos de origem, que se encontram sobretudo nas regras das Misericórdias e em particular de Lisboa.” P. 27 3 SCARANO, Julita. Op., Cit. P.29 4 Russel-Wood apud SOARES, Marisa. Devotos da Cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro do século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. P. 166 5 As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia - legislação que normatizava a vida religiosa na Colônia- cita a existência destes livros, apesar de não explicitar a obrigação de sua existência nas confrarias. Desta forma, podemos inferir que a existência destes livros era prática comum e aceita pelas irmandades. Segundo as “Constituições Primeiras...” “Mandamos aos oficiais novos, e velhos de cada Confraria (...) que dêem conta os oficiais velhos aos novos pelo livro da receita e despesa (...)”.(grifo

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Por este motivo as confrarias possuíam o que a historiografia chama de livro de Receita

e Despesa – onde ficariam registrados todos os ganhos e os gastos da irmandade - e o

livro de Despesa de Festas – que registrava os gastos relacionados às festas do orago.

Produção historiográfica sobre o tema:

A historiografia sobre Irmandades no Brasil possui dois importantes trabalhos

publicados nas décadas de 70 e 80, ainda de consulta obrigatória a quem pesquisa este

tema. São eles: Devoção e Escravidão: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos

Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII de Julita Scarano e Os Leigos e o

Poder: Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais de Caio César

Boschi. Estas obras possuem como tema central a relação das Irmandades com o

Estado e com a Igreja Católica, e tratam da composição e da organização das

confrarias.

Publicada na década de 70, a obra Devoção e Escravidão de Julita Scarano,

estuda a confraria de escravos que tem como devoção Nossa Senhora do Rosário,

observando suas bases religiosas, suas relações econômicas, o auxílio que a confraria

prestava aos seus irmãos, os componentes da associação e a integração do negro na

sociedade diamantina.

Na década de 80, temos o trabalho de Caio César Boschi, Os Leigos e o Poder:

Irmandades Leigas e Política colonizadora em Minas Gerais. Nela o autor, assim como

Julita Scarano, faz uma análise das Irmandades no contexto das Minas do período

colonial sendo esta análise mais ampla que a de Scarano. Boschi faz análises teóricas

quanto à conceituação e a tipologia das confrarias leigas, assim como as relaciona com

o Estado português e a Igreja Católica ao longo dos setecentos. O trabalho também nos

traz análises acerca das formas e mecanismos de controle por parte do Estado sobre as

confrarias leigas, não as dissociando de seu aspecto político.

Diferentemente de Scarano, ao analisar o papel das confrarias na vida dos

escravos no período colonial, o autor, ainda que destaque os benefícios de pertencer a

uma confraria para o homem de cor, coloca as associações como servindo apenas aos

meu) VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). São Paulo, Typographia 2 de Dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853. p. 306

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interesses dos senhores. Boschi parece procurar a formação de uma consciência de

classe por parte dos escravos dentro das irmandades e termina colocando-as como um

“(...)fenômeno de adesão e de incorporação dos padrões e da ideologia de

um grupo social dominante por um grupo dominado (...) ao contrário dos

quilombos, as irmandades acabaram se tornando uma forma de manifestação

adesista, passiva e conformista das camadas inferiores, onde não se formou uma

consciência de classe e, por conseguinte, onde inexistiu uma consciência

política.”6

Além disto, Caio Boschi, não percebe os escravos como seres capazes de

influenciar seu meio, e os coloca em um papel de meros receptadores de padrões

ideológicos, incapazes de escolher entre os aspectos culturais que poderiam e os que

seriam obrigados a aceitar.

Nestes trabalhos, a religiosidade dos escravos foi percebida como uma

acomodação do catolicismo branco pelos africanos, não levando em consideração a

religiosidade trazida da África por estes indivíduos. As próprias confrarias eram

compreendidas como instituições que por não se oporem ao regime escravista eram

permitidas pelos senhores para que seus escravos se sentissem satisfeitos e

trabalhassem melhor.7

A partir da década de 90 as pesquisas sobre confrarias religiosas aumentam,

trazendo obras que estudam as festas das irmandades leigas, analisando-as não somente

como o momento de homenagem ao orago, mas também como espaços de

sociabilidades ou de protesto político, por exemplo. Nos estudos sobre irmandades de

escravos, são levadas em conta as experiências vividas pelos escravos dentro das

Irmandades. As confrarias são vistas como espaços onde seus membros conheciam seus

limites dentro da sociedade, mas que não deixavam de agir conquistando seus espaços e

atuando dentro do possível.

Uma obra deste período que se tornou referência aos novos estudos sobre as

irmandades, é a tese de doutoramento de Mariza de Carvalho Soares publicada sob o

título de Devotos da Cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de 6 BOSCHI,Caio César. Os Leigos e o Poder: Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática. 1986. p. 156 7 SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura. 1975 p. 114.

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Janeiro do século XVIII. A autora estudou a Irmandade de escravos de Santo Elesbão e

Santa Efigênia no Rio de Janeiro do período colonial, centrando-se no grupo africano

dirigente desta confraria – os Makis. A partir de uma fonte primária produzida pelos

membros da confraria - um manuscrito de um estatuto desta congregação que garantia a

seus participantes “uma morte cristã, um sepultamento digno e missas póstumas pela

salvação eterna de suas almas.”8 - a historiadora traça um perfil desta confraria e

procura compreender a religiosidade e a identidade deste grupo levando em

consideração as nações da procedência africana destes irmãos.

Mariza Soares também coloca que no século XVIII, não havia uma mentalidade

abolicionista como a existente no XIX, por este motivo o escravo deseja apenas a sua

alforria. Quando não a consegue procura outra forma de escapar ao controle do senhor.

Desta forma, as confrarias tornam-se “(...) uma das poucas vias sociais de acesso á

experiência da liberdade [e] ao reconhecimento social(...)”9

Assim, a irmandade é a busca da individualidade do escravo, onde mesmo que

este esteja preso ao seu senhor, ainda assim faz parte de uma associação de destaque,

onde pode se relacionar com outros indivíduos que possuem as mesmas experiências e

onde está protegido, não da escravidão, mas do total abandono, ao longo da vida e na

hora da morte.

Com esta mesma perspectiva temos a dissertação de mestrado Devoção e

Caridade: Irmandades Religiosas no Rio de Janeiro Imperial de Anderson José

Machado de Oliveira. Nela são analisadas três irmandades – A Imperial Irmandade de

Santa Cruz dos Militares, a Imperial Irmandade de Nossa Senhora da Glória do Outeiro

e a Venerável Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia - durante o período de

1840 a 1889. O autor estuda a trajetória destas três confrarias, representantes de

diferentes grupos sociais, uma a uma, e ao final as analisa e as compara.

Oliveira se propõe também a recuperar a experiência cultural dos negros para

demonstrar a complexidade religiosa e social da realidade que os envolvia a partir das

confrarias, onde segundo o autor, os escravos não tinham total liberdade para agir, mas

possuíam uma relativa autonomia frente à sociedade escravista.10

8 SOARES, Marisa. Devotos da Cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro do século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, P.17. 9 SOARES, Mariza., Op. Cit., p.166 10 “É inegável que [as irmandades] eram instituições regulamentadas e permitidas pelo Estado e pela Igreja. No entanto, não levar em consideração a sua relativa margem de autonomia conquistada num processo cotidiano também seria empobrecedor da análise histórica”. OLIVEIRA, Anderson José

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Um importante momento para as confrarias são as festas dedicadas aos oragos.

Este é o principal momento para aumentar a receita de uma confraria. É neste dia

também que “são recolhidos vários tipos de contribuição: a taxa de inscrição, a

contribuição anual e uma grande quantidade de contribuições suplementares.”11

Devido à importância deste momento muitos trabalhos atualmente têm

privilegiado o estudo das festas dos oragos, como o artigo Festas e rituais de inversão

hierárquica nas irmandades negras de Minas Colonial12 de Marcos Magalhães de

Aguiar. Para o autor as festas “Estavam intimamente associadas com suas perspectivas

[das irmandades] de sobrevivência econômica e conferiam-lhes elementos de distinção

na vida associativa colonial.”13

Era nas festas que os irmãos procuravam demonstrar a devoção por seu orago,

procurando destaque frente às outras confrarias. Apesar do caráter religioso das festas,

devemos também levar em conta a relação destas com o recolhimento de esmolas e o

pagamento dos anuais dos irmãos, dinheiro essencial para manter e fazer crescer a

associação.

As confrarias de escravos já foram percebidas pela historiografia como meios

de acomodação dos escravos, onde estes seriam doutrinados pelo catolicismo e onde

sua vontade pouco valeria. Opondo-se a este argumento, as irmandades foram

colocadas como locais de resistência, nos quais não caberia uma convivência pacífica

com os brancos da sociedade. Hoje, porém, o estudo destas associações, as entende

tanto como locais de doutrinação por parte da Igreja Católica, como meios de

resistência cotidiana, percebendo-as como um todo, levando em consideração as

percepções de todos os grupos nelas envolvidos. Para Mariza Soares as irmandades são

tanto “o espaço possível para a doutrinação coletiva e o incentivo às obrigações

sacramentais prescritas pelo Concilio de Trento”. 14 como “(...) uma das poucas vias

sociais de acesso à experiência da liberdade, ao reconhecimento social e à possibilidade

de formas de autogestão, dentro do universo escravista”.15 Aparentemente, parece

Machado de. Devoção e Caridade: Irmandades Religiosas no Rio de Janeiro Imperial. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói. P.178 11 SOARES, Mariza. Op. Cit. p. 171 12 Este artigo encontra-se publicado no livro Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. Organizado por: JANCSÓ, István e KANTOR, Íris (orgs.) Vol. I. São Paulo: Edusp, 2001. 13 AGUIAR, Marcos Magalhães de. Op. Cit.,p. 361 (In) Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. Organizado por: JANCSÓ, István e KANTOR, Íris (orgs.) Vol. I. São Paulo: Edusp, 2001. 14 SOARES, Mariza. Op. Cit. p.166. 15 Id, ibid, p.166

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tratar-se de um paradoxo. No entanto, as confrarias devem ser estudadas levando-se em

conta as expectativas de todos os grupos envolvidos nestas agremiações.

Para os escravos, participar de uma irmandade leiga poderia ser um dos poucos

espaços dentro do sistema escravista em que poderiam conviver com iguais fora do

ambiente opressor da senzala. Podemos inferir que o motivo que levaria um escravo a

ingressar em uma confraria leiga, como a Irmandade do Rosário de Viamão por sua

vontade, estaria na busca de sua individualidade. Onde mesmo que este estivesse

juridicamente preso ao seu senhor, faria parte de uma associação de destaque, na qual

poderia se relacionar com outros indivíduos que possuiriam as mesmas experiências e

onde estaria protegido. Ser irmão de uma confraria era a garantia de que o escravo seria

enterrado de forma digna, e para aqueles que possuíam família, a irmandade permitiria

que esta vantagem se estendesse também a sua mulher e seus filhos. 16

Para o senhor, manter seus escravos em uma irmandade também seria

vantajoso. Ele não precisaria arcar com os inúmeros gastos na hora da morte de seu

escravo. Para Julita Scarano “Ser membro de uma confraria ou nela colocar um seu

escravo era economicamente vantajoso. Mesmo que o total despendido [com o funeral]

fosse maior, não seria pago todo de uma vez (...)”.17 À Igreja caberia aumentar seu

número de fiéis, propagando sua fé e seus princípios, sendo a irmandade um meio

cotidiano de estimular práticas e vivências da religião cristã. 18

No entanto, deve-se tomar cuidado para que a análise que leva em conta os

aspectos acima expostos, não se torne simplista, colocando as confrarias apenas como

espaços onde necessidades práticas de diferentes grupos seriam satisfeitas.

Para Anderson de Oliveira “a devoção e a caridade foram princípios

vivenciados e praticados historicamente pelos membros das irmandades”.19 Assim, a

entrada de irmãos escravos, deve ser entendida como motivada pela convivência e

auxílio dado por estas associações, mas também pela crença no orago que representava

a confraria.

Segundo Anderson de Oliveira “Os oragos, enquanto símbolo sagrado, chegam

a desempenhar a função de síntese do caráter e da visão de mundo de um grupo”.20

Sobre este aspecto Soares coloca que 16 SCARANO, Julita. Op. Cit. P. 54 17 Id., Ibid., P. 54 18 OLIVEIRA, Anderson. Op. Cit. p. 15 19 OLIVEIRA, Anderson. Op. Cit. P.15 20 Id, ibid., P. 131

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“(...) a religião dos africanos e afros-descendentes no Brasil não pode ser a

mesma da África. Elas podem se assemelhar, mas o grupo reorganizado, em

novas condições, pode optar ou não pela reconstrução de suas antigas formas de

organização (...) E mesmo quando opta por ela, nunca reproduz a situação

anterior”.21

Ou seja, longe de seu meio, em contato com uma nova cultura, os africanos

faziam uma releitura de suas crenças assimilando padrões que consideravam

interessantes da nova cultura. O que dentro das confrarias produziria uma religiosidade

nova, com aspectos tanto do “mundo africano” quanto do “mundo branco”.

A historiografia atual sobre as irmandades leigas, além do estudo de seu

funcionamento interno, número de irmãos, sua condição social, a relação destas

associações com o poder temporal e com a Igreja Católica, procura compreender outro

aspecto importante desta vivência confraternal – as festas de seus oragos, a

religiosidade envolvida nesta adoração, bem como as redes de sociabilidade que se

formavam.

A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e suas fontes primárias:

Apesar do período recuado os livros existentes da Irmandade de Nossa Senhora do

Rosário de Viamão encontram-se em bom estado para a leitura e a transcrição. São eles:

Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1756), o Livro de Contas (1757-

1859), o Livro de Despesas de Festas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1755 -

1767) e o Livro de Entrada de Irmãos (1773 -1816).

O Compromisso, como dito anteriormente, é o estatuto da confraria. Esta fonte nos

conta o modo como a associação se organizava, como se davam as eleições para os cargos

administrativos, assim como quais grupos étnicos eram admitidos na confraria.

Através dos livros de Contas e de Despesas de Festas, podemos perceber como era

gasto o dinheiro arrecadado pela confraria como, por exemplo, quanto era gasto com missas

e quanto era despendido com a compra de objetos para as festas, sendo possível saber em

que a Irmandade investia. Do Livro de Contas, é possível ver como era recolhida a maior

21 Id., Ibid., P. 115

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parte do dinheiro da confraria, se através do recolhimento de esmolas ou de doações de

irmãos.

A análise do livro de Entradas dos Irmãos permite traçar um perfil dos ingressos

levantando-se o número de irmãos escravos, pardos ou forros. Este documento traz o nome

dos novos irmãos, se pagaram ou não o valor da entrada e a anuidade. E no caso de irmão

escravo podemos saber se ele pagou pela sua entrada ou se foi seu senhor.

Rosário de Viamão: uma possível sociabilidade.

Como dito anteriormente a pesquisa sobre a Irmandade do Rosário encontra-se em

andamento, logo não é possível ainda trazer conclusões. No entanto a riqueza das fontes

primárias com o apoio da bibliografia sobre o assunto permite possibilidades de análises.

Na obra já citada já citada Devotos da Cor: Identidade étnica, religiosidade e

escravidão no Rio de Janeiro de Marisa Soares a autora nos mostra a Irmandade de Santo

Elesbão e Santa Efigênia a partir de documentos internos desta associação – tendo destaque

o termo de compromisso da confraria. Para a autora o compromisso é

“o lugar onde se constrói a regra e o lugar onde se institui a autoridade daqueles

que a fazem cumprir. Por isso, burlar a regra é minar a própria autoridade. Essa

relação íntima entre a regra e o exercício do poder leva uma constante atualização da

regra, em função das transformações nas relações de poder no interior do grupo”. 22

No entanto a autora faz uma advertência quanto à forma como o compromisso deve

ser lido. Tido como o conjunto de regras a serem respeitadas pelos membros das

associações leigas, a autora nos diz que o compromisso não deve ser lido como uma palavra

final, mas sim como o resultado de acordos entre os grupos que compõem a confraria. .23

Assim podemos ler o Livro de Compromisso da Irmandade do Rosário como uma

fonte que nos informará e nos fará refletir acerca da convivência dentro da associação.

Segundo o manuscrito: “haverá aquele número de irmãos assim pretos como brancos, ou de

outra qualidade, que seja constando viverem debaixo de Grêmio da Igreja, que por sua

22 SOARES, Marisa. Op. Cit. P. 180. 23 Id.; Ibid. p. 180.

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devoção quiserem servir (...)”.24 Diferentemente de outras associações de escravos onde

apenas determinado grupo étnico poderia pertencer a confraria, o compromisso da Rosário

de Viamão não traz a exclusão étnica, sendo que a escolha do cargo mais importante

contará com a participação de todos os associados. O compromisso também nos fala que

“Haverá nesta Irmandade um juiz que será eleito por votos de todos os irmãos na forma que

ao diante se dirá (...)”.25 De todos os irmãos se entende que tanto escravos e libertos quanto

livres teriam o mesmo direito de escolher o juiz da confraria.

Ao analisar esta informação se nos basearmos nas obras de Julita Scarano e Caio

Boschi26 podemos concluir que a confraria seria dominada pelos irmãos livres e brancos

ficando aos escravos e libertos apenas o papel de meros espectadores das resoluções

tomadas. No entanto, se levarmos em conta trabalhos mais recentes27, poderemos pensar os

escravos e libertos como agentes de sua história, tendo uma participação significativa nas

decisões de sua confraria. É claro que para esta hipótese deve-se levar em conta que o juiz

era responsável por dar a cada ano a confraria 6.500 réis o que nos traz algumas

possibilidades: esse cargo poderia ser preenchido por um irmão escravo - e aí o problema

seria o irmão pagar o anual de 6.500 réis, mas isto não seria um necessariamente um

impedimento - ou o cargo seria preenchido por libertos ou por livres.

Mas aí se coloca outra questão: seria um irmão branco e livre permitido de ocupar

esse cargo? Na documentação transcrita até o momento não foram encontrados os nomes

dos irmãos juízes permanecendo este ponto em aberto.

24 AHCMPA. Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Viamão; F.8; Cap. 10 25 AHCMPA. Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Viamão; F. 4; Capítulo 3. 26 BOSCHI,Caio César. Os Leigos e o Poder: Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática. 1986. p. 156 26 SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura. 27 KARASH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras. 1987. ; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1999. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3a ed. São Paulo: Editora Brasiliense; SOARES, Marisa. Devotos da Cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro do século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção e Caridade: Irmandades Religiosas no Rio de Janeiro Imperial. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói.; AGUIAR, Marcos Magalhães de. Op. Cit. p. 361 (In) Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. Organizado por: JANCSÓ, István e KANTOR, Íris (orgs.) Vol. I. São Paulo: Edusp, 2001;

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O livro de Entradas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário - no período que vai

de 1780 a 1800 – nos diz de irmãos livres e escravos dava-se no mesmo número.28 Apenas o

dado numérico não nos diz de que forma dava-se essa sociabilização, porém nos faz pensar

que esta associação, apesar de ser chamada de Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos

pretos não abrigava apenas escravos e libertos.

Os dados dos livros acima expostos surgem questões de como se daria a convivência

entre livres, libertos e escravos; e de por que os indivíduos livres ingressariam em uma

confraria de escravos.

Um importante aspecto a ser considerado dentro da confraria de Nossa Senhora do

Rosário de Viamão são as festas da associação, que ocorriam no dia 26 de dezembro de

cada ano. 29 Este momento “é o mais importante na vida de uma confraria. É nessas

ocasiões que mais se deve manifestar a devoção a um santo”.30

Segundo a historiografia acerca do tema é nessas festas que os irmãos saem às

ruas pedindo esmolas para a “caixinha” da irmandade. Possivelmente neste momento os

”escravos-irmãos” teriam a oportunidade de fazer a coleta de doações, saindo um pouco

do rígido controle de seus senhores, aproveitando para voltar a antigas tradições.31

Mariza Soares destaca que “o que caracteriza a esmola das irmandades de africanos é o

costume de levar suas cantigas, seus instrumentos e suas vestimentas para as ruas, para

esse fim”.32 Como resultado desta coleta, é relevante pensar o momento das festas,

inclusive para a Irmandade do Rosário de Viamão, como um momento de sociabilidade

entre os irmãos de diferentes grupos sociais.

O livro de Despesas das Festas33 traz dados interessantes para se pensar a

convivência entre os irmãos. Nele encontramos registros referentes à participação dos

irmãos negros – logo libertos ou escravos – na organização e participação dos eventos.

Por exemplo, os cabeçalhos nos trazem “despesa que fazem os irmãos pretos de Nossa

28 Para o período estudado de 1780 a 1800 o percentual da entrada dos irmãos é de 46% de livres, 42% de escravos. Dados quantitativos a partir do Livro de Entrada dos Irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Viamão em monografia da disciplina de Técnica de Pesquisa Histórica no ano de 2003. A fonte manuscrita encontra-se no Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre[AHCMPA]. 29 AHCMPA. Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Viamão; F. 3-v; Cap. 2. 30 SOARES, Mariza. Op.cit. p. 170. 31 Id., ibid.; p. 171. 32 Id., bid.; P.171 33 Este livro é datado de 1754 – dois anos antes do Compromisso e encontra-se incompleto. Inicia a folha um, no ano de 1754 e fecha a folha 11, no ano de 1768 sem termo de conclusão.

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Senhora do Rosário (...)”.34 Pensar nisto apenas como uma forma de escritura formal da

associação – já que essa se trata da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos

de Viamão - seria subestimar este objeto tão rico.

Enfim, longe de termos conclusões acerca da Irmandade de Nossa do Rosário de

Viamão esse artigo pretende apresentar a confraria, suas fontes e abrir debates acerca da

pesquisa.

Fontes primárias:

Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre [AHCMPA]:

Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos de Viamão

-Livro de contas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1757 a 1859)

-Livro de Despesas de Festas (1755 a 1767)

-Livro de Entrada de Irmãos (1773 a 1816)

-Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1756)

Bibliografia utilizada:

AGUIAR, Marcos Magalhães de. Festas e rituais de inversão hierárquica nas irmandades negras de Minas Colonial. (In) Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. Organizado por: JANCSÓ, István e KANTOR, Íris (orgs.) Vol. I. São Paulo: Edusp, 2001. BOSCHI,Caio César. Os Leigos e o Poder: Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática. 1986. HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil. Tomo II. São Paulo. Ed: Vozes. KARASH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras. 1987. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3a ed. São Paulo: Editora Brasiliense

34 AHCMPA. Livro de Despesas das Festas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Cabeçalho dos registros dos anos de 1755, de 1756, de 1757, de 1758, de 1759 e de 1760.[Grifo meu].

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OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção e Caridade: Irmandades Religiosas no Rio de Janeiro Imperial. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói. SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura. 1975. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1999. SOARES, Marisa. Devotos da Cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro do século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). São Paulo, Typographia 2 de Dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853.