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Sessão temática Cidade - 378 A (IN)VISIBILIDADE DOS DIREITOS INDÍGENAS NOS GRANDES CENTROS URBANOS: UM OLHAR SOBRE OS INDÍGENAS NA CIDADE DE PORTO ALEGRE Giselda Siqueira da Silva Schneider 1 Francisco Quintanilha Verás Neto 2 Resumo: A presente pesquisa objetiva tratar da (in)visibilidade dos direitos indígenas nos grandes centros urbanos, em especial sobre os indígenas na cidade de Porto Alegre. Almeja-se confrontar no âmbito social o idealizado no âmbito da lei, no sentido de sensibilização para a situação de tais culturas nos espaços urbanos. E mais, enfrentar a questão da (in)visibilidade e do preconceito racial e cultural contra os indígenas desconstruindo-se teses assimilacionistas, torna-se essencial para levantar a necessidade de políticas públicas efetivas para estas populações segregadas ao longo dos últimos quinhentos anos. Adota-se a metodologia da revisão bibliográfica, com a leitura e fichamento crítico, bem como o uso de imagens. Assim, defende-se a cidade como um espaço de convivência plural e intercultural para a expressão de todos os indivíduos. Palavras-Chave: (In)Visibilidade; Direitos; Indígenas; Cidade; Políticas. Introdução A presença indígena nas cidades tema de grande controvérsia ante a visão e imagem estereotipada de que o índio uma vez ligado à natureza necessariamente deveria estar apartado do convívio humano. O que se evidencia, conforme as raízes históricas e de dominação cultural que permearam o processo de colonização do Brasil pelos europeus, é que na visão de muitos quando o indígena está no espaço urbano, logo o mesmo deixa de ser índio. No entanto, dados oficiais apontam uma forte e expressiva presença indígena nos centros urbanos do país, o que surpreende visto a existência de poucas iniciativas e elaboração de políticas públicas que incluam a questão dos direitos assegurados constitucionalmente a tais povos. O que persiste é a invisibilidade dos direitos indígenas na cidade, pois que segundo os ditames da cultura e saberes predominantes a presença dos índios nesse espaço figura como algo ilegítimo. 1 Universidade Federal do Rio Grande (FURG); Mestra em História (UPF); Mestranda em Direito e Justiça Social (PPGD/FURG); E-mail: [email protected] . 2 Universidade Federal do Rio Grande (FURG); Doutor em Direito (UFPR); Professor Associado da Faculdade de Direito (FADIR/FURG) e do Mestrado em Direito e Justiça Social (PPGD/FURG); E-mail: [email protected] .

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Sessão temática Cidade - 378

A (IN)VISIBILIDADE DOS DIREITOS INDÍGENAS NOS

GRANDES CENTROS URBANOS: UM OLHAR SOBRE OS

INDÍGENAS NA CIDADE DE PORTO ALEGRE

Giselda Siqueira da Silva Schneider

1

Francisco Quintanilha Verás Neto2

Resumo: A presente pesquisa objetiva tratar da (in)visibilidade dos direitos indígenas

nos grandes centros urbanos, em especial sobre os indígenas na cidade de Porto Alegre.

Almeja-se confrontar no âmbito social o idealizado no âmbito da lei, no sentido de

sensibilização para a situação de tais culturas nos espaços urbanos. E mais, enfrentar a

questão da (in)visibilidade e do preconceito racial e cultural contra os indígenas

desconstruindo-se teses assimilacionistas, torna-se essencial para levantar a necessidade

de políticas públicas efetivas para estas populações segregadas ao longo dos últimos

quinhentos anos. Adota-se a metodologia da revisão bibliográfica, com a leitura e

fichamento crítico, bem como o uso de imagens. Assim, defende-se a cidade como um

espaço de convivência plural e intercultural para a expressão de todos os indivíduos.

Palavras-Chave: (In)Visibilidade; Direitos; Indígenas; Cidade; Políticas.

Introdução

A presença indígena nas cidades tema de grande controvérsia ante a visão e

imagem estereotipada de que o índio uma vez ligado à natureza necessariamente deveria

estar apartado do convívio humano. O que se evidencia, conforme as raízes históricas e

de dominação cultural que permearam o processo de colonização do Brasil pelos

europeus, é que na visão de muitos quando o indígena está no espaço urbano, logo o

mesmo “deixa de ser índio”.

No entanto, dados oficiais apontam uma forte e expressiva presença indígena

nos centros urbanos do país, o que surpreende visto a existência de poucas iniciativas e

elaboração de políticas públicas que incluam a questão dos direitos assegurados

constitucionalmente a tais povos. O que persiste é a invisibilidade dos direitos indígenas

na cidade, pois que segundo os ditames da cultura e saberes predominantes a presença

dos índios nesse espaço figura como algo ilegítimo.

1 Universidade Federal do Rio Grande (FURG); Mestra em História (UPF); Mestranda em Direito e

Justiça Social (PPGD/FURG); E-mail: [email protected]. 2 Universidade Federal do Rio Grande (FURG); Doutor em Direito (UFPR); Professor Associado da

Faculdade de Direito (FADIR/FURG) e do Mestrado em Direito e Justiça Social (PPGD/FURG); E-mail:

[email protected].

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Nesse sentido, o presente estudo propõe uma reflexão para desconstrução da

imagem discriminatória com base nas teses assimilacionistas em relação aos índios na

cidade, utilizando como referencial teórico a perspectiva decolonial3 que emerge nas

pesquisas latino-americanas, em especial no tema da interculturalidade. Para tanto,

tratar-se-á da (in)visibilidade dos direitos indígenas nos grandes centros urbanos, em

especial na cidade de Porto Alegre, que apresenta uma significativa presença das etnias

Mbyá-Guarani, Kaigang e Charrua. Adota-se a metodologia da revisão bibliográfica,

com a leitura e fichamento crítico, bem como o uso de imagens. Porém, o levantamento

de imagens não sendo exaustivo, estará longe de indicar a totalidade de indígenas que se

encontram no centro de Porto Alegre. A abordagem será feita num apanhado acerca dos

Direitos Indígenas no Brasil a partir de 1988 (1); passando a reflexão a sobre a Cidade

como Espaço de Convivência e Diálogo Intercultural (2); e por fim, tratando sobre as

Culturas Indígenas na Cidade de Porto Alegre (3). Ao fim, defende-se a cidade como

um espaço de convivência plural e intercultural para a expressão de todos os indivíduos.

1 Os Direitos Indígenas no Brasil a partir de 1988

O tratamento jurídico dispensado ao indígena pelo Estado Brasileiro até 1988,

continha ideias assimilacionistas e integracionistas, “com a proclamada superioridade da

cultura dos colonizadores tendo estimulado políticas de ingresso dos silvícolas à

comunhão nacional” (RICKEN, 2011, p. 241). Como se depreende da leitura do artigo

1º do Estatuto do Índio, Lei n. 6.001:

Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades

indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los,

progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional (BRASIL, 1973, grifos

nossos).

De maneira geral, pode-se dizer que as Constituições brasileiras anteriores entre

1823 a 1969 seguiram na mesma linha, e dessa forma, não estendiam aos povos

3 O termo decolonial com a supressão do “s”, utilizado por Catherine Walsh quer marcar uma distinção

com o significado de descolonizar em seu sentido clássico. Conforme explica a autora, não se trata de

desfazer o colonial ou revertê-lo, superando o momento colonial pelo pós-colonial, mas sim de provocar

uma postura contínua de transgredir e insurgir. Então, “Lo decolonial denota, entonces, un camino de

lucha continuo en el cual podemos identificar, visibilizar y alentar “lugares” de exterioridad y

construcciones alternativas” (WALSH, 2009, p. 15-16).

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indígenas a titularidade de direitos como indivíduos, exceto se deixassem de serem

índios, integrando-se ao sistema jurídico como “não-índios”.

Após muita discussão, alerta Thais Luzia Colaço (2013, p. 191-192) concluiu-se

que os índios na condição de seres inferiores eram incapazes de se autogovernar, e para

protegê-los, encontrou-se na tutela uma justificativa legal para administração e

dominação, conforme disciplinava o Código Civil de 1916, ao classificar o indígena

como relativamente incapaz. O atual Código Civil Brasileiro de 2002 ainda trata o

indígena sob a capacidade “relativa”, o que aguarda regulamentação por legislação

especial, mas deixa de chamá-lo de silvícola como fazia o Código anterior.

Ante as inúmeras denúncias no plano internacional acerca do extermínio dessas

populações no território nacional brasileiro, bem como a própria luta e o crescente

protagonismo na Constituinte de 1987 finalmente, com a Constituição Brasileira de

1988, novos rumos irão definir no plano legal a questão indígena.

Então, a Constituição de 1988 põe-se como marco fundamental ao suplantar “o

paradigma colonial da negação, para fundar o período de reconhecimento dos direitos

diferenciados à identidade, subjetividade, comunidade, sociedade, territorialidade e

autodeterminação” (DANTAS, 2014, p. 343) dos povos originários no Brasil.

Logo, o texto constitucional reconheceu a diferença deste povo, passando a

garantir direitos referentes à condição de índio, ou seja, o direito à alteridade. Após

1988, “não é mais o índio que necessita entender e incorporar-se à sociedade brasileira,

mas, sim, esta deve buscar entender os valores e concepções étnico-culturais de cada

povo indígena localizado no Estado brasileiro” (MONTE, 1999, p. 58).

Passa-se a entender os índios como parte da população nacional, sendo-lhes

garantido viver de acordo com sua cultura, línguas, costumes e tradições. Além disso,

reconhece-se também o direito às terras como um direito originário, inalienável,

indisponível e imprescritível (BRASIL, 1988).

O direito à igualdade garantia do Estado Brasileiro aos indígenas implica no

direito à diferença, como explica Dalmo de Abreu Dallari:

[...] a afirmação da igualdade de todos os seres humanos não quer dizer

igualdade física nem intelectual ou psicológica. Cada pessoa humana tem sua

individualidade, sua personalidade, seu modo próprio de ver e de sentir as

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coisas. Assim, também, os grupos sociais têm sua própria cultura, que é

resultado de condições naturais e sociais (DALLARI, 2011, p. 13).

Interessante pensar na dita igualdade sob o ponto de vista do respeito à

diferença, quando se trata da presença indígena nos centros urbanos das grandes

cidades. O questionamento que se faz, para a presente reflexão: respeito à diferença ou

(in)sensibilidade em relação a esse outro (o índio) quando no convívio do cotidiano?

Nesse sentido, algumas imagens de crianças da etnia Guarani na Rua Otávio Rocha, em

Porto Alegre, que vem acompanhar suas genitoras na venda do artesanato indígena.

Imagem 1 – Dormindo sobre um pano ao chão, Bruna, filha de Amalicia Fernandes, da etnia Guarani, da

Aldeia de Itapuã, Cidade de Viamão (região metropolitana de Porto Alegre). Fonte: Arquivo pessoal da

autora. Foto em janeiro de 2015, com autorização da indígena. Elaboração própria.

A presença dos indígenas no centro de Porto Alegre é algo constante. Eles saem

de suas reservas ou aldeias e vem para a cidade vender seu artesanato. Muito comum as

crianças acompanharem suas famílias, geralmente às suas mães e quando não vendem

seus cestos, pedem por “moeda”. Abaixo, duas crianças, ainda na Rua Otávio Rocha,

em Porto Alegre, detalhe para o menor que só falava em guarani.

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Imagem 2 – Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto em janeiro de 2015. Elaboração própria.

Com tais imagens percebe-se que “ler a cidade por meio das culturas que nela

habitam é imperativo” (ROSADO; FAGUNDES, 2013, p. 7). Portanto, para a

efetivação dos direitos indígenas assegurados pela Constituição Federal de 1988 cabe

superarmos a lógica hegemônica que compreende o espaço urbano enquanto

mercadoria, o que acaba por impedir que os demais indivíduos enxerguem “a existência

de outros modos de ser humano na cidade” (ROSADO; FAGUNDES, Id.), como se

aborda a seguir.

2 A Cidade como Espaço de Convivência e Diálogo Intercultural: Ser índio na

Cidade

Com a colonização do Brasil por Portugal herdamos da antiga metrópole a

mentalidade científica e mais, o modo de vida ocidental. Da mesma maneira, as nossas

construções teóricas sobre o direito foram elaboradas a partir da Europa subalternizando

os demais saberes, na pretensão de “substituir a diversidade de saberes locais por um

conhecimento supostamente universal e neutro” (COLAÇO; DAMÁZIO, 2012, p. 7).

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Entretanto, o momento histórico aponta para uma mudança no qual emergem os

saberes locais, antes tidos como inferiores e primitivos, indo além dos padrões de

conhecimentos eurocêntricos, num movimento de questionamento acerca da própria

constituição histórica. Exemplo são os estudos da História Indígena no Brasil ou ainda a

Nova História Indígena, que passaram a contribuir com importantes pesquisas sobre os

povos originários do Brasil ao desmistificar as visões equivocadas sobre os mesmos e

suas culturas.

Da mesma forma, novas abordagens sobre o fenômeno urbano a partir da

História Cultural ao longo da década de 1990, no sentido de compreender as

transformações urbanas ocorridas a partir da segunda metade do século XIX, como fez

alusão Sandra Jatahy Pesavento:

[...] a cidade não é mais considerada só como um locus privilegiado, seja da

realização da produção, seja da ação de novos atores sociais, mas, sobretudo,

como um problema e um objeto de reflexão, a partir das representações

sociais que produz e que se objetivam em práticas sociais (PESAVENTO,

2007, p. 13, grifo nosso).

Nessa linha de raciocínio, interessante pensar a cidade como “sensibilidade”,

pois que enquanto fenômeno cultural integra-se ao princípio de atribuição de

significados ao mundo. Então, se as “cidades pressupõem a construção de um ethos, o

que implica a atribuição de valores para aquilo que se convencionou chamar de urbano”

(PESAVENTO, op. cit., p. 14), porque não pensar nessa mesma cidade, como um local

de afirmação dos direitos indígenas?

Na legislação pátria, o Estatuto das Cidades, Lei n. 10.257, ao regulamentar o

capítulo da política urbana da Constituição Federal de 1988, menciona a função social

da cidade e da propriedade e assim, orienta o planejamento urbano, no sentido de que a

cidade possa ser justa e democrática. No entanto, embora a grande presença de

indígenas em zonas urbanas, inclusive vivendo nessas áreas, não é possível a aplicação

do Estatuto das Cidades e de seus instrumentos legais com relação aos Territórios

Indígenas, uma vez que estão subordinados à legislação federal.

Persiste no âmbito social uma forte resistência em aceitar que a cidade possa ser

um local de realização e convivência dos indígenas em suas diversas etnias e

manifestações culturais. Há de fato, a invisibilidade dos direitos indígenas na cidade,

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predominando a visão de que, o índio na cidade deixa de ser índio; ou que é índio

“aculturado”. Nessa errônea concepção não é possível ser índio no espaço urbano,

apenas no ambiente rural.

Porém, a ideia de que a preservação da cultura dependeria do isolamento de

determinado grupo, ante o risco de contato e de “aculturação” resta superada. Não se

admite mais essa noção da cultura enquanto um conjunto de traços imutáveis

conservados no tempo, passando a compreender-se a cultura como um processo em

movimento, que está acontecendo.

Na perspectiva da antropologia, entende-se a cultura como um processo

acumulativo resultante de toda a experiência histórica das gerações anteriores. Nesse

escopo, emerge o termo “interculturalidade” que “significa interface, troca, intercâmbio,

reciprocidade, criação de espaços de participação coletiva entre culturas diferentes

(KROHLING, 2009, p. 104).

A interculturalidade nos orienta Catherine Walsh, advém do movimento

indígena no Equador, e:

[...] señala y significa procesos de construccion de conocimientos “otros”, de

uma práctiva política “outra”, de um poder social “outro”, y de uma sociedad

“outra”: formas distintas de pensar y actuar com relacion a y en contra de la

modernidad/colonialidad, um paradigma que es pensado a través de la praxis

política (WALSH, 2006, p. 21).

Como contribuição da interculturalidade destaca-se o fato de representar um

processo e projeto político transformador, pensado a partir dos grupos historicamente

subalternizados. Distingue-se do multiculturalismo oficial onde se sustenta “a produção

e administração da diferença dentro da ordem nacional, tornando-se funcional à

expansão do neoliberalismo” (COLAÇO; DAMÁZIO, 2012).

No âmbito jurídico, pensar num sistema jurídico intercultural requer incluir

distintas maneiras de conceber e exercer direitos. No tocante aos direitos indígenas no

Brasil, importa ponderar que houve um reconhecimento constitucional das diferenças

sócio-culturais indígenas, o que segundo Dantas “representa um marco descolonial na

histórica trajetória de negação e invisibilidade dos povos indígenas” (2014, p. 362).

Mas é preciso avançar além do plano formal (legal), ou seja, com a efetivação

dos direitos diferenciados aos índios, bem como a “construção de espaços de lutas pelos

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direitos mediados pelo diálogo intercultural” (DANTAS, op. cit.) e nesse intento,

defende-se a cidade como o espaço para realização desse diálogo intercultural com os

indígenas que nela vivem ou frequentam por ocasião da venda de seus artesanatos ou

ainda, nas suas manifestações artísticas e culturais, como no caso dos grupos étnicos de

Porto Alegre.

Abaixo, um grupo de índios Guarani que vem de Torres, município do Litoral do

Estado do Rio Grande do Sul para trazer seus artesanatos para comercialização na Rua

dos Andradas, no Centro de Porto Alegre.

Imagem 3 – Natália, Juliana e Rafael, da etnia Guarani, Comunidade Campo Bonito, do Município de

Torres (Litoral Norte do Rio Grande do Sul). Fonte: Arquivo pessoal da Autora. Foto em janeiro de 2015,

com autorização do indígena homem. Elaboração Própria.

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Imagem 4 – Artesanato de Natália, Juliana e Rafael, da etnia Guarani, Comunidade Campo Bonito,

Município de Torres, Litoral do Rio Grande do Sul. Foto em janeiro de 2015, com autorização dos

indígenas. Elaboração Própria.

Dessa forma, compreendendo os direitos indígenas em consonância com a noção

de cultura como algo em constante construção, com a participação ativa dos atores, no

caso, os índios, distancia-se da ideia preconceituosa de um modelo de identidade

indígena ou “indianidade”. É preciso pensar a cidade como esse local de

reconhecimento das identidades e direitos indígenas, por meio de uma construção

política que legitime o espaço urbano como um espaço intercultural, o que precisa

acontecer em parceria com o poder público e com a sociedade civil.

3 As Culturas Indígenas na Cidade de Porto Alegre

Na cidade de Porto Alegre, conforme se aludiu anteriormente, três etnias

indígenas se fazem presentes: Mbyá-Guarani, Kaingang e Charrua. Cada um desses

povos tem sua língua, religião, arte e dinâmicas culturais distintas, o que acaba por

diferenciá-los uns dos outros.

Superada a ideia de “aculturação”, a presença indígena no Estado do Rio Grande

do Sul nas cidades, demonstra que tais grupos “recriam seus modos culturais para se

adaptarem a condição urbana” (ROSADO; FAGUNDES, 2013, p. 9), em acordo a

concepção de cultura enquanto um processo em movimento e transformação.

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O poder público municipal de Porto Alegre, tem na prefeitura municipal da

cidade, um órgão específico chamado de Núcleo de Políticas Públicas para os Povos

Indígenas ligado à Secretaria Municipal de Direitos Humanos.

De acordo com Rosado e Fagundes:

Os povos Mbyá-Guarani, Kaingang e Charrua, com suas cosmologias,

colocam aos poderes públicos e a sociedade porto-alegrense em geral o

desafio de preservar as matas, os morros, as nascentes para a sustentabilidade

ambiental e cultural. A partir de suas perspectivas, tem demandado seu

(re)conhecimento e respeito a suas formas próprias de (re)existir na cidade.

Por meio da transmissão de geração a geração de uma série de saberes, de

práticas, de técnicas, dos grafismos que integram a sua arte, os povos

indígenas preservam seu patrimônio cultural, contribuindo decisivamente

para a diversidade sócio-cultural, étnica e ambiental de Porto Alegre

(ROSADO; FAGUNDES, op. cit., p. 10, grifo nosso).

Com a expansão e urbanização da cidade os indígenas sofrem com a crescente

restrição dos espaços onde viviam, com uma sensível modificação nos ecossistemas

naturais. Além disso, muitas vezes a presença indígena é considerada como um entrave

ao desenvolvimento econômico local, desprezando-se a história desses povos com o

ambiente em questão, bem como os seus saberes tradicionais de manejo sustentado da

natureza tão em evidencia no contexto sócio-político de países da América Latina.

Acerca da localização dos indígenas pelo mapa atual de Porto Alegre verifica-se

a existência de:

[...] 7 Coletivos Kaingang e núcleos familiares habitando os morros

graníticos ou suas proximidades (São Pedro, Santana, Glória e do Osso), 3

Coletivos Mbyá-Guarani, nas terras baixas e altas, nos Bairros Lomba do

Pinheiro, Lami e Cantagalo, e 1 Coletivo Charrua, no Bairro Lomba do

Pinheiro (ROSADO; FAGUNDES, op. cit., p. 11).

A presença de indígenas no centro de Porto Alegre com a comercialização de

seus artesanatos também apresenta-se constante. Mesmo assim, essa distinta e rica

diversidade étnica e cultural da capital rio-grandense, pouco é reconhecida pelos

próprios porto-alegrenses, o que fortalece a invisibilidade dos direitos indígenas

assegurados no âmbito da ordem constitucional.

E indígenas da região metropolitana de Porto Alegre também buscam no Centro

da cidade uma oportunidade para a visibilidade de seus direitos, pela venda de seus

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artesanatos, como na imagem abaixo, Angela, da etnia guarani, da cidade de

Camaquã/RS.

Imagem 5. Angela com seu artesanato e ervas medicinais, na Rua Vigário José Inácio, Centro, Porto

Alegre. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto em janeiro de 2015, com autorização da indígena.

Elaboração Própria.

Interessante notar acerca da percepção dos indígenas sobre o contexto urbano,

mais exatamente do significado da cidade em seus imaginários, como no caso de

Amalicia, que disse com entusiasmo “gostar muito” de vir para o Centro de Porto

Alegre com seus filhos. As indagações que surgem: O mesmo entusiasmo tem a cidade

e seus cidadãos para com a indígena Amalicia? Essa sedutora cidade preocupa-se com a

sua cidadania e a segurança de seus filhos? Que políticas permanentes têm sido

elaboradas pelo poder público para essas famílias?

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Imagem 6 – Amalicia Fernandes, da etnia Guarani, da Aldeia de Itapuã, Cidade de Viamão (região

metropolitana de Porto Alegre), com seus filhos Cristiano (3 meses) e Luciana (6 anos). Fonte: Arquivo

pessoal da autora. Foto em janeiro de 2015, com autorização da indígena. Elaboração própria.

Imagem 7 – Amalicia Fernandes, com as filhas Bruna (4 anos) e Luciana (6 anos). Fonte: Arquivo pessoal

da autora. Foto em janeiro de 2015, com autorização da indígena. Elaboração própria.

Enquanto a cidade em seu grande centro, no caso Porto Alegre, funciona de

maneira ininterrupta, as pessoas passam pelos indígenas, que na maioria das vezes são

mulheres e encontram-se sentadas em seus panos, junto de suas crianças e artesanatos.

Dos indígenas se ouve muito as crianças, a pedirem “moeda”. Dos “brancos”, conforme

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referem os indígenas sobre os demais cidadãos presentes na cidade, por vezes alguém

oferece um lanche, um refrigerante, ou uma moeda. Mas poucos são aqueles que

parecem realmente estar interessados em ouvir e perceber esse indígena na cidade

enquanto um cidadão desse lócus privilegiado.

Conclusão

O objetivo do estudo, como anunciado inicialmente, fora tratar do tema da

(in)visibilidade dos direitos indígenas nos grandes centros urbanos, em especial na

cidade de Porto Alegre. Para isso, na tentativa de delimitar tal intento dividiu-se a

abordagem em três momentos, a começar pelo apanhado acerca dos Direitos Indígenas

no Brasil a partir de 1988; passando pela reflexão sobre a Cidade como Espaço de

Convivência e Diálogo Intercultural, evidenciando que é possível continuar sendo índio

na cidade; e por fim, demonstrando um pouco sobre as Culturas Indígenas na Cidade de

Porto Alegre.

Ao término do trabalho evidencia-se o quanto ainda resta aprofundar tal

pesquisa, na qual se optou inserir algumas imagens para ilustrar e ao mesmo tempo,

tentar captar sobre o tema em comento. Para sensibilizar sobre uma temática de tamanha

grandiosidade e importância reconhece-se que primeiramente deve-se sensibilizar o

pesquisador.

Como tratar sobre direitos indígenas ou reconhecimento de direitos indígenas,

sem nunca ter falado com um índio? Como compreender o indígena na cidade, sem sair

em busca desse na realidade da cidade? A partir de tais indagações justifica-se a

inserção das imagens, pois que serviram para pesquisa de campo (embora não

exaustiva) para o diálogo com os indígenas encontrados no centro de Porto Alegre.

Tentou-se confrontar os estudos teóricos com a questão na prática. A conclusão que se

chega, é de que ainda há muito a pesquisar dentro dessa perspectiva dos estudos

decoloniais latino-americanos, principalmente na tentativa de desconstrução de

preconceitos e incoerência que permeiam o estudo da temática indígena no Brasil.

Uma certeza é de que a cidade pode ser um espaço de realização dos direitos

indígenas, ante a adoção de mecanismos políticos e ações permanentes pelos órgãos

responsáveis, como o setor público em parceria com a sociedade civil, organizações e

instituições acadêmicas, entre outros. E de somente pelo diálogo democrático e

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intercultural pode-se construir a cidade onde a felicidade seja uma finalidade e uma

realização igualitária para todos.

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