A Invasao Cultural Norte-Americ - Julia Falivene Alves

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Globalização - pós-modernidade

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Por mais que as cruentas e inglrias batalhas do cotidiano tornem um homem duro ou cnico o suficiente para elepermanecer indiferente s desgraas ou alegrias coletivas, sempre haver no seu corao, por minsculo queseja, um recanto suave onde ele guarda ecos dos sons de algum momento de amor que viveu na sua vida.Bendito seja quem souber dirigir-se a esse homem que se deixou endurecer, de forma a atingi-lo no pequenoncleo macio de sua sensibilidade e por a despert-lo, tir-lo da apatia, essa grotesca forma de autodestruio aque por desencanto ou medo se sujeita, e inquiet-lo e comov-lo para as lutas comuns da libertao.

    (Plnio Marcos, Canes e reflexes de um palhao)

  • Agradecimentos

    Por todo o tipo de orientao, colaborao, comentrios e sugestes valiosas, durante otempo em que trabalhei para a primeira edio deste livro, agradeo a ngela Falivene

    Alves (minha me), Angela Maria Martins, Douglas Tufano, Jos Carlos de Castro, MariaLcia de A. Aranha, Rita de Cssia DAngelo, Ruber D. Kreile e Omar Saad.

    Durante a reformulao do texto desta obra, pelos mesmos motivos agradeo a Doroti Q. K.Toyohara, Ktia de Lourdes P. da Silva, Kazumi Takaesu, Luis Antonio Farago, Maria

    Elizete L. Sales e Neyde Ciampone de Souza.Agradeo tambm s crianas, adolescentes e jovens que me inspiraram, com suas

    informaes, na recomposio do personagem Rogrio e na atualizao do nosso primeirocaptulo. Foram eles: Aline F. da Silva, Bruno B. Rose, Carolina M. A. Arten, Carolina R.

    Fumanti, Diego de Oliveira, Domnico R. Fumanti, Eduardo T. S. Martins, Everton C.Petrin, Fbio Rogrio de Moraes, Fbio Willian Maestrello, Fernanda Diniz, Fernando

    Henrique Limoni, Fernanda Paula Cardoso, Gustavo T. de Oliveira, Ilana Sartori,Jaqueline da Silva, Juliana Cristina Lopes, Karla Tomaz, Leilane S. Diniz, Liane Aparecida

    R. Uchoga, Lidiane da S. Nogueira, Luciana Quaino, Luiz Felipe M. A. Arten, MariaAnglica Petrini, Mariana Nardy, Mariana Pucci, Mariangela Zoppi, Maryara B. Prando,Mirela C. de Oliveira, Natasha C. Delgado, Rafaela Basso, Raphael A. Boaretto, Renata

    Mendes, Renato Milani, Ricardo de A. Delfino, Ricardo Henrique A. Lupe, Rodrigo Vitrio eTatiane Leite.

  • Introduo

    Nosso objetivo, neste livro, denunciar a amplitude e as consequncias da invaso culturalnorte-americana no Brasil. Ao fazermos isso, tentaremos resgatar um pouco da nossaverdadeira histria, analisando sobretudo os momentos mais favorveis ao invasor e osmovimentos de resistncia brasileira ao colonialismo cultural.

    Como as armas mais eficazmente utilizadas pelos invasores tm sido os meios decomunicao de massa, dedicamos um espao significativo s histrias do rdio, msica,cinema, televiso, quadrinhos e produo de brinquedos no Brasil dos ltimos 70 anos. Namaior parte do tempo, nossa ateno esteve voltada para as ideias e valores transmitidos pelacultura importada e para as consequncias da adoo, no Brasil, do estilo de vida norte-americano.

    Gostaramos de deixar bem claro que nossas denncias e crticas no so endereadas aopovo norte-americano, mas ao processo e ttica de dominao exercidos pelos EstadosUnidos em nosso e em outros pases perifricos ou em desenvolvimento. Essas dennciasteriam sido feitas da mesma maneira se fossem ingleses, franceses, russos, belgas, italianos,japoneses ou quaisquer outros os invasores culturais em nosso pas.

    Reconhecemos que chegam at ns muitas coisas boas da cultura dos Estados Unidos.Sabemos respeit-las, apreci-las e incorpor-las ao nosso cotidiano. No desejaramoselimin-las de nossa vida. Ao contrrio, somos a favor da intensificao do intercmbiocultural do Brasil com o maior nmero possvel de povos e naes, mas de modo que todospossam participar, em igualdade de condies, como beneficiados e como colaboradores noprocesso de trocas de prticas e experincias da comunidade humana universal.

    O que questionamos, muito mais do que propriamente a qualidade da cultura importada, oexclusivismo ou a hegemonia dos modelos norte-americanos e sua adoo sumria pela nossapopulao, sem chances de adotar postura crtica ou processo de reelaborao, em prejuzotanto da produo brasileira como da de outras nacionalidades.

    Durante nossa exposio usaremos as palavras de origem inglesa em sua grafia original, demodo que a percepo da presena norte-americana entre ns seja mais bem concretizada.Esse foi o motivo, alis, pelo qual preferimos usar a sigla USA (United States of America) emvez de EUA ou EEUU, dollars em vez de dlares etc. O povo norte-americano muitas vezesser chamado por ns de yankee, denominao dada aos americanos do norte do pas durantea Guerra de Secesso (1861-1865), depois generalizada a toda a populao dos USA, e que sedifundiu entre ns sobretudo atravs de filmes, como, por exemplo, ...E o vento levou (direode Victor Fleming, 1939). Na Amrica Latina em geral, nos tempos da Guerra Fria, esobretudo na dcada de 1960, o termo recebeu uma colorao particular, associado ideiade invasor.

    Talvez algumas vezes nossas denncias invaso cultural e suas consequncias paream

  • aos leitores um tanto exageradas. Diz a sabedoria popular que quem procura acha, erealmente, durante todo o tempo de elaborao deste livro, foi sobretudo a procura, atenta esistemtica, a tnica maior do nosso trabalho. Com receio de cair no exagero procuramoschecar a cada momento nossas concluses. Tambm ficamos chocados com o que encontramose no nos foi nada fcil constatar inmeras vezes, conforme a expresso do educador PauloFreire, o invasor hospedado dentro de ns.

    Libertar-se, afinal de contas, sempre muito doloroso, uma vez que implica a tomada deconscincia da nossa dependncia e, consequentemente, o abandono de modos de ser com osquais durante algum tempo convivemos e que, por serem os nicos conhecidos, foram a basede nossa prpria segurana emocional, ainda que ilusria.

    Temos certeza, porm, de que, ao se colocar em posio crtica para observar a realidadecultural que o circunda, nosso leitor confirmar a situao que constatamos.

    Tivemos que lidar com muitos conceitos passveis de inmeras interpretaes. Evitamosdiscutir os vrios sentidos que recebem algumas palavras para no fugirmos aos objetivosprincipais do livro. Procuramos, no entanto, deixar explcita a significao que elas tm parans, embora s vezes tivssemos que faz-lo muito rpida e, portanto, grosseiramente.

    Quanto ao termo cultura e isso bom esclarecer desde o incio , ns o usaremos nosentido mais amplo possvel, ou seja, tudo o que provm da organizao da vida social de umpovo, tanto no que se refere ao trato com os recursos naturais e relacionamento entre osmembros do grupo como na forma de conceber a realidade e express-la. Enfim, abrangertudo o que caracteriza uma populao humana em sua existncia social, como: atividadeseconmicas e polticas; tcnicas; utenslios; estrutura familiar, religiosa e jurdica; lnguafalada; ideias; conhecimentos; crenas; esportes; lazer; arte etc.

    Esperamos com este livro poder colaborar, ainda que modestamente, com os movimentos egrupos que se propem a batalhar pela emancipao econmica, poltica e cultural do nossopas.

    Lanamos alguns dados para estimular a reflexo, reiniciar o debate e levantar polmicas,pois acreditamos que, hoje, mais do que nunca, diante do processo de globalizao, precisodiscutir esses problemas com coragem, aberta e profundamente.

    Essa ser, sem dvida, uma luta rdua, mas sentimos que o momento este, quandoassistimos ao desenvolvimento de uma cultura planetria e de um novo personagem, ocidado do mundo, e quando formulamos a pergunta que no quer calar:

    Ser que os diferentes povos que compem essa aldeia global conseguiro manter, daquipara a frente, a riqueza contida em suas diversidades culturais? Ou ser que o atual processode mundializao da cultura norte-americana deixar todos eles com a mesma cara dos USA?

    E mais esta: O que acontecer com a cultura brasileira, se at agora ainda estamosconstruindo nossa prpria identidade cultural?

  • 1. O invasor hospedado dentro de ns

    A INVASO CULTURAL NORTE-AMERICANA NO BRASIL, PROCESSO INICIADO H MAIS DE MEIOSCULO, TEM CONTRIBUDO PARA QUE NOS DISTANCIEMOS DE NOSSAS RAZES CULTURAIS, DE

    NOSSA IDENTIDADE NACIONAL, DA PERCEPO DA RIQUEZA DE NOSSAS DIVERSIDADES REGIONAISE DA CONSCIENTIZAO DOS NOSSOS REAIS INTERESSES COMO CIDADOS BRASILEIROS EM

    CONDUZIR A NAO AO DESENVOLVIMENTO ECONMICO E TAMBM SOCIAL.

    difcil enxergar com clareza as coisas que esto muito prximas de ns, sobretudo quandoelas j se encontravam ali desde que nascemos, fazendo parte da nossa rotina e compondo ocenrio do nosso cotidiano. Pelo fato de conviver com elas o tempo todo, ns as encaramoscomo naturais, raramente questionando suas origens, razo de ser, funes reais, a quem estobeneficiando e como poderia ser nossa vida sem elas.

    Qualquer estrangeiro, por exemplo, vindo de pases centrais europeus e recm-chegado aoBrasil, perceberia claramente nossa condio de colnia cultural dos Estados Unidos.Observaria isso nas marcas de nossas roupas, veculos, eletrodomsticos e cigarros; nosdizeres das camisetas, nos nomes de alimentos, produtos de limpeza, lojas e bares; naspalavras que constam do nosso vocabulrio habitual; nas programaes musicais dasemissoras de rdio; nos filmes e programas de TV; nas revistas; nos brinquedos etc.

    No entanto, impregnados da cabea aos ps, por dentro e por fora, da cultura norte-americana, ns mesmos, brasileiros, mal nos percebemos como reflexos do processo deinvaso cultural que estamos sofrendo h mais de meio sculo.

    Como tudo e todos que nos cercam refletem tambm essa invaso, no temos modelosdiversos que nos sirvam de referncia para avaliar esse estado brasileiro deamericanizao.

    Alm disso, no conhecemos devidamente nosso passado para ter acesso a outra realidadehistrica que possa testemunhar algum modo brasileiro de viver que no seja o de nossacultura invadida.

    Vazios de lembranas, carentes de passado, culturalmente marginalizados at mesmo emrelao ao nosso prprio tempo, no sabemos o que fomos, no temos conscincia daquilo emque nos tornamos nem percebemos o quanto e como poderamos ser diferentes.

    O cuidado com que, durante algumas dcadas, a Histria Oficial tratou de nos ocultar oprocesso de invaso do pas pelas empresas multinacionais, e, mais tarde, pelastransnacionais, sobretudo norte-americanas, atesta a identificao da classe dominante com osinteresses internacionais e a sua responsabilidade pelo atrofiamento de nossa prpriaidentidade cultural.

  • Associando-se ao capital estrangeiro, a alta burguesia brasileira tem se beneficiado tantocom a difuso do modo de pensar e agir caractersticos da sociedade de consumo e veiculadopelos enlatados norte-americanos quanto com as possibilidades de evaso da realidade queeles proporcionam.

    De fato, atuando muitas vezes como analgsicos para os problemas sociais e comoanestsicos de conscincia, esses produtos culturais importados tm ajudado a desviar nossaateno do campo onde se travam as verdadeiras batalhas polticas. Lanados em grandequantidade pelos meios de comunicao que tm suas sedes sobretudo no eixo RioSoPaulo, tais enlatados tm tambm nivelado brasileiros das mais diversas regies e segmentossociais segundo um mesmo padro que implica modelos norte-americanos de ser, pensar eagir, ou seja, o american way of life (estilo de vida americano).

    E assim, no que tange cultura, perdemos contato com nossas razes e com a riqueza denossas diversidades regionais, abrimos mo de nossa individualidade e nos distanciamos nos do projeto de construo de nossa identidade social, mas tambm da percepo deproblemas e interesses de diferentes segmentos sociais do povo brasileiro.

    Despersonalizados, coisificados, somos mais facilmente transformados em consumidores etrabalhadores bem-comportados, em benefcio da alta burguesia dos interessesinternacionais ou, melhor dizendo, do projeto nacional e internacional de dominao.

    Contentamo-nos em consumir os produtos finais de tecnologia estrangeira, produzidos forae dentro das nossas fronteiras, ou as suas imitaes, estrangeiras e nacionais, e, com isso,atrofiamos nossa capacidade criativa e desprezamos a produo brasileira, como se esta fosseinferior.

    Dessa forma, moldamo-nos ainda a algumas prticas e a alguns princpios conservadores daDiviso Internacional do Trabalho e da condio secular de pas economicamente dependente,oferecendo-nos como mercado de consumo e de investimento de capital para as grandesempresas norte-americanas, s quais oferecemos tambm, e a baixos preos, nossa fora detrabalho, nossas riquezas naturais, legislaes favorveis e agentes fiscalizadorescomplascentes. Mantemos tambm a dependncia poltica do Brasil, cujo destino, em grandeparte, continua a ser traado segundo os interesses dos grandes centros de decisesinternacionais.

    por isso que ns, um povo constitudo na maior parte por trabalhadores mal remuneradose sem condies mnimas para uma vida digna, contraditoriamente valorizamos o capitalismo,a sociedade de consumo, os modelos e padres estabelecidos pela sociedade norte-americana,quando s temos perdido com o sistema de explorao interna e estrangeira.

    Enfim, ao adotarmos o modo de ser do invasor, adotamos tambm um estilo de vida quenada tem a ver com a realidade brasileira e totalmente improdutivo nas atuais condies.Tornamo-nos ento uma colnia cultural.

    Por esse motivo, todo o trabalho de resgate de nossa memria histrica e de construo danossa identidade cultural, valorizando, assumindo e preservando caractersticas de nossabrasilidade, repercutir positivamente em nossa luta para conduzir o pas a um estgio demaior independncia.

    provvel que, nestes novos tempos de globalizao, o fato de muitos elementos culturais

  • norte-americanos estarem presentes nos mais diversos cantos do planeta, at mesmo na ChinaSocialista e nos territrios que compunham a antiga Unio Sovitica, possa dar aos jovens aimpresso de que assim porque assim deveria ser, como se tudo isso fosse expresso de umalei natural de desenvolvimento da humanidade.

    O conhecimento da histria anterior dcada de 1980, contudo, poder desmistificar essaideia de tendncia irreversvel adeso e assimilao dos padres de uma nica culturasuperior por todos os povos do mundo. Afinal, o que o passado nos mostra exatamente ocontrrio.

    Como se sabe, foi nas dcadas de 1980 e 1990, com a concentrao ainda maior do capital,que se destacaram grandes conglomerados transnacionais que difundiram o capitalismo e acultura ocidental por todo o planeta, delineando o que conhecemos hoje como economia esociedade global.

    Esses conglomerados so organizaes que controlam empresas sem ligaes diretas umascom as outras, no que se refere linha de produo, e que atuam nos setores mais variados daeconomia, situando-se em diferentes localidades do globo para melhor aproveitar asoportunidades oferecidas pelos seus mercados.

    Estabelecendo suas unidades em pases territorialmente distantes uns dos outros einvestindo em comunicao e informao para encurtar a distncia entre elas, astransnacionais acabam promovendo a integrao da economia em mbito mundial.

    Detendo grande poder econmico, cientfico e tenolgico, elas interferem tambm nodirecionamento da poltica dos estados, na estrutura cultural e no cotidiano de todos os povos.Por isso, sob muitos aspectos estamos todos nas mos da General Motors, da RoyalDuthc/Shell Group, da IBM, da Toyota, da Du Pont, da Philips, da Siemens, da Microsoft, spara citar alguns exemplos.

    Nesse mundo, assim interligado, os destinos nacionais ou regionais dependem dos destinosde todo o planeta. Por isso, na Sociedade Global, todas as coisas passam a acontecer paratodos, e o que se faz em uma parte repercute em todas as demais, como se o mundo-planetahouvesse se reduzido, enfim, a um mundo tribal e, nessa tribo universal, estamos ficando cadavez mais parecidos com os norte-americanos.

    Mas como nem sempre foi assim e nem sempre assim ser, neste livro procuraremos darnfase ao perodo em que se iniciou o processo de invaso cultural norte-americana, emmeados do sculo passado, at a dcada de 1980, a partir da qual o processo de globalizaoatingiu o seu auge, adquiriu maior visibilidade e, consequentemente, despertou nos cientistassociais, historiadores e correntes polticas diversas maior conscincia em relao ao processode aculturao aos padres norte-americanos em carter planetrio, gerando polmicas,resistncias e manifestaes nacionais e tnicas em diversos aspectos: econmico, poltico,sociocultural e outros.

    Quanto ltima dcada do sculo XX e primeira do sculo XXI, abordaremos em nossotexto apenas alguns tpicos mais relevantes aos objetivos da obra, preferindo suscitarindagaes que possam estimular os leitores a refletir sobre o futuro da cultura brasileira e anossa participao em sua construo.

    Porm, ser exatamente abordando uma realidade de incio do terceiro milnio que

  • abriremos nossa discusso sobre as razes e os frutos da invaso cultural norte-americana.Comearemos por conhecer Rogrio, brasileiro, 22 anos, classe mdia, paulistano umexemplar tpico da gerao global , com o qual provavelmente nos identificaremos bastante.

    Para entend-lo melhor, e a ns mesmos tambm, voltaremos algumas dcadas, no tempo dejuventude de seus pais e de seus avs, pois l que esto as razes do processo que nospermitir entender por que Rogrio assim e por que somos to parecidos com ele.

    Talvez, ento, possamos expulsar o invasor hospedado dentro de ns e sermos o querealmente desejamos ser.

  • 2. Qualquer semelhana mera consequncia

    VAMOS PASSAR ALGUMAS HORAS COM ROGRIO, UM JOVEM PADRO DE QUALIDADE GLOBAL, E

    PERCEBER QUE, TANTO QUANTO ELE, ESTAMOS IMPREGNADOS DO ESTILO DE VIDA DOS NORTE-AMERICANOS E QUE AS NOSSAS SEMELHANAS EM RELAO A ELES NO SO PURA COINCIDNCIA. Um dia na vida de Rogrio

    Avenida Paulista, 16h30. Um trnsito terrvel!Cada dia a hora do rush comea mais cedo, pensou Rogrio, dirigindo impacientemente a

    Blazer de seu pai. Ainda bem que o velho concordara em emprestar-lhe o carro. Na ltimahora sua pickup pifou e no haveria jeito de se comunicar com sua garota para avis-la doatraso. Como sempre ela devia ter se esquecido de carregar seu celular. S caa na caixapostal. Mas no dava para ficar zangado com ela, depois de ter recebido aquele e-mailapaixonado que ela lhe mandara na ltima madrugada.

    Mais um sinal fechado. Liga o rdio: punk rock dos bons! Mas, impaciente como estava,agora precisava mesmo era de algo mais light. No mnimo, hardcore. Digita procurando outraestao. Nickelback, Nirvana, Red Hot Chili Pepper. Gosta de todos eles, mas nesse momentono isso que ele est querendo. Segue em frente e encontra Norah Jones cantando Dontknow why. Fica sintonizado nela. Luciana costuma dizer que essa msica muito mais temamusical para eles dois do que para aquele casal da novela das oito.

    Algum mais apressado corta sua frente. Rogrio no deixa por menos. D um jeito:acelera, vai costurando e consegue ultrapass-lo. Buzina, faz cara de reprovao e otradicional gesto de O.K., como fazem os soldados em filmes de guerra norte-americanos. Prabom entendedor brasileiro o gesto basta.

    Lembrou-se da cicatriz no rosto de seu pai, reminiscncia dos anos 1960, das roletas-paulistas de sua mocidade transviada, quando, segundo ele, descia a Rua Augusta a 120por hora. O bem-comportado paizo acabou por confessar a origem dessa cicatriz quandotiveram uma conversa muito sria, depois de um racha do qual Rogrio participara e quecausou srios danos ao bolso do pai quando chegou a conta da oficina mecnica. Poderia tersido pior, ponderou o velho, poderia ter custado a sua vida.

    Outro sinal vermelho. Olha para os lados e para o relgio impacientemente. direita,outdoor novo sobre a campanha contra a forme; esquerda, meninos pedindo esmola; nocentro, ele, e sua imensa vontade de fumar Marlboro.

    Com um olho nos meninos que se aproximam do carro ao lado, outro na propaganda, ficapensando que deve mudar alguma coisa nos dizeres da faixa que encomendou pra colocar em

  • frente da casa da Baby no dia do seu birthday:Baby, te amo como nunca. Parabns! Roy. isso mesmo: chamou-a de Baby e assinou Roy, com y e tudo! Detestava que ela o

    chamasse assim, mas como era seu aniversrio fizera uma concesso. Luciana comeara atrat-lo desse modo quando seu pai lhe contou que j havia escolhido o nome de Rogriomuito antes de ele nascer. Quando criana, sonhava em ser como Roy Rogers, o super-heri defilmes de cowboy, o western do seu tempo, como costuma dizer, e que o filho s pdeconhecer folheando as revistas da coleo carinhosamente guardada por ele desde aquelapoca. O velho nunca se tornou cowboy, claro, mas quando nasceu seu primeiro filhohomem chamou-o de Rogrio e o apelidou de Roy. Essa homenagem a um dolo de infnciapermaneceu como segredo s revelado a alguns poucos parentes e amigos cinquentes, dostempos ainda do colgio.

    Luciana nunca ouvira falar de Roy Rogers at ento, mas se divertiu a valer e passou acham-lo assim toda vez que estava com vontade de faz-lo pagar um mico diante da galera.Ou quando brigavam, o que era ainda pior.

    Para aliviar a sua, o pai comeou a chamar Luciana de Baby, como faziam os boys com suasgirls nos tempos da brilhantina. O azar que ela gostou e adotou o apelido com a maioralegria, para frustrao de Rogrio.

    Uma vontade incrvel de fumar toma conta do nosso heri e, assim que o prximo sinalfechado lhe d uma chance, ele tira do seu jeans um mao de Hollywood que conseguiudescolar com seu pai, quando acabou o seu. T quase no fim. Acende um cigarro. Finalmente,um relax.

    Cigarro d cncer, parece ouvir sua me dizer, fazendo coro com o Ministrio da Sade.Sua av morrera de cncer havia seis meses e, no entanto, nunca tinha experimentado um sem toda sua vida, pensa ele, dando uma tragada mais aliviado.

    Uma fagulha voa e cai em sua camiseta fashion, como insiste em dizer Luciana. Tentandolimp-la, ele espalha ainda mais a cinza e fica louco de raiva. Bem, pelo menos no queimou.No gostava dela, com aqueles dizeres idiotas: Im the best. Morrera de vergonha quandoAlex leu a incrvel frase e quase chorou de tanto rir. Uma besta, isso sim! dissera ele.

    Mas foi presente da Baby e ele no queria mago-la. Raramente a usava e acabava sempresendo cobrado por isso.

    Olha pro relgio: 20 minutos atrasado em relao ao previsto. Azar dele, que resolveuparar no petshop para comprar rao para o Happy e o Smart. Agora, s vai dar pra traar umBig Mc e uma coca e passar no Cyber Caffe do Ton para descolar uma grana. Talvez at elequeira ir junto assistir ao O Demolidor, embora no seja l muito chegado em heris dosquadrinhos da Marvel, meio metido a intelectual que .

    Na semana passada assistiram Pnico no home theater de sua casa. Sinistro, mo!SINISTRO!

    Outro sinal fechado. Agora j est perto. Rogrio ajeita o cordo do Nike. Maior trampoficar amarrando cordo! Vai ser muito dez se der para comprar um sliptennis amanh, antes deir para o Yazigi!

    Faz curva direita para sair da Paulista e por pouco no raspa num bus. Mais adiante, em

  • frente da Fitness Academy, avista Baby conversando com uma colega. Provavelmenteesperando a pickup , nem se toca quando Rogrio estaciona ao seu lado com o carro do pai.

    Ela est linda no seu top azul.Rogrio buzina levemente para no assust-la. Ela o v, se despede apressada da amiga e

    abre a porta do carro. Sorri. Felizmente no est zangada com o atraso.Essa garota clubber da hora! diz ela beijando-o, loira e linda! Um mix de Britney

    Spears e de Olivia Newton-John, no filme Grease - por quem ele se apaixonara perdidamente,aos 12 anos, assistindo a um vdeo guardado nostalgicamente por sua me.

    I love you, baby!, canta ele carinhosamente, olhando fundo naqueles lindos olhos azuis. Um jovem padro de qualidade global

    Rogrio um rapaz de classe mdia urbana, nascido em So Paulo no incio da dcada de1980. Quando criana, fechado em seu apartamento, assistia durante horas e mais horas TV,enquanto sua me estava fora, trabalhando.

    A Globo sempre fora sua emissora preferida. Nela tudo era bonito, alegre, limpo eagradvel. Tinha a melhor tcnica, sem dvida alguma. Todo mundo nos seus postos, as coisasacontecendo nas horas certas, do jeito programado, sem nenhum erro. No dava nem tempo derespirar e um mundo de coisas extraordinrias aconteciam ali mesmo, bem na sua frente. Erainacreditvel! Mas elas estavam realmente l.

    Adorava os cartoons: Tom e Jerry, Scooby-Doo, o Pica-pau, os Flintstones e He-Maneram seus preferidos. Mas havia tambm os westerns, as aventuras galcticas, as sriespoliciais. Como se divertia!

    Quando comeou a ler fascinou-se tambm pelos gibis: Donald, Mickey, a turma doCharlie Brown e os incrveis, maravilhosos e superpotentes Batman, Homem Aranha,Superman e muitos outros.

    Sua imaginao corria rapidez do som. Ou da luz, sei l. E nas suas fantasias ele era umsuper-heri, salvando pessoas em perigo, a humanidade ameaada por alguma catstrofe etambm a Rosana, sua vizinha, primeiro grande amor de sua vida. Durou seis meses oromance!

    Hoje v seu sobrinho dar socos no ar e entende exatamente que ele se imagina como umdaqueles heris dos mangs ou dos games de Star Wars, que so a sua maior diverso.

    Lembra-se de como sentia raiva quando sua irm adolescente ficava assistindo aosenlatados romnticos, que terminavam sempre com um grande beijo e um The end cobrindoquase toda a tela, logo a seguir. Esse happy-end to esperado anunciava, finalmente, que a TVpassava a ser totalmente sua.

    Tarde da noite seu pai assistia a um antigo suspense de Hitchcock ou a um filme sobre aSegunda Guerra. Puxa, como os alemes eram perversos! Como os japoneses eram traidores!Felizmente venceram os aliados!, pensava Rogrio j sonolento, a cabea recostada noombro do pai.

    Quando crescesse, pensava ele, seria um agente secreto norte-americano e lutaria contra omal, onde quer que ele estivesse, qualquer que fosse a sua cara! Quando ia dormir, olhavapara sua estante de brinquedos: avies, tanques, revlveres, metralhadoras, foguetes,

  • mscaras, capas, escudos... Em seus sonhos, ele era um verdadeiro heri!Hoje naturalmente so outros os seus interesses. Faz webdesign e logo comear um estgio

    remunerado numa empresa com a perspectiva de um aperfeioamento nos States.Nos games campeo e, mesmo no sendo fera, diverte-se tambm no bowling. Quando

    pode vai para a casa de praia, nos fins de semana, pratica surf com a turma e toma at umwhisky on the rocks quando seu pai recebe alguns amigos. Faz uma mediazinha com oscoroas, marca presena e se manda. Afinal, no ligado em poltica e muito menos emeconomia. Por isso sai pra encontrar sua turma.

    O que ele curte mesmo um chopinho com a moada, l no Johnnies ou no Stop Here.Veste-se na ltima moda, d um realce aqui e ali, e as garotas dizem que ele tem o layout de

    integrante de Boyband da MTV. Mas sem essa de piercing aqui, piercing l ou tatuagem.Afinal, e se, de repente, pintar um approach com um headhunter e ele perder alguma chances por causa do seu look?!

    Admira seu pai, um homem que se fez a si prprio, um verdadeiro self-made man, que deuao filho tudo o que ele prprio, descendente de migrantes, no pudera ter na sua infncia. Mass vezes os dois se desentendem por causa do carro, do som (e Rogrio tem que apelar prodisckman se quiser curtir a msica no volume certo) e da moto que ele est a fim de comprarmesmo. Afinal no o prprio velho que diz que time is money? Pois ento! mais fcil deestacionar, muito mais rpida no trnsito.

    E pretende logo tambm ter o seu laptop. Frias em dezembro, nem pensar!! Ah, Bahamas,Hawai Bye-bye, sonho meu!

    A ltima grande viagem que fez foi aos 15 anos, para Disneyworld. Ainda guarda umaporo de coisas que trouxe de l!

    Gosta de garotas altas, loiras, bronzeadas, liberadas, claro, mas sem exageros feministas.Com Luciana se d muito bem. Conheceram-se h mais de um ano em um chat. Trs dias

    depois os contatos on line terminaram: eles dispensaram seus nicknames, revelaram suasverdadeiras identidades e comearam a se comunicar por telefone. Uma semana depoisencontraram-se no shopping. Pintou o maior clima e ela ficou muito a fim. Baby, sim, sabecomo ser feminina na medida certa.

    No resto vai tudo bem, obrigado, pois um cara ligado, sarado, sexy (que modstia oqu!) e alto astral. Crise todo mundo tem, que ningum de ferro. Depois dos 18 suas crisescomearam a passar mais rpido. Afinal de contas, a gente tem de cavar o prprio caminho,juntar uma grana, vencer na vida e ser feliz.

    Pois . Rogrio isso a!Mas quem Rogrio, afinal?Rogrio apenas um rapaz de 22 anos que mora na maior cidade do Brasil. Mas, como

    qualquer outro cidado da classe mdia urbana que aqui tem vivido nas ltimas quatro oucinco dcadas, o produto final da grande invaso cultural made in USA sofrida pelo nossopas durante esses ltimos anos.

    Por isso que ele se parece um pouco comigo, provavelmente tambm com voc e muitocom a maior parte de nossos jovens. E, mesmo sem perceber, Rogrio um formidvel econcreto exemplar da espcie (que no est em extino) resultante da invaso cultural

  • norte-americana.

  • 3. O que invaso cultural?

    CERCA DE 450 ANOS APS A CHEGADA DOS PORTUGUESES, O BRASIL SOFREU OUTRA INVASOCULTURAL, DESSA VEZ TELEGUIADA: A NORTE-AMERICANA, FRUTO DE UM PLANEJAMENTO

    CUIDADOSO DO GOVERNO DOS USA, QUE PROVOCOU CONSEQuNCIAS SOCIOCULTURAIS EM NOSSOPOVO QUASE TO EXPRESSIVAS QUANTO AQUELAS QUE A INVASO PORTUGUESA PROVOCOU ENTRE

    OS NDIOS E OS NEGROS AFRICANOS QUE AQUI VIVIAM. Beber ou no coca-cola that is the question!

    Todos ns somos ou j fomos, uns mais, outros menos, como Rogrio.O fato de termos conscincia da invaso cultural no nos livra absolutamente dela. Alis,

    quando passamos a ter noo de sua existncia, nossos hbitos, valores e preferncias emgeral esto to solidificados que, mesmo querendo, custa muito at que nos descartemos deles,se que nos descartamos.

    Em sua maior parte tais valores nos foram impostos por um sistema ideolgico veiculadopelos meios modernos de comunicao de massa e pelos produtos consumidos aps aestimulao publicitria de algumas necessidades materiais ou psicolgicas que no tnhamose que passam a nos parecer bsicas.

    Alm disso, se fosse possvel nos descartarmos de todos esses elementos importados, issono teria significao se o processo ocorresse apenas em escala individual e se notivssemos outros valores e formas alternativas de soluo que preenchessem o vazio deixadopor eles.

    Denunciar a invaso cultural no implica que tenhamos de deixar de beber coca-cola, ouvirrock, apreciar um bom filme norte-americano de ao ou de fico cientfica ou trocar nossosjeans por cala de algodo branco e os tennis por sandlia artesanal de couro cru, mesmoporque entre os produtos importados da cultura americana h coisas excelentes e seria umapobreza de esprito muito grande no reconhecermos isso.

    Numa poca em que os meios de comunicao propiciam cada vez mais o intercmbio entreos povos seria impossvel preservar uma cultura de influncias externas de qualquer espcie.E mesmo que assim no fosse, para que afastar, como inimigos, produtos finais da criatividadehumana originados exatamente da riqueza das diversidades culturais?

    Mas, ento, sobre o que falvamos exatamente quando denunciamos o fato de estarmossendo vtimas de invaso cultural? Era uma vez um ndio, um negro e um portugus

  • Influncias culturais todos os povos recebem e exercem, no decorrer da sua histria,

    conforme o nvel e a natureza de suas relaes.No caso do Brasil, desde o incio da sua histria isso se verifica com a convivncia e

    consequentemente a troca de elementos culturais do branco europeu, invasor e colonizador,com o ndio, habitante original desta terra, e depois com o negro, trazido da frica comoescravo.

    A cultura dita brasileira se moldou, portanto, a partir do intercmbio de trs elementos deraas, continentes e habitats distintos e portadores de tcnicas, crenas e formas de expressodiversas.

    No entanto, a histria de nosso pas foi sempre analisada apenas do ponto de vista dodominador. Por isso, encaramos a chegada, conquista e dominao europeia na Amrica comomais uma etapa gloriosa de uma civilizao superior, cumprindo seu destino inexorvel deespalhar pelo mundo as verdades engendradas durante o seu especfico e particular processode desenvolvimento histrico.

    Usamos expresses como descobrimento, europeizao do mundo, transplantao decultura etc., que mal disfaram a supervalorizao do modo de ser e estar no mundo doeuropeu em detrimento da cultura daqueles povos que, em nossa Histria Oficial, acabaramrelegados a papis secundrios, embora nos tivessem legado tambm maneiras de falar, fazer,se expressar e tantos outros elementos culturais.

    Segundo essa concepo eurocntrica, como se a dominao do branco fosseessencialmente natural e todo o legado indgena ou africano tivesse permanecido entre nsdevido a algum processo de descuido da histria ou algo como um vazamento culturalacidental. Por isso mesmo, esses legados tm sido encarados como remanescentes doextico e classificados como folclricos durante o processo de embranquecimento peloqual passou o nosso continente.

    Afinal tudo foi colocado de tal modo que fomos levados a crer que a cultura europeiarefletiria exatamente uma determinada etapa de evoluo pela qual necessariamente todahumanidade deveria passar. O fato, porm, de os europeus terem sido os pioneiros dessaevoluo os habilitaria a explorar as reas que houvessem se atrasado, justificando-sedessa maneira a substituio de vrias culturas por aquelas do chamado mundo ocidentalcristo, ou seja, o dos conquistadores da Amrica.

    Se analisarmos, porm, o processo histrico pelo ngulo dos povos vencidos, poderemosperceber como foi que ocorreu a destruio fsica e cultural indgena e africana em favor dadominao dos povos vencedores.

    Assim, pois, tanto para servir como escravo ao branco como para com ele viverharmoniosamente, o ndio e o negro tiveram de entender e falar a lngua dele, aprender amanejar seus instrumentos, plantar, criar, produzir o que economicamente lhe era favorvel,morar conforme suas construes eram arquitetadas, vestir-se, acasalar-se, comer conformeseus padres e danar conforme sua msica.

    Segundo a nova ordem estabelecida pela expanso martima europeia nos sculos XV eXVI, s havia um Deus para toda a humanidade; o sistema capitalista, em evoluo, refletia aordem natural das coisas e era preciso obedecer aos reis, porque, como ento se justificava,

  • seus poderes haviam sido transmitidos pelo prprio Divino Criador.

    No dia que eles chegaram aqui, eles rezaram uma missa para festejar a invaso da nossa terra... Assim contam

    os indgenas a sua prpria histria. (Histria dos povos indgenas 500 anos de luta no Brasil. So Paulo,Vozes, CIMI, 1986.)

    evidente que as primeiras geraes de dominados sentiram com mais fora e na prpria

    pele toda essa dominao cultural. Aos poucos, porm, por falta de uso, devido a proibiesou a desvalorizaes por parte do conquistador, as manifestaes culturais no europeiasforam esquecidas pelos negros e ndios j nascidos nas colnias daqueles reis que, alm daAmrica, as terras viciosas da frica e da sia andaram devastando (Cames, OsLusadas). S para ingls ver

    Consolidado o domnio de Portugal sobre o Brasil, consolidou-se, consequentemente, odomnio de sua cultura sobre a indgena e a africana. Contudo, no transcorrer do tempo outrasinfluncias culturais, europeias tambm, aqui se exerceram: a holandesa, no sculo XVII; afrancesa, iniciada sobretudo durante o sculo XVIII; e a inglesa, no sculo seguinte.

    O domnio holands no nordeste aucareiro (1630-1654) deixou algumas influncias queno chegaram contudo a abalar os alicerces portugueses da cultura local, atuando mais nospoucos centros urbanos existentes, sobretudo em Recife. Como marcas de sua passagem osholandeses deixaram alguns prdios, pontes e, conforme cita Joel Rufino dos Santos em suaHistria do Brasil, alguns meninos de cabelos ruivos e o sobrenome Wanderley.

    A presena francesa, que se prolongou pelo sculo XIX at os primeiros anos do sculoXX, agiu, porm, sobre uma pequena parcela da tambm quantitativamente minscula (maspoderosa) classe dominante, que enviava seus filhos para estudar na Europa, onde tomavamcontato com a cultura francesa, que, na poca, gozava de grande prestgio.

    Num pas onde a posse de terras e escravos definia o nvel de poder, a educao escolar, asletras e as artes eram consideradas bens de consumo suprfluo e usadas como objetos deostentao para obteno de sucesso nas rodas sociais, conferindo status e garantindo, almdisso, poderes suplementares. Nessas terras onde os mais poderosos eram analfabetos ousemialfabetizados, aqueles que falavam, liam e moldavam suas maneiras tendo como prottipoa cultura francesa eram to poucos que no podemos falar em invaso mas apenas eminfluncia cultural francesa.

  • A influncia inglesa, por outro lado, exerceu-se muito mais do ponto de vista poltico eeconmico do que propriamente intelectual. Embora bens de consumo britnicos fossemadquiridos pelo comrcio direto ou usufrudos graas aos investimentos ingleses no Brasil, aintelectualidade, numericamente bastante insignificante naquela poca, continuaria ainda aseguir, por mais algum tempo, principalmente o modelo francs.

    Muitas palavras at hoje empregadas por ns atestam essas duas influncias: abat-jour,peignoir, baton, rouge, lingerie e outros francesismos e as ligadas ao football (esporte,alis, introduzido no Brasil pelos ingleses) como team, score, goal, back etc.

    No final do sculo XIX e incio do XX entrariam vrias levas de imigrantes em nosso pas:italianos, espanhis, alemes, rabes, eslavos e japoneses. Evidentemente da convivncia comeles alguns elementos novos passaram a ser incorporados nossa cultura. Mas foramrelativamente poucos e facilmente identificveis, sentidos e reconhecidos como estrangeiros.Alm disso so encontrados sobretudo nas regies Sudeste e Sul do Brasil, mais em algumascidades ou bairros do que em outros, e no em todo o pas.

    Esses elementos culturais estrangeiros no foram, contudo, propositadamente divulgadosentre ns com finalidades polticas ou interesses econmicos por parte das naes de ondevinham os imigrantes. Sua difuso se deu por causa do contato direto e espontneo com eles e observao pessoal de seus costumes, graas vizinhana, casamento ou aproximao emambientes de trabalho.

    Tendo sido absorvidos por ns, eles no assumiram, no entanto, qualquer carter dedominao. No se tornaram exclusivistas, substituindo ou eliminando algumas de nossasantigas prticas culturais, no foram vistos como superiores aos nossos e no veicularamcamufladamente nenhum sistema de valores que pudesse interferir em nossa prtica poltica esocial. Devemos ressaltar contudo que foi com os imigrantes italianos e espanhis queconhecemos a teoria e a prtica anarquistas. Como elas eram condenadas pelos governos deseus pases de origem, no estavam portanto a seu servio.

    Podemos ter algumas palavras oriundas dos idiomas dos imigrantes, bem como alguns deseus pratos compondo nossos cardpios, ou algum modo particular de falar, gesticular, e atalgumas crenas. No entanto, como povo, de norte a sul do pas, ns, brasileiros, nosdistinguimos acentuadamente deles.

    Por tudo isso no consideramos os imigrantes como nossos invasores culturais, emboraitalianos, alemes, japoneses e outros tenham representado esse papel em naes africanas easiticas, sobre as quais seus pases exerciam algum tipo de dominao.

    A segunda onda de invasores culturais a primeira foi representada pela colonizaoportuguesa estaria ainda para acontecer. Finalmente, os invasores

    J na dcada de 1930, mas sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ainfluncia poltica e econmica da Inglaterra na Amrica foi cedendo espaos cada vezmaiores norte-americana.

    Encontrando no Brasil desse perodo a poltica getulista de desenvolvimento industrial, ocapital norte-americano foi se infiltrando em nossa economia sob a forma de emprstimos e

  • equipamentos, estabelecimento de subsidirias (filiais), assistncia tcnica etc.Abriram-se ento nossas portas para as multinacionais, empresas gigantes que, a partir da

    empresa matriz, que age como centro decisrio no pas de origem, atuam em vrios pasesonde possuem ramificaes de seus negcios. As que no Brasil iniciaram suas atividadestinham sede sobretudo nos USA, e foi sob a tutela do capitalismo internacional, sobretudoyankee, que se desenvolveu nosso prprio capitalismo industrial.

    Coincidindo esse momento com a Segunda Guerra e a Guerra Fria, os USA usaram nossadependncia econmica para garantir tambm o alinhamento poltico do Brasil, primeiramentecontra as potncias do Eixo (Alemanha, Japo e Itlia) e depois contra a expanso dosocialismo e do poder da ento URSS.

    No foram entretanto s nossas indstrias de bens de consumo materiais que surgiramligadas ao capital norte-americano. Os setores de comunicao de massa se constituram, damesma forma, ou por investimentos diretos de multinacionais ou pela associao deempresrios yankees aos brasileiros, ou, ainda, quando originrias de capital nacional,utilizando tecnologia e modelos de produo oriundos dos USA.

    Alm disso, a importao de filmes, msicas e quadrinhos dos USA no parou de crescerdesde os anos 1930, sobretudo nas dcadas de 1970, 1980 e 1990.

    Dessa maneira, sem que os norte-americanos se apropriassem do nosso territrio, tivessemque vir pessoalmente at o Brasil ou destrussem fisicamente seus habitantes, como nopassado fizeram os portugueses, passamos a sofrer quase o mesmo processo de invaso,dominao e colonialismo cultural experimentado pelos ndios aps 1500.

    Tratava-se agora de uma invaso teleguiada, sem a presena do invasor, que, mesmo l daAmrica do Norte, fazia chegar at ns seus produtos culturais.

    Exatamente, porm, como a cultura europeia chegara e se impusera aos nossos ndios comoexpresso de um estgio evolutivo pretensamente mais adiantado e civilizao supostamentesuperior, tambm assim nos chegava a cultura norte-americana em meados do sculo XX. Sque agora com a conivncia da classe dirigente e a aceitao pacfica e quase unnime de todaa populao.

    De fato a ausncia fsica do novo invasor e a imposio de sua cultura atravs do consumo,e no da escravido, nos dariam a iluso de estarmos preservando nossa liberdade eexercendo uma autodeterminao.

    Alm disso, a entrada no pas desses novos elementos culturais pareceria a muitos bastanteconveniente e at natural, uma vez que nossos projetos desenvolvimentistas tinham comometa levar o Brasil a atingir, o mais rpido possvel, o estgio em que se encontravam osUSA.

    Tal como antes ocorrera com os nossos ndios, que para trabalhar e viver com osportugueses tiveram de adotar os seus costumes, ns tambm, agora, como assalariados dasmultinacionais norte-americanas ou importadores dos produtos de sua cincia, arte etecnologia, tivemos de aprender o ingls, manejar seus artefatos e nos moldar aos seuspadres, a fim de produzir e consumir, em primeiro lugar, o que lhes era mais favorvel.

    E tanto quanto os ndios, que, ao serem catequizados, foram incorporando o modo de ser dodominador, tambm ns absorvemos, com os produtos consumidos, a ideia de que o que

  • bom para os USA bom para o Brasil.Se os jesutas usaram, no passado, a msica e as representaes teatrais para atrair os

    indiozinhos, a fim de chegar mais facilmente at seus pais, tambm dessa vez nossa juventudefoi maciamente doutrinada pelos enlatados divulgados pelos meios de comunicao e pelosobjetos destinados ao seu lazer.

    As primeiras geraes de brasileiros que sofreram essa nova onda invasora ainda puderamperceber claramente o processo de submisso econmica, poltica e cultural que estavamvivenciando. O passado, no to remoto, ainda estava vivo em suas lembranas,proporcionando-lhes condies de discernimento e reflexo.

    Por isso, at a promulgao do Ato Institucional no 5, em 1968, que legitimou por decreto acensura aos veculos de comunicao e as prises, exlio, cassaes de mandatos e de direitospolticos como forma de acabar com a oposio, algumas resistncias importantes se fizeramsentir em defesa dos interesses brasileiros.

    Depois, pela fora da represso, pelo volume avassalador de material desinformativoque propositadamente a ditadura nos lanava e pela intensa convivncia com elementosculturais invasores, fomos nos adaptando ao que era estrangeiro e nos esquecendo de nossasprprias razes culturais.

    A invaso cultural da qual trataremos neste livro se refere, portanto, introduo massiva emacia de elementos culturais norte-americanos, tanto materiais quanto imateriais, no dia a diade quase todos ns, transformando-nos em milhes de brasileiros americanizados comoRogrio, que bebe coca-cola, fuma Marlboro, pratica surf, curte techno, veste jeans, comeMcFish no McDonalds, sonha com uma viagem ao Hawai, assiste Pnico, luta para adquirirsempre um maior status, acredita que no mundo capitalista h chances para todos, quedinheiro no traz felicidade ( mas ajuda), garante que o socialismo morreu, assiste a realityshows, embora no preste muita ateno aos dramas sociais vividos intensamente porcompatriotas brasileiros, bem mais prximos e mais reais, ali mesmo em sua cidade. Ou, sepresta, acha que isso no tem nada a ver com ele.

    Enfim, estamos falando da disseminao de elementos produzidos fora do Brasil, muitasvezes inadequados s nossas reais condies e necessidades sociais, e que no est restritaapenas a alguns segmentos sociais ou regionais da populao, mas grande maioria debrasileiros, embora seja mais marcante no eixo RioSo Paulo, onde se concentram astransnacionais e grandes empresas de comunicao.

    O brasileiro no tem conscincia plena de que essa imposio de hbitos, modas e valoresse realiza por processos artificiais, beneficiando o capitalismo e o imperialismo norte-americanos e garantindo nosso alinhamento poltico aos USA.

    Trata-se, enfim, de uma penetrao cultural, fruto de um planejamento cuidadosamenteelaborado pelo governo dos USA (mas essencialmente pacfica, porque no h utilizao defora ou material blico), da qual nem sempre nos damos conta, mas que cerra nossos olhos eouvidos e nos anestesia a razo e os sentidos para outras formas estrangeiras de arte,literatura, tecnologia, lazer etc. Trata-se, principalmente, de uma invaso que fecha amplosespaos para a criatividade e produo cultural mais ligada nossa brasilidade.

    Em outras palavras, da hegemonia dos padres e valores da cultura norte-americana em

  • alguns de nossos setores e da sua influncia extremamente marcante em outros que estaremosfalando neste livro. A hegemonia que transforma atitudes, valores, hbitos estrangeiros emalgo to habitual, to aparentemente natural em nosso meio, que s vezes nem mesmo reconhecido como importado.

    Para quem gosta, um prato cheio!A respeito da invaso cultural norte-americana, vale lembrar as palavras deMarshall Mc Luhan, o criador da expresso aldeia global: Antigamente invadamos os mercados estrangeiros

    com mercadorias. Hoje invadimos culturas inteiras com pacotes de informao, entretenimento e ideias.(Ilustrao de Marcelo Polo Rezende para a capa da 1 edio deste livro.)

  • 4. No h como escapar: ainda que camuflados, os americanos esto emtodas!

    O ESTILO DE VIDA NORTE-AMERICANO INVADIU OS DIFERENTES ESPAOS EM QUE VIVEMOS,TRANSMITINDO-NOS PRINCPIOS, VALORES, PREFERNCIAS, PRECONCEITOS QUE INFLUEM NA

    FORMAO DE NOSSO CARTER E NA POSTURA QUE ADOTAMOS DIANTE DA REALIDADE. VAMOSVISITAR ALGUNS LUGARES QUE COMPEM O CENRIO DE NOSSO COTIDIANO PARA NELES

    DESCOBRIR QUE NO H COMO ESCAPAR: OS AMERICANOS ESTO EM TODOS.

    Poucos minutos de convivncia com Rogrio foram suficientes para detectar a presena deelementos norte-americanos em sua vida. No entanto, ele foi apenas um exemplo utilizado paraque inicissemos uma anlise do processo de invaso cultural norte-americana sofrido por nsaqui no Brasil.

    Como alguns elementos desse processo, intensamente absorvidos e incorporados nossarotina diria, so menos claramente percebidos do que outros, tentaremos fazer umlevantamento geral de sua presena em nosso cotidiano.

    Acreditamos que algumas circunstncias nos tm levado a encarar com excessivanaturalidade, ou at mesmo com certa indiferena, a predominncia no Brasil desseselementos to estranhos nossa cultura.

    Nossa extrema familiaridade com a lngua inglesa, por exemplo, uma dessascircunstncias, porque depois do portugus ela a lngua que mais ouvimos, lemos e falamosno Brasil, embora estejamos cercados de pases de lngua espanhola e convivamos comimigrantes de vrias nacionalidades, cujas falas, alis, a maioria dos brasileiros temdificuldade at mesmo de identificar a origem.

    Alm de ser praticamente o nico idioma estrangeiro ensinado hoje nas escolas oficiais (oespanhol comea a entrar nos currculos de algumas poucas instituies), a presena do ingls macia e constante nas msicas mais tocadas pelas FMs e nos filmes em cartaz nos cinemas,exibidos nas TVs por assinatura ou disposio nas locadoras, em videocassete ou em DVD.

    Objetos os mais diversos tm nomes ou marcas de fantasia em ingls, e, s vezes, essesnomes no correspondem a nenhum vocbulo que realmente exista nessa lngua, mas parecema ela pertencer por causa da forma como so escritos. As coisas se passam como se dessamaneira a palavra adquirisse um novo status, ou tivesse o poder de melhorar at mesmo aqualidade do produto que ela representa.

    Proliferam-se por isso palavras que no passam de hibridismos criados pela mistura doportugus com algumas caractersticas grficas da lngua inglesa, que lhes conferem um certosotaque norte-americanizado, to ao gosto da classe mdia brasileira atual. Para tanto so

  • utilizados intensamente os sufixos -ax, -ex, -ox e -lndia, as letras k, y, w, consoantesdobradas ou mudas (em terminaes de palavras), alm do designativo de posse (ou genitivecase) e o famoso up. E assim que usamos Panex, Neutrox, Kibon, Success e Close-up,compramos na Gurilndia, comemos no Antonios etc.

    Como, no entanto, algumas palavras inglesas j foram h muito tempo abrasileiradas em suaescrita, muitos jovens talvez nem se dem conta de sua origem estrangeira. o caso, porexemplo, destas citadas em grafia original para que melhor se evidencie a sua procedncia:basket, football, hello, beef, cocktail e muitas mais.

    H outras que tambm so bastante utilizadas mas nunca foram traduzidas para o portugus,como se sua forma de designao em lngua inglesa fosse a nica possvel. o caso de close,drive-in, show, slogan, office-boy etc. E ainda h aquelas que tm sua correspondente emnossa lngua mas que insistimos ainda em us-las no ingls por acharmos que dessa forma elassoam melhor. Dizemos muito mais drink quando nos referimos a aperitivo ou a umabebidinha rpida qualquer, free-lancer para trabalhador independente ou autnomo,playground em vez de parquinho, overdose quando poderamos falar em dose excessiva, eassim por diante.

    Srgio Britto e Branco Mello expressaram muito bem a baixa auto-estima dos povoscolonizados quando afirmaram, na msica A melhor banda de todos os tempos da ltimasemana, que um idiota em ingls, se idiota, bem menos que ns, um idiota em ingls bem melhor do que eu e vocs.

    Conforme pesquisa publicada pela revista Veja, nmero 16, de 19 de abril de 1995,constavam do dicionrio Aurlio, de lngua portuguesa, 743 palavras inglesas adaptadas paraa nossa lngua e 374 transplantadas para a nossa linguagem cotidiana sem qualquer adaptao.

    Nestes tempos de globalizao, com a disseminao das linguagens e cdigos dainformtica, do mundo empresarial, dos negcios, dos esportes, das artes etc. e com o acessocada vez mais amplo Internet e aos padres culturais norte-americanos expandidos em todoo planeta, nosso vocabulrio cotidiano passou a incorporar outras centenas de palavras doingls, tais como: web, net, e-mail, laptop, softwares, page, homepage, site, download,business, standard, ranking, fastfood, sale, networking, expert, marketing, franchising,MBA, delivery, hits, performance, bike, breakfast, zoom, van, camping, jet ski, apart hotel,flat, check in, check out, off, resort, air bag, DVD, top, t-shirt, twin-sets, fashion etc.

    Se por um lado a familiaridade com a lngua inglesa torna mais fcil a no percepo dainvaso e a aceitao de elementos culturais norte-americanos, por outro, em determinadasocasies, exatamente a ausncia do idioma que conduz mesma situao.

    o caso, por exemplo, de muitos enlatados de TV, msicas e histrias em quadrinhos,dublados ou traduzidos para o portugus, que no deixam clara sua origem estrangeira.Consumidos em nossa lngua so muitas vezes sentidos como se fossem tambm produtos denossa cultura, sobretudo graas a adaptaes feitas durante a traduo, quando soincorporadas expresses e grias brasileiras, alm de referncias a fatos ocorridos no pas.

    Alguns hbitos comuns aos norte-americanos, por exemplo, tambm so vivenciados tofrequentemente por ns que acabaram nos transformando em criaturas em quase tudosemelhantes a eles. E isso faz com que se torne cada vez mais difcil distingui-los daqueles

  • que provm da nossa prpria cultura.Certos alimentos habituais nos USA, de tanto se tornarem presentes em nossas refeies

    dirias, foram aos poucos adquirindo aos nossos olhos ares de verdadeiras instituiesnacionais, comparveis at ao feijo com arroz e ao caf com leite. O consumo da coca-colae outros refrigerantes, sucos artificiais, catchup, goma de mascar, cereais crocantes, hot-dog,hamburguer, shakes, sundaes, snacks, bebidas energizantes, batatinhas fritas em pacotes eoutros comes e bebes desse gnero j passaram a fazer parte da rotina digestiva de milhesde brasileiros, sobretudo dos que vivem no eixo centro-sul do pas. Sem falar da difuso dofast food e dos congelados.

    Os comerciais de TV, a publicidade em geral e as revistas da moda tambm tm colaboradopara que nossos compatriotas, mesmo sem perceber, adotem a norte-americana como sendosua segunda nacionalidade. Produzidos diretamente nos States ou seguindo seus modelos, sousados cenrios, fundos musicais e pessoas de aspecto fsico e modo de trajar caractersticosde l, familiarizando-nos mais ainda com eles, alm de nos induzirem imitao. Essa espciede segunda pele que ns brasileiros vestimos tem tornado cada vez mais difcil a procura, adeterminao, o reencontro ou a elaborao da nossa prpria identidade nacional, sobretudoporque so muito poucos os remanescentes da gerao brasileira que viveram antes dainvaso cultural e que podem, exatamente por isso, distinguir com mais clareza em que medidae at que ponto ela j est e ainda pode vir a nos prejudicar.

    Da nossa preocupao em chamar a ateno para a exagerada presena de elementos norte-americanos em nosso cotidiano, focalizando algumas das inmeras faces que eles assumemquando se introduzem ou se fixam entre ns. Encontramos o invasor quando fazemos compras

    Percorrendo os corredores dos supermercados e shoppings encontramos nosso invasor nosnomes de lojas, na composio das vitrines, nas prateleiras, embalagens e informaes para ocliente ou consumidor.

    Diet, light, soft, active, care, sale, % off, off price, size, clean, kid, king, nylon, strech, t-shirt, up, self-service, VIP, free, standard, box, design, teen, fashion, e uma infinidade deoutras palavras com que topamos durante as compras do-nos a sensao de que estamosfazendo compras em Chicago, San Francisco ou New York.

    Caminhando, com nossos cards nas carteiras prontos para detonar, passamos por iogurtes,balas, gomas de mascar, pes de forma ou para hamburguer, bolos, refrigerantes, tennis,cigarros, brinquedos, utenslios domsticos, cosmticos, produtos de higiene e muitos outrosque estimulam nossa fome, nossa gula e nosso desejo de ser feliz, bonito, admirado, amado,bem-sucedido, invejado e poderoso.

    Enfim, produtos que apelam para todas as nossas carncias e acenam, piscam para ns, eprometem, com o glamour de seus nomes de fantasia em ingls e estilos norte-americanos, aconcretizao de nossos desejos de sucesso, romance, popularidade e muitos outros. E hbatalhes deles por toda parte!

    Naturalmente, nem todos esses objetos foram produzidos por empresas multinacionais dosUSA. Algumas so nacionais e apenas lhes pagam pelo uso da marca, da tecnologia ou pela

  • produo de seus modelos. Outras no tm nenhum tipo de vinculao com o capitalestrangeiro. No entanto, identificam-se de tal maneira com sua forma de produo edistribuio de mercadorias que, tanto pelo nome quanto pelo estilo dos produtos, soverdadeiras cpias de seus paradigmas l do Norte.

    Alm das lojas e produtos para consumo, tambm h restaurantes, hotis, sales de beleza,casas de diverso etc. que seguem a mesma linha de inspirao na escolha de seus nomes.

    No final das compras (e das contas!) ficamos pensando qual o sentido em se dizer tantascoisas numa lngua que nem a nossa, que rarssimas pessoas podem compreender bem e queno tem significado algum para a maior parte da populao brasileira.

    Na verdade, o que vemos estampado em nossas camisetas e roupas em geral? Nomes deuniversidades, cidades, bandas de rock; rostos de artistas; cenas de filmes; personagens dedesenho animado ou de HQ norte-americanos, alm da prpria bandeira dos USA e grias ouexpresses idiomticas que nenhum dicionrio ou professor de ingls que j no tenha vividonos USA poderiam traduzir, sem contar com as frases que, se compreendidas, nada dizem deinteressante ou til.

    Tornou-se to normal viver nesse mundo de coisas estrangeiras que provavelmente noteramos qualquer reao se topssemos de repente com uma pessoa usando uma roupa ondese lesse Dont worry. No entanto ficaramos surpresos, ou at um pouco transtornados, sesoubssemos que em autntico portugus ela nos est dizendo: No se aborrea. Meu Deus,que aflio no saber a respeito do que eu devo ou no me aborrecer! Como isso possvelnos dias de hoje, com tanta violncia, doena, fome, corrupo, pobreza, transtornos de todo otipo?

    Segundo a revista Veja qual j nos referimos neste captulo, em 1995, das 456 lojas queexistiam no Shopping Center Ibirapuera, na cidade de So Paulo, 110 foram batizadas comnomes em ingls.

    Mas, camisetas, nomes da fantasia, shoppings parte, onde mais ser que poderamosencontrar os norte-americanos? Sabem de uma coisa? Voc nem mesmo precisa sair de casapara v-los. Eles podem estar tambm a do seu lado, divertindo-se com voc

    Em geral, quando nos dedicamos s horas de lazer, consumimos produtos culturais que emsua maior parte so norte-americanos. So exportados para outras naes, incluindo a nossa,para faturamento de lucros suplementares, uma vez que o consumo interno j seria suficientepara cobrir seus custos e garantir lucros para as empresas.

    por isso que muitos deles chegam at ns depois de intensamente consumidos nos States ej superados l por outros mais atualizados, o que verificamos facilmente observando, porexemplo, as datas das tirinhas, de algumas histrias em quadrinhos ou filmes que passam emnossa TV.

    Influenciando modos de pensar e proceder, esse lazer importado adquire importnciaequiparvel ou at superior dos elementos brasileiros na formao de nossa identidadecultural, compondo uma outra face da nossa prpria nacionalidade. Notamos isso ao ligarmoso rdio, a TV, ao lermos os jornais, ao irmos ao cinema.

  • Se desejarmos dados concretos, s verificar a programao das emissoras de rdio e asprateleiras de lojas de discos, fitas e DVDs. A presena do rock norte-americano, em suasdiversas modalidades, ou de outra nacionalidade mas cantado em lngua inglesa, sem dvidaalguma, extremamente marcante ou mesmo, em alguns casos, dominante, comparada com a deoutros ritmos, de outras nacionalidades e em outras lnguas.

    Embora no devamos confundir o rock norte-americano com o ingls, o australiano ououtro, cantado em lngua inglesa, preferimos no fazer aqui qualquer distino entre eles nocmputo geral das msicas ouvidas. E isso por trs motivos principais: 1) porque somaiores as semelhanas do que as diferenas entre eles, herdeiros cronolgicos do americano;2 ) porque quando as msicas de outras nacionalidades aqui chegaram j estvamosdevidamente preparados pelos yankees para bem receb-las; 3 ) porque, em geral, por meiodas gravadoras, distribuidoras ou revistas ligadas a multinacionais norte-americanas quetomamos conhecimento de cantores e bandas de rock ingleses.

    Se levarmos novamente em conta a quantidade de brasileiros que no domina ou conhece oidioma ingls, concluiremos que os ouvintes de rdio no entendem a letra de grande parte dasmsicas que escutam, embora alguns a repitam, mesmo sem compreend-la.

    Em setembro de 1986 fizemos uma pesquisa para a primeira edio deste livro (1988),ouvindo durante seis horas a programao de seis emissoras de rdio FM de So Paulo, nohorrio das 13 s 16 horas. Naquela ocasio, constatamos que 53% das msicas veiculadaseram brasileiras, 44,8% eram cantadas em ingls e apenas 2% eram de origens diversas egravadas em outras lnguas. Em duas estaes (Antena 1 e Jovem Pan), o ndice de msicainternacional chegou a ser superior a 50%. Ainda segundo a reportagem da Veja, trs em cadacinco msicas tocadas em rdio FM, ou seja, 60%, eram norte-americanas.

    No final do sculo XX e incio do sculo XXI, alguns ritmos brasileiros de origemnordestina, como o forr, o pagode, a ax-music, ou outros, como as variveis de msicasertaneja, por exemplo, difundiram-se e tornaram-se muito apreciados em todo o Brasil,conquistando primeiramente o gosto popular e, aos poucos, tambm o das elites econmicas edos intelectuais. A MPB, o samba em geral e o rock brasileiro tambm cresceram napreferncia do pblico e, com isso, algumas emissoras passaram a inseri-los em suaprogramao de forma preponderante, ou at mesmo exclusiva, em alguns programasespecficos ou na programao toda, tal como a extinta Musical, a Nova, que a substituiu, e aNativa, s para citar algumas de So Paulo.

    Por isso, comum afirmar-se hoje que, no rdio, a msica brasileira a mais tocada. Noconhecemos nenhuma pesquisa feita a respeito, e a quantidade de novas emissoras e aversatilidade de suas programaes tornam difcil realiz-la. Alm disso, os objetivos maisabrangentes deste livro no nos permite dispor do tempo necessrio para tanto.

    Mesmo assim, um levantamento muito rpido e despretensioso feito por ns no dia 19 deabril de 2003, ouvindo durante uma hora a programao musical de quatro emissoras, no nosforneceu dados muito animadores, indicando a seguinte situao:

  • Em relao ao cinema, foi possvel fazer um levantamento mais detalhado da quantidade de

    filmes norte-americanos a que assistimos atualmente, na TV aberta, na TV por assinatura e noscinemas da cidade de So Paulo.

    Os dados que conseguimos a respeito foram os seguintes:Nos cinemas da cidade de So Paulo, em um s dia foram exibidos 37 filmes diferentes,

    dos quais 35,2% eram norte americanos, 38,2% eram de outras nacionalidades e 8,8% eramnacionais.

    Assim apresentados, os nmeros parecem indicar uma situao diferente daquela verificadano conjunto de canais abertos de TV. Contudo, se considerarmos que quase todos os filmes daprogramao so apresentados em mais de uma sala pelo menos uma vez no dia, ento aproporo de filmes americanos em exibio aumentar consideravelmente em relao aos deoutras origens e os nacionais. Nesse caso, os nmeros so, respectivamente: 2.054 (67,6%);345 (11,3%) e 177 (5,3%)! A tabela a seguir representa melhor a situao comentada.

  • A maior parte das co-produes dos USA com outros pases so filmes em que os diretores,

    artistas e locaes so norte-americanos, entrando os demais apenas com parte do capital erecebendo parte dos lucros.

    Na TV por assinatura, a chance de assistirmos a filmes que no sejam norte-americanos ouco-produes dos USA com outros pases ainda menor: 18,1%.

    Na relao de filmes de outros pases, pode-se notar que no h filmes africanos e do

    Oriente Mdio, e que o conjunto de filmes europeus supera em muito os australianos e ganhalonge dos latino-americanos e asiticos.

    Em nossa pesquisa, a participao dos outros pases, no conjunto dos 153 filmes que noeram norte-americanos, foi a seguinte:

  • Quanto s tirinhas publicadas em jornal, comparamos a Folha de S.Paulo e o Jornal da

    Tarde em dois momentos diversos: em 1986 e em 2003.

    Qualquer pessoa que folheie os jornais e se detenha um pouco nessas pginas perceber que

    algumas tiras estrangeiras esto totalmente desvinculadas da realidade brasileira e do nossotipo de senso de humor, e dificilmente consegue achar graa nelas.

    No entanto, contamos no Brasil com quadrinistas e cartunistas de primeirssima ordem que,infelizmente, s podem ser conhecidos por revistas e livros, em geral bastante caros.

    Felizmente isso j est mudando, como podemos perceber ao comparar as tirinhas de umdos jornais representados em dois momentos diferentes, com intervalo de dezessete anos entreum e outro, e perceber aumento significativo na presena de tirinhas brasileiras.

    A influncia que a cultura dos USA exerce sobre ns no acaba aqui. As crianas so aindamais atingidas, e exatamente a que a coisa se complica, uma vez que a facilidade decaptao e recepo de mensagens, o esprito de imitao e a necessidade de identificaocom dolos e heris so caractersticas muito marcantes da fase da infncia e da adolescncia.

    Justamente por isso temos mais motivos para nos afligir. Os yankees esto fazendo a cabea de nossas crianas

  • Sabe-se muito bem que crianas de famlias de baixa ou mdia renda que moram emapartamento consomem praticamente a maior parte do tempo dos fins de semana diante de umtelevisor, assistindo programao infantil e adulta da TV aberta ou por assinatura.

    Segundo a reportagem intitulada O b-a-b eletrnico, de Fernanda Dannemann, na TVFolha de 13 de abril de 2003, desde janeiro desse ano o canal pago Discovery Kids adotou aestratgia de se dirigir especialmente ao pblico infantil de dois a cinco anos. Com isso,quadruplicou a audincia, no s por causa das crianas, como tambm porque passou a ser,depois do Sony, o canal mais visto pelas mes de 25 a 34 anos.

    Na mesma reportagem, uma das mes entrevistadas d depoimento sobre o fascnio que afilha de um ano e quatro meses tem por um seriado norte-americano, que exibido tanto peloDiscovery Kids quanto pela TV Cultura, e do qual ela possui uma fita de quatro horasininterruptas que utilizada para distrair a criana em outros horrios que no os da exibiodo programa:

    Ela brinca com outras coisas, mas gosta que a TV fique ligada nos Teletubies. Quando identifica um dosepisdios preferidos, larga o que estiver fazendo e corre para ver... Ela est com a fala bem desenvolvida eimita o que eles dizem... (Ela) s quer Teletubies, no fica um minuto parada na frente da Xuxa.

    A respeito de suas duas filhas, de trs e de um ano e quatro meses, outra entrevistada afirma

    que:

    Em casa, (elas) passam a maior parte do tempo vendo TV. Tentei que assistissem Xuxa, Eliana e Stiodo Picapau Amarelo, mas nenhum desses prendeu a ateno delas.

    A Disney Channel, a Fox Kids, a Nickelodeon e a Cartoon Network so outros canais que

    tambm atraem nossas crianas. Das programaes voltadas para elas, em diferentes idades,constam desenhos mais antigos, assistidos pelas geraes precedentes, como os de Tom &Jerry, Pernalonga, Piu-piu, Scooby-Doo, Simpsons, Garfield, He-Man e outros mais novos,como Barney e seus amigos, Historinha de Drages, Connie a Vaquinha, Oswald, oUrsinho Pooh, Dexter, A Vaca e o Frango e as Powerpuff Girls, em bom portugus, asMeninas Superpoderosas, que j so consideradas cones da nova gerao de sriesanimadas.

    Nos ltimos anos, cartoons norte-americanos para crianas tm enfrentado a concorrnciados japoneses Pokemons, Yu-Gi-Oh, Hamtaro, Speed Racer e do Cocoric, o nico brasileiroda lista.

    Alm da TV, boa parte do tempo do lazer infantil tambm ocupada com revistas emquadrinhos, e quando, em 1986, fizemos uma pesquisa para a primeira edio deste livro,constatamos que, nesse aspecto, a realidade era to ou at mais assustadora.

    Contamos, numa banca de jornal de um bairro de classe mdia de So Paulo (Mooca), pelomenos 19 revistas em quadrinhos de origem norte-americana, com personagens de Disney esuper-heris, principalmente, e apenas cinco tipos de revistas diferentes (Mnica, Cebolinha,Pelezinho, Chico Bento e Casco), todas da turma do Maurcio.

    Hoje percebemos uma mudana significativa nesse particular. As revistas de personagensda Disney e dos antigos super-heris ainda so muito procuradas, mas a produo de revistas

  • brasileiras educativas e recreativas para crianas aumentou bastante e algumas delas fazemmuito sucesso.

    Alm disso, os mangs (gibis japoneses) esto invadindo cada vez mais o espao ondeos norte-americanos exerciam sua hegemonia. Nas bancas j podem ser encontrados mangsfeitos por desenhistas nacionais, inclusive para crianas. O mais interessante que tambm osnorte-americanos comearam a produzi-los e a lanar verses de Star Wars nesse estilo,como, por exemplo, o Guerra nas Estrelas Mang, ganhador do prmio de melhor edioamericana de material estrangeiro. Lanado no Japo antes que nos USA, o projeto criadopela Dark Horse Comics e Lucasfilm contratou importantes artistas de mangs japoneses paradesenhar os quadrinhos baseados nas histrias de George Lucas, e tambm um artista norte-americano, cujos traos revelam grande influncia nipnica, para desenhar as capas da famosaTrilogia Clssica: Guerra nas Estrelas, O Imprio Contra-Ataca e o Retorno de Jedi.Tambm nos desenhos animados, os norte-americanos esto enveredando por esse caminho.

    O que parece explicar o sucesso dessa iniciativa dos norte-americanos de assimilar eincorporar s suas produes os padres estticos da quadrinizao dos mangs o fato deque, neles, as expresses faciais dos personagens transmitem melhor suas emoes, intenese personalidades, e o seu ritmo gil d mais ao s cenas de luta, conquista, perseguio,suspense etc.

    o Imprio norte-americano contra-atacando os invasores japoneses, que ameaam asua hegemonia no reino dos quadrinhos.

    De qualquer forma, travestidos ou no (de japoneses, nesse caso), os valores e padres quechegam a diversas partes do mundo, via quadrinhos, seriados ou jogos eletrnicos, so os quecaracterizam o american way of life. No momento, os antigos e os novos fs infanto-juvenisdo Capito Amrica, Homem Aranha, Superman, Batman, X-Men, Hulk e outros esto sendocontemplados com as publicaes da Coleo Super-Heris Premium Grandes HerisMarvel, verses em quadrinhos com influncias do estilo japons.

    Alguns desses tambm esto sendo conhecidos pelas novas geraes por meio do cinema.No Brasil j chegaram filmes produzidos no incio deste sculo: Homem Aranha, ODemolidor, X-Men e Hulk, s para citar alguns.

    Impressionante tambm como os personagens de quadrinhos, de seriados de TV e de jogoseletrnicos esto invadindo cada vez mais o campo da indstria de produtos voltados para opblico infantil, que descobre a cada dia a fonte inesgotvel de lucro que a explorao doprestgio e do carisma que alguns personagens de fico exercem sobre as crianas e pr-adolescentes.

    No mundo dos brinquedos a presena dos invasores pode ser detectada em jogos depinturas, quebra-cabeas, miniaturas, mquinas, armas de guerra, bonecos, bichinhos deplstico ou pelcia, kits profissionais ou para desempenho de atividades especficas docotidiano e outros tantos que at perdemos a conta.

    Nos materiais escolares, os personagens aparecem em capas de fichrio e cadernos, noinvlucro de pacotes de papel, em canetas, lpis, borrachas, rguas, lancheiras e outrosobjetos relacionados com a educao infantil.

    O mesmo acontece no setor de decorao de quartos e de festas para crianas. Nessas

  • festas, desde os guardanapos, pratos e copos de papel at os enfeites que decoram a mesa dedoces, o bolo e as paredes, todos so inspirados em algum personagem de filme, seriado,quadrinho, brinquedo ou game de origem norte-americana. Em outras palavras, as festasinfantis so agora temticas, mas os temas raramente so os da cultura brasileira.

    Brasileiros que conseguem competir com os invasores do mundo infantil so apenas ospersonagens que compem a turma do Maurcio (Mnica, Cebolinha, Chico Bento, Casco),algumas apresentadoras de programas de TV para crianas (as nossas Barbies de carne eosso) e a dupla de cantores Sandy e Jnior (cujos nomes so bastante significativos para oobjeto de anlise deste nosso livro). O mundo fabuloso e rico dos personagens de MonteiroLobato s descoberto ou redescoberto por nossas indstrias de produtos para crianasquando uma nova verso do Stio do Picapau Amarelo comea a fazer sucesso na TV. Passadoo primeiro impacto sobre o pblico e a primeira onda de consumo em massa de Emlias,Narizinhos, Cucas, Sacis, Viscondes de Sabugosa e Rabics, eles so novamente relegados aoesquecimento.

    Por falar em bonecas, bastante interessante examinar as que mais tm atrado a ateno denossas garotinhas.

    So bebs loiros, de olhos azuis, bem nutridos e facilmente identificveis, em seus traosfisionmicos, com baby faces norte-americanas. H outras bonecas que representam crianasj mais crescidinhas, mas seu aspecto fsico e suas vestimentas, acima de qualquer suspeita,so tambm rplicas de modelos de meninas norte-americanas. Recentemente comearam asurgir outras, de aspecto menos natural, originadas de cartoons feitos para TV, como asMeninas Superpoderosas.

    E as bonecas negrinhas, mulatas, caboclas, curumins? E os bonecos meninos? Praticamenteno existem no mundo de fantasias infantis proporcionado pelos produtores de brinquedos.

    Talvez a surpresa maior seja que, entre todas, a boneca preferida muitas vezes a Barbie,que representa uma mulher j feita, de classe abastada (provavelmente at moradora deBeverly Hills), com piscina, academia de ginstica, cozinha, shopping, um vasto e ricoguarda-roupa, enfim, com tudo aquilo a que ela, sendo de onde , provavelmente tem direito.

    Barbie nasceu em 1959, j moa, talvez entre os 20 e 30 anos, perua e linda, segundo ospadres norte-americanos, e dessa mesma forma entrou no sculo XXI, mais de quarenta anosdepois, como rainha entre todas as bonecas que povoam a imaginao das meninas brasileirase que lhes servem de referncia durante seu processo de desenvolvimento da feminilidade ou,pelo menos, do que se considera que isso seja.

    Antes de ela ser tudo o que a garotinha de hoje gostaria de ser, quem representava essepapel era outra boneca, a Susie, brasileira de criao mas norte-americana de estilo, lanadapela Estrela em 1961, inspirada exatamente na Barbie, que ainda no chegara ao Brasil, o queaconteceria apenas em 1982. Alis, no foi por mera coincidncia que, trs anos depois, aSusie parou de ser fabricada, sendo relanada no mercado brasileiro somente no final dadcada de 1990, com algumas transformaes fsicas para poder concorrer com aquela mesmaque havia motivado a sua criao: a Barbie.

    Durante os 24 anos de seu longo reinado, foram vendidas 10 milhes de Susie no Brasil.Em compensao, desde 1959 at o ano 2002, foi comercializado 1 bilho de Barbies em

  • todo o mundo, ano em que, a cada segundo, duas bonecas eram compradas em algum lugardeste planeta. No Brasil, s em 1994 foi vendido 1,5 milho delas.

    Para ilustrar a influncia que o brinquedo pode exercer na formao de nossas crianas,escolhemos este depoimento da jornalista Joyce Pascowitch, encontrado na pgina 5/9 daedio de 23 de agosto de 1997 da Folhinha, suplemento infantil da Folha de S.Paulo.

    Perua que perua j nasce pronta. E, desde que eu era pequena, j tinha uma queda ou melhor, umtombo pela Barbie, a americana, a verdadeira. Susi no tinha o apelo que me deixava encantada: aquelagarota com cara de americana, cheiro de americana, corpo de americana e aquela ausncia de gosto tpicodas garotas de l.

    Apesar disso ou por causa disso, nunca entendi eu amava aquela funo toda, colocar calcinha, suti,meia de nilon, pentear, vestir.

    Mas o que mais me encantava na Barbie eram os sapatos, altssimos, salto fino, um de cada cor. Ela ficavamaravilhosa montada neles o mesmo que eu tento at hoje, com os meus, no exatamente com o mesmosucesso.

    Pois assim, sob peles, plos e focinhos, carinhas rosadas etc., que se escondem, nos

    quartos de nossas crianas, os famosos invasores culturais!Menos camuflados, ou mais ostensivamente, eles aparecem ainda sob a forma de jeeps com

    baterias antiareas, avies da U. S. Air Force carregando msseis, Buggys Actions, tanqueslana-foguetes, turbo-submarinos, supercaas bombardeiros, carros de corrida, motos laseretc., tudo a nos lembrar o poderio militar dos USA, sua avanada tecnologia e, implicitamente,a existncia de inimigos que os seus heris necessitam combater, bem como a vantagem de teressa grande potncia como aliada.

    Nas embalagens dos brinquedos, os apelos so irresistveis:Comande a mais poderosa mquina de guerra navegando pelos sete mares. Lanador de

    msseis a grande distncia. Possui radar. Vem com 2 msseis que voc dispara apertando oboto. As tropas esto chegando pelo mar e pelo ar. (soldados Mariners)

    No resta a menor dvida que estamos preparando nossas crianas, sobretudo os meninos,para a violncia e a guerra. O lado para o qual eles esto sendo preparados para defendertambm est bem claro

    A esta altura normalmente algumas interrogaes se propem nossa reflexo: para quetipo de realidade e de amanh estaremos encaminhando nossas crianas? Como foi quechegamos a esse ponto de dependncia da indstria cultural norte-americana sem nunca termossido oficialmente colonizados por eles nem termos recebido levas significativas de imigrantesdos USA? Por que esses processos culturais acontecem dessa forma? Afinal, como isso foipossvel e de que modo comeou?

  • 5. E como foi que tudo comeou?

    AS GERAES MAIS JOVENS NO TM REFERNCIAS QUE LHES PERMITAM PERCEBER COMO OSBRASILEIROS VIVIAM ANTES DA INVASO DE ELEMENTOS CULTURAIS NORTE-AMERICANOS E COMO

    PASSARAM A VIVER DEPOIS. NESTE CAPTULO, PROCURAMOS RELATAR O PROCESSO HISTRICO QUEDEU ORIGEM AO BRASIL, TAL COMO OS JOVENS O CONHECEM HOJE. ENFIM, TRATAREMOS DE

    VIAJAR NO TEMPO E VER COMO FOI QUE TUDO COMEOU.

    A penetrao cultural yankee se iniciou no Brasil sobretudo a partir da dcada de 1930 e seintensificou especialmente na dcada de 1960, e bem possvel que as pessoas muito jovensainda nem a tenham percebido.

    O que poderemos fazer se nos propusermos realmente a resgatar para a juventude toda ariqueza contida em nosso passado cultural? Passado alis desprezado, omitido e at mesmoenterrado sob o peso do volume astronmico de informaes, produtos, mensagens e modelosque nos atingem constantemente por meio de propagandas e noticirios dos meioscontemporneos de comunicao.

    Ouvimos sempre dizer que o brasileiro um povo de memria curta, ou mesmo um povosem memria histrica, e evidentemente isso tem conotaes polticas.

    Mas, afinal, ele vai se recordar de qu?Para nos lembrarmos do passado, preciso que tenhamos tido conscincia dele enquanto

    era presente. No entanto, que condies tivemos realmente de conhecer a realidade brasileiranestes ltimos 40 anos?

    ramos bombardeados a todo instante com notcias de ameaas de guerra subversiva einfiltrao de ideologias exticas e comunizantes que colocavam em perigo a tradio, aptria, a famlia e a liberdade. Ordem, progresso e paz eram mantidos a duras penas e custa da eterna vigilncia de nossas Foras Armadas, voltadas sempre para impedir tudo ereprimir a todos que ameaassem a segurana nacional (ou seja, a ditadura militar).

    Povoavam-se nossos sonhos com promessas de riqueza, conforto e bem-estar produzidospor milagres econmicos, forjados entre quatro paredes por tecnocratas super-heris, quenos acenavam com um futuro de desenvolvimento e paz social repleto de carros,eletrodomsticos, lazer, escola e casa prpria para todos.

    Nossas atenes constantemente eram deslocadas para campeonatos esportivos, copas domundo, resultados da loteria esportiva, temveis secas e enchentes, campanhas da fraternidade,novelas das 8 etc. E, com nossas energias intelectuais assim canalizadas, nostransformvamos em espectadores acomodados, sentados beira do caminho pra ver abanda passar, ol, ol, ol, ol e mais nada.

  • Entre tantos medos e esperanas, pouco ou nenhum tempo nos sobrava para refletir eperceber o que realmente acontecia, quem efetivamente ramos e em que finalmente estvamosnos transformando.

    S mais recentemente tivemos, aqui no Brasil, acesso a documentos e publicaes quetornaram possvel desvendar alguns dos muitos segredos ocultos pela cortina de fumaa doprocesso de desmemorizao intencional do qual todos ns temos sido vtimas.

    Munidos agora dessas informaes, podemos voltar com mais segurana ao passado paradescobrir como, por que e quando se deu, afinal de contas, o incio e a expanso da influncianorte-americana em nosso espao cultural. A Amrica para os (norte-)americanos

    A Histria Oficial no tem tido muita preocupao, nos ltimos tempos, em nos esconder oprocesso pelo qual o Brasil, livrando-se da tutela metropolitana de Portugal a partir de 1822,passou a ter uma ligao de dependncia muito forte, tanto econmica quanto poltica, emrelao Inglaterra.

    Livros didticos esclarecem satisfatoriamente a maneira segundo a qual isso se verificou apartir da transferncia da famlia real e da corte portuguesa para o Brasil (1808).

    Em 1860, do total de nossas importaes, 55% vinham da Inglaterra, enquanto 33% dasexportaes brasileiras se dirigiam para l.

    O Brasil transformava-se em amplo mercado de investimento de capitais para os ingleses.Eram eles que financiavam a construo de ferrovias e outros meios de transporte ecomunicao, bem como forneciam emprstimos classe rural dominante dos cafeicultores.

    No entanto, a hegemonia poltica e econmica da Inglaterra em todo o continente logo seriacontestada e posta em risco pelos USA, que j comeavam a deixar transparecer a grandepotncia que seriam no sculo seguinte.

    Exatamente a partir desse ponto que nosso passado comea a ser mais ou menoscamuflado ou interpretado de maneira um tanto quanto inocente (ou neutra demais) porescritores e educadores cujos trabalhos influenciam diretamente a formao poltica das novasgeraes. Fala-se muito da ao imperialista dos USA no continente americano em geral;pouco se diz, no entanto, quando essa mesma ao se verifica exatamente em relao aoBrasil.

    Nosso objetivo apontar algumas situaes histricas que at agora em geral nos foramomitidas. Voltemo-nos, ento, para o momento histrico em que no Brasil se processava omovimento da Independncia em relao a Portugal.

    Antes, porm, devemos deixar claro que, neste livro, estamos usando o termo imperialismocom o sentido de exerccio de influncia e/ou dominao que, em seu prprio benefcio,pases de industrializao mais avanada, mais ricos e militarmente mais fortes (chamadoscentrais) exercem sobre a economia, a poltica, a diplomacia e a cultura de outros menosindustrializados, mais pobres e militarmente mais fracos (os perifricos), objetivando aampliao de seus negcios e de seu poder no cenrio internacional. Pode haver ou noanexao de territrios e corresponde fase do capitalismo monopolista (sculos XIX eXX).

  • Uma das caractersticas das relaes imperialistas o intercmbio econmico desigual,pelo qual o pas dominado se transforma em mero fornecedor de matrias-primas e alimentose importador de manufaturados, tecnologia e capitais do pas dominador. Este ltimo, por suavez, tem o poder de influir sobre assuntos de interesse pblico do pas perifrico, opondo-se einterferindo nas tentativas de emancipao que porventura nele possam ocorrer, usando paraisso tanto presses diplomticas, sanes econmicas e campanhas publicitrias, como aindaoperaes secretas e intervenes militares.

    Alm do mais, a integridade do pas dominado sacrificada por todo um processo detransculturao forada, que se exercer nas mais amplas esferas, como nos setoreseducacionais, nos meios de comunicao de massa, no campo da cincia e tecnologia, naadoo de determinadas teorias filosficas ou polticas etc.

    Em 1823, o presidente Monroe (dos USA) afirmava que a Amrica para os americanos,demonstrando, assim, condenar tanto possveis tentativas de recolonizao do continente porantigas metrpoles europeias quanto qualquer interferncia exercida por elas na vida dasnovas naes. S um sculo depois iramos entender o real significado daquela afirmao: aAmrica para os americanos, sim, mas para os americanos l dos USA.

    Alis, no final da segunda metade do sculo XIX seus territrios j haviam se expandidopara oeste e sul prejudicando o Mxico, cujos habitantes at hoje repetem a famosa frase-denncia (ou frase-lamento) do seu presidente Lzaro Crdenas (1934-1940): Pobre doMxico! To longe de Deus, to perto dos USA!.

    Desfraldando a bandeira do destino manifesto, calcada na ideia de sua superioridademoral e civilizatria, os americanos passariam a se considerar responsveis pela missosalvadora de conduzir as naes vizinhas paz e ao progresso. Com essa argumentao iriamjustificar ou camuflar sua expanso econmica, poltica e cultural dentro do prprio continentee tambm em relao ao Extremo Oriente e terras do Pacfico.

    Os USA vo se tornando, a partir de ento, uma repblica imperialista, tendo j estendidoseus domnios e influncias sobre as Filipinas, o Hava, Cuba, Porto Rico e Panam.

    Trechos de um discurso pronunciado em 1898 por Albert J. Beveridge, mais tarde senadorpelo estado de Indiana, do uma ideia das verdadeiras razes que levavam seu pas a assumira postura missionria apregoada pela doutrina do destino manifesto:

    () As fbricas americanas esto produzindo mais do que o povo americano pode utilizar, o solo americanoest produzindo mais do que ele pode consumir. Foi o destino que traou nossa poltica de ao; precisamosobter uma poro cada vez maior do comrcio estrangeiro. Estabeleceremos postos comerciais no mundointeiro e eles se tornaro pontos de distribuio dos produtos americanos. Cobriremos os oceanos com nossamarinha mercante ()

    Intervindo na guerra de independncia de Cuba contra a metrpole espanhola, no incio do

    sculo XXI, os USA impuseram nova nao a Emenda Platt, mantida por 33 anos, durante osquais puderam interferir diretamente na poltica interna cubana sempre que isso lhes parecessenecessrio. Garantiam com a emenda seus interesses na produo do acar e na posioestratgica da ilha, cuja proximidade com o Panam facilitaria o controle sobre a rea onde seconstruiria o canal.

    Essa guerra hispano-cubana, alm disso, favoreceu tambm os USA, garantindo-lhes o

  • controle sobre Porto Rico.O imprio americano ia assim, aos poucos, delineando seus contornos. Para justificar todo

    esse expansionismo, Doutrina Monroe se juntou, em 1904, uma proposio reforadora quese tornou conhecida como Corolrio Roosevelt. Fundamentava-se a legalidade de qualquertipo de interferncia dos USA na poltica interna da Amrica Latina sempre que os interessesdo pas na regio estivessem em jogo.

    Essa interferncia, a partir da, se deu muitas vezes de forma direta e militar, como noscasos do Haiti, Repblica Dominicana, Nicargua e Guatemala. Era a diplomacia docanho, o famoso Big Stick ou Poltica do Grande Porrete. Na medida do possvel ela serealizava preferentemente por vias indiretas, com a presso sendo exercida nesse caso pormeio de emprstimos ou outros recursos econmicos.

    A diplomacia do dollar era mais sutil e muitas vezes at mais segura e eficiente do que ado canho. Tudo dependia das circunstncias e da postura do pas em relao aos valores deuma sociedade altamente civilizada, estvel e justa, como diziam que era a norte-americana.

    A proposio de Theodore Roosevelt deixaria bem claro o significado dessa ponderao:

    errneo dizer que os USA sentem necessidade de terras ou que alimentam, para com as outras naesdo hemisfrio ocidental, desgnios que no visam a sua prosperidade. Tudo que nosso pas deseja ver seusvizinhos estveis, dentro da ordem e da prosperidade. Se uma nao demonstra que