A introdução à estética musical

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES – DEPARTAMENTO DE MÚSICA CADEIRA DE ESTÉTICA DA MÚSICA A INTRODUÇÃO À ESTÉTICA MUSICAL DE MÁRIO DE ANDRADE PORTO ALEGRE, NOVEMBRO DE 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES – DEPARTAMENTO DE MÚSICA

CADEIRA DE ESTÉTICA DA MÚSICA

A INTRODUÇÃO À ESTÉTICA MUSICAL DE MÁRIO DE ANDRADE

PORTO ALEGRE, NOVEMBRO DE 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES – DEPARTAMENTO DE MÚSICA

CADEIRA DE ESTÉTICA DA MÚSICA

A INTRODUÇÃO À ESTÉTICA MUSICAL DE MÁRIO DE ANDRADE

GERSON TADEU ASTOLFI VIVAN FILHO

Trabalho apresentado para a avaliação na cadeira de Estética da Música, pelo Departamento de Música do Instituto da Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ministrada pelo professor Fernando Lewis de Mattos.

PORTO ALEGRE, NOVEMBRO DE 2011

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Através de todos os filósofos que percorri,

num primeiro e talvez fátuo anseio de

saber, jamais um conceito deixou de se

quebrar diante de novas experiências. Eu

não sei o que é o Belo. Eu não sei o que é

a Arte.

Mário de Andrade

O artista e o Artesão1

Eu tenho desejo de uma arte que, social

sempre, tenha uma liberdade mais estética

em que o homem possa criar a sua forma

de belezas mais convertido aos seus

sentimentos e justiças do tempo de paz. A

arte é filha da dor, é filha sempre de

algum impedimento vital. Mas o bom, o

grande, o livre, o verdadeiro será cantar

as dores fatais, as dores profundas,

nascidas exatamente desta grandeza de

ser e de viver.

Mário de Andrade

Posfácio para “Café”

1 Aula Inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, Universidade do

Distrito Federal, em 1938.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 1

2. O AUTOR ................................................................................................................ 1

2.1. O poeta: da Semana de Arte Moderna aos anos 40 ...................................... 1

2.2. O musicólogo: guru dos compositores modernistas ...................................... 3

3. A OBRA ................................................................................................................... 5

4. CONCLUSÃO ....................................................................................................... 12

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 14

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1. INTRODUÇÃO

A proposta deste breve estudo é, apesar das empenhadas tentativas de aprofundamento e da relativa riqueza de fontes consultadas, de cunho bastante superficial. Tanto a julgar pelo conhecimento limitado e em construção daquele que o escreve quanto pela proposta do trabalho: não quer nem pode almejar ser um estudo criterioso e estanque pelo próprio caráter intrínseco parcial que a proposta de uma resenha deve encerrar.

Em um primeiro momento, iremos nos ater a duas das principais dimensões do autor, que julgamos fundamentais à formação do pensamento estético de Mário de Andrade, assim como da aplicação prática desse mesmo pensamento: suas atividades poéticas e musicológicas. Na segunda parte, a análise da Introdução à Estética Musical restringir-se-á basicamente aos capítulos solicitados na Cadeira de Estética da Música, à qual serve o presente trabalho, a saber, os pontos de 1 a 4, não excluindo-se, todavia, a menção ou comentário a outras obras do autor. Em especial, traçaremos algumas breves noções a partir do texto O artista e o artesão, que revela o pensamento estético mais amadurecido de Mário de Andrade, já no final da década de 1930.

2. O AUTOR

2.1. O poeta: da Semana de Arte Moderna aos anos 40

Remetamo-nos ao ambiente da década de 1920, quando explodiria um dos movimentos mais cruciais na formação da arte brasileira contemporânea. Nesse primeiro momento, teve plano destacadíssimo a literatura, e, em especial, a poesia. Mário de Andrade, ao contrário de boa parte dos outros poetas de sua geração, saídos das Faculdades de Direito, teve por título de estudos superiores um curso de piano no Conservatório de São Paulo. Arrogava-se da condição de musicólogo, tendo mais tarde escrito relevantes ensaios acerca da música brasileira e sua história2, além de outros importantes livros e ensaios. Como poeta engajado no movimento da Primeira Geração Modernista e constante pensador do fazer artístico e da cultura, ele conseguiu traduzir sintética e brilhantemente o espírito do movimento modernista de 1922 em um único verso: “Sou um tupi tangendo um alaúde!”3.

Nesse sentido, “percebendo a arte e a literatura com uma dimensão coletiva e organizacional da sociedade, o escritor modernista pesquisa a arte e a cultura popular brasileira, utilizando sua produção literária como veículo agregador e formador da idéia de nação, através de conteúdos já presentes na alma do povo”4. Isso implica um consequente rompimento com a “arte culta” que se vinha praticando historicamente no país, de caráter essencialmente

2 Cite-se Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928, Compêndio sobre a Música Brasileira, de 1929, Música do Brasil, de 1941. 3 “O Trovador” (de Pauliceia Desvairada, São Paulo, 1922). Disponível em: <http://www.horizonte.unam.mx/brasil/Mário1.html>. Acesso em 22 out. 2011. 4 SILVA E ALVIN; RAMOS, 2009.

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europeu, com poucas e dificilmente bem-sucedidas tentativas de formação de uma identidade literária nacional com base na cultura popular, recorrendo-se não poucas vezes a estereótipos sociais, se não pejorativos, no mínimo ingênuos. Guardando-se louváveis e dignas exceções, a produção literária esteve muito ligada às elites econômicas, transparecendo um considerável desprezo em relação à tradição cultural oriunda do povo5. A obra de Mário reflete, assim, o ideal de ruptura presente no movimento modernista, tanto em relação à estética parnasiano-naturalista, quanto ao “comportamento social, decoroso e acomodatício, da nossa intelectualidade”6.

Tendo se abrandado a inicial efervescência, Andrade inicia um processo de ruminação e crítica do modernismo, e, consequentemente, de autocrítica. Como observa Benedito Nunes, “o tratamento pejorativo dos operários (...) revela-nos o caráter aristocrático, a ‘gratuidade antipopular’ do movimento de 1922 quando nasceu, conforme reconheceria o autor de As Enfibraturas ao fazer, em 1942, o retrospecto histórico da Semana”7. De espírito amadurecido, já distante das “juvenilidades modernistas”, nosso autor inaugura uma nova fase, mais consciente e social, numa busca de real aproximação com o povo. É precisamente nesse momento de amadurecimento e reflexão filosófico-artística e também da consolidação de uma carreira docente acadêmica que se dará o nascimento da “Introdução à Estética Musical”.

Se por um lado, esse amadurecimento da personalidade artística de Mário de Andrade lhe permitiu a transição para uma nova fase de produção artística e para uma nova concepção a respeito da função do artista, pendendo ora à expressão da subjetividade, ora ao cumprimento de um papel social ao qual toda arte estaria condicionada, por outro, ele nunca chegou a desmerecer completamente a importância da Semana de Arte Moderna. Analisando brevemente a história que se seguiu àqueles três dias, verifica-se que teve um papel importantíssimo, servindo de arrancada inicial a uma tomada de consciência cultural, mais elevada que o indianismo gratuito e ingênuo de outrora. Inegável é a determinância histórica e a influência basal do movimento na produção artística do século XX.

Mais a diante, à análise das compreensões estéticas do musicólogo, em especial em O artista e o artesão, essa auto-contradição entre teoria estética e obra prático-literária de Andrade irá se mostrar mais evidente. A observação de Dante Gatto faz-se pertinente:

“A falta de resolução dialética entre o seu individualismo e suas intenções sociais não lhe permitiu, por mais que quisesse, objetivar o próprio conselho [...] que consiste em aproximar a arte literária do povo. [...] Viveu, enfim, a utopia de uma consciência universal, em que o absoluto, aquela necessidade essencial de superação, seria acessível a todos os homens por meio da arte e lhes daria um sentido

5 Exemplo interessante é o caso do maxixe, dança popular carioca, considerada por Luís Cosme (1957) “o primeiro tipo de dança urbana criada no Brasil”, que, pela sensualidade de seus movimentos, escandalizou a elite social e intelectual, sendo censurado oficialmente, ao ponto de Ernesto Nazareth, segundo Carlos Sandroni (2001, pg. 79), “chamar todos seus maxixes de tango”, e muitos escritores, aí incluso Machado de Assis, nem sequer nominarem-no em suas obras literárias (AVELAR, 2006). 6 NUNES, 1984, pg. 2. 7 NUNES, 1984.

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profundo de estar no mundo. Viveu a utopia na mais profunda acepção da palavra, do homem da arte do povo.”8

2.2. O musicólogo: guru dos compositores modernistas

A questão central do pensamento do Mário de Andrade musicólogo em relação à música nacional era aquilo a que ele reiteradas vezes se referiu como movimento de universalização: a partir da pesquisa folclórico-temática do país, construir uma música nacional que, através de um diálogo com as linguagens artísticas contemporâneas, tornasse o material oriundo da cultura popular em conteúdo estético universal. No sentido da incansável busca e documentação desse material, é válido mencionar que as décadas de 30 e 40, especialmente, foram de intenso trabalho de pesquisa, registro e catalogação da cultura popular do Brasil, destacando-se a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938 e a fundação da Discoteca Pública Municipal.

Devemos, mais uma vez, ter em conta o ambiente musical em que o Brasil se encontrava, bastante fechado à estética das vanguardas européias, sendo a música voltada à pura satisfação da classe burguesa: era não muito mais que um artefato de valor utilitário, um pano de fundo à vida das elites. A arte como um todo era valorizada como “uma simples imitação da natureza”9. Arnaldo Contier10 lembra que, naquele contexto de pós-guerra (Primeira Guerra Mundial) e, por isso mesmo, de fortalecimento das identidades nacionais, não foi exclusividade brasileira a tentativa de formação de uma música “erudita” permeada de profunda ligação com o folclore das nações. Assim, teremos, por exemplo, Bartók na Hungria, Satie na França, Ginastera na Argentina.

Observa Contier que “O lema modernista ‘do nacional para o universal’, em sua essência, referia-se a uma circularidade de idéias estético-ideológicas surgidas, concomitantemente no pós-guerra (1918), por meio de uma circularidade de idéias estético-políticas, afloradas em muitos países da Europa Ocidental, Oriental e nas Américas.”11

Percebe-se claramente nos escritos que Mário deixou relacionados à teorização do modernismo nacional, a necessidade de uma, antes de estética, ética do músico, do compositor brasileiro. Ele acreditava que o verdadeiro artista devia, antes de tudo, respeito à obra de arte, e, ainda, despojar-se das suas vaidades artísticas de modo a coletivizar o seu destino: o individualismo puro, a “torre de marfim” dos românticos do século XIX era-lhe algo não só inútil e vão, como deplorável. É essa necessidade que o levará a engajar-se no projeto desastroso do Departamento de Cultura de São Paulo, em 1935, de onde seria demitido dois anos depois12.

Em relação à arte popular, antes da artificialidade com que tratam muitos dos românticos nacionalistas, notamos não só uma grande paixão como um profundo respeito, de maneira que “a idéia de arte popular não pode servir de álibi

8 GATTO, 2006. 9 CONTIER, 2004, pg. 4. 10 CONTIER, 2004, pg 11. 11 CONTIER, 2004, pg. 11. 12 SOUZA, 2005, pg. 4.

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para qualquer tipo de sentimentalismo e facilidade, da mesma forma que é rejeitada a noção de uma arte que se pretenda vinculada a eternidade e não ao seu tempo. Entre estes opostos, Mário se equilibra na tentativa de criação de uma estética.”13

É antes necessário, para ele, que o artista represente seu tempo e seu lugar, algo que ao decorrer de sua trajetória vai se transformando em um conceito de objetividade nacional. O artista deve criar a partir de sua experiência, não a partir de conceitos teóricos pré-formulados e isso, no fundo, significa criar a partir da cultura popular, visto que ela é, com efeito, a experiência do criador. A ideia, todavia, não “quer dizer obrigatoriedade de produzir-se música que tenha caráter étnico. Trata-se de utilizar o material popular não para mimetizá-lo, mas para produzir cultura erudita.”14. Nesse sentido, ainda, deve se estabelecer, um processo dialético, de retroalimentação entre arte popular e arte “erudita”. Existe cultura erudita, mas não existem assuntos eruditos; assim como não existem exotismos15.

Tal projeto encontra, porém, um obstáculo: falta originalidade à civilização brasileira. Ela é, na expressão de Mário, uma civilização de empréstimo cujo desenvolvimento é artificial e mais ou menos forçado. Falta a ela, inocência. A música, por exemplo, não teve como se desenvolver livre de preocupações quanto à afirmação social e nacional. Ela teve que instrumentalizar-se para alcançar seus objetivos e tal postura gerou em algumas ocasiões, o artifício e a imitação.16

Em seu ensaio Evolução Social da Música no Brasil, de 1939, Mário pontua a dificuldade da afirmação nacional encontrada nos países americanos, coisa que a Europa não sofreu, pois o desenvolvimento de sua música foi bastante inconsciente. A América tem uma “civilização de empréstimo”17, e, dessa maneira, necessita realizar um esforço no sentido de construir uma identidade musical que seja universalizável. Nesse ponto, todavia, Mário coloca que propriamente “não há música internacional e muito menos música universal; o que existe são gênios que se universalizaram por demasiado fundamentais, Palestrina, Bach, Beethoven [...] Porém, dentro dessa internacionalidade, tais músicos não deixam nunca de ser funcionalmente nacionais”.18 É inevitável!

A proposta Márioandradiana de construção de uma música erudita verdadeiramente brasileira encontrará cânone inicial em Villa-Lobos, Guarnieri, Luciano Gallet e Lorenzo Fernandez, seus contemporâneos, que ele indica como “a fase nacionalista pela aquisição de uma consciência de si mesma” e acrescenta: “ela terá que se elevar ainda um dia à fase que chamei de Cultural, livremente estética, e sempre se entendendo que não pode haver cultura que não reflita as realidades profundas da terra em que se realiza”19. Nesse ponto de evolução, a música Brasileira deixaria de ser nacionalista, para se tornar nacional, pois tudo que é nacional, só o é porque é vivo20.

13

SOUZA, 2005, pg. 9. 14

SOUZA, 2005, pg. 15. 15 SOUZA, 2005, pg. 18. 16

SOUZA, 2005, pg. 26. 17 ANDRADE, 1965, pg. 15. 18

ANDRADE, 1965, pg. 29. 19

ANDRADE, 1965, pg. 35. 20 “A língua realmente viva, a que vive pela bôca e é irredutível a sinais convencionais, é o que dá o sentido expressional duma nacionalidade” (ANDRADE, 1965, pg. 122). Mário, analogamente, propôs a

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Esse grupo de compositores, evidentemente, sofreu certa influência de Mário de Andrade, em especial do Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928. É possível notas em Villa-Lobos, por exemplo, que concentrou sua música basicamente sobre a música popular urbana, especialmente nos Choros, uma das melhores representações do pensamento marioandradiano, seja na politonalidade e polirritmia, que explorou muitos aspectos dos ritmos sincopados da música popular, seja nas formações instrumentais totalmente inusitadas à tradição europeia, como, por exemplo, a combinação de flauta e clarineta – bastante comum nas rodas de choro – nos Choros nº2, obra de 1924, dedicada, não por coincidência, a Mário de Andrade.

Todavia, o Ensaio, teve talvez até mais influência sobre a geração de compositores ulterior à de Villa-Lobos, aquela que incluiu os dissidentes do Grupo Música Viva. Guerra-Peixe, por exemplo, faz citações literais de Mário de Andrade em seus escritos dedicados ao comentário de sua própria obra, em especial no que se refere às três fases da “arte nacionalizada”: tese nacional, sentimento nacional e inconsciência nacional. Ainda que tenha aderido mais tarde à estética do húngaro Georg Lukács, o pensamento de Mário continuará arraigado até nas suas últimas obras.21

3. A OBRA

A Introdução à Estética Musical não é nem o primeiro nem o último intento de Mário de Andrade numa teorização nesse sentido. As reflexões estéticas de Mário de Andrade, estão esparsas em uma série de obras, como em Klaxon, A Escrava que não é Isaura¸ Ensaio sobre a Música Brasileira,

Pequena História da Música, e sua notabilíssima aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, Universidade do Distrito Federal, de 1938, intitulada O artista e o artesão, deságue de todo o pensamento que veio desenvolvendo nos textos anteriores. Não obstante, a documentação das entrevistas e a recuperação de correspondência revelam uma preocupação constante do autor pelos problemas da estética22:

No período que vai de 1938 até 1945, as reflexões Márioandradianas sobre a arte ganharam amplitude ainda não experimentadas. Foi momento também marcado pela desilusão de projetos frustrados, pela tensão provocada pelo Estado Novo no meio intelectual, pela expectativa dos desdobramentos da Guerra, pelas confissões pessoais de desamparo, e, por fim, pela doença que o levaria à morte.23

Aliás, note-se que, publicada post-mortem, essa obra é, antes, o material didático para os seus cursos de Estética, enquanto lecionou. Tendo sido aluno graduado na cadeira de piano do Conservatório Dramático e Musical de São

ideia de uma Gramatiquinha Musical do Brasil por parte dos folcloristas e compositores, no sentido de ter por base do projeto estético essa música que seria nacional, viva de fato. 21 Acerca do tema, leia-se o excelente artigo de VETROMILLA, Clayton. Guerra-Peixe: considerações sobre o conceito de “objetividade folclórica”. Per Musi, Belo Horizonte, n.14, 2006, p.82-92 22 GATTO, 2006, p.2. 23 GATTO, 2006, p.2.

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Paulo, Mário de Andrade é nomeado, no mês que antecede a Semana de Arte Moderna, em 20 de janeiro de 1922, no mesmo conservatório, professor das cadeiras de Dicção, História do Teatro, Estética e História da Música.

As leituras na biblioteca do Conservatório (...) documentam parte da formação intelectual de Mário de Andrade. Na bibliografia de Na

pancada do ganzá e do Dicionário musical brasileiro, ordenada originalmente pelo autor, é possível rastrear a leitura de títulos ausentes de sua biblioteca pessoal, mas localizados entre os exemplares da instituição. Muitos desses títulos são fundamentais para compreender a estrutura de seu pensamento musical, como, por exemplo, Le langage musical: étude médico-psychologique, de Ernest Dupré e Marcel Nathan e Die Anfänge der Musik, de Carl Stumpf, ambos, edições únicas publicadas em 1911.24

O período de 1928 mostrou-se para ele uma ausência de rumo afundada em solidão, uma sensação de inconformidade, aliada a um desértico areal de incertezas, sobre o qual caminhava, em especial no tocante a sua carreira literária, seis anos após o momento eufórico da explosão modernista. Encontra refúgio na docência musical:

“Tem um temperamento socrático, gosta muito de ensinar e quando leciona acha fácil dialogar com os alunos ou consigo mesmo, recapitulando as incertezas, reformulando os conceitos, enfrentando os riscos inevitáveis da afirmação e da dúvida. (...) A elaboração do compêndio, que agora se impôs veio a reafirmar nele o senso dos problemas, a convicção de que não se ensina Música, se ensina Arte.”25

Gilda de Mello e Souza, no prefácio à obra, chama a atenção para o fato de nessa Estética o autor omitir quase por completo o nacionalismo que ocupara, há não muito, lugar central nas suas teorizações anteriores.

É importante notar como Mário esteve nesse momento de sua vida vinculado tanto a uma instituição extremamente tradicional, o conservadoríssimo Conservatório, quanto ao movimento mais escandaloso e revolucionário daquele momento, o Modernismo antropogáfico de 22. As duas atividades concomitantes, de professor e poeta, terão reflexo no desenvolvimento de seu pensamento. Em 1924, leciona num curso particular de Estética e História da Música a um grupo de moças.A preparação dessas aulas as quais “por excesso de escrúpulo e incapacidade de improvisação, habituou-se a redigir [...] uma por uma”26.

Flavia Toni, a organizadora da publicação da obra, em 1993, conta:

Graças à gentileza dos professores Gilda de Mello Souza e Jorge Coli pude analisar os cadernos de apontamentos de duas aulas de Mário de Andrade, cadernos importantes para o conhecimento da gênese da Estética. [...] após interromper no quarto ponto, deixa no caderno uma

24 BARONGENO, 2010, pg. 3. 25 SOUZA, 1993, XVI. 26

MELLO E SOUZA, 1993, XII.

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versão nova do primeiro, [...] texto bastante semelhante ao do capítulo inicial na datilografia do autor no ensaio que prepara para publicar e deixa inédito. 27

Fica evidente, que, dos projetos que Andrade executou para seus cursos tiveram influência direta na redação da Introdução, assim como fica claro também que era intuito do autor publicá-la, pela existência de um datiloscrito original com vistas de um projeto de publicação, e pelo exame de correspondência com Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Luís Câmara Cascudo.28

A Introdução à Estética Musical é, portanto, uma obra notadamente didática. Está dividida em seis partes – que no projeto inicial eram nove –, a saber, “Da Estética”, “Do Belo”, “Da Arte”, “Da Música”, “A Manifestação Musical” e “Do Ritmo”.

Um aspecto desse texto já percebido de início se revela na linguagem adotada pelo autor, que não é pura obra de acaso, senão que representa já em si um elemento da sua concepção estética e de seu pensamento, por que não, filosófico-linguístico. É importantíssimo ter sempre em mente que nenhuma decisão na elaboração de uma obra reina o imperativo da aleatoriedade; outrossim, cada passo da elaboração do material, desde a estruturação do conteúdo à redação do texto, reflete uma determinada postura ideológica, que, de forma consciente ou nem tanto, é transparecida pelo autor. Como nos aponta Gilda de Mello e Souza, “O conceito de brasilidade de Mário de Andrade era complexo e integral, mas não impediu que um de seus [...] se transformasse em motivo de discórdia dentro do grupo modernista. Nenhum dos companheiros aceitava sem reservas a sistematização da fala brasileira que ele procurava impor, e provavelmente só Manuel Bandeira continuava lendo e discutindo, com disciplina e lucidez, os prefácio e as notas que acrescentava aos trabalhos.”29

Notável, ainda, é a influência de Charles Lalo (1877-1973), autor não muito reputado e bastante desconhecido atualmente, a cujas ideias Mário, de praxe, se filia, citando com muito respeito. Será também bastante citada a obra de Leon Tolstoi, “O que é arte?” de 1916, à qual o autor teve acesso em versão italiana.

Em todos os quatro primeiros capítulos, Mário inicia com uma definição direta e bastante geral, da qual desenrola o resto do capítulo. Assim, essas quatro definições são as seguintes: “Estética é a disciplina do saber que estuda a arte”, “Belo é uma circunstância fisiológica que agrada imediatamente a uma necessidade superior e sem interesse prático do ser racional”, “Arte é a expressão livre e sem interesse imediato do ser racional” e a “Música é a Arte dos sons em movimento”. Esses postulados, que a princípio parecem ser colocados por algo definitivo30, serão, dentro dos capítulos, discutidos e

27

TONI, 1993, XXIV. 28 TONI, 1993, XXV. 29 MELLO E SOUZA, 1993, XV. 30 Ele próprio, em seguida, explica: “Ninguém mais hoje pode acreditar que uma definição contenha o significado total geral e particular duma coisa. [...] Por isso desde logo dei a da Estética. Procurei abrandar o terreno pra chegar ao objeto dela...” (ANDRADE, 1995, p. 6).

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ratificados. Os quatro capítulos compõem a primeira parte do texto, o que Mário chama de uma parte mais abstrata e conceitual. Os dois capítulos que se seguem tratam da Manifestação Musical (que ele divide entre quatro entidades: o criador, a obra de arte, o intérprete e o ouvinte) e do Ritmo, de forma mais concreta.

O Capítulo dedicado à Estética traça uma sucinta trajetória, mencionando a presença, apesar de não nomeada, da preocupação Estética, desde os primórdios da filosofia, quando, junto do Bem e da Verdade, o Belo figurava entre as “evidências psicológicas”. De especulação metafísica, a “estética antiga” passa a considerar os fatores psicológicos, da experiência, no sentimento do Belo. Comenta a psicologia biológica de Spencer31, em contraposição ao concomitante “cientismo exagerado”, que ele simboliza na figura da section d’or de Zeising, que Mário define por “relação entre dois números na qual o primeiro está pro segundo como este está para ambos”, pela qual Zeising teria julgado “descobrir essa fórmula nas proporções do corpo humano nos animais nas plantas nos minerais e nas obras-primas da Arte”.32 “Muito engraçado”, comenta. É difícil compreender o que surpreende Mário, pois a ideia é muito semelhante àquela da proporção áurea, que, vinda dos gregos, foi internalizado pelas artes, perpassando várias das manifestações até hoje.

Dessa exposição, ele depreende dois métodos básicos da Estética: o filosófico e o experimental, que não são opostos ou contraditórios, mas se completam, visto que a experiência estética é mutável temporal e espacialmente. A Estética filosófica “substitui regra por norma, ordem por desejo”. Assim, o ponto perfeito está no balanceamento, na ponderação dos dois métodos.

Para tentar explicar a aparente oscilação do objeto da Estética entre o Belo e a Arte, Mário recorre à ideia de que a Verdade, o Bem e o Belo são ideias morais que existem como elementos de normalização do homem, para as quais o homem buscou criar disciplinas que as conhecessem (ciências morais ou normativas), visto que enxerga nelas a felicidade. As duas primeiras teriam originado a Lógica e a Moral. O Belo, porém, porque “não implica atividade ou

melhor a ação, o fazer humano”, não pode ser objeto da Estética, tem uma manifestação concreta, que é a Arte. Quando o homem, buscando a felicidade, se serve do belo para agir, cria a Arte, que é o objeto da Estética.

Definido o objeto, Andrade deixa claro que a Estética é una, mas usa-se dividir a fins de estudo, e assim, a Estética Musical é aquela que se aplica ao estudo do fenômeno musical. Traçando breve histórico, chama a atenção ao fato de que, para os antigos, a música era “entidade numérica”, entendida apenas sob os aspectos da aquisição de sons e construção de escalas: era uma entidade

31 Segundo a organizadora, a “genial definição de Spencer” de que Mário fala é, na verdade, aquela à qual ele teve acesso através da obra O que é arte?, de Leon Tolstoi, que se transcreve: “Para Spencer, a origem da arte é a brincadeira [...] Nos animais inferiores, toda a energia da vida é gasta em manter e continuar a própria vida; mas, no homem, depois que essas necessidades são satisfeitas, resta uma excedente energia. É esse excedente que é usado na brincadeira e que passa para a arte. A brincadeira é uma cópia da ação real; a arte é o mesmo” (TOLSTOI, 2002, p. 56). 32 ANDRADE, 1995, p.4.

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abstrata. Os Gregos se preocuparam com os efeitos morais da música33. Com a modernidade, une-se a parte matemática e física à psicofisiológica e sociológica, sendo que hoje a Estética musical “é a mais desenvolvida e rica” das estéticas aplicadas. Frisa que, ao contrário do que pensa Riemann, a estética deve se basear sobre a técnica.

É na última seção desse capítulo (Necessidade da Estética Musical) que encontramos a primeira reflexão estética mais propriamente Márioandradiana e pessoal. Para ele “Todo músico sabe Estética musical e sabe a dele”, senão “não é músico”34, fazendo-se o estudo sério da Estética cada vez mais necessário, vista a propensão do moderno à “ilusão de liberdade absoluta”. Observa da mesma forma uma tendência atual em seu tempo de um esteticismo exagerado, no qual as teorias dominam e “pesam sobre as asas da inspiração. Dá o exemplo de Schöenberg e seu dodecafonismo, concluindo com duas reflexões dignas de nota. Primeiro aduz que “o que carece no aprendizado de uma teoria é saber

ignorá-la em seguida”, coisa a que, podemos dizer seguramente, ele mesmo praticou ao longo de sua vida, e, por isso mesmo, o vemos, ao longo dos anos, transformando suas noções, descobrindo e reconhecendo seus equívocos do passado. É uma lição de constante aperfeiçoamento pessoal.

E, ao final, brinda-nos com uma belíssima ilustração, inclusive, uma das únicas mostras de conteúdo nacional-folclórico nessa sua obra:

É das águas fundas da subconsciência que surge a Iara da inspiração. A Iara nasceu duma sucuriju? dum boto? duma piranha? Quem que sabe! É certo que nasceu feia vestida de medo fazendo mal pros homens, ruim. Porém a lenda que o índio criou lhe descobre sob as ondas dos cabelos verdes uma mulher bonita. A inspiração nasce livre e informe. É o saber que lhe dá a forma propícia que vai despertar o máximo de amor nos homens e os levará pela contemplação desinteressada. É então que a Iara se põe a cantar e encantar. A inspiração não é bela nem feia. A inspiração é uma fatalidade. A Beleza é uma conseqüência da inspiração de que o espírito regido por necessidades superiores faz com uma obra-de-arte.35

O Capítulo que trata do Belo é bem mais breve, atendo-se a três pontos básicos. Primeiro, distingue dois sentidos do Belo: um geral – “tudo o que desperta um prazer deslumbrado em nós” – e um mais específico – o que desperta prazer em um sentido “superior”, um prazer sem interesse prático e imediato. Num segundo momento, se baseando novamente em Lalo, define Sensação Estética como “é o ser inteiro que a gente projeta sobre o objeto do nosso pensamento pois que o Belo nos prende sem reservas e é essa a sua mais primeira e mais profunda característica” e acrescenta que “o Belo não reside nem dentro da gente nem no mundo exterior, porém na relação estabelecida entre essas duas entidades”36 .

33 É provável que aqui se refira à parte da República de Platão em que Sócrates e Glauco definem as harmonias (modos) e ritmos moralmente desejáveis, ao Livro V da Política de Aristóteles e à segunda parte da sua Retórica. 34 ANDRADE, 1995, p. 10. 35 ANDRADE, 1995, p. 11. 36

ANDRADE, 1995, p. 16.

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É no terceiro ponto que diferencia-se as sensações estéticas puramente sensuais, elementares (percepção da linha, da cor, do som,...), daquelas mais elevadas, que ele chama “sensações estéticas propriamente ditas” que nada mais são que a combinação dessas elementares entre si. O objeto que percebemos produz em nós sensações simultâneas provenientes de sua forma e universalidade. Julgamos pertinente mencionar, talvez em dissonância com o autor, que, mesmo dotado da universalidade, a noção daquilo que é o belo, evidentemente é uma noção temporal e geográfica, assim como o é a toda e qualquer noção moral. Nesse sentido, podemos ainda aduzir uma constante, se não expansão, remodelagem das fronteiras do Belo.

Por conseguinte, a Arte é a expressão desse Belo livre e sem interesse imediato. Para Mário de Andrade, a felicidade é “o instinto mais primeiro e irracional de todo ser vivo”. Toda criação humana – até mesmo a criação prática - é expressão e, por isso mesmo, individual e nacional. São estabelecidos duas propriedades psicológicas da Arte: imitação e prazer. Em toda expressão humana, inevitavelmente, há imitação pois “o homem expressa o que sente e sente o que percebe”. A dimensão do prazer se encontra precisamente em adicionar elementos desnecessários que torne os objetos, além de úteis, agradáveis. Nas manifestações artísticas rudimentares, a mímesis não é com relação à natureza, mas aos fatores diretos do Belo. O que o homem primitivo reproduzia eram os seus desejo, seus ideais práticos.

A arte nasce de três necessidades: de expressão (o que diferencia os homens dos animais: controle da expressão), de prazer (interesse idealizado, que tende para o melhor) e de comunicação (entre homens e homens, e entre homens e entidades superiores). O primitivo não dissocia interesses imediatos de mediatos: o Bem do Belo. Nas primeiras civilizações, a arte ainda é utilitária, e, para alcançar esse fim, o artista não é um ser que obedece aos seus impulsos individuais: ele é um operário das necessidades líricas e religiosas do povo e o artista é uno (é poeta, músico e dançarino). Nota-se, todavia, a dissociação da arte e da utilidade a partir da especialização em uma única arte sobre a qual o “artista duma Arte só principia a brincar e a virtuosidade aparece”.

Em O artista e o artesão, Mário irá definir o que ele chama de “três manifestações diferentes ou três etapas” da “técnica de fazer obras de arte”37: o artesanato

38, a virtuosidade39 e a solução pessoal do artista

40. Ao longo do discurso, ele irá reafirmar inúmeras vezes que o verdadeiro objeto e fim da arte é, precisamente, a obra de arte, entendendo haver “falta de uma atitude verdadeiramente estética na maioria dos artistas” seus contemporâneos, no sentido em que transformam eles próprios em objeto da arte, demonstrando, ao seu ver, puro orgulho e vaidade.41

37 ANDRADE, 1938. 38

“O artesanato é a parte da técnica que se pode ensinar.” (ANDRADE, 1938) 39

“... conhecimento e prática das diversas técnicas históricas da arte.” (ANDRADE, 1938) 40 “Esta parte da técnica obedece a segredos, caprichos e imperativos do ser subjetivo, em tudo o que ele é, como indivíduo e como ser social. Isto não se ensina e reproduzir é imitação.” (ANDRADE, 1938) 41 “Hoje, o objeto da arte não é mais a obra de arte, mas o artista. E não poderá haver maior engano. Faz-se imprescindível que adquiramos uma perfeita consciência, [...] uma atitude estética disciplinada, apaixonadamente insubversível, livre mas legítima, severa apesar de insubmissa, disciplina de todo o ser, para que alcancemos realmente a arte.” (ANDRADE, 1938)

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Sendo assim, a etapa do artesanato, do próprio domínio da técnica tem papel fundamental, necessário à realização da obra de arte, é imprescindível para que exista um artista verdadeiro, de forma que “nos processos de movimentar o material, a arte se confunde quase inteiramente com o artesanato”42. Este último se compõe de ensinamentos dogmáticos, cuja negação é “sempre prejudicial à obra de arte”43. A abstenção em relação ao artesanato, para ele, só prejudica a obra, mas não o artista. Nesse sentido, é fácil compreender o pessimismo com que Mário vê o período romântico oitocentista44 – que significou o exagero da dimensão que ele chamou solução pessoal do artista, dando espaço ao surgimento de inúmeros artistas medíocres – e a nostalgia com que fala do classicismo45 – um quase-extremo oposto a essa ideia: tem plena consciência do artesanato, e o coloca em plano de primado absoluto – explicitados na sua Pequena História da Música.

Mário aponta também para os perigos da virtuosidade, que:

“pode levar o artista a um tradicionalismo técnico, meramente imitativo, em que o tradicionalismo perde suas virtudes sociais pra se tornar simplesmente ‘passadismo’[...], "academismo"; como porque pode tornar o artista uma vítima de suas próprias habilidades, um "virtuose" na pior significação da palavra, isto é, um indivíduo que nem sequer chega ao princípio estético, sempre respeitável, da arte pela arte, mas que se compraz em meros malabarismos de habilidade pessoais, entregue à sensualidade do aplauso ignaro.”46

De volta à questão da dissociação arte-utilidade, umas últimas considerações são feitas: tendo se desintegrado do condicionamento à vida prática, tornando-se expressão de espírito livre e acidental, a arte fez-se cada vez mais livre e continua fazendo-se. É por isso que o seu conceito atual é o de “expressão livre e sem interesse imediato do espírito”. É assim que a intuição é inerente e necessária à produção artística. E a expressão não é a origem, e sim o fim do fenômeno artístico, que se realiza através do Belo. Então, para que a ideia de arte seja compreendida, deve ser dissociada do Belo: o Belo não é o fim da arte, pois essa é o “conhecimento virtual da vida idealizada”47. O capítulo finaliza com uma crítica contundente à arte-pura, que o autor considera pobre por apenas realizarem o Belo e nada mais. Diz Mário dos partidários dessa estética: “o mal foi que emperrados dentro duma teoria não foram bastante criadores ou bastante livres para se livrarem dela. [...] Se esqueceram que a arte

42

ANDRADE, 1938. 43

Ibidem. 44

“...os preconceitos e falsificações estéticas da música romântica diminuem o valor, irregularizam muito a produção musical do séc. XIX; e os compositores menores do Romantismo nos parecem, quando não insuportáveis, no geral destituídos de intêresse” (sic). (ANDRADE, 1951, p. 118) 45 “O que caracteriza o classicismo dele é ter atingido, como nenhum outro período antes dele, a Música Pura, isto é: a música que não tem outra significação mais do que ser música; que comove em alegria ou tristeza pela boniteza das formas, pela boniteza dos elementos sonoros, pela força dinamogênica, pela perfeição da técnica e equilíbrio do todo. [...] O século XVIII é um tempo em que todo músico escrevia bem! [...] O que faz essa gente do século XVIII parecer mais numerosa e excepcional é ter o classicismo equilibrado, enfim o conceito estético da música com a realidade dos elementos sonoros e o efeito deles no organismo”. (ANDRADE, 1951, p. 117-118) 46

ANDRADE, 1938. 47 ANDRADE, 1995, p. 31.

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é expressão e conhecimento. Por isso os Kandinskis, os Lagers morreram de pobreza”48.

A música, por fim, como arte, deve ser uma expressão, e, sendo assim, objeto não só de conhecimento como de compreensão. Todavia, a compreensão musical não é textual, a consciência não pode determiná-la, senão de maneira vaga associada aos outros sentidos. Para Andrade, essa compreensão não é consciente, mas fisiológica. É uma arte sintética:

Procurando um símile que nos possa auxiliar neste trabalho aparece logo a palavra, irmã-gêmea da Música, tendo ambas nascido juntas do mesmo grito inicial. [...] O grito só deixou de ser ato reflexo e se tornou expressão quando foi intelectualizado, isto é, se tornou consciente. [...](Todavia) ao passo que esta (palavra) se transformou em símbolo de necessidade imediata [...], o som seguia direto em busca de necessidades superiores do espírito e procurava satisfazê-las.49

A música funde o ser psicológico e o fisiológico; seus elementos, por si só estilizações de elementos naturais. Todavia, mesmo inconsciente, a expressão musical, ainda que vaga, é plena de valor, passível de compreensão intelectual, tendo profundos efeitos fisiológicos: ela “é compreendida como intuição pura pela subconsciência.”50 A música realiza-se através de ideias musicais, que se compreendem apenas dentro de sua própria linguagem, e não conscientemente, coisa que é possível nas outras artes: a compreensão musical só é possível através de uma consciência musical. 51

4. CONCLUSÃO

À guisa de uma reflexão final, faz-se de estimado interesse uma breve análise da Oração de Paraninfo dos diplomandos do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, no ano de 1935, intitulada Cultura Musical. O autor fala de uma “radical transformação” que teria se dado em sua existência e o motivado a “revelar coisas escuras”52. Deduz-se que essa transformação de que ele fala seja o início de seu trabalho no Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo53:

“Sempre conservara a ilusão de que era um homem útil apenas porque escrevia no meu canto, livros de luta em prol da arte, da renovação e da nacionalização do Brasil” e que desenvolvera uma “filosofia egoística, de espírito eminentemente esportivo, que fizera de mim literalmente um gozador [...], afortunado duma fartura vaidosa de ilusões e defesas pessoais. [...] E já agora, com um sentimento menos

48

ANDRADE, 1995, p. 32. 49

ANDRADE, 1995, p. 46. 50

ANDRADE, 1995, p. 51. 51

ANDRADE, 1995, p. 51. 52 ANDRADE, 1965, p. 235-236 53 “O autor acreditava [...] que é preciso ‘fazer com que o povo viva sua cultura, pois só assim poderá se reconhecer como nação’, o que fica claro com as obras que realiza entre 1935 e 1937, período em que atua como diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, dando continuidade objetiva às suas idéias.” (SILVA E ALVIM; RAMOS, 2009, p. 5)

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teórico da vida, [...] eu só posso, não perdoar-me, porém me compadecer do que fui, lembrando a escuridão da minha total ignorância: eu não sabia!”54

Inicia-se, assim, uma sustentada crítica à concepção utilitarista e vazia em relação à arte presente na sociedade em que se encontrava, mas, de igual modo, bastante presente para nós mesmos que, como observa Harnoncourt, ouvimos muito mais música, mas, por isso mesmo, muito menos55. “Não tive até hoje um só aluno que me respondesse ter vindo estudar música!”, coisa que ele considera o símbolo da situação precária da nossa “moral cultural”, de modo que os alunos buscam no Conservatório um fim único, vaidoso, sacrificador dos valores nobres da arte pela esperança de um aplauso público: a busca por aprimorar a técnica de um instrumento, reflexo de uma “confusão moral entre música e virtuosidade” em que a “glória é uma palavra curta em nosso espírito, e significa apenas aplauso e dinheiro”.

“Não se ensina música no Brasil, vende-se virtuosidade”, vive-se de uma total ignorância à verdadeira cultura musical, e “em vez de buscarem na música as elevações morais e sociais da arte, só buscam a sensualidade dum malabarismo virtuosístico”. Mário defende a oficialização do ensino musical, a proteção estatal aos conservatórios, visto que aguardar pelo mecenismo privado, em geral, não “permite garantir quaisquer esperanças”: o privado vive de uma caridade assustada, supersticiosa; “ninguém compreende a existência como uma luta, mas como um perigo de ir para o inferno”.56

Nesse sentido, defende, apesar de num plano teórico ser contrário à “intromissão” das escolas de artes nas universidades, a necessidade de existência universitária do músico brasileiro, numa época em que o ensino da música restringia-se, quase sempre, aos conservatórios: “o nosso músico precisa imediatamente contagiar-se do espírito universitário, porque a inobservância do nosso músico quanto a cultura geral é simplesmente inenarrável”. Além de fechar-se no mundo da música, restringe-se, seguidamente, à parte da música que se especializou, “uma vaidade de zepelin sozinho no ar”57. Mário apela aos alunos formandos:

“Eu não vos convido siquer à felicidade, pois que da experiência que dela tenho, a felicidade individual me parece mesquinha, desumana, muito inútil. [...] eu vos trago o convite da luta [...] por uma realidade mais alta e mais de todos”.58

A reflexão estética presente na documentação do pensamento de Mário de Andrade, revela-se-nos “estética” num sentido abrangentíssimo, mostrando-se preocupado com todas as etapas e dimensões da arte musical: da produção à percepção, dos fenômenos auditivos à situação social da música. Isso tudo derivado de um homem que vê esse mundo de forma tanto interna quanto externa. Mário transita bastante e bem entre os variados campos artísticos de

54 ANDRADE, 1965, p. 237 55 “Ouvimos, atualmente, muito mais música que antes – quase ininterruptamente – mas esta, na prática, representa bem pouco, possuindo não mais que uma função decorativa.” (HARNONCOURT, 1988, p. 13) 56 ANDRADE, 1965, p. 240. 57 ANDRADE, 1965, p. 242-243. 58 ANDRADE, 1965, p. 246.

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forma a, mesmo tratando de forma específica da Música, despertar uma problematização estética que engloba o mundo da arte como um todo.

A vasta experiência como instrumentista não profissional, professor de música, teorizador e concretizador de uma arte nacional, e, talvez mais ainda, ouvinte, aliada ao constante questionamento da realidade e da vida cultural em que se insere, deixou-nos em sua obra herança preciosa, fonte para reflexões extremamente atuais, ainda que não exaustivamente aprofundadas. Com efeito, podemos aduzir que sua principal virtude está precisamente nessa reflexão contingencial e integrada das dimensões da música, assim como de suas relações exteriores, fugindo ao comum hermetismo com que atuam muitos daqueles que se dedicam ao aprofundamento.

Vosso domínio é a música, e infame será quem julgar menos útil cuidar da

música que do algodão. Tanto num como noutro destino, encontrareis sempre,

como fim final de tudo, a humanidade. E todos os sacrifícios que me custaram

as frases desse discurso, todos eu fiz por vós, fiz contente, buscando abrir-vos

de par a par, em toda a sua soberania insaciável, as portas da humanidade.59

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Mário de. Pequena História da Música. São Paulo, Martins, 1951.

59

ANDRADE, 1965, p. 246.

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