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Capítulo III – A Transmutação Televisual do livro “Conjunções, Disjunções, Transmutações – da literatura ao cinema e a TV”,
de Anna Maria Balogh.
Algumas Observações sobre a “Linguagem Televisual”
A intenção ao discorrer sobre este tema não é a de fazer um estudo exaustivo, mas apenas
recolher elementos para uma visão mais acurada da transmutação televisual. O que se
denomia de modo impreciso de “linguagem televisual” nada mais é do que um vasto
amálgama das linguagens prévias do rádio, do cinema, dos quadrinhos ou daquelas que
foram surgindo paralelamente à TV ou junto com a TV, como a do videoclipe e a da
computação gráfica, entre outras. Todas elas formas incorporadas ao quotidiano da TV em
sua insaciável voracidade.
A Intertextualidade Televisual
Na TV temos um mosaico de programação no qual cada programa convive necessariamente
com o programa que o antecede e o que o segue na emissora e, a princípio, esse programa
disputa a primazia da atenção do telespectador com todos os outros programas das demais
emissoras que são veiculados no mesmo horário. Esse quadro delineia uma relação
intertextual muito mais concreta e tensa do que aquela existente no cinema. O telespectador
sabe que um mero zapping o coloca de imediato em contato com qualquer programa
disponível. Atualmente a tecnologia levou a questão ao delírio porque não há mais
necessidade sequer do controle remoto. As TVs “Picture in Picture” se encarregam de
oferecer ao espectador a oportunidade de assistir simultaneamente a programas de
diferentes canais. Essa alta taxa de competitividade gera estratégias de programação e
contraprogramação bastante pesadas, cujos resultados incidem diretamente sobre os
programas de TV, menos independentes que os filmes em geral.
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O Palimpsesto1
Os críticos que mais têm-se dedicado ao estudo da televisão na atualidade utilizam, com
freqüência, em suas análises o termo palimpsesto quando há referência aos tipos de
mosaico televisual (palimpsesto rígido vs. Palimpsesto flexível) ou ainda quando se fala das
estratégias de programação em sincronia e diacronia na TV, mas sobretudo quando se tem
em mente a substituição de determinadas serialidades por outras. O termo é muito usado,
mas pouco definido, por isso recolheram-se as referências mais claras e explícitas, tal como
seguem.
Para Lorenzo Vilches, o termo palimpsesto significa que:
(...) la televisión no borra nunca el texto primitivo y las nuevas
producciones no logran ocultar las huellas del texto subyacente
que pervive más allá de los cambios políticos y gerenciales.
O teórico afirma ainda que a série responde à demanda do palimpsesto:
(...) las estructuras de programación fija de la televisión, por lo que
terminada una serie se reemplaza por otra de características
similares a fin de no desequilibrar los porcentajes de género ya
preestablecidos.
O termo, ainda que não inteiramente elucidado, parece importante como marco de uma
nova visão da TV, como uma basta intertextualidade dentro da qual há um conjunto de
serialidades em processo em processo constante de remissão umas às outras. Essa visão
pressupõe uma competência sui generis por parte do telespectador diante desse processo.
_ pa.limp.ses.to sm (gr palímpsestos) Papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado, para dar lugar a outro; atualmente pode-se decifrar o primitiv
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Fragmentação, Voracidade e Serialidade
A programação televisual está virtualmente disponível para o espectador durante a maior
parte do dia. Assim, como já foi dito, a TV torna-se pantagruélica, se comparada ao cinema
e outros meios. Estar no ar quase ininterruptamente significa a oferta e o consumo de um
número inimaginável de programas. Para alimentar a voracidade da TV, criou-se uma
forma industrial de produção: a serialidade. Para pagar as inúmeras horas no ar criou-se
uma forma de veicular a mensagem: a fragmentação que demanda um número de
interrupções no fluxo de cada programa para dar lugar aos tão decantados “intervalos para
os comerciais”.
A fragmentação demanda uma forma específica de produção do sentido: temas, isotopias_,
programas narrativos (sobretudo na ficção) são fragmentos em blocos, a fim de permitir as
interrupções. Tal forma de veicular o sentido gera, na proramação televisual, um algoritmo
muito diverso de transmissão e apreensão do que na do cinema, exibido num continuum.
Na produção de sentido, gera mecanismos alternos de “suspensão”, “manutenção”, e
“reatamento” desse. A TV é pródiga nesses mecanismos. Basta lembrar a proliferação dos
“ganchos” de novelas (mecanismo de suspensão do sentido) e das trilhas sonoras que
geralmente reservam temas musicais para a representação do universo passional dos atores
(mecanismo de manutenção do sentido). Sob este prisma, a TV é, de fato, uma digna
herdeira do folhetim.
A produção em série – característica da TV – torna-a incomodamente mais próxima da
produção em série da indústria do que de obras artísticas em geral. Tal como Omar
Calabrese já observou com muita argúcia, há uma oposição entre a serialidade e os
conceitos de artisticidade consagrados, baseados no caráter único, singular e irrepetível da
obra de arte. O crítico é de opinião que tais conceitos devam ser revisto precisamente à luz
do poderoso alcance da televisão.
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Par Calabrese, a TV cria uma nova estética – a estética da repetição ou neobarroca. Essas
mudanças que parecem se plasmar no televisual começaram, no entanto, há muito tempo,
com a reprodutibilidade na imprensa, na fotografia, na gravura, e invadem agora a imagem
videográfica através das possibilidades de reprodução do vídeo doméstico.
Os Formatos
Na televisão brasileira, já existem alguns formatos serializados consagrados pela tradição.
Como foi analisado de forma pormenorizada em outro artigo, o telespectador brasileiro foi
iniciado em sua competência televisual através dos seriados americanos.
Ainda que seriados de sucesso, como Carga Pesada, façam parte de nossa história
televisiva, o formato serializado que terminou por constituir a nossa marca registrada foi a
novela, com uma média de 150 capítulos, exibidos diariamente, com exceção dos
domingos. O gênero preferencial do formato é o drama, embora haja comédia em certos
horários. A novela é geralmente exibida no horário nobre.
A minissérie é um formato que se reserva, em geral, para o horário das 22 horas e
pressupõe um público mais exigente, não cativo da TV, como outras opções de lazer. Em
termos de extensão, a minissérie é muito mais compacta; na época dos vinte anos da Globo,
costumava ter cerca de 25 capítulos, atualmente a tendência no Brasil é a de ter um formato
mais curto, com cerca de 10 episódios – as estrangeiras são ainda mais curtas. O gênero
preferencial as nossas é a adaptação do literário. A produção do sentido se dá de forma
mais fechada e coesa: teoricamente, cada episódio deve dar conta de um bloco de sentido
conectado como o fio de sentido condutor da minissérie como um todo.
O Papel dos Gêneros
A serialidade se insere em mosaicos de programação rígidos ou flexíveis, conforme a
estratégia de programação das emissoras. No Brasil, geralmente temos mosaicos
relativamente estáveis de programação. Neste sentido se impõe as observações dos teóricos
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sobre a prevalência do gênero como elemento orientador na formação dos mosaicos de
programação das emissoras, como esta de Paolo Fabri:
Mientras en la cultura culta, la obra está, al menos hoy, en
contradicción dialéctica con su género, en la cultura de masa la
regla estética es aquella de la mayor adecuación al género. Se
podría afirmar que el género es justamente la unidad mínima del
contenido de la comunicación de masa y que la demanda de
mercados de parte del público (y del medio) a los productores se
hace a nivel de género.
Paraserialidade e Modalidades de Recepção
A televisão cria mecanismos próprios de produção do sentido, bem como de veiculação do
mesmo. A idéia do palimpsesto pressupõe conjunções, similaridades entre as séries que vão
se substituindo umas às outras, para a manutenção daquilo que Vilches chamou de
demandas de gênero.
Por outro lado, é preciso criar na vasta intertextualidade televisual mecanismos que
diferenciam um texto do outro e orientam a apreensão do telespectador. Os programas
televisuais costumam apresentar um cuidado especial nas vinhetas de abertura e
fechamento, porque estas são marcas de diferenciação de um programa para outro. As
vinhetas de maior êxito conseguem trazer de forma condensada para o espectador seja os
PNSs orientadores da série, seja o clima da história e assim por diante.
Grande Sertão: Veredas (GSV), minissérie, tem duas belas aberturas, ambas usam as letras
do título. Na primeira, as letras aparecem deitadas em diagonal e em perspectiva, na tela.
No interior das palavras “grande sertão” sucedem-se imagens dos elementos da natureza
partícipes desse espaço hiperbólico: a terra, a água, o céu, a vegetação. Depois, um jagunço
caminha entre as duas palavras, toma água e retoma seu caminho. Antes que saia de quadro
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pelo canto inferior esquerdo do espectador, surge o termo “veredas” por onde passou. Os
movimentos e angulações de câmera variam bastante, remetendo ao dinamismo presente
nesse universo representado. Há um momento em que a câmera dá um giro de quase 360
graus que nos traz ecos do final trágico de GSV: o redemoinho.
A segunda vinheta se serve das letras do título dispostas na horizontalidade. No canto
superior esquerdo surgem, sempre no interior das letras do título, os olhos de Riobaldo,
seguindo a direcionalidade da leitura surgem no canto oposto os olhos de Diadorim. A
abertura nos remete aos protagonistas, suas relações secretas na quais o olhar tem um
desempenho fundamental. Seguem-se imagens pontuais de seus encontros-desencontros no
interior dos dois PNs básicos das obras: a conquista amorosa e a vingança guerreira.
Ambas as vinhetas representam uma síntese bastante feliz dos elementos essenciais de GSV
reforçados pela estranheza da música criada com instrumentos sertanejos especiais por
Júlio Medaglia para adequar-se à representação deste mundo e destas relações sui generis.
A vinheta serve como uma espécie de rito de passagem do telespectador de um universo a
outro, a intertextualidade palpável: o programa em relação ao que o antecede e ao que o
segue. Na Globo, por exemplo, o telespectador passa do universo dito verdadeiro do Jornal
Nacional, para o universo dito “de mentira” da ficção, a novela das 20h30; antes passa pelo
processo inverso: do ficcional da novela das 19h, ao verdadeiro do jornal. A vinheta de
abertura tem em si as bases do contrato, os simulacros do produtor e do receptor
incrustados no discurso. Atende às mencionadas demandas de gênero e oferece as
modalidades de recepção por parte do espectador.
No tocante as modalidades de recepção, a televisão é o tipo do meio que “não brinca em
serviço”, conforme o dito popular. Para fazer frente aos modos de produção e veiculação
com as peculiaridades que foram apontadas sucintamente, a televisão assegura as
modalidades de recepção através de mecanismos que os críticos vêm designando de
paraserialidade ou paratextualidade.
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Para Lorenzo Vilches:
La paraserialidade (...) se refiere a todas aquellas notas al
margen de la serie: títulos, subtítulos, intertítulos, presentación y
portada, apertura y “leitmotiv” musical, la publicidad en torno a
su emisión (...), la información sobre cambios y ajustes de horario,
los comentarios en La prensa, etc. Son todos elementos
marginales que sin pertenecer a la serie actúan para-ella, en
forma enmascarada, haciendo de chivato y colocándose cómoda e
impunemente fuera de La norma del género.
Sabe-se que, a cada lançamento, há um número grande de chamadas para o programa, que
funcionam como “bula”, dando as principais instruções ao espectador. Além disso, a
televisão está constantemente referindo-se a si mesma num processo delirante de auto-
remissão. Há chamadas que nos informam sobre o programa e a forma de apreensão do
mesmo. Os realizadores e artistas são chamados a falar da série nos “programas container”
do tipo de Fantástico, ou se desvelam para o leitor truques de realização ou detalhes de
direção de atores em programas como VídeoShow, etc. As informações da mídia impressa
constituem mero reforço as informações essenciais que são dadas pela própria TV.
A Transmutação Televisual
Através das premissas teóricas do primeiro capítulo, bem como da análise extensiva de
Vidas Secas, demonstrou-se que a metalinguagem utilizada para a pesquisa foi coerente e
se revelou produtiva para o estudo do processo pesquisado, comprovando as hipóteses
iniciais e complementado-as com as descobertas feitas ao longo do trabalho.
Assim sendo, não é necessário, no caso do televisual, fazer um percurso de análise
igualmente exaustivo. Uma liberdade e uma leveza maiores no tratamento desta terceira
parte permitirão avançar para universos ainda não desvendados. Dessa forma, serão
explanados problemas mais específicos ao televisual. Por outro lado, torna-se necessário
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relacionar duas formas de abordagem citadas no artigo “A Palavra que Prevê a Imagem: o
Roteiro”, no qual forma cotejadas declarações dos roteiristas sobre a sua atividade,
geralmente resultante de experiência empírica, com as conquistas da teoria narrativa, um
dos instrumentos teóricos deste estudo. Ambos os veios têm muito mais pontos em comum
do que se possa julgar num primeiro momento.
A experiência dos festivais de Cinema e do Seminário de Literatura e Cinema (1984), em
Fortaleza, bem como a organização do Curso de Roteirização para Cinema e TV (1986), em
São Paulo, a partir do qual escreveu-se o mencionado artigo, justificam a importância desta
comparação. Trata-se de um método pouco ortodoxo dentro da linha utilizada até o
momento, mas a análise dos próximos capítulos comprovará que é efetivo.
A TV é algo muito vivo e efêmero, nisto consiste uma das maiores dificuldades da crítica,
sobretudo a que se faz no meio acadêmico, na análise do produto televisual. O ritmo
temporal de reflexão na universidade exige uma maturação intelectual que, em geral, é
demorada e entra em choque com a celeridade caracterizadora do ritmo de produção
industrial da TV.
Por essa razão, escolhe-se um marco histórico: as festividades dos vinte anos da Globo,
momento em que a emissora estava no seu apogeu, com picos de audiência inimagináveis,
como os de Roque Santeiro. Assim, Grande Sertão: Veredas faz parte de um período
histórico privilegiado em que a Globo comemora, de fato, o seu êxito, e as minisséries,
feitas com grande esmero visual e uma produção grandiosa e caprichadíssima tornam-se um
marco na produção televisiva em geral. Grande Sertão: Veredas representa o ápice desse
processo, o desafio maior, pelas dificuldades que a obra de Guimarães Rosa apresenta para
a sua transposição.
Assim, utiliza-se aqui uma metodologia de aproximação diversa. Para tanto, da equipe de
realizadores de Grande Sertão: Veredas, contatou-se o profissional cuja atividade interessa
mais de perto: o roteirista-adaptador (Walter George Durst).
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Embora pareça óbvio, talvez não seja de todo inútil mencionar que em nenhum momento
teve-se a pretensão de estar fazendo uma análise exaustiva de Grande Sertão: Veredas,
obra inesgotável em sua maravilhosa riqueza. Há um conjunto de obras críticas muito
sagazes sobre o livro, e forma mencionadas apenas as que se teve acesso ao longo da
análise. O objetivo foi o de apontar alguns problemas relevantes para transmutação ao
televisual a partir dessa obra, marco da produção literária, bem como da produção
televisual brasileiras.
Nessa parte da pesquisa, recorreu-se sempre ao roteiro, recurso que não foi aconselhável
utilizar na análise de Vidas Secas, já que o roteiro foi elaborado depois do filme. Chegou-se
assim, ao método preconizado por Bluestone, ao qual já se aludiu neste trabalho. No caso
dos roteiros de minisséries, a aplicação deste método é bem mais trabalhosa do que para o
cinema, visto serem as minisséries textos muito mais extensos. Por esse motivo,
selecionou-se e reduziu-se bastante, os trechos para a exemplificação.
A Transmutação de Grande Sertão: Veredas. Conjunções
O que foi dito no tocante aos elementos conjuntivos propiciadores da adaptação e
comprovado nas análises prévias é válido também para a transmutação de obra de
Guimarães Rosa. No caso de transposição televisual, no entanto, cabem várias observações
adicionais no sentido de caracterizá-la de forma mais acurada.
A Transmutação Televisual: Extensão – Fragmentação - Expansão
Os programas televisuais, por serem serializados, são muito mais extensos do que as obras
fílmicas e a maioria das obras literárias. Além disso, os programas televisuais são
descontínuos, visto que se fragmentam inúmeras vezes, não apenas nos capítulos ou
episódios das séries, mas também nos vários intervalos para os comerciais de cada um
deles.
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Assim sendo, a extensão e a fragmentação – determinadoras da descontinuidade – tornam
os elementos conjuntivos propiciadores da tradução intersemiótica muito mais necessários,
pois são os elementos responsáveis pela coerência e coesão do texto, no caso, o televisual.
Neste novo tipo de aproximação adotado para a análise da TV, começa-se com as
afirmações do roteirista-adaptador. Para Durst,
O livro tem de 200 a 300 páginas; uma novela, especialmente a das
seis, que recorreu muito à adaptação, tem 500 páginas em média. O
adaptador se esforça num trabalho de transe para se aproximar do
autor, se for vivo, falar com ele.; Jorge Amado é generoso, mas no
geral dá problema.
Assim sendo, o trabalho do roteirista-adaptador de TV se faz muito mais no sentido de criar
acréscimos, novos PNs e anti-PNs, novos personagens, muitas vezes novos espaços e
tempos. Em outras palavras, a transmutação televisual exige, em geral, uma estratégia de
expansão narrativa e discursiva. A transposição de GSV pode ser considerada um caso raro
de equilíbrio entre os dois textos, por se tratar de uma minissérie de extensão menor que a
novela à qual se refere o roteirista e também por se tratar de um romance extenso e rico. Os
trinta capítulos compões 475 páginas, sem considerar cortes, nem acréscimos, apenas o
roteiro final apresentado por Walter Durst, o que é quase a mesma quantidade do livro de
Guimarães Rosa – 460 p. -, muito embora o aproveitamento das páginas de um livro seja
diverso do de um roteiro. As páginas do roteiro, por sua vez, podem ser sintetizadas ou
estendidas na transmissão final. Ao ser indagado sobre esse aspecto, o adaptador disse:
Grande Sertão: Veredas é um livro riquíssimo, mas a maioria
tem uma ou outra idéia. Não o Jorge Amado que tem bastante
idéias, mas de um modo geral, o autor brasileiro tem poucas
idéias e fica girando em torno delas. Só Maria Mutema daria um
filme, Guimarães Rosa é riquíssimo.
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Logo depois, Walter Durst mencionou as dificuldades para a expansão da obra de Conde,
Rabo de Saiba (1984), para chegar à extensão exigida para uma minissérie.
Memórias de um Gigolô ( 1986, Rede Globo), minissérie adaptada pelo próprio autor,
Marcos Rey, e por Walter Durst, foi analisada em um dos cursos ministrados na pós-
graduação. A história tem uma estrutura semiminimalista em torno do triângulo amoroso
Mariano-Lú-Esmeraldo. A obra gira ao redor de trocas, disputas, desaparições, sempre
ancoradas nesse trio básico, também um desafio para a transmutação televisual que exigiu
vários acréscimos.
Conjunções: Isotopias de Sustentação e Temas
Conforme mencionado, além do narrativo, temas e isotopias constituem importantes
elementos de conjunção na passagem do literário ao televisual, sendo ainda os elementos
por excelência de coesão e continuidade das obras consideradas individualmente.
Nas palestras e conferências realizadas sobre a transmutação de GSV, um dos aspectos
mais instigantes referia-se ao temático, ao isotópico e à transmutação à TV. Nas várias
leituras da obra literária, tornou-se evidente que as duas isotopias sustentadoras do livro
eram a do amor (centrada na relação amorosa Riobaldo / Diadorim) e a da guerra (a
primeira parte centrada na liderança de Zé Bebelo, a segunda centrada na vingança da
morte de Joça Ramiro). Naturalmente as duas isotopias e os PNs que as manifestam se
relacionam com os dois instintos ou energias básicas do homem, já detectadas por Freud,
Eros e Thanatos. Ambas remetem ainda aos universais semânticos vida e morte, bem como
aos universos passionais primevos: amor e ódio.
Nas palestras mencionadas, comentou-se a disparidade entre essas duas isotopias do ponto
de vista das possibilidades de transposição ao televisual. O universo dos jagunços, o épico,
a história de cavalaria tupiniquim, o mundo medieval transposto ao sertão, tantas vezes
apontados pela crítica, parecem regidos primordialmente pelo princípio masculino. É o
universo da conquista amorosa e territorial, da dominação, da expansão, do dinâmico, do
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superlativo, enfim, parecem associados a GSV numa acepção mais física de imensidão
mesmo. A transmissão de um universo hiperbólico dessa natureza representa um grande
desafio para a tradução televisual, devido às suas limitações atuais, tais como pouca
definição, pouca profundidade de campo, tela pequena, entre outras, em princípio
inadequadas para a transformação dessas isotopias em ocorrências contundentes na
manifestação.
Esse universo tão superlativo quanto os pomposos discursos cavalheiresco-medievais do
julgamento de Zé Bebelo, um dos pontos altos dessa linha temática em ambas as obras,
conduz muito mais à épica fílmica. Remete aos grande planos e à possibilidades de
aproveitamento da profundidade de campo, da maior nitidez imagética, etc. Traz de volta
pedaços de memória, fósseis imagéticos de filmes como Alexander Nevski (1938) ou Ivan,
o Terrível (1944), de Eisenstein; a Tempestade sobre a Ásia (1928), de Pudovkin, Ran
(1985), de Kurosawa, e tantos outros; e na filmografia brasileira O Cangaceiro (1953), de
Lima Barreto.
Na veiculação do grande e do pequeno, para lembrar a oposição desenvolvida por
Bachelard em sua Poética do Espaço, certamente a televisão atual está mais para o
segundo, daí a dificuldade na transmutação da isotopia da guerra, enquanto não chega a TV
de alta definição.
A segunda isotopia de sustentação de GSV, a conquista amorosa, está, em termos de
possibilidades de manifestação em TV, muito mais para o pequeno, para a proximidade, a
intimidade, o recôndito, o caráter secreto, algo a dois, preservado longe dos demais.
Algumas dessas características remetem ao universo tido como feminino.
A “linguagem televisual” sempre abusou notoriamente do close, dos olhares dos atores;
privilegiou as relações próximas entre personagens. Levou ao paroxismo o rosto como
objeto primeiro da ação da câmera. Em tese, portanto, estaria mais apta para transmutação
da isotopia amorosa em termos visuais com os instrumentos de que se dispõe hoje, ou de
que se dispunha na época da transmissão da minissérie, do que a isotopia anterior. No
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entanto, o percursos da temática amorosa até aa manifestação encerra outros perigo: o do
clichê, do déjà vu. Nada menos adequado à sutil, misteriosa e ambígua relação entre
Riobaldo e Diadorim do que uma linguagem convencional.
Neste trabalho não serão dadas respostas integrais a essas questões, visto que, so se toca
tangencialmente na manifestação nos limites deste trabalho. No entanto, procurou-se captar
como a TV transmuta a riqueza do universo literário que nos ocupa e como a transmutação
vai-se construindo diante desses desafios citados.
O roteirista de GSV teve especial cuidado na preservação dos principais veios temáticos da
obra literária, tal como atestam as declarações recolhidas dos press-releases da Globo e
confirmadas nos contatos pessoais, já mencionados:
Grande Sertão: Veredas e´ como uma cebola, da qual pode-se ir
tirando as cascas, de fora para dentro. Antes de tudo, é uma
história de aventuras, baseada nas histórias de cavalarias. E
também na maravilhosa história de amor, e fala, ainda de forma
absolutamente moderna, do homossexualismo, como todos os seus
prós e contras. Mas há também outras leituras, inclusive a
principal do livro, do destino. Depois de atirei no trabalho, para o
qual criei processos que nunca havia usado. Precisava me situar
naquele imenso monólogo, separar as histórias. Peguei uma caixa
de lápis de cor, e infantilmente, fui determinando cores para o
diabo, o romance de Octacília, que me parecia uma esperança
frustrada, colori de verde, e assim por diante. O livro ficou lindo,
todo colorido, mas mesmo assim, ainda encontrava coisas
misteriosas.
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Conjunções: os Principais Programas Narrativos
As duas isotopias básicas mencionadas são fielmente seguidas no roteiro e tal como no
livro, aparecem constantemente entrelaçadas no embricamento dos dois programas
narrativos básicos referentes às mesmas. Entramos aqui no propriamente narrativo, outro
dos elementos conjuntivos por nós detectados como essencial à transmutação e para o qual
o roteirista-adaptador revelou uma sensibilidade particular em suas afirmações. (...) Walter
Durst, perguntado sobre como se constrói um roteiro, remeteu a Ionesco na dramaturgia e
disse: “o roteiro é uma arquitetura de antagonismos”. O que traduzido em termos de
semiótica da narrativa significa a existência dos PNs e anti-PNs unidos ao universo
passional na criação da tensividade própria ao conflito, tal como mencionou-se na análise
de Vidas Secas.
Na entrevista final, o roteirista disse que “Grande Sertão... tem muito material, mas eu
estou catando um verbo aí, porque verbo significa ação”. E depois acrescentou: “(...)
escrever para uma multidão tem que ter ação, ação é o artifício maior que a gente usa neste
veículo (TV)”. A prática da roteirização e a teoria da narrativa se encontram, pois, no
conceito essencial da ação.
Procurou-se seguir no roteiro, em cotejo com o romance, pelo menos os PNs delineados a
partir das duas isotopias de sustentação. O roteiro corrobora as afirmações de Durst, dadas
na última entrevista, de que procurou preservar fielmente os temas, os acontecimentos
principais e até mesmo a maioria das inúmeras histórias paralelas de GSV.
A questão do grande número de histórias paralelas, os abundantes “causos” do romance,
comprovam o acerto das conclusões de Propp de que cada nova seqüência aberta a partir da
seqüência principal de um conto maravilhoso seguia as regras de construção desta
seqüência principal. Com base num mesmo pattern podem-criar infinitas histórias.
Também por sua riqueza nesse sentido, GSV é ideal para transmutar à televisão: cada novo
“causo” é uma novidade com um “frame” já conhecido e dominado pelo narratário, além de
“preencher” devidamente a vasta extensão do televisual.
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A Vingança da Morte de Joca Ramiro (PN1)
No tocante aos programas narrativos de base, percebemos que o PN relativo à guerra é
declarado com clareza e com fartas reiterações tanto na obra literária como na obra
televisual. No romance o PN de vingar a morte de Joça Ramiro, matando Hermógenes,
Ricardão e seus asseclas é declarado por Diadorim desde o início: “Não posso ter alegria
nenhuma, nem minha mera vida mesma, enquanto aqueles dois monstros não forem
acabados” (p.26) e reafirmado ao longo de praticamente toda a obra (p.227, 231, 274, 308,
310, etc)
Diadorim consegue cooptar Riobaldo para realizar sua tarefa, tornado-se ambos sujeitos
operadores deste PN no qual Diadorim se carageriza, em termos passionais, pela inabalável
certeza, e Riobaldo por uma série de idas e vindas entre a certeza e a dúvida, tanto no
romance quanto na minissérie. Hermógenes e Ricardão, em primeiro lugar, e o bando dos
que os seguem, por extensão, constituem os objetos do desejo de vingança, os traidores,
assassinos de Joça Ramiro.
No roteiro, o PN é delineado no capítulo 13, p.17, por Diadorim:
Você tem que me compreender, Riobaldo, não posso ter alegria
nenhuma, nem meia vida mesma, enquanto não possa vingar o
histórico de meu pais.
Estranhamente, esse diálogo, fundamental, foi cortado na transmissão final junto com uma
série de outros menos fundamentais da mesma páginas, se consideradas as duas isotopias
delineadas como a base da trama. A minissérie enfatiza mais a questão da lealdade entre
Riobaldo e Diadorim e implícita o PN que o romance explicita tantas vezes, dando
preferência à retomada abundante da frase delineada no capítulo 4, p. 3: “Reinaldo: - Na
hora do fogo eu quero estar do seu lado, Tatarana! / Riobaldo: No ferro e no fogo, lado a
lado, Diadorim!”
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Dentro desse programa narrativo pode-se considerar a permanência na fazenda de Selorico
Mendes como um PN de uso menor, visto que compreende os primeiros aprendizados, em
relaçaõ ao PN guerra de que se tratou; abraça o primeiro contato com os mitos sobre Joça
Ramiro através do padrinho e o aprendizado no manejo das armas, nas duas obras.
O contato com Zé Bebelo representa um PN de uso mais denso e prolongado, por
introduzir Riobaldo nas regras do jogo da vida dos jagunços – cavalheiros. Nesse programa
Riobaldo conhece as leis da luta e sobretudo as da liderança. Cada momento sob a
liderança de um chefe, desde Medeiro Vaz até o futuro traidor Hermógenes, comenta esse
aprendizado na trajetória de Riobaldo. Tanto no romance como na minissérie, mudanças de
denominação representam os saltos nesse ritos de passagem de Riobado, que passa a
“Tatarana” e depois a “Urutu Branco”, conforme sua competência em direção ao mando do
grupo de jagunços se fortalece.
Os pontos altos nessa longa lição de jagunçagem são a primeira travessia do Lis (que sofre
vários cortes do roteiro na transmissão final – cortou-se todo o episódio das mandiocas
envenenadas), o julgamento de Zé Bebelo (inteiramente retomado no roteiro e na
transmissão final), e o elemento detonador básico do PN: o assassinato de Joça Ramiro,
executado pelos traidores Hermógenes e Ricardão. Dentro do plano de vingança
propriamente dito são performances importantes a nova travessia do Liso, desta vez sob o
mando do prórprio Riobaldo, a prisão da mulher de Hermógenes e a batalha final do
Paredão.
Todas essas perfomances são rigorosamente conservadas na transmutação televisual, além
de um número apreciável de histórias paralelas, dentre as quais se destaca a de “Maria
Mutema”, retomada no capítulo 22 do roteiro e na páginas 170 em diante do romance GSV.
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Conquista Amorosa: Riobaldo + Diadorim (PN2)
Não é fácil separar os dois programas narrativos básicos, pois eles estão intimamente
entretecidos; tanto no romance quanto na minissérie, o companheirismo e a lealdade na
batalha e na vingança se confundem com o amor, como também expressam a frase roseana:
“amizade dada é amor”. No romance isso se manifesta várias vezes, como neste trecho:
Foi um esclaro. O amor, já de si, é algum arrependimento. Abracei
Diadorim, como as asas de todos os pássaros. Pelo nome de seu pai,
Joça Ramiro, agora eu matava e morria, se bem (p.34).
No roteiro, já no quinta capítulo, Riobaldo e Diadorim se declaram “amigos de destino
fiel”, e até o final, no capítulo 28, cobra-se esta amizade-lealdade na luta, um disfarce do
amor.
No que diz respeito aos PNs relativos à isotopia guerra, as batalhas, os planos, o
julgamento de Zé Bebelo, todos se delineiam de forma transparente; o caráter secreto
permanece no anti-PN em que os traidores forjam no silêncio sem que ninguém, exceto
Riobaldo, deles desconfie.
O PN referente à isotopia amor, pelo contrário, é inteiramente secreto, não se faz no âmbito
do dito, do declarado, mas sobretudo no âmbito do subentendido, das entrelinhas. No
romance, dado que o actante narrativo e o S estão sincretizados em Riobaldo, a tarefa de
concretizar os passos deste PN é mais fácil do que na transmutação televisual. Logo no
início do romance o narrador nos diz: “As vontades de minha pessoa estavam entregues a
Diadorim” (p.31). Na televisão, no entanto, há maiores empecilhos para a representação
desse PN, tanto pela obviedade maior do visual quanto por diferenças de estratégia
adotadas na transmutação, sobre as quais se tratará nas disjunções.
18
Mencionou-se que as conjunções são ainda mais importantes na adaptação televisual
devido às características sui generis da serialidade, já apontadas. Serão destacados aqui
alguns elementos que decorrem dessas características na sua relação com as conjunções.
Minissérie: Organização em Episódios
Tanto as isotopias básicas quanto os PNs que as delineiam são mantidos de uma obra para a
outra. A fragmentação televisual, no entanto, faz com que haja, no roteiro, uma consciência
mais aguda da organização por blocos de sentido. Assim, alguns capítulos constituem uma
pequena antologia de desenvolvimentos narrativos sobre temas determinados, considerados
de forma coesa e suscinta e não espalhados de forma iterativa, como no livro. Há maior
exigência de concentração temática e narrativa no roteiro do que no romance.
Serão citados apenas alguns exemplos ilustrativos. O capítulo 8 da minissérie concentra a
disputa de liderança entre Hermógenes (o Demo, o mal) e Sô Candelário (um chefe dos
Ramiros: o bem). Trata-se de um grande questionamento sobre a visão de mundo
concentrada no tema da liderança, como eixo, e tendo como pólos opositivos a crueldade
(Hermógenes) e a benevolência (Sô Candelário). A disposição de luta como forma de
exercício de maldade (Hermógenes) e como busca de suicídio ou antídoto de um medo
maior (a lepra, para Sô Candelário).
O capítulo 10 do roteiro da minissérie também constitui uma amostragem concentrada das
leis da jagunçagem (o universo cavalheiresco tupiniquim), bem como um enfrentamento
entre duas outras lideranças e um conseqüente questionamento sobre as mesmas. Joça
Ramiro e Zé Bebelo são dois modelos fundamentais no universo cavalheiresco de GSV,
com uma diferença básica: Joça Ramiro permanece no âmbito do mítico-sagrado, pela
raridade de sua presença, bem como pelas circunstâncias de sua própria morte. Zé Bebelo
passa por vários processos de melhoria e degradação que o dotam da /humanidade/, sempre
imperfeita, distanciando-o, neste aspecto, de Joça Ramiro. Tanto é assim, que os capítulos
18 e 23 do roteiro, sobretudo, concentram o desmoronamento do Zé Bebelo mítico dos
19
capítulos anteriores perante os olhos de Riobaldo e a desconfiança deste em relação à
capacidade de liderança e de lealdade do antigo grande chefe, também existentes no livro.
Os temas de Deus e do Diabo e do próprio destino perpassam de forma mais iterativa os
capítulos do roteiro, guardando maior similaridade com a forma disseminativa, iterativa do
romance no enfoque da mais variada gama de temas. O próprio início do primeiro capítulo
de GSV, minissérie, com o episódio de Zé Simplicio tomado pelo Demo, exorcizado em
latim pelo padre, já abre a adaptação com essa dualidade. Deus e o Demo são tratados em
muitos outros diálogos (capítulo 6, p.5; capítulo 13, etc) e momentos do roteiro, como na
tentativa de Riobaldo de pactuar com o Demo como um PN de uso contra Hermógenes, a
personificação do “cujo” em ambas as obras.
O tema do amor é tratado de forma necessariamente mais fragmentária, visto ser construído
com base em insinuações oferecidas em doses homeopáticas que desvendam de algum
modo o caráter secreto da feminilidade de Diadorim. Mesmo assim, o capítulo 12 do
roteiro concentra a maioria das dualidades representadas nos dois maiores amores de
Riobaldo. Otacília, como representação do permitido, do seguro, do puro, do estável etc,
vs. Diadorim, como representação do proibido, do aparentemente impuro, do duvidoso ou
ambíguo.
Os capítulos 26 a 29 do roteiro precipitam em ritmo muito concentrado a batalha final entre
os Ramiros e os Judas cujo desenlace ocorre no Paredão (capítulo 26, prisão da mulher de
Ricardão e preparativos finais; capítulo 27, morte de Ricardão, concentração do ódio de
Hermógenes e partida do mesmo para a casa dos Ramiros; Capítulo 28, armações de ambos
os lados e últimas declarações de amor entre Riobaldo e Diadorim. Capítulo 29, morte de
Hermógenes e Diadorim, descoberta da identidade de Diadorim por parte de Riobaldo).
Em suma, o que se delineia em muitas disseminações, reiterações, recolecções, de modo
iterativo no romance, tende a maior concentração nos episódios do roteiro.
20
Fragmentação: Ganchos
Ao se tratar da “linguagem televisual”, nota-se que a extrema fragmentação leva a
mecanismos de suspensão e reatamento de sentido, dentre os quais se destacam os tão
decantados “ganchos”. Em outras palavras, a adaptação televisual tem servidões diversas
daquelas do cinema. Na análise, teve-se a curiosidade de observar esse mecanismo dos
ganchos ao longo dos capítulos da série no sentido de detectar essa forma própria do
televisual.
Naturalmente, por contingências próprias da TV, um trabalho em equipe executado em
etapas diferentes, por profissionais diferentes, faz com que o roteiro sofra um número
ponderável de modificações, cortes, acréscimos, mudanças na divisão dos blocos na sua
transmissão final.
Nesse sentido nota-se o domínio do roteirista-adaptador desses mecanismos próprios da
TV: um grande número de momentos de divisões de blocos e de ganchos dizem respeito
precisamente a “momentos de risco” do relato, de decisão. Ou ainda a momentos muito
tensos no passional, ambos conectados precisamente com as duas isotopias básicas
referidas no início. Há um número maior de ganchos relativos a momentos de suspense ou
alta tensão na conquista amorosa entre Riobaldo e Diadorim. Isso se explica pela grande
tensividade caracterizadora da relação entre os dois atores, inteiramente feita de
aproximações difíceis, carregadas de erotismo, afetividade e sentimento de culpa, em geral
seguidas de distanciamento físico.
No tocante aos ganchos relativos à temática amorosa e seu desenvolvimento narrativo, é
curioso observar que, mesmo quando a transmissão final opera mudanças nas divisões de
blocos, os ganhos preservam, na maioria das ocorrências, a característica que Durst
imprimiu ao roteiro, tal como mencionado. Por exemplo, no capítulo 2 não estava previsto
no roteiro o final do bloco para o momento em que Riobaldo e Diadorim se dão as mãos
quando se reencontram pela primeira vez, depois de adultos, mas ele ocorre aí na versão
final do capítulo (p.21). A previsão do roteiro era o corte na páginas 22, quando afirma:
21
“Dão par o nome de nós dois”. Ou seja, muda o momento do corte, mas se respeita o
princípio que determina sua ocorrência num momento privilegiado da isotopia amorosa.
No capítulo 3 do roteiro, o final do primeiro bloco está previsto para o momento em que
Riobaldo espreita o sonho de Reinaldo (p.5), mas é deslocado para o momento do pacto
entre os apaixonados quando Riobaldo diz a Reinaldo: “morro e vivo sendo amigo seu”
(p.7), mas contundente, mais dinâmico visualmente e com a vantagem de condensar as
duas temáticas principais em jogo.
No que diz respeito à temática da guerra, também há ganchos muito bem situados e nestes
não há grande mudanças de posição entre o roteiro e a transmissão final. O primeiro
capítulo do roteiro termina precisamente no momento em que Riobaldo adentra os
domínios de Zé Bebelo e se visualizam mostras de seu poder; abundância de espaço, armas,
jagunços, etc. Aí começa o novo aprendizado na trajetória de Riobaldo.
Um dos ganhos mais interessantes relativos a essa temática e que traz um toque das
brincadeiras machadianas que enganam a expectativa do leitor se situa nos capítulos 8 e 9
do roteiro. No fim do capítulo 8, há um grande rebuliço entre os jagunços, porque se supões
que o tropel ao longe anuncia a chegada do chefe máximo: Joça Ramiro. Trata-se, no
entanto, de Sô Candelário. Naturalmente, esse mecanismo, muito usado em outras artes,
como o teatro e o cinema, acentua a expectativa e a aura mítica que cerca Joça Ramiro, que
só chegará no capitulo subseqüente, recebido com todas as honras e pompas a que faz jus;
assim, o “suspense” próprio do gancho se prolonga por dois capítulos. Ainda no tocante ao
tema da jagunçagem, no mesmo capítulo 9, há um outro gancho mantido fielmente na
transmissão, que contrapõe de forma clara o caráter de Hermógenes e dos demais chefes
dos Ramiros em geral, além de ser o protótipo do gancho que envolve um grande suspense.
Como se sabe, o gancho tradicional constitui o mecanismo pó excelência de manifestação
da tensividade no televisual. Voltando ao gancho mencionado, o primeiro bloco do capítulo
termina exatamente no momento em que Hermógenes levanta o braço para o alto, pronto
para sangrar o apavorado prisioneiro bebelense, quando é interrompido, na transmissão,
pela intervenção de Sô Candelário, a câmera congela no rosto medonho e cheio de raiva de
22
Hermógenes. Nos blocos subseqüentes, vencerá a benevolência de Sô Candelário: o
prisioneiro é poupado, acirrando o ódio de Hermógenes que vai ruminando aos poucos sua
traição posterior.
Conceitual X Televisual
Como visto, um dos maiores desafios apontados pelos críticos para a passagem do literário
ao sincrético é precisamente o da abstração, o do universo do conceitual, no qual a
literatura parece estar perfeitamente à vontade e o cinema, a TV e o vídeo, aparentemente,
bem menos. Grande Sertão: Veredas é talvez um dos desafios mais contundentes de toda a
literatura brasileira, nesse sentido. O próprio Walter George Durst, respondendo a
perguntas relativas a essa questão, dizia que, de fato, a obra de Guimarães Rosa poderia ser
vista como um enorme catálogo de temas, no qual poderiam ser encontrados praticamente
todos os que se desejasse.
Em breve análise da obra, percebeu-se que havia uma tendência recorrente no romance:
após trechos relativamente longos, aparecia uma frase concisa, quase uma máxima, uma
moral da história sem moralismo, um fecho, por assim dizer, para a temática mais relevante
tratada na narrativa até então. Tais frases trazem conceitos fundamentais sobre a vida, o
destino, o amor, o ódio, enfim, sobre todos os sentimento, objetivos e energias que movem
a vida do ser humano, tal como notou Durst. O resgate dessa verdadeira enciclopédia
conceitual, desse manual da “arte de viver”, embutidos na narrativa de GSV, representava
outro desfio maior para a transmutação do televisual.
A seriedade com que Durst resolveu empreender a hercúlea tarefa de roteirizar GSV é
visível tanto nas declarações recolhidas como no próprio roteiro. No entanto, o desejo de
preservar a riqueza temática e sobretudo essas máximas conceituais que perpassam todo o
romance, despertaram a atenção em particular, por parecerem entrar em choque de algum
modo com a prevalência do conceito de ação, como moto maior do televisual. Seria
necessário um grande senso de equilíbrio para conseguir a convivência harmônica desses
dois veios na transmutação para a minissérie.
23
Nesse sentido, apresenta-se uma dificuldade fundamental na transmutação para a TV. No
romance, a sincretização do actante discursivo, narrador, e do actante narrativo, sujeito, em
Riobaldo facilita sobremodo a transmissão de todos esses conceitos sobre a vida. Como no
roteiro e na minissérie essa sincretização não existe, foi necessário ao roteirista, como ele
próprio esclareceu, fazer uma escolha cuidadosa da personagem e da situação mais
adequadas para a inserção dessas frases-síntese no roteiro.
Nota-se, no entanto, que algumas frases de maior impacto, ou mais reiteradas no romance,
resgatadas por Walter Durst no roteiro, foram cortadas na transmissão final. Dentre elas
destacaríamos a do capítulo primeiro (p.19) em particular: “Viver é muito perigoso”.
Conforme o roteirista esclareceu, ele escolheu Bigri, mãe de Riobaldo, para dizê-la, pois
era o momento que lhe parecia muito denso, pouco antes de sua morte, fazendo dela a
personagem ideal para isso. Também pareceu bastante adequada a escolha de Sô
Candelário, que tanto medo tem da morte, para resgatar a frase do livro (capítulo 9, p.3):
“(...) o sertão é do tamanho do mundo. Mas a Morte ainda é maior”. Também cortada na
transmissão final.
Por outro lado, surpreendentemente conservaram-se muitas dessas frases, pequenas sínteses
conceituais, ao longo da transmissão final, e nesse sentido pareceu muito pertinente a
escolha de Zé Bebelo para resgatar um dos inúmeros ditos sobre o “sertão” do romance. A
fala de Zé Bebelo ocorre depois do Julgamento em que Joça Ramiro lhe ordena que deixe o
sertão e o réu vai-se, dizendo “(...) a gente tem que sair do sertão. Mas só se sai do sertão é
tomando conta dele dentro” (capítulo 10, p.7).
De todos os elementos preservados, um dos que resultou mais leve em termos de passagem
para uma linguagem televisual forma os dois diálogos travados entre Zé Bebelo (ZBB) e
Reinaldo (REI) no capítulo 16 que resultaram numa antologia conceitual que soa quase
como os desafios verbais entre os repentistas (conceitos: vingança, Deus, o cão, a
confiança, etc). Este diálogo é interrompido brevemente e retomado depois, como segue:
24
ZBB – O que é mais escuro que a noite?
REI – O coração da gente (conforme romance, “Coração da gente, escuro, escuros”, p.33).
O diálogo continua sob o olhar ciumento e desconfiado de Riobaldo que acompanha os
outros dois que se afastam de costas falando:
ZBB – É nesse, o que é mais custoso de sopitar – além do ódio e amor?
REI – O ciúme (p.5)
Há numerosos exemplos, espera-se que os citados sejam suficientes para deixar claro que,
apesar de alguns cortes em alguns conceitos importantes em determinados capítulos,
muitos dos elementos conceituais da obra, tal como delineados, foram mantidos na
transmissão final, revelando uma escolha pertinente ao nível discursivo: foram
transmutados na voz do ator certo, no tempo e no espaço (situação, clima, etc) adequados
para a sua veiculação.
A Transmutação de Grande Sertão: Veredas – As Disjunções
Além das similaridades básicas existentes entre as obras partícipes do processo de
adaptação, já delineadas nos seus elementos principais, bem como as peculiaridades
resultantes da transmutação ao televisual, existem as disjunções responsáveis pela
individualidade de cada uma das obras, tema desse item.
(Não) Sincretização dos Actantes
Como já mencionado, há na obra literária, uma sincretização entre o actante discursivo, o
narrador (e, eventualmente, observador), e o actante narrativo, sujeito, em Riobaldo. Por
outro lado, não há, no romance, uma distinção clara entre o narrador tradicional e o
contador de “causos”, o “proseador”. Aquele que narra, conversa ao mesmo tempo com um
interlocutor imaginário, o simulacro do leitor virtual. O monólogo se traveste de diálogo.
25
O interlocutor virtual é constantemente solicitado no romance em suas mais variadas
competências: ver (“mire – veja”), imaginar, compreender, relevar as falhas dos
personagens, completar o contato, interpretá-lo, sancioná-lo, etc. Ele é aparentemente um
grande partícipe da obra.
Trata-se de uma estrutura conversacional, já presente em outros momentos da nossa
literatura, como em Machado de Assis. A diferença é que Machado brinca com as
expectativas do leitor, há muita ironia, enquanto em GSV, o simulacro do interlocutor na
obra exerce muito mais os papéis temáticos do compadre, do companheiro, de alguém mais
sábio que pode ajudar a entender, há uma conjunção entre os simulacros do proseador e do
seu interlocutor representados no discurso. Riobaldo, além de ser o ator que manifesta os
actantes narrativos e discursivos sincretizados, em termos narrativos é o sujeito do fazer e o
sujeito de estado da esmagadora maioria das fases narrativas que delineiam as duas
isotopias de sustentação das obras já analisadas.
Na minissérie televisual e no roteiro de Walter George Durst, essa sincretização
desaparece. Riobaldo exerce tão somente os papéis de sujeito dos PNs principais da obra,
juntamente com Diadorim. Antes da entrevista com o roteirista, imaginava-se que a
eliminação da sincretização existente no romance se explicaria porque os sentidos da visão
e da audição são demandados de forma poderosa pela TV e o são mais ainda, de forma
mais extensiva, no programa serializado. Talvez representasse um desgaste muito grande
ter o mesmo ator exercendo tantas funções; isso implicaria um excesso de presença na tela,
queimando de algum modo, por esse excesso, sua imagem perante o espectador. Além
disso, a estrutura conversacional ocorre muito raramente na TV e menos ainda nos
programas ficcionais do que em quaisquer outros.
No cotejo com o roteiro e a transmissão final, nota-se que cada capítulo desta última
começava com a recolecção de um narrador em off – o compadre Quelemén – interpretado
por Mário Lago. Na obra literária, Quelmén aparece apenas como um ponteio, com os paéis
temáticos de compadre benevolente e sábio, uma espécie de ideal de /saber ser/ para
Riobaldo, manifesto nas figuras da serenidade, compreensão, experiência, etc. Um ideal,
26
mas do que um ator concreto, propriamente dito, partícipe das performances narrativas
transformadoras. Nesse sentido se aproxima de seu Tomás da Bolandeira de Vidas Secas
em muitos aspectos. Dado que no roteiro original não se mantém a sincretização
mencionada, e que, além disso, há diferenças também do roteiro original para a versão final
em minissérie, consultou-se o roteirista-adaptador sobre essas disjunções na entrevista final
já aludida. Walter Durst comentou sobre a questão o seguinte:
São aquelas diferentes leis dos dois veículos: esse tipo de coisa de um
contador de histórias funcionando o tempo todo como na obra literária é
mais difícil, mesmo na literatura, você sabe que o número de leitores dele
(Guimarães Rosa) é pequeno, a maioria não passa da página 50, mas isso
dá bem literariamente, é uma forma possível, adoro o livro dele do mesmo
jeito. Na TV isso é impossível, nem o maior ator, nem Lawrence Olivier,
nem Marlon Brando se agüentaria, porque isso é um elemento
fundamentalmente literário, imagine vinte e cinco capítulo disso: a chatice.
Todos desligariam no minuto dois ou três, é desses casos impossíveis, tem
que haver uma transposição, uma mudança de código, de tudo, porque aí as
coisas se chocam, escrever para alguém ler sozinho é uma coisa e escrever
para uma multidão é outra: tem que passar para a ação.
No tocante à inclusão do narrador na versão final, Durst se manifestou assim:
Quelemén é apenas um dos pólos referenciais do Riobaldo, pólo mais místico,
confessional: tal como o Zé Bebelo, o político progressista. Avancini ficou
com medo de desaparecer o interlocutor, foi o último medo do Avancini, deu
para o José Antonio de Sousa que acrescentou a voz em off. É também uma
coisa na qual eu não acredito, não atrapalhou, mas não acrescentou em nada,
o Quelemén também não me pareceu tão importante para botar ali. O que
não botei na minha adaptação é porque não me pareceu importante. Avancini
pensou de outro modo, talvez ele tenha razão, não sei.
27
Mais especificamente no tocante à utilização da voz em off sem si, o adaptador opinou
como segue:
Agora, a voz em off é muito chata, o som em TV não é bom como deveria
ser, às vezes, nem a voz do personagem falando se ouve; a voz em off é fria.
Naturalmente essa disjunção entre a transmutação televisual e o original envolve as
estratégias da enunciação manifestas no enunciado, em princípio as questões relativas ao
ponto de vista, tais como as da organização do saber, da delegação da “voz” e, como já
mencionado, a da relação entre os papéis do nível narrativo e do discursivo. Como visto, as
servidões próprias ao televisual, “marcado” de forma muito mais contundente a presença
do ator, a sua “fisicalidade”, por assim dizer, praticamente vedam, ou pelo menos
dificultam ao máximo, o resgate da sincretização utilizada no romance.
No tocante à organização do saber, a preservação da onisciência de Riobaldo, característica
da obra literária, além de poder cansar o público, como visto, e tirar a empatia com a
personagem, traria problemas sobretudo na sua relação com outro aspceto diferenciador na
passagem do romance à minissérie, o qual será analisado a seguir. Antes, porém, é preciso
mencionar que a não sincretização pela qual se opta na minissérie deixa de lado muitas das
oscilações entre a dúvida e a certeza que caracterizam o grande monólogo-diálogo de
Riobaldo, bem como o ar nostálgico do discurso devido à onisciência em relação ao que
passou e à impotência de modificar o que se recorda, algo muito dolorosa e pungente no
que se refere aos acontecimentos da temática amorosa.
Daí, mesmo, que certa hora, Diadorim se chegou, com uma avença. Par meu
sofrer, muito me lembro. Diadorim, todo formosura. (...) Riobaldo, o cumprir
da nossa vingança vem perto. (...)Daí, quando tudo estiver repago e refeito,
um segredo, uma coisa vou contar a você (...) Ele disse, com o amor no fato
das palavras. Eu ouvi. Ouvi mas mentido. Eu estava longe de mim e dele. Do
que Diadorim mais me disse, desentendi metade2.
2 GSV, livro, p.385-6
28
Construção da Atorialização
O tratamento dado no romance à construção da trajetória de Reinaldo / Diadorim tem como
uma de suas premissas básicas a manutenção, até quase o final da obra, do caráter secreto
da identidade feminina de Diadorim. Por essa razão, os recursos figurativos referentes à
isotopia amor e aos programas narrativos nos quais se entretece sugerem relações
proibidas, dentro dos valores sociais consagrados ou tradicionais, por pressupor relações
homossexuais. Isso se dá, no entanto, apenas aparentemente, já que, quase ao final da obra,
tanto o leitor como Riobaldo são surpreendidos pela revelação da identidade feminina de
Diadorim, na verdade Maria Diadorina. Em suma, no nível imanente revela-se uma relação
permitida: a heterossexual. Tal revelação reorganiza toda a leitura de quem ainda não havia
descoberto esse segredo.
A preservação desse caráter secreto faz com que parte do vasto romance de Guimarães
Rosa se torne, ao mesmo tempo, uma pequena antologia com um sem-número de “pistas”
sobre a “feminilidade” de Diadorim, inseridas iterativamente na obra, ao modo dos
policiais, oferecidas a Riobaldo e ao leitor ou interlocutor virtual igualmente.3
Na obra de Guimarães Rosa, a estratégia em relação à circulação do saber veda, igualmente
a Riobaldo e à maioria dos atores do romance, o saber sobre a verdadeira identidade
feminina de Diadorim. O mesmo ocorre com o leitor. As mencionadas estratégias relativas
à atorialização e à circulação saber na obra literária geram exacerbação da tensividade.
Sempre que Diadorim e Riobaldo se aproximam muito fisicamente há um subseqüente e
quase imediato afastamento, ou ainda quando um deles “fraqueja” e se declara é repelido
pelo outro, ou o outro se faz de desentendido. A estratégia é que o leitor faça a leitura da
relação como proibida, exacerbando ainda mais a tensividade. Em outras palavras, há
3 Além do ciúme que Diadorim sente de todas as andanças de Riobaldo com mulheres e sobretudo de sua relação com Otacília (p.147 e 285 entre outras), há a delicadeza no trato com os pássaros, o manoelzinho-da-croa (p.111); a forma escondida como se banha e veste (p.113), a maneira como cuida de Riobaldo doente (p.307), e tanto outros indícios, até a descoberta final de sua identidade (p.453). Há um único momento em que os companheiros de jagunçagem ousam sugerir uma relação estranha entre Riobaldo e Diadorim e são severamente desafiados (p.123-ss). Há também a desconfiança de Riobaldo pela relação de Diadorim com Leopoldo (p.133). Naturalmente o momento mais perigoso neste sentido é o do desmaio de Diadorim na morte de Joça Ramiro quando Riobaldo tenta abrir seu jaleco para que possa respirar (p.224). O momento mais revelador é o do ciúme e da tensão entre Diadorim e Otacília, quando Riobaldo se compromete com esta última.
29
sempre um empecilho para a conjunção no amor que se caracteriza por uma tensão
máxima, ao contrário do tratamento do tema “guerra” que passa por momento de tensão e
relaxamento mais equilibrados.
A estratégia na transmutação televisual no tocante a esse aspecto cognitivo foi totalmente
diversa à do romance: desde o início, Walter Avancini optou pela escolha de Bruna
Lombardi, conhecida modelo e atriz, para o papel. A opção já estava firmada desde 1982,
conforme o press-release da Globo, do qual extraímos também as seguintes palavras do
diretor, por julgá-las esclarecedoras.
Busco o chamado physique de rôle, o tipo físico adequado e, no caso de
Grande Sertão, havia descrições do próprio autor. Diadorim, para
Guimarães, tinha “olhos verdes, intensos, profundos, cílios alongados, nariz
bem feito, pele clara”, enfim, ele descrevia uma bela figura, e que fugia dos
padrões do jagunço. Bruna sempre me pareceu a descrição perfeita, além de
eu acreditar na sensibilidade dela. (...) Precisava de atores que conseguissem
se despojar inteiramente, pois iríamos granar no sertão mesmo, caso
contrário, o trabalho seria uma penitência.
Ainda no tocante às estratégias de ordenação e distribuição do saber, as palavras do diretor
antecipam as estratégias de enunciação que se concretizariam nos enunciados da minissérie
ao dizer:
Acredito que só um leitor muito desavisado não percebe, desde o início do
livro, que Reinaldo é uma mulher, porque o próprio Guimarães não nega
indicações. Assim, na transposição para a TV, não me preocupei em
disfarçar a Bruna. Seria inútil. Nem cogitei em descobrir um atriz
desconhecida para o papel. Optei por achar que o público sabe, desde o
início, que é uma mulher.
30
Independentemente do fato de que Bruna Lombardi tenha tido na pele de Diadorim um dos
seus melhores papéis, senão o melhor da sua carreira, análise que se faz diz respeito ao
problema da transposição considerada como um todo. Nesse sentido, discorda-se afirmação
de Walter Avancini de que o leitor sabe, desde o início, da identidade feminina de
Reinaldo. Muitos alunos revelaram surpresa ante a descoberta da mesma, seja através da
revelação no próprio livro, seja em algum dos momentos anteriores, mas certamente não os
iniciais do romance. Ainda que assim ocorresse com muitos leitores hoje, sabe-se que é
uma faixa mínima da população que tem acesso à obra de Guimarães Rosa, ao contrário do
contingente enorme da população que tem acesso à TV. Os leitores de uma obra tão
monumental são tão raros, que a identidade de Diadorim poderia permanecer secreta, sim,
para o enorme público da TV.
Do ponto de vista estrutural, o fato de que o leitor compartilha desse saber desde o início,
tira inteiramente o impacto da cena da revelação final, considerada por Durst totalmente
folhetinesca, própria ao televisual. Retira da obra adaptada a grande tensão, própria do
acompanhamento das “relações proibidas” na qual repousa grande parte do denso universo
passional do romance. Além desses fatores, a dessincretização actancial, também analisada,
retira grande parte da sensação de nostalgia, de arrependimento e perda de Riobaldo pelo
que deixou de fazer e viver com Diadorim.
A própria sucessão de “pistas”, outra leitura das relações aparentemente proibidas, perde o
seu caráter ambíguo e secreto para o espectador, permanecem assim só para Riobaldo. Se
não fosse a sutileza do roteiro na condução desse veio, Riobaldo poderia parecer bem
pouco perspicaz por / não saber/ durante tanto tempo (mais de vinte episódios) aquilo que o
espectador já sabe desde o início. Isso implica um descompasso muito acentuado na
distribuição do saber: nenhum saber nas relações atoriais em contraposição a todo o saber
para o narratário. No romance há maior possibilidade de identificação entre ambos pela
distribuição similar do saber, além do companheirismo sugerido pela estrutura
conversacional, já comentada anteriormente.
31
Além disso, esse é um dos aspectos mais interessantes para demonstrar a complexidade da
transmutação televisual. A adaptação se faz dentro de uma equipe trabalhando em ritmo
industrial e dentro da qual podem existir diferenças de interpretação ponderáveis no tocante
à obra original. Foi precisamente o que ocorreu em relação a esse aspecto. Walter George
Durst, o roteirista, afirmou que chegou a pensar na escolha de irmãos gêmeos ou mesmo de
um homem, ou pelo menos de uma atriz desconhecida para interpretar Diadorim, numa
postura estratégia bastante diversa da de Walter Avancini, e mais próxima à de Guimarães
Rosa.
Ainda na mesma ocasião, o roteirista-adaptador lembrou que, na época da realização da
minissérie, havia um grande preconceito das relações homossexuais na telinha,
principalmente na ficção. O tratamento se limitava aos programas humorísticos. Esse fator
também deve ter sido determinante na escolha das estratégias de construção dos enunciados
televisuais, sobretudo considerando-se que eram dirigidos ao grande público. Durst
discordava dessa estratégia adotada, como revelam os elementos citados, bem como os
recolhidos na entrevista.4 No estudo da transmutação é interessante preservar essas
diferenças de opinião na produção do sentido. Apesar de ter prevalecido nesse aspecto a
posição de Walter Avancini, o delineamento cuidadoso e sutil das indicações da natureza
feminina de Diadorim no roteiro resgatam algo da posição inicial de Walter Durst. Em
outras palavras, as previsões relativas à recepção têm um peso muito maior no televisual do
que nos demais meios de comunicação e incidem de forma poderosa sobre a transmutação
em suas estratégias de organização discursiva.
Estratégias de Temporalização
Na obra literária o monólogo-diálogo de Riobaldo confunde-se ainda, muitas vezes, com
um fluir de consciência, que se caracteriza, como a própria denominação esclarece, por um
fluir tão em consonância com o Rio-baldo (Riobaldo identificado com o Urucúia) já
analisado por Cavalcanti Proença. No fluir presente-passado-futuro se entre mesclam, no
4 “No caso da Bruna, eu fui vencido. Avancini mostrou a descrição do menino, era a própria Bruna, e naquele tempo qualquer história que se relacionasse com homossexualismo, que parecesse a história de dois homens, não colaria. Não sei, aí fica a dúvida: então vale a pena fazer?”
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discurso deste rio roseano, e determinam de modo inconfundível a construção temporal do
romance, sobre a qual há pistas ao longo de toda a obra, mas que parece melhor sintetizada
nesta passagem:
O que vale, são outras coisas, a lembrança da vida da gente se guarda em
trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros
acho que nem se mistura. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as
coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria
forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse
diferente pessoa. Sucedido e desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu
conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram
muito mais perto do que outras, de recente data. O senhor mesmo
sabe.(GSV, p.77-78)
Além de estar em perfeita consonância com o próprio significado e simbologia do nome de
Riobaldo – este aspecto em geral tem maior significado no literário que no sincrético – esse
fluir de consciência de Riobaldo adensa o universo passional, enriquecendo-o através das
diversidades da visão implícitas nos diferentes momentos da temporalidade regida pela
não-concomitância. Matiza também, profundamente, o universo do crer (há uma oscilação
constante entre a certeza e a dúvida), característica fundamental do romance, resgatada
apenas muito pontualmente no roteiro.
Sobre esse aspecto, pretendia-se comparar Chapadão do Bugre com Grande Sertão:
Veredas, por tratar-se de dois exemplos emblemáticos. O romance de Mário Palmério não
faz um jogo muito intrincado entre as temporalidade básicas; a minissérie da Bandeirantes,
no entanto, optou por fazer um jogo constante entre cenas bastante entrecortadas com
abundantes flash-backs e flash-forwards, em preto-e-branco, por vezes com imagem
espelhada, etc. Uma das performances mais exploradas nesse sentido é a traição de do
Carmo com filho do patrão, detonadora do PN de vingança de José de Arimatéia. Trata-se,
no entanto, até onde se conhece, de uma exceção em termos de estratégias de
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temporalização no discurso televisual:a adoção de uma organização temporal bem mais
complexa que a do romance original.
O romance GSV, ao contrário do de Mário Palmério, estrutura-se a partir de inúmeras idas
e vindas temporais, numa forma de narrar cara a muitos autores contemporâneos, tendo
como exemplo-limite o de Joyce na utilização do fluir de consciência, mas também muitos
autores latino-americanos, como Cabrera Infante em Los Três Tristes Tigres, por exemplo.
Na minissérie, no entanto, opta-se pela “cronologização” deste diálogo-monólogo-fluir de
consciência. Essa posição parece ser a que prevalece nas transmutações sincréticas, como
em Vidas Secas. Parece prevalecer de forma mais forte ainda no televisual, apesar da
excecção citada, devido às servidões da extensão e da descontinuidade, as quais parecem
justificar as palavras do roteirista-adaptador de Grande Sertão: Veredas:
Além disso (de buscar a ação no romance de Guimarães Rosa), botei na ordem
direta que considero um veículo indispensável, neste caso tinha outra
importância, tinha que descomplicar um pouco mais (...) O linear na televisão é
também quase que uma lei imutável. Veja bem: o flash-back no cinema: o
tempo do filme não faz você esquecer que aquilo é um flash-back, (...) agora,
numa novela, numa minissérie, você faz flash-back no primeiro capítulo, uma
porção de pessoas não vão assistir, então, desapareceu o flash-black: em TV é
frio. Na TV se está interessado fundamentalmente naquilo que vai acontecer em
seguida; só usamos flash-back para revelar um mistério e aí não perde sua
força, senão é um elemento artificial, vai construir um ruído na cabeça do
público”.