A Interseção de Metodologias de Ensino Na Preparação Do Ator

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1 A INTERSEÇÃO DE METODOLOGIAS DE ENSINO NA PREPARAÇÃO DO ATOR MACIEL, Marcelo Perez 1 CABARRÃO, Marcelo Santos 2 RESUMO Este artigo trata da análise da interseção das metodologias de Augusto Boal e Viola Spolin na potencialização do processo de construção de uma realidade física, com ênfase na importância do corpo para os dois autores, nos conceitos de Jogos e Exercícios, de Augusto Boal e no conceito de Fisicalização, de Viola Spolin, como parte de um sistema de ensino-aprendizagem utilizado na preparação do ator em oficina livre de teatro. Para o presente estudo foram levantadas bibliografias que dissertaram sobre métodos de ensino de teatro, a preparação do ator e o papel do corpo neste processo. Verificou-se a necessidade da reflexão constante entre teoria e prática e a adequação de métodos na construção de novos processos de ensino. O equipamento físico e sensorial afirmou-se como ponto de partida na construção de outras realidades, confirmando a importância do corpo na preparação do ator. A interseção das metodologias estudadas no artigo se mostrou eficaz dentro de um processo de ensino-aprendizagem específico de oficina livre de teatro. Palavras chave: Teatro. Metodologias de ensino. Boal. Spolin. 1 INTRODUÇÃO O trabalho intitulado “A INTERSEÇÃO DE METODOLOGIAS DE ENSINO NA PREPARAÇÃO DO ATOR” vem cumprir a exigência como 1 Marcelo Perez Maciel (diretor da Cia. do Lavrado; instrutor de teatro no SESC/RR; professor de língua portuguesa da Secretaria Estadual de Educação e Desporto de Roraima). 2 Marcelo Santos Cabarrão (Professor-orientador, Metodologia do Ensino de Artes/UNINTER).

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TCC - Metodologia do Ensino de Artes

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A INTERSEO DE METODOLOGIAS DE ENSINO NA PREPARAO DO ATORMACIEL, Marcelo Perez

CABARRO, Marcelo Santos

RESUMO

Este artigo trata da anlise da interseo das metodologias de Augusto Boal e Viola Spolin na potencializao do processo de construo de uma realidade fsica, com nfase na importncia do corpo para os dois autores, nos conceitos de Jogos e Exerccios, de Augusto Boal e no conceito de Fisicalizao, de Viola Spolin, como parte de um sistema de ensino-aprendizagem utilizado na preparao do ator em oficina livre de teatro. Para o presente estudo foram levantadas bibliografias que dissertaram sobre mtodos de ensino de teatro, a preparao do ator e o papel do corpo neste processo. Verificou-se a necessidade da reflexo constante entre teoria e prtica e a adequao de mtodos na construo de novos processos de ensino. O equipamento fsico e sensorial afirmou-se como ponto de partida na construo de outras realidades, confirmando a importncia do corpo na preparao do ator. A interseo das metodologias estudadas no artigo se mostrou eficaz dentro de um processo de ensino-aprendizagem especfico de oficina livre de teatro.Palavras chave: Teatro. Metodologias de ensino. Boal. Spolin.

1 INTRODUO O trabalho intitulado A INTERSEO DE METODOLOGIAS DE ENSINO NA PREPARAO DO ATOR vem cumprir a exigncia como forma de obteno do ttulo de Especializao em Metodologia do Ensino de Artes pela UNINTER e tem como objetivo analisar a interseo da metodologia de Augusto Boal com a metodologia de Viola Spolin na potencializao do processo de construo de uma realidade fsica, com nfase na importncia do corpo para os dois autores, nos conceitos de Jogos e Exerccios, de Augusto Boal e no conceito de Fisicalizao, de Viola Spolin, como parte de um sistema de ensino-aprendizagem utilizado na preparao do ator em oficina livre de teatro.As motivaes deste trabalho advm, em grande parte, das dificuldades encontradas para identificar uma metodologia que atendesse s demandas do grupo de alunos da Oficina Livre de Teatro da Cia. do Lavrado, grupo teatral da qual o autor deste artigo integrante desde a sua fundao, em 2005, e professor desde 2010 no projeto Oficina Livre de Teatro, que em 2014 avana para a 5 edio.

Embora os objetivos dos alunos que procuram a oficina sejam diversos, a prtica propicia um exerccio de percepo desses anseios e adaptao da metodologia de diferentes referncias do teatro. Neste sentido, optou-se pelo uso em conjunto das metodologias de Augusto Boal e Viola Spolin, por acreditar que existe um ponto de interseo (teoria/prtica) entre os mtodos a liberdade de expresso fsica e que ambos atendem s demandas do grupo de alunos da oficina.A partir das experincias terico-prticas utilizadas nas quatro edies da Oficina Livre de Teatro (2010; 2012; 2013.1; 2013.2), dois conceitos centrais se evidenciaram como norteadores do percurso artstico-pedaggico: o conceito de Jogos e Exerccios do arsenal do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal e o conceito de Fisicalizao, de Viola Spolin, no qual pretendo afirmar nesse artigo que as duas prticas metodolgicas se complementam em um ambiente de ensino livre de teatro.A metodologia de Augusto Boal prioriza o trabalho com o corpo na preparao do ator, ponto fundamental na desmecanizao fsica e insero terica dentro do processo de desconstruo social. Sobre os Jogos e Exerccios do arsenal do Teatro do oprimido Augusto Boal afirma que: Neste livro, utilizo a palavra exerccio para designar todo movimento fsico, muscular, respiratrio, motor, vocal que ajude aquele que o faz a melhor conhecer e reconhecer seu corpo [...]. O exerccio uma reflexo fsica sobre si mesmo. Um monlogo, uma introverso.Os jogos, em contrapartida, tratam da expressividade dos corpos como emissores e receptores de mensagens. Os jogos so um dilogo, exigem um interlocutor, so extroverso (BOAL, 1998, p. 87).J Viola Spolin d nfase ao objeto, no qual a relao fsica est subordinada construo de uma realidade. Sobre o conceito de Fisicalizao Viola Spolin afirma que: O termo fisicalizao usado neste livro descreve a maneira pelo qual o material apresentado ao aluno num nvel fsico e no verbal, em oposio a uma abordagem intelectual e psicolgica. [...] Nossa primeira preocupao encorajar a liberdade de expresso fsica, porque o relacionamento fsico e sensorial com a forma de arte abre as portas para o insight. [...] A realidade s pode ser fsica. Nesse meio fsico ela concebida e comunicada atravs do equipamento sensorial. [...] fisicalizar mostrar. (SPOLIN, 1963: 13).Desta forma, constata-se que os conceitos metodolgicos citados acima podem ser complementares, pois ambos necessitam o uso total do equipamento sensorial como base para o desenvolvimento dos seus processos. Com o objetivo de reforar a hiptese da complementao, sero realizados dilogos com outros tericos que abordam as mesmas questes do artigo.

2 DESENVOLVIMENTOO teatro uma forma de manifestao antiga. A sua existncia acompanha o desenvolvimento da humanidade, que atravs dos tempos o utiliza desempenhando diferentes papeis nas sociedades. No princpio, a necessidade de comunicao do homem com as foras da natureza o impulsionaram a imit-la, atravs de gestos, sons e ritmos reagiam ao inexplicvel mundo que o cercava.

As manifestaes ritualsticas que originaram o teatro provavelmente eram exclusivamente fsicas. Segundo Laport (1975, p.04), a Expresso Corporal uma dessas formas de reao, de comportamento do ser vivo em sua relao com os outros seres, na intercomunicao no verbal e, portanto, anterior prpria existncia da palavra. Desta forma, o corpo sempre exerceu importante papel no exerccio consciente da linguagem. Segundo Chacra (1991, p.91), medida que o teatro evolui, o pblico vai deixando gradativamente de ser participante para se tornar espectador, ampliando as possibilidades de utilizao do teatro, que alm das prticas religiosas, da explicao da existncia de uma realidade como o surgimento e continuidade da vida pelos mitos, na passagem de rito para espetculo passa a servir, tambm, como entretenimento diante da rotina da vida.

A necessidade de dramatizao no homem inerente sua existncia. Segundo Berthold (2010, p.1), a transformao numa outra pessoa uma das formas arquetpicas da expresso humana, faz parte do seu comportamento a capacidade de representao do pensamento por meio de sinais e o corpo um instrumento fundamental, capaz de expressar qualquer tipo de mensagem, o que permite a interao total com o ambiente em que vive.Como forma de expresso humana, seja de cunho artstico, artstico-pedaggico ou simplesmente como instrumento para a potencializao de um processo de ensino-aprendizagem em outras reas, o ensino do teatro precisa seguir uma proposta metodolgica que possibilite o dilogo entre a teoria e a prtica, ampliando as capacidades expressivas de quem o pratica.O ensino do teatro no limita-se aos espaos de educao formal. Esta prtica multiplicada em comunidades, clubes, instituies, grupos de teatro e em uma infinidade de configuraes sociais que se utilizam do teatro, seja para trabalhar alguma questo especfica ou simplesmente da prtica como apropriao da linguagem.

Embora o ensino do teatro acontea em espaos distintos, longe das rotinas acadmicas, a forma como isso se d, a metodologia, ainda pouco estudada ou difundida. Por no existir uma exigncia curricular nestes espaos, o referencial metodolgico tradicional torna-se fonte principal na construo de um processo metodolgico.

As inquietaes que instigaram a produo deste artigo residem nas seguintes perguntas: Qual mtodo deve ser utilizado em uma oficina livre de teatro? Quais os contedos necessrios devem compor a proposta metodolgica? O corpo, como principal instrumento do ator, deve ter um tratamento especial? Como atender demanda distinta do grupo de alunos que procuram a oficina? possvel conjugar em um plano mais de um mtodo? Na tentativa de responder estas questes preciso caracterizar o ambiente em que se oferece o ensino do teatro.

O projeto Oficina Livre de Teatro promovido pela Cia. do Lavrado, suas oficinas so realizadas na sede do grupo, localizada no Centro de Cidadania Ns Existimos, Boa Vista, Roraima. Este Centro abriga 19 Associaes, dentre organizaes e movimentos sociais como: Alcolicos Annimos, MST, Sindicato dos Bancrios, CUT, Cia. do Lavrado (teatro), Pastoral Indigenista, Rede de Educao Cidad, Movimento das Mulheres camponesas, entre outros.

As aulas so realizadas em trs espaos, que se revezam de acordo com a proposta abordada: em uma sala de exposio, em uma sala de reunies e na rua (em frente casa). Com durao de 40 horas divididas em 10 sbados, a Oficina Livre de Teatro promovida pelo prprio grupo com o objetivo de possibilitar ao aluno-participante vivenciar um processo de construo teatral, desde a formao do grupo de trabalho, reconhecimento das capacidades individuais e coletivas, at a montagem de um espetculo a partir dos interesses do elenco formado.

Alm do objetivo da oficina, a sua existncia se justifica por necessidade de sobrevivncia do grupo, uma vez que o valor recebido revertido para o pagamento do professor, a compra de material de produo e o pagamento do aluguel da sede da Cia. do Lavrado, local de realizao das reunies de produo, ensaios, oficinas e alguns espetculos.

Outra justificativa importante o fato da oficina ser um espao de experimentao metodolgica e esttica, na qual busca-se um mtodo atravs de outros mtodos, por meio do estudo da teoria e da prtica de fazer e ensinar teatro e ainda, a partir dessas experincias coletivas consegue-se manter cada vez mais viva a linguagem do grupo. A maior parte dos alunos que procuram a Oficina Livre de Teatro nunca tiveram experincia anterior. So homens e mulheres de diferentes idades, com profisses e interesses distintos, enrijecidos por um sistema competitivo, que os obriga a cumprir rotinas desgastantes, sendo essas algumas das razes por frequentarem a oficina de teatro. Dentro de um processo metodolgico, mesmo intitulado como livre, preciso estabelecer objetivos e proporcionar a experincia com um mtodo de ensino no teatro que consiga dar conta de todas as demandas do grupo formado na oficina, aliando teoria prtica, estimulando o indivduo a se perceber e perceber o mundo sua volta.A 1 edio da Oficina Livre de Teatro aconteceu em 2010 e tinha como base metodolgica os seguintes procedimentos: dinmicas de grupo (integrao), jogos dramticos, jogos teatrais, exerccios de aquecimento, improvisao teatral e leitura, construo e apresentao de cenas, tendo como referencial terico as metodologias de Augusto Boal, Aladyr Santos Lopes, Maria Clara Machado, Olga Reverbel, Stanislavski, Viola Spolin, e exerccios experimentados pelo autor do artigo nos 19 anos de sua prtica teatral, sendo nove deles como instrutor/professor de teatro. Apesar de proporcionar um ambiente criativo de trabalho coletivo, estimulando os alunos experimentao teatral, a inquietao de como fazer j estava presente.Nesta edio, o dilogo entre teoria e prtica limitou-se aos poucos comentrios do professor com relao aos exerccios realizados pelos alunos. As aulas foram registradas em foto e vdeo e o material disponibilizado aos participantes, posteriormente, sem nenhum momento de reflexo coletiva sobre as imagens. A execuo das atividades tinha maior importncia e como o momento de reflexo ficava em segundo plano, na metade do processo, na sexta aula, o planejamento no deu conta das demandas surgidas na formao do grupo (concomitante com a formao do professor).Para Barba (1962) apud Aslan (2005), no h um caminho a seguir pela imposio de uma sequncia de exerccios classificados. Cabe a cada um encontrar aqueles que lhe sero mais apropriados, a partir de princpios bsicos. E na busca desse entendimento, percebeu-se a necessidade de focalizar um ponto de trabalho e a partir da estruturar todo o processo metodolgico. Os registros de foto e vdeo apontavam uma disponibilidade maior dos participantes quando estimulados, primeiramente, fisicamente, para depois se envolverem na criao de uma realidade fsica, com dramaturgia ou no. E por isso o corpo passou a ter um papel primordial na preparao dos alunos da oficina livre de teatro.Segundo Stanislavski (1991, p.123), antes de tentar criar qualquer coisa vocs tm de por os seus msculos em condio adequada, para que no lhes estorvem as aes, e tendo o corpo como foco principal na 2 edio, os jogos e exerccios do arsenal do Teatro do Oprimido formaram a base metodolgica, possibilitando uma experimentao muito mais fsica, apurando a percepo dos sentidos e assim expondo cada vez mais os participantes e professor dentro do processo de trabalho.

Em conjunto com Boal, utilizou-se os jogos dramticos de Maria Clara Machado:

Acho que atravs destes jogos, que j foram todos experimentados por ns aqui do TABLADO, pode-se encontrar o caminho mais curto e mais atuante de se chegar, ou melhor, de se voltar a um estado de receptividade, de espontaneidade, de libertao da imaginao (perdida na infncia), ao mesmo tempo que desenvolve na criana e no professor ou no futuro ator de teatro o esprito de observao, o sentido esttico e social da vida. Atravs da observao de situaes dramticas, o aluno toma conscincia de sua personalidade, de suas prprias reaes, e tambm de suas responsabilidades (MACHADO, 1994, p. 12).O jogos dramticos apresentados pela autora proporcionaram importante estmulo imaginao nos momentos de construo cnica, alm de possibilitar o dilogo entre a realidade da vida e a do palco, ponto extremamente discutido, tambm, na metodologia de Augusto Boal e Viola Spolin.

Os procedimentos de improvisao para o teatro propostos por Viola Spolin, principalmente no que diz respeito instruo espacial no ambiente teatral, e alguns jogos de acampamento, que contriburam para a formao do ambiente de criao de um espetculo de teatro de rua completaram a base metodolgica desta edio.Desta vez, o desequilbrio ou a ausncia de dilogo entre as metodologias tumultuou o processo, acelerado para que pudesse ser concludo. Foi observado que o excesso de exerccios na preparao do equipamento sensorial dos alunos e a discusso da teoria de Viola Spolin durante as aulas, deslocada da experincia fsica proposta por Boal, resultou em um processo emendado, sobrando pouco tempo para a experimentao dos jogos dramticos de Maria Clara Machado, efetivamente previstos como possibilidade de reflexo entre as metodologias.Na 3 edio o dilogo aconteceu, ou melhor, ficou evidente. Como observado nas experincias anteriores, o equipamento fsico precisava ser estimulado, mas no como parte isolada do processo. A percepo do corpo como suporte de representao deveria agregar tanto as experincias vividas, moldadas no fsico enrijecido, quanto as novas partituras possveis. Como afirma Lehmann:

O corpo vivo uma complexa rede de pulses, intensidades, pontos de energia e fluxos, na qual processos sensrio-motores coexistem com lembranas corporais acumuladas, codificaes e choques. Todo corpo diverso: corpo de trabalho, corpo de prazer, corpo de esporte, corpo pblico e privado. A concepo cultural sobre o que o corpo est sujeita a flutuaes dramticas, e o teatro articula e reflete essas concepes. Ele representa corpos e ao mesmo tempo os tem como seu principal material de significao. (LEHMANN, 2007, p. 332).A importncia do corpo na preparao do ator e o conceito de fisicalizao foram discutidos, assim como a liberdade de expresso fsica comum s duas propostas. A necessidade de investigao da interseo destas metodologias prevaleceu no planejamento da IV Oficina Livre de Teatro.A 4 edio deixou bem clara a importncia do conhecimento, vivncia e reflexo das prticas metodolgicas anteriores para que a proposta de trabalho resultasse no amplo dilogo entre os autores referenciados, que nesta experimentao se mostraram complementares, contribuindo com o desenvolvimento dos alunos e correspondendo com suas expectativas. A ideia do autor deste artigo de trabalhar com a teoria de Augusto Boal e Viola Spolin como base metodolgica de uma oficina livre de teatro surgiu a partir da observao em sua prtica teatral de um ponto em comum entre os autores a liberdade de expresso fsica. Os dois tericos partem do princpio de que qualquer pessoa capaz de se comunicar a partir da linguagem do teatro. E esta premissa, sem o fantasma do teatro profissional, que muitas vezes afasta as pessoas sem experincia, sempre foi amplamente divulgada como atrativo e princpio de dilogo com os novos alunos da Oficina Livre de Teatro da Cia. do Lavrado. A importncia do uso do material fsico est presente na metodologia de outros tericos. Augusto Boal dialoga com o trabalho de Stanislavski:

O trabalho de Stanislavski sobre as aes fsicas vo tambm neste sentido; ideias, emoes e sensaes esto indissoluvelmente entrelaadas. Um movimento corporal um pensamento. Um pensamento tambm se exprime corporalmente. [...] Portanto, todas as ideias, todas as imagens mentais, todas as emoes se revelam fisicamente. (BOAL, 1998, p. 88).A desmecanizao proposta pelo autor a partir do exerccio consciente da percepo dos sentidos, e consequentemente, da potencializao dos mesmos na construo cnica, aponta para a integrao do corpo e da mente. Esta proposta possibilita ao aluno perceber-se em um momento de aquecimento, tanto fsico e mental. Suas tenses e o impacto causado pelo excesso das aes repetitivas diariamente evidenciam a necessidade de uma reflexo fsica, para somente depois, com os sentidos mais ativados, mergulhar livremente na criao de outras realidades.

Segundo Aslan (2005, p. 41), preciso reabilitar o corpo e ao mesmo tempo reeduc-lo. Desta forma, o corpo precisa ser reorganizado para que possa atender prontamente aos novos estmulos que lhes sero exigidos na construo da realidade fsica. O psquico e o fsico devero se comunicar de forma imediata na criao e execuo das atividades cnicas e para isso devero estar em plena sintonia ou pelo menos em processo. Por outro lado, Viola Spolin apresenta como base do seu trabalho a fisicalizao, que tem o objetivo de criar uma realidade fsica a partir do nada. O aluno-ator deve fazer uso do seu corpo, ativar todos os seus sentidos, estimular cada vez mais a sua percepo, pois do contrrio de nada adiantar pensar outras realidades se no for possvel perceb-las fisicamente. A autora destaca a importncia da percepo do espao, logo, da autoconscincia, tambm necessria na realidade teatral:

O primeiro passo para jogar sentir liberdade pessoal. Antes de jogar, devemos estar livres. necessrio ser parte do mundo que nos circunda e torn-lo real tocando, vendo, sentindo o seu sabor, e o seu aroma o que procuramos o contato direto com o ambiente. Ele deve ser investigado, questionado, aceito ou rejeitado. (SPOLIN, 2003, p. 06).

Neste ponto, as metodologias de Augusto Boal e Viola Spolin se unem em um mesmo discurso. Tanto para proporcionar a desmecanizao, que neste caso no est isolada de todo aparato social, quanto a criao de outras realidades, o corpo, na sua total liberdade, fundamental dentro de cada processo.

E a autora destaca ainda:

Por causa da natureza dos problemas de atuao, imperativo preparar todo o equipamento sensorial, livrar-se de todos os preconceitos, interpretaes e suposies, para que se possa estabelecer um contato puro e direto com o meio criado e com os objetos e pessoas dentro dele. Quando isto aprendido dentro do mundo do teatro, produz simultaneamente o reconhecimento e contato puro e direto com o mundo exterior. Isto amplia a habilidade do aluno-ator para envolver-se com seu prprio mundo fenomenal e experiment-lo mais pessoalmente. (SPOLIN, 2003, p. 13).Apesar da autora destacar a necessidade de preparo de todo o equipamento sensorial, ainda assim, em sua obra Improvisao para o teatro (2003), os jogos propostos com este objetivo no aparecem isolados da criao de uma realidade fsica, ou seja, desde o incio de sua proposta metodolgica ela sugere situaes, instiga tornar real o que no real e nesta perspectiva que estimula o uso dos sentidos, mas nunca tendo os mesmos como ponto principal.

Embora o foco da metodologia de Viola Spolin esteja na construo de uma realidade fsica e para isso se faz necessrio a percepo do mundo fsico, entendendo o fsico como todo o equipamento sensorial, o trabalho de conscincia sensorial em seu mtodo limita-se s Sesses de Orientao. Segundo Spolin (2003, p.49), neste ponto, o grupo deve estar bastante solto e receptivo pronto para uma curta discusso sobre os sentidos e seu valor como instrumentos, cabe ao aluno-ator a responsabilidade de desenvolver-se individualmente realizando as tarefas de casa propostas pela autora. Por outro lado, nos Exerccios e Jogos (joguexerccios) do Arsenal do Teatro do Oprimido utilizados para a preparao do ator e do no-ator, Augusto Boal prope o desenvolvimento do aparelho sensorial. Segundo Boal (1998, p. 89), para que o corpo seja capaz de emitir e receber todas as mensagens possveis, preciso que seja re-harmonizado. Nesse sentido foi que escolhi exerccios e jogos focados na des-especializao, ou seja, para o envolvimento total do corpo em uma nova linguagem necessrio a reeducao e potencializao dos sentidos.Ambos os processos metodolgicos priorizam a liberdade de expresso fsica como elemento fundamental na preparao do ator ou do no-ator. Tendo em vista que o corpo por si s expressivo, os outros elementos passam a ser coadjuvantes dentro do processo de preparao, pois a comunicao total no teatro, assim como nos primrdios da humanidade, acontece a partir do corpo. 2.1 METODOLOGIA

Para o presente estudo foram levantadas bibliografias que dissertam sobre mtodos de ensino de teatro, a preparao do ator e o papel do corpo neste processo buscando justificar a complementao das metodologias de Augusto Boal e Viola Spolin, partindo da experincia em oficina livre de teatro.

Utilizou-se referenciais tericos publicados em livros, artigos, monografias e dissertaes. A escolha dos autores ocorreu de forma seletiva tendo como descritor o objeto examinado neste estudo e a organizao dos mesmos deu-se de forma a corroborar com a construo de uma linha reflexiva. Abordou-se as seguintes categorias de estudo: mtodos, jogos, exerccios, fisicalizao, o corpo na preparao do ator.

3 CONSIDERAES FINAIS A escolha da metodologia de ensino em uma proposta de oficina livre de teatro deve se ajustar diretamente aos objetivos de quem a promove, em conjunto com os anseios dos que participam. A ideia de manual de instrues com prticas repetidas em cada processo, porm, no transformadas, deve ser abortada de imediato.

Assim como os grupos so formados por indivduos diferentes, a abordagem em cada trabalho deve ser singular, proporcionando sempre a reflexo constante entre a teoria e a prtica, fundamental para a afirmao dos objetivo propostos e construo de novos processos cada vez mais vivos.No aspecto da Oficina Livre de Teatro da Cia. do Lavrado os contedos necessrios no planejamento das aulas esto diretamente ligados ao equipamento fsico e sensorial como ponto de partida da construo de outras realidades, pois a reflexo dos processos anteriores apontou para esta direo, inclusive, confirmando na prtica a importncia do corpo na preparao do ator, pois no corpo e somente a partir dele que a expressividade cnica se torna realidade.A metodologia de Augusto Boal e Viola Spolin se complementam dentro do ambiente da Oficina Livre de Teatro da Cia. do Lavrado, enquanto uma proporciona uma eficaz preparao do equipamento fsico do ator, a outra o coloca diante de questes fundamentais para a construo cnica, seja ela no uso do teatro improvisacional ou no. As duas metodologias oferecem uma base terica essencial para a formao do ator e neste caso especfico, o uso em conjunto sempre o ponto de incio de cada processo.REFERNCIAS

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Marcelo Perez Maciel (diretor da Cia. do Lavrado; instrutor de teatro no SESC/RR; professor de lngua portuguesa da Secretaria Estadual de Educao e Desporto de Roraima).

Marcelo Santos Cabarro (Professor-orientador, Metodologia do Ensino de Artes/UNINTER).

Grupo teatral da qual o autor deste artigo integrante desde a sua fundao, em 2005, e professor desde 2010 no projeto Oficina Livre de Teatro.

O Ns Existimos uma associao civil sem fins lucrativos e, atravs de aes sociais, culturais, informativas e econmicas, objetiva o fortalecimento da conscincia de cidadania do povo, seja esse habitante das reas urbanas, rurais ou indgenas.