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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 6781 A INSTITUCIONALIZAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DAS CRIANÇAS POBRES DE UBERABA (MG) COMO FORMA DE MANUTENÇÃO DA ORDEM NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX Marilsa Aparecida Alberto Assis Souza 1 Introdução No final do século XIX e início do século XX, o Brasil passou por uma série de transformações urbanas que concorreram para intensificar os problemas sociais decorrentes da pobreza. Além do aumento populacional nos centros urbanos - resultante do incipiente processo de industrialização e da entrada de mão de obra imigrante - o fim do regime de escravidão também contribuiu para o aumento, por todo o país, do número de crianças e adultos abandonados à própria sorte, uma vez que a abolição da escravatura não veio acompanhada de reformas políticas e sociais que protegessem os libertos no processo de transição para o sistema de trabalho livre. Além disso, somados a esses ex-escravos existia a população livre, mas pobre, que era considerada, desde o contexto da escravidão, resíduos sociais, ou ainda, desajustados que não se enquadravam na bipolaridade de classes da sociedade escravocrata (KOWARICK, 1994). Conforme Patto (1999, p. 174), Na categoria de vadios estavam, sim, negros deixados à própria sorte desde a Abolição e objeto de preconceito racial, mas também toda uma gama de pobres livres cujo trabalho era socialmente desnecessário. A luta diária pela vida levava-os a improvisar vários tipos de afazeres, desde ocupações autônomas, bicos e subemprego temporário, que movimentaram a economia informal, até outras formas de sobrevivência, como o roubo, o jogo, a prostituição e a mendicância. Nessa ambiência, começaram a circular discursos nominando novas categorias sociais, dentre as quais estavam incluídas as crianças: as chamadas classes pobres, perigosas e viciosas, conforme apresentado por Chalhoub (1996). Outra forma de adjetivar os pobres bastante utilizada neste período foi por meio das expressões vadios e vagabundos. Inicialmente, o termo vagabundo era empregado para designar indivíduos mal-afamados ou com profissão de má-reputação. Posteriormente, enquadraram-se nessa categoria aqueles que estavam vinculados a uma situação de “ausência de trabalho, isto é, a ociosidade 1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Técnica em Assuntos Educacionais na Universidade Federal do Triângulo Mineiro. E-Mail: <[email protected]>.

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A INSTITUCIONALIZAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DAS CRIANÇAS POBRES DE UBERABA (MG) COMO FORMA DE MANUTENÇÃO DA

ORDEM NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

Marilsa Aparecida Alberto Assis Souza 1

Introdução

No final do século XIX e início do século XX, o Brasil passou por uma série de

transformações urbanas que concorreram para intensificar os problemas sociais decorrentes

da pobreza. Além do aumento populacional nos centros urbanos - resultante do incipiente

processo de industrialização e da entrada de mão de obra imigrante - o fim do regime de

escravidão também contribuiu para o aumento, por todo o país, do número de crianças e

adultos abandonados à própria sorte, uma vez que a abolição da escravatura não veio

acompanhada de reformas políticas e sociais que protegessem os libertos no processo de

transição para o sistema de trabalho livre. Além disso, somados a esses ex-escravos existia a

população livre, mas pobre, que era considerada, desde o contexto da escravidão, resíduos

sociais, ou ainda, desajustados que não se enquadravam na bipolaridade de classes da

sociedade escravocrata (KOWARICK, 1994). Conforme Patto (1999, p. 174),

Na categoria de vadios estavam, sim, negros deixados à própria sorte desde a Abolição e objeto de preconceito racial, mas também toda uma gama de pobres livres cujo trabalho era socialmente desnecessário. A luta diária pela vida levava-os a improvisar vários tipos de afazeres, desde ocupações autônomas, bicos e subemprego temporário, que movimentaram a economia informal, até outras formas de sobrevivência, como o roubo, o jogo, a prostituição e a mendicância.

Nessa ambiência, começaram a circular discursos nominando novas categorias sociais,

dentre as quais estavam incluídas as crianças: as chamadas classes pobres, perigosas e

viciosas, conforme apresentado por Chalhoub (1996). Outra forma de adjetivar os pobres

bastante utilizada neste período foi por meio das expressões vadios e vagabundos.

Inicialmente, o termo vagabundo era empregado para designar indivíduos mal-afamados ou

com profissão de má-reputação. Posteriormente, enquadraram-se nessa categoria aqueles

que estavam vinculados a uma situação de “ausência de trabalho, isto é, a ociosidade

1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Técnica em Assuntos Educacionais na Universidade Federal do Triângulo Mineiro. E-Mail: <[email protected]>.

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associada à falta de recursos, e o fato de ser sem fé nem lei, isto é, sem pertencimento

comunitário” (CASTEL, 2009, p. 120).

No Brasil, segundo Kowarick (1994, p. 31), “a escravidão, outro ângulo do processo

idílico de acumulação primitiva, produziu os livres e marginais”. Tratava-se, de acordo com

esse autor, de uma “enorme massa de pessoas destituídas de propriedade e de instrumentos

produtivos, desempenhando tarefas acessórias e ocasionais, sobrevivendo em pequenas

glebas de terra ou vagando pelos campos e cidades sem função econômica estável e precisa”

(idem, p. 31).

Em meio a esta ebulição social que caracterizou a virada daquele século, o aumento

cada vez mais expressivo de pobres e de crianças desamparadas pelas ruas das cidades

brasileiras passou a exigir políticas públicas renovadas no atendimento a esses segmentos

populacionais. A pobreza - considerada foco de desordem, imoralidade e doenças - passou a

ser tratada como um problema social e moral, uma vez que a circulação dessa classe

perigosa pelos centros urbanos comprometia o aspecto da recém instaurada República,

erigida sob o símbolo da ordem e do progresso. Segundo Geremek (1986, pp. 277-278), o

pauperismo fez disseminar duas crenças na sociedade: primeiramente, ele era considerado

“um fenômeno que urge submeter a rigoroso controle e procurar limitar por todos os meios”.

Ademais, espalhou-se também o pensamento de que “a miséria e o crime andam associados”,

motivo pelo qual, conforme Henry Fielding (apud GEREMEK, 1986, p. 278), “apercebemo-

nos menos dos sofrimentos dos pobres do que dos seus delitos, o que diminui a nossa

compaixão por eles [...]”.

Resguardadas as devidas proporções, pode-se dizer que no município de Uberaba (MG)

a situação não foi muito diferente. Pelas buscas efetuadas nos jornais e revistas publicadas no

período em apreço, constatou-se que reiteradas vezes esses veículos de comunicação

denunciavam a presença de crianças que vadiavam pelas ruas da cidade, fato que

comprometia o aspecto ordeiro de uma cidade em processo de desenvolvimento e

urbanização e que tinha, inclusive, um nome a zelar, devido à projeção alcançada em virtude

da comercialização do gado zebu: “[...] essa mendicidade generalizada numa terra como a

nossa onde se compra zebu por centenas de contos, dá a nossa cidade um aspecto desolador,

impressionante, que parece desmentir a abastança e o conforto em que vivemos” (LAVOURA

E COMÉRCIO, 1919, p. 2).

Logo no início do século XX, em 1904, o jurista Felício Buarque redigiu um extenso

artigo publicado na Revista de Uberaba intitulado A criminologia em Uberaba: ensaio de

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criminologia local, no qual ele incluiu, entre outros temas, o problema da infância ociosa e

da mendicância existentes na cidade:

Nesta cidade, onde vivem numerosas creanças, valendo-se da caridade pública para manterem, ás mais das vezes, a ociosidade e outros vícios paternos e maternos, já deveria haver um instituto de instrucção e educação, em que aprendessem a ler, a escrever e a praticar em artes e officios e, assim, adquirissem habitos de amor ao trabalho. A regulamentação da mendicidade, completada com o estabelecimento de asylos e hospicios para mendigos, impediria o triste exemplo de apresentar-se-nos quase diariamente uma legião de pedintes, em que os aptos para o trabalho se confundem com os inaptos, alguns armando á commiseração publica e outros com ameaças extorquindo esmola. Sé deste modo haveria punição efficaz para a mendicidade criminosa, prevista nos artigos 391 a 395 do Código Penal (BUARQUE, 1904, p. 5).

Embora, neste excerto, Buarque também estivesse preocupado com a criação de

institutos de instrução para atenderem aos menores que ficavam ociosos pelas ruas, a

inserção do problema representado pelas crianças pobres em um tratado de criminologia

indica um pensamento circulante naquela época, já citado anteriormente, de que o

pauperismo era associado à criminalidade e a condutas anti-sociais.

Tais crianças, que praticavam atos de vadiagem e/ou mendicância pelas ruas da

cidade, estavam à margem do sistema escolar regular e eram tratadas pela sociedade de

forma ambígua, pois ao mesmo tempo em que as pessoas sentiam pena, queriam afastá-las

do convívio social. Tal fato coaduna a proposição de Geremek (1986), segundo o qual a

situação de pobreza, de forma geral, inspira na sociedade sentimentos contraditórios: por

parte dos indivíduos, a compaixão ou a repulsa e, por parte das autoridades, a piedade ou a

forca.

No início de 1911, o jornal Lavoura e Comércio publicou, em cinco edições seguidas,

em sua primeira página, uma coluna cujo título era Menores e vagabundos. Os textos, quase

sempre, tinham como escopo mostrar os atos de vadiagem praticados pelos menores,

chamando a atenção da sociedade sobre o fato de que comportamento dessas crianças em

nada contribuiria para a formação de um cidadão últil à nação:

Há uma carencia absoluta de menores que nos sirvam, em casa, e, entretanto, as ruas vivem cheias delles, numa vadiagem que faz nascer temores nos espiritos, mesmo os mais scepticos, sobre o futuro dessa criançada que vagueia dia e noite. Os habitos perniciosos que vão se adquirindo na vagabundagem em que vivem, com a responsabilidade absoluta de seus actos lhes trará, necessariamente, maus dias para um futuro proximo. Ficarão incapazes para a vida com o desfallecimento de energias, pois é rudimentar em psychologia e physiologia que o habito de nada fazer produz o enfraquecimento das energias physicas e um profundo abatimento, um desanimo e um torpor. O espirito se acostuma e quando os pequenos se fizerem homens ou serão inuteis á sociedade pelo desfallecimento de sua

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vontade, desacostumados de um trabalho honesto e tonificador, ou lhes serão perniciosos, nocivos, sem razão dos habitos que adquiriram, frequentando as tavernas e as casas de tolerancia [...] (LAVOURA E COMÉRCIO, 1911, p. 1).

Também em 1919 os jornais continuavam dando destaque à questão da infância, neste

caso criticando as crianças que jogavam futebol nas ruas, incomodando a vizinhança:

Levamos hoje ao conhecimento de quem de direito a queixa que nos fizeram os moradores da rua Padre Zeferino e immediações contra os meninos despreocupados que ali passam o dia a jogar foot-ball e a promover algazarras, perturbando assim não só ao transito de vehiculos como o sossego das familias. Entendem esses menores que a nossa cidade é um campo do Red and White ou do Uberaba S.C., e que a vida dos outros não merece complacencia nem respeito. E o pior é que dessas turbulencias diarias surgem constantemente discussões e conflitos, dos quais não raro acontece a ter pelo menos um ferido. Como medida preventiva, de saneamento moral e garantidora da ordem publica, seria bom que as autoridades policiaes acabassem de vez com os pequenos foot-bolls ambulantes (LAVOURA E COMÉRCIO, 1919, p. 2 – grifos meus).

Nesse fragmento jornalístico fica evidente que a tríade saneamento, ordem pública e

autoridade policial estava visivelmente entranhada nos discursos em circulação. Tal situação

corrobora o que foi pontuado por Koga (2011, p. 53), ao afirmar que

[...] a cidade moderna parecia estabelecer suas técnicas urbanísticas de forma excludente, limpando tudo e todos que não estavam de acordo com as regras estabelecidas pelas autoridades políticas e policiais, pelos engenheiros, médicos locais, pois os pobres representavam não apenas um perigo para a ordem pública, mas também um perigo de proliferação de doenças contagiosas e vícios de toda natureza – a pobreza era contagiosa e perigosa.

Existia, portanto, uma preocupação de cunho higienista voltada para a limpeza da

cidade por meio da retirada e do asilamento, longe dos olhos da sociedade, de todos que não

vivessem de acordo com as regras estabelecidas pelas autoridades políticas e policiais, pelos

médicos e pelos engenheiros preocupados em edificar uma cidade aprazível e saudável. Por

considerarem a pobreza como algo contagioso e perigoso, a melhor solução encontrada era o

isolamento que evitaria, por conseguinte, diversos constrangimentos. Tratava-se, portanto,

de uma política excludente que, ao invés de investir em moradia, saúde e educação, preferia

apartar os pobres do convívio social, pois sua presença configurava “um grave problema que

afeta não somente o lado moral como o lado estético [...]”, conforme pontuado no jornal local

(FERREIRA, 1982, p, 105).

Por motivos óbvios, a circulação de crianças – assim como de outros personagens

sociais como os ex-escravizados, imigrantes e a população pobre em geral – pelas ruas da

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cidade incomodava a sociedade local, que se via no direito de cobrar, dos dirigentes,

mecanismos de controle que permitissem a manutenção da ordem pública e o

disciplinamento moral.

Nesse sentido, a institucionalização foi a estratégia encontrada pelo poder público –

não só de Uberaba, mas de outras cidades do país - para isolar e educar essas crianças,

afastando-as da vadiagem e promiscuidade que eram aspectos ameaçadores da ordem

social. Nessas instituições, crianças e jovens deveriam ser disciplinados, moralizados,

higienizados e educados, para que fossem devolvidos à sociedade aptos ao convívio social e

em condições de inserção no mundo do trabalho. Quando meninos, eles geralmente eram

preparados para o trabalho artesanal ou nas lavouras. Quando meninas, a educação era

voltada, quase sempre, para as atividades domésticas, a fim de que se tornassem donas de

casa competentes e preparadas para o casamento.

Nesta ambiência, o município de Uberaba contou, na primeira década de século XX,

com algumas instituições que disseminaram esses ideais, sendo que nesta comunicação serão

abordadas três delas: uma instituição masculina mantida pelo poder público estadual

denominada Aprendizado Agrícola Borges Sampaio (1914) e duas instituições voltadas para

o público feminino, denominadas Orfanato Santo Eduardo (1920) e Lar Espírita (1947),

ambas de cunho religioso.

Aprendizado Agrícola de Preservação Borges Sampaio

O Aprendizado Agrícola de Preservação Borges Sampaio foi criado em 1914, nos

moldes do Instituto João Pinheiro, de Belo Horizonte, que oferecia ensino profissionalizante

aos menores abandonados material e moralmente e aos órfãos e deserdados da sorte. O

objetivo do Aprendizado Agrícola de Preservação Borges Sampaio era ministrar o ensino

primário e formar “um bom exercito de braços para a lavoura, adestrados no manejo dos

mais modernos instrumentos agrários” (MINAS GERAIS, 1926, p. 344).

O Aprendizado atendia por volta de sessenta alunos e funcionava em regime de

internato. Os aprendizes eram enviados à instituição a pedido dos pais ou tutores, mas

também por determinação judicial, se fossem considerados abandonados. O Aprendizado

também poderia receber menores de outras cidades, a pedido do secretário do Interior. Para

o ingresso era necessário apresentar os seguintes documentos, de acordo com o regulamento:

requerimento do pai ou tutor, certidão de idade, emitida pelo registro civil, atestado médico e

atestado de pobreza.

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Em relação às práticas pedagógicas, o Aprendizado Agrícola oferecia o ensino

primário - que era ministrado por uma professora que morava nas dependências da chácara

– e também oferecia aulas de técnicas agrícolas e de criação de animais – atividades estas que

ficavam a cargo do mestre de culturas, conforme constatado no registro fotográfico que segue

(figura 1).

Figura 1: Aprendizado Agrícola de Preservação Borges Sampaio - Década de 1930 Fonte: Arquivo Público Mineiro

Muito embora essa modalidade institucional tenha sido criada, em seus primórdios,

para “dar suporte ao estado republicano que estava sendo implantado, tentando disseminar

práticas modernas de cultivo agrícola em um país que ainda mantinha resquícios do trabalho

escravo, mas que tencionava se desenvolver sob a égide do progresso e da modernização”

(SOUZA, 2015), na prática as crianças aprendiam a manejar enxadas e fazer capina,

conforme observado na imagem (figura 1).

Mesmo não sendo uma instituição de reforma, ou seja, voltada para menores

delinquentes e/ou pervertidos, o Aprendizado Agrícola Borges Sampaio atendia crianças

nessa situação, conforme observado neste excerto extraído de uma comunicação emitida ao

Juiz de Menores: “[...] o menor José Lino Martins, interno do Aprendizado Agrícola Borges

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Sampaio, em Uberaba, só poderá ser excluído agora, isto é, só poderá ter a sua pena

diminuída, si posto em liberdade vigiada” (APM, 1930).

Nas comunicações expedidas pelo Aprendizado também é possível encontrar várias

informações sobre fuga dos menores, como esta que segue:

[...] o menor Wenceslau Correa se acha foragido do aprendizado Agrícola Borges Sampaio em companhia de mais três alunos daquele estabelecimento desde outubro do ano findo, tendo esta repartição providenciado sobre a captura dos mesmos, conseguindo, por enquanto, encontrar somente um deles (APM, 1930).

De acordo com o relatório do inspetor que fez visita ao estabelecimento em 1930, as

fugas aconteciam devido à situação precária do Aprendizado, tanto no que se refere à

estrutura quanto aos recursos humanos:

[...] Actualmente, são somente 3 funcionarios: director, mestre de cultura e professora primaria, tendo o estabelecimento 60 menores matriculados. O director, além de dirigir o estabelecimento, faz todo o serviço de escripturação e desempenha ainda as funcções de guarda-vigilante, chefe de disciplina, etc. Os menores não fogem porque não querem. Durante a noite, ficam sós, porque o director não pode deixar a sua família para ir dormir ao meio dos menores [...]. E é por falta de um chefe de disciplina que os menores estragam camas, rasgam roupas, perdem calçados, fogem e fazem de um estabelecimento como esse uma casa de liberdades [...]. Devo dizer que, á primeira vista, pode parecer que o director seja o culpado pelo pessimo estado em que se encontra o instituto; porém, assim não acontece. Para conservar um predio tão velho, é preciso gastar-se muito dinheiro, o que não valerá a pena; será esperdiçar cera com máu defuncto (APM, 1930).

A situação precária e deficiente do prédio da instituição foi informada ao governo

estadual por meio de relatório redigido pelo inspetor. Além de apresentar severas críticas em

relação à higiene, o inspetor era contundente ao afirmar que o prédio não merecia retoque,

mas demolição:

[...] Não será criminosa a attitude pacifica de aguardar o “amanhã”? Como permittir que 60 alumnos durmam n’um salão mal arejado e com as camas encostadas umas nas outras? Como permittir ainda uma imundície, em ruinas, como o refeitorio? Como, a cozinha? Não; isso tudo não pode ser permittido, pois além de constituir um serio perigo para a collectividade escolar, é anti-humano. Para completar o quadro tetrico, das condicções hygienicas desse estabelecimento, é conveniente que se saiba que ali não existem latrinas; as necessidades são feitas no mato!!! (APM, 1930).

Devido a sua situação precária, Aprendizado Agrícola teve suas atividades suspensas e

foi provisoriamente fechado, em 1934, sendo seus alunos transferidos para outros institutos

profissionais do Estado. Conforme informado no jornal Lavoura e Comércio, em 25 de abril

de 1934, Léon Renault – que na época era diretor do Instituto João Pinheiro - escreveu uma

carta justificando o ocorrido:

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O Aprendizado não podia continuar como estava. Em relatório, salientei que era criminosos o descaso da administração pública pelos menores que ali se achavam asilados. Propuz, então, que tomasse uma das duas deliberações por mim sugeridas: primeira, a suspensão provisória do estabelecimento, ate que se lhe desse aparelhamento de acordo com a importancia do problema e da zona em que está localizado; segundo, suspensão definitiva do estabelecimento, caso o Estado não quizesse ou não pudesse dar-lhe o aparelhamento necessário. O senhor secretário da Agricultura preferiu a primeira solução, que era a do meu maior agrado. De minha parte, tudo farei nesse sentido, mas é necessário também que a política e a população de Uberaba intervenham (LAVOURA E COMÉRCIO, 1934, p. 1).

Entretanto, a população de Uberaba estava apreensiva com esse fechamento

provisório, uma vez que situação semelhante já havia ocorrido com outra instituição que

ocupara anteriormente o mesmo prédio, o Instituto Zootécnico de Uberaba. No ano seguinte

os temores da população se concretizaram. Conforme publicado no jornal Gazeta de

Uberaba, em janeiro de 1935 (apud FERREIRA, 1982), o município havia perdido o prédio

onde esteve instalado o Aprendizado, pois ele havia sido vendido em hasta pública.

Orfanato Santo Eduardo

A história deste orfanato começou em 1918, quando o Conselho Superior da União

Popular Católica de Uberaba se reuniu e constituiu uma comissão com o objetivo de angariar

esmolas e donativos para a construção de um orfanato, há tempos projetado pelo bispo D.

Eduardo Duarte Silva. A criação do Orfanato Santo Eduardo, portanto, foi resultante da ação

do clero e do laicato católico, especialmente aqueles membros que compunham a elite

política e econômica uberabense.

Quanto às motivações que levaram à criação do orfanato é possível supor que, em

relação às pessoas que faziam parte do laicato católico, além de estarem preocupadas com o

aumento do número de crianças pobres que praticavam a mendicância e/ou vadiavam pelas

vias públicas, elas se sentiam na obrigação de praticar atos de caridade e filantropia para com

esses desgraçadinhos da sorte – termo várias vezes empregado pela imprensa em relação às

crianças pobres e/ou abandonadas.

Entretanto, por parte da Igreja, uma das maiores preocupações que fomentou o

planejamento desta instituição foi o avanço da doutrina espírita na cidade, uma vez que o

Asilo Anália Franco, instalado em 1919, estava desenvolvendo um trabalho junto às crianças

carentes. À propósito, as religiões não católicas foram veementemente combatdas pela Igreja

Católica no período em apreço, não somente em Uberaba, mas por todo o Brasil. No ano de

1917, inclusive, o médico João Teixeira Álvares publicou diversos artigos no jornal Lavoura e

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Comércio nos quais ele atacava o espiritismo e solicitava providências do poder público para

que os centros e escolas espíritas do país fossem fechados:

[...] o espiritismo, como tantos outros crimes, tende a alastrar pelo Brasil, semelhante a um vírus pestilento, que se inocula pela nossa população menos culta, produzindo males que nem se pode enumerar. Obsecados pelas pesudo-doutrinas espíritas, e levados a mais das vezes por motivos incofessáveis, muitos proselytos dessa demonolatria assentam suas bancas nos logares mais públicos e ali estabelecem o seu commercio immoral e as suas indecentes mystificações. Procuram desviar o povo com seus sentimentos e praticas religiosas e, com o pretexto de remedios e curas milagrosas, vão embuindo as multidões e enganando os miseros incautos. Que a policia tome nota da decisão do Supremo Tribunal Federal fechando esses Centros e Escolas Espíritas, onde a par da immoralidade e do mercantilismo, campeia a loucura em todas as suas mais perigosas formas. Fechar esses antros de miséria, processando seus diretores e proprietarios sera o maior e mais patriotico serviço que nos podera prestar a policia, cumprindo assim a sua alta missão de zelar pela moral e pelos bons costumes (LAVOURA E COMÉRCIO, 1917, p. 2).

Instalado em 1920, o Orfanato Santo Eduardo ficou sob os cuidados das Irmãs

Dominicanas de Nossa Senhora do Rosário de Monteils, cuja congregação viera da França

diretamente para Uberaba no ano de 1885, fundando, na ocasião, o Colégio Nossa Senhora

das Dores. O orfanato funcionava em um prédio alugado, atendendo em média quarenta

crianças do sexo feminino. Para se manter, dependia de ações de caridade e filantropia da

sociedade local. No orfanato as meninas aprendiam a ler, escrever, contar, varrer, lavar,

cozinhar e costurar, conforme registrado neste artigo publicado no Jornal Lavoura e

Comércio:

[...] as Irmãs fundaram, também na cidade, uma bela obra de caridade: o Orfanato Santo Eduardo. E desde então as Irmãs tratam, com verdadeiro carinho materno, das crianças desamparadas que lhe são confiadas. Ali, além dos socorros materiais, elas recebem uma educação suave e sólida que as inicia para as lutas da vida. Elas aprendem a ler, a escrever, a contar, a varrer, lavar, cosinhar, costurar. Algumas mais hábeis tem saído dali boas costureiras. Uma que mostrava gosto para o estudo foi formada pelas Irmãs e recebeu o diploma de normalista (LAVOURA E COMÉRCIO, 1935, p. 2).

Devido às dificuldades financeiras, na década de 1940 o orfanato foi transferido para a

Congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade, que continuaram

desenvolvendo, nos primeiros anos, um atendimento semelhante ao das irmãs dominicanas,

ou seja, ofertando o ensino elementar e preparando as internas para a atividades domésticas.

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Lar Espírita

O Lar Espírita de Uberaba, por seu turno, foi criado em 1947. No ano anterior a sua

criação foi publicada a seguinte nota no jornal A Flama, conforme transcrito por Ferreira

(1982, p. 117):

Nem seria razoável que os espíritas e as pessoas caridosas, que zelam dos enfermos e dos velhinhos, deixassem desamparada a criança, na sua fraqueza desarmada contra as hostilidades do ambiente, sempre cheio de ameaças para com os desprotegidos da sorte. Formar a futura sociedade é tarefa altamente meritória; forjar cidadãos, plasmar donas de casa constituem um dever de patriotismo; porém fazê-lo dentro dos princípios espíritas, então é tarefa tão alta e importante, que nos sentimos pequenos para ela (FERREIRA, 1982, p. 117).

Conforme observado neste excerto, o Lar Espírita tinha como intento amparar as

crianças desprotegidas da sorte, contribuindo para sua formação. Para isso, tinham como

propósito plasmar, ou seja, moldar as futuras donas de casa, preparando-as para a

realização dos afazeres domésticos. Assim, o Lar Espírita de Uberaba - departamento da

União da Mocidade Espírita Uberabense – foi criado em 1º de maio de 1947 e inaugurado em

1º de maio de 1949.

Nas fotografias que seguem (figuras 2, 3 e 4) é possível observar que a idade das

meninas era bastante diversificada, pois a instituição atendia crianças que ainda estavam na

primeira infância, mas também adolescentes. Na primeira imagem as crianças estão

dispostas em frente ao Lar Espírita, todas de branco, provavelmente em uma ocasião festiva,

ao lado da educadora. Na figura 3 as meninas estão em seus quartos, sendo possível observar

que crianças maiores cuidavam das menores. Por fim, na figura 4, as adolescentes estão na

aula de costura, atividade bastante valorizada pelas instituições femininas do período.

Figura 2: Lar Espírita de Uberaba, s/d. Fonte: Acervo do Sanatório Espírita de Uberaba.

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Figura 3: Lar Espírita de Uberaba, s/d. Fonte: Acervo do Sanatório Espírita de Uberaba.

Figura4: Lar Espírita de Uberaba, s/d.

Fonte: Acervo do Sanatório Espírita de Uberaba.

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Considerações finais

O estudo aqui descrito analisou três instituições de atendimento à infância situadas

em Uberaba na primeira metade do século XX. No Aprendizado Agrícola Borges Sampaio,

criado pelo poder público e voltado para crianças do sexo masculino, é possível verificar

nitidamente o ideário disciplinador pautado na preparação para o trabalho.

No Orfanato Santo Eduardo e no Lar Espírita, a preparação para o trabalho pode ser

observada nos cursos específicos com essa finalidade, como no caso do curso de costura, mas

essa preparação também se misturava às ações pedagógicas do dia a dia uma vez, quando as

crianças estavam cuidando uma das outras, ou quando tinham que colaborar nas atividades

de limpeza da casa, estavam sendo preparadas para assumirem, futuramente, seu papel de

mães de família ou para poderem trabalhar em casas de família, que eram as possibilidades

mais plausíveis das meninas que se encontravam nessas condições.

Sendo assim, observou-se que as instituições em destaque contribuíram para o

processo de profissionalização da juventude uberabense, contribuindo, portanto, para a

disseminação do ideário disciplinador pautado na preparação para o trabalho. Por outro lado,

vale ressaltar que nessas três instituições as crianças tiveram acesso à educação, mesmo que

restrita à instrução elementar.

Referências

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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

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KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. MINAS GERAIS. Mensagem dirigida pelo Presidente do Estado Fernando de Mello Viana. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1926. PATTO, Maria Helena Souza. Estado, ciência e política na Primeira República: a desqualificação dos pobres. Estudos Avançados 13 (35), 1999. SOUZA, Marilsa Aparecida Alberto Assis; CALIXTO, Jaqueline de Andrade; BEZERRA. Luciene Teresinha de Souza. A trajetória do Aprendizado Agrícola Borges Sampaio em Uberaba/MG sob a ótica das mensagens dos Presidentes do Estado e da imprensa local (1914 a 1939). Congresso de Pesquisa e Ensino de História da Educação em Minas Gerais. 24 a 27 de agosto de 2015.

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Arquivo Público Mineiro – APM

Relatório Aprendizado Agrícola Borges Sampaio, 1930. Série 18; Caixa 01; Pacote 20.