A Influência Do Pensamento de Peter Häberle No STF

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A influência do pensamento de Peter Häberle no STF Por Gilmar Ferreira Mendes e André Rufino do Vale 1. Introdução Peter Häberle é certamente um dos maiores constitucionalistas de nosso tempo e, não seria demais considerar, um dos grandes nomes da história do constitucionalismo ocidental. Essa não é, de nenhuma maneira, uma afirmação vaga ou imprecisa, e muito menos hiperbólica. A difusão transnacional de seu pensamento, quase sempre acompanhada de processos formais de institucionalização de estruturas, organismos e procedimentos voltados à implementação prática dos institutos por ele concebidos em nível doutrinário, é capaz de revelar os sólidos fundamentos que suas criações fornecem para o desenvolvimento do Estado constitucional em tempos hodiernos[1] . As duas últimas décadas têm sido marcadas pela difusão dos sistemas de jurisdição constitucional em novas democracias, principalmente na Europa oriental, Ásia e América Latina[2] , assim como pelo fortalecimento e consolidação do arcabouço institucional do Estado constitucional em diversos países, processos nos quais o pensamento de Peter Häberle tem contribuído de forma decisiva, como é possível observar em países como Peru, México e Argentina[3] . Nesse aspecto, seu especial interesse pela América Latina resultou na ideia de construção de um direito constitucional comum latinoamericano, por meio da identificação dos elementos culturais das Constituições do continente, o que contribui para o processo de integração constitucional e, dessa forma, para o fortalecimento da região como comunidade política e cultural. No Brasil, desde a primeira tradução, para o português, da obra “Hermenêutica Constitucional: Sociedade Aberta dos Intérpretes da

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A influncia do pensamento de Peter Hberle no STF

A influncia do pensamento de Peter Hberle no STF

Por Gilmar Ferreira Mendes e Andr Rufino do Vale1. IntroduoPeter Hberle certamente um dos maiores constitucionalistas de nosso tempo e, no seria demais considerar, um dos grandes nomes da histria do constitucionalismo ocidental. Essa no , de nenhuma maneira, uma afirmao vaga ou imprecisa, e muito menos hiperblica. A difuso transnacional de seu pensamento, quase sempre acompanhada de processos formais de institucionalizao de estruturas, organismos e procedimentos voltados implementao prtica dos institutos por ele concebidos em nvel doutrinrio, capaz de revelar os slidos fundamentos que suas criaes fornecem para o desenvolvimento do Estado constitucional em tempos hodiernos[1].

As duas ltimas dcadas tm sido marcadas pela difuso dos sistemas de jurisdio constitucional em novas democracias, principalmente na Europa oriental, sia e Amrica Latina[2], assim como pelo fortalecimento e consolidao do arcabouo institucional do Estado constitucional em diversos pases, processos nos quais o pensamento de Peter Hberle tem contribudo de forma decisiva, como possvel observar em pases como Peru, Mxico e Argentina[3]. Nesse aspecto, seu especial interesse pela Amrica Latina resultou na ideia de construo de um direito constitucional comum latinoamericano, por meio da identificao dos elementos culturais das Constituies do continente, o que contribui para o processo de integrao constitucional e, dessa forma, para o fortalecimento da regio como comunidade poltica e cultural.

No Brasil, desde a primeira traduo, para o portugus, da obra Hermenutica Constitucional: Sociedade Aberta dos Intrpretes da Constituio contribuio para a Interpretao Pluralista e Procedimental da Constituio[4], a doutrina de Peter Hberle tem sido incorporada com evidente vivacidade, seja no mbito acadmico, por meio da vertiginosa produo bibliogrfica ou da prtica docente e discente nas faculdades de direito, seja pelos poderes constitudos, na forma de produo legislativa e na jurisprudncia dos tribunais.

No mbito legislativo, a Lei 9.868/99, ao institucionalizar a figura do amicus curiae na jurisdio constitucional brasileira, representa um eloquente exemplo da forte influncia da doutrina de Hberle que propugna por uma interpretao aberta e pluralista da Constituio.

Na jurisprudncia, decises proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em tempos recentes demonstram a inestimvel contribuio de Peter Hberle ao desenvolvimento do Direito Constitucional no Brasil, o que ser objeto das consideraes a seguir, divididas em quatro tpicos temticos centrais de seu pensamento: 1) Amicus curiae e audincias pblicas; 2) Pensamento de possibilidades; 3) Tempo e Constituio: a mutao constitucional; 4) Estado constitucional cooperativo.

2. Amicus curiae e audincias pblicasO Supremo Tribunal Federal tem aperfeioado os mecanismos de abertura do processo constitucional a uma cada vez maior pluralidade de sujeitos. A Lei 9.868/99, em seu artigo 7, pargrafo 2, permite que a Corte Constitucional admita a interveno no processo de rgos ou entidades, denominados amici curiae, para que estes possam se manifestar sobre a questo constitucional em debate.

Esse modelo pressupe no s a possibilidade de o tribunal se valer de todos os elementos tcnicos disponveis para a apreciao da legitimidade do ato questionado, mas tambm um amplo direito de participao por parte de terceiros interessados.

Os denominados amici curiae possuem, atualmente, ampla participao nas aes do controle abstrato de constitucionalidade e constituem peas fundamentais do processo de interpretao da Constituio por parte do Supremo Tribunal Federal.

Assim, possvel afirmar que a Jurisdio Constitucional no Brasil adota, hoje, um modelo procedimental que oferece alternativas e condies as quais tornam possvel, de modo cada vez mais intenso, a interferncia de uma pluralidade de sujeitos, argumentos e vises no processo constitucional.

Alm da interveno de amicus curiae, a Lei 9.868/99 (art. 9) permite que o Supremo Tribunal Federal, em caso de necessidade de esclarecimento de matria ou circunstncia de fato, requisite informaes adicionais, designe peritos ou comisso de peritos para que emitam parecer sobre a questo constitucional em debate, e realize audincias pblicas destinadas a colher o depoimento de pessoas com experincia e autoridade na matria.

O tribunal tem utilizado amplamente esses novos mecanismos de abertura procedimental, com destaque para as audincias pblicas recentemente realizadas no mbito das aes do controle abstrato de constitucionalidade.

Na Ao Direta de Inconstitucionalidade 3.510-DF[5], na qual se discutiu a constitucionalidade da pesquisa cientfica com clulas-tronco embrionrias, a audincia pblica realizada no dia 20 de abril de 2007 contou com a participao de especialistas na matria (pesquisadores, acadmicos e mdicos), alm de diversas entidades da sociedade civil[6], e produziu uma impressionante gama de informaes e dados que permitiram ao tribunal, no julgamento definitivo da ao (em 29.5.2008), realizar um efetivo controle e reviso de fatos e prognoses legislativos e apreciar o tema em suas diversas conotaes jurdicas, cientficas e ticas. O resultado foi a declarao de constitucionalidade do artigo 5 da Lei 11.105/2005, mas por uma maioria de 6 votos contra outros 5 votos que continham dispositivos diversificados fundados em distintos aspectos dessa complexa questo constitucional, alguns deles representando verdadeiras sentenas aditivas com contedo manipulativo dos sentidos normativos da lei impugnada[7]. O que ficou marcado nesse julgamento, de toda forma, foi a ampla participao de mltiplos segmentos da sociedade, o que fez da corte um foro de argumentao e de reflexo com eco na coletividade e nas instituies democrticas.

Outras audincias pblicas foram realizadas pelo Supremo Tribunal Federal em aes cujo julgamento ainda no foi concludo. Na Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental 101, a audincia pblica realizada no dia 27 de junho de 2008 debateu o tema da importao de pneus usados e sua problemtica em face dos princpios constitucionais que protegem o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Na Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, foram realizadas audincias pblicas nos dias 26 e 28 de agosto e 4 de setembro de 2008 para discutir o complexo tema do aborto de fetos anencfalos. Em ambas as aes esperam-se julgamentos repletos de discusses que reflitam os argumentos levantados por diversos segmentos da sociedade civil, o que certamente propiciar maior legitimidade democrtica para as decises que sero proferidas.

O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal j conta com normas que preveem as competncias e o procedimento de convocao e realizao das audincias pblicas (Emenda Regimental 29, de 18 de fevereiro de 2009).

Em 5 de maro de 2009, a Presidncia da corte, com fundamento nas referidas regras regimentais, convocou audincia pblica para discusso de diversas questes relacionadas sade pblica no Brasil[8]. As informaes e os dados produzidos nessa audincia podem ser utilizados para a instruo de qualquer processo no mbito do tribunal que discuta matria relativa aplicao de normas constitucionais em tema de sade pblica.

Importante ressaltar que o artigo 154 do Regimento prescreve que as audincias pblicas devem ser transmitidas pela TV Justia e pela Rdio Justia, o que torna possvel o conhecimento geral, irrestrito e imediato, por parte de toda a populao, dos debates produzidos nas audincias. Assim, no h dvida de que o STF conta, atualmente, com eficientes canais de comunicao e de participao democrticas em relao s suas atividades[9].

No caso dos amici curiae, a corte j reconheceu, inclusive, o direito desses rgos ou entidades de fazer sustentao oral nos julgamentos (ADI-QO 2.777, Rel. Min. Cezar Peluso, julg. 26.11.2003; art. 131, 3, do Regimento Interno do STF), o que antes ficava restrito ao advogado da parte requerente, ao advogado-geral da Unio e ao Ministrio Pblico.

Essa nova realidade enseja, alm do amplo acesso e participao de sujeitos interessados no sistema de controle de constitucionalidade de normas, a possibilidade efetiva de o Tribunal Constitucional contemplar as diversas perspectivas na apreciao da legitimidade de um determinado ato questionado.

inegvel que essa abertura do processo constitucional foi fortemente influenciada, no Brasil, pela doutrina de Peter Hberle[10].

A propsito, observe-se que Peter Hberle defende a necessidade de que os instrumentos de informao dos juzes constitucionais sejam ampliados, especialmente no que se refere s audincias pblicas e s intervenes de eventuais interessados, assegurando-se novas formas de participao das potncias pblicas pluralistas como intrpretes em sentido amplo da Constituio.

Destarte, no h como negar a comunicao entre norma e fato (Kommunikation zwischen Norm und Sachverhalt), a qual constitui condio da prpria interpretao constitucional. que o processo de conhecimento envolve a investigao integrada de elementos fticos e jurdicos[11].

Se no processo de controle de constitucionalidade inevitvel a verificao de fatos e prognoses legislativos, possvel constatar a necessidade de adoo de um modelo procedimental que outorgue ao tribunal as condies suficientes para proceder a essa aferio.

Assim, certo que, ao cumprir as funes de Corte Constitucional, o tribunal no pode deixar de exercer a sua competncia, especialmente no que se refere defesa dos direitos fundamentais em face de uma deciso legislativa, sob a alegao de que no dispe dos mecanismos probatrios adequados para examinar a matria.

Evidente, assim, que essa frmula procedimental aberta constitui um excelente instrumento de informao para a Corte Suprema.

No h dvida de que a participao de diferentes grupos em processos judiciais de grande significado para toda a sociedade cumpre uma funo de integrao extremamente relevante no Estado de Direito.

Ao ter acesso a essa pluralidade de vises em permanente dilogo, o Supremo Tribunal Federal passa a contar com os benefcios decorrentes dos subsdios tcnicos, implicaes poltico-jurdicas e elementos de repercusso econmica que possam vir a ser apresentados pelos amigos da Corte.

Essa inovao institucional, alm de contribuir para a qualidade da prestao jurisdicional, garante novas possibilidades de legitimao dos julgamentos do tribunal no mbito de sua tarefa precpua de guarda da Constituio.

Enfim, a admisso de amicus curiae confere ao processo constitucional um colorido diferenciado, emprestando-lhe carter pluralista e aberto, fundamental para o reconhecimento de direitos e a realizao de garantias constitucionais no Estado Democrtico de Direito.

3. O pensamento de possibilidades A Constituio no uma norma fechada, mas sim um projeto em contnuo desenvolvimento, representativo de conquistas e experincias e ao mesmo tempo aberto evoluo e utopia. No Estado Constitucional, a interpretao da Constituio, portanto, no deve ser realizada segundo a lgica do um ou outro (Entweder-oder), mas de acordo com um pensamento permanentemente aberto a mltiplas alternativas e possibilidades.

Peter Hberle o mais expressivo defensor dessa forma de pensar o Direito Constitucional nos tempos hodiernos, entendendo ser o pensamento jurdico do possvel expresso, consequncia, pressuposto e limite de uma interpretao constitucional aberta[12].

Nessa medida, e essa parece ser uma das importantes consequncias da orientao perfilhada por Hberle, uma teoria constitucional das alternativas pode converter-se numa teoria constitucional da tolerncia[13]. Da perceber-se tambm que a alternativa como pensamento possvel afigura-se relevante, especialmente no evento interpretativo: na escolha do mtodo, tal como verificado na controvrsia sobre a tpica como fora produtiva de interpretao[14].

A propsito, anota Hberle:

O pensamento do possvel o pensamento em alternativas. Deve estar aberto para terceiras ou quartas possibilidades, assim como para compromissos. Pensamento do possvel pensamento indagativo (fragendes Denken). Na res publica existe um ethos jurdico especfico do pensamento em alternativa, que contempla a realidade e a necessidade, sem se deixar dominar por elas. O pensamento do possvel ou o pensamento pluralista de alternativas abre suas perspectivas para novas realidades, para o fato de que a realidade de hoje pode corrigir a de ontem, especialmente a adaptao s necessidades do tempo de uma viso normativa, sem que se considere o novo como o melhor[15].

Nessa linha, observa Hberle que para o estado de liberdade da res publica afigura-se decisivo que a liberdade de alternativa seja reconhecida por aqueles que defendem determinadas alternativas. Da ensinar que no existem apenas alternativas em relao realidade, existem tambm alternativas em relao a essas alternativas[16].

O pensamento do possvel tem uma dupla relao com a realidade. Uma de carter negativo: o pensamento do possvel indaga sobre o tambm possvel, sobre alternativas em relao realidade, sobre aquilo que ainda no real. O pensamento do possvel depende tambm da realidade em outro sentido: possvel apenas aquilo que pode ser real no futuro (Mglich ist nur was in Zukunft wirklich sein kann). a perspectiva da realidade (futura) que permite separar o impossvel do possvel[17].

Segundo a lio de Scheuner, citada por Hberle, a Constituio, para ter preservada sua fora regulatria em uma sociedade pluralista, no pode ser vista como texto acabado ou definitivo, mas sim como projeto (Entwurf) em desenvolvimento contnuo[18].

O pensamento de possibilidades como pressuposto e expresso de uma interpretao constitucional aberta tem sido adotado pelo Supremo Tribunal Federal na soluo de questes constitucionais diversas.

A anlise da deciso do Supremo Tribunal Federal na ADI 1.289[19] mostra, de forma evidente, a adoo, na espcie, de um pensamento do possvel, tal como concebido no pensamento de Peter Hberle. A ementa do julgado assim deixou consignado o resumo da deciso do Tribunal:

EMENTA: Ao Direta de Inconstitucionalidade. 2. Embargos Infringentes. Cabimento, na hiptese de recurso interposto antes da vigncia da Lei n 9.868, de 10 de novembro de 1999. 3. Cargos vagos de juzes do TRT. Composio de lista. 4. Requisitos dos arts. 94 e 115 da Constituio: quinto constitucional e lista sxtupla. 5. Ato normativo que menos se distancia do sistema constitucional, ao assegurar aos rgos participantes do processo a margem de escolha necessria. 6. Salvaguarda simultnea de princpios constitucionais em lugar da prevalncia de um sobre outro. 7. Interpretao constitucional aberta que tem como pressuposto e limite o chamado pensamento jurdico do possvel. 8. Lacuna constitucional. 9. Embargos acolhidos para que seja reformado o acrdo e julgada improcedente a ADI 1.289, declarando-se a constitucionalidade da norma impugnada. (grifado)

A Constituio brasileira, em seu artigo 94, prescreve que um quinto dos lugares nos Tribunais Regionais e Estaduais ser composto de membros do Ministrio Pblico e de advogados com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sxtupla pelos rgos de representao das respectivas classes. No caso, o Supremo Tribunal enfrentou a questo de saber se, ante a inexistncia temporria de membros do Ministrio Pblico com mais de dez anos de carreira, poderiam concorrer a vagas em Tribunal Regional do Trabalho outros membros que no cumprissem o mencionado requisito constitucional.

O tribunal procurou adotar soluo que propiciasse, na maior medida possvel, a realizao dos princpios constitucionais em questo, permitindo a participao de membros do Ministrio Pblico na composio do tribunal trabalhista. Ao assentar que um dos valores constitucionais para a composio de rgos judiciais era a observncia do denominado quinto constitucional, o tribunal chamou a ateno para um elemento que assume valor mpar nas sociedades pluralistas: a composio plural dos rgos judiciais.

No Brasil, o princpio do quinto constitucional rende notria homenagem a esse valor, permitindo que as cortes tenham, necessariamente, uma composio diversificada. A no-satisfao do princpio do quinto constitucional configura, portanto, um desvalor que, certamente, no encontra respaldo na estrutura constitucional brasileira, tal como anotado na deciso do STF.

Ademais, cumpre observar que, ao consagrar o critrio da lista sxtupla composta por procuradores que ainda no preenchiam o requisito temporal, no caso de falta de membros habilitados, atendeu-se a outro valor, igualmente importante para o texto constitucional: o respeito liberdade de escolha por parte do tribunal e do prprio Poder Executivo. Do contrrio, restaria prejudicado o equilbrio que o texto constitucional pretendeu formular para o sistema de escolha: participao da classe na formao da lista sxtupla; participao do tribunal na escolha da lista trplice e participao do Executivo na escolha de um dos nomes. A formao incompleta da lista sxtupla ou at mesmo o envio de um ou dois nomes que preenchessem todos os requisitos constitucionais acabaria por afetar o modelo original concebido pelo constituinte, reduzindo ou eliminando a participao do tribunal e do Executivo no processo de escolha.

Portanto, entre as interpretaes cogitveis, aquela que mais se aproxima desse pensamento do possvel, na espcie, exatamente a perfilhada na deciso do STF, que, como se v, logra realizar os princpios em eventual tenso dialtica sem comprometer aspectos fundamentais da complexa deciso constitucional, ou seja, respeita-se o princpio do quinto constitucional e a clusula da lista sxtupla, que, menos do que a revelao de um nmero cabalstico, contm uma definio em favor da liberdade relativa de escolha por parte do tribunal e do Poder Executivo.

Muito mais distante da vontade constitucional seria a composio do tribunal sem a participao dos integrantes do Ministrio Pblico, significa dizer, sem a observncia do princpio do quinto constitucional. Da mesma forma, haveria de revelar-se distante do texto constitucional a composio da lista com nmero inferior ao estabelecido constitucionalmente, afetando o modelo j restrito de liberdade de escolha. No h dvida, pois, de que, entre os caminhos possveis de serem trilhados, adotou-se aquele que mais se aproximava da integridade da deciso constitucional, respeitando o princpio do quinto constitucional e a liberdade de escolha dos rgos dos Poderes Judicirio e Executivo.

No difcil encontrar outros exemplos do pensamento do possvel na rica jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal, no raras vezes assentada na eventual configurao de uma omisso ou lacuna constitucional. So exemplos notrios desse pensamento as decises do tribunal que reconheceram a existncia de uma situao jurdica ainda constitucional relativamente a algumas normas aplicveis s defensorias pblicas.

De certa forma, o precedente firmado no Recurso Extraordinrio 135.328[20] e consolidado no Recurso Extraordinrio 147.776[21] parece aquele que melhor expressa a ideia de omisso ou lacuna constitucional apta a justificar a interpretao compreensiva do texto constitucional e das situaes jurdicas pr-constitucionais.

A ementa do acrdo no RE 147.776 revela, por si s, o significado da deciso para a verso brasileira do pensamento constitucional do possvel:

Ementa: Ministrio Pblico: Legitimao para promoo, no juzo cvel, do ressarcimento do dano resultante de crime, pobre o titular do direito reparao: C. Pr. Pen., art. 68, ainda constitucional (cf. RE 135.328): processo de inconstitucionalizao das leis.

1. A alternativa radical da jurisdio constitucional ortodoxa entre a constitucionalidade plena e a declarao de inconstitucionalidade ou revogao por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficcia ex tunc faz abstrao da evidncia de que a implementao de uma nova ordem constitucional no um fato instantneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realizao da norma da constituio ainda quanto teoricamente no se cuide de preceito de eficcia limitada subordina-se muitas vezes a alteraes da realidade fctica que a viabilizem.

2. No contexto da Constituio de 1988, a atribuio anteriormente dada ao Ministrio Pblico pelo artigo 68, C. Pr. Penal constituindo modalidade de assistncia judiciria deve reputar-se transferida para a Defensoria Pblica: essa, porm, para esse fim, s se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do artigo 134 da prpria Constituio e da lei complementar por ela ordenada: at que na Unio ou em cada Estado considerado , se implemente essa condio de viabilizao da cogitada transferncia constitucional de atribuies, o artigo 68, C. Pr. Pen ser considerado ainda vigente: o caso do Estado de So Paulo, como decidiu o plenrio no RE 135.328 (RECrim 147.776-8, Rel. Seplveda Pertence, Lex-JSTF, 238, p. 390).

Tambm aqui se identificou uma lacuna no texto constitucional, que, ao outorgar a atribuio de assistncia judiciria s defensorias pblicas, no ressalvou as situaes jurdicas reguladas de maneira diversa no direito pr-constitucional ausncia de clusula transitria , especialmente naquelas unidades federadas que ainda no haviam institudo os rgos prprios de defensoria. Destarte, a justificativa para a manuteno do direito pr-constitucional fez-se com base numa disposio transitria implcita, que autorizava a aplicao do modelo legal pr-constitucional at a completa implementao do novo sistema previsto na Constituio.

Assim, tambm na citada deciso na ADI 1.289, pareceu legtimo ao tribunal admitir que a regra constitucional continha uma lacuna: a no-regulao das situaes excepcionais existentes na fase inicial de implementao do novo modelo constitucional. No tendo a matria sido regulada em disposio transitria, parece adequado que o prprio intrprete possa faz-lo em consonncia com o sistema constitucional. E, tal como demonstrado, a aplicao que menos se distancia do sistema formulado pelo constituinte parece ser aquela que admite a composio da lista com procuradores do trabalho que ainda no preenchiam o requisito concernente ao tempo de servio. Assegurou-se aos rgos participantes do processo a margem de escolha necessria dentre procuradores com tempo de servio inferior a 10 anos, na hiptese de inexistncia de candidatos que preenchessem o requisito temporal fixado.

Outros exemplos de aplicao do pensamento do possvel so encontrados na jurisprudncia do STF.

Na Suspenso de Segurana 3.154[22], entendeu-se que, num quadro ftico extraordinrio, em que as finanas do Estado-membro estejam em colapso, a interpretao da garantia do pagamento em dia da remunerao dos servidores pblicos estaduais, segundo um pensamento de possibilidades, enseja a alternativa de prorrogao excepcional e momentnea, por alguns dias, de parte do efetivo pagamento da remunerao. Isso porque a eficcia plena da norma constitucional dependeria de um estado de normalidade das finanas estaduais. Entendeu-se, assim, que, sem desbordar dos parmetros constitucionais de razoabilidade e proporcionalidade, pode o Estado, sem reduzir o valor especfico da remunerao, prorrogar por alguns dias parte do pagamento, ante absoluta impossibilidade financeira.

No Mandado de Segurana 26.690[23], o tribunal mais uma vez se deparou com a ausncia de regras de transio destinadas a solucionar situaes no abrangidas por novos preceitos constitucionais. No caso, questionava-se a possibilidade de que membro do Ministrio Pblico estadual pudesse participar de concurso pblico para cargo no Ministrio Pblico Federal, sem preencher o requisito constitucional de trs anos de atividade jurdica. Na hiptese, o novo requisito constitucional de trs anos de atividade jurdica havia sido implementado pela Emenda Constitucional 45/2004, aps a aprovao da candidata no concurso de promotor de Justia do Ministrio Pblico Estadual. No entanto, quando a mesma candidata pretendeu realizar concurso pblico para o Ministrio Pblico Federal, j estava vigente o novo requisito constitucional. O tribunal encontrou-se ento diante de situao singular, em que um membro do Ministrio Pblico Estadual no poderia, em princpio, participar de certame pblico para preencher vaga no Ministrio Pblico Federal. A soluo encontrada foi interpretar a nova norma constitucional levando em conta a excepcionalidade da situao, ocorrida em momento de transio constitucional, o que requereria a aplicao de um tpico pensamento do possvel, tal como j feito pelo tribunal no citado julgamento da ADI 1.289. Assim, entendeu o tribunal que, diante da notria contradio ftica surgida em momento de transio de regimes jurdicos, e tendo em vista o princpio da isonomia aplicvel, na espcie, para igualar a situao dos membros dos Ministrios Pblicos Federal e Estadual, submetidos que esto a um mesmo regime constitucional (art. 128 da Constituio), a soluo mais consentnea com a ordem constitucional seria a permisso excepcional para que a candidata participasse do concurso mesmo sem preencher o requisito constitucional dos trs anos de atividade jurdica.

anlise desses julgados faz transparecer a constatao de que o pensamento do possvel, na medida em que permite a interpretao constitucional aberta a novas alternativas e incentiva a adaptabilidade do texto evoluo social constante de uma sociedade complexa e plural, constitui tambm um modo de pensar sobre a relao entre tempo e Constituio (Zeit und Verfassung) e, desse modo, sobre o fenmeno da mutao constitucional, cujo tratamento pela obra de Peter Hberle tambm tem sido incorporado pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil.

4. Tempo e Constituio: a mutao constitucionalTalvez um dos temas mais ricos da teoria do direito e da moderna teoria constitucional seja aquele relativo evoluo jurisprudencial e, especialmente, a possvel mutao constitucional. Se a sua repercusso no plano material inegvel, so inmeros os desafios no plano do processo em geral e, em especial, do processo constitucional.

Retira-se da obra de Peter Hberle a observao segundo a qual no existe norma jurdica, seno norma jurdica interpretada (Es gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretierte Rechtsnormen). Interpretar um ato normativo nada mais do que coloc-lo no tempo ou integr-lo na realidade pblica (Einen Rechssatz auslegen bedeutet, ihn in die Zeit, d.h. in die ffentliche Wirklichkeit stellen um seiner Wirksamkeit willen). Por isso, Hberle introduz o conceito de ps-compreenso (Nachverstndnis), entendido como o conjunto de fatores temporalmente condicionados com base nos quais se compreende supervenientemente uma dada norma. A ps-compreenso nada mais seria, para Hberle, do que a pr-compreenso do futuro, isto , o elemento dialtico correspondente da idia de pr-compreenso[24].

Tal concepo permite a Hberle afirmar que, em sentido amplo, toda lei interpretada no apenas as chamadas leis temporrias uma lei com durao temporal limitada (In einem weiteren Sinne sind alle interpretierten Gesetzen Zeitgesetze nicht nur die zeitlich befristeten). Em outras palavras, a norma, confrontada com novas experincias, transforma-se necessariamente em uma outra norma.

Essa reflexo e a ideia segundo a qual a atividade hermenutica nada mais do que um procedimento historicamente situado autorizam Hberle a realar que uma interpretao constitucional aberta prescinde do conceito de mutao constitucional (Verfassungswandel) como categoria autnoma.

Nesses casos, fica evidente que o tribunal no poder fingir que sempre pensara dessa forma. Da a necessidade de, em tais casos, fazer-se o ajuste do resultado, adotando-se tcnica de deciso que, tanto quanto possvel, traduza a mudana de valorao. No plano constitucional, esses casos de mudana na concepo jurdica podem produzir uma mutao normativa ou a evoluo na interpretao, permitindo que venha a ser reconhecida a inconstitucionalidade de situaes anteriormente consideradas legtimas. A orientao doutrinria tradicional, marcada por uma alternativa rigorosa entre atos legtimos ou ilegtimos (entweder als rechtmssig oder als rechtswidrig), encontra dificuldade para identificar a consolidao de um processo de inconstitucionalizao (Prozess des Verfassungswidrigwerdens). Prefere-se admitir que, embora no tivesse sido identificada, a ilegitimidade sempre existira.

Da afirmar Hberle:

O Direito Constitucional vive, prima facie, uma problemtica temporal. De um lado, a dificuldade de alterao e a conseqente durao e continuidade, confiabilidade e segurana; de outro, o tempo envolve o agora mesmo, especificamente o Direito Constitucional. que o processo de reforma constitucional dever ser feito de forma flexvel e a partir de uma interpretao constitucional aberta. A continuidade da Constituio somente ser possvel se passado e futuro estiverem nela associados.[25]Hberle ento indaga:

O que significa tempo? Objetivamente, tempo a possibilidade de se introduzir mudana, ainda que no haja a necessidade de produzi-la.[26]Tal como anota Hberle, o tempo sinaliza ou indica uma reunio (ensemble) de foras sociais e ideias. (...) A nfase ao fator tempo no deve levar ao entendimento de que o tempo h de ser utilizado como sujeito de transformao ou de movimento (...). A histria (da comunidade) tem muitos sujeitos. O tempo nada mais do que a dimenso na qual as mudanas se tornam possveis e necessrias (...).[27]No raro que essas alteraes de concepes se verifiquem, dentre outros campos, exatamente em matria de defesa dos direitos fundamentais. Aqui talvez se mesclem as mais diversas concepes existentes na prpria sociedade e o processo dialtico que as envolve. E os diversos entendimentos de mundo convivem, sem que, muitas vezes, o novo tenha condies de superar o velho.

natural tambm que esse tipo de situao se coloque de forma bastante evidente no quadro de uma nova ordem constitucional. Aqui, entendimentos na jurisprudncia, doutrina e legislao tornam, s vezes, inevitvel que a interpretao da Constituio se realize, em um primeiro momento, com base na situao jurdica pr-existente. Assim, at mesmo institutos novos podero ser interpretados segundo entendimento consolidado na jurisprudncia e na legislao pr-constitucionais. Nesse caso, igualmente compreensvel que uma nova orientao hermenutica reclame cuidados especiais.

Alguns exemplos de mudana na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal revelam que o abandono de precedentes e a adoo de nova interpretao de textos normativos, especialmente de disposies constitucionais, devem estar baseadas em cuidadosas e bem fundamentadas razes de decidir. No Recurso Extraordinrio 165.438[28], por exemplo, o tribunal reviu posicionamento anterior fixado nos RE 140.616[29], RE 141.290[30] e RE 141.367[31] que consolidava o entendimento no sentido de que o artigo 8 do ADCT da Constituio de 1988 (anistia) no se aplicaria s promoes por merecimento de militares. Aps longo julgamento e ampla discusso, o tribunal passou a ento interpretar, de forma mais ampla, o artigo 8 do ADCT da CF/88, no sentido de que, para a concesso de promoes, inclusive por merecimento, na aposentadoria ou na reserva, deve ser considerado, to-somente, o decurso de tempo necessrio para alcanar o posto na hierarquia militar, de acordo com a legislao vigente.

Na prtica do Supremo Tribunal Federal, as citadas concepes tm sido utilizadas nos casos em que a corte produz um cmbio substancial em entendimentos jurisprudenciais anteriormente consolidados. Em hipteses tpicas de mutao constitucional ou de evoluo na interpretao, em que se altera jurisprudncia consolidada, a corte tem adotado a tcnica da modulao dos efeitos da deciso, com base em razes de segurana jurdica.

Assim ocorreu na deciso proferida na Questo de Ordem no Inqurito 687[32], em que o tribunal cancelou o enunciado da Smula 394 que consolidava entendimento jurisprudencial no sentido de que a competncia da Corte para julgar agentes pblicos com prerrogativa de foro prevaleceria ainda que o inqurito ou a ao penal fossem iniciados aps o agente ter deixado o cargo[33] ressalvando os atos praticados e as decises j proferidas que nela se basearam.

No Conflito de Competncia 7.204[34], fixou-se o entendimento no sentido de que o Supremo Tribunal Federal, guardio-mor da Constituio Republicana, pode e deve, em prol da segurana jurdica, atribuir eficcia prospectiva s suas decises, com a delimitao precisa dos respectivos efeitos, toda vez que proceder a revises de jurisprudncia definidora de competncia ex ratione materiae. O escopo preservar os jurisdicionados de alteraes jurisprudenciais que ocorram sem mudana formal do Magno Texto.

No julgamento do HC 82.959, o tribunal declarou, com efeitos prospectivos, a inconstitucionalidade da vedao legal absoluta da progresso de regime penal para os crimes hediondos (art. 2, 1, da Lei 8.072/90), com radical modificao de antiga jurisprudncia.

Um dos casos mais interessantes de mudana jurisprudencial est representado no julgamento dos Mandados de Segurana 26.602, 26.603 e 26.604[35]. Discutiu-se, nesses casos, se os partidos polticos possuem direito a manter as vagas por eles conquistadas em eleies regidas pelas regras do sistema proporcional, em caso de desfiliao dos parlamentares que as preenchem.

Aps a Constituio de 1988, o tema da fidelidade partidria e a questo especfica quanto extino do mandato do parlamentar que deixar a legenda sob a qual tenha sido eleito encontraram resposta na jurisprudncia do STF, desde o julgamento do MS 20.927[36]. Com base no entendimento de que a vinculao do candidato ao partido seria apenas condio de elegibilidade (art. 14, 3, da Constituio de 1988), o tribunal mantinha firme posio no sentido de que, no sistema constitucional brasileiro, apesar da valorizao dada representao parlamentar dos partidos, no se exigiria qualquer modalidade de fidelidade partidria para os candidatos eleitos.

Em Sesso de 4 de outubro de 2007, a corte reviu esse entendimento e, baseando-se em renovada interpretao dos princpios da democracia partidria, da representao proporcional, do pluralismo poltico e da fidelidade partidria, produziu mudana radical em sua jurisprudncia e passou a considerar que o mandato parlamentar pertence ao partido. Assim, no novo entendimento da corte, ressalvadas situaes especficas decorrentes de ruptura de compromissos programticos por parte da agremiao, perseguio poltica ou outra situao de igual significado, o abandono do partido deve dar ensejo extino do mandato.

Na ocasio, diante da mudana que se operou em antiga jurisprudncia, e com base em razes de segurana jurdica, o tribunal entendeu que os efeitos da deciso deveriam ser modulados no tempo. Fixou ento um marco temporal desde o qual tais efeitos poderiam ser efetivamente produzidos, o que deveria coincidir com a deciso do Tribunal Superior Eleitoral na Consulta 1.398/2007[37], rel. min. Csar Asfor Rocha, que ocorrera na Sesso do dia 27 de maro de 2007, na qual a corte eleitoral j havia adotado tal entendimento.

Outro interessante caso de mutao constitucional verificada na jurisprudncia do STF est no julgamento dos Recursos Extraordinrios 349.703 e 466.343, nos quais a corte modificou antigo entendimento a respeito do status normativo dos tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurdica interna. Como o caso tambm envolve consideraes a respeito das lies de Peter Hberle sobre o Estado constitucional cooperativo, destinamos um tpico especfico (a seguir) para analisar essa importante deciso.

Deixe-se acentuado, por fim, que a evoluo jurisprudencial sempre foi uma marca de qualquer jurisdio de perfil constitucional. A afirmao da mutao constitucional no implica o reconhecimento, por parte da corte, de erro ou equvoco interpretativo do texto constitucional em julgados pretritos. Ela reconhece e reafirma, ao contrrio, a necessidade da contnua e paulatina adaptao dos sentidos possveis da letra da Constituio aos cmbios observados numa sociedade que, como a atual, est marcada pela complexidade e pelo pluralismo.

5. Estado constitucional cooperativoO Supremo Tribunal Federal por muito tempo adotou a ideia de que os tratados de direitos humanos, como quaisquer outros instrumentos convencionais de carter internacional, poderiam ser concebidos como equivalentes s leis ordinrias. Segundo essa tese, denominada de tese da legalidade ordinria dos tratados internacionais, tais acordos no possuiriam a devida legitimidade para confrontar, nem para complementar, o preceituado pela Constituio Federal em matria de direitos fundamentais.

O tribunal passou a adotar essa tese no julgamento do RE 80.004, julgado em 1o.6.1977[38]. Na ocasio, os ministros integrantes do tribunal discutiram amplamente o tema das relaes entre o Direito Internacional e o Direito Interno. O relator, ministro Xavier de Albuquerque, calcado na jurisprudncia anterior, votou no sentido do primado dos tratados e convenes internacionais em relao legislao infraconstitucional. A maioria, porm, aps voto-vista do ministro Cunha Peixoto, entendeu que ato normativo internacional no caso, a Conveno de Genebra, Lei Uniforme sobre Letras de Cmbio e Notas Promissrias poderia ser modificado por lei nacional posterior, ficando consignado que os conflitos entre duas disposies normativas, uma de direito interno e outra de direito internacional, devem ser resolvidos pela mesma regra geral destinada a solucionar antinomias normativas num mesmo grau hierrquico: lex posterior derrogat legi priori.

Sob a gide da Constituio de 1988, exatamente em 22 de novembro de 1995, o Plenrio do STF voltou a discutir a matria no HC n 72.131, Red. p/ o acrdo Ministro Moreira Alves, porm agora tendo como foco o problema especfico da priso civil do devedor como depositrio infiel na alienao fiduciria em garantia. Na ocasio, reafirmou-se o entendimento no sentido de que os diplomas normativos de carter internacional adentrariam o ordenamento jurdico interno no patamar da legislao ordinria e eventuais conflitos normativos seriam resolvidos pela regra lex posterior derrogat legi priori. Preconizaram esse entendimento tambm os votos vencidos dos ministros Marco Aurlio, Francisco Rezek e Carlos Velloso. Deixou-se assentado, no obstante, seguindo-se o entendimento esposado no voto do ministro Moreira Alves, que o artigo 7 (7) do Pacto de San Jos da Costa Rica, por ser norma geral, no revogaria a legislao ordinria de carter especial, como o Decreto-Lei 911/69, que equipara o devedor-fiduciante ao depositrio infiel para fins de priso civil.

Posteriormente, no importante julgamento da medida cautelar na ADI 1.480-3-DF, rel. min. Celso de Mello (em 4.9.1997), o tribunal voltou a afirmar que entre os tratados internacionais e as leis internas brasileiras existiria mera relao de paridade normativa, entendendo-se as leis internas no sentido de simples leis ordinrias e no de leis complementares.

A tese da legalidade ordinria dos tratados internacionais foi reafirmada em julgados posteriores[39] e manteve-se firme na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal at o ano de 2008, quando a corte, ao julgar os Recursos Extraordinrios 349.703[40] e 466.343[41], constatou que, no contexto atual, em que se pode observar a abertura cada vez maior do Estado constitucional a ordens jurdicas supranacionais de proteo de direitos humanos, essa jurisprudncia havia se tornado completamente defasada.

No se pode perder de vista que, hoje, vivemos em um Estado Constitucional Cooperativo, identificado pelo professor Peter Hberle como aquele que no mais se apresenta como um Estado Constitucional voltado para si mesmo, mas que se disponibiliza como referncia para os outros Estados Constitucionais membros de uma comunidade, e no qual ganha relevo o papel dos direitos humanos e fundamentais[42].

Para Hberle, ainda que, numa perspectiva internacional, muitas vezes a cooperao entre os Estados ocupe o lugar de mera coordenao e de simples ordenamento para a coexistncia pacfica (ou seja, de mera delimitao dos mbitos das soberanias nacionais), no campo do Direito Constitucional nacional, tal fenmeno, por si s, pode induzir ao menos a tendncias que apontem para um enfraquecimento dos limites entre o interno e o externo, gerando uma concepo que faz prevalecer o direito comunitrio sobre o direito interno[43].

Nesse contexto, mesmo conscientes de que os motivos que conduzem concepo de um Estado Constitucional Cooperativo so complexos, preciso reconhecer os aspectos sociolgico-econmico e ideal-moral[44] como os mais evidentes. E no que se refere ao aspecto ideal-moral, no se pode deixar de considerar a proteo aos direitos humanos como a frmula mais concreta de que dispe o sistema constitucional, a exigir dos atores da vida scio-poltica do Estado uma contribuio positiva para a mxima eficcia das normas constitucionais que protegem a cooperao internacional amistosa como princpio vetor das relaes entre os Estados Nacionais[45] e a proteo dos direitos humanos como corolrio da prpria garantia da dignidade da pessoa humana.

Na realidade europia, importante mencionar a abertura institucional a ordens supranacionais consagrada em diversos textos constitucionais [cf. v.g. Prembulo da Lei Fundamental de Bonn e art. 24, (I); o art. 11 da Constituio italiana[46]; os arts. 8[47] e 16[48] da Constituio portuguesa; e, por fim, os arts. 9 (2) e 96 (1) da Constituio espanhola[49]; dentre outros][50].

Ressalte-se, nesse sentido, que h disposies da Constituio brasileira de 1988 que remetem o intrprete para realidades normativas relativamente diferenciadas em face da concepo tradicional do direito internacional pblico. Refiro-me, especificamente, a quatro disposies que sinalizam para uma maior abertura constitucional ao direito internacional e, na viso de alguns, ao direito supranacional.

A primeira clusula consta do pargrafo nico do artigo 4, que estabelece que a Repblica Federativa do Brasil buscar a integrao econmica, poltica, social e cultural dos povos da Amrica Latina, visando formao de uma comunidade latino-americana de naes.

Em comentrio a este artigo, o saudoso professor Celso Bastos ensinava que tal dispositivo constitucional representa uma clara opo do constituinte pela integrao do Brasil em organismos supranacionais[51].

A segunda clusula aquela constante do pargrafo 2 do artigo 5, a qual estabelece que os direitos e garantias expressos na Constituio brasileira no excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte.

A terceira e quarta clusulas foram acrescentadas pela Emenda Constitucional 45, de 8.12.2004, constantes dos pargrafos 3 e 4 do artigo 5, que rezam, respectivamente, que os tratados e convenes internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por trs quintos dos votos dos respectivos membros, sero equivalentes s emendas constitucionais, e o Brasil se submete jurisdio de Tribunal Penal Internacional a cuja criao tenha manifestado adeso.

Lembre-se, tambm, que vrios pases latinoamericanos j avanaram no sentido de sua insero em contextos supranacionais, reservando aos tratados internacionais de direitos humanos lugar especial no ordenamento jurdico, algumas vezes concedendo-lhes valor normativo constitucional.

Assim, Paraguai (art. 9o da Constituio)[52] e Argentina (art. 75 inc. 24)[53], provavelmente influenciados pela institucionalizao da Unio Europeia, inseriram conceitos de supranacionalidade em suas Constituies. A Constituio uruguaia, por sua vez, promulgada em fevereiro de 1967, inseriu novo inciso em seu artigo 6o, em 1994, porm mais tmido que seus vizinhos argentinos e paraguaios, ao prever que "A Repblica procurar a integrao social e econmica dos Estados latino-americanos, especialmente no que se refere defesa comum de seus produtos e matrias primas. Assim mesmo, propender efetiva complementao de seus servios pblicos".

Esses dados revelam uma tendncia contempornea do constitucionalismo mundial de prestigiar as normas internacionais destinadas proteo do ser humano. Por conseguinte, a partir desse universo jurdico voltado aos direitos e garantias fundamentais, as constituies no apenas apresentam maiores possibilidades de concretizao de sua eficcia normativa, como tambm somente podem ser concebidas em uma abordagem que aproxime o Direito Internacional do Direito Constitucional.

No continente americano, o regime de responsabilidade do Estado pela violao de tratados internacionais vem apresentando uma considervel evoluo desde a criao da Conveno Americana sobre Direitos Humanos, tambm denominada Pacto de San Jos da Costa Rica, adotada por conferncia interamericana especializada sobre direitos humanos, em 21 de novembro de 1969. Entretanto, na prtica, a mudana da forma pela qual tais direitos so tratados pelo Estado brasileiro ainda ocorre de maneira lenta e gradual. E um dos fatores primordiais desse fato est no modo como se vinha concebendo o processo de incorporao de tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurdica interna.

O Supremo Tribunal Federal, levando em considerao essa tendncia hodierna de insero do Estado constitucional brasileiro em contextos supranacionais, promoveu uma vigorosa renovao de sua jurisprudncia e passou a adotar a tese da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, no histrico julgamento dos Recursos Extraordinrios 349.703 (relator para o acrdo ministro Gilmar Mendes) e 466.343 (relator ministro Cezar Peluso)[54].

No h dvida de que, no Estado constitucional cooperativo, mais consistente a interpretao que atribui a caracterstica de supralegalidade aos tratados e convenes de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porm, diante de seu carter especial em relao aos demais atos normativos internacionais, tambm seriam dotados de um atributo de supralegalidade.

Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos no podem afrontar a supremacia da Constituio, mas tm lugar especial reservado no ordenamento jurdico. Equipar-los legislao ordinria significa subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteo dos direitos da pessoa humana.

Assim, diante do inequvoco carter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteo dos direitos humanos, entende-se que a sua internalizao no ordenamento jurdico, por meio do procedimento de ratificao previsto na Constituio, tem o condo de paralisar a eficcia jurdica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.

Nesse sentido, concluiu o Supremo Tribunal Federal que, diante da supremacia da Constituio sobre os atos normativos internacionais, a previso constitucional da priso civil do depositrio infiel (art. 5, inciso LXVII) no foi revogada pelo ato de adeso do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos (art. 11) e Conveno Americana sobre Direitos Humanos Pacto de San Jos da Costa Rica (art. 7, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relao legislao infraconstitucional que disciplina a matria, includos o artigo 1.287 do Cdigo Civil de 1916 e o Decreto-Lei 911, de 1 de outubro de 1969[55].

Tendo em vista o carter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislao infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante tambm tem sua eficcia paralisada. o que ocorre, por exemplo, com o artigo 652 do Novo Cdigo Civil (Lei 10.406/2002), que reproduz disposio idntica ao artigo 1.287 do Cdigo Civil de 1916[56].

Enfim, desde a adeso do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos (art. 11) e Conveno Americana sobre Direitos Humanos Pacto de San Jos da Costa Rica (art. 7, 7), no h base legal para aplicao da parte final do artigo 5, inciso LXVII, da Constituio, ou seja, para a priso civil do depositrio infiel.

Com a deciso do tribunal, o legislador constitucional no fica impedido de submeter o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos e a Conveno Americana sobre Direitos Humanos Pacto de San Jos da Costa Rica, alm de outros tratados de direitos humanos, ao procedimento especial de aprovao previsto no artigo 5, pargrafo 3, da Constituio, tal como definido pela EC 45/2004, conferindo-lhes status de emenda constitucional.

Na experincia do Direito Comparado, vlido mencionar que essa mesma qualificao dos tratados internacionais (supralegalidade) expressamente consagrada na Constituio da Alemanha que, em seu artigo 25, dispe que as normas gerais do Direito Internacional Pblico constituem parte integrante do direito federal. Elas prevalecem sobre as leis e produzem diretamente direitos e deveres para os habitantes do territrio nacional.

O mesmo tratamento hierrquico-normativo dado aos tratados e convenes internacionais pela Constituio da Frana de 1958 (art. 55)[57] e pela Constituio da Grcia de 1975 (art. 28)[58].

No caso argentino, a Constituio traz expressa a supremacia das normas supranacionais na ordem jurdica interna (art. 75 inc. 24)[59].

A jurisprudncia das Cortes vem reconhecendo a superioridade normativa da ordem jurdica internacional. O professor Malcolm Shaw anota os seguintes ordenamentos que prevem a prevalncia dos tratados internacionais sobre as leis internas: Frana (caso Caf Jacques Fabre, Cour de Cassation, 16 Common Market Law Reviwe, 1975); Holanda (Nordstern Allgemeine Versicherung AG v. Vereinigte Stinees Rheinreedereien 74, International Law Review ILR); Itlia (Canad v. Cargnello, Corte de Cassao Italiana, 114 ILR); Chipre (Malachtou v. Armefti and Armefti, 88 ILR); e Rssia (art. 5 da Lei Federal Russa sobre Tratados Internacionais, adotada em 16 de Junho de 1995)[60].

Ressalte-se que no Reino Unido, desde 1972, assentou-se a prevalncia no s das normas comunitrias, como da prpria Conveno Europia sobre Direitos Humanos sobre o ordenamento interno ordinrio, confirmado pela House of Lords no famoso caso Factortame Ltd. V. Secretary of State for Transport (93 ILR, p. 652).

Assim, tambm o Reino Unido vem dando mostras de uma verdadeira reviso de conceitos. O Parlamento j no mais se mostra um soberano absoluto. O European Communities Act, de 1972, atribuiu ao direito comunitrio europeu hierarquia superior em face de leis formais aprovadas pelo Parlamento[61].

Nos Estados Unidos Mexicanos, apesar de a Constituio no trazer norma expressa nesse sentido, a Suprema Corte de Justicia de la Nacin vem interpretando o artigo 133 do texto constitucional no sentido de que os tratados internacionais se situam abaixo da Constituio, porm acima das leis federais e locais[62].

Ressalte-se, ainda, que em diversos pases os tratados internacionais so utilizados como parmetro de controle de leis internas. Nesse sentido, o professor Christian Tomuschat relata a experincia singular da Blgica, Luxemburgo e Holanda que admitiam o controle de leis ordinrias internas pelo disposto na Conveno Europia de Direito Humanos (CEDH) antes de possibilitar o prprio controle de constitucionalidade.

Interessante notar que, at hoje, a Finlndia no possui uma Corte Constitucional, nem os juzes esto autorizados a realizar o controle de constitucionalidade das leis, mas a CEDH pode obstar a aplicao das leis internas[63].

Na Grcia e na ustria, a Conveno Europia de Direito Humanos tem status constitucional, enquanto na Alemanha esse tratado possui, na prtica, prioridade em face do direito interno (faktischen Vorrang der EMRK vor deutschen Recht)[64].

Enfim, o Supremo Tribunal Federal proferiu uma deciso histrica[65]. O Brasil adere agora ao entendimento j adotado em diversos pases no sentido da supralegalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos na ordem jurdica interna.

Se tivermos em mente que o Estado constitucional contemporneo tambm um Estado cooperativo identificado pelo professor Peter Hberle como aquele que no mais se apresenta como um Estado Constitucional voltado para si mesmo, mas que se disponibiliza como referncia para os outros Estados Constitucionais membros de uma comunidade, e no qual ganha relevo o papel dos direitos humanos e fundamentais[66] , se levarmos isso em considerao, podemos concluir que acabamos de dar um importante passo na proteo dos direitos humanos em nosso pas e em nossa comunidade latinoamericana.

No podemos nos esquecer que o Brasil est inserido nesse contexto latinoamericano, no qual estamos todos submetidos a uma ordem comunitria em matria de direitos humanos; uma ordem positiva expressada na Conveno Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jos da Costa Rica), cuja proteo jurdica segue avanando a passos largos pelo profcuo trabalho realizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos[67].

Gilmar Ferreira Mendes presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justia; professor de Direito Constitucional nos cursos de graduao e ps-graduao da Faculdade de Direito da Universidade de Braslia-UnB; mestre em Direito pela Universidade de Braslia - UnB (1988); mestre e doutor em Direito pela Universidade de Mnster, da Repblica Federal da Alemanha - RFA (1989 e 1990); membro fundador do Instituto Brasiliense de Direito Pblico IDP; membro do Conselho Assessor do Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional Centro de Estudios Polticos y Constitucionales - Madri, Espanha; membro da Academia Brasileira de Letras Jurdicas; e membro da Academia Internacional de Direito e Economia AIDE.Andr Rufino do Vale assessor-chefe da Presidncia do Supremo Tribunal Federal; mestre em Direito pela Universidade de Braslia; professor do Instituto Brasiliense de Direito Pblico; membro do Conselho de Direo da Rede Iberoamericana de Assessores Constitucionais; membro da Comisso do Programa REDIR Rede de Promoo e Defesa de Direitos Fundamentais, do Conselho Nacional de Justia e editor-chefe do Observatrio da Jurisdio Constitucional