26º DOMINGO DO TEMPO COMUM DIA NACIONAL DA BÍBLIA O ESPÍRITO SANTO SOPRA ONDE QUER.
A INFLUÊNCIA DA OBRA DE PEDRO NUNES NA NÁUTICA...
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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE CINCIAS
SECO AUTNOMA DE HISTRIA E FILOSOFIA DAS
CINCIAS
A INFLUNCIA DA OBRA DE PEDRO NUNES
NA NUTICA DOS SCULOS XVI E XVII:
UM ESTUDO DE TRANSMISSO DE
CONHECIMENTO
Bruno Jos M. G. Pereira de Almeida
DOUTORAMENTO EM HISTRIA E FILOSOFIA DAS
CINCIAS
2011
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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE CINCIAS
SECO AUTNOMA DE HISTRIA E FILOSOFIA DAS
CINCIAS
A INFLUNCIA DA OBRA DE PEDRO NUNES
NA NUTICA DOS SCULOS XVI E XVII:
UM ESTUDO DE TRANSMISSO DE
CONHECIMENTO
Bruno Jos M. G. Pereira de Almeida
DOUTORAMENTO EM HISTRIA E FILOSOFIA DAS
CINCIAS
Tese orientada por:
Prof. Doutor Henrique Jos Sampaio Soares de Sousa Leito
2011
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Susel e Maria, ao antes e ao depois
To ask a maritime historian Do you sail?, is like asking an agrarian historian Do you have any livestock yourself? or an historian of criminality: Have you been out on many jobs lately? C. A. Davids, Zeewezen en wetenschap. De wetenschap en de ontwikkeling van de navigatietechniek in Nederland tussen 1585 en 1815, (Amsterdam/Dieren: Bataafsche Leeuw, 1985). Traduo de Peter de Clercq (2007).
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Agradecimentos
Ao terminar a licenciatura em Engenharia Fsica Tecnolgica (IST) senti a
necessidade de seguir outros caminhos intelectuais. Durante essa procura de
direco aconteceu ter entrado em contacto com a Professora Ana Simes que
amavelmente cedeu o meu contacto ao Professor Henrique Leito que me
convidou para uma conversa na Academia das Cincias de Lisboa.
No dia combinado recebeu-me e props-me uma candidatura a um
projecto de doutoramento sobre Pedro Nunes. Confesso, a princpio, pouco sabia
de tal figura e no me senti muito cativado pelo tema. Isso viria a mudar. Nos
meses que se seguiram tomei contacto com um campo totalmente novo: a
Histria das Cincias. Voltava, por mero acaso, ao estudo da Histria que tanto
me tinha cativado em criana e que se encontrava um pouco adormecido,
escondido num qualquer recanto da minha memria. Entrei tambm em contacto
mais directo com os hbitos de trabalho de Henrique Leito. O rigor, o respeito
pelos textos, o respeito pela escrita, pela cultura clssica, pela lingustica, pelas
figuras cientficas, a facilidade de discurso, a capacidade de motivar, tudo eram
caractersticas que me indicavam o caminho a seguir. Mas, acima de tudo,
davam alguma da confiana necessria a algum que chegava a um mundo
desconhecido.
Acabei por ter a sorte de realizar tal trabalho. O mesmo que hoje aqui se
encontra materializado e que foi orientado por Henrique Leito. O primeiro
agradecimento esse: ao mestre, sua obra e ao verdadeiro privilgio de
consigo ter aprendido praticamente tudo o que sei sobre Histria da Cincia.
Mas esta jornada no teria sido possvel sem o apoio do CIUHCT
Centro Interuniversitrio de Histria da Cincia e da Tecnologia. As condies
de trabalho proporcionadas, a camaradagem vivida, os professores que tive
durante o curso avanado de Histria e Filosofia das Cincias, so o reflexo de
um trabalho srio e de grande qualidade que pautam as linhas de orientao do
Centro. Professora Ana Simes, coordenadora do plo de Lisboa (FCUL) o
meu profundo agradecimento por todas as oportunidades e condies que me
foram dadas e pelas aulas a que tive oportunidade de assistir. O agradecimento
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institucional estende-se Professora Olga Pombo (Coordenadora da SAHFC -
Seco Autnoma de Histria e Filosofia da Cincia da FCUL). Aos restantes
professores e palestrantes com quem tanto aprendi ao longo destes anos, muito
obrigado. Em especial, aos Professores Carlos Seixas, Lus Saraiva e Jorge
Nuno Silva, pelo exemplo incansvel de defesa da Histria da Matemtica e por
tudo o que com eles aprendi.
Um especial agradecimento tambm aos membros da Comisso
Cientfica do projecto de reedio das Obras de Pedro Nunes e Academia das
Cincias, na pessoa do Prof. Fernando Dias Agudo, pela forma agradvel como
sempre fui recebido naquela casa e pela oportunidade nica de poder ter dado
um muito modesto contributo para a realizao de um projecto h muito
reclamado pela cultura portuguesa.
No posso deixar de agradecer Fundao Calouste Gulbenkian e
Fundao para a Cincia e Tecnologia. Sem as bolsas de estudo que recebi de
ambas as instituies esta dissertao no existiria.
Diviso de Reservados da Biblioteca Nacional de Portugal, em
especial Dra. Lgia de Azevedo Martins, pelas ptimas (e privilegiadas)
condies de trabalho que sempre me proporcionaram, o meu muito obrigado. O
agradecimento estende-se a funcionrios de todas as bibliotecas aqui
mencionadas.
Aos meus colegas, quer de aulas quer de ps-graduao, estendo o meu
agradecimento. No tentar nome-los a todos para no correr o risco de esquecer
algum. Destaco apenas alguns nomes que por diversas razes foram estando
mais presentes no meu dia-a-dia. Em primeiro lugar o meu profundo
agradecimento ao Dr. Samuel Gessner: foi um privilgio enorme e um prazer
dirio ter um colega de gabinete sempre pronto a ajudar, sempre pronto a
discutir ideias (juntos tivemos o privilgio de orientar vrias sesses do
JournalClub do CIUHCT) mas tambm a orientar. Ao Bernardo Mota e Pedro
Raposo, por serem exemplos que vrias vezes me orientaram e pela s
camaradagem. Ao Pedro, agradeo ainda os muitos livros, artigos, etc. que fez o
favor de me ceder.
Esta jornada no teria o mesmo gosto sem o apoio de verdadeiros
homens do mar como o Comandante Malho Pereira a quem agradeo tanto
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que aprendi atravs das suas aulas e textos; como o Comandante Antnio Costa
Canas, colega no estudo da Histria Martima Portuguesa, com quem muito
aprendi e que, em conjunto com a Segundo-tenente Ana Bastio e tambm com
o Primeiro-tenente Carlos Manuel Baptista Valentim me acolheram nas
Jornadas do Mar organizadas pela Escola Naval. Agradeo tambm aos
restantes colegas do CIUHCT, nomeadamente ao Comandante Joaquim Alves
Gaspar, Lus Miguel Carolino, Conceio Tavares, Ricardo Barbosa, Luana
Giurgevich, Teresa Nobre Carvalho, Jos Alberto Silva, Jlia Gaspar, Armando
Senra Martins (U. de vora), pela camaradagem e pela partilha de conhecimento
ao longo destes anos.
Uma palavra de agradecimento Prof. Isabel Vicente Maroto pela
cedncia de importantes textos, a Alison Sandman pela cedncia da sua tese de
doutoramento e a Stephen Johnston pela partilha de conhecimentos no estudo de
John Dee. Ainda a propsito de John Dee, o agradecimento estende-se a Jennifer
Rampling e Katie Taylor. A outros colegas que tive o prazer e sorte de conhecer
e com quem troquei preciosas informaes (demasiados para nomear), muito
obrigado.
Ao Nuno Tarcsio Cardoso pela inspirao na demanda incessante de
informaes sobre Pedro Nunes.
Aos meus amigos: Tiago Paixo e Miguel Atansio pela cedncia de
artigos cientficos. Joana S, no s pela cedncia de artigos importantes mas
tambm pela ajuda em tradues e revises de textos, o mesmo sucedendo com
Ana Almeida, a quem estendo o meu agradecimento, pela pronta ajuda em
tantas tradues para ingls.
Ao Miguel Areosa Feio e Duarte Tornesi pela ajuda na transcrio de
alguns documentos. Ao Frederico Alves pelas agradveis discusses.
Aos meus amigos mais prximos o meu eterno obrigado pelo apoio nas
horas mais delicadas.
Um agradecimento muito especial Mariana Areosa Feio.
Maria, o nico desejo possvel de declarar por palavras ser que as
linhas que escrevo jamais a desonrem.
minha famlia, obrigado por todo o apoio. As ltimas palavras so para
a pessoa que mais me apoiou, desde sempre, em todos os momentos da minha
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vida, a minha Me: a quem agradecer um dever mas tambm um orgulhoso
prazer.
Gostava de deixar uma ltima referncia, em jeito de dedicatria, ao meu
amigo Liberto Madeira Pires (o Beto). Guardarei para sempre na memria a sua
honrada dedicao e amor pela cincia e a reverncia com que falava de Pedro
Nunes.
Espero que este modesto contributo seja bem recebido, na certeza de que
limitado. Entrego-o com essa conscincia: poderia ter sido mais, melhor,
maior. A cultura portuguesa assim o merecia. Mas o trabalho que hoje aqui
deixo pode, e deve, ser continuado por outros. Tenho a certeza que Pedro Nunes
ainda reserva outras surpresas a quem decidir dedicar-lhe algum tempo e
trabalho.
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Resumo
Esta dissertao teve como objectivo avaliar a transmisso das ideias e da obra
de nutica e navegao do cosmgrafo e matemtico Pedro Nunes.
Sabe-se que os textos que mandou publicar, em 1537 e 1566, tiveram uma
boa aceitao e foram conhecidos em crculos eruditos europeus. No entanto,
devido natureza terica desses textos e por terem sido na sua maior parte
escritos em latim, a historiografia levantou algumas dvidas quanto sua real
difuso e impacto junto dos menos eruditos, nomeadamente ao nvel dos
prticos das coisas do mar. Essas dvidas deram azo a questes que importava
clarificar para se entender melhor a influncia da obra de Nunes na navegao e
marinharia do seu tempo.
Procurou-se nesta tese avaliar a existncia de indcios dessa transmisso e
divulgao de conhecimento cientfico; perceber que canais, mecanismos,
pessoas e contextos foram responsveis por esses fenmenos; investigar que tipo
de conhecimentos foi difundido, transmitido e assimilado; e mesmo estimar em
que medida os contributos cientficos de Pedro Nunes foram introduzidos na
prtica dos marinheiros.
Para dar respostas a estas questes, seguiram-se duas vias de investigao.
Uma primeira centrou-se na avaliao da aco directa de Nunes enquanto
titular do cargo de cosmgrafo. Desse desempenho, chegaram at ns escassos
registos. No obstante, a partir dos indcios identificados e de novas fontes
construiu-se uma imagem mais completa do impacto dessa actividade. Uma
segunda via procurou avaliar em que medida e de que forma as ideias, tcnicas e
resultados de Pedro Nunes foram incorporados nos trabalhos de outros
nomeadamente cosmgrafos, professores de navegao e matemticos e em
que contextos de prtica cosmogrfica e contextos educativos, em Portugal,
Espanha e Inglaterra, durante os sculos XVI e XVII.
Palavras-chave: Pedro Nunes, arte e cincia de navegar, sculos XVI e XVII, transmisso de conhecimento.
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Abstract
This dissertation aimed to evaluate the transmission of the ideas and of
the work on navigation carried out by the cosmographer and mathematician
Pedro Nunes.
It is known that the texts he had published in 1537 and 1566 had a good
acceptance and were acknowledged among erudite circles of Europe. However,
due to the theoretical nature of these texts and because they were mostly written
in Latin, historiography raised questions about its real impact and diffusion
amongst the less lettered, particularly in what regarded pilots and other practical
professions.
These questions led to issues that had to be clarified in order to better
understand the impact of the work of Nunes on of the navigation and
seamanship of his time. This thesis sought to evaluate the existence of evidence
of such transmission; acknowledge what channels, mechanisms, contexts and
people that were responsible for these phenomena, to investigate the kind of
knowledge that was disseminated, transmitted and assimilated, and even
estimate the extent to which the scientific contributions of Pedro Nunes were
integrated in the practice of sailors.
Two paths of investigation were followed in order to answer these
questions. The first focused on the evaluation of the direct action of Nunes as a
cosmographer. Only a few records have survived from this performance.
Nevertheless, with the identified evidence and new sources, it was possible to
build a more complete image of the impact of his activities. The second path
sought to assess in what extent and how the ideas, techniques and results of
Pedro Nunes were embedded in the work of others - namely in the work of
cosmographers, navigation teachers and mathematicians - and in what contexts
of practical cosmography and educational settings in Portugal, Spain and
England during the sixteenth and seventeenth centuries.
Key Words: Pedro Nunes, art and science of Navigation, sixteenth and seventeenth century, knowledge transmission.
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Siglas de instituies
ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo BPN Biblioteca Nacional de Portugal BCM Biblioteca Central de Marinha BGUC Biblioteca geral da Universidade de Coimbra BPE Biblioteca Pblica de vora BA Biblioteca da Ajuda BACL Biblioteca da Academia das Cincias de Lisboa BL British Library BNE Biblioteca Nacional de Espaa BL, Oxford Bodleian Library, Oxford BNCF Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze
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INTRODUO.............................................................................................................. 1
OBJECTO DE INVESTIGAO. ENQUADRAMENTO........................................................ 4 METODOLOGIA E ORIENTAES GERAIS...................................................................... 8 ORGANIZAO E ESTRUTURA DA TESE...................................................................... 10
1 PARTE
A OBRA NUTICA DE PEDRO NUNES
1.1 PEDRO NUNES (1502-1578), APONTAMENTOS BIOGRFICOS............... 15 1.2 TRATADO DA SPHERA ................................................................................... 25
1.2.1 Tratado sobre certas duuidas da nauegao ............................................... 33 1.2.2 Tratado em defensam da carta de marear ................................................... 41 Sumrio ................................................................................................................. 52
1.3 MANUSCRITO DE FLORENA ...................................................................... 53 1.3.1 Uma nova leitura e interpretao ................................................................ 56 1.3.2 Anlise de contedo do manuscrito de Florena ......................................... 65
1.3.2.1. Primeira parte...................................................................................... 67 1.3.2.2. Segunda parte ...................................................................................... 71
Sumrio ................................................................................................................. 75 1.4 PETRI NONII SALACIENSIS OPERA ............................................................. 77
1.4.1. Livro I. Sobre dois problemas acerca da arte de navegar .......................... 79 1.4.2. Livro II. Sobre as regras e os instrumentos para descobrir as aparncias das coisas tanto martimas como celestes, partindo das cincias matemticas ... 82 Sumrio ............................................................................................................... 113
2 PARTE
DIFUSO E TRANSMISSO DA OBRA DE PEDRO NUNES
2.1 PORTUGAL...................................................................................................... 117
2.1.1. Pedro Nunes: Cosmgrafo-Mor................................................................ 120 2.1.2. Contribuies para o estudo da transmisso da obra de Pedro Nunes em Portugal............................................................................................................... 134
Francisco Faleiro............................................................................................. 134 Manuel Lindo.................................................................................................. 141 D. Joo de Castro ............................................................................................ 148 Diogo de S..................................................................................................... 158 Simo Oliveira ................................................................................................ 166 Manuel de Figueiredo ..................................................................................... 173 Valentim de S................................................................................................ 176 Antnio de Naiera ........................................................................................... 178 Antnio Carvalho da Costa ............................................................................. 205 Lus Serro Pimentel....................................................................................... 212
2.1.3 A Aula da Esfera do Colgio de Santo Anto e o ensino da navegao.221 2.1.3.1. Ensino cientfico pelos Jesutas.......................................................... 223 2.1.3.3. O ensino da nutica e a presena de Pedro Nunes na Aula da Esfera ........................................................................................................................ 230
Francisco da Costa...................................................................................... 234 Johann Chrysostomus Gall ......................................................................... 240 Cristoforo Borri .......................................................................................... 242 Ignace Stafford ........................................................................................... 244
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Simon Fallon............................................................................................... 249 John Rishton ............................................................................................... 265 Valentim Estancel....................................................................................... 269 Outros Manuscritos da Aula da Esfera ....................................................... 274
2.1.4 Outros Manuscritos .................................................................................... 278 Biblioteca Pblica de vora, Fundo Manizola, Cdice 27 ............................. 278
Sumrio ...............................................................................................................286 2.2 ESPANHA......................................................................................................... 289
2.2.1. O ensino da navegao em Espanha cargos e instituies ....................293 2.2.2. Contribuies para o estudo da transmisso da obra de Pedro Nunes em Espanha. ..............................................................................................................299
Alonso de Santa Cruz...................................................................................... 304 Martn Corts .................................................................................................. 310 Rodrigo Zamorano .......................................................................................... 314 Diego Garcia de Palcio.................................................................................. 317 Joo Baptista Lavanha .................................................................................... 317 Simn de Tovar............................................................................................... 329 Pedro de Syria ................................................................................................. 336 Diego Prez de Mesa....................................................................................... 339 Andrs Garca de Cspedes............................................................................. 349 Pedro Porter y Casanate .................................................................................. 368 Lzaro de Flores.............................................................................................. 370 Sumrio ........................................................................................................... 373
2.3 INGLATERRA.................................................................................................. 377 2.3.1. Contribuies para o estudo da transmisso da obra de Pedro Nunes em Inglaterra. ...........................................................................................................390
John Dee.......................................................................................................... 398 Thomas Digges ............................................................................................... 418 Thomas Blundeville ........................................................................................ 422 Thomas Harriot ............................................................................................... 425 John Davis....................................................................................................... 433 Breves notas sobre o ensino pblico de navegao em Inglaterra e a presena de matrias sobre navegao de Pedro Nunes ............................................... 442
A aula de Thomas Hood ............................................................................. 447 Robert Hues .................................................................................................... 452 William Barlow............................................................................................... 458 Edward Wright................................................................................................ 461 Publicaes sobre navegao posteriores ao Certaine errors in navigation... 473 Sumrio ........................................................................................................... 480
2.4. FRANA, PASES BAIXOS E ITLIA ......................................................... 483 Michel Coignet................................................................................................ 484 Simon Stevin ................................................................................................... 489 Georges Fournier............................................................................................. 493 Claude Deschales ............................................................................................ 498 Robert Dudley ................................................................................................. 502 Bartolomeo Crescenzio ................................................................................... 506
Sumrio ...............................................................................................................510 QUADROS RESUMO............................................................................................. 513
CONCLUSO GERAL............................................................................................. 527
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................ 541
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A INFLUNCIA DA OBRA DE PEDRO NUNES NA NUTICA DOS SCULOS XVI E XVII:
UM ESTUDO DE TRANSMISSO DE CONHECIMENTO
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Introduo
El arte de navegar es una de las ms tempranas disciplinas aplicadas y uno de los primeros puentes que acabaron con la separacin entre ciencia y tcnica propria de la Antigedad clsica y del mundo medieval. Como ciencia aplicada, resulta inseparable de la cosmografa y da la astronoma (...), Maria Isabel Vicente Maroto, El Arte de Navegar, in: Jos Mara Lpez Piero (Dir.), Historia de la ciencia y de la tcnica en la Corona de Castilla. Siglos XVI y XVII, Vol. III, (Toledo: Junta de Castilla y Lon, 2002), p. 347.
TRABALHO QUE AQUI SE APRESENTA teve como objectivo compreender e
avaliar em que medida existiu transmisso do trabalho sobre navegao
realizado por Pedro Nunes e que forma esta tomou, durante os sculos
XVI e XVII.
O O problema proposto surgiu fruto de um conjunto de questes elementares,
mas pertinentes, primeiramente formuladas por Henrique Leito num artigo
intitulado Sobre a actividade do cosmgrafo Pedro Nunes1 (publicado em 2002).
Notou este autor que certos historiadores do sculo XX ligados ao estudo da
marinharia e arte de navegar haviam duvidado que o matemtico e cosmgrafo
portugus tivesse contribudo positivamente para o desenvolvimento de tcnicas de
navegao do seu tempo2.
1 Henrique Leito, Sobre a actividade do cosmgrafo Pedro Nunes, Revista da Armada, 359 (2002) 21-23. 2 Estas opinies desfavorveis contrastavam com uma tendncia historiogrfica de, regra geral, destacar a obra de Pedro Nunes como um dos captulos de maior qualidade e brilhantismo da histria das cincias em Portugal. O sculo XVI pode ser chamado na histria da Matemtica ibrica o sculo de Pedro Nunes. Portugal teve neste sculo a hegemonia das Matemticas na nossa Pennsula, no porque tivesse muitos cultores destas cincias, mas porque Pedro Nunes por si s vale por muitos. Nos variados ramos da referida cincia de que tratou, nenhum outro matemtico portugus ou espanhol o igualou, Francisco Gomes Teixeira, Histria das Matemticas em Portugal (Lisboa: Academia das Cincias de Lisboa, 1934), p. 186. Outro exemplo a considerar a opinio de Armando Corteso: (...) the illustrious Pedro Nunes, who is undoubtedly the supreme representative of Portuguese nautical science., Armando Corteso, Contribution of the Portuguese to scientific navigation and cartography, Separata de Esparsos II, (Coimbra: Junta de Investigaes Cientficas do Ultramar, 1974), p. 21.
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Um dos exemplos mais conhecidos dessa argumentao surgiu num
comentrio do Almirante Morais e Sousa:
Pedro Nunes no teve influncia na cincia nutica do seu tempo. A sua existncia passou despercebida dos pilotos () que continuaram a praticar os mesmos processos antigos () que representavam toda a cincia nutica ento conhecida.3
Este no foi, de modo algum, um comentrio isolado. O historiador Lus de
Albuquerque afianou que o Almirante Teixeira da Mota estava convencido de que
a aco do cosmgrafo teria mesmo sido prejudicial. No obstante, Albuquerque
quedou-se numa posio mais contida, confiando que Nunes com as suas
observaes tericas em nada contribuiu para que ela [a nutica] se aperfeioasse4 .
Perante este cenrio, Henrique Leito questionou a profundidade e alcance
das opinies emitidas. Lembrou que a maior parte do que chegou aos nossos dias
sobre o matemtico se resume ao que este havia escrito nas obras que mandou
publicar, as quais, pela sua natureza, no podiam nem pretendiam comunicar
directamente com os homens do mar. E sugeriu que, para se clarificar a sua aco
na marinharia e arte de navegar do seu tempo, seria necessrio abandonar como
referncia as suas publicaes: (...) procurar a influncia de Pedro Nunes na
marinharia portuguesa do sculo XVI inspeccionando textos que no tinham por
objectivo sequer comunicar com esses marinheiros apesar do que as palavras de
Nunes por vezes deixam entender parece-me ser um erro de julgamento.5
Referindo-se s opinies de Morais e Sousa e Lus de Albuquerque, o
mesmo investigador acrescentou: indubitvel que estes pareceres assinalam
caractersticas da actividade intelectual do cosmgrafo-mor, mas no se pode dizer
que resultem de um estudo cuidado do registo histrico. Um tal estudo est ainda
3 Lus de Morais e Sousa, A Sciencia nutica dos pilotos portugueses nos sculos XV e XVI, Parte I (Lisboa: Imprensa Nacional, 1924), p. 32. 4 Este artigo teve vrias edies e neste caso a referncia corresponde a Lus de Albuquerque, Pedro Nunes e os homens do mar do seu tempo, A Nutica e a Cincia em Portugal. Notas sobre as navegaes, (Lisboa: Gradiva, 1989), p. 156. 5 Henrique Leito, Sobre a actividade do cosmgrafo Pedro Nunes, Revista da Armada, 359 (2002), p. 22.
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por fazer e at que ele exista qualquer opinio sobre este assunto ser sempre muito
especulativa.6
A proposta de Henrique Leito passava assim por redireccionar as linhas de
investigao. Ou seja, alm dos livros impressos, seria necessrio investigar outros
canais, actores e contextos que pudessem ter sido responsveis pela transmisso e
difuso das propostas de Pedro Nunes.
*****
A opinio sobre o trabalho de Pedro Nunes nunca foi consensual. Mesmo
em vida, Nunes experimentou alguma resistncia s suas ideias provenientes de
vrios sectores da sociedade. Entre os opositores mais conhecidos encontram-se
homens sabedores de assuntos de arte de navegar como Fernando Oliveira e Manuel
Lindo, cartgrafos como Lopo Homem, intelectuais como Diogo de S e mesmo
pilotos. Outros, como os conhecidos Michel Coignet, William Gilbert ou Simon
Stevin, teceram-lhe algumas crticas de foro tcnico.
Certamente estas avaliaes tambm influenciaram o julgamento de alguns
historiadores contemporneos. Aqui se podem incluir os comentrios de Morais e
Sousa que, julgo, no ter estimado bem as implicaes lgicas do seu comentrio,
ao sugerir que as artes de pilotagem praticadas no sculo XVI (e possivelmente
antes) se podem incluir no campo das cincias7 , e que nada do que Pedro Nunes
escreveu contribuiu para o seu desenvolvimento. Com efeito, ao falar-se de cincia
nutica, no possvel ignorar as centenas de pginas que o cosmgrafo dedicou a
assuntos de navegao e a considerao que, por isso, mereceu em alguns circuitos
intelectuais europeus8 .
6 Pedro Nunes, Obras, IV, (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2008), p. 558. 7 Esta uma concluso que pode, hoje em dia, ser encarada como potencialmente polmica: o uso da palavra cincia aplicada ao sculo XVI deve ser, em geral, moderado. Tambm o uso de cincia de navegar deve ser encarado com alguma cautela. Neste caso, a minha apreenso prende-se necessariamente com o uso da expresso cincia para classificar a actividade martima do incio do sculo XVI (ponho em dvida a existncia de uma cincia nutica em Portugal, no incio do sculo XVI) e a consequente no incluso de Nunes entre os que a praticavam. 8 Sobre o tema da difuso da sua obra em crculos intelectuais europeus ver: Henrique Leito, Sobre a difuso europeia da obra de Pedro Nunes, Oceanos, 49 (2002) 110-128.
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A opinio de Lus de Albuquerque foi mais assertiva em relao questo
que aqui se pretende avaliar. No obstante, numa publicao anterior revelou-se
mais favorvel a uma influncia do cosmgrafo na marinharia do seu tempo, ao
afirmar: Entre as contribuies mais valiosas dadas por Pedro Nunes marinharia
da poca contam-se os processos que em 1537 apresentou para a determinao de
latitudes por alturas extra-meridianas do Sol, e para a determinao da declinao
magntica (...). Estes dois contributos do cosmgrafo para a arte nutica, que viria a
estar sob sua directa responsabilidade alguns anos mais tarde, tm desigual valor
prtico, mas ambos se tornaram bastante conhecidos (...)9 . Noutra ocasio
Albuquerque sustentara tambm que o matemtico (...) o primeiro autor que cita
a suspenso de Cardano, falando dela ocasionalmente quando descreve o seu
instrumento de sombras10 . Da mesma maneira, o historiador adicionou que as
contribuies do cosmgrafo tambm tero incidido na terminologia em uso na
poca, como por exemplo, na substituio da expresso comum bornear da
estrela pela expresso bornear da agulha pela estrela11 .
Penso ter ficado claro que as orientaes transcritas no so conclusivas e
at potenciam algumas dvidas. No obstante, nenhuma destas opinies suficiente
para confirmar se Nunes teve ou no impacto na marinharia do seu tempo. Na
realidade, nunca existiu um trabalho de fundo que se tenha ocupado destas questes
aparentemente simples mas que importa clarificar.
Objecto de Investigao. Enquadramento
Como j foi referido, este um estudo sobre transmisso de conhecimento. A
literatura sobre este tema relativamente vasta e debrua-se sobre tpicos que vo
9 Lus de Albuquerque, Sobre as Prioridades de Pedro Nunes, Separata de Memrias Academia Cincias Lisboa, Classe de Cincias, 16 (1972), p. 394. 10 Lus de Albuquerque, Instrumentos de Navegao, (Lisboa: Comisso Nacional para a Comemorao dos Descobrimentos Portugueses, 1988), p. 63. 11 Lus de Albuquerque, Instrumentos de Navegao, p. 67.
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desde a transmisso de tradies cientficas, transmisso de teorias, ao estudo das
sociedades cientficas, etc.
Na historiografia, assiste-se regra geral, a uma convivncia de termos como
difuso, disseminao, transmisso, influncia, impacto,
comunicao, divulgao. Contudo, estes termos no so equivalentes e
apresentam matizes diversos entre si. Ao longo desta tese ir utilizar-se
preferentemente o termo transmisso, que ser empregue na acepo que lhe deu
R. G. A. Dolby:
A new scientific idea or practice is transmitted from one individual to another if the second individual learns about the innovation from the first, directly or indirectly, and accepts it as a knowledge or uses it in his own work.12
Quanto aos outros termos, sero usados com cautela suficiente para no
induzir em erro, mas ainda assim com relativa liberdade, assumindo que em boa
parte das situaes estudadas h equivalncia entre si. Por exemplo, quando se fala
da recepo de ideias cientficas pelos prticos das coisas do mar no se pode falar
de difuso, uma vez que este conceito implica transmisso sem alterao de
contedos.
De uma forma geral, os estudos sobre transmisso de conhecimentos
cientficos orientam-se para responder, em cada caso, a perguntas como: houve
transmisso de conhecimento? Se sim, que tipo de conhecimento foi transmitido, ou
seja, que contedos (se no, porqu)? Como foi o conhecimento transmitido, ou
seja, por que meios? A quem foi transmitido, ou seja, quem o receptor? Porque foi
transmitido, ou seja, o contexto?13 . Os estudos sobre esta temtica procuram
12 R. G. A. Dolby, The transmission of science, History of Science, 15 (1977), p. 1. 13 A literatura geral sobre este tema vasta e abordada tanto por historiadores quanto por filsofos e socilogos. Do lado da histria assenta principalmente em estudos de caso, como os que constam na edio referida. J do lado da filosofia existem alguns trabalhos de fundo que abordam o tema de forma mais alargada. Encontrei principalmente trabalhos relacionados com o papel do testemunho nos processos de transmisso de conhecimentos. No caso desta tese, a abordagem a estas questes, com todas as reservas possveis e distncias devidas, foi influenciada pela leitura de Sachiko Kusukawa, Ian Maclean (eds.), Transmitting Knowledge: Words, Images, and Instruments in Early Modern Europe (Oxford: Oxford University Press, 2006), principalmente pelo texto introdutrio de
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identificar os possveis canais e mecanismos associados transmisso. Na poca
histrica que aqui interessa (designada geralmente early modern) o foco dos
investigadores incide bastante na anlise de textos, imagens e instrumentos da
cincia.
No que diz respeito base terica sobre estas questes, e devido
principalmente vastido do tema e aos diversos pontos de vista, optei por no
adensar muito as leituras. Como base de trabalho usei (alm do importante The
transmission of science14 de R. G. A. Dolby) uma publicao recente: Sachiko
Kusukawa, Ian Maclean (eds.), Transmitting Knowledge: Words, Images, and
Instruments in Early Modern Europe (Oxford: Oxford University Press, 2006). Este
volume apresentou diversos estudos de caso sobre o tema com a vantagem de se
situarem na idade mdia tardia e perodo early modern.
Especificamente sobre a difuso e transmisso do trabalho de Nunes
registaram-se vrios contributos ao longo dos anos, por diversos autores. Refiro
brevemente neste espao (as referncias completas podem ser consultadas na
bibliografia): de Lus de Albuquerque Pedro Nunes e os homens do mar do seu
tempo, entre outros; a Marinharia dos descobrimentos, de Fontoura da Costa;
recentemente, de Onsimo Teotnio de Almeida, fique a dvida para Pedro
Nunes: sobre a cooperao entre cientistas e navegadores; a produo de Henrique
Leito, com destaque para o artigo Sobre a difuso europeia da obra de Pedro
Nunes; e ainda, o estudo de Vctor Navarro-Brtons, Aspectos de la obra
cosmogrfica de Pedro Nunes y su influencia en la cosmografia Ibrica que foi um
primeiro esforo de perceber os contornos da influncia da obra de Nunes na
pennsula ibrica15 . Naturalmente, este assunto tambm abordado nas
Anotaes do volume IV da recente edio das obras de Pedro Nunes.
Richard Scholar, Introduction, pp. 1-10. muito interessante a sua anlise histrica, principalmente no que diz respeito explicao dos primrdios de uma teoria sobre a transmisso de conhecimentos, formulada por Blaise Pascal. 14 R. G. A. Dolby, The transmission of science, History of Science, 15 (1977) 1-43. 15 A consulta da bibliografia desta dissertao dar certamente ao leitor vrias outras opes que aqui no refiro. Recentemente tive a grata oportunidade de contribuir para esta lista com o artigo Pedro Nunes and seamen: a study in the transmission of scientific knowledge, Synergia: Primer
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Esta dissertao ir concentrar-se em avaliar a existncia de indcios da
transmisso da obra de Pedro Nunes sobre nutica, em investigar que canais,
mecanismos, pessoas e contextos foram responsveis por esses fenmenos.
Pretende-se tambm investigar que tipo de conhecimentos foi difundido,
transmitido e assimilado, e mesmo estimar se houve introduo dos contributos
cientficos de Pedro Nunes na prtica.
Cumpre referir que o trabalho de Nunes tinha dois pblicos alvo: o erudito,
que entendia a linguagem usada nos textos impressos, e o prtico, que em ltima
anlise deveria usar esse conhecimento na sua actividade profissional.
Necessariamente, somente a partir dos livros, no havia hiptese de comunicao
entre Nunes e os prticos das coisas do mar. Por isso podem conceber-se duas vias
que possibilitam essa comunicao: a via directa, (oral ou escrita) fruto do seu
desempenho enquanto cosmgrafo, isto , na formao de pessoas e na superviso
tcnica dos instrumentos, mtodos, regras e pessoas que intervinham na boa
conduo dos navios; e uma via indirecta, que faria uso de intermedirios nesse
processo.
Como se sabe, na poca os pilotos usavam na sua prtica regras e
procedimentos tcnicos muito simples. Pedro Nunes, ao tornar-se cosmgrafo,
avanou com uma proposta, (nas palavras de Henrique Leito, um programa) que
passava por tornar a navegao numa disciplina com bases matemticas. Parece
inevitvel que, perante este cenrio, se desse um choque profissional entre o terico
e os prticos, entre o cosmgrafo e os homens do mar, habituados a uma tradio
tcnica bastante diferente16 . Mas tal no significa um corte na comunicao entre
Encuentro de Jvenes Investigadores en Historia de la Ciencia, Valncia 18-20 Novembro 2005 (Madrid: CSIC, 2007) 349-362. 16 Os litgios entre cosmgrafos e pilotos no foram exclusivos da realidade portuguesa: h exemplos de dinmicas afins noutros contextos scio-profissionais estrangeiros. A tese de Alison Sandman, Cosmographers vs pilots: Navigation, Cosmography, and the State in early modern Spain, Dissertao de Doutoramento, University of Wisconsin, 2001, atesta perfeitamente este facto para o caso da primeira metade do sculo XVI, em Espanha. Sandman relata bem a tenso existente entre as duas classes e a sua luta pelo controlo das instituies e polticas ligadas ao regulamento das navegaes. Por exemplo, a autora refere o caso em que o cosmgrafo espanhol Pedro de Medina se
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estes estratos com interesses to distintos. Por isso, os mecanismos associados a
estes fenmenos de transmisso tero sido mais complexos do que at recentemente
se pensava, interessando perceb-los para desvendar como as suas propostas e
ideias podero ter passado para os homens que iam para o mar.
No caso da via indirecta, o processo parece ter sido o seguinte. Alguns
intermedirios cosmgrafos, professores, praticantes de matemticas, cartgrafos,
fabricantes de instrumentos, etc. agiram sobre os contedos eruditos de Pedro
Nunes, adaptando-os de maneira a serem entendidos e usados pelos prticos. O
objectivo desta dissertao pois avaliar estes processos, contedos, meios,
contextos e receptores ligados disseminao das ideias de Pedro Nunes,
relacionadas com navegao.
Metodologia e orientaes gerais
A complexidade em avaliar a difuso da obra noniana tem tambm que ver com a
vastido do trabalho que necessrio realizar e com a exigncia em caracterizar,
com alguma preciso, as diferentes referncias que so feitas obra e
personalidade do matemtico portugus, pelos seus contemporneos e pelos
pensadores das geraes seguintes.
Na primeira parte deste trabalho, pretendeu-se proceder a um estudo
pormenorizado das contribuies de Pedro Nunes para a cincia nutica.
Necessariamente, houve que assumir que os seus textos foram canais privilegiados
da sua comunicao cientfica. Por isso, essas fontes foram sujeitas a uma ateno
especial, de modo a identificar as matrias e tpicos que mereceram a ateno de
Pedro Nunes, destacando-se principalmente as suas ideias em relao s curvas de
viu envolvido numa contenda que o ops ao piloto mayor Sebastio Caboto e ao piloto e cartgrafo Diego Gutirrez a propsito de erros nas cartas que este ltimo tinha produzido e o piloto mayor aprovado. Para esta investigadora, esta questo foi uma verdadeira batalha legal entre os cosmgrafos literatos de um lado e os pilotos (e cosmgrafos menos informados) do outro. Na sua opinio, os cosmgrafos acabaram por levar a melhor ao apostaram num discurso baseado na utilidade da cincia para o estado de maneira a ganhar o controlo das instituies.
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rumo a moderna derrota loxodrmica. A fase seguinte consistiu na localizao e
estudo de autores e de fontes bibliogrficas primrias que pudessem encaixar nos
requisitos definidos. A investigao incidiu sobre os principais regimentos e
tratados de nutica do sc. XVI e tambm de todo o sc. XVII, impressos ou
manuscritos, escritos em vernculo.
Consideraram-se tambm fontes de outra natureza, principalmente notas de
aulas. Estas constituem documentos de grande importncia j que so provas
irrefutveis do que era ensinado, do que passava para os alunos, do que era
considerado importante pelos mestres e, em ltima anlise, teria potencial para ser
aplicado a bordo. No caso portugus, optou-se por estudar de modo mais
consistente algumas fontes jesutas referentes ao ensino de nutica na Aula da
Esfera, de Lisboa.
A anlise da difuso das ideias de Pedro Nunes exigiu tambm uma certa
ateno a trabalhos de personalidades ligadas a outros mbitos tcnico-cientficos,
passando por construtores de instrumentos, astrnomos tericos, gemetras, etc. E
tambm ao papel desempenhado por artfices (cartgrafos e fabricantes de
instrumentos, por exemplo), pilotos e pelas instituies e organizaes responsveis
pelo ensino da poca e que estariam de algum modo ligados ao ensino e prtica da
nutica nas suas diversas vertentes17 .
De entre as fontes e personalidades consideradas surgiram alguns que se
destacaram e foram usados como estudos de caso. Em cada captulo apresenta-se
pelo menos um destes ttulos e seu estudo detalhado.
Em relao janela temporal considerada, a escolha recaiu no perodo entre o
ano de 1529 (ano em que Pedro Nunes foi nomeado cosmgrafo) e, no mximo, o
ano de 1700. A princpio no houve razes especiais para a escolha deste ano e
tratou-se apenas de uma escolha operativa, com a funo de arredondar datas. De
17 A razo para esta deciso pode ser resumida pela opinio de Richard Scholar: (...) words, images, and instruments frequently interact with one another in the same act of transmission and that this has profound consequences for the knowledge transmitted, Richard Scholar, Introduction, in: Sachiko Kusukawa, Ian Maclean (eds.), Transmitting Knowledge: Words, Images, and Instruments in Early Modern Europe (Oxford: Oxford University Press, 2006), p. 1.
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facto, continuou a existir transmisso da obra de Nunes para l desta data.
Posteriormente, verificou-se que este espao de tempo dava garantias de abranger
uma boa parcela de fenmenos de transmisso que interessava estudar, sendo que na
maioria dos casos at nem seria necessrio estender tanto o perodo.
Este estudo tambm se debruou compreender a transmisso da obra de
Nunes a outros contextos que no s o portugus. O ensino das artes matemticas, e
especificamente da navegao, neste perodo foi fortemente influenciado por
contextos locais da o interesse de apresentar um estudo comparativo18 . Assim, alm
do portugus, estudaram-se maioritariamente fontes em espanhol e ingls,
registando-se ainda o estudo de algumas fontes flamengas, francesas e italianas.
A organizao das fontes foi feita tendo em conta a sua diviso geogrfica por
local de publicao (as excepes sero comentadas oportunamente) j que se espera
que os primeiros impactos e influncias se tenham dado nesses locais.
Organizao e estrutura da tese
A tese est organizada tal como visvel no ndice temtico. Optei pela diviso em
dois volumes. O primeiro volume divide-se ainda em duas partes principais. Na
primeira parte apresenta-se uma pequena biografia de Nunes e um olhar mais
detalhado sobre o seu trabalho cientfico (dedicado a assuntos da navegao). A,
em captulos diferentes, analisam-se os trs textos principais com o objectivo
estabelecer uma cronologia evolutiva das suas ideias e de seleccionar e identificar
os tpicos mais relevantes que sero procurados nas fontes principais. Numa
segunda parte, apresentam-se os dados recolhidos nessa investigao, repartidos por
captulos segundo zonas geogrficas. Em cada captulo apresentado um sumrio.
18 Thinking about place therefore gives us one way in to the examination of mathematical cultures. Moreover, the absence of an overarching disciplinary formation meant that the pursuit of mathematics in the Renaissance was peculiarly subject to local conditions (in complete contrast to our familiar perception of its universal character). This contingency and diversity of Renaissance mathematics points to the need for local studies., Stephen Johnston, Making mathematical practice: gentlemen, practitioners and artisans in Elizabethan England, Dissertao de Doutoramento, Universidade de Cambridge, 1994, pp. 10-11.
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Por fim, apresenta-se uma concluso geral. Um segundo volume rene os anexos,
principalmente constitudos por textos transcritos.
Sendo esta uma tese em que muito se falar de cincia e de navegao
convm alertar para o uso de algumas expresses eventualmente polmicas. Regra
geral irei usar certas expresses ligadas ao jargo da arte de navegar com bastante
liberdade, tentando no comprometer a compreenso do texto. Sempre que possvel
darei indicaes que facilitem essa leitura. Um exemplo o uso das expresses
arte de navegar e cincia de navegar, onde regra geral me aproximo das
designaes ars nauigandi, quando pretendo referir-me arte de navegar como
saber prtico, e ratio nauigandi quando pretendo referir-me cincia de
navegar como um saber teorizado, matematizado, tal como sugerido por Henrique
Leito19 . Noutros momentos refiro-me conjuntamente a arte e cincia de navegar.
Tambm pouco se ir aprofundar sobre a classificao literria de textos impressos
(se um Tratado, Regimento, etc.), bem como dos escritos atribudos a pilotos
(roteiros, notas, regimentos, etc.). Aqui opta-se por no ser demasiado exaustivo e
sempre que for pertinente juntam-se indicaes para facilitar a compreenso do
leitor. Outro exemplo o uso relativamente livre de expresses tcnicas como
regimento do sol, regimento da altura do sol, ou a designao de Pedro Nunes
regimento da altura do plo ao meio-dia. Em caso de evidente filiao com o
trabalho de Pedro Nunes, assinala-se recorrendo aos termos usados pelos autores.
Apresentam-se ainda estudos e transcries de alguns documentos
manuscritos, como sejam tratados, regimentos, notas de aulas, apontamentos sobre
matrias leccionadas, etc. As transcries so apresentadas num volume parte. O
objectivo deste conjunto de transcries apenas o de disponibilizar textos de
difcil acesso, para no alongar este estudo excessivamente e, sobretudo, para no o
desencaminhar da sua linha fundamental.
19 A literatura sobre o tema deixa perceber interpretaes alternativas da expresso arte de navegar. Ver por exemplo: Maria Isabel Vicente Maroto, El Arte de Navegar, in: Jos Mara Lpez Piero (Dir.), Historia de la ciencia y de la tcnica en la Corona de Castilla. Siglos XVI y XVII, Vol. III, (Toledo: Junta de Castilla y Lon, 2002), pp. 347-348.
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Nota: Critrios de transcrio
As transcries aqui apresentadas procuram aproximar-se o mais possvel do
original. As alteraes introduzidas procuraram facilitar a leitura e o trabalho de
transcrio, (para o que se optou por grafar, por exemplo, as nasais sobrescritas -
aparecer on ou om; regra geral, opto por desdobrar todas as abreviaturas).
Substitui-se tambm a barra [/] pela vrgula. Normalmente, respeitam-se os espaos
entre palavras e letras dos textos originais. Ainda para simplificao da leitura e
aligeiramento das notas de rodap, corrigem-se sempre que seja necessrio, sem
indicao, erros nos impressos, decorrentes de gralhas tipogrficas, como a troca de
n por u. De resto, permanece a fidelidade grafia dos impressos e manuscritos,
distinguindo v e u, transcrevendo & por e e mantendo, em geral,
imperturbada a pontuao original. Entre parntesis rectos ([ ]) anota-se a
numerao das folhas e pginas, observaes, correces; dificuldades de leitura
so marcadas entre barras verticais (| |) no caso de ser possvel reconstruir o
sentido das palavras, ou com ponto de interrogao entre barras verticais (|?|) no
caso de uma dificuldade geral; finalmente, so indicadas entre < > letras ou
slabas que se podem reconstruir mas que no esto no texto por lacuna ou gralha
evidente de edio. Optei ainda por no introduzir alteraes nos textos fixados nas
ltimas edies das Obras de Pedro Nunes. Todas as excepes a estas linhas gerais
de orientao sero devidamente indicadas.
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1 PARTE
A obra nutica de Pedro Nunes
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1.1 PEDRO NUNES (1502-1578), APONTAMENTOS BIOGRFICOS20
DICO, MATEMTICO, ASTRNOMO OU COSMGRAFO, Nunes foi no seu
tempo o exemplo do investigador terico (apesar de tudo) preocupado
em conferir ao seu trabalho a tnica de uma experincia e de uma
prtica fundadas na interpretao matemtica do mundo real. Os seus estudos
abrangeram questes de astronomia, matemtica, navegao, mecnica, fabrico de
instrumentos cientficos e cartografia.
M Henrique Leito de opinio de que ainda no se escreveu uma narrativa
definitiva da vida de Pedro Nunes21 . Essa uma tarefa deveras complicada talvez
porque muitos so os aspectos da sua vida ainda envoltos pelo desconhecido. A
literatura abundante e continua a aumentar mas subsistem assuntos e posies
ainda por clarificar. Claro est, no isso que se pretende cumprir com este breve
apontamento. Aqui, o objectivo no mais que listar alguns momentos mais
20 Apresentam-se nesta seco alguns apontamentos biogrficos relativos a Pedro Nunes para orientao do leitor. Ao longo desta tese dar-se-o outras indicaes bibliogrficas complementares. Estes apontamentos no tm qualquer pretenso de suplantar vrios estudos mais completos. Como exemplo deixo estas indicaes: Rodolfo Guimares, Vida e descendncia de Pedro Nunes, Boletim da Segunda Classe da Academia das Scincias de Lisboa, 9 (1914-15) 122-141; Antnio Baio, O Matemtico Pedro Nunes e sua famlia luz de documentos inditos, Boletim da Segunda Classe da Academia de Scincias de Lisboa, 9 (1914-15) 82-121; Henrique Leito, Para uma biografia de Pedro Nunes: O surgimento de um matemtico, 1502-1542, Cadernos de Estudos Sefarditas, 3 (2003) 45-82; Joaquim de Carvalho, Nunes, Pedro, in: Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira, Vol. XIX (Lisboa e Rio de Janeiro: Editorial Enciclopdia, 1935 e ss.) 53-65; Fernando Taveira da Fonseca, Pedro Nunes na Universidade, I Lisboa, in: Estudos em Homenagem a Lus Antnio de Oliveira Ramos, Vol. II, (Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004) 537-544; Fernando Taveira da Fonseca, Pedro Nunes na Universidade, II Coimbra, Revista Portuguesa de Histria, 35 (2001-2002) 297-333. 21 Apesar de no ser escasso o nmero de trabalhos dedicados ao famoso matemtico e cosmgrafo quinhentista Pedro Nunes (1502-1578), no existe ainda um estudo biogrfico suficientemente desenvolvido que congregue os muitos elementos hoje em dia j apurados e que circulam em publicaes diversas (...), Henrique Leito, Para uma biografia de Pedro Nunes: O surgimento de um matemtico, 1502-1542, p. 45.
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marcantes da sua vida cientfica; de outro modo correr-se-ia o risco de repetio de
episdios j enunciados em vrios relatos muito mais competentes.
*****
A dedicao cincia foi o trao principal da vida de Pedro Nunes. Se no
veja-se: desde cedo a busca pelo saber o levou a sair do seu prprio pas e foi,
supostamente, o seu prestgio cientfico que o obrigou depois a regressar; a sua
profisso (que tanto condicionou a sua vida pessoal) estava ligada aplicao de
saberes cientficos; todos os seus escritos so sobre matrias da cincia. E boa parte
da informao biogrfica que hoje subsiste advm do que o prprio Pedro Nunes
escreveu nos seus livros. Sem excepo, todos eles foram livros dedicados
cincia: por isso, qualquer biografia noniana dever dirigir sempre um especial
cuidado a esta faceta.
Ao passo que os seus interesses cientficos se encontram documentados nos
livros que publicou (e mesmo nos que por algum motivo no publicou) a sua vida
social a que carece de mais informao. Existem naturalmente outras fontes que
permitem traar um retrato mais claro e seguro da sua vida e que vo desde simples
documentos de nomeao, a anotaes em livros, a opinies de outros e aos
famigerados depoimentos dos seus netos perante o tribunal do Santo Ofcio.
As dvidas biogrficas sobre Pedro Nunes comeam logo nos seus primeiros
anos de vida j que se desconhecem os seus antecedentes familiares. O mesmo no
sucede no ano e local do seu nascimento. Por indicao do prprio no De
crepusculis22 , e nas Annotationes in Planetarum Theoricas Georgii Purbachii
(publicadas originalmente nas Opera de 1566)23 ter nascido em 150224 , na cidade
22 Nesta obra surge a designao Petrus Nonius Salaciensis. Designao semelhante surgiu no texto Astronomici introductorii de spaera epitome (muito provavelmente publicado antes de 1542). 23 Surge na p. 209 (edio de 1566) e p. 135 (edio de 1573). 24 Surgem muitas vezes vrias imprecises que subsistem em diversos canais, muitas vezes bastante populares e conotados e que tero tido origem numa confuso presente no frontispcio de alguns exemplares da edio de 1566 das suas Opera. A confuso prende-se com a troca do ano de 1592 com o ano de 1502 e que posteriormente foi tomado como erro no algarismo das centenas e no
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(ou proximidades) de Alccer do Sal25 . Nesta importante cidade, antiga Salcia,
tinha casado no dia 30 de Outubro de 1500, em segundas npcias, o rei D. Manuel.
natural que esta recente e gloriosa memria fosse desde cedo transmitida ao
jovem Pedro Nunes que ainda para mais tinha nascido no ano em que o herdeiro do
trono, Joo, tambm tinha nascido.
Em relao sua famlia apenas se podem tecer tnues consideraes. No
seriam, provavelmente, pertencentes s classes mais baixas j que puderam
conceder ao filho Pedro a oportunidade de iniciar e prosseguir os seus estudos e h
mesmo investigadores que sugerem que estes poderiam inclusivamente ter
familiaridade com o ambiente da corte26 . Mas sobre quem seriam os seus
ascendentes ou se teria tido irmos nada se sabe de concreto. No h referncias
pelo punho do prprio, nem se conhecem documentos em que estes estejam
mencionados.
Hoje em dia ainda se ignora se Pedro Nunes seria descendente de cristos-
novos. Muitas respostas foram dadas e, no presente texto, no me irei deter mais
sobre este assunto a questo de Pedro Nunes ser descendente de famlias de
judeus marranos apenas interessa para entender alguma influncia e interesse pela
produo cientfica de indivduos que professavam o culto judaico e que, na altura,
era de altssima qualidade. Apesar de tudo, a tese que confirma a sua ascendncia
judaica forte e bem sustentada27 .
das dezenas, dando origem a 1492. Ver Henrique Leito, Para uma biografia de Pedro Nunes: O surgimento de um matemtico, 1502-1542, p. 48, nota 6. 25 Algumas tradies locais avanam que o seu nascimento ter ocorrido na localidade de Vale de Guizo mas sem indicar fontes. De referir tambm que os registos nesta localidade (parquia N. Sr. do Monte) remontam apenas ao ano de 1606, pelo que no possvel verificar datas anteriores. O Arquivo Municipal de Alccer do Sal ardeu completamente em 1965. Ver: Maria Teresa Lopes Pereira, Pedro Nunes. Em busca das suas origens (Lisboa: Edies Colibri, 2009), p. 167. 26 Ver Rodolfo Guimares, Vida e descendncia de Pedro Nunes, Boletim de Segunda Classe da Academia das Cincias de Lisboa, Lisboa, 9 (1914) 122-141. 27 Na bibliografia apresentam-se vrias obras que referem este ponto mas chamo especial ateno para a discusso presente em Rodolfo Guimares, Sur la vie et loeuvre de Pedro Nunes, Separata de Annaes Scientificos da Academia Polytechnica do Porto, 9 (1914) 54-64, 96-117, 152-167, 210-227; 10 (1915) 20-36 e Henrique Leito, Para uma biografia de Pedro Nunes: O surgimento de um matemtico, 1502-1542.
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A excepo que o liga a uma tradio cientfica judaica surge com a sua
anlise do relgio de Acaz, problema que surgiu no Antigo Testamento. No
obstante o problema ter sido tratado por vrios autores que nada teriam a ver com
essa tradio, este facto pode ser utilizado para suportar a sua filiao j que a
anlise de passagens da Tor constitua uma das principais razes que levavam
indivduos com determinadas funes na hierarquia social judaica (os rabinos, por
exemplo) a encetar estudos astronmicos. No fundo, esta uma questo que ocupa
um plano no primrio nos estudos nonianos, embora seja interessante para o
esclarecimento das suas origens.
No se conhecem indcios que esclaream onde fez os estudos primrios ou
secundrios nem quem foram os seus primeiros mestres e influncias. Nem se sabe
que factores lhe tero despertado o interesse pelas cincias. De certo a sua famlia
teria algumas possibilidades econmicas de o ter posto a estudar nalguma escola de
moos em Alccer e de posteriormente o enviar a Salamanca, sendo que poder
tambm ter beneficiado de alguma bolsa de estudo para estudar fora do pas. Em
relao a isto conhece-se a indicao do seu netos durante o processo a que foi
submetido pelo Tribunal do Santo Ofcio nos anos vinte do sculo XVII. Estas
indicavam que o seu av teria passado a infncia na sua terra natal e de l se foi a
estudar Universidade de Salamanca sendo de pouca idade28 . Ter iniciado
estudos universitrios por volta de 1517 frequentando a Universidade de Salamanca
como aluno livre, a partir de 1521. Foi tambm nessa cidade que casou, no ano de
1523, com D. Guiomar reas (Aires) e deste casamento nasceram dois rapazes
(Apolnio e Pedro) e quatro raparigas (Briolanja, Francisca, Isabel e Guimoar).
possvel v-lo a como bacharel mdico entre 1526 e 1527. Passou certamente pela
Universidade de Alcal de Henares mas no foi at hoje determinado se a ter sido
estudante29 .
28 Excertos dos processos podem ser encontrados em: Antnio Baio, O matemtico Pedro Nunes e sua famlia luz de documentos inditos, Boletim da Segunda Classe da Academia das Sciencias de Lisboa, 9 (1914-1915) 82-121. 29 Por exemplo, Nunes refere explicitamente um livro (uma edio das conhecidas tabelas de Afonso, o Sbio) que est na biblioteca de Alcal em Obras, IV, p. 328.
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A cidade de Salamanca era na altura um centro de grande actividade
intelectual. A historiografia espanhola refere-se mesmo existncia de uma
revolucin cosmogrfica salmantina levada a cabo por 3 eminentes figuras dessa
Universidade: Francisco Nuez de la Yerba que mandara publicar uma verso latina
de comentrios Cosmographia de Pompnio Mela em 1498; Elio Antonio de
Nebrija que publica In Cosmographiae libros introductiorum em 1503; e o
portugus Pedro Margalho que publicara um Physices Compendium em 1520.
Nunes no ter sido indiferente a esta influncia mesmo que a sua obra no se insira
exactamente na linha destes 3 humanistas cuja formao em matemticas ficaria
bem longe da que atingiu.
No foi at hoje possvel determinar se Pedro Nunes ter trabalhado em
assuntos relacionados com a sua produo cientfica futura sendo ainda estudante
e/ou bacharel em Salamanca. Certo que teria, estando ainda em Espanha, atingido
j alguma notoriedade cientfica, como mdico ou como matemtico/astrnomo, de
tal maneira que o rei portugus o ter chamado ao seu servio. No obstante, foi
nesta cidade que ter tido o primeiro insucesso profissional quando lhe viu recusada
a ctedra de Artes em Agosto de 152630.
Esse poder ter sido um factor que pesou na sua deciso de retornar ao seu
pas embora as circunstncias exactas no sejam claras. Mais uma vez se podem
fazer algumas conjecturas. Se por acaso era aluno bolseiro poder ter atingido o
tempo mximo dessa mesma bolsa o que o faria voltar ao pas de origem. Mas
provavelmente o seu retorno ter sido acelerado pelo prestgio cientfico que j teria
atingido. Possivelmente ter sido chamado para exercer a sua profisso de mdico
na corte. Uma outra conjectura coloca-o, por essa razo, como destacado para
consultor cientfico para a resoluo da questo das Molucas e conversaes que
antecederam a assinatura do Tratado de Saragoa, em 1529.
nesse mesmo ano, a 16 de Novembro, que nomeado cosmgrafo do
reino; a 4 de Dezembro foi encarregue de leccionar Filosofia Moral; a 15 de Janeiro
de 1530 foi encarregue da regncia da cadeira de Lgica e, por decreto interno da 30 Obras, IV, p. 662.
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Universidade de 6 de Abril de 1531 passou a ler lies de Metafsica, que ainda
regia quando se licenciou em medicina.
Por volta de 1531, a pedido de D. Joo III, ter comeado a dar aulas aos
infantes D. Lus e D. Henrique (e possivelmente D. Duarte) a quem viria a dedicar
trabalhos futuros. As aulas estendem-se pelo menos at 1541, altura em que
somente as daria a D. Lus31 . Em 1533, esteve com a corte em vora. Depois deste
ano h a registar uma informao do prprio referente ao tempo que passou
enfermo32 . por volta de 1534/5 que se comea a interessar pelo trabalho de
Orncio Fineu33 .
Em 1537 saiu do prelo da oficina de Germo Galharde o seu primeiro
trabalho, o Tratado da Sphera34 , composto por 90 flios e dedicado Ao
serenissimo e excelentissimo principe ho ifante Dom Lvis35 . A obra consistia
numa traduo para portugus dos textos: Tractatus de sphaera de Sacrobosco;
Livro I da Geografia de Ptolemeu; e dos captulos do Sol e da Lua das Teoricae
novae planetarum de Peuerbach. O autor incluiu ainda dois tratados originais sobre
teoria de navegao nesta edio Tratado que ho doutor Pro nunez fez sobre
certas duuidas de nauegao: dirigido a el Rey nosso senhor and Tratado que ho
doutor pro nunez Cosmographo del Rey nosso senhor fez em defensam da carta de
marear: c o regimento da altura. Com estes dois tratados, dava-se incio ao uso de
ferramentas matemticas para resolver problemas de navegao. 31 Segundo dedicatria do De crepusculis e tambm porque D. Duarte j tinha morrido. 32 E despois no anno de .1533. em euora: dey a el-Rey nosso senhor o regimento escripto em huma folha de papel: e perante sua alteza tomey a altura do plo da dita cidade j tarde: pouco tempo antes do sol posto: e achey que era .38. gros e quasi hum tero. E porque ate ora o mais do tempo fuy doente: e o dito regimento que assi escreui: tinha necessidade de alguma mais decrarao pra se poder praticar ho no comuniquey a todos: posto que meu desejo sempre fosse e he: tirarse de minhas letras algum fructo pera esta arte de nauegar, Obras, I, p. 160. 33 na dedicatria do De erratis Orontii Finaei (1546) que surge uma rara inteno de se corresponder com outros autores, incluindo o prprio Fineu. 34 Tratado da sphera com a Theorica do Sol e da Lua. E ho primeiro liuro da Geographia de Claudio Ptolomeo Alexdrino. Tirados nouamente de Latim em lingoagem pello Doutor Pero Nunez Cosmographo del Rey d Joo ho terceyro deste nome nosso Senhor. E acrectados de muitas annotaes e figuras per que mays facilmente se podem entender. Item dous tratados que o mesmo Doutor fez sobre a Carta de marear. Em os quaes se decraro todas as principaes duuidas da nauegao. C as tauoas do mouimento do sol: e sua declinao. E o Regimto da altura assi ao meyo dia: como nos outros tempos (Lisboa: Germo Galharde, 1537). 35 Obras, I, p.5.
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Transparece ao longo do texto que Pedro Nunes se empenhou na aplicao
de ferramentas da geometria e da trigonometria navegao e marinharia: ele focou
a sua ateno numa srie de lacunas, erros e problemas ao nvel do conhecimento
matemtico na navegao, razo pela qual apelou instruo matemtica dos
marinheiros. Tendo por base esta ideia, cria aqui uma nova disciplina: a cincia
nutica36 . Nunes estabeleceu a diferena entre ars nauigandi e ratio nauigandi:
considerou a ars nauigandi como a comum marinharia, baseada no conhecimento
de regras, procedimentos e instrumentos e a ratio nauigandi como a actividade
nutica baseada na compreenso e utilizao de princpios e ferramentas
matemticas. Esta abordagem no era comum na literatura sobre a arte de navegar,
na qual se apresentava, maioria das vezes, um conjunto de regras simples, tabelas,
mnemnicas e introdues elementares esfera. Dito de forma simples, Nunes
pensou na ratio nauigandi como uma marinharia cientfica37 . Ao longo do
desenvolvimento do seu trabalho, Nunes apresentou um estudo profundo da
navegao, identificando problemas e desenvolvendo conceitos matemticos novos
como o caso da linha de rumo, conhecida hoje como curva loxodrmica38 .
A publicao seguinte no foi dedicada navegao. A escrita do De
Crepusculis (1542)39 foi a primeira grande demonstrao das suas capacidades
cientficas. Fazendo f no que escreve na dedicatria a D. Joo III a sua composio
foi influenciada por uma dvida do Infante D. Henrique acerca da extenso dos
crepsculos nos diferentes climas40 . A vida na corte era exigente e era necessrio
36 Esta no uma concluso exclusiva da historiografia nacional. Veja-se a opinio: To Nunes is due the credit of having raised the art of finding ones way across the ocean an art which had existed for many centuries before his day - to the rank of a science. Thanks to his work and studies, in Portugal a great height was attained, greater than anywhere else in the sixteenth century., The principal works of Simon Stevin, Vol. III, p. 492. 37 Henrique Leito, Ars e ratio: a nutica e a constituio da cincia moderna, in: Maria Isabel Vicente Maroto, Mariano Esteban Pieiro (coords.), La ciencia y el mar, (Valladolid: Los autores, 2006) 183-207. 38 A palavra loxodromia foi introduzida por Willebroord Snell no seu trabalho Willebrodi Snellii Royen R. F. Tiphys Batavus sive Histiodromice, de navium cursibus et re navali (Lugduni Batavorum: Officina Elzeviriana, 1624). 39 De Crepusculis liber unus, nunc recens et natus et editus. Item Allacen Arabis vetustissimi, de causis crepusculorum liber unus, a Gerardo Cremonensi iam olim latinitate donatus, nunc vero omnium primum in lucem editus (Olyssippone: Ludouicus Rodericus, 1542). 40 Obras, II, p. 142.
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proceder a uma constante valorizao pessoal (muito mais se pensarmos nos
homens ligados cincia e ao ensino pertencentes aos restritos crculos de mestres
dos Infantes) e Pedro Nunes relembra que no foi o nico a acorrer resoluo da
pertinente dvida41 . No informa quem ter dado uma outra soluo apoiada em
coisas muito sabidas e gastas mas a sua soluo foi original e mereceu destaque
de publicao. Encontram-se tambm referncias a vrias obras completas ou por
terminar e em especial uma referncia a uma traduo inacabada do De
architectura, de Vitrvio, obra deixada a mais de meio por razes de sade. No
era a primeira vez, nem seria a ltima, que Pedro Nunes se referia perda de sade
no sendo possvel estabelecer se a dita referncia dizia respeito ao anterior perodo,
posterior a 1533. Se assim for a traduo de Vitrvio pode ser posta em paralelo
com a composio do Tratado de 1537. De qualquer maneira, a falta de sade
atravessou a vida de Pedro Nunes ficando por saber qual a sua natureza. No
querendo ir mais longe, nem sequer tecer comentrios de natureza mais ligeira num
texto necessariamente revestido de seriedade, no seria de estranhar que os estudos,
constantes deslocamentos, aulas, defesas de honra e polmicas lhe incutissem uma
qualquer maleita relacionada com (um muito moderno) stress laboral, algo que
Nunes, em defesa pessoal, no se cansava de relembrar ao monarca.
No De crepusculis, mostrou como que um fenmeno atmosfrico pode ser
explicado utilizando os princpios certssimos e evidentssimos da matemtica:
Vendo eu, entretanto, que apenas se respondia com coisas muito sabidas e gastas, e por ningum, que eu saiba, at agora demonstradas, seduziu-me o intento de explicar claramente este assunto mediantes os princpios certssimos e evidentssimos da matemtica. Nesta ordem de ideias, meditando e investigando, descobri coisas que em parte alguma li e no mereceriam crdito, se no fossem demonstradas (...).42
Mais uma vez, defendeu que a explicao de um fenmeno real pode ser
obtida utilizando demonstraes matemticas. Ao longo do livro tratou os
problemas a partir de uma abordagem euclidiana (dos princpios gerais s 41 Avisa que Houve logo quem tentasse resolver o caso, Obras, II, p. 141. 42 Obras, II, p. 142.
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concluses, assentes nas proposies subsequentes), apresentou um conjunto de
informaes relevantes para os astrnomos e ainda uma sugesto de aplicao
grfica destinada a ser utilizada em instrumentos de medida, conhecida como nnio.
No todo, produziu-se um livro de boa qualidade cientfica, e bastante considerado,
entre outros, por Clavius e Tycho Brahe. Os trabalhos que a anuncia, a serem
publicados no futuro, incluam tratados sobre o astrolbio, propores ou grficos
de nutica e das esferas, e ainda uma traduo de De architectura de Vitrvio, e
contribuiriam para o seu prestgio e ateno por parte da comunidade cientfica
internacional.
Mas a dcada de 1540 seria preenchida por muitos acontecimentos que iriam
consagrar ainda mais o estatuto e influncia de Pedro Nunes na vida cientfica
nacional e internacional. O texto que compe o manuscrito de Florena, em que se
ope a um bacharel que ter escrito um texto a atacar os seus tratados de 1537, foi
quase de certeza composto nos primeiros anos dessa dcada. Depois, em 16 de
Outubro de 1544 convidado para ir ler a cadeira de matemtica na Universidade
de Coimbra, aps esta ter sido transferida de Lisboa em 1537. E no ano de 1547, a
22 de Dezembro, foi nomeado Cosmgrafo-Mor do reino.
Antes, em 1546, Nunes escrevia outro livro direccionado a uma audincia
internacional, no qual viria a estabelecer a sua reputao cientfica nos crculos
cientficos europeus. O De erratis Orontii Finaei43 mostra os erros em algumas
demonstraes matemticas de Oronce Fine (1494-1555), um famoso professor de
matemtica do Collge de France (Paris), que havia procurado resolver trs
problemas clssicos (duplicao dum cubo, trisseco de um ngulo e a quadratura
do crculo) e ainda alguns problemas de gnomnica.
43 De erratis Orontii Finaei regii mathematicarum Lutetiae professoris. Qui putauit inter duas datas lineas, binas medias proportionales sub continua proportione inuenisse, circulum quadrasse, cubum duplicasse, multangulum quodcunque rectilineum in circulo describendi, artem tradidisse et longitudinis locorum differentias aliter quam per eclipses lunares, etiam dato quouis tempore manifestas fecisse, Petrii Nonii Salaciensis Liber vnus (Conimbricae: ex Officina Ioannis Barrerii et Ioannnis Alvari, 1546). Sobre isto ver: Henrique Leito, Pedro Nunes against Oronce Fine: Content and context of a refutation, in: A. Marr (Ed.), The worlds of Oronce Fine: Mathematics, instruments and print in Renaissance France, (Donington: Shaun Tyas, 2009) 156-171.
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Em 1562, via chegar a jubilao da Universidade de Coimbra. possvel
questionar at quando teria exercido as suas funes docentes. Numa carta datada
de 7 Dezembro 1557, o padre Lus Gonalves da Cmara enviou ao Padre Geral da
Companhia de Jesus, Diogo Laines, solicitava um professor de matemtica para o
Colgio das Artes: O que agora nos extremamente necessrio, era um professor
que leia Matemtica; e sendo vindo de Roma e conhecendo smente os princpios,
creio que ser o bastante, bem que haja de suceder a Pedro Nunes, que j no est
em Coimbra.44 . Esta informao confirma a intermitncia da sua actividade
docente na Universidade, muito possivelmente devido s suas obrigaes em
Lisboa.
Depois disto, Nunes ainda deu aos prelos mais duas obras. Em 1566
publicou as Opera numa grande tipografia em Basileia e em 1567 publicou o Libro
de Algebra45 em Anturpia. Estes dois ttulos concluiriam o trabalho matemtico
que Nunes havia comeado por volta de 1530 como uma expresso dos seus
pensamentos cientficos e do seu programa de matematizao do mundo real.
Como j foi referido, este programa cientfico mais evidente no caso da cincia
nutica, uma vez que o principal objectivo era alcanar uma prtica de marinharia
per arte e razo, de tal forma que fosse possvel consolidar habilidades naturais e
a arte de navegar atravs do estudo de contedos matemticos.
Morreria no dia 11 de Agosto de 1578.
44 Este texto encontra-se traduzido em Francisco Rodrigues, Histria da Companhia de Jesus na Assistncia de Portugal, Vol. IV, (Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1931-1950), p. 403, na nota 4. 45 Libro de Algebra en arithmetica y geometria. Compuesto por el Doctor Pedro Nuez, Cosmographo Mayor del Rey de Portugal, y Cathedratico Iubilado en la Cathedra de Mathematicas en la Vniuersidad de Coymbra (Anvers: En casa de la Biuda y herederos de Iuan Stelsio, 1567). Veja-se: Jens Hyrup, Pedro Nuez: Innovateur bloqu, et dernier tmoin dune tradition millnaire, Gazeta da Matemtica, 143 (2002) 52-59; Maria Gertrudes de S Soares de Oliveira, A geometria no Libro de Algebra de Pedro Nunes, Texto policopiado, Braga. 1997. [Dissertao de mestrado, Universidade do Minho, 1991]; Luciano Pereira da Silva, O Libro de Algebra de Pedro Nunes, Obras Completas, Vol. I, (Lisboa: Agncia-Geral das Colnias, 1946) 187-197.
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1.2 TRATADO DA SPHERA
Aristippus suffering shipwracke on the coast of Rhodes found described in the sande Geometricall figures, wherin he took such singuler comforte, that forgetting his losse, and cause of sorrow: he cryed out thus unto his fellowes, be of good cheere my mates quoth he, for loe I see the footesteppes of men, Francis R. Johnson, Thomas Hood's Inaugural Address as Mathematical Lecturer of the City of London (1588), Journal of the History of Ideas, 3 (1942), p. 105.
O ANO DE 1537 saa dos prelos da oficina de Germo Galharde o
primeiro trabalho impresso do cosmgrafo Pedro Nunes: o Tratado da
Sphera46 . Os volumes impressos tinham dedicatria geral Ao
serenissimo e excelentissimo principe ho ifante Dom Luys, irmo do rei D. Joo
III. primeira vista o leitor depara-se com uma colectnea de tradues de textos
cientficos muito conhecidos: o Tractatus de sphaera, de Sacrobosco; captulos
referentes s teorias do Sol e da Lua das Theoricae nouae planetarum, de
Purbquio; Livro I da Geographia de Ptolemeu. Rapidamente se percebe que o
autor lhes juntou algumas anotaes e tambm dois textos originais sobre aspectos
ligados arte de navegar Tratado que ho doutor Pro nunez fez sobre certas
duuidas de nauegao: dirigido a el Rey nosso senhor e o Tratado que ho doutor
N
46 O ttulo completo deste livro : Tratado da sphera com a Theorica do Sol e da Lua. E ho primeiro liuro da Geographia de Claudio Ptolomeo Alexdrino. Tirados nouamente de Latim em lingoagem pello Doutor Pero Nunez Cosmographo del Rey d Joo ho terceyro deste nome nosso Senhor. E acrectados de muitas annotaes e figuras per que mays facilmente se podem entender. Item dous tratados que o mesmo Doutor fez sobre a Carta de marear. Em os quaes se decraro todas as principaes duuidas da nauegao. C as tauoas do mouimento do sol: e sua declinao. E o Regimto da altura assi ao meyo dia: como nos outros tempos (Lisboa: Germo Galharde, 1537). Na ausncia de indicao contrria, a partir daqui irei referir a edio mais recente: Pedro Nunes, Obras, Volume I, (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002). Existem outras edies dos Tratados originais levadas a cabo no sculo XX. Para evitar estar a repetir informao, remete-se o leitor para a leitura das Anotaes ao volume I, pp. 223-226 ou s Anotaes do volume IV, pp. 539-540, ambas da edio mais recente das Obras de Pedro Nunes.
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pro nunez Cosmographo del Rey nosso senhor fez em defensam da carta de
marear: c o regimento da altura47 .
Mesmo sem ter provas mais concretas, possvel conjecturar que a redaco
desta obra se dividiu entre a cidade de Lisboa, onde Nunes tinha funes ligadas ao
Estudo Geral e ao cargo de cosmgrafo, e a cidade de vora, burgo escolhido para
albergar a corte joanina entre 1531 e 1537. Nesta cidade era comum o monarca
rodear-se de figuras da cultura e sociedade portuguesa de ento, entre os quais
estaria, de tempos a tempos, o cosmgrafo salaciense48 . o prprio que fornece
informaes dispersas sobre o seu trabalho na representao deste cargo em vora,
por exemplo, quando regista no anno de .1533. em euora: dey a el-Rey nosso
senhor o regimento escripto em huma folha de papel49 .
At 1537, acumulou funes universitrias e de docncia privada com o
cargo de cosmgrafo. Alm disso, e uma vez mais segundo o que deixou escrito
mais tarde no manuscrito da Biblioteca de Florena (conhecido por Tratado em
defensam da carta de marear e sobre o qual se daro informaes no captulo
seguinte), ter passado bastante tempo doente, razes suficientes para condicionar a
sua prestao profissional. De qualquer maneira, os textos de 1537 no foram
escritos pressa e sugerem aprofundados estudo e reflexo sobre os assuntos
versados50 .
47 Na edio mais recente (Obras, I) inclui-se ainda o opsculo Astronomici introductorii de spaera epitome (pp. 185-201) e a sua traduo para portugus (pp. 203-220). 48 Sobre a biografia de D. Joo III consultar, por exemplo, o recente ttulo Ana Isabel Buescu, D. Joo III, (Rio de Mouro: Crculo de Leitores; Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expresso Portuguesa, Temas e Debates, 2008). 49 Obras, I, p.160. Trata-se de um dos mais claros relatos pessoais da sua actividade como cosmgrafo presentes nos Tratados de 1537. O leitor mais familiarizado com este texto saber que existem outros exemplos. Ainda que no se tenha a certeza da sua real ocorrncia, o mais conhecido ser a indicao com que inicia o Tratado sobre certas duuidas da nauegao e o coloca em dilogo com Martim Afonso de Sousa. 50 Existem vrios estudos sobre temas dos Tratados de 1537. indispensvel a leitura de Anotaes ao Tratado da Sphera, Obras, I, pp. 221-280; Apndice, I, pp. 289-306. A ttulo de exemplo sugere-se ainda: L.J Semedo de Matos, Em defensam da carta de marear, Oceanos, 49 (2002), pp. 36-53; A. Costa Canas, Pedro Nunes e as linhas de rumo, Oceanos, 49 (2002), pp. 54-67; W.G.L. Randles, Pedro Nunes e a descoberta da curva loxodrmica, Gazeta de matemtica, 143 (2002) 90-97. Sugere-se tambm, um artigo um pouco mais tcnico: Joo Filipe Queir, Pedro Nunes e as linhas de rumo, Gazeta de matemtica, 143 (2002), pp. 42-47.
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Sobre os textos no originais presentes na edio de 1537 existe literatura
geral suficiente, pelo que de seguida se daro informaes bastante comedidas
sobre este assunto51 .
O Tratado da Esfera foi escrito na primeira metade do sculo XIII, por Joo
de Sacrobosco. Trata-se de um texto introdutrio a questes de cosmografia,
geografia e astronomia, que foi amplamente difundido, estudado e comentado at
finais do sculo XVII, principalmente dentro do ambiente universitrio. luz de
parmetros editoriais modernos h que consider-lo um verdadeiro campeo de
vendas uma vez que desde a sua primeira edio em Ferrara, em 1472, at finais do
sculo XVI contou com cerca de 130 edies52 . Seria comum encontrar este texto,
ou adaptaes dele, includo nos regimentos e tratados sobre nutica que se iriam
publicar pela Europa nos sculos XVI e XVII.
No que respeita s Tericas e Geographia, textos tambm bastante
disseminados, embora menos que a Sphaera, no se conhecem edies ou tradues
anteriores no nosso pas. A Geografia tinha sido composta por Ptolemeu no sculo
II d.C., circulou em fontes manuscritas, e teve a primeira edio em Vicenza
(1475)53 . Aqui se encontrava principalmente a explicao de trs projeces
51 A lista de referncias vasta por isso deixam-se apenas algumas sugestes de leitura: sobre o Tractatus de Sphaera de Sacrobosco, ver: Lynn Thorndike, The Sphere of Sacrobosco and its Commentators (Chicago: University of Chicago Press, 1949); Olaf Pedersen, In quest of Sacrobosco, Journal for the History of Astronomy, 16 (1985) pp. 175-221. Sobre as Theoricae novae planetarum, ver: Olaf Pedersen, The origins of the Theorica planetarum, Journal for the History of Astronomy, 12 (1981) 113-123; E. J. Aiton, Peurbachs Theoricae novae planetarum. A translation with commentary, Osiris, 3 (1987) 5-43. Sobre a Geographia de Ptolemeu, ver: Klaudios Ptolemaios, Handbuch der Geographie, Alfred Stckelberger, Gerd Grasshoff (Eds.), (Basel: Schwabe, 2006-2009); J. Lennart Berggren, Alexander Jones, Ptolemys Geography. An Annotated translation of the Theoretical Chapters (Princeton: Princeton University Press, 2000). 52 A primeira edio foi Sphaera mundi (Ferrara: Andreas Belfortis, 1472). Sugere-se um stio na Internet (de autoria de Roberto de Andrade Martins) onde se pode aceder a uma lista de mais de 200 edies da Sphaera: http://ghtc.ifi.unicamp.br/Sacrobosco/Sacrobosco-ed.htm. 53 A Geografia ou Guia Geogrfico de Ptolemeu foi um texto que teve uma transmisso complexa. De registar que j no sculo XIV houve uma diviso em duas famlias de textos: grega e latina. O texto da famlia latina foi editado, sem mapas, pela primeira vez em Vicenza (1475) e com mapas em Bolonha (1477). A primeira edio do texto da famlia grega deveu-se a Erasmo (Basileia, 1533).
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cartogrficas e tambm tabelas com a localizao de mais de um milhar de lugares
da ecmena ento conhecida.
As Tericas de Jorge Purbquio (1423-1461) tiveram a primeira edio em
Viena, no ano de 1474. O texto do germnico Purbquio, que seria publicado por
Regiomontano, veio reformar as velhas Theorica planetarum de autor
desconhecido do sculo XII ou XIII e servia de antecmara ao estudo de astronomia
mais avanada.
Tanto as Tericas como a Geografia eram textos importantes, de nvel
mdio/avanado, cujo estudo se seguiria, em condies normais, ao estudo do texto
de Sacrobosco. H que frisar que a juno destes trs textos clssicos num mesmo
volume impresso totalmente original e no tenho conhecimento de quaisquer
edies semelhantes at 153754 . No que toca a fontes manuscritas, assinala-se um
outro texto que segue de perto esta configurao: o Tratado da Esfera por
Perguntas e Respostas, atribudo normalmente a D. Joo de Castro.
Apesar de no lhe advir grande desafio intelectual da traduo dos textos
clssicos, Pedro Nunes contribuiu com 26 anotaes marginais ao Tratado de
Sacrobosco. Destas, a mais conhecida foi a Anotao sobre as derradei