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0 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO A INEVITABILIDADE DO RELATIVISMO E A SECULARIZAÇÃO: A situação da Igreja Católica, segundo Paul Valadier Júlio Cesar Rodrigues Belo Horizonte 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

A INEVITABILIDADE DO RELATIVISMO E A SECULARIZAÇÃO:

A situação da Igreja Católica, segundo Paul Valadie r

Júlio Cesar Rodrigues

Belo Horizonte

2010

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JÚLIO CESAR RODRIGUES

A INEVITABILIDADE DO RELATIVISMO E A SECULARIZAÇÃO:

A situação da Igreja Católica, segundo Paul Valadie r

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião

Orientador: Professor Doutor Flávio Augusto Senra Ribeiro

Belo Horizonte

2010

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Rodrigues, Júlio César R696i A inevitabilidade do relativismo e a secularização: a situação da Igreja

Católica, segundo Paul Valadier / Júlio César Rodrigues. Belo Horizonte, 2010. 123f. Orientador: Flávio Augusto Senra Ribeiro Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. 1. Secularização (Teologia). 2. Ética - Relativismo. 3. Moral. 4. Concilio

Ecumênico Vaticano II. 5. Igreja. 6. Cristianismo. I. Ribeiro, Flávio Augusto Senra. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. III. Título.

CDU: 211.5

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Júlio Cesar Rodrigues

A INEVITABILIDADE DO RELATIVISMO E A SECULARIZAÇÃO:

A situação da Igreja Católica, segundo Paul Valadie r

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião.

___________________________________________________________

Prof. Dr. Flávio Augusto Senra Ribeiro (Orientador) – PUC Minas

___________________________________________________________

Prof. Dr. Lindomar Rocha Mota – PUC Minas

___________________________________________________________

Prof. Dr. Geraldo Luiz de Mori - FAJE

___________________________________________________________

Prof. Dr. Rodrigo Coppe Caldeira (Suplente) – PUC Minas

Belo Horizonte, setembro de 2010 .

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AGRADECIMENTOS

A Renata Caroline, que muito me ensinou no seu aprender, que superou

dificuldades e barreiras sem nunca desanimar e que, no seu gesto simples, ensina-

me, a cada dia, como ser uma pessoa melhor.

Aos meus filhos, Ícaro e Davi, desafios constantes às teorias que traço e aos

resultados que busco. Na convivência com eles, o relativo nunca deixa de aparecer

e de surpreender.

A todos aqueles que contribuíram para a construção deste trabalho, que não

se limita ao tempo de curso, pois é a concretização de um ideal que o antecede. A

cada amigo e amiga, que influenciou, direta e indiretamente, na conquista desta

meta, em especial a Ronaldo Henrique Giovaninni, que sempre me ajudou a superar

os momentos de dificuldade e desânimo.

Ao Prof. Flávio Senra, que me ensinou não apenas pela teoria e pela

orientação, mas, sobretudo, pela amizade, pela sabedoria, pelos conselhos, pela

dedicação e pela paciência, elementos fundamentais para a finalização desta

dissertação.

A todos os professores, alunos e funcionários do Programa de Pós-

Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas. Mais que agradecer, gostaria de

parabenizá-los por toda dedicação, sensibilidade e pelo profissionalismo.

Aos professores da PUC Minas que, ao longo do tempo, se tornaram grandes

parceiros e companheiros nessa luta diária de se viver em um mundo que nega,

constantemente, o pensar como forma efetiva de transformação.

A todos os mestres e amigos que, com sabedoria, conselhos, sugestões e

conversas, ajudaram-me a levar este projeto à frente.

A toda minha família, especialmente à minha mãe. Sem seu incentivo, amor,

paciência e exemplo cristão, eu não conseguiria alcançar meu objetivo.

A todos, enfim, que, à sua maneira, contribuíram para a conclusão deste

trabalho. Em cada um se pode encontrar a coragem para a construção de uma vida

que, de fato, vale a pena ser vivida.

Carpe Diem

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RESUMO

Esta dissertação se propõe a pensar o problema da secularização, tendo por base

seu entendimento como manifestação do niilismo contemporâneo. Mais do que se

posicionar como um julgador das conseqüências dessa questão para a vida

contemporânea, o que se pretende é compreender a origem desse relativismo,

advindo do niilismo, marcado anteriormente pelo pensador alemão Friedrich

Nietzsche. Este trabalho não contempla diretamente o pensamento nietzscheano,

mas sim a leitura desse pensamento na direção construída pelo professor Paul

Valadier, cujas obras nos convidam a compreender o problema do relativismo em

nossa sociedade. Mesmo sendo um membro da Igreja Católica, Paul Valadier não

se omite em estudar um dos pensadores que, ainda que não chegue a ser

considerado o fundamento do ateísmo moderno, é a própria imagem de um ateísmo,

pensado à custa da negação de Deus, através de sua morte. Inspirado pelos

“ventos” do Concílio Vaticano II, Paul Valadier acredita que Nietzsche tem algo a

dizer a respeito dos rumos do Cristianismo contemporâneo, indo além da impressão

simplória que pré-conceituou o pensador alemão até os dias de hoje. Seguindo essa

ideia, Paul Valadier analisa os impactos que o relativismo tem sobre as concepções

éticas e morais, no âmbito da vivência moral e social. Para o autor, não basta

apenas compreender os conceitos de ética e moral, é preciso, também, visualizar

sua aplicação nos campos diversos da vida humana, tanto do ponto de vista social

quanto individual. Posteriormente, é fundamental que se entenda que esses

impactos também atingiram a própria Igreja, de modo a levá-la a questionar a sua

forma de compreender o mundo e as relações à sua volta. Por isso, tentando dar

uma resposta convincente a essa questão, a Igreja respirou os ares do Concílio

Vaticano II, que foi além ao procurar criar opções de rumos diferentes dentro de um

mundo baseado e constituído na diversidade e na multiplicidade. Afinal de contas, é

tão importante para a humanidade compreender sua história pregressa, quanto

compreender o fundamento de suas escolhas cotidianas, principalmente no campo

da moral e da ética, a fim de se adaptar constantemente aos desafios, que, muitas

vezes, ela mesma cria em seus âmbitos diversos.

Palavras-chave : Secularização. Relativismo. Ética. Moral. Concilio Vaticano II.

Igreja. Cristianismo.

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ABSTRACT

This work aims to think the problem of secularization, based on the understanding it

as a manifestation of contemporary nihilism. More than simply to judge the

consequences of it for modern life, this work attempts to comprehend its origin that

comes from nihilism, previously studied by the German philosopher Friedrich

Nietzsche. However, this work does not directly consider Nietzsche’s thought, but the

interpretation of it towards professor Paul Valadier’s construction. The problem of

relativism in our society has been comprehended through Valadier’s works. Although

being a Catholic Church member, he does not omit himself to study a thinker who is

considered the modern atheism founder or even, he is himself the atheism own

image, at the expenses of the negation of God’s existence, after his death. In spite of

it and also being inspired by Vatican Council II’s assumptions, Paul Valadier

believes that Nietzsche has something to say concerning the directions of

contemporary Christianity, going further the simple-minded impression that brought

prejudices to the German thinker until nowadays. By exploring such idea, Paul

Valadier investigates the impacts relativism has upon ethics and moral conceptions,

regarding moral and social scope. It is not enough just to comprehend the concepts

of ethics and moral, but also visualize their application on diverse areas of human

life, taking into account social as well as individual life. Afterward, it is essential to

understand that those impacts also reached the Church itself by being inquired for its

own approach to perceive the world and the relations around It. So, trying to give a

convincing reply to those inquiring, the Church sought the Vatican Council II’s

assistance, which besides giving an answer to that issue also attempted to create

different guided options within such world based upon diversity and multiplicity.

Indeed, it is so important to humankind to understand its previous history as well as

to understand the foundation of its daily choices, mainly in moral and ethics areas, in

order to constantly adapt itself to challenges, usually created by the humankind itself

on diverse areas.

Keywords : Secularization Relativism. Ethics. Moral. Second Vatican Council.

Church. Christianity.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO..................................................................................................

1.1. Tema da pesquisa e justificativa................................................................

1.2. Objetivo geral e objetivos específicos.......................................................

1.3. Metodologia...............................................................................................

1.4. Plano geral e Organização.........................................................................

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2. A “MORTE DE DEUS” PARA PAUL VALADIER............ ............................... 17

2.1. A “Morte de Deus” e o pensamento cristão.................................................. 18

2.2. A “Morte de Deus” na visão valadierana.................................................... 30

2.3. Consequências do pós-“morte de deus”....................................................... 38

3. RELATIVISMO E MORAL NA PERSPECTIVA VALADIERANA.. ............... 50

3.1. O problema da consciência........................................................................... 56

3.2. O relativismo pode desordenar os fundamentos morais?............................. 69

3.3. A moral é necessária e inevitável.................................................................. 77

4. O RELATIVISMO NA CONTEMPORANEIDADE, SEGUNDO PAUL VALADIER ..... 85

4.1. A modernidade e o processo de secularização............................................. 90

4.2. A secularização como processo.................................................................... 97

4.3. O Concílio Vaticano II frente aos desafios da secularização......................... 106

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................ ................................................. 116

REFERÊNCIAS.................................................................................................... 121

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1. INTRODUÇÃO

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu o que são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. (Nietzsche).

A proposta desta dissertação é compreender quais foram os posicionamentos

da Igreja Católica1 frente ao problema do relativismo como etapa inevitável da

história ocidental, segundo o pensamento do professor Paul Valadier. Inevitável

porque ele se refez ao longo da história sob nomes diversos, mas sobre o mesmo

modelo constitutivo, o do niilismo2. Desse modo, em suas diversas atribuições, o

relativismo se tornou um fenômeno típico da contemporaneidade: o secularismo3.

Esse secularismo, como processo, manifestou-se como um desgaste

1 Compreende-se o termo “Igreja Católica” como um todo, isto é, não apenas sob o sentido de comunidade, de “povo de Deus”, mas também sob a compreensão da hierarquia que a compõe, isto é, o papa, os bispos e outros. 2 Segundo Franco Volpi, o niilismo é um fenômeno que coloca o ser humano em um hiato de existência, ao perder os referenciais tradicionais aos quais pudesse se agarrar, o homem contemporâneo se percebe perdido, ou seja, desacreditado quanto a seus valores e ideais. É um momento “[...] de incerteza e precariedade a situação do homem contemporâneo. Lembra a de um andarilho que há muito não caminha numa área congelada e, de repente, com o degelo, se vê surpreendido pelo chão que começa a se partir em mil pedaços. Rompidos a estabilidade dos valores e os conceitos tradicionais torna-se difícil prosseguir o caminho.” (VOLPI, 1999, p.7). Dessa forma, o “[...] niilismo é a ‘falta de sentido’ que desponta quando desaparece o poder vinculante das respostas tradicionais ao porquê da vida e do ser. É o que ocorre ao longo do processo histórico no decorrer do qual os supremos valores tradicionais que ofereciam resposta àquele ‘para quê?’ – Deus, a Verdade, o Bem – perdem seu valor e perecem, gerando a condição de ‘ausência de sentido’ em que se encontra a humanidade contemporânea.” (VOLPI, 1999, p.55-56). 3 O conceito de secularismo será desenvolvido mais a frente (capítulo 4), mas, a princípio, que se compreenda-o como foi definido pelo professor de Sociologia e Teologia da Universidade de Boston, Peter Berger. Segundo ele, a secularização é um processo pelos quais os setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos. Constituindo-se uma comparação entre catolicismo e protestantismo, a partir desse conceito, revela-se uma mudança causada pelos últimos na fé popular. Na opinião de Berger o protestantismo reduziu o relacionamento do homem com o sagrado a apenas um caminho, o da palavra de Deus, contribuindo enfim, para a secularização. (BERGER, 1985, p. 116)

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da própria conceituação da validade das ideias religiosas, frente às profundas

mudanças instituídas pelos novos desafios da contemporaneidade. Mais uma vez, o

ser humano, numa atitude egocêntrica e narcisista, é tomado pela soberba de uma

independência absoluta em relação ao mundo.

Paul Valadier é um jesuíta, professor do Centro de Sèvres e conferencista no

Instituto de Estudos Políticos de Paris. Empenhou-se por oito anos como chefe de

redação da revista Études. Valadier é especialista em Nietzsche que, na visão de

muitos, é o mais contundente pensador da contemporaneidade, dada a crítica voraz

e bem pontuada contra a dependência a que o homem submete-se em relação ao

seu “suposto” Criador. Alguns podem se questionar sobre a relevância de um autor

cristão em contato direto com a obra daquele que é considerado por muitos o “pai do

ateísmo moderno”. Contudo, não se deve nunca esquecer que Paul Valadier, muito

mais imbuído do espírito de um Concílio Vaticano II do que do conservadorismo

típico do Concílio de Trento, especializou-se no autor alemão. Assim o fez, não

apenas para descobrir em sua obra pontos vulneráveis, suficientes para alimentar

uma crítica eclesial, capaz de bani-lo de seu lugar na história, mas sim para

reconstruir uma leitura. Ou, ainda, talvez, reconduzir uma genealogia de sua obra, a

fim de descobrir quais eram os pilares que sustentavam uma crítica tão precisa de

um autor, que, em momento algum, revelou-se senhor de uma análise simplória,

como aquela revelada, normalmente, pelo ateísmo. Para tornar clara essa

abordagem, é conveniente esclarecer o processo de construção da pesquisa que

amparou esta dissertação. Para isso, serão apresentados os seguintes tópicos: o

tema da pesquisa, sua justificativa e objetivos (geral e específicos), metodologia e o

plano geral da dissertação.

O tema do trabalho apresentado se situa na linha de pesquisa que contempla

razão, religião e contemporaneidade, o que comprova sua pertinência, visto que

ultimamente se tem discutido fervorosamente quais são os reais fundamentos que

sustentam os valores, as regras e as medidas tomadas pelo ser humano. Uma vez

que os fundamentos existentes têm-se revelado superficiais e ineficazes, o ser

humano busca intensamente a resposta capaz de satisfazê-lo. Recorre a tudo que

possa ser considerado um ícone eficaz na construção de valores adequados à sua

necessidade pessoal de ter um guia para suas ações. Em toda a história da

humanidade, o ser humano se viu às voltas com o problema do niilismo. O estado de

niilismo significa um estado de falta, que remete necessariamente a uma busca, a

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uma reconstituição de novos valores capazes de superar a decadência de antigos

ideais (não mais valorizados). A possível criação de novos modelos de escolha

moral se revela como um meio de sobrevivência, capaz de suplantar o vazio deixado

pela desvalorização dos supremos valores, que antes sustentavam a vida humana.

Paul Valadier (1982) argumentará que o relativismo é a manifestação

contemporânea desse niilismo latente na história da humanidade. Por isso, é um

sinal claro do niilismo contemporâneo, da nadificação de sentido, que os valores

sejam considerados incapazes de constituir uma base sólida para a vida humana.

Essa nadificação não vem de uma ausência de respostas suficientemente claras

para as perguntas humanas, mas sim de uma sobrecarga de respostas,

disseminando um número infinito de possibilidades, pelas quais um mesmo objeto

pode ser considerado contraditório, visto sob um mesmo ângulo de percepção, mas

em uma análise diferente.

Durante muito tempo, o conceito de religião serviu de paradigma para o

estabelecimento do modo de agir de um determinado grupo social, não só no

Oriente como também no Ocidente. A diferença, porém, é que nesse tempo

determinado, os valores convergiam para a ideia de que a religião era a matriz

essencial do pensamento. Nada que realmente valesse a pena poderia ser pensado

fora do paradigma religioso. Posteriormente, quando a religião perdeu forças e não

mais sustentava os fundamentos da vida e das escolhas humanas, foi a própria

razão que assumiu o lugar de paradigma humano, social, político e até religioso. A

contemporaneidade trouxe um problema, um novo modo de pensar, baseado em

uma descaracterização de valores. Mais do que apenas abolir esse paradigma, a

contemporaneidade não sabe “o que” colocar em seu lugar.4

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche evidencia a morte dos valores ao

diagnosticar no aforismo 125, de “Gaia ciência”, a morte de Deus como morte de

todos os conceitos considerados absolutos (Justiça, Verdade, Bem, Ser). Isso

porque, ao evocar a figura de Deus, normalmente, as pessoas reportam-se às ideias

de CAUSA, de MANUTENÇÃO, de GARANTIA, de VIDA, de VERDADE. O “deus”

do qual Nietzsche pronuncia a morte não é apenas o Transcendente, mas o

CONCEITUAL, proposto pelo aristotelismo, pelo tomismo e criado como uma

4 Conforme o texto de Jean GRONDIN (Introdução à hermenêutica filosófica, 1999), acerca da

hermenêutica da filosofia.

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petrificação dessa ideia. Sendo assim, a “morte de Deus” não é simples ateísmo,

mas apenas um espectro do acontecimento abrangente que é o Niilismo:

O discurso tradicional sobre o niilismo desenvolve-se prioritariamente num contexto que concebe a filosofia como crítica da cultura, ou como mediação de ordem moral [...]. Certamente Nietzsche é o mais conhecido teórico do conceito de niilismo, e tudo o que desse conceito (como ele o define) se segue encontra-se em boa parte na sua obra. (D’AGOSTINI, 2002, p.94).

Esses conceitos ascéticos, tomados como valores, garantiram ao ser

humano, por séculos, certa segurança, certo conforto. Na verdade, são meras

ficções, pois desmoronaram diante da constatação de que são criações humanas,

que desprezam o mundo em que estão em nome de um mundo fictício, adequado às

necessidades humanas. Na falta desses valores, Nietzsche vê um campo fértil para

a instauração do Niilismo. Isso porque o “além-mundo” proposto pela religião (em

especial, o cristianismo) se tornou uma fantasia que nos mantém vivos, na tentativa

dar um sentido à falta de sentido do mundo. Essa conformação não se inicia com o

cristianismo propriamente dito, mas com o próprio paradigma da escola eleática, que

constitui o ser UNO, IMUTÁVEL, fundamento reutilizado por certo platonismo

deturpado, helenizado, que levou a pensar que “a verdade não está neste mundo,

está fora dele”, em uma realidade metafísica5. Isso se deu quando o ser humano

buscou justificar este mundo e não conseguiu, tendo, então, de fazê-lo,

considerando uma realidade fora dele mesmo.

O professor de filosofia moral e política das Faculdades Jesuítas de Paris,

Paul Valadier, possui vasta autoria, principalmente no tema em que é especialista:

Friedrich Nietzsche. Mesmo como um sacerdote católico, defensor da ideia de um

Deus uno e eterno, Valadier investiga as ideias de Nietzsche como um ponto

essencial para a reflexão acerca da problemática do relativismo, como marca da

sociedade contemporânea. Valadier se propõe a se aproximar das ideias

nietzscheanas em busca de um cristianismo autêntico, que consiga ter seu lugar

diante dos novos desafios propostos pelo mundo e pela vida contemporânea. A

abordagem nietzscheana não quer eliminar o cristianismo, mas situá-lo no plano do

devir, como corresponsável por este mundo em que se vive de modo efetivo e não

5 Como se pode observar nos textos da Metafísica de Aristóteles de Valentin Garcia Yebra (Editorial Gredos, Edição Trilingue,1998).

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apenas como uma espera ou passagem para um mundo melhor. Dessa forma, Paul

Valadier contribui fundamentalmente para a construção de uma nova relação entre

a razão, religião e contemporaneidade. Ele traz uma reflexão essencial, de um ponto

de vista que mescla a razão – como construção objetiva de sentido – com a religião

– considerada ligação fundamental entre o transcendental e o humano – dentro de

uma perspectiva contemporânea.

Segundo Paul Valadier, a ruptura do ser humano com os antigos valores que

definiam sua vida por tanto tempo, levaram-no à solidão6, contrariando, assim, a

suposta emancipação do Homem dos antigos ideais que o acorrentavam à ideia de

Deus, de Justiça, de Bem. Porém, ao desvincular essa ideia de um Ser que, por

excelência, a tudo governa, o Homem busca desfazer sua dependência, mas se vê

diante de um problema: quem vai substituir Deus na ordenação do mundo? Outro

não há que não seja o próprio sujeito humano, pois só ele é capaz de criar as regras

necessárias para garantir sua sobrevivência. Ao discutir o problema do Universal,

discute-se, sem dúvida, a questão do relativismo. E, por conseguinte, o problema da

instituição da moral, pois se pergunta veementemente: o que sustenta, então, as

escolhas, se não há nenhum referencial a que se possa recorrer?

Mais ainda, como a Igreja Católica se firmou diante do problema do

secularismo, que se mostra como uma vertente do próprio relativismo, Já que o

pensamento contemporâneo prima por uma independência de qualquer fundamento

que se declare absoluto, eterno e imutável? Como estabelecer valores morais

capazes de subsistir as dificuldades da humanidade e, mesmo assim, conservar sua

característica essencial de manifestação de livre-arbítrio? Qual a direção que a

moral deve seguir para continuar sendo um dos fundamentos essenciais para a vida

humana? Segundo Paul Valadier, a moralidade deve sedimentar sua base de

existência na própria questão de um devir como alternativa de busca e de encontro

com tudo que existe. Essa capacidade de se posicionar diante do mundo pronto a

superar seus desafios, é talvez a grande manifestação de confiança na autonomia

6 Obviamente, a solidão faz parte da constituição ontológica do ser humano, tal como define Pascal, tornando-

nos seres “insuficientes”, como ele afirma no fragmento B.72; L.199: “[...] por mais que ampliemos as nossas

concepções e as projetemos além dos espaços imagináveis, concebemos tão somente átomos em comparação

com a realidade das coisas.” (PASCAL, 1988, p.75). Mais do que apenas uma solidão inata ao ser humano, a

solidão valadierana é um desnudamento daquelas respostas que se colocavam como absolutas para as

perguntas contemporâneas.

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humana. Por isso, a moral não pode ser desconsiderada como articuladora

essencial do conceito do “ser humano”. Ela não perece e nem poderia, pois, sem

ela, o ser humano sucumbiria a si mesmo, sem o ímpeto à prática da ação. Sendo

a Igreja uma instituição secular , como uma vertente da leitura que o ser humano

faz de si mesmo diante dos desafios que enfrenta no mundo, ela também passa por

essas dificuldades, nesse novo mundo que se revela na contemporaneidade,

principalmente por ser uma instituição secular.

Segundo Paul Valadier (1991b), o Concílio Vaticano II se revelou como a

grande possibilidade de superação dos desafios impostos pelo secularismo, que se

revela, em última instância, como uma manifestação de um relativismo-niilista. Muito

mais do que apenas uma resposta conveniente dada pela Igreja ao fenômeno da

contemporaneidade, o Concílio Vaticano II se propõe a resgatar a vertente de uma

religião capaz de conservar-se sob seus fundamentos mais básicos, a saber: a fé

em um Deus Absoluto, sem perder a consciência de que ela é parte desse mundo,

no qual se está e se deve agir, incisivamente, sem se deixar conduzir por uma visão

utópica de um mundo que há de vir. Para o autor

Não se trata de uma “guerra dos deuses”, mas do reconhecimento, tipicamente moderno, de que o real é plural, complexo, diversificado e que a sua abordagem pressupõe modalidades finas e elas próprias diversificadas de inteligibilidade. (VALADIER, 2007a, p. 116).

A compreensão de relativismo se traduz, quando iguala questões diferentes,

sob o mesmo patamar. Se, por um lado, “compreende” a diversidade típica da vida

moderna, por outro, esse mesmo relativismo acaba por introduzir a falta total de

pressupostos que auxiliem na compreensão das questões e de sua problemática.

Dessa forma, ao se relativizar um pensamento, aborda-se a questão sob o patamar

de dúvida, sob o amparo da dependência de cada situação ao seu contexto, não

podendo, por isso, existir qualquer traço de universalidade, mesmo que essa seja

apenas de direito e nunca de fato.

Dessa forma, a questão fundamental que norteou esse trabalho foi a seguinte:

como a Igreja Católica se posicionou diante da problemática de um relativismo, que

oculta em sua essência, uma dimensão niilista, considerando que esse problema se

faz presente principalmente na dimensão moral? O que pode servir de base ou de

suporte para a constituição daquilo que o ser humano considera essencial como

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fundamento? Como se pode explicitar essa relação entre a moral e as escolhas

humanas vivenciadas por cada um, em seu cotidiano? Como a religião poderá servir

de apoio ao ser humano sem que se estabeleça, novamente, uma base absoluta e

indestrutível, capaz de superar inclusive o próprio ser humano?

Enfim, é fundamental que se descubram quais foram os efeitos que o

diagnóstico da “morte de Deus” trouxe para a sociedade contemporânea,

principalmente no tocante à constituição, à elaboração de concepções. Como a

moral foi o campo mais atingido, é preciso resgatar a sua constituição mais

essencial, a fim de que não se perca na constituição de novos valores (ou na

revitalização dos valores esquecidos), das regras e de pensamentos capazes de

superar o problema constante do relativismo, que atinge a sociedade

contemporânea, problema que se inicia com uma simples indefinição de qualquer

valor ou pensamento e que, não sendo capaz de instituir um modelo de

pensamento, descaracteriza-se de modo que todas as coisas passam a ser aceitas

sem qualquer tipo de questionamento.

Deve ficar claro que o objetivo geral desta dissertação é analisar a influência

do diagnóstico nietzscheano da “morte de Deus”, como um problema pulverizado ao

longo da história da humanidade, sob o conceito de niilismo, adaptando-se e

propondo novos desafios ao ser humano. Os objetivos específicos seriam: em

primeiro lugar, analisar as perspectivas que Paul Valadier denota ao conceito

nietzscheano da morte de Deus, partindo do aforismo 125 da “Gaia ciência”. Em

segundo lugar, investigar as manifestações decorrentes do problema diagnosticado

por Nietzsche, ao gerar o relativismo da própria moral e de suas questões e,

finalmente, problematizar as consequências decorrentes do secularismo, como

capacidade relativista e as ações tomadas pela Igreja Católica com o Concílio

Vaticano II.

Esta dissertação se baseará, sobretudo, em pesquisa bibliográfica. Tal

pesquisa se desenvolverá a partir da leitura de obras de referência de Paul Valadier,

a começar por sua tese de doutorado (VALADIER, Paul. Nietzsche y la critica del

cristianismo , 1982) entre outras (Inevitável moral, 1991; Catolicismo e Sociedade

Moderna, 1991; Elogio da consciência, 1994; Um cristianismo de futuro: para uma

nova aliança entre razão e fé, 1999; A moral em desordem: em defesa da causa do

Homem, 2000; A Anarquia dos valores, 2007), bem como de outras obras e artigos

do professor Paul Valadier, destacados na referência bibliográfica.

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A leitura, baseada na revisão bibliográfica, buscará problematizar a questão

do relativismo em contraposição à questão do valor, assim como analisar essa

problemática frente à perspectiva religiosa da contemporaneidade, conforme

observado no objetivo geral.

O tratamento a ser dado a tais obras será o de fichamentos bibliográficos. A

partir deles, os textos serão trabalhados no seguinte caminho:

PROBLEMATIZAÇÃO, SÍNTESE e ANÁLISE.

Quanto à constituição da dissertação, pode-se pensar, a princípio, em um

sumário que contemple o objetivo geral (analisar o problema do relativismo dos

valores, segundo a obra A Anarquia dos valores, de Paul Valadier), dividido segundo

os objetivos específicos, a saber: no primeiro capítulo, será analisado o referencial

teórico utilizado por Paul Valadier, ao constituir seus conceitos, com base nas ideias

nietzscheanas. Esse capítulo investigará, basicamente, como Paul Valadier,

partindo do pensamento nietzscheano, construiu seus conceitos apresentados em

sua tese Nietzsche y la critica del cristianismo (1982). No segundo capítulo, será

investigado o problema do relativismo, com base na concepção valadierana do

mundo contemporâneo. Tal investigação se dará por meio do estudo e da análise

das principais obras acerca do problema moral, (Inevitável moral, 1991; Catolicismo

e Sociedade Moderna, 1991; Elogio da consciência, 1994; Um cristianismo de futuro:

para uma nova aliança entre razão e fé, 1999; A moral em desordem: em defesa da

causa do Homem, 2000). O terceiro capítulo estudará a problematização do

secularismo, como uma faceta do relativismo e sua influência na vida da Igreja

Católica, considerando a ação praticada pelo Concílio Vaticano II (Catolicismo e

Sociedade Moderna, 1991; Um cristianismo de futuro: para uma nova aliança entre

razão e fé, 1999; A condição cristã: do mundo sem dele ser, 2003).

Portanto, como se pôde observar, optou-se por uma estrutura simples para

esta dissertação, dividida em três partes, com o objetivo de elucidar as dificuldades

que o niilismo, sob a forma de um niilismo contemporâneo, implantou na vida da

Igreja Católica e em toda a estrutura moral que ela constituiu ao longo dos séculos.

O objetivo final é dar uma pequena contribuição para o conhecimento das relações

entre filosofia, religião e moral dentro dos meandros da Igreja Católica, atingida

pelas novas concepções da vida humana em todos os seus sentidos e ideais. Tal

redirecionamento não se deu como parte da ressurreição dos velhos dogmas

eclesiais, mas como uma nova forma de se entender a vida contemporânea, a partir

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do Concílio Vaticano II, como defende Paul Valadier (1991b, p.169): “O Concílio

Vaticano II marca uma mudança de espírito na relação da Igreja com o mundo

moderno [...] para tomar consciência das mudanças de mentalidade e das

conversões exigidas para se olhar rumo ao futuro.”

Portanto, plenamente consciente de que não se podem mudar as situações

de qualquer modo, sob o risco de ter o seu retorno de forma ainda pior, a Igreja

Católica deve compreender a necessidade de uma nova inspiração, capaz de

superar as dificuldades que se apresentam no cotidiano de sua existência. O que se

pode desejar é que o caminho proposto por Paul Valadier seja compreendido como

uma contribuição fecunda à atualização dos rumos da Igreja em direção a um novo

milênio e a uma ação profundamente comprometida com os fundamentos instituídos,

mas que nem por isso deixam de evocar a necessidade de atualização e

comprometimento constantes.

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2. A “MORTE DE DEUS” PARA PAUL VALADIER

O evento decisivo da modernidade é a morte de Deus , que, em sua conotação niilista, guia à ruína os valores da tradição que davam um sentido ao mundo. Para o filósofo alemão, esse tema não possui nem o significado de um enunciado metafísico sobre a existência ou não de um ser superior, nem é uma mera expressão literária ou uma figura estética. A morte de Deus é um evento longamente preparado e necessário no processo de moralização do mundo, que, por fim, ocasiona a derrocada da interpretação moral, que é assumida pelos homens modernos como a perda total de sentido, abrindo um vazio em suas vidas desumanizadas. (Clademir Luís Araldi)

Ao se pensar na questão da “morte de Deus”, não se pode ficar limitado

apenas ao âmbito do problema do ateísmo, já que ele seria apenas uma vertente

dessa situação. Quando construiu essa afirmação, Nietzsche não se preocupou em

ser a “pedra angular” do ateísmo moderno e contemporâneo, mesmo tendo sido

interpretado assim por alguns comentadores e críticos.

Apesar dessa perspectiva, a “morte de Deus” se tornou, para a filosofia

contemporânea, um “divisor de águas” no que diz respeito à interpretação entre o

papel da humanidade e sua relação com o divino. Dessa forma, a filosofia

nietzscheana se fez impactante na vida humana quando passou a ser citada como

etapa fundamental no processo interpretativo sobre a situação da vida do homem no

mundo. No tocante ao cristianismo, especialmente, esse impacto se tornou muito

mais efetivo e presente. Em muitos momentos, contudo, essa perspectiva de embate

entre o cristianismo e a “morte de Deus” foi tão destrutiva, que acabou impedindo

uma visão mais apurada dos efeitos benéficos trazidos para a reflexão acerca do

sentido do humano no mundo.

Por isso, este capítulo se estrutura de modo a possibilitar uma compreensão

do sentido da “morte de Deus” para Paul Valadier. Primeiro, localiza o contexto da

“morte de Deus” em suas consequências para o pensamento cristão. Logo em

seguida, apresenta a interpretação desse aforismo nietzscheano para a reflexão de

Paul Valadier e, finalmente, analisa as consequências desse legado para o

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cristianismo, o pensamento contemporâneo e a estruturação desse legado em sua

relação com o divino.

Dessa forma, o que se pretende é desvelar os impactos gerados pelo choque

entre uma estrutura de pensamento secular e o diagnóstico nietzscheano. O

resultado desse pensamento serviu como alicerce para a instituição da modernidade

em seu processo de secularização. Por isso, esse pensamento assimila duas

realidades distintas, trazendo-as para um plano de reflexão comum, ou seja, a

“morte de Deus” é, ao mesmo tempo, causa e efeito de um movimento da sociedade

humana, iniciado na modernidade, que tem seu prosseguimento em plena

contemporaneidade.

2.1. A “MORTE DE DEUS” E O PENSAMENTO CRISTÃO

O pensador alemão Friedrich Nietzsche diagnosticou, por meio de seus

aforismos, a fragmentação do sistema religioso estabelecido que, durante séculos,

sustentou a estrutura ocidental de pensamentos e práticas. Com o advento da idade

média, a visão do Deus-cristão passou a ser a pedra angular de toda vida social. E,

por muitos séculos, essa visão determinou e comandou o pensamento de diversas

culturas. Contudo, esse paradigma se fragilizou e passou a ser visto como uma

realidade não absoluta e não essencial, conforme havia sido propagado durante

todo o período medieval. É importante salientar que a análise nietzscheana não se

volta para o período medieval. Mesmo assim, esse período é fundamental à análise

do filósofo alemão, porque funda as bases de um pensamento que se estenderá

pela história da humanidade até alcançar os nossos dias. Mesmo após a

modernização que sucedeu o pensamento medieval, o modelo de crença

estabelecido pelo pensamento cristão se efetivou de modo a prorrogar sua

existência ao longo de toda a história ocidental. Mesmo tendo essa importância

essencial, o postulado da crença em um Deus, conforme foi pregado pelo

cristianismo, não só deixou de ser questionado como acabou sendo fundamental à

crença moderna, que migrou de um Absoluto para a ciência. Assim,

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Deus deixa de ser responsável ou postulado necessário, e o teísmo torna-se um ateísmo humanista que busca superar o ‘desvio religioso’ e realiza a transcendência intramundana em que se combina a ciência com o mito do progresso, a práxis com o homem como agente da história, e a tomada de consciência com o saber prometeico da Ilustração. (ESTRADA DIAZ, 2003, p.173).

Nietzsche inaugura de modo fundamental a reflexão acerca do papel que todo

ser humano assume neste mundo, ao colocar em pauta o fenômeno da “morte de

Deus”, antes imperceptível ou pelo menos negligenciado ao longo da história e de

suas transformações. No livro “Gaia ciência”, em seu parágrafo 125, Nietzsche utiliza

a voz de um louco para anunciar esse fenômeno. É um louco que anda pela cidade,

durante o dia, portando uma lanterna, em busca do próprio Deus:

O homem louco. - Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? disse outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?” gritou ele, “Já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não vemos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda em cima” e embaixo”? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós – , assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra, sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderemos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos .Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles o cometeram!” - Conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Requiem aeternam deo. Levado para fora e interrogado, se limitava a responder: O

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que são ainda essas igrejas, senão os mausoléus e túmulos de Deus? 7 (NIETZSCHE, 2001, p. 147).

Com a “morte de Deus”, morre também todo um conjunto de crenças em

fundamentos que sustentavam conceitos e ideologias baseados em uma perspectiva

transmundana8. Esse transmundano se revela como um fundamento que está além

da mera realidade humana, realidade que exige do sujeito uma compreensão plena

de si mesmo, excluindo-se como parte fundamental do que vem a ser esse ser-no-

mundo.

Dessa forma, a ruptura proveniente do pensamento nietzscheano objetivava

pôr fim à dependência humana de um Absoluto, reafirmado nas reflexões cristãs,

desde o período medieval9, as quais se efetivaram nas práticas ocidentais,

ratificando um novo paradigma, que se estendeu por toda contemporaneidade. A

partir dele, instituiu-se na alma humana um sentimento de comodidade e de

apaziguamento diante do mundo desconhecido e em constante mudança e

transformação. Todavia, mesmo com essa função determinada, a dependência do

pensamento cristão não mais sustenta a religião em si mesma e deve buscar o

exercício de uma nova função, como afirma Paul Valadier em sua tese de

doutorado: “Do que se trata, depois da morte do dualismo metafísico e mais além do

trabalho científico dos operários da filosofia, é suscitar uma nova função [...]”10

(VALADIER, 1982, p.495, tradução nossa). Assim, mesmo com a compreensão da

perda referencial de Deus como consequência do evento da “morte de Deus”, ele

continua a rondar a humanidade, por meio de outras formas, que disfarçam sua

presença sob um olhar descuidado, como atesta o professor Paul Valadier:

[...] o cristianismo pode naufragar em seus dogmas ou sua moral e, contudo, sobreviver sob a forma do “cristianismo latente”, que alimenta a vontade de crença sob uns domínios não imediatamente religiosos. Neste

7 O texto será aqui transcrito apenas como uma referência que serviu de base para o

desenvolvimento do pensamento de Paul Valadier. 8 Transmundano, para Nietzsche, significa a ideia de mundo verdadeiro, tal como se vê no pensamento do neoplatonismo (dualista). Todo mundo verdadeiro situado no além e que não pode ser atingido. Ficou apenas como idealidade. Serve ainda como critério para incriminar a ideia de mundo real. Veja-se em “Assim Falou Zaratustra”, nos textos “Dos trasmundanos” e “Dos desprezadores do corpo”. (NIETZSCHE, 1993, p.49 – 52). 9 Período iniciado no século IV d.C. com o imperador Constantino, que permitiu o culto cristão e que depois foi ratificado pelo imperador Teodósio, no mesmo século, que tornou o cristianismo a religião oficial do Império Romano. Nesse momento, ele deixou de ser uma seita judaica e passou a buscar a universalidade da vontade de crença, isto é, passou a ser católica . (CUNHA, 2005, p. 35). 10 De lo que se trata , después de la muerte del dualismo metafísico y más allá del trabajo científico de los obreros de la filosofia, es de suscitar una función nueva [...].

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sentido, também, importa-nos estender para hoje umas ideias que têm como objetivo o compromisso de nossas liberdades.11 (VALADIER, 1982, p.17, tradução nossa).

Paul Valadier (1982) observa que a busca de Nietzsche na construção de

uma genealogia do cristianismo não é pura e simplesmente uma revisão histórica do

cristianismo, reconstituindo suas origens e fundamentos. Mais do que isso, ele

deseja compreender e atualizar o que se denominou um “jogo de forças”, presente

desde essas origens, mas que ainda hoje ecoa de modo pertinente. Nietzsche,

segundo Paul Valadier, sempre se mostrou interessado no fato de que, mesmo

tendo o cristianismo se esvaído, principalmente com a ideia da “morte de Deus”, ele

continuou sendo um fundamento do desejo de crer. Atualmente, a comprovação da

existência divina não é o cerne da reflexão religiosa, mas sim a compreensão de

como se pode conceber a crença na existência de um Absoluto, mesmo diante de

uma realidade contemporânea que se diz independente de qualquer outra coisa que

não ela mesma. Ao se referir à constante atualização do aforismo da “morte de

Deus”, sob outras formas e pensamentos, Paul Valadier justifica: “[...] se em outro

tempo, diz este aforismo, tratou-se de demonstrar que não havia Deus, hoje em dia

se demonstra como pôde nascer (Entsteben) esta crença na existência de Deus.”12

(VALADIER, 1982, p. 419, tradução nossa).

Dessa maneira, a pergunta nietzscheana destacada por Paul Valadier (1982)

se instala diante da questão da vontade de crer13, vontade que o ser humano ainda

11 [...] el cristianismo puede naufragar en sus dogmas o su moral y, sin embargo, sobrevivir bajo la forma del “cristianismo latente”, que alimenta a la voluntad de creencia bajo unas formas y en unos dominios no inmediatamente religiosos En este sentido también, nos importa entender para hoy unas ideas que tienen como objectivo el compromiso de nuestras liberdades. 12 [...] si en otro tiempo, dice este aforismo, se trató de demonstrar que no había Dios, hoy día se demuenstra cómo pudo nacer (Entsteben) esta creencia en la existencia de Dios. 13 Aqui se pode compreender um ponto comum entre Friedrich Nietzsche e William James (2001), isto é, a verdade tomada como ficção, produto da vida como criação, ainda que em sua potência mais fraca, qual seja a de negar o seu poder criador. Portanto, a verdade é uma simples crença, não fazendo sentido a distinção entre doxa e episteme, proposta pelos inventores da verdade. É uma crença instalada na vida, possuindo força e desejo, como as demais formas vivas, ainda que seu desejo possa ser de superação ascética de todo querer. Nessa ecologia das crenças, a verdade, no seu sentido clássico, insurgiria contra a própria força criadora, cometendo certo suicídio em vida. É por tal que Nietzsche a renega e James a reinventa. Por tais razões, a verdade revela uma vontade de crença (James) ou uma vontade de verdade (Nietzsche), mas embutida nessas semelhanças, uma diferente estratégia de combate. Se Nietzsche quer mostrar que a verdade é um desejo, uma vontade de potência, ainda que fraca, James irá demonstrar que esse desejo, em sua manifestada potência de fé, produzirá realidades. Um,tomará a ‘vontade de verdade’ na sua militância própria contra o pathos, os valores e os instintos presentes na vida. Trata-se de uma vontade fraca, por negar a própria verdade. O outro invocará na ‘vontade de crer’ a força deste componente, que é vital a toda

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elabora em si, mesmo sem a presença de uma ideia divina. A vontade de crença,

designada por Nietzsche como mal da humanidade, camufla sua verdadeira

natureza, qual seja, a de atrelar o ser humano a uma realidade situada além dele

próprio. Por isso, mesmo sem o seu referencial principal, dada a “morte de Deus”, já

sentenciada anteriormente, o cristianismo não perdeu o seu poder dentro da

sociedade. Isso porque a necessidade da presença divina foi substituída,

paulatinamente, pela necessidade da presença da Igreja que determinava tudo que

era necessário para uma vida plena de sentido, capaz de garantir a obtenção da

vida eterna. Ou, ainda, como menciona Paul Valadier:

[...] se poderia articular o seguinte diagnóstico: o cristianismo perdura o mesmo em forma religiosa ou em forma secularizada, deve perdurar ainda; pode até mesmo prever o renascimento futuro de forças religiosas.14 (VALADIER, 1982, p.423, tradução nossa).

Desse modo, o cristianismo sobrevive diante das tentativas de torná-lo

insípido e desfavorecido, esquecido de suas relações mais fundamentais e

essenciais. Em vez de se ausentar do contexto social, sob qualquer um de seus

aspectos, o cristianismo supera barreiras e dificuldades sob a forma e sob a força

da vontade de crença que se apresenta efetivamente no espírito humano.

O cristianismo deixou uma herança, principalmente no mundo ocidental,

tornando-se definidor das estruturas paradigmáticas e conceituais do mundo que

nasce na modernidade. Dessa forma, o ser humano utiliza como base de sua

adequação ao mundo, a mesma vontade de crença, outrora instituída pelo

cristianismo. Essa vontade de crença se determinou graças ao Absoluto que está

em tudo, no início como um Deus-criador e, posteriormente, como uma ciência

absolutizadora das estruturas que a seguem. Dessa forma, a “morte de Deus” trouxe

a necessidade de se constituir um novo modelo, adequado a novos tempos,

preservando seu fundamento essencial, isto é, a vontade de crer. Pensando nisso, a

constituição dos valores passou a ter fundação na moral cristã, em seus

verdade, para torná-la mais viva ainda. Não é à toa que James designa como crença uma hipótese viva. 14 [...] se podría articular el siguiente diagnóstico: el cristianismo perdura lo mismo em forma religiosa que en forma secularizada; debe perdurar todavia; puede incluso preverse el renacimiento futuro de fuerzas religiosas.

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paradigmas, e se efetivou definitivamente pela ciência que, em lugar da Igreja e do

Deus-cristão, passou a ser a nova elaboradora de valores máximos .

Paul Valadier (1982) compreende que as críticas nietzscheanas se voltam

para a constatação de que, mesmo diante do fato da “morte de Deus”, a dimensão

axiomática constituída anteriormente persistiu, ou seja, a ideia de uma verdade

absoluta se manteve e se constituiu como a vertente que justificava a vontade de

crer de um ser humano que não se viu desnorteado por ter apenas redirecionado

essa vontade, mas por não ter aberto mão dela: “A contribuição da genealogia do

cristianismo está em manifestar a insustentável contradição que existe entre a perda

do fundamento (cristão) dos valores e a permanência dos efeitos deste

fundamento.”15 (VALADIER, 1982, p. 422, tradução nossa). Dessa forma, mesmo

enfraquecido pela perda do referencial divino, o ser humano continuou a constituir

novos conjuntos de valores. Paul Valadier detecta que, no âmbito da perda dos

referenciais axiomáticos, nasce o niilismo como resultado final da decadência,

passando pelo pessimismo ou, nas palavras do autor:

[...] a decadência que caracteriza, segundo um vocabulário tardio, todo o reino dos valores reativos e, portanto, o domínio passado, embora presente na rejeição da vida, é a que gera o niilismo, presente desde então, e que estenderá seu reino no futuro. O pessimismo que prevalece no começo do século XIX não é mais que a antecipação do niilismo: caracteriza um romanticismo que padece de um mal cuja raiz ignora e que trata de atordoar-se, absorvendo qualquer tipo de narcótico [...] 16(VALADIER, 1982, p.421, tradução nossa).

Dessa forma, os valores cristãos permaneceram latentes no conjunto de

ações da modernidade, sob uma nova perspectiva, que os mantêm passíveis de

acesso e de revigoramento, a qualquer instante, de acordo com as necessidades de

cada um. Por isso, o niilismo advindo de um ímpeto de pessimismo, iniciado pela

decadência na qual se encontravam as sociedades atuais, acabou por difundir um

profundo sentimento de isolamento, de desencontro, de uma real e profunda

15 La aportación de la genealogía del cristianismo está en que pone de manifesto la insostenible contradicción que existe entre la pérdida del fundamento (cristiano) de los valores y la permanencia de los efectos de este fundamento. 16 [...] la decadencia que caracteriza, según un vocabulario tardio, todo el reino de los valores reactivos, y por tanto el dominio pasado y todavia presente en el rechazo de la vida, es la que engendra el nihilismo, que, presente desde ahora, extenderá su reino en el porvenir. El pessimismo que reina a comienzos del siglo XIX no es más que la anticipación del nihilismo: caracteriza a un romanticismo que padece de un mal cuya raiz ignora y que trata de aturdirse absorbiendo cualquier tipo de narcótico [...]

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nadificação de tudo o que o ser humano considerou como essencial à sua vida. Em

momentos como esses, tão típicos e comuns em nossos dias, faz-se necessária a

retomada de uma figura que, mesmo sob um ou outro artifício qualquer, permanece

indispensável, isto é, o ser humano se apega à crença como forma de resolver seus

problemas. Isso significa dizer que o niilismo17, em sua forma mais forte e vigorosa,

termina por ser um fundamento da própria constituição da fé (vontade de crença)

moderna, já que esta se manifesta diante de uma necessidade constante de recorrer

ao divino, ou mesmo a uma realidade transmundana. Por esse motivo, Paul

Valadier, em sua tese, base essencial para compreender suas principais ideias,

ressalta a dificuldade nietzscheana de constatar que o cristianismo não alcança o

fim de sua existência, mesmo dentro de um contexto completamente adverso, tal

como na atualidade. Tal fato leva Nietzsche a aumentar consideravelmente suas

críticas à vontade de crer, latente em cada momento do cristianismo, que dominou

as sociedades ocidentais em todos os tempos.

A capacidade de adaptação do cristianismo é, de fato, um fator essencial para

a sobrevivência da vontade de crer, que apenas se modificou nos diversos modelos

em que se apresentou ao longo da história, mesmo naqueles que o contradisseram,

como no caso do processo de secularização, presente no mundo moderno e

contemporâneo. Dessa forma, afirma Paul Valadier:

Nietzsche faz recair cada vez mais o martelo da crítica sobre o cristianismo nas últimas obras: porque o perigo maior do futuro está em camuflar a crença em seus opostos aparentes e porque o niilismo reativo, consequência lógica da decadência cristã, pode dirigir seus passos a conformar-se com a vida; em uma palavra, porque o cristianismo pode ainda menosprezar o futuro, há que indagar-se por suas possibilidades de sobrevivência e pela forma como morre.18 (VALADIER, 1982, p.423, tradução nossa).

Por isso, a “morte de Deus” não decreta o fim do cristianismo, já que ele se

mantém pela vontade de crer. Mais do que apenas um modo de pensar o mundo a

partir da extinção de seu esteio, o cristianismo semeou a vontade de crer em todos

17 O mesmo conceito é utilizado no texto de Oswaldo Giacoia Junior: O niilismo e a lógica da catástrofe (Unisinos, São Leopoldo, jan. 2001).

18 Nietzsche hace recaer cada vez más el martillo de la crítica sobre el cristianismo en las últimas obras: porque el peligro mayor del porvenir está en camuflar la creencia en sus opuestos aparentes y porque el nihilismo reactivo, consecuencia lógica de la decadência cristiana, puede dirigir sus pasos a conformarse con la vida; en una palabra, porque el cristianismo puede todavia menospreciar el porvenir, hay que interrogarse por sus posibilidades de supervivencia y por la forma en que muere.

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os ramos da vida humana, a fim de se manter vivo e atuante na história da

humanidade. Por isso, mesmo diferenciando-se quanto ao seu conteúdo e à sua

forma, o cristianismo, em essência, revela-se presente na capacidade humana de

crer, não mais em nome de uma realidade transmundana, mas baseando-se em um

ideal que a sustente:

A crença no reino de Deus não é mais estranha que a crença no advento de uma sociedade sem classes e sem Estado, na reconciliação universal dos homens sob o signo do progresso, na época da integridade intelectual e da filosofia rigorosa que ensinarão ao indivíduo a não se deixar enganar [...]19 (VALADIER, 1982, p.425, tradução nossa).

É esse mesmo cristianismo que, como suporte essencial de diversas

pessoas, mostra-se incapaz de apresentar uma justificativa para o sofrimento pelo

qual passam. Por esse motivo, o ser humano é incapaz de impedir a constituição de

um mundo plenamente humano, autossuficiente na capacidade de manter-se graças

a si mesmo, sem recorrer a qualquer realidade extramundana que seja. Basta uma

situação aflitiva para que o ser humano se volte novamente para o Absoluto que

pode socorrê-lo, ou como argumenta Paul Valadier (1982, p.423, tradução nossa):

“Nada como a decadência atual para obrigar muitos homens, que não compreendem

o que se arrisca com o conflito, a agarrar-se desesperadamente à crença religiosa

[...]”20

Entretanto, essa é apenas uma das situações em que a religião cristã é

conservada viva na estrutura da sociedade atual, já que em outros casos o

cristianismo também é considerado essencial, a exemplo da instituição de um

pressuposto de igualdade entre todas as pessoas e contextos, graças aos dizeres e

declarações religiosas. Ou ainda, em momentos em que pessoas insistem em

reavivar a antiga capacidade do cristianismo de fazer suportar as mais altas agruras

em nome de algo maior, tal como aconteceu no período de embate com o império

romano. Todas essas considerações servem de alento diante das dificuldades

impostas pela instituição do niilismo, como capacidade de lançar o ser humano a um

“nada” significativo da realidade. Assim, considerando essa realidade, Paul Valadier

19 La creencia em el reino de Dios no es más extraña que la creencia en el advenimiento de una sociedad sin clases y sin Estado, en la reconciliación universal de los hombres bajo el signo del progreso, en la época de la integridad intelectual y de la filosofia rigurosa que enseñarán al individuo a no dejarse engañar [...] 20 Nada como la decadencia actual para obligar a muchos hombres, que no comprenden lo que se arriesga con el conflicto, a agarrarse desesperadamente a la creencia religiosa [...]

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compreende que a crítica nietzscheana à permanência do cristianismo se dá em

dois pontos diferentes: por um lado, é a crença necessária para aqueles

considerados fracos, que depositam suas esperanças em situações fora deles e do

mundo em que vivem. E, por outro lado, sustenta que o idealismo, presente no

cristianismo, passou a ser algo indispensável à vida social das sociedades

ocidentais.

Esse mesmo cristianismo, fonte da afirmação moral, consistia, ainda, em

justificar o domínio do senhor sobre o escravo. Essa dominação se dá pelo fato de o

escravo assumir sua condição de servidor, de sofredor, daquele que é o necessitado

por excelência, o que o levaria a assegurar um lugar privilegiado no Reino dos Céus,

o para “além-mundo”. Assim, o indivíduo assume a prática daquele que se denomina

um verdadeiro cristão (mas que, na verdade, é um cristão sob as bases do

cristianismo segundo a visão de São Paulo, ou seja, não um cristianismo nas bases

do seu criador, mas segundo seu principal articulador na história). Por isso,

argumenta Paul Valadier:

[...] o verdadeiro senhor tem necessidade da debilidade cristã para afirmar-se; texto esclarecedor, se se realça neste diagnóstico o temor de que com o desaparecimento demasiado rápido do cristianismo, a Europa seja invadida por uma decadência tal, que toda força criadora resulte inútil. A força relativa implícita no cristianismo deve, portanto, permanecer contra a pura debilidade decadente [...]21 (VALADIER, 1982, p.427, tradução nossa).

O cristianismo não deve ser subestimado, já que, como afirmado

anteriormente, sua capacidade de recuperação e a necessidade que os outros têm

dele o tornam extremamente necessário. Em sua história, o cristianismo se revelou

como base essencial da postura atual do ser humano da modernidade. Sem ele,

dificilmente, o nível evolutivo dos dias atuais teria sido alcançado, como capacidade

ideológica e mesmo prática. Segundo Paul Valadier:

[...] a tradição passada trabalhou uma parte vital do homem moderno, sem a qual não ele seria o mesmo: o sol já se ocultou mas o céu da nossa vida

21 [...] el verdadero señor tiene necesidad de la debilidad Cristiana para afirmarse; texto esclarecedor, si se recalca en este diagnóstico el temor de que con la desaparición demasiado rápida del cristianismo invada a Europa una decadência tal, que toda fuerza creadora resulte inútil. La fuerza relativa implícita en el cristianismo debe, portanto, permanecer contra la pura debilidad decadente [...]

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27

está sempre abraçado e iluminado por ele, ainda que tenhamos deixado de vê-lo.22 (VALADIER, 1982, 436, tradução nossa).

Assim, não basta ao crítico da religião, a negação de toda a história que a

constituiu. Para Paul Valadier (1991b), é fundamental a adoção e o exercício da

capacidade humana de construir uma genealogia do cristianismo. Por meio dela,

será possível penetrar de modo efetivo e necessário na própria tradição e na própria

estrutura do cristianismo, conseguindo, desse modo, estabelecer uma crítica

razoável e profunda da função assumida pelo cristianismo ao longo da história e da

vida humana. O filósofo que se propõe a fazer uma crítica, principalmente no campo

religioso, que normalmente se baseia em tradições seculares, não pode desprezar o

passado pura e simplesmente, como um passado que se abandona e nega. É,

portanto, fundamental compreender a história e sua constituição para compor uma

crítica eficiente e precisa de toda a estrutura instituída pelo poder religioso. Isso se

deve fazer não apenas em algum tempo específico, mas a cada passo dado, a fim

de impedir que uma estrutura enfraquecida e irrisória, incapaz de manifestar-se

diante do mundo, torne-se evidente. Mesmo porque, como afirma Paul Valadier, a

própria religião é responsável pelo status quo alcançado pela sociedade que a

critica:

[...] uma sociedade moderna oferece todas as condições para que uma busca religiosa passe através da profanidade, sem desembocar necessariamente no revés da profanidade, sem desembocar necessariamente no reconhecimento da Igreja, como lugar e espaço comunitário da celebração do Sentido. (VALADIER, 1991b, p. 87).

Ao cristianismo é denotada a responsabilidade da criação da idealidade,

como base fundamental da crença acerca de um futuro sempre melhor do que o

presente que se tem. Exatamente por isso, aqueles que esperavam uma

emancipação da religião, proporcionada pela autoafirmação do ateísmo, frustraram-

se devido ao fato de que a religião revelou-se como um fundamento essencial da

humanidade, mesmo que esta a negue constantemente. A criação dessa idealidade

pautou a vida e a esperança de todo um povo, tornando-se, então, necessária na

mentalidade e consciência humana.

22 [...] la tradición pasada ha labrado una parte esencial del hombre moderno, sin la que no sería el mismo: el sol se ha ocultado ya, perto el cielo de nuestra vida está siempre abrazado e iluminado por el, aunque hayamos dejado de verlo.

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É importante ressaltar, ainda, que o cristianismo sobreviveu em razão da sua

capacidade de se adaptar às necessidades humanas. E a necessidade mais efetiva,

onde o cristianismo pôde lançar-se e permanecer no contexto humano de criação e

de pensamento foi o campo moral. Por esse campo moral, o cristianismo conduz os

rumos da vida ocidental, inclusive lançando-a em uma realidade que toma em suas

mãos as suas decisões e as assume no seu cotidiano, sem recorrer a nada além

dela mesma. Contudo, a moral que abriga o cristianismo em seu âmago é a mesma

que vem destituindo-o de qualquer possibilidade de compreensão no contexto

moderno, configurando, por isso, uma contradição com os rumos da sociedade

atual, ou como afirma Paul Valadier:

O diagnóstico de Nietzsche sobre o declínio do cristianismo é claro. Ele está contido nesta afirmação: o cristianismo sobrevive como moral, mas é a moral cristã que destruiu o cristianismo como religião. Não sobrevive, pois, mais que sobre uma contradição, que é a que arrasta consigo o destino desta religião.23 (1982, p.440, tradução nossa).

Ao longo da história ocidental, o cristianismo assumiu a definição das

diretrizes morais que passaram a direcionar as escolhas e os julgamentos

individuais e sociais. Subordinada à religião, as escolhas morais passaram a

corresponder às expectativas da religião e, em específico, às expectativas do

cristianismo. Isso significa dizer que a moral social se determinou tendo em vista as

promessas de um idealismo vindouro. Durante séculos, o cristianismo se tornou o

único referencial necessário e suficiente para a constituição das escolhas que ele

produz no seu cotidiano. Dessa forma, nunca foi algo simples a destituição da

religião cristã e de seus pressupostos do pedestal de determinação moral para a

vida ocidental.

Fundamentalmente, a "morte de Deus" significou a morte do próprio sentido

que o ser humano atribuía-se até então. Muito mais que a instituição de um ateísmo

pautado na destruição do próprio sentido do divino, a modernidade trouxe a

instauração da ausência de um sentido que se perde quando não consegue

significar a sua presença no mundo. Por conseguinte, ao destituir Deus do seu lugar

de excelência, inclusive de criador da própria razão, o ser humano se desvincula 23 El diagnóstico nietzscheano sobre el ocaso del cristianismo es claro. Se contiene em esta doble afirmación: el cristianismo se sobrevive como moral; pero es la moral cristiana la que há destuido al cristianismo como religión. No sobrevive, pues, más que sobre una contradicción, que es la que arrastra consigo el destino de esta religión.

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daquilo que tem de mais importante, a saber: seu sentido ontológico. Essa

existência se justifica graças a um plano extramundano, que faz o ser humano,

obrigatoriamente, atravessar uma fase da qual não se pode furtar, sofrendo e

superando dificuldades a todo instante para alcançar a recompensa eterna. Dessa

forma, se este mundo (sensível e real) não serve, nasce a necessidade de se

constituir a esperança em algo que ainda vem, onde se poderá – para além das

falsas aparências nas quais vivemos – alcançar-se a verdadeira realidade. A "morte

de Deus" não foi apenas um evento religioso, no sentido de ser a vertente mais

atingida por tal epígrafe. Pode-se dizer que temos antes de tudo um evento

antropológico, no qual se reconhece a corroboração da autonomia da consciência

humana frente ao mundo e aos seus processos.

Por fim, ao se compreender os rumos que a “morte de Deus” causou ao

cristianismo, bem como quais posturas foram alteradas diante dessa situação, é

fundamental entender que não foi simplesmente um abalo na estrutura dogmática e

teológica. A “morte de Deus” deveria significar a conclusão de todo um processo

emancipatório de cada ser humano que se liberta da dependência exclusiva de

Deus, como o único referencial capaz de justificar suas dificuldades. Contudo, o que

de fato aconteceu foi a substituição do referencial divino pela referência

exclusivamente humanizada e imanente.

Dando sequência em sua linha de raciocínio, Paul Valadier (1982) acredita

que Nietzsche tem mais a oferecer com o aforismo da “morte de Deus” do que uma

simples e efetiva rejeição da dimensão divina do Deus cristão. Em vista disso, ele

redefine o pensamento acerca da "morte de Deus" não apenas como um ponto final

em uma tradição secular ou mesmo milenar, mas como o ato puro de se crer em

algo ou alguém. Conclui-se, portanto, que Paul Valadier tem contribuições

relevantes nesse entendimento da “morte de Deus”, quando vista como uma

abertura de sentido e de significações fundamentais na história do ser humano

ocidental. Ou, nas palavras do próprio Paul Valadier:

A morte de Deus assim proclamada não é, pois nem um simples fato interior, nem uma peripécia de ordem filosófica, senão uma realidade que tem tomado forma na história de uma civilização e que, como tal, concerne

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a todo homem que participa (sem haver medido seu alcance) na originalidade desta história.24 (VALADIER, 1982, p. 453, tradução nossa).

2.2. A “MORTE DE DEUS” NA VISÃO VALADIERANA

Paul Valadier (1982) ressalta a crítica nietzscheana feita ao cristianismo, à

ciência e, ainda, a qualquer forma de antropocentrismo, como referência inadiável,

incontornável, do sentido de vida, como uma crítica à decadência dos valores. Essa

decadência produz o niilismo que se caracteriza como afirma Giacóia, na

[...] experiência da perda de sentido e de valor por parte de nossos supremos valores. Como tais valores são aqueles que dão coesão e organicidade a uma cultura, o niilismo sinaliza um período de declínio de uma força ou unicidade cultural, isto é, é um sintoma de decadência de uma cultura. Por essa razão, ele surge acompanhado dos fenômenos característicos dos períodos de declínio: o ceticismo e a libertinagem do espírito, a corrupção dos costumes, a fraqueza da vontade, a necessidade de estimulantes fortes. (GIACÓIA JÚNIOR, 2001, p.75).

Paul Valadier identifica, na sociedade atual, a vivência de um pessimismo

recorrente, que não é senão uma antecipação do niilismo. O autor se propõe a

estudar Nietzsche como possibilidade de compreensão do fenômeno do niilismo,

caracterizado pela perda dos valores supremos, marcado pela frase “Deus morreu”,

que, na contemporaneidade, culminou no que se pode denominar de relativismo. A

crítica nietzscheana, do ponto de vista valadierano, destaca , entre outros, o

problema de um idealismo supremo ou ainda de uma metafísica herdeira da sobre

valoração advinda de uma conceituação socrático-platônica. Dessa forma, a crítica

de Nietzsche, do ponto de vista de Paul Valadier, volta-se, especificamente, para

[...] o Deus cristão, aquele caído em descrédito, e não só o Deus da metafísica ou do idealismo. Só o Deus cristão, por outro lado, é o que tem marcado durante séculos a civilização europeia sob a influência do ensinamento sacerdotal: é seu desaparecimento da consciência, como norma primeira e última, o que estabelece as perguntas mais decisivas

24 La muerte de Dios así proclamada no es, pues ni um simple hecho interior, ni uma peripecia de orden filosófico, sino una realidad que ha tomado forma em la historia de uma civilización y que, como tal, concierne a todo hombre que participe (sin haber medido su alcance) en la originalidad de esta historia.

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sobre o futuro desta civilização e o desenvolvimento do niilismo em suas diferentes formas.25 (VALADIER, 1982, p.451, tradução nossa).

Ao evocar o pensamento nietzscheano quanto à questão da “morte de Deus”,

Paul Valadier (1982) o reafirma não apenas como uma questão específica da

contemporaneidade, mas como um fenômeno que se desenvolveu ao longo da

história da humanidade. Por isso, compreendê-lo apenas como um fenômeno

restrito ao tempo moderno/contemporâneo seria extrair dele o seu fundamento que o

situa para além de um tempo histórico, já que não se restringe à dimensão de um

período histórico determinado. A “morte de Deus” não é um fenômeno puramente

nietzscheano e nem apenas contemporâneo. Essa morte já se deu a partir do Antigo

Testamento, quando, no discurso do Monte Sinai, as palavras que teriam sido

pronunciadas por Deus a Moisés o apresentam como o “único” deus. Institui-se

assim, de modo imediato, o monoteísmo como única possibilidade de fé autêntica e

legítima. Tal como se pode compreender no trecho nietzscheano, na condição de

formulador de

[...] um produto assim decrépito e doentio da décadence. Mas há uma maldição sobre elas por não o terem feito: elas absorveram a doença, a idade, a contradição em todos os seus instintos – desde então não criaram mais nenhum deus! Quase dois mil anos e nem um único deus novo! Mas sempre, como que existindo por direito, como um ultimatum e maximum da força plasmadora de deuses, do creator spiritus do homem, esse lastimável Deus do monótono-teísmo cristão! Esse híbrido fruto de declínio, mistura de zero, conceito e contradição, no qual todos os instintos de décadence, todas as fadigas e covardias da alma têm sua sanção! (NIETZSCHE, 2007, p.24).

Desse modo, ressalta-se o ateísmo como a única relação possível para

qualquer outro deus que não seja ele mesmo. Essa ideia foi assumida na história

cristã e, posteriormente, na própria história ocidental, servindo de base para todas

as designações religiosas que resultaram do cristianismo. Segundo Nietzsche, é

graças ao apóstolo Paulo que esse “ateísmo-crente” foi revigorado, trazendo a fé

judaica do Deus único para o “Filho desse próprio Deus”. Para Paul Valadier, essa

25 [...] el Dios cristiano el que ha caído en descrédito, y no solo el Dios de la metafísica o del idealismo. Sólo el Dios cristiano, por outra parte, es el que ha marcado durante siglos a la civilización europea bajo la influencia de la enseñanza sacerdotal: es su desaparición de la conciencia, como norma primera y última, la que plantea las perguntas más decisivas sobre el porvenir de esta civilización y el desarollo del nihilismo en sus diferentes formas.

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afirmação nietzscheana se encarregou de revigorar esse processo ateísta, quando

diz:

[...] o triunfo do monoteísmo como forma decisiva da morte do divino encontrará uma segunda versão com São Paulo: este, de fato, substitui a alegre mensagem de Jesus, segundo a qual é preciso dizer sim ao Reino e banir desde já todo ódio e todo espírito de vingança, por uma má nova, a que enuncia que só se pode abrir para a vida de Deus por meio da morte de cruz. Mensagem mortífera e mortal, em primeiro lugar, para aquele que adere a ela, uma vez que o entrega à longa e temível dominação dos padres ascéticos, mas também para o Deus assim professado: como um Deus inimigo da vida, do corpo e do sensível poderia sustentar a pretensão de ser ainda divino? Não é um deus parcial aquele que só se pode afirmar contra uma parte do real e uma negação da vida? Com isso, o cristianismo paulino é portador de uma segunda forma de ateísmo, já que abre para uma religião ascética, negativa, moralizada, que só pode querer Deus de maneira condicional: sob a condição de ser moral, isto é, de negar uma parte essencial de si ou de dividir a vida contra si mesmo. E, não esqueçamos, é esse cristianismo, não a mensagem de Jesus, que vai prevalecer e dominar os espíritos por intermédio da Igreja. Assim, se o Deus do Sinai se apropria loucamente do divino, o Deus de Paulo identifica-se com a morte, separando a vida de si mesmo. (VALADIER, 2009, p.297).

Paul Valadier (2009) mostra que São Paulo vai muito além do que

simplesmente revigorar o “ateísmo-crente” do monte Sinai, pois há a constituição do

que virá a ser a base de crença do cristianismo, isto é, não basta apenas afirmar a

exclusividade do deus único, mas tomar também a moralidade como forma de

manifestação do divino, identificada com a negação da vida pulsante, que se faz

presente em todo humano, fato que conduz a uma segunda onda de ateísmo,

propriamente dito. Graças a Paulo, o cristianismo então se redefine e se lança em

uma nova perspectiva, não mais aquela pregada por Jesus de Nazaré, mas definida

sob uma nova óptica. Aquela que se colocou como um paradigma essencial da vida

ocidental, não só do ponto de vista religioso, como também na formulação dos

postulados da moralidade, que acaba desatando o ser humano de sua ligação com

seus instintos.

A advertência, sinalizada nas últimas linhas, faz transparecer a deturpação

pela qual passa a mensagem de Jesus, ao ser estruturada e pensada como a

fundamentação da religião e de sua aceitação no mundo ocidental. Assim, o

referencial do Deus-cristão, de natureza paulina, gerou os séculos de submissão e

de mentalidade da fraqueza, que sedimentaram as diversas análises e posturas que

prevalecem atualmente no mundo ocidental. Sem um Deus que dê garantias à

vivência do ser humano, exilado da consciência humana, abre-se espaço para uma

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reflexão profunda sobre o real habitat desse ser em si mesmo. Isso porque já não se

pode encontrar fora do ser humano uma resposta para as perguntas que nascem

dentro dele mesmo, pois qualquer realidade transmundana não é mais portadora de

validade ou mesmo de sentido.

O aforismo do parágrafo 125 de “Gaia ciência”, já citado no início do capítulo,

é interpretado de maneiras diversas. Segundo Paul Valadier (1982), na verdade,

esse aforismo não retrata uma adivinhação, ou um vaticínio, mas um diagnóstico

proferido por Nietzsche, através da boca de um louco. A busca iniciada pelo louco

(ou pelo “exaltado”) não é por outro ser humano, semelhante a ele mesmo, mas pelo

próprio Deus, na condição de arquétipo significativo da esperança de toda uma

humanidade. Essa busca é tão significativa e simbólica que a figura desse louco

caminha durante o dia, levando consigo uma lanterna acessa. Não seria mesmo o

papel de um louco, de alguém fora de uma pretensa realidade, buscar sob o dia

claro, alguma coisa necessitando do uso de uma lanterna? O sol já não seria o

bastante para se enxergar o que de fato se procura? Contudo, o sol não é revelador,

tal como se articulava no livro VII da República de Platão, mas sim um encobridor de

uma verdade pretensiosa, que só é, de fato, alcançável se compreendida como

parte da própria pessoa. Por outro lado, a busca desse louco é por Deus, que ele

mesmo já revela como morto. Nietzsche não é, como se anunciou por diversos

comentadores e intérpretes, o assassino de Deus. Ele não sentencia nem mesmo

executa, apenas diagnostica esse evento. Para Martin Heidegger, a “morte de Deus”

é uma atitude metafísica, significando o mundo verdadeiro que não mais orienta o

modo como as pessoas podem pensar e compreender o mundo:

Se Deus morreu, enquanto fundamento suprassensível e enquanto meta de tudo o que é efetivamente real, se o mundo suprassensível das ideias perdeu força vinculativa e, sobretudo, a sua força que desperta e edifica, então nada mais permanece, a que o homem se possa agarrar, e segundo o qual se possa orientar. (HEIDEGGER, 2002, p.251).

Dessa forma, as idealidades do mundo são colocadas à prova, juntamente

com o conceito de Deus (judaico-cristão), que já não mais consegue se explicar ou

elucidar qualquer uma das dúvidas à sua volta. Por isso, na compreensão

valadierana, o anúncio nietzscheano não é a antevisão do extermínio de Deus, mas

sim uma profunda crítica ao que fizeram com o conceito de Deus ao longo da

história ocidental. Não é Nietzsche o inimigo perpétuo de qualquer outra forma de

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teísmo, em especial do cristianismo. Paul Valadier afirma que o temor que sempre

se cultivou de Nietzsche é fruto de uma profunda ignorância, pois o

[...] cristão deve entender a crítica de Nietzsche. O que o filósofo critica no cristianismo é que ele humanizou Deus de tal maneira, tornando-o tão misericordioso e paternal prometendo a salvação, que acabou matando-o. Assim, Nietzsche quer dizer que o cristianismo desdivinizou Deus em sua dimensão transcendental, e quer alertar para o perigo, o risco, em uma fé demasiado paternalista. Isso não quer dizer que Nietzsche tenha razão na sua crítica, mas ele denuncia os riscos graves de uma visão exacerbada do cristianismo. (VALADIER, 2007b, p.53).

Portanto, a ruína do cristianismo – como religião – é produzida em seu próprio

seio, uma vez que, fundamentada na interpretação paulina, a morte passou a ser a

única via capaz de libertar o ser humano de suas mazelas, em sua busca de uma

realidade perfeita. Isso significou desprezo por toda a realidade sensível, corpórea,

em nome de uma outra que, em princípio, se revelava como mais verdadeira.

Remeteu-se, assim, a uma concepção platônica, ou melhor, a uma perspectiva

helenística neoplatônica, que sentenciou todo e cada um dos seres humanos à

compreensão do “corpo como cárcere da alma”26. A verdadeira vida não está no

mundo sensível, mas em um mundo além deste. Sem poder esperar o auxílio de

uma entidade superior, que a tudo responda e amenize as circunstâncias, o ser

humano só pode confiar em si mesmo, na condição produtor de suas ações.

O perigo e, ao mesmo tempo, o trunfo do cristianismo é a sua capacidade de

se tornar presente, ainda que de modo tácito, mesmo em segmentos e conceitos

diferentes de sua origem religiosa, baseada na capacidade de crença. A vontade de

crer pode se transmutar em categorias diversas, independentes da conotação

26 O corpo como túmulo da alma, significa que o corpo e a alma são duas existências distintas. Uma existência aparente (corpo) e uma existência real (alma). O inteligível (alma) é capaz de conhecer por meio das reminiscências, e o sensível (corpo) participa do inteligível. Há uma separação entre corpo e alma, sendo o homem um misto, e não uma unidade desses dois aspectos. O aparente se altera, morre e o inteligível permanece, pois é uma realidade estável. Pensar sobre o corpo exige pensar sobre a existência, sobre a aparência, sobre a vida e a morte, sobre a finitude, sobre o tempo, sobre o sensível e o invisível. Para o filósofo, o corpo está sujeito aos males da condição humana, sobre a qual se impõe a natureza, devendo, portanto, obedecer à alma e servi-la, pois o corpo é ininteligível, multiforme, dissolúvel e jamais igual a si mesmo. Já a alma é inteligível, estável e imortal, devendo, pois, comandar e dirigir. Segundo Platão, o corpo é um obstáculo para a alma que busca a verdade. O material (corpo) é modelado, é o que recebe a essência ou forma divina, se altera e se destrói. Essa alteração é como uma resistência à informação divina, o que justifica sua destruição e morte. "Ora, a alma pensa melhor quando não tem nada disso a perturbá-la; nem a vista, nem o ouvido, nem a dor, nem o prazer de espécie alguma, e, concentrada em si mesma, dispensa a companhia do corpo, evitando qualquer comércio com ele, e esforça-se por apreender a verdade." (PLATÃO, 1987, p.66).

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religiosa. O que importa é a configuração de um sentido suposto, capaz de

preencher as lacunas das dúvidas humanas, gerando uma espécie de sentido, de

significado de sua existência, seja pelos caminhos da ciência, da política, ou até de

certo tipo de antropocentrismo. O ser humano sempre criou seus “ídolos”, na

tentativa de saciar a sua vontade de encontrar, ou mesmo atribuir um sentido para

tudo que existe em sua vida. E, nessa busca de sentido, ele sai de si mesmo e vai

para além dele, no caso, para uma dimensão transcendente, vista como resposta

definitiva e definidora de realidades.

O deus cristão que entra em decadência é um sintoma significativo de toda

uma sociedade, de todo um tempo histórico, que abre espaço para a consolidação

do niilismo e do próprio relativismo como resposta eficaz. A “morte de Deus”, na

interpretação valadierana, é o início da decadência do ser humano e da sociedade

contemporânea. É o deus que representa a vivência social, um deus fatigado e

desgastado, tão descaracterizado de sua essência divina, que resta a si apenas a

compaixão, como um meio de permuta pelo amor humano de que tanto necessita.

Como caracteriza o próprio Paul Valadier:

O Deus cristão foi derrubado por sua velhice – constata Zaratustra, fazendo referência explícita à morte de Deus –, se esgotou pela fadiga e a compaixão, se fechou numa relação, excessivamente estreita, de dependência amorosa para com os homens: um deus relativo aos homens [...] (VALADIER, 1982, p.455, tradução nossa).27

Dessa forma, invertem-se as posições. A humanidade não precisa de um

deus para ampará-la em sua penúria, mas é deus que precisa dela. Por isso, não é

um deus de amor gratuito, mas sim um deus que dá amor porque também dele

necessita. É um deus humanizado de tal forma, que perdeu sua peculiaridade divina.

Por conseguinte, ao se pensar a condição da relação humana e divina, não se tem

mais um ser humano exclusivamente carente do cuidado divino em sua mísera vida,

destituída de qualquer sentido. Existe, de fato, um deus que ao criar o ser humano

estabelece uma vazão do seu amor, que só encontra sentido quando se volta para o

outro além dele, no caso, o próprio ser humano.

27 El Dios cristiano se ha derrumbado por su vejez – constata Zaratustra, haciendo referencia explícita a la muerte de Dios –, se ha agotado por la fatiga y la compasión se ha encerrado en una relación, demasiado estrecha, de dependencia amorosa hacia lós hombres: un dios relativo a los hombres [...]

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A ansiedade que esse Deus-cristão tem por reconhecimento faz com que sua

existência só encontre sentido e referência ancorada na existência do próprio ser

humano. Essa compreensão separa o Deus-cristão, conceituado por Paulo, do Deus

da metafísica, o que o leva a necessitar incessantemente da presença e do amor do

próprio humano. O Deus-paulino é um deus negativo, que serve de espólio para o

incrédulo da atualidade. A própria vontade de crença, que desejou e arquitetou esse

Deus, é aquela que propicia sua derrocada, sem oferecer-lhe a possibilidade de

retorno.

A “morte de Deus” se revela como um choque diante da pretensão monoteísta

de ser a única religião capaz de fundamentar a vida no divino. Dessa forma, Paul

Valadier (2009) sugere que, em Nietzsche, a crítica voltada para o dualismo

metafísico defendeu a existência de dois mundos separados, mas concomitantes.

Persiste a ideia da existência de um lugar onde a Verdade, a Justiça e outros

idealismos partilham a mesma pretensão que impregnou o monoteísmo, quando se

colocaram como possuidoras de uma única e legítima certeza de verdade (mesmo

acerca de Deus):

[...] já que a afirmação de um mundo do Ideal que seria mundo de Verdade, de Bem, de Justiça, por diferenciação e negação do sensível, não é fundamentalmente diferente do gesto das religiões monoteístas pelo qual se pretende apoderar-se da realidade em seu fundo e expressar sua natureza. Platonismo e cristianismo se unem numa idêntica e ilusória pretensão de dizer a Verdade e de algum modo de dominá-la. (VALADIER, 2009, p. 300).

Dessa forma, as religiões que se formaram por esse eixo elaboraram – em

suas constituições básicas – maneiras diversas de se apossarem da concepção de

divino, tornando-o propriedade privada e exclusiva. Porém, ao fazê-lo, as religiões

acabaram por destruir, ou mesmo matar, o divino e seu referencial dentro das

sociedades. Exatamente devido a esse fator, apenas após a morte das religiões é

que se tornou possível a ressurreição do conceito de divino, sem as manipulações

de antes. Para Paul Valadier (1982), a postura nietzscheana justifica seu ateísmo,

capaz de preservar o pensamento religioso, sem que com isso tenha de se render à

formatação a que as religiões submetem sua noção de divino e de divindade.

Enfim, mesmo discutindo diversas possibilidades para o desafio que se tornou

o aforismo da “morte de Deus”, Paul Valadier compreende, assim como Nietzsche,

que a discussão crescente de tal problemática só faz gerar novas vertentes de

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discussão e de pensamentos. Uma das dificuldades desse exercício de pensamento

é abandonar as amarras formuladas pelo senso comum., amarras que insistem na

natureza pré-conceitual de aprisionar o aforismo nietzscheano a uma simples

adesão a um tipo radical de ateísmo que pretende eliminar a divindade da história

humana, tal qual se tenta extrair um tumor maligno. Paul Valadier entende a

subjetividade que o evento da “morte de Deus” possui ao afirmar

Que a aniquilação da crença no Deus cristão provoque crises temíveis e uma desestabilização de todas as nossas instituições não significa que para alguns, pelo menos, a afirmação daquilo que é em sua profundidade infinita não seja fonte de alegria ou não se aproxime de um certo tipo de salvação [...] (VALADIER, 2009, p.305).

Por conseguinte, tal qual foi afirmado acima, a “morte de Deus” pode assumir

diferentes facetas, de acordo com as interpretações que se podem atribuir a esse

evento. Assim, é importante trilhar o itinerário que revela a consequência da “morte

de Deus”, não só dentro da estrutura cristã, como também na estrutura social do

ocidente, na qual esse problema se revelou de modo tão fecundo e eloquente.

Contudo, não basta saber da existência de um pensamento contemplativo da “morte

de Deus”, visto que pode ocorrer uma série de situações que impeça a real visão de

um mundo que não mais se garante na existência de uma realidade transmundana.

O próprio Paul Valadier (2009) questiona a capacidade nietzscheana de retorquir

acerca das consequências que o seu aforismo gerou no âmago da sociedade

ocidental e como essa sociedade se portou diante de tal situação, ao perguntar:

Não vislumbrou ele mesmo a longa duração da sombra de Deus e os riscos de idolatria que poderiam se seguir, incluindo a alienação de si entre as mãos de gurus implacáveis, novas formas do padre ascético, tanto mais temíveis que passarão por emancipadas das antigas crenças? (VALADIER, 2009, p.306).

Sendo assim, qual diferença fundamental o aforismo nietzscheano pode

trazer para a questão religiosa que antes não tenha sido chamada à discussão? Não

seria esse momento apenas mais uma etapa na transição que antecedeu a todas as

mudanças paradigmáticas ao longo da história? Certamente, a aniquilação da

presença de um Absoluto não significa, de modo manifesto, a ascensão da

humanidade., já que compreender a relação humano-divino não pode, de modo

algum, supor a perda de qualquer um dos lados, lembrando que um dá suporte

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esustento ao outro, de modo constante na história ocidental. As consequências

geradas pelo anúncio da “morte de Deus” é o tema que merecerá tratamento a

seguir.

2.3. CONSEQUÊNCIAS DO PÓS-“MORTE DE DEUS”

A “morte de Deus” se revela como um choque diante da pretensão monoteísta

de ser a única religião capaz de fundamentar a vida no divino. Tornou-se

fundamental compreender que a crítica constituída por Nietzsche não atinge

somente a religião cristã, mas se dirige, principalmente, a ela. Sem dúvida, a crítica

também alcança todo o tipo de religiosidade que supõe a pretensão de ser o único

caminho de salvação e libertação de qualquer um que busque nela se determinar.

Isso porque, na essência do ser humano, implantaram-se os caminhos do medo e

da solidão, que ele deveria evitar a qualquer custo. Ignorar essa advertência é

condenar-se à designificação total de seu ser no mundo, seja no que vive ou no que

pode, eventualmente, alcançar. A qualificação do “deus morto” se revela como

aquela baseada não apenas na ideia recorrente sobre deus, mas em uma

supervalorização do ideal divino, que sustentou toda sociedade ocidental. Segundo

Paul Valadier,

O grito do exaltado se eleva, em efeito, em uma época original: o Deus morto é esse deus mentiroso, ligado aos necessários erros das épocas da barbárie; mas o afundamento da mentira deixa em liberdade o sem-limite da realidade.28 (VALADIER, 1982, p.462, tradução nossa).

As religiões haviam, portanto, elaborado – em suas constituições básicas –

maneiras diversas de tomarem posse do divino, tornando-o propriedade privada.

Porém, ao fazê-lo, as religiões acabaram por destruir o divino e seu referencial

dentro das sociedades. Exatamente devido a esse fator, apenas após a morte das

religiões é que se tornou possível a ressurreição do conceito de divino, sem as

manipulações que antes se fizeram. Com a “morte de deus”, decreta-se a morte da 28 El grito del exaltado se alza, en efecto, en una época original: el Dios muerto es ese dios mentiroso, ligado a los necesarios errores de las épocas de barbarie; pero el hundimiento de la mentira deja en liberdad el sin-límite de la realidad.

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religião cristã, que garantia sua existência e permanência na história, graças a toda

necessidade fundamental do próprio Deus, na condição de determinador do que

deve ou não acontecer.

Ao se questionar acerca da influência da “morte de deus”, pergunta-se a

respeito de seus efeitos sobre as religiões propriamente ditas. Com essa pergunta,

busca-se descobrir quais eram os elementos que se tornaram fundamentais para a

manutenção do cristianismo, ao longo da história. O cristianismo trouxe, em seu bojo

de ideologias, a formulação da fraqueza e do ressentimento como fundamentos

essenciais à sua manutenção cotidiana. A “vítima” não é o “objeto” da compaixão,

mas o é aquele que dela se compadece. Em estados de compadecimento, diminui-

se a vontade de poder, de força. Assim, o ser humano se fragiliza e passa a

necessitar da compaixão alheia para garantir sua sobrevivência. A compaixão é um

mal porque vem da fraqueza, diminuindo a capacidade de força do outro. Por isso,

ela se situa em oposição aos afetos tônicos, isto é, contrária à vontade de poder, de

força, que é capaz de elevar a si mesma. Por isso, a religião cristã, assim como o

budismo, acentua a necessidade da fraqueza como o fundamento da concepção

religiosa, como fundamento de uma falsa vontade de poder, que em nada eleva o

espírito humano, já que se disfarça em sentimentos de compaixão e de

ressentimento:

Onde, de alguma forma, declina a vontade de poder, há sempre um retrocesso fisiológico também, uma décadence. A divindade da décadence, mutilada em seus impulsos e virtudes mais viris, torna-se por necessidade o deus dos fisiologicamente regredidos, dos fracos. (NIETZSCHE, 2007, p. 22).

Ao se constatar, na atualidade, uma busca de sentido e de significado para a

vida, capaz de preencher as necessidades humanas, confronta-se, no mesmo

contexto, com uma aceleração constante da decadência, vista como possibilidade

de instauração do niilismo, entendido aqui como lógica da contemporaneidade.

Dessa forma, o diagnóstico da “morte de deus” trouxe uma profunda reviravolta na

concepção de mundo e de vontade de poder, já que a partir dela se abandona a

dependência de um absoluto que tudo justifica. Por meio desse diagnóstico, o ser

humano se dispõe a encontrar a si mesmo, não mais dependente de uma realidade

extramundana, mas vinculado uma realidade intrínseca ao próprio ser. Não

obstante, a sobrevivência do cristianismo pode se prolongar graças à possibilidade

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que ele oferece de sobrevivência, de resistência a um mundo que se revela sem

referenciais suficientes, capazes de preservar o ser humano diante de um mundo

ameaçador e, por vezes, destrutivo da própria identidade desse ser.

Pura ilusão é acreditar, de fato, que o cristianismo tenha sido aniquilado com

a concomitância da “morte de Deus”. Essa percepção se efetiva porque ele se

transmuta em realidades outras – não necessariamente religiosas – capazes de

manter ainda o âmago religioso, do poder de crença (decadente) que antecede uma

lógica da fraqueza, da dependência, tão presente em uma sociedade baseada em

um mundo transcendental,

[...] a morte de Deus dá acesso ao infinito sem limites que a vontade de crer aprisionava em umas fronteiras demasiado humanas. Inclusive Cristo, que sem dúvida havia pressentido o sentido do sim sem reservas, é um carcereiro na medida em que a tradição faz dele um Salvador. (...) A morte de Deus, ao tornar impossível a fé, abre os cárceres que são as convicções, com algo que, sem dúvida, o medo aos riscos da liberdade não obrigue a prender-se em novos cárceres; e por esse motivo o terror do exaltado, o mesmo que o inconsciente dos incrédulos, é o terreno propício para as idolatrias modernas que renovam a velha crença [...]29 (VALADIER, 1982, p.456, tradução nossa).

É fato que o ser humano sempre se ateve a construir novos ídolos, em

substituição aos velhos ídolos e objetos de idolatria, que o acompanharam ao longo

da história. A configuração do cristianismo assimila, condensa uma constituição

moral. Essa constituição está essencialmente propensa a gerar limites de ação e de

julgamento das ações do próprio humano frente ao mundo. Isso porque o homem

sempre se mostrou incapaz de decidir por si mesmo, ao ter que julgar a si e aos

outros pelas ações praticadas, sem um referencial que o sustente e o justifique.

Desse modo, a moralidade é advinda de toda uma estrutura baseada na crença em

um Deus, capaz de punir os que não seguem seus preceitos morais, bem como

recompensar aqueles que os seguem. Esse rigor moral é capaz de sustentar toda

uma geração ocidental, constituída sob um ponto de vista idealista insuperável.

Mesmo porque o mérito (ou demérito) do cristianismo está na humanização

29 [...] la muerte de Dios da acceso al infinito sin limites que la voluntad de creencia aprisionaba en unas fronteras demasiado humanas. Incluso Cristo, quien sin embargo había presentido el sentido del sí sin reservas, es un carcelero en la medida en que la tradición hace de él um Salvador. (...) La muerte de Dios, al hacer imposible la fe, abre las cárceles que son las convicciones, con tal de que, sin embargo, el miedo a los riesgos de la libertad no obligue a encerrarse en nuevas cárceles; y por este motivo el terror del exaltado, lo mismo que el inconsciente de los incrédulos, es el terreno propicio para las idolatrias modernas que renuevan la vieja creencia.

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demasiada de Deus. A partir de um dado momento, não existe mais o

reconhecimento da divindade como aquele ser digno de louvor e admiração. O que

passa a se configurar é um assemelhamento entre a divindade e aquele que a louva

e idolatra. Esse fato pressupõe uma

Aniquilação que não é provocada pela soberba humana, que de repente se punha à frente de Deus, mas pela impossibilidade, daí por diante, de aderir a uma imagem de Deus ou a uma concepção “humana, demasiado humana”, na qual o homem não encontra mais uma realidade diante da qual possa louvar e cantar, mas que só o remete à imagem de seu próprio esgotamento ou de sua fadiga. Desmoronamento provocado pela educação moral cristã, que aviva a consciência e lhe torna impossível, finalmente, a adesão a um Deus que, tornado demasiado humano, perdeu seu caráter divino. (VALADIER, 2009, p.298).

Após a “morte de Deus”, o problema passa a ser a tentativa de se evitar o

ressurgimento ou o “reavivamento” da antiga crença sob novas formas, capazes de

reconduzir o ser humano a um mesmo universo metafísico (tal como formulado por

Heidegger anteriormente), desprovido de qualquer sentido, capaz de ser

questionado, possível de ser reconstituído, com base numa realidade

essencialmente humana. Seja de modo religioso, político ou científico, o prisma da

vontade de crer pode se manifestar sob a camuflagem de qualquer um deles.

Contudo, a “morte de Deus” é de responsabilidade também do cristianismo

que se cristalizou sob a insígnia de uma idealidade incapaz de ser alcançada pelo

ser humano, como uma realidade além dele mesmo. Com o fim do cristianismo,

pode-se, constantemente, constatar uma profunda perda do ser humano de si

mesmo, já que o futuro da humanidade está sempre em jogo. Dessa forma, a

humanidade não cala somente o referencial de sua moral, de sua conotação

essencial sobre si mesma, mas também sobre o mundo em que vive. Por isso, Paul

Valadier, ao considerar a relação da “morte de Deus” com o futuro da própria

humanidade, propõe que:

A morte de Deus é tanto o resultado quanto uma tarefa. Tarefa tal que, não realizada, o futuro da humanidade estaria em risco. É por isso que a eutanásia do cristianismo exige uma renúncia, ou ainda necessita que os homens precisam ter acesso à saúde. Se nada é proposto como substitutivo da interpretação cristã que tenham o peso dela, podemos esperar as piores aberrações: a fuga em todo tipo de excessos (drogas, erotismo, anarquia) ou o colapso no niilismo decadente (suicídio, desespero, budismo). O que

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pode tornar-se o homem depois do cristianismo?30 (VALADIER, 2009, p.522, tradução nossa).

Mesmo com o anúncio da “morte de Deus”, Nietzsche observa que os

homens se perguntam sobre qual é o sentido da vida, do mundo, já que,

notoriamente, sem a presença do divino formou-se uma lacuna. Sendo o homem um

animal cansado da vida e que necessita encontrar um alívio, ele transfere suas

esperanças para outro mundo, onde poderá gozar a felicidade que parece

impossível nesse plano. Prefere o nada à falta de sentido algum. Sendo assim, o

que adoece o homem é a falta de um motivo para sofrer. O que essencialmente está

em jogo na interpretação ascética do mundo e da vida é sua perspectiva de valor

diante da “vida” e de tudo aquilo que faz parte da vida dos homens, a natureza, o

mundo, o devir. Aqui, a vida vale como uma ponte para outra existência. A longa

história da moralização surge de uma vontade que se volta contra a vida e contra si

mesma, tendo como consequência a doença, a perda de sentido, o niilismo.

Criou-se um novo conceito de ser humano, o de um animal domesticado e

doente, que não tem forças para suportar a vida em seu movimento contínuo, tal

como ela realmente se apresenta, isto é, sem as atenuantes que possibilitam a

recepção das idealidades sem esforço algum. Por isso, os homens, esgotados, só

querem a felicidade, o repouso, aquilo que não é difícil. Já não são capazes de criar.

Falta-lhes a força e o vigor para enfrentar a vida em toda sua crueldade e

sofrimento. O homem é um animal doente. O nome dessa doença? Relativismo. A

religião da compaixão domesticou o homem com o argumento de civilizá-lo, e hoje

ele espera pela morte, a fim de alcançar a sua redenção no nada!

Paul Valadier (1982) considera que o cristianismo se concentra em uma tarefa

específica, isto é, reforçar no indivíduo a sua capacidade de superação. Deseja

torná-lo capaz de exercitar a sua capacidade de superação, isto é, ser capaz de

abandonar as suas relações baseadas apenas no individualismo, marca da

contemporaneidade, e, por conseguinte, também superar o relativismo. Essa

superação significa assumir, segundo a leitura valadierana de Nietzsche, a

30 La mort de Dieu est tout autant une conséquence qu’une tâche. Tâche telle que, manquée, l’avenir même de l’humanité serait em question. C’est pourquoi l’euthanasie du cristianisme impose un renoncement, ou encore necessite que l’homme accède à la santé. Si rien n’est proposé que fasse pièce à l’interprétation chrétienne et qui ait le poids de celle-ci, on peut s’attendre aux pires aberrations: la fuite em toute espèce d’excès (drogue, érotisme, anarchie) ou l’effondrement dans le nihilisme décadent (suicide, désespoir, boudhisme). Que peut devenir l’homme après le christianisme?

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dimensão de um domínio de si mesmo, em detrimento de uma postura escravizada,

fraca, plebeia, que o torna incapaz de se superar ou de superar seus limites

imanentes. Por isso, o denominado fim do cristianismo encerra uma imagem de ser

humano que foi, por muitos séculos, construtora de sentido e de significações. O

empecilho dessa problemática advém do fato de que esse mesmo cristianismo, que

encerrou o conceito anterior de ser humano, é base para a construção do novo

conceito que se torna presente. Como sinaliza Paul Valadier:

O fim do cristianismo encerra uma imagem (desfigurada) do homem, mas abre uma era nova. Por esta razão, a genealogia da vontade que quer ainda o cristianismo, apenas adquire toda sua configuração, depois de ajudar a discernir no presente o que pesa inconscientemente sobre ela e a torna prisioneira do passado, se permite discriminar os contornos de uma imagem futura do homem.31 (VALADIER, 1982, p. 491, tradução nossa).

O Cristianismo foi abalado pelo diagnóstico de Nietzsche, chegando mesmo a

pensar em seu fim total e pleno. Vive-se, até hoje, um período de luto que se

perpetua, de geração em geração. Afinal, como se pode pensar na possibilidade de

reação do ser humano diante desse fato? Fica ele paralisado no tempo e no espaço,

aguardando uma definição que possa ser assimilada por uma nova ideologia?

Exatamente em que aspecto, a “morte de Deus” traz vantagens e contribuições

efetivas para o ser humano em sua pretensa epopeia de viver e assumir uma vida,

que nem sempre é aquela que desejava ou idealizava? Segundo Paul Valadier

(1982), a concepção ascética consiste em paralisar a vida em um falso movimento

de reflexão, em que ela se depara com a anulação de si mesma. A solução é

confrontar essa vida destituída de movimento próprio, passiva com tudo que lhe

acontecia, em choque com uma vida reativa, capaz de se impor diante dos

acontecimentos e situações sem que com isso tenha que adotar uma simples

submissão. Por isso, Paul Valadier compreende a existência de uma profunda

artimanha na constituição de confrontação, assinalada por Nietzsche:

A astúcia da negação consiste em colocar a vida contra a vida, em voltar seu poder contra ela mesma; daí o círculo infernal em que o sacerdote encerra seus fiéis. Este círculo constitui um sistema de defesa de uma vida

31 El fin del cristianismo clausura una imagem (desfigurada) del hombre, pero abre uma era nueva. Por esta razón, la genealogia de la voluntad que quiere todavia el cristianismo sólo adquiere toda su configuración, después de ayudar a discernir en el presente ló que pesa insconscientemente sobre ella y la hace prisionera del pasado, si permite discriminar los contornos de uma imagen futura del hombre.

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degradada contra a vida, mas é também um meio de conservar a vida e, sobretudo, de conservar-se nela.32 (VALADIER, 1982, p.492, tradução nossa).

Acima de todo tipo de vontade está a vontade de poder, que se sobrepõe à

vontade de verdade, até mesmo no escravo. Afinal, a vontade de poder se traduz

em uma vida real, incapaz de se reduzir a uma coisa qualquer, até mesmo à

circunstancialidade da própria verdade. Dessa forma, o ser humano alcança o

caráter de ser um homem distinto, capaz de superar todas as modalidades do que

neste tempo moderno se descreve como sendo um homem, mas que na verdade

não é senão uma mera marionete de forças extramundanas. Paul Valadier (1982)

traz a reflexão acerca da pretensão humana de viver para além de si mesmo, que

serve apenas para destruir o seu ímpeto de uma vida reativa e imbuída pelo devir.

Porém, isso não significará o abandono do mundo em que se vive, mas justamente o

contrário. Ao tomar esse posicionamento, evoca-se o mundo como responsabilidade

própria, ou seja,

Não aprisiona nem em uma experiência única, nem no mutismo, não convida nem à nostalgia do que tem tido lugar uma vez, nem ao culto do que se tem imposto, abre à poesia, porque conduz a ver o mundo de um modo distinto.33 (VALADIER, 1982, p. 505, tradução nossa).

Compreendida a distinção do mundo que sempre o situa além dele mesmo, é

necessário formular uma nova concepção do divino, capaz de sustentar e abranger

a relação com esse novo mundo distinto das demais concepções de mundo que se

formularam ao longo da história, principalmente, da história ocidental. Dessa forma,

o resgate de Dionísio da cultura grega significa a mudança radical em relação a um

Deus-cristão que se firmou na construção sobre a fraqueza humana da piedade:

[...] enquanto é impossível não ouvir o eco de uma experiência pessoal do divino e sua revelação, e em segundo lugar, enquanto está organizado em torno da declaração tripla (no início, no meio e no fim) sobre a forma

32 La astucia de la negación consiste en hacer jugar a la vida contra la vida, en volver su poder contra ella misma; de aqui el círculo infernal en que el sacerdote encierra a sus fieles. Este círculo constituye un sistema de defensa de una vida degradada contra la vida, pero es también un medio de conservar la vida y sobre todo de conservarse em ella. 33 No aprisiona ni en una experiência única ni en el mutismo, no invita ni a la nostalgia de lo que ha tenido lugar una vez ni al culto de lo que se ha impuesto; abre a la poesia, porque conduce a ver el mundo de un modo distino.

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diversificada das possibilidades do divino (...). Não deus do espírito torpe, senão deus sutil.34 (VALADIER, 1982, p.519, tradução nossa).

Sendo assim, o conceito de divino não mais se enquadra em uma pura

abstração de um ser superior, capaz de pôr e dispor as vidas e histórias dos seres

criados. Mais do que isso, a divindade não se tornou apenas julgadora das ações

das pessoas ou de suas histórias, ela passou a ser questionadora daquilo que o ser

humano cria de si mesmo e do mundo à sua volta. Paul Valadier ratifica a colocação

nietzscheana, ao evidenciar “[...] que situa o dionisíaco como a resposta ao

cristianismo, e não uma resposta teórica, mas experimental [...]”35 (VALADIER, 1982,

p.523, tradução nossa). Contudo, apenas mudar a figura que sustenta a perspectiva

divina seria pouco. Por isso, não basta reformular uma nova figura de divino, mais

atraente ou mais necessária do que aquela que a precedeu.

Assim, a crítica de Nietzsche sobre o ídolo é, na verdade, uma crítica de todas as mediações pela qual o homem acredita poder se dar uma realidade mais real do que a realidade trivial, um mundo mais verdadeiro do que aquele da contradição e do equívoco.36 (VALADIER, 1979, p.41, tradução nossa).

Paul Valadier salienta, portanto, que a escolha nietzscheana por Dionísio é

muito mais do que apenas uma simples figura representativa da esperança ou

desesperança de toda a humanidade, vai além de qualquer uma das antigas

fórmulas que antes desenhavam o contorno do divino:

Como 'Dionísio' indica uma atitude fundamental, também é possível tê-la de volta hoje. Por esta razão, esse termo procede da simbólica. Não se pode, portanto, ir do termo à atitude, mas o termo deve ser lido com a ajuda da atitude, mas tem que ler o termo com a ajuda da atitude acima mencionada e definir a atitude dentro do termo.37 (VALADIER, 1982, p.522, tradução nossa).

34 [...] en cuanto que es imposible no oír en el eco de una experiencia personal de lo divino y de su revelación; en segundo lugar, en cuanto que está organizado en torno a la triple afirmación (al comienzo, en medio y al final) sobre la forma diversificada de las possibilidades de lo divino (...). No dios del espíritu de torpeza, sino dios sutil. 35 [...] que sitúa lo dionisíaco como la respuesta al cristianismo, respuesta no teórica, sino experimental [...] 36 Ainsi la critique nietzschéenne l'idole est en réalité une critique de toutes les médiations par lesquelles l'homme croit pouvoir se donner une réalité plus réelle que la réalité triviale, un monde plus vrai que celui de la contradiction et de l'équivoque. 37 Como ‘Dionísio’ indica una actitud fundamental, es posible también hoy volver a tenerla. Por esta razón, este término procede de la simbólica. No se puede, por tanto, ir del término a la actidud, sino

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A escolha de Dionísio nasceu da multiplicidade de faces e de possibilidades

que essa figura oferece. Não se atém meramente a cumprir normas ou mesmo

modalidades, mas sim possibilitar a construção de sentidos diversos, de acordo com

a possibilidade do ser que desenvolve. Não é um deus negador da vida, mas sim

afirmador do viver, já que através dele é que a vida flui de modo genuíno e

autêntico. Ou, como afirma o próprio Valadier:

[...] Dionísio é problemático, ou seja, questionável, misterioso como a vida mesma: problema aberto do que ninguém possui a verdade de uma vez por todas e que lhe corta as asas à pretensão de obter a verdade a qualquer custo. Em vez de exigir o servilismo de estar perto de homem por piedade, ao ponto que comece a morrer de inanição, este Deus exige ser abalado 38[...] (VALADIER, 1982, p.528, tradução nossa).

Conforme Paul Valadier (1982), o conceito do “deus-Dionísio” é confrontado

diretamente com o próprio conceito do “Deus-cristão” justamente porque Dionísio é

um afirmador da vida e não um negador. Na perspectiva do cristianismo, a morte

tem função essencial, pois justifica a importância dada ao Deus-cristão pelos seus

seguidores. Graças às perspectivas denotadas a essa divindade, o ser humano

pôde desprezar a vida, o mundo que tem agora, em nome da expectativa do outro

“Mundo” que ainda virá. Esse mundo, pensado e idealizado, é capaz de justificar

toda a dificuldade e sofrimento que o acomete. É a instituição do transmundano, já

explicitada na primeira parte deste capítulo.

O deus dionisíaco passa pela morte, já que se compreende como uma

realidade efêmera, passageira a qual, caso ceda ao desejo veemente de ser eterno,

não trará novidade alguma, apenas confirmará o que existia antes dele, no caso, o

Deus-cristão. Por isso, é fundamental compreender essa sistematização, já que o

próprio Valadier a entende como a capacidade humana de se adaptar àquilo que ele

mesmo se determina sem, contudo, ter que se prender definitivamente a um ídolo,

ou imagem, capaz de conservá-lo.

Esse mesmo Deus-cristão é severamente criticado por Valadier, ao se

constituir como um ponto de referência para a construção de sentido, já que, sem

que hay que leer el término con la ayuda de la actitud, sino que hay que leer el término con la ayuda de la actidud aludida y precisar la actitud dentro del término. 38 [...] Dionísio es problemático, es decir, cuestionable, misterioso como la vida misma: problema abierto del que nadie posee la verdad de una vez por todas y que le corta las alas a la pretensión de conseguir la verdad a cualquier precio. En lugar de exigir el servilismo por hacerse cercano al hombre por piedad, hasta el punto de que llegue a morir de inanición, este dios exige ser abalado [...]

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ele, não se pode pensar em um sentido necessário e efetivo para essa realidade. É,

pois, assim que se apresenta a ideia moderna de Deus:

[...] vazio de seu mistério e falsamente tortuoso, para que não vigie com cuidado que seu pensamento mais abismal não possa ser esvaziado do mesmo modo de mistério por parte dos trabalhadores científicos da filosofia, ou tornar-se novamente crença [...]39 (VALADIER, 1982, p. 548, tradução nossa).

Enfim, é fundamental compreender a valorização dada à crítica nietzscheana,

por Paul Valadier. Ela não se restringe apenas a destituir o divino do seu lugar

privilegiado, mas sim em propiciar a substituição de uma realidade divina,

absolutizada em todos os seus aspectos, por uma leitura guiada pela realidade

humana. Essa releitura ocorre quando se busca possibilitar ao ser humano o seu

real papel dentro do mundo, no qual ele pode encontrar e construir seu sentido e o

seu significado. O cristianismo se colocou na berlinda do pensamento, justamente

porque negou a sua capacidade criativa e apenas se firmou como uma segurança

para certas classes sociais, que não conseguiam ir além da mera natureza de

dominação de uns sobre outros, e se baseavam em justificativas divinas e

extramundanas. Tal situação se deu com o cristianismo, idealizado pelo apóstolo

Paulo, que fez a humanidade submergir em sua própria dificuldade de superar os

obstáculos do seu cotidiano. Isso porque a sociedade se conveniou a buscar o seu

sentido além de si mesmo.

A negação do sujeito é a superação da antropologia que havia sido colocada

no centro de todos os acontecimentos posteriores à “morte de Deus”. A partir dela,

buscou-se estabelecer o que de fato havia acontecido com o ser humano,

despojado, então, de sua capacidade criativa e essencial. Exatamente por isso, Paul

Valadier (1982) compreende a questão da “morte de Deus”, como a possibilidade de

se construir um novo sentido de ser do humano, capaz de estabelecer o que esse

ser pode representar em um “novo mundo”:

A morte de Deus importa enquanto é o sinal de um naufrágio a um sentido pré-estabelecido e o signo precursor de uma nova possibilidade para a

39 [...] vacío de su misterio y falsamente tortuoso, para que no vigile con cuidado que su pensamiento más abismal no pueda ser vaciado del mismo modo de misterio por los obreros científicos de la filosofia, o transformado de nuevo en creencia [...]

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liberdade de criar-se, por fim, a si mesma sem condições prévias.40 (VALADIER, 1982, p.569, tradução nossa).

Por isso, compreender a “morte de Deus” como capacidade humana de ir

além de si mesmo é fundamental para a superação de toda a métrica ocidental

secular que remeteu todas as pessoas à busca de um transmundano, que seja

capaz de justificar as dificuldades e sofrimentos deste mundo denominado real.

Considerando essa realidade absolutizada, perdem-se as possibilidades de

compreender a multiplicidade da verdade. O diagnóstico da “morte de Deus” abre o

campo das possibilidades para a compreensão do que vem a ser uma realidade

plural sem que com isso se tenha de ficar aprisionado a apenas uma compreensão

do mundo e da realidade.

Enfim, ao constituir o diagnóstico da “morte de Deus”, através do “exaltado”

do aforismo 125 da “Gaia ciência”, Nietzsche não objetivava a difusão do fim do

cristianismo. Ele compreendia, segundo Paul Valadier, que esse diagnóstico ia além

do ateísmo, já que se voltava para todas as realidades que tentavam se estabelecer

como verdades absolutas, congelando a transformação constante da realidade. A

crítica nietzscheana ocupa-se da reorganização do mundo em si mesmo, não se

ancorando em uma realidade extramundana, ou seja, para além desse mundo onde

se situa. Constituindo assim o seu pensar, Paul Valadier (1982) detecta que

Nietzsche busca o refinamento do conceito que o ser humano faz de si mesmo,

afirmando a própria vida todo o tempo. Nesse sentido, a afirmação da vida não

significa apenas uma suposta “vida plena” (tal como remetem os textos

neotestamentários que fundamentaram o cristianismo), mas lança-se, aqui, o seu

objetivo em um mundo que há de vir. A afirmação da vida se dará, de modo

autêntico, por meio do reconhecimento da multiplicidade, de uma relação constante

de perdas e ganhos; enfim, de um movimento próprio que institui o “devir” como

realidade primeira e última do que o ser humano realmente é.

Desse modo, essa nova concepção de vida trouxe à tona as diversas

possibilidades de se pensar as escolhas no campo prático da moral. Isto é, ao

questionar as diversas possibilidades de uma suposta instituição de verdade,

questiona-se não só a religião, a metafísica, a ciência, mas também e,

40

La muerte de Dios importa en cuanto que es el indicio de un hundimiento del recurso a un sentido pre-estabelecido y el signo precursor de una nueva posibilidad para la liberdad de crearse por fin a sí misma sin requisitos prévios.

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principalmente, o campo das escolhas morais. Nesse campo, busca-se

incessantemente um ponto de referência sólido e único, que seja capaz de garantir

uma segurança ( ou pelo menos obter a sensação de segurança) naquilo que se

escolhe. Por isso, o próximo capítulo convidará a essa reflexão acerca da “morte de

Deus”, da instituição de um suposto relativismo no campo da moral e de suas

variações como possível solução para escolhas, dentro da perspectiva

nietzscheana, compreendida por Paul Valadier.

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3. RELATIVISMO E MORAL NA PERSPECTIVA VALADIERANA

Falar da consciência moral consiste, na realidade, em abordar a própria natureza da vida moral no seu ponto central: a decisão, ou seja, a opção que uma pessoa faz de se empenhar num ato que assume de maneira a poder dar contas dele perante si, tal como perante outrem, e perante Deus, se for crente. Opção precária, sempre arriscada e difícil, e é exatamente por essa razão que, através da questão da consciência é abordado igualmente um problema antropológico importante. Que se passa com esse ser, o Homem, não inteiramente programado na sua conduta, condicionado de múltiplas maneiras mas de tal modo que, na base destes diversos condicionamentos, se lhe impõe, inevitavelmente, a necessidade de optar entre possibilidades e, portanto, de escolher o que parecer mais sensato, ou menos perigoso? (Paul Valadier)

O relativismo é considerado por Paul Valadier (1994) como um elemento que

favorece, intensamente, os desvios em cada uma das ações dos indivíduos. Desse

modo, o relativismo acaba por ser a manifestação contemporânea do niilismo

anunciado por Nietzsche na modernidade. Justamente, onde as normas não são

suficientes para satisfazer a busca constante do ser humano por si mesmo, é que o

relativismo assume as principais diretrizes das escolhas humanas. Neste capítulo,

serão pensados os possíveis resultados que o relativismo, como manifestação

niilista, trouxe para a moral. Na verdade, é importante ressaltar que seria necessária

uma ampla produção apenas para rascunhar um problema tão importante para a

vida humana, em todos os seus aspectos. Essa discussão tornou-se ainda mais

fundamental a partir do aforismo 125 da “Gaia ciência”, que instituiu um grande vazio

na vivência da humanidade, tirando dela aquilo que se julgava essencial à

manutenção da vida, em todos os campos e sentidos. Para pôr em cena as

reflexões que ora adquirem importância nesse trabalho, serão utilizadas algumas

obras de Paul Valadier que destacam a problemática da moral e buscam construir

uma reflexão acerca dessa temática.

Paul Valadier (2000) alerta o ser humano quanto à sua natureza de crença,

além das expectativas morais, já que, mesmo na ausência dessas expectativas, o

homem reorientará seus olhos para aquilo que interessa, pois

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[...] mesmo quando os grandes sistemas morais e religiosos manifestassem a sua ruína, cada um de nós teria de se orientar na existência, e como fazê-lo sem procurar, encontrar ou criar, na medida do possível, referências e pontos de orientação? Assim vai a vida moral prática, que despreza a maior parte do tempo à especulação e às suas perplexidades. (VALADIER, 2000, p.9).

O ser humano sempre viveu à sombra da existência de um referencial seguro

onde pudesse apoiar suas decisões, suas escolhas. Por isso, é uma sensação

completamente estranha a qualquer um ver-se repentinamente sem o referencial do

Absoluto. O homem não pode ficar à deriva de sua própria vida, sem um caminho,

ou um lugar de chegada. Para viver uma vida que possa ter sentido e significado, é

essencial que cada um assuma o controle e a determinação de si mesmo. Ainda que

isso signifique a superação e o consequente abandono daquele ou daqueles que se

constituíram, durante muito tempo, como eixos fundamentais de equilíbrio da vida de

cada pessoa, onde quer que ela esteja. O niilismo causou a perda dos referenciais

mais essenciais da humanidade, que passou a ter de se guiar por aquilo em que

acreditava e não apenas pelo que, de certa forma, chegava-lhe de fora.

O niilismo se modificou ao longo da história da humanidade, manifestando-se

de diversas maneiras. Na contemporaneidade, passou a se manifestar como uma

fonte de relativismo, que, em última instância, traduz-se como a mesma nadificação

de tudo que existe. Nadificar passou, então, a significar relativizar, de modo a não se

ter nenhum tipo de referencial, com

[...] relação ao facto de os problemas trazerem consigo novas perspectivas sobre o bem, sobre a incerteza da acção (sic) numa sociedade moderna, tudo o que experienciamos quotidianamente em relação à fragilidade das normas ou ao conflito praticamente insuperável dos valores, fragiliza a consciência e a angústia. Raramente se pode evitar ou demorar a agir, já o dissemos; se as referências desaparecem, como poderemos orientar-nos devidamente: como podemos educar os nossos filhos, e em que bases, num contexto de relativismo? (...) A ausência de respostas seguras arrasta desordens bem conhecidas de todos, ou leva, simultaneamente, à procura de certezas. (VALADIER, 1991a, p.17).

Como já se viu, no primeiro capítulo deu-se o nome de niilismo a essa “perda

de sentido”, ao desaparecimento dos valores. Graças a essa crise que se instalou,

não só no âmbito social, como no individual, a humanidade viu-se cercada de

incertezas múltiplas e de dificuldades de construção de sentido, a partir do que ela

vive no seu dia a dia. Obviamente, as coisas mudaram. O problema, contudo, não é

a mudança, mas a sensação de falta de alicerce que ela causou. A partir daí, tudo

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pareceu despojado de sentido e de referencial, já que o Deus que tudo criou não

podia mais intervir ou mesmo contribuir. O mundo que antes era pensado como

certeza e predeterminação passou a ser obscuridade. Tal fato causou no ser

humano um profundo pesar, seguido de um pessimismo recorrente, cuja culminância

fez emergir um niilismo passivo, que aceitou tudo que lhe acontecia como se não

houvesse outra forma de agir. Segundo Paul Valadier,

A humanidade já não é mais simplesmente arrastada na sua globalidade por um mesmo destino, que convém ou conviria controlar, o que coloca desde logo uma questão moral lancinante: é possível esse controle e em que condições? (VALADIER, 2000, p.21).

Não há dúvida de que um dos campos mais atingidos pela expressão niilista

“Deus morreu” foi o da moral. A moralidade ocidental se constituiu, durante séculos,

baseando-se na crença de um ser superior, um Absoluto capaz de constituir todas

as coisas, segundo a sua vontade. Sendo assim, o ser humano vivia, ou ainda vive,

em um mundo que é, de certo modo, conferido a ele, mas que não é de sua

propriedade. Por isso, ele deve sempre prestar contas de suas ações, segundo as

regras, ou melhor, segundo os mandamentos de quem o criou e tudo lhe deu. Mas,

de repente, esse Criador lhe é tirado, e o homem passa a ter de decidir tudo

“sozinho”, desamparado de seu referencial primeiro, que sempre estava pronto a

puni-lo ou recompensá-lo. Desse modo, o ser humano se viu sozinho, sem nada a

receber por sua sensatez ou a pagar pelos seus desacertos. Além desse

regramento, a própria moral também articulou, em seus objetivos, uma efetiva

domesticação de seus instintos mais básicos e elementares. Aqui se instituiu, (em

princípio) definitivamente, a supremacia da razão, exilando de si mesma qualquer

traço animal, instintivo, ou mesmo, natural. Com a instituição do cristianismo, Deus

passou a ser o artífice da vivência social e humanista, o que corroborou para

construção de uma moral fundamentalista, isto é, absolutizadora de suas ideias, ou

como afirma o próprio Paul Valadier:

No âmbito da moral, o fundamentalismo conjuga-se com uma forte adesão ao carácter absoluto de normas imutáveis, à sua organização num conjunto de princípios restritos e definitivos; o fundamentalismo afirma encontrar em Deus o fundamento perene dos seus valores, sendo Deus visto como a pedra angular do sistema moral, ao ponto de toda a lesão ou desconhecimento dos valores ser, ao mesmo tempo, uma lesão a Deus. Moral e religião, obrigação moral de referência religiosa formam, aos seus olhos, um bloco indivisível. Deste modo, a ação moral concreta está tão

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enquadrada pelo respeito da santidade divina, pressentida através da adesão às normas e aos valores, que perde a sua faceta aleatória. Já não se trata da decisão de um indivíduo, mas é o valor, ou a norma (ou Deus) que toma a decisão pelo indivíduo, vindo fortalecer a sua vontade, ou melhor, substituí-la. (VALADIER, 1991a, p.18).

Dessa forma, segundo Paul Valadier (2000) a moral se constituiu como um

caminho obrigatório no pensamento cristão ocidental. Por isso, ao se diagnosticar a

“morte de Deus”, morre com ele a justificativa moral de se empreender as escolhas,

tendo em vista receber uma recompensa, ou mesmo, evitar uma punição. Sendo

assim, cogitou-se o fim iminente da moral, já que o seu eixo sustentador essencial

não mais existia. Por isso, a vivência humana já não mais se quantificaria tendo por

base o que se compreendia como universo metafísico. Novamente, é necessário

ratificar que muito mais do que apenas decretar o fim de uma concepção religiosa, o

objetivo nietzscheano, com o seu aforismo 125 da “Gaia ciência”, era fundamentar a

necessidade imediata da reconstrução da cultura ocidental. Por isso,

A crítica religiosa é um pivô fundamental na reconstrução da cultura ocidental, já que esta se constitui sobre a base de Atenas e Jerusalém. A tradição religiosa e sacerdotal impregna todo o pensamento. Nietzsche anuncia a lenta morte de Deus e das certezas que se apoiavam nele (verdade, fundamento, sentido). Deus não existe, nem é necessário. Antecipa-se a crise sociocultural da fé em Deus e a secularização da sociedade e anuncia (sic) uma nova aurora a partir do que é possível criar um novo tipo de homem e de cultura. (ESTRADA DIAZ, 2003, p.181-182).

É essa a perspectiva moderna em que é quase natural, no consciente

ocidental, a ausência de necessidade do divino. Mas, mesmo extraída essa

necessidade de Deus, a fé permanece e transmuta de um referencial metafísico

para outro que se dispõe a ser científico. Porém, em suas obras de moral, Paul

Valadier é muito claro ao defender que, ao contrário do pensamento de muitos, a

moral não desapareceu, não sucumbiu, mas talvez tenha caído no sono em algum

momento e retorna modificada. Por isso mesmo, a moral é desafiante. Não basta a

ela ser uma coluna irredutível de seus fundamentos, a julgar a tudo e a todos, de

acordo com seus pressupostos.

Tendo em vista esse contexto, aqui serão apresentados alguns dos princípios

fundamentais que compõem o pensamento moral da obra de Paul Valadier, levando

em conta a ação contínua do relativismo, na sociedade contemporânea atual. Para

apresentá-los de modo eficaz, é fundamental compreender como o conceito de

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consciência é importante como base para o desenvolvimento das normas morais.

Constituído esse prelúdio sobre a importância da consciência, será necessário

compreender o desordenamento moral no qual a conjuntura atual se encontra e que

é capaz de deixar o ser humano em um estado de confusão e de hesitação, mas

que não pode significar a total suspensão da ação humana. Segundo Valadier

(2000, p.09), “[...] mesmo quando os grandes sistemas morais e religiosos

manifestassem a sua ruína, cada um de nós teria de se orientar na existência [...]”.

Por fim, será proposta uma reflexão mais complexa e necessária acerca da

necessidade inevitável da própria moral. Muito mais do que mensurar esses

princípios, é preciso entendê-los como efeitos na estrutura cultural que designa a

vida ocidental. Não se podem minimizar os problemas e as dificuldades no

posicionamento dos papéis ético e moral, sem que se comprometa a capacidade

avaliativa das ações sociais. A ética se revela como um fundamento que vai além do

campo da moral, mas que nunca se distancia dela. Isso significa dizer que é possível

se pensar na moral, na ética, nos valores que nos cercam, como algo além de

simples normatizações e ideários, que sempre acabavam por petrificar as próprias

ações do ser humano.

Por isso, é fundamental, segundo Paul Valadier (1991a), pensar a moral como

possibilidade de arriscar-se, rompendo também com a cristalização de valores ou

ideários, incapaz de acompanhar o ritmo de um novo tempo, que se instituiu e vai

além de uma racionalização das ações morais. Essa nova significação que se atribui

à moral é que se pretende alcançar ao se romper com um fundamento absoluto,

para ir além de uma simples assunção de referenciais de uma época que já passou,

tal como aconteceu nos primórdios de uma modernidade, ainda contaminada pelo

exercício de dominação eclesial, que durou mil anos da história ocidental. Isto é o

mesmo que dizer, segundo Paul Valadier, da atualidade da moral, ou seja: a moral

“não se encerra, de modo nenhum, em si própria, particularmente na esfera política,

social e cultural...” (VALADIER, 1991a, p.04).

Os tempos mudaram, e a moral mudou com eles, como era de se esperar, já

que ela sempre acompanha a vida integral do ser humano, vinculada à sua cultura41.

Por isso, é fundamental compreendê-la na atualidade, até mesmo para saber se é

41 Uma referência semelhante pode ser encontrada no texto de Adolfo Sánchez Vázquez (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998).

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realmente necessária para a sociedade. Uma moral atuante não só no nível social,

mas também nas ações do indivíduo, que ao se determinar como humano e que

assume ser o artesão da sua própria história. Para Paul Valadier, a moral atual

passa a ser essencial porque não nega o ser humano, em sua atitude frente ao

mundo e seus desafios. Trata-se de uma moral que não se restringe a um conceito

edificado ao longo do tempo e da história, desconsiderando a figura principal desse

problema, isto é, o ser humano. Para isso, é fundamental se livrar dos diversos

estigmas que a moral ganhou, ao longo da história, e que acabaram por

comprometer sua fidedignidade, principalmente na sociedade atual. Como afirma

Valadier,

[...] a moral não é, ou já não é, salvo aos olhos dos adolescentes tardios que são, por vezes, certos adultos, e que assim falam dela para a rejeitarem, um espartilho de imperativos que enreda nas suas malhas apertadas a totalidade da vida social e individual. (VALADIER, 1991a, p.03).

Neste capítulo, buscar-se-á compreender a constituição do pensamento

acerca da relação entre relativismo e moral, segundo os fundamentos valadieranos.

Para tanto, primeiramente se estabelecerá o conceito de consciência e suas

variações de compreensão segundo Paul Valadier. Posteriormente, buscar-se-á

refletir a relação entre o relativismo e a moral, procurando entender a interferência

que um conceito causa no outro. E finalmente, até mesmo como uma resposta a

toda a reflexão do capítulo, dar-se-á ênfase na necessidade e na inevitabilidade da

moral, como ponto fundamental da vida e da sociedade humana. A moral assim se

institui, não só como fundamento reflexivo e teórico, como também condição

incontornável da ação humana dentro da vida social.

Portanto, o que se pretende é refletir os impactos do relativismo na moral,

inclusive sua capacidade de interferir no conjunto das ações e vivências de cada

grupo social. Obviamente, a interferência existe e acontece, mas não pode ser

simplesmente aceita e acatada pelas diversas instâncias da sociedade. É

fundamental, por isso, compreender que a moral aqui enfocada é atingida pelo

relativismo, fruto da “morte de Deus”, já compreendida no capítulo anterior. É nela

que se enfoca a compreensão dessa morte como fator fundamental de análise da

moral nos dias atuais. Analisar a moral é compreender a importância do valor na

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sociedade contemporânea. Por isso, o conceito de valor, do ponto de vista

valadierano,

[...] apresenta-se como a fonte de uma ação que não se satisfaz com a ordem das coisas ou com o curso do mundo tal como ele é; é o sinal de uma espécie de transposição (de transcendência?), já que o desejo de uma ordem melhor desestabiliza no que diz respeito a uma satisfação ditosa e farta para com aquilo que é. (VALADIER, 2007a, p.128)

3.1. O PROBLEMA DA CONSCIÊNCIA

A consciência normalmente aparece na história da humanidade como um dos

fundamentos da escolha moral. Sem esse tipo de consciência, não se pode construir

a ação moralizada. Segundo Paul Valadier (1994, p.20), “[...] a referência à

consciência moral se encontra duplamente na arqueologia da nossa civilização, visto

que se pode atestar o seu recurso quer do lado dos trágicos gregos, quer do lado do

cristianismo nascente.” Partindo do ponto de vista do senso comum, é possível que

ocorra uma forte adesão quando, buscando saber qual é, de fato, o berço das

escolhas morais, do uso da liberdade, chega-se à consciência, como resposta. O

termo consciência faz parte do itinerário geral que a determina e a coloca como um

dos polos que constituem a liberdade. Ao mesmo tempo a consciência serve de eixo

orientador da própria escolha moral. Como afirma Bouretz (1994, p.194): “[...] aposta

no homem, o fato de que a consciência deve ser formada e parece ser digna de o

ser.” 42. Com o advento da modernidade, conceitos como individualidade, razão

individual, entre outros, atribuíram à consciência um papel imprescindível na

formulação dos valores morais. Isso porque o ser humano passou a depender

somente dele mesmo nessa composição de valores. Sem um Deus ou um ponto de

referência capaz de providenciar um conjunto seguro de normas morais para as

ações humanas, a consciência se tornou o único elemento capaz de produzir uma

base segura para as escolhas morais, mesmo que voltando-se apenas para uma

negação da própria liberdade de constituí-los. Paul Valadier (1994) afirma que a

42 […] le pari sur l'homme, le fait que toute conscience se doit d'être formée et apparaît comme digne de l'être.

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métrica do “fazer o que quiser”, espalhou-se por todos os campos onde o ser

humano exerceu sua ação moral. Nas palavras do autor

A religião do século é, em relação a cada um, o direito de seguir o que lhe agradar; e isto sem limites, sem restrições, quer no que diz respeito aos deveres quer às convicções... A religião do século é a abolição de qualquer lei divina e humana, de qualquer moral e de qualquer sociedade. Não se poderia melhor assimilar consciência e fantasia, liberdade e arbitrariedade subjectiva (sic). (VALADIER, 1994, p.24)

Contudo, considerar a consciência assim não torna a tarefa de construção de

valores menos difícil. Possivelmente, essa tarefa se torna bem mais árdua e

complexa. Ou, como afirma Paul Valadier (1994), empenhar-se nela é,

verdadeiramente, a constituição de um “paradoxo”, ou ainda, de uma “provocação”.

Isso porque a consciência se revela constantemente como uma realidade frágil e

tênue, abordada constantemente por reviravoltas na própria constituição de seu

conceito e, mesmo, de sua aplicação. Por isso, mesmo sendo questionada,

constantemente, a consciência é um referencial incontornável da medida humana

para a criação de regras. Como afirma Paul Valadier,

[...] todos proclamam que a consciência não é um capricho subjetivo, um ponto de apoio instável, mas que, perante a mentira e a opressão totalitárias, constitui uma referência exigente e incoercível, difícil de viver, porém, no princípio de todo o sentido da dignidade do Homem [...] (VALADIER, 1994, p.15).

A consciência passa a ser devidamente considerada como preâmbulo de

qualquer decisão, principalmente no campo moral. Isso ratifica que o ser humano

não possui uma pré-programação, capaz de dirigi-lo devidamente em cada uma das

situações e necessidades. A sociedade, dessa forma, é um reflexo daquilo que

acontece com os indivíduos que a compõem, tanto que, na atualidade, o fenômeno

da perda de sentido da existência humana acarreta a desagregação da sociedade e

de todas as suas variações43. A moral sempre buscou se fundamentar em valores

absolutos, ou, pelo menos, em valores universalizantes, capazes de superar as

diferenças entre as culturas e alcançar um patamar possível, preservando em si

mesma as diferenças peculiares a cada cultura. Não poderia a consciência ser

43 A respeito desse tema tratou Louis Dumont em seu texto “La valeur chez les modernes et chez les autres”

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compreendida como um instrumento de dominação e de manipulação, mesmo que

seja do interesse comum de uma sociedade ou que a decisão possa se revelar

como a ideal para determinada situação. Pela consciência, o ser humano deve ser

capaz de alcançar a sua própria libertação, pois, como afirma Paul Valadier

Só ela pode conduzir a fazer atos corajosos no campo profissional, nos consultórios médicos, nos hospitais e nas empresas ou escolas, e ajudar cada um a avaliar o preço e a dignidade da vida humana, sendo a isso provocado pelo comportamento de outrem; contra as formas subtis de banalização, ou de exaltação do mal, a coberto da linguagem do bem, uma consciência firme e avisada está em condições de inflectir as tendências preguiçosas para o conformismo e para o servilismo perante as facilidades, financeiras, carreiristas, complacentes, ou simplesmente medíocres. (VALADIER, 1994, p. 279)

Desse modo, a consciência tem uma ascensão fundamental ao refletir o

conjunto de ideais morais, buscando determinar qual deve ser o pressuposto

fundamental de uma decisão moral. Concomitantemente à elevação da condição da

consciência como critério para se produzir uma escolha moral, ocorre também o

ascenso da ideia de subjetividade. Habitualmente, produz-se uma correlação entre a

suposta extinção do Absoluto e a evidenciação da capacidade humana de

autodeterminação, o que confere a esse ser humano a capacidade de se tornar o

paradigma fundamental da Lei que, supostamente, seguirá no desenvolvimento de

sua vida.

Contudo, mesmo sendo considerada como um elemento essencial na prática

moral cotidiana, a consciência não conta com a adesão daqueles que consideram a

importância das práticas morais. Um fator inicial, para a análise dessas críticas, seria

o questionamento quanto à aptidão da consciência em demarcar e elaborar juízos

de real valor, já que a referência para fazer isso seriam os valores tradicionais,

considerados defasados em sua capacidade de resolver situações atuais,

desveladas diante da multiplicidade de normas, regras e, até mesmo, de eixos

reflexivos que os constituem. Isso significa que há uma profunda dificuldade no

estabelecimento da consciência como fundamento das escolhas morais desse

tempo, em razão da diversidade de possibilidades. Assim, como atesta Paul

Valadier

[...] moral deve constituir um conjunto coerente e estável, no qual e pelo qual o indivíduo encontra as respostas necessárias ao seu comportamento. Impõe-se que uma moral forneça, assim, um todo completo que permita

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ordenar a vida individual e conduzir a vida do grupo, tanto mais que o ser humano não encontra em si mesmo, diferentemente do animal, programas de ação bem estabelecidos e fiáveis. (VALADIER, 1994, p. 37)

A modernidade se revelou como uma realidade multifacetada, ancorada no

pluralismo e na diversidade que resultou do encontro de diferentes culturas e

pensamentos, capazes de constituir novas realidades tão complexas quanto o

próprio universo individual que cerca cada membro do “corpo social”. A

contemporaneidade, seguindo os passos antes instituídos, mergulhou de modo

definitivo na troca intensa e constante de pensamentos e fundamentos,

intensificando a troca cultural, por meio do processo de globalização, com uso de

internet, da força midiática, entre outras tecnologias. Diante desse quadro, o

pluralismo que se funda tem um valor fundamental, pois possibilita o pensamento

voltado para uma comunhão de ideais e das ideias, que constroem um sentido maior

do que a própria individualidade pessoal ou grupal. Se antes havia uma

homogeneidade, capaz de constituir uma igualdade de relações dentro de um

mesmo núcleo social, ultimamente, deve-se constituir uma vida voltada para a

aceitação da multiplicidade, da heterogeneidade. Por isso, esse pluralismo traz uma

referência fértil, mesmo com os problemas que podem ser gerados em

consequência dele, tal como o relativismo exacerbado e absolutizado. Ainda assim é

um passo importante no desenvolvimento da humanidade como um conjunto. Paul

Valadier (1994) ressalta esse quadro característico desses tempos, sem omitir o

valor que a atual diversidade tem nela mesma, ainda que ela se torne um desafio

para o desenvolvimento da consciência. Em sua pressuposição teórica,

[...] a aceitação amplamente partilhada segundo a qual a tolerância do pluralismo é um valor infinitamente precioso, porque é fonte de coabitação pacífica, muito mais do que a imposição por uma religião ou por um Estado de uma unanimidade ideológica e ética, constitui o dado de base de qualquer vida humana possível nas nossas sociedades. (...) Conduz a não identificar esta diversidade com uma decadência, nem sequer com um relativismo condenável. Não se pode ignorar, evidentemente, que estas consequências existem; porém a pluralidade das éticas não pode reduzir-se, sem injustiça e sem erro, a estes efeitos preocupantes. (VALADIER, 1994, p.41)

Dessa forma, a capacidade de adesão à diversidade e o reconhecimento da

pluralidade se tornam o “visto de entrada” nos tempos modernos, propriamente dito.

Na contemporaneidade, esse novo paradigma se torna ainda mais relevante, já que

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se intensificam todos os meios de compartilhamento de ideias, pensamentos e

práticas. Segundo Paul Valadier (2000), na contemporaneidade, ocorre,

simultaneamente, a saída do bojo de certezas morais e a entrada em um modelo

moderno graças às diversidades de éticas. Por isso, um conjunto de pensadores, de

filósofos e até de religiosos passam a questionar a confiabilidade atribuída, até

então, à tradição, já que ela não conseguia mais suprir a necessidade exigida pelos

novos tempos.

É o que acontece com Martinho Lutero, que passa a questionar a viabilidade

das normas e regras da tradição católica que ele mesmo adota como sendo

essência da sua fé. Tal problemática acentua a crise espiritual que a modernidade

experimenta como uma de suas características mais marcantes. Passa-se, então, a

questionar os dogmas, instituídos pelo poder eclesial. É possível produzir uma

analogia entre o processo de questionamento das tradições, fundadas na religião,

com uma leitura filosófica. Paul Valadier (1994) apresenta o questionamento de

René Descartes44. Ele também não mais se submete aos dogmas instituídos pela

Igreja Católica, no exercício de conservação de seu poder, mas vai além de todos

eles ao estabelecer a dúvida como fundamento inalienável na constituição de

qualquer consciência que valha a pena. René Descartes buscou formulações

sólidas, capazes de indicar, de executar uma seleção entre os diversos

pensamentos, que devem servir de base para a constituição de um pensamento

consciente e fundado numa realidade humanizada. De acordo com Paul Valadier,

ele verdadeiramente

[...] se empenhou numa luta longa e dolorosa de vários anos e que, no fim, compreendeu que só o próprio sujeito podia encontrar em si mesmo, na evidência do pensamento que se pensa a si mesmo, a alavanca de Arquimedes a partir da qual se opera a triagem desejável. (VALADIER, 1994, p.46)

Por esse motivo, o filósofo Descartes, denominado “pai da filosofia moderna”,

declara a dúvida como uma das etapas incontornáveis da constituição de um

pensamento que possa ser considerado sólido e dotado de clareza, como pretende

a modernidade, livre das amarras que podem impedi-lo de viver bem. Nessa

perspectiva é que Paul Valadier corrobora o uso da consciência:

44 Descartes é enfocado na obra de John Cottingham: A filosofia de Descartes (1986).

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Perante as lacunas ou as contradições da tradição só uma consciência ardente pode conseguir encontrar a verdade que apazigua. Deve, então, afirmar-se contra dogmas ou práticas do passado julgadas deficientes e falsas. (VALADIER, 1994, p. 45).

Encontrando-se livre das amarras fornecidas por uma moralidade baseada

em uma certeza indubitável, o ser humano, “dono” de si mesmo e de sua

consciência, descobre-se diante de um vazio total de referenciais, que possam

sustê-lo em momentos de dificuldade e de morbidez. A consequência dessa

situação, segundo Valadier não é a dissolução de todos os parâmetros, mas

justamente o derrame exacerbado de ideais e posturas. A essa diversidade de

valores que procuram determinar as práticas comportamentais e de conduta, Paul

Valadier (1994) evoca o conceito de Ética. A constituição desses fatores e práticas

éticas não se dá apenas pela via da educação, que o indivíduo recebe da célula

fundamental da sociedade: a família, mas também da prática atual, experimentada

no dia a dia. Por isso, cada indivíduo, ao construir sua identidade social, produz

ligações entre as suas realidades de vida, isto é, entre seu caráter individual e seu

caráter social. Dessa forma, Paul Valadier constrói a relação entre a moral e a ética:

O nível ético é, pois, aquele em que o indivíduo é informado por costumes que tem de julgar, para lhes conferir uma moralidade que eles forçosamente não têm. E chamaremos moral ao nível onde este juízo se opera: o que devo fazer para fazer bem? O que é justo ou injusto fazer, mesmo se o meu comportamento tiver de cortar com a rotina ou os hábitos do grupo? (...) Ética e Moral são, exatamente, os dois segmentos intrinsecamente ligados a qualquer decisão reta, e é por isso que a Ética não é, de modo algum, a etapa provisória ou deficiente em relação à moral. Igualmente a moral engloba, em si, quer o nível ético quer o nível moral (a que chamaremos, depois de Kant, o nível de referência ao universal) e é por isso que o termo “moral” pode e deve reter em si os dois elementos que o constituem. Como se pode ver, o lugar de passagem entre Ética e Moral é constituído pela própria consciência pessoal; é ela que empenha um sujeito no seu ato, depois deste ter recebido a máxima da sua ação, ou o seu conteúdo, da sociedade onde vive (Ética), e de ter experimentado e sentido a moralidade (Moral). (VALADIER, 1994, p.49).

Na contemporaneidade, ocorre uma profunda reflexão sobre ética e moral.

Diante da velocidade que os acontecimentos ganharam, passou-se a conjecturar

que a moral foi suprimida do cotidiano social. Mais do que apenas se ocupar com as

causas, consequências e responsabilidades de cada escolha, a contemporaneidade

criou uma relação entre custo e benefício para determinar o real valor que cada ação

pode ter. Isso significou que a métrica atual passou a ser o mercado, sendo

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valorizadas apenas aquelas situações onde se obtém algum retorno financeiro,

econômico, nos ditames propostos por Karl Marx. Segundo Paul Valadier:

O homem não será mensurável apenas a nível (sic) da troca dos bens e das mercadorias, dos valores socialmente constituídos? (...) Que de certo modo ninguém escapa à economia de mercado (é necessário vestir-se, alimentar-se, trabalhar), mas por outro lado podemos manter-nos afastados desta economia por meio de uma relação que estabelece uma distância relativamente à regra econômica do consumo a qualquer preço ou da procura do prestígio? (VALADIER, 1997, p. 38 e 39).

Na verdade, os problemas morais nunca deixaram de existir, nunca se

ausentaram do contexto humano, no qual foram engendrados. Essa “ausência” não

se deu de modo definitivo, mas apenas em um sentido de afastamento. Tal fato

significou a possibilidade de observar plenamente o desenvolvimento de cada uma

das escolhas a serem produzidas. A suposta “ausência” significou, na verdade, uma

transmutação das novas exigências e referências, instaurando um “novo modelo”,

um novo paradigma de moral. O padrão tecnológico, típico da contemporaneidade,

serve de base para a sociedade contemporânea e não conseguiu responder a

algumas das questões essenciais da vida humana, o que, de fato, exigiu um retorno

aos fundamentos morais como uma resposta possível.

A questão moral abrange praticamente todas as áreas humanas, já que

passa, necessariamente, pelo nível das opções e escolhas, que vão do campo

individual para o campo social, como também do campo social para o campo

individual, ou seja, há sempre uma via possível no pensamento moral. Paul Valadier

retoma a questão moral ao afirmar que não há outra possibilidade razoável para se

qualificar a razão, que não a de uma constante avaliação de suas opções e das

escolhas geradas através delas. Por isso, a base moral passa a ser uma opção

plausível no questionamento das ideias, ou das práticas que poderão sucedê-la:

[...] como proceder de outra maneira, dentro do contexto argumentativo que é o nosso? Como não introduzir também em moral uma ponderação das apreciações, para evitar a falsa rigidez que poria todos os atos ou todas as posições num mesmo plano? (VALADIER, 1994, p. 263).

A moral tem o seu tempo próprio, mas nem por isso pode se constituir um

universo à parte do próprio ser humano, porque depende necessariamente desse

universo para se adaptar à busca humana em qualquer momento. Mesmo assim, a

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reflexão moral sempre dá a impressão de que é repetitiva: “... a reflexão moral

parece sempre atrasada, tanto em relação às inovações técnicas ou científicas,

como em relação às evoluções dos costumes.” (VALADIER, 2000, p.16).

Como confiar em uma reflexão moral que é considerada, como afirmou Paul

Valadier (2000), atrasada em relação ao mundo em que está inserida? Poderia ela

se adequar às constantes mudanças que o paradigma moderno impõe? As questões

morais ganham pertinência ao serem analisadas mediante a busca de uma resposta

capaz de justificar a necessidade de se fazer o bem e de se evitar o mal. Quanto

mais se amplia a capacidade humana de agir, maior será a necessidade de refletir

sobre o conteúdo da ação e de suas consequências tanto para aquele que age,

quanto para aqueles que sofrem a sua ação. A modernidade e sua razão

individualista corroboraram para a pretensão iluminista de que a razão poderia

resolver todos os problemas. Contudo, essa pretensão cai por terra, já que a

complexidade dos problemas gerados na modernidade só fez aumentar a gama de

situações em que a moral passa a ser decisiva na solução viável desses problemas.

Essa ilusão racionalista acabou atribuindo ao homem a capacidade de resolver,

priorizando a razão, qualquer um dos problemas que o atormentassem. A crítica à

razão iluminista revela-se uma auto ilusão, no sentido de que é o próprio ser

humano o gerador da razão, considerando-se invencível quando dela faz uso.

Segundo Paul Valadier (1982), Nietzsche faz o mesmo tipo de crítica a Strauss,

quando esse articula uma potencial magnitude frente a um mundo a ser descoberto,

graças à ciência, herança fundamental da razão iluminista:

Portanto, a acusação mais forte que Nietzsche dirige a Strauss é a de seu “otimismo incurável”, que, por incurável (sem distância respeito de si), está unido a uma ilusão inconsciente de si mesma.45 (VALADIER, 1982, p. 39, tradução nossa).

Caindo esse mito da razão iluminista, ratificou-se a necessidade de que a

reflexão moral é iminentemente centrada no mundo em que ela se faz. Por isso, as

questões morais se revelam como essenciais às sociedades humanas, tanto que

cada uma de suas possibilidades se mostra como uma questão de urgência. Desse

modo, elas criam uma relação de equilíbrio fundamental entre supostos ganhos e 45 Por lo tanto, la acusación más fuerte que Nietzsche dirige a Strauss es la de su “optimismo incurable”, que, por incurable (sin distancia respecto de si), está unido a una ilusión inconsciente de si misma.

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perdas de valores. Mais do que apenas constituir a vida, por meio de um mundo

idealizado, capaz de tranquilizar as aflições humanas, o que se quer é compreender

a capacidade de sobreviver em um mundo, onde a continuidade se revela na

transformação constante. Muito mais do que se prender a um inconformismo latente,

o ser humano se vê diante de um conjunto de situações universais ou gerais,

particulares ou singulares, que têm em comum a necessidade de construir juízos

capazes de sedimentar os julgamentos morais. Ao se unirem, a ação individual e a

ação em conjunto são capazes de constituir o que se denomina ação social.

Contudo, não basta apenas assumir a condição da escolha e de sua prática, é

preciso, também, compreender as exigências morais e não apenas aceitar as

consequências advindas de seus atos. O ser humano encerra, nele mesmo, a

centralidade de suas escolhas. Não é, de modo algum, a exigência de um meio

externo a ele, mas um meio que se estabelece por meio de sua ação e suas

escolhas:

Existe, sem dúvida, uma exigência moral, já que os intervenientes descobrem que, em vez de se entregarem ao decurso dos acontecimentos, devem agir; descobrem que se encontram perante um imperativo inelutável, a menos que deixem triunfar a morte, a violência ou a ruína. (VALADIER, 1991a, p.11).

A partir desse momento, o ser humano compreende os acontecimentos de

sua vida, não apenas como fardos a serem assumidos, sem qualquer

questionamento ou tentativa de autocontrole, mas como possibilidade de conduzir

seu viver, isto é, o homem determina qual direção deseja tomar, que fim deseja

alcançar. Dessa forma, há sempre novos olhares, novas definições que passam por

reinterpretações constantes. Não são apenas as interpretações que mudam, mudam

também as perspectivas de um novo homem, que deve ir para além de si mesmo,

sem sair do mundo, necessariamente. Aliás, pode-se dizer que a busca real é de

uma profunda inserção no mundo em que se vive, uma vez que o “sair dele”, até

mesmo para fazer uma reflexão, suscita um risco muito grande, capaz de isolar o ser

humano do mundo, levando-o a buscar as possíveis soluções ou possibilidades

além dele próprio. É importante esclarecer que uma realidade transmundana, que se

lança para “fora do mundo”, não está apenas sob o conceito de um mundo

inteligível, como defendeu Platão (no livro VII da República – “Alegoria da Caverna”),

mas sob a tutela de uma realidade que se encontra além de nós mesmos. Como

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ocorreu no caso da ciência e da técnica, quando ambas se nomearam como tutoras

dos conceitos humanos, inclusive dos próprios conceitos morais, já que se

caracterizam pela supervalorização do ser humano. Sabe-se que tal pretensão não

passou de um “novo mito”, uma vez que todo o otimismo gerado se revelou, de fato,

apenas como a hipervalorização de uma promessa utópica e irrealizável.

O fato é que a perda dos fundamentos que sustentavam a moral vigente

acabou por acarretar a perda dos referenciais que constituíam a base de

pensamento dos indivíduos e das sociedades. Contudo, o maior empecilho não está

apenas em uma troca de modelos ou de regras, mas na dificuldade em se assumir o

papel essencial de uma moral na vida de cada sujeito. Segundo Paul Valadier, o

fundamentalismo adere a uma moral, colocando-a como uma conjunção, assim

[...] com uma forte adesão ao caráter absoluto de normas imutáveis, à sua organização num conjunto de princípios restritos e definitivos; o fundamentalismo afirma encontrar em Deus o fundamento perene dos seus valores, sendo Deus visto como a pedra angular do sistema moral, ao ponto de toda a lesão ou desconhecimento dos valores ser, ao mesmo tempo, uma lesão de Deus. (VALADIER, 1991, p.11),

Desse modo, a referência moral se baseia em Deus, como garantia de Bem,

de Justiça e de todos os outros conceitos metafísicos. A “presença” divina, como

garantia humana de um fim que se justifique, acaba por congelar qualquer

pensamento que se situe além desse fundamento absoluto. Contrariar esses

fundamentos significará contrariar a própria divindade, sendo, então, necessário

assumir as consequências dessa rebelião. É importante dizer que essa referência

aos valores que a divindade assume para a autonomia do indivíduo é muito

poderosa, já que ele está sempre sob a tensão de contrariá-la ou não. Contudo, a

vontade humana, antes amparada pelo Absoluto, encontrou-se, de repente, solitária,

contando apenas consigo mesma.

O ser humano, portanto, teve de buscar outras fontes de referência capazes

de sustentá-lo ante as incertezas de um mundo mal situado. Na modernidade, a

moral absolutista, que até então imperava, já não é mais suficiente, mesmo porque

ela poderá se tornar uma moral que vai contra si mesma, em sua essência, ao se

impor como uma moral defensora de princípios imaculados e absolutos, ou seja, “[...]

uma moral de fato imoral, uma vez que incapaz de ajudar os homens a assumir

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humanamente a sua vida na complexidade das suas determinações.” (VALADIER,

2000, p.17).

Ocorre, portanto, um choque entre as normas morais e a legislação ética,

produzindo uma perda de referências possíveis de serem exercidas na vida social.

Para que o ser humano não se veja perdido, o Estado assume esse papel na

constituição de valores e normas a serem seguidas. O Estado, no exercício de sua

autoridade, “suspende” o problema moral e libera o uso da técnica e do comércio.

Assim, ocorre o exercício do mesmo absolutismo exercido pela teologia na Idade

Média, retomado pela razão cientista. Em qualquer uma dessas modalidades impera

a supressão da vontade individual em nome de uma vontade aristocrática de uns

poucos, que determinam o modo como serão constituídas as relações morais e

humanas.

Tudo isso é amparado pela ciência, como forma de compreensão e de

entendimento de uma nova formulação moral. Desse modo, segundo Valadier, “A

ciência, na sua forma clássica, era considerada capaz de controlar os seus efeitos; a

técnica pressupõe, igualmente, ao contrário dos comportamentos mágicos, a

antecipação daquilo que deve produzir.” (VALADIER, 2000, p.23). Por isso, a moral

cientista passa a ser aquela que se baseia na sua capacidade empírica, no

conhecimento dos fatos, através da antecipação dos acontecimentos, graças aos

seus experimentos e à sua suposta capacidade de controle dos fatos. Mas, apesar

dessa “crença”, tal como a religião, a ciência também se revelou como incapaz de

determinar o teor moral pelo qual o ser humano guiaria as suas ações e práticas

cotidianas. A ciência pode até controlar e determinar os seus experimentos e

campos de atuação, em um ambiente vigiado, mas não determina os resultados que

possam acontecer diante de certas situações, tampouco, controla, absolutamente,

determinados elementos e fatores de um experimento qualquer.

Paul Valadier assume um posicionamento crítico no tocante a essa

característica científica, que, aparentemente, também não consegue suster e nem

abonar as decisões tomadas pelo ser humano nos diversos campos de sua vivência.

Isso porque, considerando-se as determinações científicas chega a ser

[...] mesmo impossível, avaliar o seu alcance. Determinada decisão tomada em nome dos melhores princípios rapidamente revela produzir efeitos catastróficos não previstos, mas, sobretudo, é difícil estabelecer a ligação entre a decisão primeira e as conseqüências. (VALADIER, 2000, p. 25).

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Reagindo a essa insatisfação perante sua incapacidade de lidar com os

fundamentos morais, aplicados no âmbito social, a ciência impõe um conjunto de

fundamentos, desejoso de uma imposição absoluta, tal qual produziu a teologia

medieval. Porém, como defende Valadier, esse autoritarismo “[...] dissipou-se, uma

vez que conseguimos ver melhor o unilateralismo e a parcialidade de seus pontos de

vista, ainda que a tentação de uma política científica (ou moral) continue a

permanecer.” (VALADIER, 1991a, p.24). Dessa forma, entra em cena o Estado, a fim

de garantir os lugares adequados à técnica, retirando dela a responsabilidade pelo

estabelecimento dos fundamentos morais.

A moral, então retomada e reconstituída, ganhou um novo impulso graças aos

problemas que não haviam sido resolvidos, mas para os quais se esperava haver

uma solução técnica, científica. Ficaram ainda algumas questões abertas, entre as

quais, uma das principais é a questão da razão: seria ela suficiente para resolver os

problemas da moral, ou ela ainda necessitaria de algum suporte? Basicamente,

desde a modernidade, a razão por si mesma – principalmente aquela formulada

desde as origens gregas – não consegue suprir todas as necessidades exigidas pela

reflexão e pela ação não só do ser humano, mas do seu conjunto social que o define

e o influencia constantemente. É um postulado que se alicerça na construção de

uma base elementar, capaz de servir à sociedade integralmente, inclusive sob a

perspectiva de cada indivíduo. Sem uma base segura, o pensamento ético e moral é

diminuído, de modo a não conseguir atestar sua necessidade, como propõe Paul

Valadier ao constatar que a “[...] diluição social, a diluição política, a diluição moral

resultam da perda de bases (transcendentes, metafísicas, religiosas).” (VALADIER,

1991, p.32), que constituem o campo moral e ético.

Mesmo com essa dificuldade em determinar suas linhas de reflexão,

abandonar a moral, tal como vinha sendo pensada e organizada, é ainda mais difícil.

Mas, ainda assim, o ser humano passa a reconstruir a ordem moral, capaz de

redirecionar as ações de cada um rumo a uma nova concepção humana de si

mesmo. Segundo Paul Valadier, é fundamental compreender que essa nova

formulação será direcionada para os “Direitos do Homem”, baseando-se em uma

nova perspectiva de atuação do próprio humano, junto ao mundo em que vive e

atua: Sob esse prisma de análise é possível pensar que

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[...] não há nunca com toda a certeza, um “vazio ético”, em nenhuma sociedade humana. Assim, as nossas sociedades, que se pretendem muitas vezes livres de toda a moral (constrangedora) ou emancipadas de heteronomias da transcendência, acham, na realidade, sistemas de condicionamento imperiosos. Certamente, estes sistemas já não se firmam numa transcendência explicitamente religiosa, mas apóiam-se, contudo, nessa outra forma de transcendência que é o próprio social, impondo ao indivíduo maneiras de pensar e de fazer tidas como incontestáveis, inelutáveis, incontornáveis, se se quiser ser “moderno” e adaptado. (VALADIER, 2000, p.47-48).

Enfim, o que não se pode negar é a capacidade do homem de compreender-

se como um ser ligado intrinsecamente às questões éticas e morais. Essas

questões, mesmo distintas, estão intimamente ligadas, já que o ser humano articula

as duas realidades de modo a apurar as suas intenções e os seus pensamentos, de

acordo com o contexto que o compreende. Dessa forma, a relação entre ética e

moral constitui a possibilidade de um pensamento, de fato, enraizado em uma

realidade factual e não apenas em conceitos teóricos, ditos essenciais a qualquer

reflexão acerca das posturas morais de uma sociedade.

Não é de modo algum um confronto incontornável, mas a constituição de uma

série de situações, capazes de sedimentar um novo ethos, que reafirma a

capacidade humana de condução de sua vida sem a necessidade outra coisa além

de si mesmo para uma autodeterminação. A respeito dessa questão, Paul Valadier

(1994), ao discernir ética e moral, afirma que se constituem

[...] as condições da experiência moral dentro de uma espécie de sociedade saída da certeza. Ética e Moral são, exatamente, os dois segmentos intrinsecamente ligados a qualquer decisão reta, e é por isso que a Ética não é, de modo algum, a etapa provisória ou deficiente em relação à moral. Igualmente a moral engloba, em si, quer o nível ético, quer o nível moral... (VALADIER, 1994, p.49).

Por essa via de análise, constituir o pensamento ético e moral é estar em

plena disposição de aplicá-lo no meio em que se vive, lidando mesmo com as

manifestações do relativismo e constituindo uma realidade ética e moral passíveis

de experimentação, dentro da constituição da vida humana. Mesmo assim, a moral

não deixou de passar por dificuldades inúmeras, que criaram uma desordem na sua

aplicação, dificuldades com as quais era necessário conviver, assim como todos os

problemas gerados por ela no cotidiano, inclusive o choque do relativismo dentro da

ética e da moral, que serão abordados adiante, como pontos de sequência deste

trabalho.

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3.2 O RELATIVISMO PODE DESORDENAR OS FUNDAMENTOS MO RAIS?

Compreendendo a relevância da consciência para a constituição dos

fundamentos morais, é importante ressaltar que a moral passou por sérios

questionamentos, principalmente quando ela perdeu suas fundamentações

eternizadas e constituídas de modo imutável. Mas, não apenas a moral perdeu seus

fundamentos mais preciosos. O mesmo aconteceu com a religião, que teve seus

absolutismos também questionados. Abordada por inúmeros questionamentos, a

moral – que por tanto tempo se constituiu como um dos ditames essenciais da vida

humana, capaz de indicar e, por vezes, determinar as ações humanas, sem

questionamento quanto aos seus fundamentos – passou a ser constantemente

retorquida, exigindo uma constante reformulação.

Nesse sentido, a sociedade passou a compreender que seus fundamentos

mais valiosos de nada adiantariam na modernidade, mesmo sendo considerados

eternos. Tornou-se, de fato, necessária uma redefinição constante. Baseava-se,

assim, não mais em características extramundanas, mas era, antes, alicerçada, de

acordo com as necessidades que se constituíram nessa nova face da história. Paul

Valadier (2000) compreende essa peculiaridade, ao constituir uma linha histórica da

dependência humana da constituição dos seus preceitos morais. Para ele,

Enquanto, na antiga metafísica, e mais ainda no cristianismo, o homem se acreditava dependente seja da natureza ou do acaso, seja da vontade insondável de Deus, o moderno está inteiramente entregue nas suas próprias mãos e sabe-o. O que fará com essa liberdade? (VALADIER, 2000, p.71).

Constituir um novo conjunto de normas morais, capazes de contemplar todos

os acontecimentos e trazer, tanto para os indivíduos quanto para a sociedade, a

tranquilidade de uma norma acertada, em qualquer instância de julgamento, é uma

tarefa árdua e extremamente complexa. Ainda mais se aquelas instâncias de

confiança do ser humano, responsáveis por determinar as regras de maior valor a

cada ser humano, tiverem também dúvidas com relação à própria execução que elas

processam. Como afirma Paul Valadier,

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Quando uma instância oficial, suposta de afirmar a moral comum, derrapa, estamos em presença de uma desordem do pensamento, que deve inquietar tanto o moralista como o cidadão. A inquietação é tanto mais fundada porquanto outras instâncias oficiais manifestaram ao seu nível desordens do pensamento semelhantes. (VALADIER, 2000, p.62).

Ocorre nesta reflexão um jogo perigoso entre diversas instâncias de

argumentação, já que nenhuma delas deve ser deixada de lado, mas também não

pode ser considerada de modo absoluto, de modo inadvertido. Assim, gera-se o

contraste entre as diversas possibilidades de pensamento, que passam a ser

questionadas em diversas formas diferentes. Isso significa dizer que há uma intensa

discussão acerca dessa problemática, principalmente quando se evocam

argumentações baseadas em teorias diferenciadas, tanto do ponto de vista

filosófico, quanto social, entre outros. Isso significa dizer que, mesmo em situações

diferentes, a discussão moral pode ser constituída de partes e ramificações diversas,

capazes de trazer novos elementos à discussão.

Segundo Paul Valadier (2000), um dos fundamentos mais caros à

humanidade é aquele que reflete sua própria natureza, como espécie, isto é, o ser

humano sob a ótica do conceito coletivo de humanidade. Esse conceito, em

particular, propiciou a passagem de uma explicação teocêntrica para uma

abordagem antropocêntrica, destacando a capacidade humana independente de

uma ligação com o Absoluto. Com base nessa afirmação, o ser humano passou a

constituir uma nova realidade, contando apenas com sua capacidade de

transformação do meio em que vive. Paralelamente a esses acontecimentos, deu-se

ainda a ratificação do paradigma capitalista, sedimentado pelo uso das máquinas

como meio de “otimização” do trabalho humano e até mesmo de seu

aperfeiçoamento, em termos qualitativos e quantitativos. A crítica ao poderio da

máquina, segundo Paul Valadier, é também uma crítica ao próprio humanismo

exacerbado:

Ninguém duvida que, por detrás do questionamento do maquinismo, o ataque ao humanismo é essencial. A multiplicidade e a diversidade das críticas são disso um indício. Assim, por um lado, o humanismo é acusado de ter preparado e aclimatado o “monstruoso”, logo, o reinado incondicional da máquina, mas, por outro (na célebre conferência realizada no Castelo de Elmau, na Baviera), a cultura humanista é declarada ultrapassada, porque ligada à leitura e ao intercâmbio epistolar; ela já não pode ser formadora na era presente, em que dominam de novo os meios de comunicação. (VALADIER, 2000, p.70).

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Além desse privilégio da humanidade, existe outro fator fundamental na crítica

do humanismo clássico, a saber, a pretensão de que o ser humano pode ser

considerado sob o conceito de uma categoria universal. Dessa forma, ele perde a

sua capacidade de pensamento individual e próprio, passando a considerá-lo sob a

perspectiva da coletividade. Desconsidera-se, assim, toda a forma de pensamento

voltado para a preservação e valorização dos costumes diversos e das várias

culturas. Tal fundamentação pode acabar gerando a perda de quaisquer relações

individuais do ser humano, desconsiderando-o como sujeito passível de escolhas e

ações. Opondo-se, terminantemente, a essa formulação está o pensamento

relativista, disfarçado sob a assimilação do conceito de pluralismo, pelo qual se

valoriza a ideia necessariamente diversificada. Paul Valadier põe as ideias do

pragmatismo em discussão, contrapondo-o ao absolutismo. Nesse caso, o

absolutismo reduz as possibilidades a uma só resposta, a que se considera mais

acertada, sob um determinado ponto de vista. Esse mesmo universal que quer se

dizer absoluto, traz em si mesmo, segundo o próprio Paul Valadier (2000), uma

pretensão desmedida, já que acaba por rejeitar qualquer tipo de enraizamento

específico de determinada ideia, valor ou regra. Por isso, o relativismo foi pensado

como antídoto à problemática de se abrigar todos os referenciais sob a tutela de um

só princípio, capaz de igualar as diferenças entre eles. O relativismo teve sua

gênese ligada a todos aqueles que se preocuparam com o valor atribuído às

características específicas de cada cultura e pensamento. Assim, Paul Valadier, no

que se refere a esse conceito, formula que

O relativismo implicava que todos os outros eram capazes de fazer outro tanto com a sua cultura, a sua visão de mundo. Pelo fato de supor como possível o arrancamento aos seus próprios preconceitos, o relativismo deixava em aberto a possibilidade de uma espécie de convergência racional das atitudes e das crenças. (VALADIER, 2000, p. 82).

Richard Rorty filósofo do pragmatismo, segundo Paul Valadier (2000), articula

as vertentes do relativismo sob a concepção de pluralismo, dando-lhe uma

abrangência característica da diversidade, típica da contemporaneidade, não mais

atrelada a apenas uma concepção universalista. A linguagem é considerada uma

das áreas mais atingidas no que tange ao problema do relativismo e do

universalismo, já que por ela o ser humano funda o seu princípio mais essencial: a

comunicação na sociedade. Ao compor o meio social, os indivíduos criam uma

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exclusividade não só no uso da linguagem, como também no estabelecimento das

“verdades”, articuladas e defendidas por esse grupo. Como afirma Paul Valadier,

[...] só é verdadeiro o que este grupo, o meu grupo, aquele que pouco a pouco moldou a sua linguagem ou que se acostumou à mesma linguagem e sabe partilhar os mesmos valores, tem como tal. Porque só é verdadeiro o que foi conseguido na prática por esse grupo e enquanto essa verdade é válida. Retomando a herança de James, Rorty defende que não há verdade que não seja pragmática e culturalmente limitada. (VALADIER, 2000, p.84).

Desse modo, Rorty compreende as dificuldades em se traçar para todo

indivíduo, bem como para toda cultura, uma linha básica comum que estabeleça

uma hierarquia, uma escala dos valores. Ratificar essa posição é, segundo Paul

Valadier (2000), impossibilitar a constituição de um referencial universal capaz de

servir de base para tal constituição. Em Rorty, a eloquência pela busca do relativo

afeta a própria constituição das teorias do pragmatismo, supervalorizando as

impressões individualizadas de cada acontecimento. Portanto, não se pode mais

desprezar ou desconsiderar os acontecimentos pelos quais cada indivíduo é

responsável, sob a justificativa da tolerância e da aceitação daquilo que é diferente.

Evoca-se sob essa justificativa a mesma ideia nietzscheana do “último homem”,

ocupado apenas consigo mesmo, com suas dificuldades e problemas,

desconsiderando todo o resto. Não porque não pode se comprometer com eles, mas

porque nenhum deles se revela importante. Ao indivíduo basta ele mesmo, já que

não deve e nem pode, de fato, ocupar-se com as dificuldades e problemas fora do

seu âmbito de possibilidades. Pode-se, assim, considerar que o universal está

plenamente liquidado? É possível conceber uma vida que menospreze os

acontecimentos do universo humano e desmereça a capacidade individual em sua

pertinência para o todo social no qual o indivíduo está inserido?

Paul Valadier (2000) argumenta que a desconsideração do universal não se

dá apenas pela sua ineficiência com relação às necessidades individuais de cada

pessoa. Ela se justifica, principalmente, pelo desconhecimento da noção exata do

que vem a ser o universal no contexto humano. Isso porque, não conseguindo

amparar sua ação em bases convincentes que possam ir além de sua própria

individualidade, ele termina por desconsiderar qualquer menção ao universal e

priorizar apenas a vertente individualizada. E o universal não significa uma

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concepção estagnada, cristalizada em si mesma. Ou, como justifica o próprio

Valadier,

[...] universal não significa postular que existe sempre e em todo o lado uma identidade humana perfeitamente definida. O universal é um movimento, um dinamismo, uma universalização de si mesmo, a abertura ao outro sem o qual eu não posso sequer compreender-me a mim próprio. Ele é imanente ao próprio singular, na medida em que um não se pode perceber a si próprio sem o outro. (VALADIER, 2000, p.90).

A dimensão universalista é aquela que se mostra como um fundamento

voltado para a difusão dos fundamentos, universalizando a si mesmo e buscando

compreender-se como a capacidade humana de superar as diferenças pessoais e

culturais, em nome da busca de uma situação confortável para a maioria das

pessoas. Confortável não no sentido de cômoda, mas no sentido de buscar um

conjunto de possibilidades ao alcance de todos, pois mais do que um universal que

traga em si o sentido de supressão da individualidade, o que se quer é o universal

que seja capaz de constituir e conservar as principais referências de cada um dos

indivíduos. Paul Valadier utiliza uma figura bíblica para ilustrar a medida do que vem

a ser o universal em seu sentido mais válido:

O verdadeiro universal é melhor (sic) ilustrado pelo Pentecostes: aí, cada qual ouve a mesma mensagem na sua língua; os valores de cada qual não são nivelados ou erradicados: eles tornam-se no veículo da compreensão mútua, cada qual compreendendo o outro (o Outro) nos seus próprios valores. Tal é o verdadeiro universal: não aquele que esquece os valores próprios de cada um, mas aquele que os honra trazendo-os à comunicação. O perigo do relativismo cultural deriva do facto de extenuar no homem o desejo de honrar nele mais do que ele próprio, ou o seu grupo, ou o seu “nós”. Ora, o destino do chinês, aquele que é amordaçado, como aquele que amordaça, importa-me, como, pelo menos assim o espero, o meu destino lhe pode importar. (VALADIER, 2000, p.91).

Tendo em vista esses fundamentos, desde a perda do sentido do humanismo

até as dúvidas instituídas no embate universalismo e relativismo, o questionamento

essencial é o estremecimento, causado nas convicções morais mais contundentes e

eloquentes, que perdem o seu centro de efetivação com as pessoas. Desse modo, o

ethos passa a ser questionado em todas as dimensões, até mesmo quanto a sua

abrangência, ou seja: é limitado a um conjunto de normas e regras referenciais a

apenas um indivíduo ou pode ser ampliado, de acordo com as necessidades de uma

sociedade específica? Pode, ainda, esse ethos ser ampliado em suas dimensões e

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reformulado de acordo com as necessidades de um determinado momento

histórico? Por isso, Paul Valadier estabelece a dimensão assistida por um ethos

prático, experimental. Nas explicitações do autor

Se o ethos é marcado, como se demonstrou, por novos princípios éticos que têm a sua coerência e a sua força teórica, não se pode esquecer que as nossas sociedades se referem, igualmente, a grandes princípios constitutivos das nossas democracias, ou, ainda, que o juízo ético deve, é certo, apoiar-se nos pressupostos da ética que impregnam as relações sociais, mas que ele deve, também, julgá-los em nome do que denominamos como a moral. (VALADIER, 2000, p. 54).

Como se pode ver, no campo prático do ethos, insurge uma métrica constante

de reformulação, fomentada pela necessidade constante de se adequar a novas

necessidades e exigências de um novo tempo que se apresenta ao ser humano. A

moral é considerada, basicamente, como a referência fundamental que garante ao

ser humano a constituição de sua identidade, bem como a manutenção de sua

dignidade. Sendo assim, essa conceituação acaba por constituir uma situação

paradoxal, segundo Paul Valadier (2000), quando, por um lado, é um requisito

essencial na formulação de qualquer juízo moral, mas, por outro lado, pouco ou

quase nada conseguiu ao tentar

[...] recuar a miséria, a exploração do homem pelo homem ou evitar massacres que, mesmo depois do fim do totalitarismo, não pararam de se multiplicar aqui e ali, manifestando em todos os acontecimentos que o respeito pela pessoa humana está longe de ser uma preocupação maior. Além disso e a um nível completamente diferente, as páginas precedentes ilustram essa ameaça através das teorias de diversos éticos, que contornam, de certa forma, essa referência, relativizando-a ou atenuando o seu caráter categórico de incondicionalidade. (VALADIER, 2000, p.135).

O conceito de pessoa humana é fundamental para o pensamento de

sociedade, onde é o sujeito que age, deixa de agir, opta, pratica e sofre as

consequências de sua ação. É a pessoa que utiliza os princípios fundamentais da

moral em seu cotidiano, mas que também sofre com as ações alheias. Ao longo da

história, esse conceito sofreu profundas mutações e não só ele, como também todos

os parâmetros que o constituem. As próprias contingências do ser humano

compõem um exemplo claro de que as mudanças estão inseridas dentro da

realidade de cada sujeito em seu contexto social. Assim, tem-se mais uma evidência

de que a eternidade, a unicidade e os demais conceitos da escola eleática são

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meras ilusões de controle, de suposta vontade de poder. A mudança se torna,

portanto, o fundamento que o mundo aplica às coisas em sua existência. Nem os

valores e os preceitos morais escapam dessa afirmação, como comprova Paul

Valadier:

Os valores morais (e religiosos) são eminentemente degradáveis; as ideias estagnam ou perdem a sua validade e a sua pertinência; acaba-se por deixar de as compreender ou elas são, pouco a pouco, subvertidas pelo interior por abordagens que as transfiguram e acabam por destruí-las. A história da filosofia permite ilustrar essa morte ou essa desfiguração dos conceitos e, depois, o seu abandono. Assim, para tomar um único exemplo, é o que se passa com o termo de “natureza”, tão “incontornável” entre os Gregos e que os modernos já quase não compreendem ou bastante mal... (VALADIER, 2000, p.137).

Neste contexto moral, a subjetivação passa a ser o paradigma fundamental

da modernidade, como efetivação dos pensamentos acerca de si e do mundo. Essa

subjetividade é pedra angular que cada indivíduo, cada pessoa humana utiliza para

constituir sua noção de mundo. Cada pessoa é que pode se determinar, pode avaliar

aquilo que é necessário à constituição de sua dignidade. Contudo, mesmo assim

sendo, não se pode desmerecer o lugar que cada ser vivo ocupa na construção da

realidade, o que significa que o ser humano deve produzir uma diminuição na

definição que lhe foi denotada no sentido filosófico e teológico. Deve-se reprovar o

antropomorfismo que considera, em última instância, apenas a dignidade humana e

desconsidera qualquer outro tipo de ser vivo e de entes existentes.

Dessa forma, evoca-se a necessidade de se considerar a presença do outro,

já que sem a presença dele, não se tem necessidade de regras morais. Por isso, ao

desconsiderar o outro, desconsidera-se a capacidade efetiva de se relacionar com

os outros. Sem o Outro, “[...] a realidade humana perde a sua consistência e,

portanto, a própria ideia de dignidade se esfuma.” (VALADIER, 2000, p.155). Desde

a sua origem, desde a sua adaptação ao mundo cultural, o ser humano se

desenvolve graças às relações que se estabelecem por meio da presença dos

outros. Quando se pensa na dignidade das pessoas, normalmente o senso comum

acredita que uns podem comprometer a dignidade dos outros, ou seja, o outro pode

dar ou retirar a minha dignidade. Contudo, Paul Valadier defende a ideia de que a

dignidade é de responsabilidade do próprio indivíduo e mais, de que esse direito não

provém do fato de que ele é um humano, mas que, por ser humano, ele já traz em si

mesmo esse direito. Adverte o autor que

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Sem dúvida, importa mais do que nunca insistir sobre o fato de que a dignidade não provém da decisão do outro ou do grupo. (...) Porque a ideia dos direitos do homem é precisamente que o homem não é um membro, admitido com base em qualidades determinadas, da sociedade humana, mas que cada qual aí se inscreve em virtude do seu próprio direito. (VALADIER, 2000, p.157).

Os seres humanos participam de uma “comum humanidade”, isto é, tem uma

ação direcionada em prol do todo da comunidade. Dessa forma, cada ser humano é

corresponsável pelos outros e passa a articular suas ações, de acordo com as

necessidades comuns a toda espécie humana. As ações, as práticas de cada ser

humano acabam se constituindo como uma ação de todo o ser humano, que reúne,

em si mesmo, a representação categórica da espécie. Isso não só os torna capazes

de praticar ações comuns, como também os torna, necessariamente, ligados uns

aos outros, dependentes das ações que se pratica no dia a dia. Dessa forma, na

construção do espaço de relação do ser humano, em sua vida social, quer que se

reconheça

[...] simplesmente o direito do seu semelhante a ser socorrido e, no limite, não é necessário possuir convicções religiosas ou metafísicas bem estabelecidas para compreender que, independentemente da constituição do outro (da sua etnia, do seu sexo, da sua idade, da sua religião, se esta for conhecida), se impõe como evidente um dever de solidariedade humana. É neste espaço relacional que se deve enraizar a ideia de dignidade humana. É ele que lhe dá conteúdo e pertinência. Procede da imagem e do sentido que tenho de mim mesmo, quando desvio o olhar do ferido ou quando assisto como posso. (VALADIER, 2000, p.159)

No reconhecimento da dignidade alheia, o ser humano encontra o espaço,

onde se desenvolve a solidariedade, que se revela no conjunto das pessoas que

vivem no grupo, onde se estabelece a relação entre elas. Por meio da solidariedade,

o ser humano se iguala aos outros e conta com a ajuda das outras pessoas. Não há

por trás dessa situação, nenhuma relação que sustente ou que procure justificar a

ajuda que se presta. A moral deve, então, passar por esse caminho, desde que não

se perca a sua realidade relacional. A partir da solidariedade, o ser humano passa a

constituir-se, como ideia, em uma perspectiva totalmente ligada ao outro. Pela

relação com o outro, as decisões morais e éticas passam a respeitar, de modo

efetivo, a dignidade do próprio homem. A liberdade se constituirá como o

fundamento que possibilita a tomada de decisões que acabam por estabelecer uma

perspectiva que não afete a dignidade do outro.

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Ater-se a uma única pessoa pode significar a extinção das comunidades

humanas. A partir do momento que se reconhece esse caráter relacional e grupal

das comunidades humanas, busca-se estabelecer a necessidade de uma

moralidade baseada na solidariedade. Por isso, Paul Valadier, ressalta que

Da verdade sobre o homem se extrairia dedutivamente o comportamento correto e, evidentemente, o único e exclusivo comportamento correto, porque logicamente coerente com essa pretensa “verdade do homem”. (...) A”verdade sobre o homem” não pode ser um álibi, por detrás do qual se esconderia a negação da liberdade, e muito menos o álibi de uma obediência a Deus, criador dessa verdade. A obediência a Deus passa pela utilização de todas as faculdades com que ele, Criador, dotou o homem, e o juízo justo, bem como a liberdade informada, fazem, evidentemente, parte delas. Como obedecer-lhes sem o exercício de uma tal liberdade? (VALADIER, 2000, p.171-172).

Apesar das dificuldades apresentadas anteriormente, que serviram para

estremecer a constituição do conceito de moral, Valadier considera que elas têm

uma grande importância. Graças a elas, foi possível pensar uma revitalização das

reflexões acerca dos problemas do universal, do relativo, entre outros. Não se deve

estranhar esse momento, visto que são situações típicas de um momento histórico

em que a moral se descobriu órfã de seus fundamentos. Dessa forma, o momento

de crise das estruturas morais se revelou necessário, mas não suficiente, pois exigiu

uma continuidade constante na reflexão acerca do problema da moral.

3.3 A MORAL É NECESSÁRIA E INEVITÁVEL

A atitude moral, a escolha moral, a própria moral em si mesma está ligada

necessariamente à capacidade de consciência do ser humano. Contudo, não

bastaria a ela apenas se manifestar como ação consciente de uma determinada

pessoa ou grupo cultural. Ela passou, sim, por dificuldades diversas enquanto

buscava construir seu conceito. Primeiro, porque ela tinha herdado todas as

referências que a fizeram um eixo eterno. Segundo, porque essa eternidade lhe

trouxe o problema da fixidez. E, em terceiro lugar, porque a moral não pode ser

considerada a batalha de um só, já que ela só existe no exercício da vida comum de

cada um e dos grupos aos quais pertence.

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Dessa forma, arrancou-se a moral da sua fixidez e de sua petrificação no

tempo e na história, já que ela deve ser entendida, principalmente levando em

consideração a compreensão valadierana, como sendo sempre um risco. Não se

pode, também, negar nunca o ser humano que a sustenta e pratica. Por essa

constatação, pode-se referendar a ideia de que

Quem quer que tome a moral por um mundo de certezas que nos poderia (re)conduzir a uma metafísica finalmente reencontrada após uma tão longa errância, ou por uma religião que fixe o olhar do homem ao seu Sentido absoluto, arrisca-se a não fazer mais do que apresentar uma mercadoria deteriorada. (VALADIER, 1991a, p. 04).

Como já se disse anteriormente, a moral não desaparece ou morre, como a

muitos convém dizer, frente ao hiato que se cria diante de certas situações inéditas

e específicas do cotidiano humano. Todos os campos sociais, econômicos, políticos,

ou seja, os campos da convivência humana são passíveis de uma interpretação

ética e moral, já que são campos que vão além da mera descrição dos fatos. Sendo

assim, ao se deparar com essas questões, elas se transformam em uma

interpretação moral, uma vez que não se pode escapar dessas situações, o que

implicaria uma irresponsabilidade direta ou indireta sobre esse tipo de problema. A

pluralidade não pode ser restringida apenas a uma profusão inquietante de ideias e

pensamentos que venham a julgar cada um dos seres humanos, sem a

consideração de sua validade. Em uma sociedade tal como a que se vive nesses

dias, isto é, uma sociedade onde a diversidade é sua essência mais fundamental e

determinante, torna-se necessária uma reinterpretação constante de todos os

pressupostos que são utilizados como medida de ações específicas.

Na antiguidade, uma das vertentes mais eloquentes, no que diz respeito à

moralidade, é aquela que buscou fundamentar uma única medida capaz de suprir

todas as necessidades morais das diversas sociedades. Contudo, como já se citou e

demonstrou no segundo capítulo, com o diagnóstico nietzscheano da morte de

Deus, inaugura-se toda uma reflexão acerca dessa problemática, já que com a

queda do referencial supremo de todas as ideias, o ser humano não tem a que ou a

quem recorrer. A pluralidade serve, necessariamente, para indicar como se deve

agir, levando em conta tanto o indivíduo quanto o grupo de que participa. Analisar o

fato tomando-o por essa ordem é importante, pois, ao assumir sua condição grupal,

cada ser humano se desfaz da possibilidade de viver a sua humanidade em “estado

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puro”, sem a influência direta ou indireta de qualquer outro. Assim, cada um assume

os seus papéis sociais, que podem variar de cultura para cultura e de pessoa para

pessoa. Cada um elabora as suas “máscaras”, os seus papéis como possibilidade

de desenvolvimento da personalidade individual e grupal. A qualidade dessas

“máscaras” só passa a existir quando o sujeito sobrepõe a seu papel social a sua

personalidade ou a sua interpretação desse mesmo papel. Ainda assim, ao assumir

determinada “máscara”, o sujeito também se obriga a compreendê-la do modo como

ela deve ser exercida, isto é, não é apenas o sujeito que formatou a “máscara”, mas

também a própria “máscara” que consegue formatar o sujeito. E, como afirma Paul

Valadier (1991a, p.109) “[...] os papéis definiram, então, o que deve fazer o indivíduo

que os assume.”

Entra aqui a referência do dever, que se compreende como a obrigação que

se deve assumir, ao se comprometer com o uso e a efetivação do papel social.

Mesmo sendo assim utilizado, o dever como prolongamento da obrigação não

escapa da formulação de deveres e de normas que não podem ser limitados a um

simples manual que existe sob a pretensão de servir para todos e para cada um dos

humanos de uma mesma sociedade. Dessa forma, não é possível existir,

[...] em lugar nenhum, uma hierarquia objetiva de valores com caráter permanente, passível de ser lida como um código de boa conduta. É verdade que não faltam moralistas para contornar tais hierarquias; eles explicam, geralmente apoiando-se na metafísica (ou, porque não, numa teologia da Criação) que este ou aquele é eminente, ou “absoluto”, como gostam de dizer. O mesmo acontece em relação ao respeito pela vida humana. (VALADIER, 1991a, p.110).

Para o moralista tradicional, que não compreende a necessidade dos riscos

para a constituição da moral, é condição sine qua non que exista sempre uma

hierarquia dos valores, capazes de criar as condições necessárias para garantir um

uso plenificado da moral em todas as circunstâncias. Além de hierarquizar os

valores, segundo um conjunto de normas específicas, a hierarquização traz ainda

um nivelamento capaz de igualar aquilo que tem fundamentos diferentes. Paul

Valadier questiona

[...] se é realmente possível estabelecer hierarquia dos valores. A perturbação nasce quando nos apercebemos que esta hierarquia, supostamente estabilizadora da decisão moral, varia profundamente de um sistema filosófico para outro e que aquilo que deve dar solidez é afetado por uma grande relatividade. O ponto essencial refere-se efetivamente ao valor

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fundamental em função do qual se enuncia o princípio da hierarquização. (VALADIER, 1997, p.154).

Porém, a dificuldade não se encontra apenas na incapacidade de obter ou de

se formular uma hierarquia, suficientemente ampla para guiar a conduta humana em

suas mais diversas variações. Mas, no fato de que os valores morais não são

passíveis de objetividade, ou de cristalização em um conceito único, compreendido

como balizas intransponíveis que margeiam a conduta pessoal diária. Isso não

significa que os valores objetivos nunca existiram, pois eles também constituem um

terreno seguro, passível de compreensão. Contudo, mesmo assim, existe um

contexto real, analisável racionalmente e compreendido como campo fértil de

decisões e de compreensão das diversidades de todo e cada ser humano. A

pluralidade não pode ser considerada apenas como um possível indício de

relativismo, mas como uma rica possibilidade de compreender a realidade tal como

ela se apresenta. Não deve ser percebida como um objeto a ser formatado segundo

nossa vontade, mas sim como uma diversidade que nos compreende na condição

seres de diversidade, de alteridade, sempre presente na vida humana.

Para estabelecer o princípio ético, a humanidade se constitui na sua relação

com o outro, relação essa que permite construir uma realidade que estabeleça uma

ligação compatível entre o que se faz e o que se espera, dentro do funcionamento

social.

A honestidade se constitui, segundo Paul Valadier (1991), como a virtude

essencial ao exercício da ética, já que sem sua presença ou instituição todas as

ações poderiam ser infundadas ou disfarçadas como ações contrárias à sua própria

genealogia. Dessa forma, a honestidade é a garantia de que se pode sempre

ultrapassar o simples fato da suposta ausência da ética. Pela honestidade, pode-se

ir além de si mesmo. Portanto,

Não seria honesto, seria contraditório em relação à expectativa legítima, que a polícia obtivesse informações através da tortura ou da violência, que o jornalista viciasse as suas informações ou inventasse para aumentar os seus benefícios, que o pai não correspondesse à expectativa do filho. A honestidade obriga a ultrapassar o conformismo: não se age simplesmente porque uma coisa se faz, mas vai-se, essencialmente, ao encontro daquilo que se faz ou daquilo que é tolerado. (VALADIER, 1991a, p.112).

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Normalmente, o ser humano se resignou a obedecer a certas normas,

consideradas absolutas, sem o devido questionamento. Com isso, fica estabelecido

o risco constante de assumir o conformismo como uma métrica de vida. Com essa

atitude, cria-se um modelo no qual se postula que só se é capaz de sustentar a vida,

por motivos diversos (fraqueza, tédio, ou até mesmo covardia). Isso permite dizer

que

Fazemos o que temos de fazer, sem discutir. Respondemos ao que de nós é esperado, mas emprestamo-nos ao papel, não nos damos a ele. Atitude que, certamente, revela o nosso sentido de preservação, no verdadeiro sentido da palavra (...), que nos permite, portanto, defendermo-nos das relações que impliquem todo o nosso empenho, porque elas seriam sobreinvestidas do ponto de vista afetivo. Atitude que, contudo, e por maior justificação que tenha aos olhos do indivíduo, acaba por tornar a vida social mecânica e impessoal: encontramos apenas máscaras, seres que desempenham funções (funcionários). (VALADIER, 1991, p.114).

Os papéis sociais (as máscaras acima citadas), vividos atualmente, sofrem

alterações constantes e, com isso, acabam se tornando múltiplos, de acordo com as

exigências e referências culturais. Assim, surgem as contradições no interior dos

papéis sociais, de modo que, no limiar desse conflito constante, insurge a

necessidade da moral, como elemento de equilíbrio das relações humanas. Não

basta ao sujeito agir em conformidade com um papel determinado para que ele

esteja, de fato, à altura da vida humana, já que os papéis que serviam para

direcionar a vida em sua realização perderam sua referência básica e chegaram a

se tornar mesmo imorais e desvirtuados. A ética será designada por Paul Valadier

(1991, p.117) como “espaço de referência para as nossas maneiras de agir e de nos

relacionarmos com os outros”. Ao cristalizar o conceito de ética, retira-se dela o que

a caracteriza como um dos fundamentos essenciais da vida social e impede a sua

evolução. Por outro lado, é possível, também, considerá-la como uma vertente

múltipla da sociedade moderna, como adesão a um novo modelo ético, no qual se

inserem novas maneiras de agir. Por isso, a ética exigiu um discernimento e

julgamento próprio, apoiada em uma instância crítica, denominada moral.

Estabelece-se uma das diversas diferenças entre a ética e a moral, ou seja,

enquanto a primeira cuida da questão do que se deve fazer, a segunda se

responsabiliza em questionar o que se deve fazer para agir bem. É possível, ainda,

reconhecer outra distinção, considerando o homem que reconhece sua finitude, a

partir de uma corporeidade, de uma linguagem, de sua cultura. Ele apenas obedece

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a normas, humanizando-se, moralizando-se a partir de suas particularidades

biológicas e culturais.

Mesmo com toda a caracterização negativa, o niilismo pode ser interpretado

como sendo possuidor de uma faceta positiva, ao impor a obrigatoriedade de se

descobrir quais são as bases de uma decisão moral. Basicamente, a fé se revela

como essa base essencial da construção da moral, seja uma fé teológica, seja uma

fé filosófica. Em ambos os casos, ela revelará a exigência de uma constituição, a

partir de um uso sóbrio da razão e daquilo que a cerca. Dessa forma, ao tomar uma

atitude concreta, ainda que individual na resolução de algum problema,

possivelmente, jamais o resolveremos, mas ocorrerá um abalo da estrutura

construída, de tal modo que passa a ser uma atitude altamente significativa.

Para Paul Valadier (1991a), o abalo é estrutural e atinge diretamente a “pedra

angular” de cada uma das instituições, mesmo não conseguindo atingir o problema

diretamente e resolvê-lo,

[...] contudo, o seu gesto abala o muro das certezas, diz aos indivíduos sem escrúpulos que nem tudo é aceitável por todos, instaura um princípio de clarificação moral. É sempre possível fazer qualquer coisa, qualquer coisa que certamente não transforma o mundo, que não elimina o mal, mas que dá fé em algo mais que não a demissão, a covardia ou a fatalidade. (VALADIER, 1991, p.123).

Acreditar no poder moral é, em última instância, segundo Paul Valadier

(1991a), acreditar no próprio ser humano, que busca respostas humanas para seus

problemas e dificuldades, sem que tenha de recorrer a uma força para além dele

mesmo e de sua vivência, como indivíduo e como ser social. A moralidade chega a

ser um adicional para todo aquele que opta pelo fluxo da vida, como um rio que

corre constantemente para o mar. Isto é, ao optar pela vida social que sustenta a

vida do indivíduo, faz-se uma clara opção pela vida moral. É um guia perpétuo das

ações e escolhas do ser humano, algo que se configura não apenas como um

julgador das ações ou omissões, mas como um anteparo que ajuda a enxergar, ou

ainda, julgar as ações. Uma das dificuldades, talvez a maior delas, vem do fato de

que, mesmo sendo um componente, essencialmente gerado na convivência

humana, a moral tem, em princípio, uma parcela individual que conduz, na junção

com as outras parcelas, uma explicação pluralista, típica da sociedade

contemporânea na qual se vive atualmente.

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A moral, mesmo relegada a uma condição de coleta das consequências

sociais, não pode nunca se ater apenas a estar em conformidade com os

paradigmas impostos pelo contexto social. Ela deve, como defendeu Paul Valadier

(1999), mostrar-se capaz de se lançar a riscos possíveis. Sem esses riscos e essas

possibilidades, a moral corre o risco constante de ser estagnada e paralisada,

negadora mesmo da própria essência da vida humana. A moral deve ser afirmadora

da vida e do próprio ser humano que a define, mesmo que por muitas vezes, ele se

encontre entre opostos contínuos, isto é, entre o absolutismo de outros tempos e o

relativismo da atualidade. Na história da Igreja, o processo de secularização se

implantará de maneira plena, ao se confrontar com as dificuldades dos dogmas

cristãos, considerados eternos e imutáveis, mas com profunda necessidade de se

alinharem com as novas diretrizes do mundo contemporâneo. Como enfrentar esse

desafio sem perder a sua precisão, como sendo um ordenamento da realidade e dos

seus ditames de conduta? Como exercer a liberdade diante dos desafios da

moralidade? Ao se atrelar a moral e a ética à liberdade, corre-se o risco constante

de, em seu uso, o ser humano escolher o mal. Se o fizer, instituirá a primeira face do

niilismo. Mas, não acaba nela, já que

[...] há outra forma de niilismo, não menos radical, que Nietzsche pressentiu que se iria estender ao século XX. Ele pode tomar a forma de pessimismo por decepção em relação a um ideal julgado inacessível. Assim, a complexidade das questões que existe mais ou menos em todos os domínios, a impossibilidade de encontrar soluções firmes (subdesenvolvimento, ambiente), os riscos dos efeitos perversos, a impotência do indivíduo e mesmo das instituições (parlamentos, ONU, comissões diversas), tudo isso leva ao desespero, logo, ao “abandono dos valores mais elevados – e nada mais”. (VALADIER, 1991a, 121).

Dessa forma, o niilismo se dispersa por toda a vivência da sociedade

contemporânea, de modo a justificar o seu efeito de nadificação. Não se pode

pensar essa nadificação apenas como um impulso negativo da vida, das escolhas

mal feitas, pois o niilismo pode se metamorfosear em diversas figuras e imagens,

capazes de iludir o ser humano em suas escolhas e, mesmo que se pense que é

possível constituir uma melhor escolha, corre-se o risco de constituir-se numa forma

de niilismo. Isso se dá, segundo a ideia nietzscheana, com o idealismo dos valores

supremos, uma expressão real desse niilismo. A sua positividade está no fato de

que, o niilismo exige uma reviravolta nos conceitos antigos, naqueles que se

consagraram como inquestionáveis, mas que se revelam deficitários de uma ação.

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Finalmente, a moral se revela com a complexidade evocada por Paul

Valadier, ou seja, uma moral que segue as bases pensadas por Nietzsche, nunca

estagnada, nunca pré-determinada, mas sempre em constante reformulação de

seus princípios mais autênticos e genuínos.

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4. O RELATIVISMO NA CONTEMPORANEIDADE, SEGUNDO PAUL VALADIER

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu o que são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. (Nietzsche)

Como a contemporaneidade reagiu diante do fenômeno relativista que se

instalou em todos os campos da sociedade, até mesmo no campo moral e,

sobretudo, no campo religioso? E a religião cristã, por meio do catolicismo, como se

posicionou diante desses desafios e dificuldades, em uma sociedade extremamente

imbuída do ímpeto de mudanças constantes?

Até agora, pode-se observar que o relativismo foi compreendido por muitos

como uma doença que se proliferou pela história da humanidade. Iniciou-se com

uma forte decadência que se aprofundou no próprio espírito da humanidade, de tal

forma que conduziu a um pessimismo imperativo que dominou toda a ideologia e

todo o pensamento vividos até então. Contudo, ele não se deteve aí e continuou a

se espalhar pelo próprio modo de vida que as pessoas consideravam o único

possível. Espalhou-se e ratificou-se como uma base necessária às ideias humanas,

acerca de tudo o que se podia pensar. Contudo, o relativismo se transmutou ao

longo da história e se rebatizou de niilismo, ou seja, passou a se firmar por meio de

uma constante nadificação de tudo o que existe.

O relativismo não abalou somente as religiões de um modo geral, mas

também atingiu a própria moralidade, como já se pôde observar. Em sua prática, o

relativismo trouxe a pseudoinsegurança da inexistência de uma moral, de qualquer

valor ou medida que se mostrasse capaz de estear as ações do ser humano. Essa

insegurança é “pseudo”, no sentido de atrelar o ser humano a uma realidade que, na

verdade, não é o único paradigma fundamental da vida. Dessa forma, o ser humano

acredita-se totalmente dependente de um conjunto de valores, de regras

insuperavelmente determinantes de sua vida e de sua existência. Essa concepção é

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obstáculo a qualquer possibilidade que o próprio humano tivesse de se determinar

diante de novos questionamentos sobre o seu papel no mundo. A moralidade

perdeu, portanto, a sua dinamicidade, a sua capacidade de trazer à tona uma nova

regra ou um novo pensamento sobre si mesmo. Por isso, a moral passou a se

determinar segundo um conjunto de regras fixas e imutáveis, tornando, a própria

vida humana algo estático, definido e determinado, incapaz de se manifestar como

um desenvolvimento contínuo. Esse movimento do devir é o mesmo que exige uma

revisão constante e contínua de cada regra, de cada conceito, buscando sua origem

genealógica, isto é, buscando a sua origem primeira, capaz de determinar a sua

aplicação original e não apenas um desdobramento de sua origem sob aspectos e

necessidades diferentes. A leitura genealógica exige de seu articulador a

compreensão de um movimento ininterrupto de suas bases, tanto etimológicas,

quanto semânticas e sintáticas. Isso porque é ela que determina a amplitude de

compreensão e de aplicação de si mesma no mundo axiomático.

O relativismo é a leitura contemporânea do niilismo, que termina por solidificar

a realidade, inviabilizando quaisquer outras possibilidades de compreendê-la, além

dos seus conceitos pré-definidos, insensíveis, portanto, às necessidades de cada

momento específico. Essa ação se desenvolve quando se tem como raiz ideológica

a pretensão de que existe um Absoluto, seja o divino, o científico, ou mesmo algum

conceito capaz de criar uma sensação de segurança, capaz de produzir uma

espécie de cegueira imposta àqueles que seguem determinadas ideias. Basta

observar os diversos períodos históricos para constatar a variabilidade que os

modelos paradigmáticos assumem, de modo total ou parcial, a fim de criar a

sensação de tranquilidade que cada humano persegue diante dos desafios que a

vida lhe impõe. Porém, essa sensação de tranquilidade provocou também uma série

de situações nas quais o ser humano tenta encontrar sua origem e seu fim, de

acordo com a capacidade de assumir as novas vertentes e conceitos em sua vida,

tanto como novos conceitos, quanto como novas soluções.

Considerando-se esses pontos, há de se perguntar: ficou o cristianismo

inalterado diante do avanço constante do relativismo, tão eficaz na idade

contemporânea, retirando e desconstruindo tudo aquilo que foi pregado e ratificado

durante séculos de domínio absoluto? A idade moderna, de fato, foi um momento

avassalador para o cristianismo que viu diversos de seus paradigmas sendo

questionados e destituídos de seus privilégios diante do avanço da reconstrução de

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conceitos e ideais. A modernidade foi apenas o estopim das mudanças que se

processam desde então, invadindo o período contemporâneo. O século XX foi o

limiar dessas mudanças, já que se mostrou como a concentração das principais

dificuldades do ser humano, constantemente perturbado pela velocidade de

mudanças ininterruptas que se processam de modo cada vez mais rápido e efetivo.

No século XVI, o Concílio de Trento (1545-1563) buscou revitalizar a Igreja diante

dos desafios impostos pela Reforma Protestante. Contudo, ele foi necessário, mas

não foi suficiente, já que na contemporaneidade, outros desafios se revelaram como

contundentes. Por isso, a necessidade do Concílio Vaticano II se tornou indiscutível,

já que ele busca ajustar os procedimentos da Igreja ao seu lugar de construção, isto

é, a vida contemporânea e seus valores e regras característicos desse tempo.

A filosofia questiona a validade de se nomear a época atual, como sendo uma

idade contemporânea, visto que é nesse momento histórico que se vivem os

fundamentos idealizados durante a denominada modernidade46, tanto que,

usualmente, utiliza-se o termo pós-modernidade como uma tentativa de designar

uma vivência tardia desses preceitos que foram constituídos na modernidade,

como o individualismo,o egocentrismo, o cientificismo, entre outros, que situam o

ser humano como o centro irredutível de todas as necessidades, mas um ser ainda

dependente de uma realidade exterior a si mesmo. Esses aspectos constituíram um

paradigma, nunca antes adotado, que é o da velocidade estonteante, capaz de

superar até a si mesma, na busca pelo que está além do alcance de cada um.

É neste contexto que o Concílio Vaticano II tem de atuar, buscando, em

princípio, atualizar os paradigmas eclesiásticos sem, contudo, perder a sua

referência essencial, que se mostrou como conceito ao longo de sua história. Diz-se,

46 Segundo Gianni Vattino (1996, p.77): “a chamada ‘pós-modernidade’ aparece como uma espécie de Renascimento dos ideais banidos e cassados por nossa modernidade racionalizadora. Esta modernidade teria terminado a partir do momento em que não podemos mais falar da história como algo de unitário e quando morre o mito do Progresso. É a emergência desses ideais que seria responsável por toda uma onda de comportamentos e de atitudes irracionais e desencantados em relação à política e pelo crescimento do ceticismo face aos valores fundamentais da modernidade. Estaríamos dando adeus à modernidade, à Razão (Feyerabend)? Quem acredita ainda que ‘todo real é racional e que todo real é racional’(Hegel)? Que esperança podemos depositar no projeto da Razão emancipada, quando sabemos que o financeiro é submetido ao jogo cego do mercado? Como pode o homem ser feliz no interior da lógica do sistema, onde só tem valor o que funciona segundo previsões, onde seus desejos, suas paixões, necessidades e aspirações passam a ser racionalmente administrados e manipulados pela lógica da eficácia econômica que o reduz ao papel de simples consumidor?”.

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em princípio, porque mais do que apenas tornar o cristianismo atual, buscou-se

capacitar os seguidores para produzirem uma resposta satisfatória à onda de

situações que decorreram do suposto ateísmo, que se fundamentou, num primeiro

momento, na epígrafe nietzscheana que enunciava a morte de Deus.

Dessa forma, mais do que apenas assumir uma postura de defesa do

cristianismo, é importante entender o movimento executado, os rumos da

conceituação que o humano faz de si mesmo. É importante conseguir se constituir,

mesmo partindo de uma desorientação inicial, que depois se revelaria eficaz na

construção de um novo sentido, voltado não para a concepção anterior de um

princípio absoluto e definitivo, como fora outrora. Por isso, tornou-se fundamental ser

capaz de suportar as variações possíveis de cada conceito, sem que com isso fosse

necessário buscar fora de si um caminho desejável, ou mesmo, possível.

Pensando nisso, é fundamental compreender os principais aspectos que

perpassaram o cristianismo, nesse processo de modernização, tal como o processo

de secularização, em seus desdobramentos. E, assim como ele, é preciso analisar,

também, todos os princípios que contribuíram para a desorientação dos

fundamentos principais do ser humano em um mundo que considera assustador e

temerário. É importante compreender, ainda, que toda essa situação não se limitou

apenas a confrontar os dogmas religiosos, em especial os cristãos, mas foi essencial

para que se conscientizasse o homem da capacidade de adaptação e de solução

dos problemas, advindos de uma modernidade em constante transformação.

É importante, em vista disso, esclarecer que o cristianismo, na consideração

valadierana, é indistinguível do catolicismo:

É a partir do seio do catolicismo que conduzimos a nossa reflexão. Daí falarmos indistintamente de cristianismo e catolicismo. Isto não significa que ignoremos a existência de outras confissões cristãs, e muito menos que não vejamos na dispersão dessas confissões um grande desafio para a credibilidade do cristianismo. (VALADIER, 1991b, p.11 e 12).

Entre todas as dificuldades e todos os problemas enfrentados pelas religiões,

ao longo da contemporaneidade, o secularismo se revelou como o maior e mais

austero deles, desenvolvendo-se em ramificações diferentes, capazes de cegar o

ser humano diante de suas convicções mais elementares, tal como acontece no

tocante ao problema religioso. Assim, é essencial compreender o processo de

secularização como marca de uma modernidade que o sustenta e o produz como

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fator de mudança. Para compreendê-lo, não basta o uso do fator histórico, mas vale

a pena contextualizá-lo. Dessa forma, o cristianismo será acentuado antes da

efervescência do secularismo, bem como se acentuará o papel desempenhado pelo

Concílio Vaticano II, não apenas em termos de um combate ao secularismo, mas

como um entendimento de sua atuação nas mudanças paradigmáticas desse tempo.

Neste último capítulo, finalmente, chega-se à tentativa de compreensão do

papel que o relativismo alcança na sociedade contemporânea, bem como da

resposta que a Igreja Católica é capaz de constituir como forma de resistência aos

efeitos do niilismo, e de sua vertente moderna, o relativismo. Em primeiro lugar,

buscar-se-á compreender o processo do secularismo como a nova roupagem

assumida pelo niilismo, dentro da modernidade. Em segundo lugar, será

fundamental compreender o processo de secularização como uma fonte constante

de instituição de uma modernidade latente e supostamente correspondentes às

necessidades do ser humano, livre de qualquer influência transcendente, como já se

definiu antes. Por fim, o capítulo enfocará o Concílio Vaticano II como fundamento

de uma reação da Igreja Católica frente ao avanço da mentalidade moderna e

fragmentada.

A finalidade é compreender a capacidade humana em resgatar sua

personalidade diante das dificuldades criadas pela própria humanidade frente às

inquietações que a modernidade gerou. Não é mais o ser humano um simples

fantoche nas mãos de um Transcendental, mas um ser capaz de se autodeterminar

e se autodefinir, diante dos desafios da história e de suas escolhas diárias e

constantes. Só um ser livre é capaz de desatar os centros, aos quais estava preso.

A grande aventura da liberdade está por começar nessa prévia do mundo. Não é um

"caminho de rosas", pois o futuro não está garantido. Não é mais do que um futuro

incerto, nas palavras de Paul Valadier, um "futuro aberto". Para onde se vai? Para

todas as direções. Falta um norte, um centro, uma direção, mas falta inclusive a

própria terra, conforme preconiza Nietzsche:

Deixamos a terra firme e embarcamos! Queimamos a ponte – mais ainda, cortamos todo laço com a terra que ficou para trás! Agora tenha cautela, pequeno barco! Junto a você está o oceano, é verdade que ele nem sempre ruge, e às vezes se estende como seda e ouro e devaneio de bondade (...) Ai de você, se for acometido de saudade da terra, como se lá estivesse havido mais liberdade – e já não existe mais “terra”! (NIETZSCHE, 2001, p. 147)

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Obviamente, a interferência da realidade na vida do sujeito existe e acontece,

mas não pode ser simplesmente aceita e acatada pelas diversas instâncias da

sociedade. É fundamental, portanto, compreender que a moral aqui enfocada é

atingida pelo relativismo, fruto da “morte de Deus”, já compreendida no capítulo

anterior. É nela que se enfoca a compreensão dessa morte como fator fundamental

de análise da moral nos dias atuais. Analisar a moral é compreender a importância

do valor na sociedade contemporânea. Por isso, o conceito de valor, do ponto de

vista valadierano,

[...] apresenta-se como a fonte de uma acção (sic) que não se satisfaz com a ordem das coisas ou com o curso do mundo tal como ele é; é o sinal de uma espécie de transposição (de transcendência?), já que o desejo de uma ordem melhor desestabiliza no que diz respeito a uma satisfação ditosa e farta para com aquilo que é. (VALADIER, 2007a, p.128)

4.1. A MODERNIDADE E O PROCESSO DE SECULARIZAÇÃO

Paul Valadier (1991b) reflete que o cristianismo, usufruindo de toda uma

tradição milenar, também se revelou como partícipe de uma vertente fundada em

uma realidade processual. Não apenas um processo finalista, conclusivo, capaz de

pôr fim à história, desconectado de sua realidade fundante, mas como um processo

que reconhece e compreende a necessidade incessante de transformação ao longo

da história. Assim, segundo ele, a ideia de

Processo não visa a encerrar a história, a fechar o homem na sua idolatria cega, mas que, engendrando o intercâmbio de palavra, quer ao contrário abrir o verdadeiro processo graças ao qual e no qual o homem é libertado por obra da justiça de Deus. (VALADIER, 1991b, p.8).

Não basta mudar uma postura para se alcançar uma transformação efetiva.

Toda mudança deve assegurar uma profunda transformação, já que em tempos de

modernidade não se pode fugir à temática desse processo. “Vivemos em uma

sociedade pluralista, fragmentária” (VALADIER, 2007b, p.11), o que nos lança em

uma constante reformulação de nossos ideais, valores e fundamentos, já que há

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uma movimentação constante da vida humana, inclusive em um ato de

autoquestionamento.

A modernidade acatou a ideia de processo como um dado essencial para sua

compreensão. É praticamente impossível conceber qualquer um dos fundamentos

modernos, sem que ele passe pelo viés do processo, da transformação. Mas não foi

somente a ideia de processo que desenhou um modelo de compreensão de uma

modernidade que, ainda hoje, é compreendida à medida que é constituída. O

processo é o movimento que articula todos os princípios que a interpelam diante das

mudanças e alterações no campo ideológico e cultural. Contudo, o processo em si

mesmo revela-se como fundamentalmente móvel, quebrando, ainda, os idealismos

de uma estrutura que se dizia eterna e imutável. Isso, entretanto, não invalida a

presença da Igreja nesse mundo. Tal ligação gera um antagonismo, já que a Igreja

advoga em defesa de um mundo que está além do mundo em que ela mesma se

encontra. Então, ela incentiva o homem a buscar esse mundo novo, para se tornar

também ele, um novo homem. Pensar assim corresponde a dizer que

[...] o apelo lançado ao catecúmeno para se tornar um Homem novo ou para entrar numa vida nova implica, exatamente, uma ruptura e um distanciamento do Homem antigo e dos modos de vida anteriores. (VALADIER, 1999, p.16).

A dificuldade de pensar a religião no tempo da modernidade vem exatamente

da concepção de que ambas são incompatíveis e, até mesmo, antagônicas. Essa

separação é apenas consequência da “morte de Deus”, apregoada como sendo um

fundamento da modernidade. Segundo Paul Valadier (1991b, p.08), “[...] não se

pode, com efeito, esquecer que é próprio da época moderna haver proclamado

como inelutável o declínio das religiões e até afirmado a tese extraordinariamente

audaciosa (ou pretensiosa) da morte de Deus.” Justamente, porque é típico do

tempo moderno e, consequentemente, da contemporaneidade, uma aversão criada

com a religião. Basicamente, tal constituição se dá inicialmente no contexto europeu,

onde nascem e se desenvolvem os principais conceitos fundantes da problemática

contemporânea, que mais tarde passa a afligir a humanidade como um todo, já que

a Europa domina e articula o desenvolvimento ocidental.

Dessa forma, o catolicismo se encontrou diante de um problema fundamental,

na modernidade: a perda de toda a autoridade denotada a ele durante o período da

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idade medieval. A partir de então, ele deixou de ser o referencial supremo de todos

os questionamentos, assim como Deus também perdeu sua notoriedade. E a

perdeu, não porque deixou de ser “o” Todo-poderoso, como muitos acreditam, por

culpa da obra de Nietzsche, pois, como afirma o próprio Paul Valadier:

[...] uma leitura um pouco atenta de sua obra revela àquele que tiver ‘ouvidos para ouvir’, de acordo com uma expressão evangélica de que ele gostava: Nietzsche anunciava a morte de um Deus demasiado humano, demasiado domesticado, esvaziado a tal ponto de alteridade imperceptível e de distância, que o simples bom gosto proibia a um ‘espírito livre’, aberto ou sensível às dimensões tornadas, de novo, infinitas do real, de aderir a um Deus. (VALADIER, 1999, p.18).

Segundo Valadier, o problema da “morte de Deus”, que, supostamente, teria

sido criado por Nietzsche, em nenhum momento se dirigia aos cristãos ou ao seu

Deus. Nietzsche nunca foi um defensor da pretensa liberdade ateísta promovida

pela modernidade à vida humana em detrimento dos fundamentos religiosos. Ao

invés disso, ele criticou duramente esse tipo de pretensão, esclarecendo que a

problemática proposta por ele, que tem como eixo a “morte de Deus”, não se

solucionaria simplesmente com uma adesão incólume a um ateísmo. “Mais do que a

Deus, é a vontade de crença que Nietzsche ataca: portanto, não em primeira linha

uma teologia, mas uma concepção do homem” (VALADIER, 1991b, p.60), articula

Valadier, demonstrando que o mesmo problema sinalizado durante a idade antiga e

medieval poderia ser visto, novamente, na idade moderna. Isso porque, a mesma

postura pode ser retraduzida sob novos aspectos e novas roupagens, mantendo,

ainda, a mesma “vontade de crença” com relação à ciência e tecnologia, ou mesmo

ainda sob a influência do capitalismo.

Essa “vontade de crença” se revela não só ao definir uma postura diante de

suas próprias ações, mas porque acaba por promover a mesma imutabilidade que

nega o movimento da vida em sua existência:

[...] se Nietzsche anuncia a morte do Deus na fixidez negadora da vida, é para abrir a possibilidade da afirmação de um divino no qual o homem não se procuraria a si mesmo (neste, o homem não acreditaria), mas que bem poderia querer na sua irredutível diferença. (VALADIER, 1991b, p. 61).

Desse modo, como defende Paul Valadier (1991b), é praticamente

insustentável manter a ideia de uma conciliação entre a modernidade e um simples

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ateísmo, como negação da vida de Deus. Mais do que apenas lidar com o

transcendental ou mesmo com sua negação, a “morte de Deus” representa a própria

morte do Homem, visto como arquétipo de supremacia, uma elevação de si mesmo,

um ser em busca da perfeição. Por outro lado, essa morte representa, também, a

transitoriedade típica desse mesmo ser humano.

Ao se colocar diante dessa dicotomia do significado da “morte de Deus”, Paul

Valadier faz referência a Marcel Gauchet. Diz Valadier:

A morte de Deus, escreve M. Gauchet, em perfeita coerência com o que acabamos de sugerir – não é o homem tornando-se Deus, reapropriando-se da absoluta disposição consciente de si mesmo que Ele lhe havia emprestado; pelo contrário, é o homem expressivamente obrigado a renunciar ao sonho da sua própria divindade. É quando os deuses se eclipsam que se consta realmente que os homens não são deuses. (GAUCHET apud VALADIER, 1991b, p.61).

A modernidade passou a ser terreno fértil a discussão do fundamento das

principais linhas de crença, graças a pensadores como Nietzsche e outros que

passaram a destituir o transcendente do seu lugar privilegiado. Porém, considerar o

ateísmo como a exclusão absoluta do divino é compor um sofisma, pois esse

ateísmo, ao se opor ao princípio religioso, revela-se como seu negativo. Tomar a

decisão de se declarar ateu exigirá a compreensão daquilo que se nega. Por esse

motivo, o crente encontra no ateu seu principal interlocutor, que lida com os mesmos

princípios, mas sobre pontos de vista antagônicos. Por conseguinte, para Paul

Valadier (1991b), a composição ateu-crente é inseparável, já que um necessita

diretamente do outro para justificar a sua construção ou a sua desconstrução: “[...]

tal decisão faz – ou faria – do ateu um interlocutor privilegiado do crente, [...] a sua

recusa o situa em um terreno próximo ao crente, do qual ele se torna então como

que negativo.” (VALADIER, 1991b, p. 62). Dessa forma, o crente e o ateu formam

uma dialética necessária dentro da discussão acerca da existência do divino, o que

a mantém existente e relevante, ao longo dos tempos.

O problema central, na contemporaneidade, não é apenas o da criação de um

hiato religioso com a ausência de Deus e, mas sim o da indiferença. Essa

indiferença é um problema moderno, já que ela desconecta aquilo que é objeto de

uma reflexão acerca do divino. Pela indiferença, o ser humano se afasta totalmente

do religioso, já que ele mesmo não tem nenhuma conceituação ou pensamento

acerca do que reflete. Obviamente, esse indiferente não está isolado de todas as

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outras coisas, visto que é uma profunda opção subjetiva, podendo, inclusive, ainda

se pautar em um tipo de fundamentalismo, pois, ao se portar como indiferente a

algumas coisas, o homem, necessariamente, posiciona-se como um fanático por

outras leituras e vivências. Alicerçando a análise nessa oscilação, pode-se

constatar, conforme ressalta o professor Paul Valadier (1991b, p.63), o “quanto a

situação da indiferença é instável e merece atenção.”. Se por um lado, a indiferença

marca o abandono das dimensões transcendentais de modo muito mais devastador

que o próprio ateísmo, por outro, ela se revela muito mais destrutiva, na condição de

elemento constituinte de um fanatismo absolutista.

Além dessa vertente absolutista, a indiferença é capaz de instituir múltiplas

possibilidades, estabelecendo uma postura pluralista e formulando diversas

respostas para uma mesma questão, relativas a uma série de possibilidades. Desse

modo, a pluralidade de possibilidades é também um fator contundente na destituição

religiosa, já que se constrói sob um relativismo de opções, que contribui

imensamente para essa indiferença religiosa. Paul Valadier constata que “[...] é

evidente que uma sociedade pluralista contribui também para reforçar a indiferença

religiosa.” (VALADIER, 1991b, p.64). A diluição das religiões traz em si mesma o

problema da perda das identidades (do ponto de vista religioso e fatalmente cultural)

que, desvinculada de sua atuação, passa a figurar como uma ameaça contra si

mesma, em um mundo plural, já que sua afirmação pode significar a supressão das

outras. Para Valadier,

Tudo se passa, com efeito, como se a situação provocada pela crise do racionalismo e das suas expressões políticas, ou como se as ameaças que uma modernidade crítica e ameaçadora faz pesar a respeito das tradições, provocassem uma desestabilização geral e uma perda de pontos de referência no próprio seio do universo religioso. De fato, trata-se de uma diluição das identidades que se pode verificar, para simplificar as coisas, quer sob formas ou de massa, quer sob formas sábias. (VALADIER, 1999, p.31).

Assim, as igrejas tradicionais, sobretudo a católica, veem-se diante do

problema gerado pela indiferença que ameaça, ostensivamente, o domínio secular

que elas detêm sobre as sociedades e os indivíduos. A contemporaneidade trouxe a

mácula de um esvaziamento das religiões, esvaziamento que se manifestou de

modo intenso não sob a forma de um ateísmo, como se pensou durante muitas

décadas, na tentativa de combater. A pior faceta – aquela que mais se revelou como

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nociva às religiões – não foi a do ateísmo, mas sim a da indiferença, que se

estratificou em todas as camadas consideradas religiosas. A marca do secularismo

passou, então, a acompanhar o modernismo, desalojando as religiões do seu

“egocentrismo”, tirando-lhe do lugar que sempre considerou seu por direito. A

modernidade manifestada pelo secularismo faz nascer a necessidade de reconstruir

os conceitos. Reconhecer-se nesse contexto não significa uma aceitação, uma

submissão aos próprios ideais. Em um primeiro momento, a modernidade levou a

acreditar que sua existência se justificava pelo aniquilamento das religiões, pondo

fim a qualquer uma das expectativas metafísicas, transcendentais, que faziam o ser

humano dependente de outra realidade que não fosse ele mesmo. Por isso, a

modernidade revela-se como uma busca de independência das tradições que até

então tentavam se constituir como único referencial. É legítimo, portanto, dizer que

O “secular” que trata do século opõe-se ao religioso, como o profano ao sacro, o temporal ao espiritual. Ora, esta distinção só tem sentido em relação ao teológico. E mesmo assim, em função de uma certa teologia que se pretendia ‘rainha’ e reguladora de saberes, figura medieval bem peculiar. (VALADIER, 1991b, p.21).

Assim, com o fim da denominada idade medieval, sempre vinculada à

dependência de um Absoluto, Paul Valadier (1991b) ressalta a instauração do

rompimento dessa mentalidade de dependência baseada na fé cristã – eclesial – em

todas as suas dimensões. Porém, ao evidenciar o fenômeno da secularização como

uma consequência da modernidade, Paul Valadier não o percebe como uma

ameaça à soberania da Igreja, nem o compreende como um mal a ser combatido,

mas apenas como um processo de adequação de temáticas e ideários desse

momento da história ocidental. Mesmo porque a Igreja ocidental não está em outro

lugar que não neste mundo que a critica e condena. Contrariando o pensamento

recorrente, não há grande novidade nessa perspectiva, uma vez que o Concílio

Vaticano I (1869-1870) já havia iniciado uma reflexão acerca dessa problemática

contemporânea, reafirmada, então, pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), tal como

afirma o próprio Paul Valadier:

De um Concílio (o Vaticano I) que combatia uma razão auto-suficiente (sic) e defendia a idéia de uma abertura para a afirmação de Deus através de um método racional, extrai-se a idéia de um reconhecimento dos princípios fundamentais da secularização. No fundo, os Padres do Vaticano II podem pretender que, ao fazerem isso, não estão inovando, mas simplesmente

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tirando as conclusões de teses já admitidas na tradição católica. (VALADIER, 1991b, p.24).

O único “porém” para a compreensão do secularismo advém do uso do termo

tal qual é apresentado, isto é, não basta ao pensamento valadierano compreendê-lo

apenas como uma separação indissolúvel entre a fé e a razão, mas apenas como

um pensamento que põe em seus devidos lugares as dimensões terrestres e

divinas. A autonomia proposta pelo secularismo é aquela que distingue

irredutivelmente cada uma das vertentes de todos os seres e entes de sua origem

transcendental. Distingui-las, de modo algum, representa um desacordo entre elas,

de maneira a torná-las impossíveis de conciliação. Na verdade, alguns setores da

Igreja assim o compreendem e se empenham em uma profunda luta que culmina

com a destruição dessa problemática. Nesse sentido, está claro que “a recepção do

Concílio não se fez sem resistências, que a aceitação de um julgamento positivo

sobre a secularização está longe de ser admitida por todos, e, portanto, que o

debate prossegue.” (VALADIER, 1991b, p.28).

Dessa forma, a Igreja se encontrou em um momento extremamente delicado,

já que internamente procurava fazer uma releitura de sua tradição, mesmo

encontrando resistências. Por isso, a ideia de processo, supracitada, tornou-se um

fundamento da própria modernidade, que foi pensado na estrutura da própria Igreja,

buscando acompanhar o ritmo desse tempo. Devido justamente a essa tradição que

a localiza no tempo e nos rumos da vida humana, a Igreja compreende que a

autonomia, por ela mesma, é necessária, mas não é suficiente, já que o conceito se

esvai com o tempo e perde sua razão de ser. Paul Valadier atesta essa

compreensão, ao determinar que a autonomia:

[...] que por si só não garante a felicidade humana, mas que reclama, para ser vivida corretamente, uma sabedoria e um sentido da existência que ela mesma não dá. Com isto, também, o Concílio dá a entender que a autonomia não tem a suficiência que a palavra sugere (ter a sua lei própria), mas supõe consciências capacitadas a fazerem uso dela. (VALADIER, 1991b, p.26).

Assim, o cristianismo é processo, por isso sua história não pode ser,

encerrada apenas com os acontecimentos que a história acena e ratifica. Mais do

que apenas narrar os acontecimentos e interpretá-los, o cristianismo nos desafia a

compreendê-lo enquanto ele mesmo se faz. Tal compreensão torna importante o

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entendimento de duas dimensões essenciais desse tempo: a primeira é o processo

de secularização que assumiu o papel de motor de um novo paradigma; a segunda,

a atuação do Concílio Vaticano II, como marca fundamental que procura situar a

Igreja dentro de um processo que se revela incessante para a própria história da

humanidade e, até mesmo, do próprio ser humano moderno.

4.2. A SECULARIZAÇÃO COMO PROCESSO

O processo de secularização se desenhou como um fator essencial à vida

moderna, ou seja, a partir do momento em que se adentrou o espaço de uma vida

livre dos paradigmas medievais, instaurou-se a esfera na qual, como afirma o

professor Valadier (1991b, p.21): “[...] o ‘secular’ que trata do século opõe-se ao

religioso, como o profano ao sacro, o temporal ao espiritual.”. A partir desse

momento, então, a sociedade ocidental passou a ser compreendida sob o prisma de

uma semântica religiosa, ainda que pela ótica de sua negação. Mais ainda, o

secularismo se manifestou pela forma de um ímpeto direto contra as religiões, de tal

modo a redefinir, ou melhor, visando mesmo a sua extinção do conjunto social. Por

assim dizer, “[...] cientismo, laicismo e estatismo, verdadeiros cancros da

secularização, engendram o secularismo, isto é, um processo voluntário, dirigido e

ordenado de marginalização e até de destruição das religiões.” (VALADIER, 1991b,

p.19).

Paul Valadier estabelece diferença entre o processo de secularização de

secularismo, já que confundir tais termos significaria repetir o equívoco do Sínodo

extraordinário dos bispos (1985), que apenas o considera como um isolamento do

ser humano da transcendência (sob a forma de mistério) já que a transcendência é

abstraída de todas as relações humanas no mundo. É preciso, então, cuidar para

não identificar secularização como secularismo, pois uma forma de rejeitar a

secularização é só falar dela em termos de secularismo.

Paul Valadier compreende o termo “secularização” sob três possibilidades de

significação: a primeira como uma independência do Estado com relação à religião,

ignorando-a sob o pretexto do respeito à pluralidade religiosa ou mesmo regulando-

a, conforme sua vontade. A segunda comprova a exclusão da religião da esfera

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pública, confinando-a no campo privado. Já a terceira explicita a secularização como

sendo a manifestação dos campos científicos e técnicos, aplicados em

experimentações e guiados por métodos específicos. Assim, “[...] impõe-se,

paulatinamente, aos espíritos a concepção de um real diferenciado, pluriforme, que

obedece a regras específicas segundo os níveis em que são apreendidas.”

(VALADIER, 1991b, p.17). O secularismo, portanto, confere um ritmo fundamental à

modernidade, que não aceita a submissão ao modelo “teológico-religioso-católico”

cujas acepções delinearam a Europa e a mentalidade ocidental. Ao se filiar a essa

perspectiva teórica, Paul Valadier afirma com extrema relevância que

[...] não é apenas a teologia que é de certo modo expropriada da sua pretensão de ordenar a totalidade dos saberes: com ela também a religião fica “relativizada”: como se vai ao céu, mas não como vai o céu. À teologia cabe prescrever como se ganha o céu, à astrofísica compete explicar os movimentos astrais. Esse é na verdade o esquema perfeito da secularização. (VALADIER, 1991b, p.17).

No âmago desse processo de secularização ocorreu ainda, de modo paralelo,

uma estruturação doentia da racionalidade que estabelece uma ligação entre essas

significações, já que a ciência nasce desse processo de racionalização do

pensamento humano. A essa destrutibilidade religiosa deu-se o nome de cientismo.

Segundo Paul Valadier (1991b, p.58), esse conceito pode ser compreendido como

“[...] o poder que dissolve racionalidades científicas, segundo o qual o poder que

dissolve racionalidades científicas arruinaria progressivamente a base dos sistemas

religiosos.”

Contrariando o que se pode pensar, o monoteísmo recorrente, se tornou um

fundamento essencial na constituição e na elaboração da modernidade, bem como

do seu secularismo. Isso porque, quando ocorre a “expulsão” das outras formas

divinas da consciência humana há, concomitantemente, um desvelamento do

universo, que passa a ser uma unidade mensurável, quantificável, características

essenciais da modernidade latente que se apresenta em construção, dentro dos

paradigmas nascentes. Paul Valadier assim complementa o pensamento iniciado

anteriormente, ao constatar o ultrapassamento da definição da presença do

transcendental na vida humana, em nome de uma imanência do cosmo, do mundo:

E por mais que se fale mal sobre ou contra o monoteísmo bíblico, ele traz consigo uma emancipação do universo, em relação a um Deus uno: na

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medida em que ele afirma que o universo é criado, e portanto querido (quaisquer que sejam a forma e o modo do ato criador), demarca ao mesmo tempo uma distância infinita em relação ao Criador, e abre o universo a uma investigação indefinida. (VALADIER, 1991b, p.93).

O universo fica, então, ao alcance do ser humano, que, mesmo em sua

imanência, passa a alcançar esse universo, antes transcendental e distante,

trazendo-o para bem perto de si mesmo. A partir daí, o ser humano pode não só

situar-se dentro do universo, como também se compreender presente nele,

estabelecendo relações fundamentais com os outros ao seu redor e com o mundo

que o cerca. O ser humano não é mais a marionete de um deus, capaz de tudo para

realizar sua vontade egoísta. Por outro lado, “Deus” não se ausenta indefinidamente,

mas se presentifica através de sua Lei.

O que ocorre, na verdade, é que há uma indexação da presença de Deus,

através da constituição da Lei. Primeiramente, a lei do cosmo ordenado, já que “[...]

o cosmos criado não é Deus. Mas nem por isso Deus abandona o homem, nem o

condena a um domínio cósmico entregue ao capricho humano: oferece-lhe a

possibilidade de viver segundo a Palavra da sua Lei [...]” (VALADIER, 1991b, p.94).

Essa é a lei que todo ser humano está orientado a seguir fielmente. Posteriormente,

essa Lei se especifica, na personificação da Lei Mosaica, garantindo não só a sua

existência, bem como o equilíbrio da Natureza com a Humanidade. Essa lei justifica

e ratifica a necessidade de uma autonomia, baseada na Lei em si mesma, desde a

criação até o seu ápice na confecção da Lei do monte Sinai.

Assim, o secularismo foi compreendido como um forte colaborador na causa

do ateísmo, na destituição do privilégio das religiões como paradigmas da vida

ocidental, já que essa fragmentação religiosa se sustenta necessariamente na

constituição da capacidade de autonomia do ser humano. É possível dizer que até

mais do que um colaborador, o secularismo surgiu como uma face moderna própria

do ateísmo, da própria desvinculação do transcendental. Como se citou na primeira

parte deste capítulo, o ateísmo necessita, vigorosamente, do religioso, a fim de

estabelecer o seu parâmetro de definição conceitual. Isso faz emergir os seguintes

questionamentos:

[...] todo este vocabulário não reflete um surdo questionamento de um mundo moderno ‘emancipado’, e, portanto, que nasceu à força em alguma insubordinação e por desagregação de um universo social tomado como modelo? Ora, ao fazer isto, não se consagra, mesmo que negativamente, a

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autoridade da religião, não se alimenta a nostalgia de um universo homogêneo e reconciliado? É muito mais simples e mais correto entender a modernidade em si mesma, no seu processo interno que não é dirigido contra ninguém, não é o resultado de nenhuma rebelião emancipadora, mas obedece à sua própria lógica imanente. (VALADIER, 1991b, p.22).

A perspectiva secularista denota, em princípio, a emancipação das

sociedades do domínio religioso. Contudo, essa emancipação não revela,

necessariamente, uma exclusão absoluta da vertente religiosa do ponto de vista

social, já que esse processo emancipatório abre perspectiva para outras reflexões

acerca do problema, ou seja, “[...] tenta dizer alguma coisa sobre a relação da

modernidade com a religião. Por mais imperfeito que seja, esse processo mantém

aberta uma perspectiva que outros conceitos eliminam.” (VALADIER, 1991b, p.22).

Segundo a interpretação valadierana, o processo de secularização liberta o

pensamento e a ação humana de uma simples interpretação transcendental, que

lança a humanidade para além dos seus limites em direção a uma realidade

extramundana, em nome de uma autonomia neste mundo em que ela se efetiva.

Assim, alcança-se a autonomia, que, mesmo sendo um passo essencial da

modernidade, não garante por si mesma a plenitude da felicidade humana, embora

seja exigente na criação de uma significação segura do mundo em que se insere.

Dessa forma, o processo de secularização conduz o ser humano a uma

pretensa autonomia, livre de qualquer possibilidade de submissão a uma força além

da sua própria. Todavia, não basta apenas estar livre dessas forças transcendentais,

é preciso, antes, constituir uma consciência capaz de favorecer o pensamento

humano diante dos desafios que compõem a vida e o seu sentido. Dito em outras

palavras, a “[...] autonomia não equivale à independência, a consciência é

necessária para ordenar as realidades históricas segundo o projeto de Deus, esta

consciência deve poder inspirar-se em uma fonte de sentido formadora.”

(VALADIER, 1991b, p.26).

Não basta compreender o mundo em que se vive somente na perspectiva

científica, racionalista, que apenas o considera sob o ponto de vista objetivo e

incólume de uma realidade processual que o cerca. O mundo não é como pensaram

os positivistas47, uma referência científica como uma realidade físico-química, capaz

47 Como afirma Capra, a visão do mundo e o sistema de valores que estão na base de nossa cultura, e que têm de ser cuidadosamente reexaminados, foram formulados em suas linhas essenciais nos séculos XVI e XVII. Entre 1500 e 1700, houve uma mudança drástica na maneira como as pessoas

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de ser mensurada mecanicamente. Nem apenas uma máquina, como sintetiza a

visão cartesiana48, mas um emaranhado constante de possibilidades e

compreensões que vai além de suas aparências e do que se pode pensar sobre ele

ou mesmo especular sobre sua essência. Tipicamente, é um mundo em processo

constante de mudanças e redefinições, que não pode e nem deve se prender a

quaisquer que sejam as especulações em torno de um conceito ou de uma

formulação salvadora, capaz de oferecer ao ser humano uma noção de segurança.

Por isso,

[...] a ilusão racionalista está, sem dúvida, defunta sob os traços que tomou no marxismo-leninismo (a menos que se trate de um torpor temporário), mas permanece fecunda em inúmeras esperanças, em muitos espíritos e tal. Como veremos, continua a se alimentar, em relação às religiões, as velhas críticas que se teria crido arrumadas nos sótãos do disparate. (VALADIER, 1999, p.23).

O processo de racionalização de tudo o que existe, assim expresso, revela-

se como a possibilidade de significação do ser humano diante do mundo. Busca-se

um sentido justamente porque este se esvaiu com a “morte de Deus”, com o fim das

religiões. Assim, ao se determinar mais contundente e importante do que as

vertentes religiosas, o pensamento científico se impôs como único modelo válido , tal

como afirma Paul Valadier (1991b, p.80): “[...] à medida que a secularização impõe

um modelo dominante, o da racionalidade calculadora e científica, ela desvaloriza as

tradicionais fontes de sentido, ou as desagrega, folclorizando-as.”. Portanto, o

processo de secularização é ainda responsável pelo fato de as igrejas terem-se

tornado inacessíveis àqueles que delas não participam efetivamente, o que gerou

um conjunto moral particular, com dogmas de difícil assimilação, quando não há

uma adesão explícita a esse conjunto moral.

O secularismo desqualificou qualquer sentido religioso nas interpretações do

mundo e do próprio ser humano. Porém, como se deu essa situação dentro do

espaço religioso e por que ele se tornou o alvo preferido do processo de

descreviam o mundo e em todo o seu modo de pensar. A nova mentalidade e a nova percepção do cosmo propiciam à nossa civilização ocidental aqueles aspectos que são característicos da era moderna (CAPRA, 1982, p. 49). 48 Descartes divulgava que o universo nada mais era que uma máquina. A natureza funcionava mecanicamente de acordo com leis matemáticas. Esse método de conhecimento tornou-se o paradigma dominante da ciência até nossos dias, pois passou a representar o modelo no qual toda produção científica deveria se basear. (COTTINGHAM, 1986).

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secularização? Fundamentalmente, o secularismo advém da perda das categorias

de sentido que serviam para significar o mundo e as relações do ser humano

consigo mesmo e com aquilo que o cerca. A modernidade secularista é ainda

estabelecida e determinada por um modelo socioeconômico específico: o

capitalismo, aqui compreendido dentro do liberalismo econômico. Por isso, ao se

tornar um paradigma de construção da vivência dos tempos modernos, o liberalismo

instituiu-se de modo a não permitir que nenhum conjunto pudesse superá-lo, nem

mesmo nas instâncias morais. Dessa forma, a moralidade se torna elemento

antagônico diante do liberalismo e do capitalismo, segundo o professor Paul Valadier

(1991b), que a considera como uma nova instância de prática cotidiana, até mesmo

na construção de pensamentos e ideais. Nas reflexões do autor: “[...] o liberalismo

econômico pretende só reconhecer como moral a lei do mercado, a única eficaz,

produtiva e inflexível. Temos aí certamente uma moral, mas por inteiro comandada

pelos imperativos da produção e do intercâmbio econômico.” (VALADIER, 1991b,

p.80).

O advento da secularização denominada “moderna” baseou-se no progresso,

no uso das técnicas e das ciências, responsável, pelo desencantamento do mundo,

até então interpretado à luz da divindade e do transcendentalismo. Orientado por

essa perspectiva, Paul Valadier ressalta a intuição nietzscheana que anteviu o

enraizamento de uma verdade supostamente absoluta e definida, afirmando que

Uma das intuições mais brilhantes de Nietzsche foi haver entrevisto em pleno século positivista o quanto a racionalidade moderna devia à morte dos deuses, e mais ainda a uma vontade de verdade que se enraíza em algum absoluto. (VALADIER, 1991b, p. 93).

A Igreja se encontrou, então, diante de uma sociedade que se isolou, ao se

posicionar de modo veemente contra as religiões e, por conseguinte, contra as

igrejas. O secularismo se ocupa, então, de transformar em meros aspectos

secularizados aquilo que as igrejas propagam. Chega até a necessitar delas, desde

que se ocupem apenas com seus cultos, com sua caridade. Surge, então, o que

Paul Valadier (1991b) denominou processo de metaforização do mundo em seus

significados. A grave consequência disso é que a Igreja passa a se situar totalmente

fora do mundo, marginalizada e exilada de qualquer tipo de vida social. Poder-se-ia

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agora falar de uma Igreja com uma “atuação mínima”, isto é, que cuida de si sem o

compromisso de interferir no mundo. Desse modo, a Igreja

Deixaria o campo livre exclusivamente à racionalidade técnica e ao jogo das relações de forças e interesses. Confirmaria a ideia de que ela continua a desempenhar tanto melhor a sua função quanto mais deixar a sociedade seguir as suas próprias inclinações [...] (VALADIER, 1991b, p.81).

Apesar extinguir a necessidade de religiões, o secularismo precisa delas, pois

uma sociedade que assume absolutamente o individualismo, como forma essencial

de se constituir, perderia a coesão de si mesma, tendo inclusive de apelar para um

regime de força. Assim, o indivíduo não subsiste apenas tendo uma “razão

calculadora” (como defendido pelo processo de secularização). Ele necessita de

uma “razão simbólica” (como produzem as religiões), a fim de estabelecer um

significado, um sentido com o mundo em que atua. Por esse caminho

É preciso até dizer que a razão calculadora só pode produzir os seus frutos, estender o seu domínio, multiplicar suas iniciativas se emergir a si mesma daquilo que chamaremos de razão simbólica, e, portanto, se o indivíduo se apoiar em relações em que encontra sentido. (VALADIER, 1991b, p.83).

Dessa forma, uma razão necessita da outra, a fim de conseguirem

estabelecer a atuação do ser humano no mundo, numa relação intrínseca com o

social, já que o indivíduo é determinante na vivência dos valores sociais, já que

conceber um indivíduo puro ou isolado do seu componente social é apenas mera

ilusão, sem consistência empírica. O processo de secularização emerge na tentativa

de isolar o ser humano de toda e qualquer possibilidade de manifestação do

componente transcendental, religioso ou absoluto, ou seja, o que o secularismo faz

é retirar a exclusividade de sentido de Deus, da religião. Por isso, o professor Paul

Valadier, determina que

É capital para a Igreja, tomar consciência desta situação de difração dos sentidos, a qual, em uma primeira abordagem, parece privá-la da sua razão de ser enquanto instância por excelência que abre para o sentido primeiro e último. (VALADIER, 1991b, p. 86).

O fato é que a secularização não representa apenas uma barreira

intransponível, que decreta o fim das religiões e até do próprio Deus, visto como

uma vontade de crença, disseminada em diversas leituras religiosas possíveis. A

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secularização, uma das essências da modernidade, foi interpretada como apenas

como um “mal absoluto”, capaz de destruir todas as instâncias religiosas do ser

humano moderno. Mesmo tendo esse raciocínio sob suspeita, ao cristianismo é

atribuída a paternidade do secularismo, como elemento básico da modernidade.

Com a chancela do cristianismo, a modernidade gerou a ciência, graças à adesão

ao pensamento racional grego: “[...] sobretudo, o cristianismo só produziu esses

efeitos ao cruzar-se com um pensamento e uma mentalidade moldada pela filosofia

grega.” (VALADIER, 1991b, p.100). Tal moldagem é necessária, mas não é

suficiente, pois o próprio Paul Valadier, cita Hannah Arendt em sua obra Essai sur la

Révolution49 , na qual defende que o advento da ciência moderna necessitou ainda

da Revolução Francesa, a fim de despertar dos “germes” revolucionários da própria

fé cristã. (Cf. ARENDT apud VALADIER, 1991b, p.80).

Percebe-se que, segundo Paul Valadier (1991), a sociedade não está

minimamente preparada para “abrir mão” da presença das religiões em seu

contexto, nem mesmo com o auxílio das ciências e da técnica. Ainda, segundo as

reflexões do autor, “[...] a sociedade moderna não está tão segura de si que possa

dispensar os esforços das religiões e das morais.” (VALADIER, 1991b, p.115).

Porém, tal constatação não significa que a religião deve ser a “pedra angular” de

todas as sociedades existentes. Assim, a sociedade moderna traz à tona todas as

categorias necessárias ao ser humano, dentro de um paradigma de constante

mudança e movimento, responsável por transformações que lhe são sempre

pertinentes. Obviamente, como já foi citado, vive-se em uma sociedade baseada na

“lógica mercadológica”, que sustenta todas as possíveis interlocuções apenas em

relações de consumo, de acordo com as necessidades criadas ou impostas pelo

mesmo mercado que as satisfaz.

Paul Valadier afirma, categoricamente que

É neste contexto que importa à Igreja significar uma ordem diferente da do consumo, da aceitação passiva de tudo ou da manipulação indiferente dos seres ou das coisas. Ela tem de ser sinal d’Aquele que não se deixa manipular, nem apropriar, nem trocar pelo que quer que seja. Se a Igreja abandonasse o jogo – do mundo dos sinais, na verdade arriscado – ela deixaria de significar socialmente que nem tudo é permutável e, portanto, desagradável. (VALADIER, 1991b, p.120).

49 Essai sur la Révolution, Gallimard, 1967, pp. 32-33.

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Torna-se latente a necessidade de se atribuir ao próprio Deus a

responsabilidade de reorganização da humanidade, até mesmo de uma cura de

todos os seus males e dificuldades. A Igreja se faz presente neste mundo, por meio

do seu desejo de atuar verdadeiramente nele, de tal modo a transformar a realidade.

Como reflete Paul Valadier:

Quer se goste dele ou não, quer o encaremos com entusiasmo ou com crítica, este é o nosso mundo, e é nele que a Igreja dá testemunho, fala, age, contesta e é contestada, anuncia Aquele que vem. Qual é, pois, a relação que se deve ter com ele? Haverá de manter-se à distância, sob o pretexto dos perigos ou da perversidade deste mundo? Ou, ao contrário, há de casar com o nosso tempo, sem escrúpulos e sem reservas? (VALADIER, 1991b, p.11).

Posicionar-se no tempo é muito mais do que apenas fixar o seu lugar no

espaço dos acontecimentos. Significa compreender o seu lugar de atuação e de

transformação das realidades.

Dessa maneira, o cristianismo se situa diante de uma nova possibilidade

histórica, gerada pelo seu modo de lidar com esse mundo, um mundo que se baseia

e se constrói com a alteridade. O secularismo não é apenas um fenômeno ateu, mas

o redirecionamento das realidades que extrapolam simples negação. Não terá o

cristianismo, na condição de capacidade religiosa, aberto em si mesmo uma fenda

para o nascimento da própria modernidade, como um domínio da natureza e do

mistério subjacente a ela mesma? Paul Valadier argumenta quanto à questão de um

possível esgotamento do cristianismo no advento da modernidade, por isso enuncia:

“[...] ao gerar a modernidade (esta é a tese conhecida, embora discutida), o próprio

cristianismo não terá, de certo modo, se esgotado?” (VALADIER, 1991b, p. 92).

Contudo, é necessário reinterpretar as realidades, buscando colocar o ser humano

em contato consigo mesmo. Por isso, o Concílio Vaticano II se tornou peça

fundamental na compreensão do universo cristão dentro da modernidade. No

entanto, até mesmo suas interpretações chegaram a ser considerada, em certos

momentos, como imposições de uma ação nociva à própria Igreja. Paul Valadier

denomina como “sabedoria do Concílio” (1991b, p.33) o fato de que “recusando-se a

consagrar oficialmente o termo secularização, ele situa-se acima das polêmicas e

elimina pela base um uso da palavra que seria apto a estimular nostalgias.”

(VALADIER, 1991b, p.29). O Concílio Vaticano II, em sua época, tentou assumir o

papel de mediador de uma realidade totalmente nova, que se desvelava diante dos

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olhos e das vivências da humanidade. O problema se desenvolveu a partir da busca

de um “meio-termo” que fosse capaz de refletir sobre os novos rumos da vida e da

história, sem que isso significasse, necessariamente, uma entrega, uma aceitação

de todos os pressupostos conferidos ao homem pela modernidade, inclusive aqueles

que atacassem diretamente a Igreja, tal como a secularização, sob a pena de ser

acusada de ter-se tornado acrônica, destoante do seu tempo, incapaz de atribuir

sentido àquilo que existe, especialmente à própria existência humana. A essas

perguntas, o Concílio Vaticano II tentará dar uma resposta satisfatória, de forma a

situar o ser humano em seu próprio contexto de vida.

4.3 O CONCÍLIO VATICANO II FRENTE AOS DESAFIOS DA S ECULARIZAÇÃO

Diante desse contexto do surgimento da secularização, da perda do

referencial religioso, como marca de um tempo que se instaura definitivamente na

vida do ser humano ocidental, a Igreja cristã se viu impotente. Estava frente a frente

com um fenômeno que, claramente, declara uma oposição veemente a todos os

seus princípios.

Normalmente, a posição a ser defendida com relação às pessoas e às

situações é de profunda rejeição ao que não se conhece ou que se compreende,

ainda que, em princípio, tal atitude seja maléfica. Paul Valadier argumenta que

[...] com o Vaticano II, a Igreja católica quis reatar relações positivas com a sociedade ambiente e, de uma maneira mais geral, com a cultura moderna: é o famoso tema do diálogo que serviu de programa e de estrutura de pensamento à primeira encíclica de Paulo VI, Ecclesiam suam (Agosto de 1964). (VALADIER, 1999, p.70).

Dessa forma, o Concílio teria um papel conciliador entre realidades, em

princípio, antagônicas, a saber, a modernidade secularizante e as tradições da

Igreja. Por isso, como já mencionado anteriormente, o Concílio Vaticano II não foi

aceito imediatamente como uma solução diante dos problemas que a Igreja

enfrentava no advento da modernidade. A dificuldade na compreensão desse

Concílio se tornou tão grande que, em muitos momentos, ele pareceu um passo

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efetivo rumo à ruína do cristianismo como religião. Paul Valadier, assim definiu tal

situação da Igreja, em estado conciliar:

Muitos se perguntam: o cristianismo sem dúvida – ou talvez – tem um futuro; mas e a Igreja? Será que ela mesma, através do Concílio Vaticano II, não se precipitou para o declínio? Querendo recuperar um tempo perdido ou correr atrás do mundo moderno, não perdeu a sua especificidade, a saber, a intemporalidade da sua mensagem e a firmeza opaca das suas instituições? Afinal, que aconteceu no decurso desse Concílio: oferece ele as bases de uma nova definição das relações do catolicismo com o mundo moderno? (VALADIER, 1991b, p.137).

Fundamentalmente, o Concílio Vaticano II não significa apenas a simples

aceitação dos termos e dados utilizados no processo de secularização, mesmo

sendo um termo praticamente exclusivo em uma leitura teológica, muito mais do que

em aspectos sociológicos. Segundo Paul Valadier, a compreensão do termo

secularização é limitada pelos dados da compreensão, restritos à ratificação da

autonomia da realidade terrestre e da realidade divina: “[...] o Concílio não endossa

o fenômeno da secularização em todas as suas dimensões: ele se limita a legitimar

a ‘autonomia das realidades terrestres’.” (VALADIER, 1991b, p.24). Por isso, não

basta ao Concílio Vaticano II ressaltar as benesses que a autonomia, advinda de

uma nova modalidade de pensamento moderno, trouxe às pessoas, mesmo porque

ficou claro que ela não pode – por si mesma – garantir a felicidade humana. Apesar

de significar a criação de uma lei própria, a autonomia é apenas um adendo

essencial às consciências individuais, capaz de capacitar o ser humano a ser livre,

suficientemente, para considerar suas próprias opções e efetivá-las.

Dessa forma, no contexto de modernidade, como processo inevitável do

desenvolvimento da história da humanidade, o Concílio Vaticano II tentou antes de

tudo compassar o desenvolvimento da modernidade com o caminho do cristianismo

e, por conseguinte, com o da própria Igreja. Entretanto, isso não significou um

processo de submissão da instituição às mudanças históricas que estavam sendo

processadas pela modernidade. Apesar dessa intencionalidade, a Igreja foi julgada

pelo seu passado, e qualquer tentativa de reconstruir-se, engajada socialmente, ao

defender os direitos humanos, foi considerada como forma de ascensão ao poder,

como ocorrera outrora na idade medieval. Paul Valadier destaca que o Concílio

Vaticano II não fundamenta sua existência ou mesmo sua tarefa na manutenção do

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seu poder sociopolítico e religioso, como já havia acontecido em concílios anteriores.

Por isso, ele destaca que o Concílio Vaticano II, não demanda

[...] para a Igreja uma posição de domínio da sociedade, não pretende fazer da Igreja chave que garante à ordem política sua estabilidade, sua permanência ou sua moralidade; admite, portanto, que economia, política, cultura, ordem internacional devem encontrar a partir do próprio interior do seu exercício os princípios do seu desenvolvimento; neste sentido, não institui a Igreja como guardiã da sociedade; nem por isso deixa de reivindicar para a Igreja uma função central no bom andamento da história, sublinhando o quanto são necessárias, em uma sociedade moderna, consciências instruídas e estruturadas por convicções. E com isto a Igreja reconhece um lugar essencial não somente à fé católica, mas também aos diversos sistemas de crenças que contribuem para alimentar a esperança dos homens. Daí o respeito manifestado em relação às outras religiões, respeito este que, como se vê, enraíza-se em uma convicção refletida e muito coerente. (VALADIER, 1991b, p.26).

Paul Valadier (1991b) destaca, como exposto aqui, que o Concílio Vaticano II

encontrou resistências profundas, já que muito mais do que apenas se opor às

mudanças da modernidade, ele buscou se encontrar dentro das possibilidades de

mudanças, ou seja, dentro de um processo de secularização. Por conseguinte, “a

recepção do Concílio não se faz sem resistências, (...) a aceitação de um julgamento

positivo sobre a secularização está longe de ser admitida por todos [...]” (VALADIER,

1991b, p.28).

O grande mérito do Concílio Vaticano II é que ele comporta, nele mesmo,

uma audácia essencial já que não se ocupa apenas em sentenciar a secularização

como um processo de isolamento da modernidade do aparato eclesial. Ele é

compreendido sob uma nova perspectiva, capaz de abordar a secularização como

possibilidade de se entender a autonomia temporal que busque integrar a religião e

a sociedade em seu tempo e em sua história. O Concílio Vaticano II buscou reforçar

a necessidade que a Igreja teve de se situar no mundo em que se encontra. E mais

do que apenas construir muralhas capazes de resistir às mudanças propiciadas pela

secularização em seu processo de multiplicidade, a Igreja buscou aproveitar-se

dessas reflexões, a fim de aprofundar a sua própria missão, voltada para o mundo e

no mundo. Sendo assim,

[...] era preciso terminar e completar o Concílio Vaticano I, e, portanto, prosseguir a reflexão sobre a Igreja, que havia parado exclusivamente na infalibilidade do Papa. Mas a leitura da Constituição mostra que o Concílio deu à sua meditação uma amplidão que vai muito além de um simples complemento de textos inacabados. (VALADIER, 1991b, p.148).

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Contudo, mesmo tendo conhecimento da intenção conciliar de tornar a Igreja

próxima das mudanças acarretadas pela modernidade, o Concílio – visto mais de

perto – não trouxe grandes novidades à prática e ao pensamento que antes faziam

parte do cotidiano da Igreja. O que não se pode esquecer é que a Igreja havia

passado pelo menos dez séculos desvirtuada de seus princípios fundantes e

fundamentais. Assim, as origens da Igreja estavam esquecidas, já que sua ideologia

estava ligada a um Estado que a sustentava política e ideologicamente, enquanto

ela devolvia-lhe o favor de um protecionismo divino. Por isso, o Concílio Vaticano II

retomou os princípios que a constituíram em seus fundamentos, buscando

estabelecer um diálogo com os paradigmas da modernidade. Assim, o professor

Paul Valadier ratifica que, verdadeiramente, “[...] o Vaticano II não fez nenhuma

revolução; o que fez foi passar de uma tradição recente estreita e esclerosada para

a grande Tradição esquecida ou mal conhecida da Igreja.” (VALADIER, 1991b,

p.150).

É fundamental observar que o Concílio Vaticano II provocou na Igreja uma

profunda reflexão, a fim de transformar-se, de acordo com aquilo que considera mais

fundamental isto é, estabelecer uma relação capaz de manter suas tradições mais

caras e, ao mesmo tempo, adequar-se às mudanças típicas dos novos tempos e

ideologias. “Na realidade, a fidelidade ao Concílio obriga a tomar consciência das

mudanças de mentalidade e das conversões exigidas para se olhar rumo ao futuro.”

(VALADIER, 1991b, p.169). A fidelidade ao Concílio revela uma fidelidade ao projeto

original do que vem a ser a Igreja, tal como foi imaginada.

Obviamente, em nenhum momento se deixa de lado a consideração

fundamental do que vem a ser a Igreja, em seu processo de constituição dentro da

modernidade, mas não se considera essa faceta como a única capaz de satisfazer o

avanço da humanidade, como lugar característico de uma igreja humanizada, não

apenas credora de uma realidade Absoluta. Isso não torna a Igreja isenta de todas

as situações pelas quais ela se colocará em confronto com os ideais e pensamentos

que possam divergir daqueles que ela considera essenciais, ou mesmo, dogmáticos.

Por isso, a Igreja deve estar preparada para, de fato, assumir as condições

oferecidas pela modernidade, sem, com isso, perder as suas características

essenciais. Tal como Paul Valadier enfatiza:

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[...] é evidente que a busca de uma presença adequada à sociedade moderna se impõe como condição de todo o resto, sendo que adequada significa, ao mesmo tempo, que a Igreja deve significar a sua mensagem na coerência com e na fidelidade àquilo de que é portadora [...]. (VALADIER, 1991b, p.170).

Sendo assim, com o intuito de se adequar às condições da modernidade, a

Igreja precisou se reorganizar, se redefinir, mantendo sua base fundamental de

pensamento, mas, ao mesmo tempo, caminhando junto com a estrutura criada pelo

ser humano em sua existência moderna. O perigo latente que acompanha essa

adequação vem da perda dos referenciais básicos, em nome de uma aceitação

passiva do que impõe o período histórico. Ao tentar adequar-se ou compreender-se

dentro do processo de secularização, a Igreja foi acusada de ser conivente com todo

o processo de mudança, a fim de garantir sua existência em meio a um turbilhão de

mudanças. Por isso,

Muitos alegam, com efeito, que o Concílio não foi compreendido corretamente ao ser lido como uma aceitação da secularização. Os que examinam as coisas a fundo – assim se argumenta, emitindo um juízo teológico sobre o mundo moderno? – sabem perfeitamente que o Concílio não podia aderir a uma secularização que, na realidade, equivale ao humanismo ateu. (VALADIER, 1991b, p.28).

Mesmo com esse interposto, que surgiu no caminho reflexivo da assimilação

moderna na vida da Igreja, ela não deixou de buscar uma aproximação com essas

mudanças. A busca de ser significativa, no contexto moderno, revelou-se como fato

fundamental para propiciar à Igreja o mesmo compasso em que caminhava a

sociedade moderna, a fim de não correr o risco de ficar apartada do

desenvolvimento assumido pela humanidade. Paul Valadier formula a necessidade

de visibilidade por parte da Igreja, mas não apenas no sentido moderno de uma

vitalidade midiática e sim como marca de uma das instituições fundamentais da

humanidade, ou, como ele mesmo afirma: “[...] na realidade, a questão não é a de

uma visibilidade a qualquer preço, mas a de uma visibilidade que faça sentido em

termos de coerência com a mensagem evangélica e com os seus destinatários.”

(VALADIER, 1991b, p.178).

É importante esclarecer que a visibilidade significa reafirmação da identidade,

que se diluiu ao longo dos anos anteriores e que se perdeu diante dos ataques de

uma sociedade secularizada, sociedade enfática em demonstrar, como trunfos de

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sua ação, o diluimento das diferenças, a perda da identidade e a banalização de

qualquer sistema de crença. Por isso, tornou-se imperativo o reencontro, ou melhor,

a reconstrução da identidade cristã frente à nova ordem social, econômica e política,

já que a própria Igreja se constituiu tendo como referencial básico a compreensão

eclesial desses conceitos.

Por esse motivo, a Igreja utilizou os meios principais para propagar suas

ideias. Nada melhor que o poder midiático como meio efetivo de alcançar um

número significativo de pessoas. Em uma realidade, onde a força midiática é a

alavanca que engendra todos os conceitos relevantes à nossa vida, corre-se o risco

constante de se perder em meio a tais necessidades e afirmações. Além disso, não

bastaria à Igreja apenas a propagação de algo que ela mesma não pratica.

Entretanto, essa relação com a mídia não deixa de ser extremamente perigosa, pois

pode, a qualquer momento, tomar o lugar do objetivo principal: reencontrar o lugar

da religião no novo contexto da sociedade ocidental.

Não faltam, porém, novos desafios para o cristianismo nesse contexto

mundial que se configurou, graças ao processo de secularização. O pluralismo se

revelou, em princípio, como um desafio notável, já que passava a considerar a

prática religiosa, não mais apenas através do perfil cristão, mas reconhecendo a

importância de outras religiões e designações ligadas a uma divindade. Ao se

aceitar a possibilidade de uma pluralidade de pensamento e de interpretações

acerca do divino, já se pode creditar uma abertura considerável no próprio

cristianismo, visto que, antes desse momento, a Igreja se preocupava quase que

inteiramente em exercitar o seu poder: “É exacto (sic) que todo um passado acredita

o preconceito do papado identificado com uma monarquia absoluta e da Igreja com

uma pirâmide onde tudo vem do cume.” (VALADIER, 1999, p.206). Se antes, então,

a Igreja exercia um poder absoluto, esse mesmo poder, graças ao Vaticano II,

começa a passar por um processo de desprendimento e de abertura para outras

crenças religiosas e seus dogmas específicos. Como reforça Paul Valadier:

Em qualquer hipótese, estas observações sugerem que o futuro não vai, e não deve ir, no sentido de uma erradicação das diferenças, mas no do seu reconhecimento recíproco. A tradição católica tem um papel eminente a desempenhar nesta tarefa e tem, pois, a sua “nota” a manter no concerto cristão porque, quer ao nível de uma inteligência da fé cristã compreendida como agregação ao corpo vivo de Cristo na comunidade do seu Espírito, quer ao nível da prática de uma vida solidária mais do que individualista, preocupada com justificações racionais e não apenas só com fé sempre

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mais ou menos levada ao encerramento em si [...] (VALADIER, 1999, p.203).

Por isso, a marca essencial desse “novo tempo” não é mais apenas de uma

postura única, definitiva e determinada, mas a marca da compreensão e a da

assimilação de diversas possibilidades plausíveis acerca do que se discute, sem,

portanto, aceitar absolutamente tudo ou mesmo abster-se do que acredita ser

fundamental. A possibilidade constante de ocorrer a constituição do relativismo é

real e efetiva, já que, sem o cuidado devido, cada um pode tornar-se o novo

absolutismo que a tudo permite ou proíbe. A Igreja passou por profundas mudanças,

desde o momento em que era a detentora exclusiva da verdade, no período

medieval, até quando chegou a um momento oposto, momento em que, diante das

exigências contemporâneas, abriu-se à novidade do outro, diferente do que ela

mesma seria. Passou, assim, a “reconhecer o pleno valor da diversidade das opções

dos católicos” (VALADIER, 1991b, p.185), o que foi fundamental para se abrir as

portas a um conhecimento e a uma experimentação diversa e heterogênea. Ou, se

preferir, a uma postura plural para um mundo (gerador de mundos vários), capaz de

constituir novas realidades.

Obviamente, há uma perspectiva negativa na própria concepção do

pluralismo, quando esse se desgasta e já não atende mais às exigências de uma

sociedade plural. Desgastando-se essa conotação plural, alcança-se o que se

nomeia como dissensão, isto é, a divergência entre diferentes possibilidades de

compreensão. Esse choque constante entre a diversidade e a unicidade gera um

conflito recorrente entre as diversas acepções e posicionamentos. A tensão

existente pode, apesar de tudo, conduzir o ser humano a uma nova transformação

de sua ação e de sua ideologia, desde que gere a capacidade de superação de suas

ideias. Pontuará, portanto, Paul Valadier com respeito a tal fecundidade que ela só

se efetivará

[...] se cada uma das partes reconhecer que, sendo membro do povo de Deus, precisa incessantemente operar a sua própria conversão, trabalhar em um discernimento mais justo das exigências efetivas do Espírito no mundo presente. (VALADIER, 1991b, p.190).

Além disso, é fundamental que se processe uma mudança essencial no modo

próprio de se proceder, para não cair num relativismo moral, incapaz de constituir-se

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como capacidade real de uma vivência baseada em uma moralidade necessária ao

mundo. O relativismo moral constitui a raiz de sua existência nas condições

propícias oferecidas pela modernidade, ou, como enfatiza Paul Valadier, é possível

perceber que

[...] o embotamento intelectual, produzido pela tecnocracia, a vastidão sem precedentes dos desafios colocados à responsabilidade humana pelas conquistas científicas, sobretudo em matéria biológica, forçam os crentes, e mais amplamente todos os que têm um senso de um futuro sensato para a humanidade, a inventarem na fidelidade às suas tradições os termos de um testemunho moral renovado. (VALADIER, 1991b, p.196).

Mesmo se tratando de aspectos técnico-científicos, não se pode eximir a

responsabilidade moral em cada uma das ações praticadas. Cabe à consciência

moral se preparar para a adequação diante de certas necessidades que abrangem a

vivência moral de todo um povo, uma nação, uma espécie. Por isso, as

determinações técnico-científicas não podem servir de justificativa para ações

desmedidas, capazes de cercear o ser humano de seus valores mais importantes e,

até mesmo, de sua vida. A tecnicidade não deve contemplar apenas a capacidade

humana de criar e desenvolver aquilo que busca, mas, ao mesmo tempo, constituir

uma possibilidade real, contemplada pela própria vigilância ética de cada um de

seus atos.

Assim, a sociedade moderna é amparada no conjunto de ideais essenciais e

fundamentais que excluem a presença divina, dispensando-a na sua leitura do

mundo. Segundo Paul Valadier, à modernidade convém não

[...] pressupor que Deus é uma hipótese necessária para abordar a realidade fenomenal, está no princípio da atitude do mundo moderno, quer nas ciências, quer na prática. O questionamento deste princípio metodológico, fora do que se vê mal como se constituiria a sociedade moderna e se estabeleceria o espaço público comum, equivale, na realidade, a contestar, na sua essência, o princípio da modernidade. (VALADIER, 1999, p.73).

Mesmo convivendo com essa perspectiva da religião na modernidade, a

Igreja se tornou uma figura importante, justamente por que renunciou ao seu

mascaramento principal de detentora de todo o poder político, ou de uma

determinada cultura à qual se dedica de forma exclusiva. A partir de então, a Igreja

passa a ser o ponto fundamental no qual a diversidade cultural não é mais um

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obstáculo à sua conciliação com outros segmentos. A universalidade não é,

portanto, prévia de um tipo qualquer de discriminação, mas a possibilidade real de

reconhecimento ou, como afirma Paul Valadier:

[...] por não ser um modelo político, a Igreja não esmaga a historicidade humana; ela prefigura um Reino no qual Deus será tudo em todos, onde o Universal será a comunhão de particularidades reconhecidas e queridas como tais. Sob este aspecto ela é uma esperança capaz de secundar o avanço do mundo para uma unidade que não seja de nivelamento e para um acolhimento das diferenças que não sejam confusão babélica. (VALADIER, 1991, p.211).

Ao assumir um papel de tamanha importância, a Igreja não pretende ser

aquela que traz a verdade reveladora ou ainda a detentora única do que vem a ser

Deus. Essa Igreja está no mundo e participa dele, tentando propiciar a compreensão

do processo de desenvolvimento em direção ao devir, assim como a construção de

um novo sentido para a existência, numa sociedade que experimenta as marcas da

contemporaneidade. Não cabe mais uma Igreja enclausurada em si mesma, mas

uma outra pronta a buscar, a partir de si mesma, uma resposta que só é possível de

ser encontrada fora dela.

Compreende-se, assim, o conjunto de situações e dificuldades impostas pela

modernidade, principalmente no tocante ao problema do relativismo, Paul Valadier

entende a Igreja imersa nesses problemas, sem poder simplesmente ignorá-los. Ela

está no mundo, participa do mundo e não pode se esconder desse mundo. Por isso,

Paul Valadier, acentua que uma

[...] vez que estas questões, e muitas outras, atravessam a Igreja, esta não se apresenta imperturbável e maciçamente segura de si. Ela participa do processo do mundo, pelo fato de ser atingida pelas perturbações, esperanças e utopias dele. Ela participa também e, sobretudo, deste processo porque, pelas suas origens e pelo seu fim, tem condições de alimentar o processo do mundo. (VALADIER, 1991b, p.213).

Não resta outra forma pertinente de construção de sentido, senão aquela que

é obtida por meio do debate e da discussão de ideias, constantemente articulada

diante de cada um dos desafios e das dificuldades presentes no cotidiano. Esse

debate se articula para compreender a capacidade humana de ir sempre para além

do que supõe a definição de ser humano. Não pode, por isso, ter limites ou

demarcações, já que se propõe a discutir tudo que é próprio do ser humano em sua

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capacidade de construir o mundo em que vive. Deste modo, justifica Paul Valadier, o

cristão está no centro da discussão. Primeiro pelo fato de ser humano e, segundo,

pelo fato de optar religiosamente por esse credo, não pode se ausentar.

Por isso a Igreja e nela os cristãos precisam mostrar ao mesmo tempo em nome de que estão falando (sua fé em Jesus Cristo) e engajar-se em todas as questões vitais. Por este motivo a Igreja não deve, muito menos hoje em dia, permanecer enclausurada no religioso, como exigem certos “ultras” que não se deram conta da natureza do religioso cristão, ou não desejam compreendê-la. (VALADIER, 1991b, p.214).

Dessa forma, esse debate torna-se uma obrigatoriedade para todo aquele que

é crente e que compreende seu papel dentro do seu contexto social. Tal consciência

se constrói por meio da compreensão de seu objeto de fé, que o lança a vivenciar o

mundo em que vive. “Sem dúvida, a participação no debate supõe que se saiba

marcar limites e dizer não” (VALADIER, 1991b, p.215), o que significa, de acordo

com Paul Valadier, que o ser humano deve constituir-se, de modo consciente, frente

ao mundo em que vive e atua.

Finalmente, é fundamental compreender que os desafios do cristianismo e da

própria Igreja, como existência concreta da religião, não terminaram. Também não

se pretende pôr fim a eles. Mesmo porque, vivendo em um mundo fundamentado no

devir, é normal que as dificuldades e os obstáculos surjam ao longo de seu próprio

desenvolvimento. Sem dúvida alguma, a Igreja contemporânea passou por grandes

desafios no decorrer da sua história, não apenas com o advento do ateísmo, mas,

principalmente,na disseminação do relativismo, como uma marca contemporânea,

capaz de aceitar praticamente tudo, de acordo com a necessidade de cada

momento.

Com o Concílio Vaticano II, buscou-se uma assimilação maior do que se

propunha a modernidade. Pretendeu-se não apenas assumir o relativismo latente

em todos os seus processos, mas compreendê-lo como condição fundamental para

o entendimento dos processos desencadeados na contemporaneidade, alterando a

percepção desse problema. Isso porque não basta ao Concílio Vaticano II

compreender os caminhos da contemporaneidade. O Concílio quer ser o condutor

das mudanças necessárias para que a Igreja esteja em sintonia com as

necessidades das pessoas e da sociedade na qual está inserida.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não existem ideias, princípios, categorias, entidades absolutas, estabelecidas de uma vez por todas. Tudo o que existe na vida humana e social está em perpétua transformação, tudo é perecível, tudo está sujeito ao fluxo da história. (Michael Löwy)

Nesta dissertação, o objetivo fundamental foi analisar a inevitabilidade do

relativismo, em uma de suas vertentes: o secularismo, um dos problemas

fundamentais dos últimos tempos, quando o ser humano se descobriu impregnado

dessa faceta essencial e inseparável de si mesmo. O já tão dito “depende” é o termo

que encerra todo esse hábito de igualar tudo àquilo que se pode discutir, sem que

com isso ocorra uma distinção plausível entre os termos.

Viver em uma sociedade tão diversificada quanto a de hoje é um desafio

constante; compreendê-la, então, é um feito titânico. Não porque se utilize a força

como instrumento essencial, mas porque o esforço intelectual, humano e social é

algo digno das mais tradicionais epopeias. Constituir qualquer tipo de pensamento,

tendo a consciência de que a sociedade tem em sua essência o movimento

incessante do “devir” é sempre desafiador. Por outro lado, estar ciente desse

caminho não pode significar um acostamento indefinível a paradigmas outros, de

tempos passados.

A principal linha de pensamento que desencadeou essas reflexões situou-se

no campo da religião cristã, especificamente no catolicismo. Isso porque o ocidente

viveu uma relação nerval com o catolicismo, tomado como definidor das regras

morais que por tanto tempo orientaram as ações e escolhas dos indivíduos e

sociedades. Não basta, porém, dar prosseguimento ao hábito mais tradicional da

humanidade que viveu sob a tutela eclesial na idade medieval, isto é, respaldada no

argumento da autoridade. Vive-se, hoje, um momento diferente, em que as

respostas absolutizadas causam um profundo incômodo no ser humano, que não

consegue ir além delas. Dessa forma, alcança-se a multiplicidade de respostas

como se fosse a solução definitiva. Essa pretensão em qualquer situação objetivista,

já seria algo extremamente difícil de ser concebido de modo definitivo. Ao aplicar

esse tipo de solução em uma situação do cotidiano que evoque o juízo ético ou

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moral, a questão fica ainda mais alarmante, já que nesse tipo de situação a

multiplicidade de possibilidades só torna as respostas ainda mais complexas e

ininteligíveis.

Ao se lidar com juízos de valor e não de fato, insere-se no processo o

conceito de subjetivação que torna cada ação do sujeito passível de análise e de

questionamento sob um ponto de vista diferenciado. Passam a contar, portanto, com

aspectos específicos, tais como contexto, escolhas, antecedentes subjetivos que

sejam capazes de contribuir para a determinação de uma direção do pensamento ou

da própria ação. Dessa forma, não bastará, portanto, à moral uma avaliação geral

dos problemas, nem mesmo uma compreensão ampla, baseada em aspectos

comuns aos seres humanos, independentemente de onde estejam. Esse papel é a

ética que desempenha, segundo os modelos estabelecidos pela vivência e reflexão

humana, ao longo dos tempos.

Paul Valadier que, em princípio, deveria se ocupar em constituir uma apologia

do cristianismo, contra aqueles que se preocupam em atacá-lo constantemente,

como ocorre com Friedrich Nietzsche, assumiu um posicionamento contrário ao se

ocupar em compreender a proposta do autor alemão. Ao proferir o aforismo da

“morte de Deus”, Nietzsche não optou por “inaugurar” a era do ateísmo moderno,

mas decidiu levar o ser humano a uma constante reflexão sobre si mesmo,

independentemente de um poder absoluto que o amparasse. A ética e a moral

processadas pelas escolhas não poderiam ter sido determinadas por forças

estranhas ao ser humano. A contribuição fundamental de Nietzsche não está em

tentar dissuadir a crença no cristianismo, na ciência ou em qualquer outro símbolo

da dependência humana, mas em dar um tratamento correto aos conceitos , isto é, a

ação humana não tem outra fonte de inspiração que não o próprio ser humano.

Sejam as boas ou as más ações, elas são geradas no ser humano e é ele que deve

arcar com as consequências dessas escolhas, no tempo e no lugar em que ele se

encontra e nunca em um mundo que está por vir.

Esses preceitos seriam fundamentos excelentes em um mundo estagnado, de

poucas mudanças, capaz de ser mensurado (como desejava a ciência), capaz de

ser determinado e remetido para uma realidade extramundana (como desejava a

religião). Contudo, o mundo em que se dá essa reflexão é um mundo onde a

mudança é um paradigma inquebrantável. Por isso, um mundo em processo

constante de transformação. Contando com esse ambiente, a sociedade se viu

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desorientada e sem bases nas quais se sustentar. Isso porque, enquanto a

velocidade é uma consequência das mudanças, ela também é causa, já que se

impõe como um verdadeiro “rolo compressor” à realidade que é massacrada por ela.

Compreendendo-se nessa realidade, o ser humano cai em um processo decadente

que conduz, inevitavelmente, ao pessimismo e à nadificação de todos os valores.

Nesse ponto, o ser humano se perde do mundo e de si mesmo. Perde-se por não

encontrar realidade alguma capaz de lhe dar o sentido que necessita perceber

diante das situações. O “sentido maior” a que estava acostumado se desfez, ele

morreu, ou melhor, “nós o matamos”. Por isso, nem a religião é capaz de suprir a

sede humana de sentido. Depende do ser humano. É ele que deve se determinar e

assumir as consequências de tal atitude.

A contemporaneidade trouxe algo original: o problema não é apenas a

ameaça do nada circundando o ser humano, mas também a multiplicidade de

possibilidades que acaba por embaçar o poder decisório do homem, fazendo-o

perder-se frente à multiplicidade de opções e argumentos, que, por vezes,

contradizem-se. É o relativismo que se institui como explicação convincente e

eficiente de uma realidade que não para nunca de se transformar e de se adaptar,

desafiando o ser humano a acompanhá-la, de modo a não continuar perdido de si

em si mesmo.

A religião católica busca não ficar alheia a esse maremoto de transformações,

típico da contemporaneidade. Por isso, reúne o Concílio Vaticano II como uma forma

de se adaptar às mudanças. Apesar de todas as dificuldades, a Igreja Católica

consegue promover algumas mudanças essenciais no seu itinerário. Obviamente,

nada substancial ou imediato, como gostaria a contemporaneidade, acostumada ao

seu movimento típico, mas, ainda assim, consegue instaurar um princípio de

compreensão da estrutura que a cerca. Não basta enfrentar os relativismos, os

absolutismos, substituindo-os por outros que simplesmente exercerão o mesmo

papel.

Como se afirmou na introdução, a intenção desta dissertação nunca foi a do

esgotamento do problema do relativismo, mas sim a sua composição sob o ponto de

vista de um pensador que buscou desmistificar os pré-conceitos acerca das ideias

nietzscheanas. Paul Valadier faz isso com cuidado, evitando que ele mesmo se

tornasse um “discípulo” do pensador alemão (importante lembrar que Nietzsche

abnegava qualquer sentido de discipulado). Valadier não se nega, contudo, o

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reconhecimento da responsabilidade por uma reflexão tão atual e necessária, nem

por isso menos desafiadora e pujante em toda a sua essência.

Ao se compreender, de maneira mais intensa, a necessidade de se refletir

sobre o problema do relativismo na contemporaneidade, compreende-se também a

função desempenhada pela Igreja Católica no Ocidente, como formadora de um

paradigma que até hoje é considerado a resposta definitiva para preceitos morais.

Torna-se, portanto, essencial questionar que motivações fazem buscar o Bem e

evitar o Mal, sem que com isso, se tenha que recorrer a uma realidade superior ou

absolutizada, como algo que é necessariamente melhor do que o “eu mesmo”. É

praticamente impossível pensar em questões morais sem incluir o pensamento

eclesial, visto que ele detém os argumentos que, por séculos, serviram de única

explicação para tudo que se pensava acerca do problema moral. Exatamente por

isso, o Concílio Vaticano II é carregado de tanta importância, pois através dele é que

se conseguiu produzir, constituir uma reflexão eficaz acerca dos fundamentos

necessários em um tempo contemporâneo, fundamentos que se desenham no

horizonte da Igreja Católica, mas que ao mesmo tempo estão em constante

processo, sempre abertos à compreensão de novas situações que se apresentem.

Mais do que apenas ser a referência de uma religião secular, o catolicismo deve, a

partir do Concílio Vaticano II, situar-se como aquele que está sempre em uma

espera ativa, ou seja, não apenas se resguardando das dificuldades e empecilhos

impostos pelo mundo e pela contemporaneidade progressiva, mas mostrando-se

atento ao seu modo de interpretar esse mundo. Deve fazer valer os valores que

realmente podem constituir uma sociedade melhor para o próprio ser humano, que é

o ponto central de toda a ação religiosa. O cristão não é o eterno, imutável, dotado

de valores incorruptíveis, mas sim aquele que se posiciona como o ser, segundo o

pensamento nietzscheano, isto é, o ser em devir, em mudança constante. Dessa

forma, torna-se fundamental que a Igreja Católica seja, a partir do Concílio Vaticano

II, uma Igreja em processo constante de transformação. Não em um processo

indefinidor de sua própria identidade, mas um processo que a acompanhe como

categoria de existência e de conceituação, um processo constante de inovação e de

adequação às necessidades humanas, para as quais a Igreja se volta. Dessa forma,

deter esse processo no qual a Igreja está envolvida seria deter o próprio movimento

da vida.

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Enfim, é importante se apaziguar com essa condição, em si mesma filosófica,

de não se chegar a uma conclusão definitiva sobre esse problema. Mais do que

apenas constatar o problema em suas diversas ramificações, principalmente na

contemporaneidade, é importante instituir no ser humano o hábito constante de se

vigiar. Vigiar muito de perto as armadilhas conceituais em que se lança

constantemente dentro de um relativismo capaz de se estender a todas as linhas da

vida humana. Esse relativismo pode sempre tender para qualquer direção que lhe

seja mais conveniente e abandonar as perspectivas possíveis de se pensar em

nome de um absolutismo que se diz reconfortante, mas que imobiliza qualquer ação

pelo seu modo de se constituir preso a uma teorização qualquer. Sendo assim,

parece coerente aderir a uma resposta capaz de se distribuir em direções diversas,

ainda que contraditórias, mas mantendo sempre a sua perspectiva múltipla. Diante

de tais situações, torna-se imperativo o cuidado constante e incansável com relação

ao choque entre absolutismo e relativismo, já que a vida atual se dá em uma

sociedade múltipla em todos os sentidos, o que exclui a adequação da Igreja

Católica num contexto com tamanha diversidade. Por isso, é muito importante que,

mesmo diante da grande evolução propiciada pelo Concílio Vaticano II, seja mantida

a atenção necessária e o devido cuidado com as diversas mudanças na história

contemporânea. Não é uma tarefa impossível, mas um exercício constante a ser

feito, em cada momento da vida e da história da humanidade.

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