A Inconstância Da Alma Selvagem -e Outros Ensaios de Antropologia

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0 marmore e a murta: sabre a inconstancia da alma selvagem 0 problems da descrenga no skid° XV1 brasileiro' Em uma pigina magnifica do Sertncio do Espirito Santo (0657), Antonio Vieira escreve: Os que andantes pelo mundo, e entrastes em casas de prater de principes, verieis naqueles quadros e naquelas runs dos jardins dois gineros de estd- tuas muito difirentes, umas de mdrmore, ()tetras de murta. 4 estcitua de mdrmore custa muito a Ater, pela dure ta e resistincia da matdria; mas, depois de feita uma ve t , nao a necessdrio que the ponham mais a meio: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estdtua de murta é mais fdcil de formar, pela facilidade corn que se daram os ramos, mas necessdrio andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa ojardineiro de assistir, em quatro dias sal urn ramo que the atravessa os olhos, sai outro que the descompOe as orelhas, saem r. Agradeco a Marcio Goldman, Tfinia Stolz Lima e Carlos Fausto pelas discusoes que levaram a versio final deste ensaio, e l especialmente a Manuela Carneiro da Cunha pela parceria na formula*, ha algttns anon, de muito do aqui exposto (cf. Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 98i). 0 ensaio foi escrito gracas a insis- tencia kenerosa de Aurore Becquelin e Antlinette Molinie, que o aguardaram corn paciencia e (no caso de Aurore) o traduziratn parcialmente para sua publica* na coletinea Memoire de la tradition (Becquelin & Molinie [orgs.] 1993). 183

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A Inconstância Da Alma Selvagem -e Outros Ensaios de Antropologia

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  • 0 marmore e a murta: sabre a inconstanciada alma selvagem

    0 problems da descrenga no skid XV1 brasileiro'

    Em uma pigina magnifica do Sertncio do Espirito Santo (0657), AntonioVieira escreve:

    Os que andantes pelo mundo, e entrastes em casas de prater de principes,verieis naqueles quadros e naquelas runs dos jardins dois gineros de estd-tuas muito difirentes, umas de mdrmore, ()tetras de murta. 4 estcituade mdrmore custa muito a Ater, pela dureta e resistincia da matdria;mas, depois de feita uma vet, nao a necessdrio que the ponham mais ameio: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estdtua de murta mais fdcil de formar, pela facilidade corn que se daram os ramos, mas

    necessdrio andar sempre reformando e trabalhando nela, para que seconserve. Se deixa ojardineiro de assistir, em quatro dias sal urn ramoque the atravessa os olhos, sai outro que the descompOe as orelhas, saem

    r. Agradeco a Marcio Goldman, Tfinia Stolz Lima e Carlos Fausto pelas discusoesque levaram a versio final deste ensaio, e lespecialmente a Manuela Carneiro daCunha pela parceria na formula*, ha algttns anon, de muito do aqui exposto (cf.Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 98i). 0 ensaio foi escrito gracas a insis-tencia kenerosa de Aurore Becquelin e Antlinette Molinie, que o aguardaram cornpaciencia e (no caso de Aurore) o traduziratn parcialmente para sua publica* nacoletinea Memoire de la tradition (Becquelin & Molinie [orgs.] 1993).

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  • dois que de cinco dedos Ike fa tem sete, e o que pouco antes era homem,jd d uma confutho verde de murtas. Eis aqui a difirenca que Id entreumas nafaes e outras na doutrina da fi. Hci um= nacOes naturalmenteduras, senates e constantes, as quais dificultosamente recebem a fe` edeixam or erros de sews antepassados; sesistem corn as arms, duvidarncorn o entendimento, repugnam corn a vontade, cern:in-se, teimam,argumentam, replicam, dcio grande trabalho ate se serulerem; mas, umavet rendidas, uma vet que receberam a fi, ficam nelas Ames e constan-tee, como estdtuas de mtinnore: nao I necesscisio trabalh.ar mais corn elas.Hci outs= nafaes, pelo contrdrio e ems sao as do Brasil que recebemtudo o que lhes ensinam corn grande docilidade e facilidade, sem argu-

    .

    mentas, sem replicas, sem duvidar, sem resistiri mas sao esuituas demusts que, em levantando a mao e a tesoura ojardineiro, logo perdem anova figura, e tornam a brutela antiga e natural, e a ear mato coma dan-tes cram. E necessdrio que assista sempre a estas eadtuas o mestre delayuma vet, que Ma cone o que vicejam as olhos, para que creiant o quenao viem; outra vet, que lhes cerceie o qua vicejam as orelhas, para quendo diem ouvidos as fdbulas de seas aruepassados; outra vet, qua Ike:decepe o que vicejam ay pis, para que se abstenham das acties a costumesbeirbaros da gentilidade. E so desta mancira, trabalhando setnpre contraa natureta do tronco e humor das mites, se pode conservas nestas plantasrules a forma nao natural, a compostura dos ramos.

    0 imperador da lingua portuguesa, como o chamou Fernando Pessoa,elabora nessa passagem urn tOpico venerivel da literatura jesuiticasobre os indios. O terra remonta ao inicio das atividades da Compa-nhia no Brasil, em 1549, e pode ser resumido em uma (rase: o gentiodo pais era exasperadoramente dificil de converter. Nio que fossefeito de materia refrataria e intrativel; ao contririo, ivido de novasformas, mostrava-se entretanto incapaz de se deixar impressionarindelevelmente por elas. Gente receptiva a qualquer figura masimpossivel de configurar, os indios exam para usarmos urn similemenos europeu que a estitua de murta como a mats que os agasa-

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    lhava, sempre pronta a se refechar sobre os espacos precariamenteconquistados pela cultura. Eram como sua terra, enganosamente fer-til, onde tudo parecia se poder plantar, mas onde nada brotava quenao fosse sufocado incontinenti pelas ervas daninhas. Esse gentiosem a, sem lei e sem rei nao oferecia urn solo psicolOgico e institu-cional onde o Evangelho pudesse deitar raizes.2

    Entre os pagaos do Velho Mundo, o missionirio sabia as resisten-cias que teria a veneer: idolos e sacerdotes, liturgias e teologias reli-giOes dignas desse name, mesmo que raramente tao exclusivistas comoa sua prOpria. No Brasil, em troca, a palavra de Deus era acolhida alacre-mente por urn ouvido e ignorada corn displicencia pelo outro. 0 inimigoaqui nao era urn dogma diferente, mas uma indiferenca ao dogma, umarecusa de escolher. Inconstancia, indiferensa, olvido: "a gente destasterras a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, amais trabalhosa de ensinar de quantas ha no mundo", desfia e desafia odesencantado Vicira. Eis por gut: Stio Tome fOra designado por Cristopara pregar no Brasil; justo castigo para o apOstolo da dtivida, esse delevar a crensa aos incapazes de crer ou capazes de crer em tudo, o quevern a dar na mesma: "outros gcntios sao incredulos ate crer; os brasis,ainda depois de crer, sac) incredulos".3

    Il selvaggio a mobile. 0 terra da inconstancia amerindia fezfortuna, dentro e fora da reflexao missioniria, e bem alem de seu

    a. Taylor jiobservou que a naturaiizac5o dos indios da America tropical fez-se sobre-tudo em termos do reino vegetal (1984: 233 n? 8). Para urn exemplo que a auroranao usa, veja-se, corn efeito, o contraste de Gilberto Freyre (1933: 214-15) entre a

    "resister-Ida mineral* dos Inca e Azteca a mcdfora 6 aqui o bronze, nao o marmore e a resistencia de "pura sensibilidade ou contratilidade vegetal" dos selvagens brasi-leiros. Valeria a pena fazer a histOria dessa imagistica, que por vezes, como na piginavieiriana, records irresistivelmente as composisbes de A.reimboldo.3. Ism 6 ainda o Sam& do Espirito Santo (Vieira 1657: 216). Sobre o motivo de SaoTanta na Asia a na America, c sua assimilai5o ao dcmiurgo tupinambi Sun* cf.1446traux 1928: 7-i t, c Buarque de Holanda 1969: 104-25.

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  • exemplo primordial, os Tupinambi litoraneos. 4 Serafim Leite, ohistoriador da Companhia de Jesus no Brasil, fundou-se nas obser-va95es dos primeiros catequistas para identificar a "deficiencia davontade" e a "superficialidade de sentimentos" como principalsimpedirnentos a conversao dos indios; mas socorreu-se tambem daopiniao de leigos, alguns insuspeitos de jesuitismo: Gabriel Soaresde Souza, Alexandre Rodrigues Ferreira, Capistrano de Abreu, una-nimes no apontar a amorfia da alma selvagem (Leite 1938: 7-11).5Essa proverbial inconstancia nao foi registrada apenas para as coisasda fe. Ela passou, na verdade, a ser um tract) definidor do miteramerindio, consolidando-se como urn dos estereOtipos do imagina-rio nacional: o Indio mal-converso que, a primeira oportunidade,

    manda Deus, enxada e roupas ao diabo, retornando feliz a selva,presa de um atavismo incurivel. A inconstancia a uma constants daequacao selvagem.

    A imagem do selvagem inconstante a conspicua na historiografia,desde o eminente e reacionirio Varnhagen: "eram falsos e infieis;inconstantes e ingratos..."(185 4: p). A importacio de mao-de-obra africana, a consabido, foi frequentemente justificada pelaincapacidade de os indios suportarem o trabalho naplantatton cana-vieira (Freyre 1933: 316-18). A antropologia racialista de GilbertoFreyre reservou ao contraste entre o vigor animal dos africanos ea preguica vegetal dos amerindios um papel de destaque. Mas auto-res muito mais politicamente corretos que esses dois tambirn explo-raram a oposicao indios/africanos em termos da inconstancia dogentio brasileiro:

    Como e praxe na bibliografia etnolOgica, emprego o etnOnimo 'Ttipinamba' paradesignar os diversos grupos tupi da costa brasileira nos secs. xvi e xvn: Tupinam-ba propriamente dims, Tupiniquim, Tamoio, Temimin6, Tupinae, Caete etc., quefalavarn uma mesma lingua e participavam da mesma eultura.

    Poderia ter citado Gandavo: "sam mui inconstantes c mudaveis: crem de ligeirotudo aquillo que Ihes persuadem por dificultoso e impossivel que seja, e corn qual-quer dissuacam facilmente o tornam logo a negar..." (1576: 122; cf. tambem a p. 141,onde a inconstancia aparece no contexto da catequese); ou ainda a anedota de Leryque conclui: "voila l'inconstance de ce pauvre peuple, bel exemple de la nature cor-rompue de l'homme..." [eis a inconstancia desse pobre povo, belo exemplo da natu-reza corrompida do homem]. (Lery 1578: 193-94). Abbeville o linico, salvo engano,a destoar, corn urn otimismo quase suspeito: "outros dizem que eles sao inconstantes,volaveis. Na verdade sao inconstantes se deixar-se conduzir unicamente pela razaopode ser chamado inconstancia; mas sao dOceis aos argumentos razoiveis, e pelaraid() faz-se deles o que se quer. NI sac) volfiveis, ao contrario, sao razoiveis e emnada obstinados..." (1614: 244). Mesmo Evreux, em geral tao simpatico aos nativoscomo o outro capuchinho, bate na tecla: "Ils sont fort amateurs de via... lubriquesextremement..., inventeurs de fausses nouvelles, menteurs, legers, inconstants..."[Eles sao grandes amantes de vinho...extremamente hibricos, inventores de falsashistOrias, mentirosos, levianos, insconstantes.] (1614: Sc). Cf. tambem a Crcnica daCompanhia de Jesus: "Sao inconstantes, e variaveis..." (Vasconcelos 1663: I, 103).

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    [Os amigos moradores da terra] dificilmente se acomodavtim... aotrabalho acurado e metddico que exige a exploracao dos can'

    aviais.Sua tendencia espontanea era para atividades menos sedentdriase cue pudessem exercer-se sem regularidade forcada e sem ivigilan-cia e fiscalitaitio de estranhos. Versetteis ao extremo, eram-lhesinacessiveis certas nofaes de order, constanda e exatidao, cue noeuropeufirmam como cue uma segunda nature{a e parecemi

    regui-sitar fundamentals da existencia da sociedade civil (Buarque deHolanda 1936: 43).

    0 tema das 'tees ragas' na formacao da nacionalidade brasileiratende a atribuir a cada uma delas o predominio de uma faculdade:aos indios a percepcao, aos africanos o sentimento, aos europeusa razao, numa escala que, como em Freyre, evoca as tres alznas dadoutrina aristotelica. E por falat em AristOteles, patron() do debatequinhentista sobre a natureza e!condicao do gentio americano, per-gunto-me, corn o devido me0 do ridiculo, se de nao teria a sua

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  • parte na histOria da imagem vegetal dos indios, a partir, justamente,dessa proverbial inconstancia e indiferenca I crenca. Na Metafisica,16-se que o hornem que "nao tem opiniao prOpria sobre nada", recu-sando-se, em particular, a se curvar ao princfpio de nao-contradicao,

    "nao melhor que um vegetal" (too6a1-15); mais adiante o filOsofopergunta: se este homem "nao acredita em nada, que diferenca have-ria entre ele e as plantas?" (roo8b5-to). Como se sabe, o homem-planta aqui o sofista, que, em seu relativismo radical, n deixade ser um antepassado a altura dos Tupinamba. E veja-se, enfim,esta passagem do Didlogo da conversao do gentio: "Sabeis qual hea mor dificuldade que lhes acho? Serem tarn faciles de diserem atudo si ou pa, ou como v6s quiserdes; tudo aprovio logo, e corn amesma facilidade corn que dizem dizem aani(N6brega 150-57: n, 324.4

    centralizada e de implantacao territorial estivel e que os primei-

    ..

    ros jesuitas rotulavam mais simplesmente de "maus costumes". Veja-se esta passagem de NObrega, por exemplo, que esti provavelmenteentre as Pontes inspiradoras do concetto do marmore e da murta:

    Esta gentilidad no tiene la calidad de fa gentilidad de la primitiva Igle-sia, los guales o maltratavan o matavan luego a quien les predicavacontra sits idolos, o creian en el Evangelio; de manera que se aparejavana morir por Chritto; pero esta gentilidad come no tierce idol= por quienmueran, todo quanto les &tea creen, solamente la dificultad estd en qui-toilet codas sus malas costumbres... lo qua!pide continuacan entr'ellos...

    y que vivamos con ellos y les eriemos los hijos dea pequeaos en doctrina ybuenas costumkes...(1553:1, 452).8

    Anchieta enumera concisa e precisamente os entraves:Por geral que seja, entretanto, e fundado em experiencias variadas,parece-me que o conceito da natureza inconstante da alma selvagemderiva principahnente, no caso brasileiro, dos anos inicials de pro-selitismo missionirio entre os Tupi. 0 problema dos indios, decidi-ram os padres, nao residia no entendimento, gilts agil e agudo, masnas outras duas potencias da alma: a mernOria e a vontade, fracas,remissas.7 "E gente de muy fraca memOria para as coisas de Deus..."(Pires 1552: 1, 323). Do mesmo modo, o obstaculo a superar nit) era apresenca de uma doutrina inimiga, mas o que Vieira descrevia como

    "as aces e costumes barbaros da gentilidade" canibalismo e guerrade vinganca, bebedeiras, poliginia, nudez, ausencia de autoridade

    As citacaes das cartas jesuiticas pelos algarismos t, it e m remctem a edisao erntres volumes das Cartas dos primeiros jeauitas no Brasil (t50-1563): cf. bite (org.)191618. ji os escritos de Anchieta citados ou referidos am indicasio de volumeremetem is Carta:, informasJes, fragmentar hilarity: 8 woad, (Anchieta; 1933).

    Para as "tree potncias da alma" no caso dos indios, cf. o Didlogo da maven& dopatio (NObrega 150-17: 11, 332-40).

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    Os impedimenta:. que ha para a conversao e perseverar na vida crista de

    parte dos Indios, seas costumes inveterados como o terem mat=mu/heves; vinhos em que sao muito continuos e em tirar-lhos ha ordi-

    nariamente mart dificuldade gue em tad o mais ... Item as guerras emque pretendem vinganca dos inimigos, e tomarem nomes novas, e titulosde honrai

    o scram naturatmente pouco constants., no cornecado, e sabre-tudo faltar-lhes temor a sujeiclio (t584: 333).

    8. 0 topes do contraste entre o apostolado no Willa e no Novo Mundo parece terdesempenhado um gapel importance na reflexao de Vitoria, Soto e seguidores:"[O]smissionSrios encaravam sus tarefa como sendo, primariamente, uma de inscrusao.Os indios nao cram judeus ou musulmanos que tinham de ser forsados a aceitaruma religiao desprezada por seas prOprias crensas. Eles cram apenas uma genteignorance e desoriemada que logo veria a luz da ratio, lama vez removida a bagagemde seu velho modo de vida" (Pagden 1982: 102).

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  • E bem conhecida a estrategia catequetica que tal imagem motivou:para converter, primeiro civilizar; mais proveitosa que a precariaconversio dos adultos, a educacio das criancas lunge do ambientenativo; antes que o simples pregar da boa nova, a policia incessanteda conduta civil dos indios. Reuniao, fixacio, sujeiclo, educacAo.Para inculcar a fe, era preciso primeiro dar ao gentio lei e rei. A con-versao dependia de uma antropologia capaz de identificar os humanaimpedimenta dos indios (Pagden 1982: 100-02), Os quais eram de umtipo que hoje chamariamos 'sociocultural'.

    Muito ji foi escrito sobre o impact cosmolOgico causado peladescoberta do Novo Mundo, sobre a antropologia tomista iberica,sobre a catequese jesuitica, e sobre o papel da Companhia no Brasilcolonial. Nada posso acrescentar a temas que fogem a minha compe-t'encia. 9 Interessa-me apenas elucidar o que era isso que os jesuitase dernais observadores chamavam de Inconstancia' dos Tupinamba.Trata-se sem citivida de alguma coisa bem real, mesmo que se thequeira dar outro nome; se nao urn modo de ser, era urn modo deaparecer da sociedade tupinambi aos olhos dos missionarios. E pre-ciso situa-la no quadro mais amplo da bulimia ideol6gica dos indios,daquele intenso interesse corn que escutavam e assimilavam a men-sagem crista sobre Deus, a alma e o mundo. Pois, repita-se, a queexasperava os padres nao era nenhuma resistencia ativa que os 'bra-sis' oferecessem ao Evangelho em nome de uma outra crenca, massim o fato de que sua relaco corn a crenca era intrigante: dispostosa tudo engolir, quando se as tinha por ganhos, eis que recalcitravam,voltando ao "vOmito dos antigos costumes" (Anchieta 1555: II, 194).

    9. A literatura a enorme. Sobre os debates antropolOgicos ibericos, cf. Pagden 1978;para os jesuitas no Brasil, cf. ao menos Menget 1985c e Baeta Neves 1978; para aquesta geral da imagem do Indio no sec. xvt, Carneiro da Cunha 199o; para asfontes francesas sobre os Tupinamba, Lestringant 199o.

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    A CULTURA COMO SISTEMA RELIGIOSO

    A aceitacio entusiastica mas altamente seletiva de um discurso totali-zante e exclusivo, a recusa em seguir ate o fim o curso desse discurso,n podiam deixar de parecer enigmaticas a homens de missao, obedien-cia e rentincia; e penso que esse enigma continua a nos incomodar, anos antropOlogos, mesmo que por motivos outros que os dos velhosjesuitas. Primeiro, a inconstancia selvagem a urn tema que ainda ressoa,em seas mtiltiplos harmOnicos, na ideologia dos modernos disciplina-dares dos indios brasileiros. 1 Segundo, e mais importante, ela de fatocorresponde a algo que se pode experimentar na convivencia corn mui-tas sociedades amerindias, algo de indefinivel a marcar o torn psico16-gico, nao so de sua relasio corn o cardapio ideolOgico ocidental, mastambem, e de urn modo ainda mais dificil de analisar, de sua relacioconsigo mesmas, corn suns prOprias e 'autenticas' ideias e instituicaes.Por fim, e sobretudo, ela constitui urn desafio cabal is concepOes cor-rentes de cultura, antropolOgicas ou leigas, e aos temas conexos da acul-tura* ou da mudansa social, que dependem profundamente de urnparadigma derivado das nosties de crenca e de converdo.

    Dizer, como fizerarn a seu modo os jesuitas, que a resistencia dosTupinambi ao cristianismo nao se devia a sua religiao, mas a sua cultura,nao ajuda muito. Pois nos, modernos e antrop6logos, concebemos a cul-tura sob urn modo teolOgico, como urn `sistema de crencas' a que osindividuos aderem, por assim dizer, religiosamente. A reducao antropo-lOgica do cristianismo, empresa tau decisiva para a constituicio de nossadisciplina, nao deixou de impregnar o conceito de cultura corn os valo-res daquilo que ele pretendia abarcar. A "religiao como sistema cultural"(Geertz 1966) pressupOe uma ideia da cultura como sistema religioso.'

    to. A antropologia dos jesuitas, como nota Menget (1985c: 192), deixou intimerosfrutos na legislacao e nas politicas do Estado brasileiro para os indios.1. Naturalmente, essa conjetura algo ponderosa sobre a relacao entre as modernas

    noceies de cultura e as nocties teolOgicas de crenca exigiria muito trabalho para se >

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  • Sabemos por que os jesuitas escolheram os costumes C01710inimigo principal: barbaros de terceira classe, os Tupinamba tfiotinham propriamente uma relight:), apenas supersticOes. 12 Mas osmodernos no aceitamos tal distincio etnocatrica, e diriamos: osmissionarios nao viram que os `maus costumes' dos Tupinambicram sua verdadeira religilo, e que sua inconstancia era o resul-tado da adesSo profunda a um conjunto de amps de plenodireito religiosas. Os jesuitas, como se tivessem lido masentendido muito been Durkheim, separaram desastradamente osagrado do profano (Pagden 1982: 78). N6s, em troca, sabemosque o costume rho so rei e lei, mas deus mesmo. Pensando bem,talvez os jesuitas soubessem disso, no fundo, ou nio teriam logodetectado nos costumes o grande impedimento a conversio. Estriclaro tambm, hoje, que o gentio tinha algo mais que maus costu-

    > tirar dela algo de Cull. Desde Boundieu, pclo menos, tornou-sc de born tom castigaro vies teoricista dos antropOlogos, que os faria ver a cultura como sistema arquite-temice de regras e principles etc. Stria interessante explorar a dependencia dessaprepria postura teoricista frente ao paradigma teol6gico. A questa da crenia, perseu turn, que continua a obcecar a antropologia de tradiclo anglo-saxA, delta prova-velmente suas raizes bem para alkrn de Hume, direto na epistemologia da Reforma.Quanto ao papel da doutrina calvinista do simbolo na formac5o da antropologiareligiosa vitoriana (sem falarmos no que pode ter contribuido pan o principlegenebrinol da arbitrarledade do signo), esta C mais outra coisa que ainda esti

    per ser devidamente elucidada.12. Literalmente tie terceira class; pois os Tupinambi sio urn dos exemplos da ter-ceira categoria de barbaros de Acosta (Pagden 1982: 164-72). Serafim Leite (1938:12-13) aventura o delicioso sofisma: como a questa da convers3o dos Indies doBrasil nio era doutrindria, mas tuna questa de costumes (grifos dole), nao houvenenhuma violencia na catequese jesuitica, nem vileza alguma nas chantagens mate-rials que os mission rios praticavam contra os Indies pan converte-los: sporque s6hi lugar para a violencia, quando se arranca uma religiAo ou um culto, impondo-se-lhe outro. Ora Ito era into que se dava. ' Ali onde 6 portanto a irreligao o sistemacultural, introduzir uma religi5o torna-se uma questio, digamos, meramente cultu-ral. E o compelle intrare vita casino de boas maneiras.

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    mes. Desde Metraux (1928), os antropOlogos identificam nos tes-temunhos dos prirneiros cronistas urn conjunto de mitos de Obviasignificacio filosOfica, bem como esti() cientes da importanciados xamas e profetas na vida religiosa e politica dessas sociedades.Sabemos por fim que os Tupinamba, como os demais povos tupi-guarani, dispunham de urn `sistema de crencas' antropolOgicas,teolOgicas, cosmolOgicas no qual o tema da 'Terra sem Mal' ocu-pava urn lugar major (H. Clastres 1975).

    0 equivoco dos jesuitas serviu de licOo. Hoje a concepco religiosada ordem cultural conhece grande sucesso no seio da Igreja pro-gressista, so que desta vez a favor dos indios. Mais prOximas que anossa dos valores originals do cristianismo, as socicdades indigenastranspirariam religiosidade por todos os poros, sendo verdadeirasteodiceias em estado pride. E assim, substituindo a imagem cristo-lOgica da encarmicOo por aquela antropolOgica da enculturacio, onovo missionirio descobre que nOo sio os indios que precisam seconverter, mas ele prOprio alguem, naturalmente, precisa se con-verter. A Cultura Indigena, devidamente sublimada por uma vigo-rosa interpretacao anagOgica, torna-se a quintessencia do bem, dobelo e do verdadeiro. Dal o tradicionalismo ingenuo do missionarioprogressista, hostil ao menor sintoma de Aufhebung antropofigica(no sentido oswaldiano) por parte de suas ovelhas, e sua nao menosingenua crenca na prOpria capacidade de transcender sua culturade origem e de ser miraculosamente enculturado, corn perdio daexpressio, pelo outro. Os velhos jesuitas, ao menos, sabiam que issode deixar maus costumes via de regra muito complicado.

    `Eles' tinham, enfim, uma relight:). Mas isso s6 torna o problems maisdifIcil de resolver: "dizem que querem ser como nos..."; "desean serchristianos como nosotros..." (NObrega 1549: I, 111-139). Por que,afinal, desejariam os selvagens ser como nos? Se possuiam uma

    e se de qualquer modo a cultura um sistema de crencas, cabe

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  • indagar que religiao e que sistema eram esses que continham em sio desejo da prOpria perdicao. Tomando a inconstancia pela outraponta, a preciso perguntar par que os Tupinambi eram inconstantesern relacao a sua pr6pria cultura-religiao; por que, malgrado o quedizia Vieira sobre a dificuldade em faze-los surdos as "fibulas dosantepassados", mostravam-se dispostos a prestar tao born ouvido aspatranhas alheias.n

    No seculo xvi, a religiao sem culto, sem idolo e sem sacerdotedos Tupinambi ofereceu urn enigma aos olhos dos jesuitas, que emtroca viram na cultura o micleo duro do esquivo ser indigena. Hoje,o problem parece set o de explicar como tal cultura, em primeirolugar, foi capaz de acolher de modo tao benevolente a teologia ea cosmologia dos invasores, como se estas, e estes, estivessem pre-figurados em algum desvao de seu mecanismo (Levi-Strauss 1991:292), como se o inaudito fizesse parte da tradis.ao, o nunca visto jiestivesse na mernOria (S. Hugh-Jones 1988: 149). Efeito-demonstra-sac) suscitado pelo reconhecimento da superioridade tecnolOgicados estrangeiros? Coincidencia fortuita de conte6dos entre a mito-logia nativa e alguns aspectos da sociedade invasora? Tais hipOtesestern urn fundo de verdade, mas, menos que explicando algo, exigem

    13. Mas podiam tambem escarnecer da doutrina =Oka, sobretudo depois que tive-ram tempo de experimentar as iniquidades dos brancos. Vieira relata escandalizadocomo encontrou a missio aos Tobajaras da Serra do Ibiapaba, em meados do sec.xvn: "Na veneracio dos templos, das imagens, das cruses e dos sacramentos esta-yam muitos deles tao calvinistas e luteranos, como se nasceram em Inglaterra ouAlemanha. Estes chamam a Igreja igreja de Moanga, que quer dizer igreja falsa, ea doutrina moranduba dos abares, que quer dizer patranhas dos padres..." (s/d:231). Mas, bem antes disto, Hans Staden ja se defrontara corn o sarcasmo indigenafrente a religiao europeia: "Tive que cantar-lhes alguma cousa, c entoei cantos reli-giosos, que precisei explicar-lhes em sua lingua. Disse: `Cantei sobre o meu Deus.'Responderam que o meu Deus era uma imundicie, em sua lingua: te5_u_ra..." (1557:too). Suspeito que esta palavra e o mesmo tyvire de Lery (i 578: zoo), que significasodomita passivo.

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    elas prOprias explicando. Pois elas supliem uma postura ma's fun=damental, uma "ouverture a rAutre" caracteristica do pensamentoamerindio (Levi-Strauss op.cit.: i6), e que no caso tupinambi eraparticularmente extensa, e intensa. 0 outro nao era all apenas pensi-ve' de era indispensivel.

    0 problema, portanto, determinar o sentido desse misto devolubilidade e obstinacao, docilidade e recalcitrincia, entusiasmo eindiferenca corn que os Tupinambi receberam a boa nova. E sabero que eram essa "fraca emOria" e essa "deficiencia da vontade"dos indios, esse crer sem fe; a compreender, enfim, o objeto desseobscuro desejo de ser o outro mas, este o misterio, segundo os pro-prios termos.

    Nossa ideia corrente de cultura projeta uma paisagem antro-polOgica povoada de estituas de mirmore, nao de murta: museuclissico antes que jardim barroco. Entendemos que toda socie-dade tende a perseverar no seu pr6prio ser, e que a cultura aforma reflexiva dente ser; pensamos que necessirio uma pressaoviolenta, macisa, para que ela se deforme e transforme. Mas,sobretudo, cremos que o ser de uma sociedade a seu perseverar:a memOria e a tradisio sit) o mirmore identitirio de que a feita acultura. Estimamos, por fim, que, uma vez convertidas em outrasque si mesmas, as sociedades que perderam sua tradisao nao tern.volta. Nao hi retroceder, a forma anterior foi ferida de morte;o maxim que se pode esperar a emergencia de urn simulacroinautentico de memOria, onde a 'etnicidade e a ma conscienciapartilham o espaso da cultura extinta.

    Talvez, porem, para sociedades cujo (in)fundamento a rela-sao aos outros, nao a coincidencia consigo mesmas, nada disso facao menor sentido:

    fls narrativas de contato e mudanca cultural dm sido estruturadas poruma dicotomia onipresente: absoriao pelo outro ou resistincia ao outro.[...] Mas, e se a identidade for concebida, nao como uma fronteira a ser

    19 5

  • defendida, e sun como um nexo de relacaes e transafaes no qua o sujeitoestd ativamente comprometido? A narrativa ou narrativas da interacaodevem, nesse caso, tornar-se mais complexas, menos lineares e teleolo-gical. 0 que muda quando o sujeito da `hisaria' nao I mais ocidental?Como se apresentam as narrativas de contato, resistencia ou assimilacaodo ponto de vista de grupos para os quais i a troca, nao a identidade, ovalor fundamental a ser afirmado? (Clifford 1988: 344).

    0 INFERNO E A GLORIA

    Antes de serem as efemeras e irnprecisas estatuas de murta vieirianas,os Tupinatnbi foram vistos como homens de cera, prontos para aimpressao de uma forma. A primeira carta brasileira de N6brega otimista:

    Todos estes que tratam comnosco, diTern que querern ser coma nos, senaque nom tem corn que se cubrao como nes, e sate zoo inconveniente tem.Sc ouvem tanger a missa, jd acodem, e quanto nos vein fader, tudofatem: assentao-se de giolhat, batent nos peitos, alevantao as maos aoceo; e jd hum dos principaes delle.t aprende a ler e coma ficao coda diacom grande cuidado, e em dous dias soube Ito "tac todo, e ho insinamos

    a berqer, tomando tudo corn grandes desejos. Ditque quer ser christao enom corner carne human, nem ter nsais de uma molder e outras cousas;

    SOOMMU que it a guerra e as que cativar vendi-las e servir-sechiles, porque estes data terra sempre tem guerra corn outros e ass andaosodas em discordia. Coment-se buns a outros, digo hos contrarios. Hegente que nenhum conhecimento tem de Deus, nem idolos, faire: tudoquanto the diem. (rm: 1, III)

    Aqui esti alguns dos elementos cruciais do problema: entusiasmomimetic pelo aparelho ritual dos missionarios, disposicio em dei-xar os maus costumes; vicuo religioso clamando pot ser preenchido.Os Tupinambi aparecem alienados, escravos de um triste desejo

    196 0 abirmare e a murta

    de reconhecimento. 14 Discretamente, verdade, o texto refere

    uma pequena intransigencia daquele principal tao solicito: larga ocanibalismo e outros pessimos costumes, mas vai continuer indoa guerra. Tal intransigencia reaparece em uma anedota de Thevet,onde se esboca uma faceta adicional do `encontro' entre os Tupi eos missionirios:

    Un Roy aussi de ce pass, nomme Pinda-houssoub, que je fus voir, layestant au lict, attain: d'une fievre continue, me demanda que deve-noient les ames apres qu'elles estoien: sorties hors du corps: et comme

    je luy eusse respondu, qu'dles alloient avec Toupan, Id hauls au ciel,avec ceux qui avoient Bien vescu, et qui ne s'estoient venget de l'in-jure de leurs ennemis, y adjoustant fay, entra en grand contemplation.[...j Deux fours apres it m 'envoya querir, et estant devant luy me dist,Vienca, je t'ay ouy faire grand cornpte d'un Toupan, qui peat routeschases: Je to prie parle ci lay pour moy, et fais quit me guerisse, etlors je seray debout, et en sante je to feral de grand: presens, et veuxestre acoustre comme toy, et porter mesme grand bark et honorerToupan comme to l'honore. Auquel je feis response, que s'il vouloitgucrir, et croire en iceluy, qui a fait le ciel, la terre, et la nter, et quitne creust plus [...] a leurs Caraibes et enchanteurs, et qu'il ne se yen-geast, ny mangeast se: ennemis, comme it avoit fait route sa vie [...]sans doute it gueriroit, et que son ante apres sa mart ne seroit tourmen-tee des esprits matins, comme estoient celles de ses Peres et mere:. Aquay ce maistre Roytelet me fit response, que volontiers estant gucrypar la puissance de Toupan, quit accordoit presentement toes les arti-cles que je luy avois proposet, hot mis un, qui estoit de ne se vangerde ses ennemis: et encores quand Toupan luy commanderoit de ne le

    14. Nas duns narrativas dos capuchinhos franceses (Abbeville e Evreux) sobre osTupinambi do Maranh4o, a solicitude em atirar-se nos bravos dos curopeus a aindamais sublinhada, c pintada em cores temerariamente apologeticas, scm a cautelapessimista que os jesuitas portugueses rapidamentc adotaram.

    197

  • faire, it ne scauroit accorder: Ou si par cas 'Gault it l'accordoit,meritoit mourir de honte (Thevet 1575: 85-86).15

    A pergunta de Pindabucu sobre o destino pOstumo das alms torna-.

    se ainda mais intrigante quando vemos que ela aparece, no textoda Cosmographie, logo apOs uma exposicao da escatologia pessoaltupinambi (op.cit.: 84-85), a qual girava precisamente em torno daproeza e vinganca guerreiras, destinando aos bravos o paraiso, aoscovardes uma existencia miserivel na terra..Note-se que o "regulo"indigena nao argumenta corn Thevet em termos metafisicos, recu-sando a chantagem crist em nome de uma soteriologia diferente,mas em termos eticos, corn a simples afirmasio de urn imperativocategOrico. Note-se, enfim, que, para ele, como para o principalde NObrega, a vinganca o ponto inegociavel, nao o canibalismoa ela associado.

    15. [Fui visitar urn rei dessa regiao, chamado Pindabucu. Estando acamado, presa deuma febre persistente, ele me perguntou o que era feito das almas depois que saiamdo corp.. Respondi-lhe que elas lam para junto de .Tupi, la no alto, no ceu, cornaqueles que viveram bem e que nao se vingaram da injaria de seus inimigos; ao queo rei deu fe, e caiu em grande contemplacio. [...] Dois dial mais tarde, mandou-mebuscar, e estando eu diante dele, me disse "Vem ca, eu te ouvi dizer grandes coisasde um Tupa que pode tudo. Rogo-te que fales a ele por mim, e faze corn que mecure; assim que eu estiver de pe e com laude, eu te darei grandes presentes, e tereiprazer em me paramentar como tu, e usar a barba comprida, e honrar Tupa comotu o fazes." Ao que respondi que, se ele queria curar-se, e crer Naquele que fez oceu, a terra e o mar, e nao crer mais [...] em seus Caraibas e feiticeiros, e que se nmais se vingasse, nem comesse seus inimigos, como fizera toda sua vida, [...] semdilvicla de se curaria, e sua alma, ap6s a morte, nao seria atormentada pelos espiri-tos malignos, como o cram as de seus antepassados. Ao que esse senhor rgulo merespondeu que corn prazer, uma vez curado pelo poder de Tup5, ele se conformariaa todos os artigos que eu the propusera, corn excecio de um se), que era o de nao sevingar de seus inimigos; e que, mesmo se o prOprio Tupi lho ordenasse, de nabpoderia assentir, e se por acaso o fizesse, mereceria morrer de vergonha].

    198 0 marmore e a murta

    Voltaremos ao problema do canibalismo e da guerra; fique-mos, pot ora, corn o pedido de informacOes sabre o Alem feito porPindabucu. Foi provavelmente tal tipo de demanda que encantouos jesuitas, certos de terem encontrado os fregueses ideals para suamercadoria. Assim, rejubilava-se NObrega (1549: I, 136): "ningandios tinen cierto y qualquiera que le dizen ese creem...". Pedindomais missionarios a Portugal, dizia que nao carecia serem ilustrados:

    "Aci pocas letras bastan, porque es todo papel blanco y no ay masque escrivir a plazer..." (id. ibid.: r, 142). Pero Correia (1551:1, 220)relata a vontade dos principals em aprender a a de Cristo; e Leo-nardo Nunes avanca uma possivel explicacio de tal desejo:

    Pues quanta a los gentiles de la tierra veo tantas muestras que por elgran aparejo que veyo, me ponen muchas vexes en confusio para dexarde todo los christianos y meterme por antre ellos con todos los Hermanos,y segundo los deseos que esta gentilidad muestra que andemos entre ellos,por la mucha voluntad que muestran.[...) Y por no andar ya ensetleindo-los se perdieron muchas animas; porque son grandissimos los deseos quetienen de conoscer a Dios y de saber lo que han de hater para salvarse,porque temen mucho la muerte y el &a del juijio y el infierno, de quetienen ya alguna notitia, despues que nuestro Selior truxo al charissimoPedro Correa a ser nuestro Hermann, porque en las pltiticas que les hatesiempre le mando tocar en esso, por que el temor los meta en gradis' simaconfusion. (1551: I, 234-35)

    A noticia do Juizo Final foi causa de grande maravilha (Rodrigues5552: 1, 410). E as solicitacOes de longa vida e saude aos padres cramconstantes: "Ho seu intento he que the demos muyta vida e saudee mantimento sem trabalho como os seus feiticeiros the prometem"(Pires 1552: I, 325); "porque pensan que le podianmos dar salud..."(Lourenco 5554: II, 44). No relat6rio da embaixada de Anchieta aosTamoios, o missionario recorda seu discurso de chegada; disse entoque viera para que Deus

    199

  • lhes desse abundancia de mantimentos, saade, e viaria de sous inimigose outran coisas semelhantes, sem subir mais alto, porque esta geracaosem isle escalao nao quer:m subir ao ciu... (1161: 199).

    0 principal da aldeia ouviu maravilhado sobre "o inferno e aglOria", e advertiu seus companheiros para que nao fizessem malao padre: "Se nos outros temos medo de nossos feiticeiros, quantamais o devemos ter dos padres, que devem ser santos verdadeiros..."(id.: 204-o5); por fim, pediu a intercessao de Anchieta junto a Deus:

    "rogai-The que me di longa vida, que eu me ponho por vas outroscontra os meus..." (id.: 210).

    Embora os jesuitas fossem os destinatarios ideais, essa demanclade longa vida parece ter sido tambem dirigida a outros europeuseminences. Ver Thevet (1175: 2o) sobre os pedidos a Villegagnon:

    "fais que nous ne mourions point...".'6 NA* demorou muito, 6 ver-dade, para que a atribuicao de poderes taumattlrgicos aos missioni-dos se transformasse no inverso. A igua batismal, poderoso vetorpatognico (al6m de frequenternente administrada in extremis), foilogo associada a morte, e recusada corn horror pelos indios, quechegavam a fugir I chegada dos padres, e a Ihes entregar os cativosde guerra por medo de feiticaria (NObrega 1549: 1, 143; Pires 1552:I, 395-97; Gra 1554: II, 133-34; Si 1559: tit, I8-2o). Considerava-seainda que o batismo estragava a carne dos prisioneiros, tornando-a mortal para quern a ingerisse (Lourenco 1553: 1, 517-18; Correia

    i6. r faca corn que nao morramos certo que tal pedido foi feito no Con-text() de uma epidemia que andava a dizimar as indios, as quaffs suspeitaram de fel-ticaria francesa. 0 pedido de `nao-morte' ao senhor do Forte Coligny (e cambia, aThevet op.cit.: 88), portanto, implica uma concerti deste como feiticeiro-chefs,nick como dispensador puramente positivo de Longa vida. Recorde-se que os paitise karaiha tupinamb4s costumavam =leapt. os indios de morte m5gica, segundoos cronistas.

    1554: II, 67-68); o que nao devia andar longe da verdade. A mensa-gem escatokigica dos padres passou a ser vista como mau agouro:

    Como los vijuntos dixe a una lengua que ai yenta que les dixessealguna cone de Dios, y ellos todos escuchavam, man como vino ahablar de la muerte no quisicron oir, y &flan a la lengua que nohablase (Lourenco 1 554 : 11 , 44);

    El hablar de la muerte es acerca dellos mui odioso, porque tienenpara si que se la echan, y este pensamiento basta pare morreremde imaginaciOn; y muchas vetes me an ellos rogado que no se laechasse... (Gra 1 5 5 4: II, 137).

    Os grandes popularizadores desta . teoria da letalidade do batismo

    foram os pajes e karaiba.

    DIVISAO NO PARAISO

    Longa vida, abundancia, vi tOria na guerra: os temas da 'Terrasem Mal'. Os padres da Companhia foram assimilados aos xardas-profetas tupinamba, os karaiba. Isso deve ser visto no contexto daclassificacao dos europeus como personagens sobrenaturalmentepoderosos: Malt (ou "Maira"), nome de urn importante demiurgo,era o etnOnimo para os franceses; e karaiba (termo que qualificavaos demiurgos c herOis culturais, dotados de alta cincia xarainica)veio a designar as europeus em geral, nao apenas os padres. Falandodos karaiba e suas praticas, Anchieta esclarece:

    Todas estas invenfaes por um vccdbulo geral charnanz Caraiba, que querlifer como coma santa, ou aobrenatural; e por esta causa puseram este nomeaos Portuguese:, logo quando vicram, tendo-os For cousa grande, como dooutro mundo, por virgin

    de tao longe por cima des ciguas (1184: 332).

    200 0 mannare e a meta 201

  • Thevet sugere mais diretamente que a assimilacio dos europeus aoskaraiba miticos encontrava-se pre-formada na religio tupinambi; oesperto frade parece tambem ter sido o primeiro a perceber a genera-lidade da associaco amerindia entre a chegada dos brancos e a voltade hethis miticos ou divindades:

    le ne passeray aussi plus oultre sur la dispute, si le diable spit et cong-no/st les choses futures. Mats un cas your diray-je bien, que long tempsavant que nous y arrivassions l'esprit leur avoit predit nostre venue: etje le scai, non seulement d'eux mesmes, mais aussi de plusieurs Chres-dens Portugais, qui estoient detenuurisonniers de ce peuple barbare: Etauto/a en fut dit aux premiers Espagnols, qui one descouvrirent le Peru,et Mexique (Thevet op.cit.: 82; ver tambem. Lery 1578: 193-.04)17

    Ha, de fato, fortes indicios de que a `leitura' dos brancos em termosde Mair e karaiba foi mais do que uma metifora inofensiva, e deque a astiicia tecnolOgica dos invasores desempenhou urn papelnesta assimilaco. 18 Aqui se entreve a ponta de um iceberg mito16-

    [Eu nao you entrar na disputa sobre se o diabo sabe e conhece as coisas futuras...Mas uma coisa posso dizer: muito tempo antes que nos chegassemos, seu espiritoja lhes havia predito nossa vinda: e sei disso n apenas pot des mesmos, mas porvarios cristios portugueses aprisionados por esse povo birbaro. E o mesmo foi ditoaos primeiros espanhOis que descobriram o Peru e o Mexico.]

    Para Thevet (op.cit.: 4 1), os franceses sac> tidos como Mhos de Maire Monan porserem grandes tecnOlogos, e senhores de muitas coisas nunca vistas. 0 problemae que os portugueses, que n5o deviam ser muito diferentes dos franceses sob estesaspectos, nunca foram chamados de Mair, mas de Perri, nome provavelmente deri-vado do antropOnimo Pero ou Pedro. Anchieta (1584: 332) entende que a aplicaciiodo termo Mair aos franceses vinha do fato dessa personagem mitica ser inimiga deSums, figura que, de alguma forma, seria identificada aos portugueses (creio ter sidoAnchieta quern, aproximando s u me a Siio identificou-se, c aos scus pat ricios,a esse personagem). Uma outra razo possivel para os franceses terem sidozados' foi a tez dos marinheiros normandos, mais clara que a dos portugueses, >

    gico, que pode dar sentido aos pedidos de longa vida aos padres ea outros europeus eminentes. Os mitos tupi da separack entre oshumanos c os herOis culturais ou demiurgos s5o tambem mitos deorigem da mortalidade; eles remetem, sob virios aspectos, ao temada "origem da vida breve" analisado por Levi-Strauss ( rI ) F0 i_ .essa mesma matriz mitica de separaco entre humanos e herOis cul-turais fundante da condico humana, isto , condicao social e mor-tal (H. Clastres 1975) que serviu para pensar a diferenca indios/europeus: os mitos de origem do homem branco, dos Tupi como demuitos outros amerindios, utilizarn o motivo da ma escolha, caracte-ristico do complexo da vida breve, para dar conta da superioridadematerial dos brancos. Pode-se imaginar assim que, tendo feito a 'boaescolha' na origem dos tempos, os brancos dispusessem =them daciencia divina da no-mortalidade, atributo dos mair e dos karaiba,de quem eram os "successeurs et vrays enfans".

    > e seus cabelos louros. (Urn outro nome para os franceses era ajurujuba, `papagai0samarelos'.) 0 tema da pele muito branca de Maira aparece em algumas mitologiastupi, estando associado ao motivo da imortalidade obtida pela troca de pele.

    0 termo tupinambi geral para os europeus parece ter sido mesmo karaiba,ea explicacio de Anchieta razoivel. A etimologia desta palavra, difundida entre osTupi contemporineos como etncinimo para os brancos, a incerta. Montoya (1640:9ov) identificou na forma guarani carat lexema cam, que significaria

    enge-nhoso, astute. Ha, a claro, o espinhoso problema de saber sea palavra karaiba ternalgo a ver corn Caribe, Caraibas etc. No Alto Xingu, karaiba e o termo usado porCodas as tribos para os brancOs. Von den Steinen estava convencido que este era urnterm() de origem caribe.

    Vale notar que os europeus, chamados de karaiba, e como tais personagensinicialmente tratados, terminaram trazendo para as indios o exato oposto do que oskaraiba prometiam: em vez de errincia migratOria, aldeamento forcado; em lugarde longa vida a abundlin.:ia sem esforc(1, morte por epidemias a trabalho escravo;em lugar de vitOria sobre os inimigos, proibiciio de guerra e canibalismo; ern lugarde liberdade matrimonial, novas restricties.

    202 0 mcirmore e a murta 1)203

  • O tema da ma escolha como originando as diferencas culturais entreindios e brancos nao aparece diretamente cm Thevet, mu em Abbe-ville (1614: 6o-61), sob a difundida forma da Ka oferecida aos huma-nos pelo(s) demiurgo(s) entre as armas indigenas e europOias. Essetema se reencontra, por exemplo, nas mitologias alto-xinguana (Agos-tinho 1974b: M2) e rionegrina. Nesta ultima, tanto na versao barasana(S. Hugh-Jones 1988) como na maku (que diz respeito a diferencaMaku /Mikan Ramos et a!. 198o: 168), acha-se o motivo 'Esati eJac& da inversio da ordem de senioridade entre urn par de irmaos, queAbbeville (op.cit.: 251-12) tambem registra para o mito tupinambi.

    Roberto DaMatta (1970, 1973), em trabalhos pioneiros, demons-trou a relacao estrutural entre os mitos timbira de origem da cultura(do fogo culinirio) e de surgimento dos brancos. Mais recentemente,Levi-Strauss (1991) observou que a narrativa de Auke analisada porDaMatta uma inversio do mito tupinambi de origem dos brancos,recolhido por Thevet como episedio de urn vasto ciclo cosmog6nico.De minha parte, sugeriria uma relacao entre os mitos de genese dosbrancos e a etiologia da vida breve ou da mortalidade, cuja pertinen-cia ao complexo de origem do fogo/cultura foi exposta em 0 cru e ocolido (1964). Levi-Strauss aborda os mitos da vida breve em termosdo "codigo dos cinco sentidos". Seria possivel ver no motivo da maescolha uma modulacio desse cOdigo: em lugar de erros relaciona-dos a sensibilidade, teriamos aqui uma falta ligada ao 'born senso'(ao entendimento). 0 divOrcio dos demiurgos tupinambi, fruto daingratidao ou agressividade dos humanos, node igualmente set vistacomo caso exemplar de ma escolha, ausencia de discernimento porparte da humanidade (i.e. dos indios, pois a ruptura engendrou adiferenca brancos/indios a partir destes

    0 mito rionegrino analisado por Hugh-Jones uma variante muitoprOxima do mito tupinambi. Nao hi aqui espaco para analisar ern deta-lhe a relacao entre des; chamo a atencao apenas para urn aspecto do pri-meiro. Etc estabelece utna conexao direta entre a origem da vida breve(dos Indic%) e a origem dos brttncos; cstcs Cdtimos .s5o scinclitantes

    aranhas, cobras e mulheres, em sua capacidade de longa vida, ligadaa troca de pele. Ao contririo da troca de pele natural das cobras, ara-nhas e mulheres (a menstruagao concebida como urna troca de pele),os brancos trocam uma pele cultural, as roupas; saber tecnico e imor-talidade, assim, mostram-se ligados. 0 tema da troca de pele comosigno ou instrumento de imortalidade e central na cosmologia devirios grupos tupi contemporaneos; entre os Arawete (Viveirosde Castro 1986a) ele esti associado aos Ma((ver o tupinambi Mair).

    Mencione-se ainda uma transformagao negativa do tema, queassocia causalmente a imortalidade dos brancos e a vida breve dosindios: o famoso complexo andinu e sub-andino do pishtaco ou pela-cara, hipOstase monstruosa dos brancos que caca os indios para red-rar-lhes a pele do rosto (ou a gordura do corpo) e usa-la para orejuvenescimento de seu prOprio povo (Gow 1991a: 2 45). Os Piroestudados por Gow sutentam a tese de que os pelacara abastecemos cirurgibes plisticos das grandes cidades, o que a urna brilhanteleitura moderna do motivo da troca die pele.

    Isso nao significou, diga-se claro, que aos europeus tenha sidovotado qualquer culto, de dulia ou de 'atria. Assim que comesarama mostrar a face mesquinha, foram mortos como todo inimigo; suacovardia no momento de enfrentar a borduna do executor, alias, eramotivo de espanto e chacota. A religiao tupi-guarani, como argu-menta Helene Clastres, fundava-se na ideia de que a separacAo entreo humano e o divino no era urna barreira ontolOgica infinita, masalgo a ser superado: homens e deuses cram consubstanciais e comen-suriveis; 4 humanidade era uma condisao, nao uma natureza." Seme-lhante teologia, alheia a transcendencia, era igualmente avessa

    19. Adiantc, o leitor encontrara alguns pontos de discordincia diante das analises deHilne Clastres; por isso mesmo, fiquc logo registrado que acho La Terre sans Malum livro admirivel por sua penetrai5o e densidade, especialmente no que concerne:t carat:it:64;101 I tit's temas ceturais da

    204 0 nuirmerc c a murta 20i

  • ma consciencia, e imune a humildade. Mas ela tampouco favoreciaa contrapartida dialetica destas afeccoes: era inconcebivel aos Tupi aarrogincia dos povos eleitos, ou a compulsao a reduzir o outro aprOpria imagem. Se europeus desejaram os indios porque viramneles, ou animais uteis, ou homens europeus e cristios em potencia,os Tupi desejaram os europeus em sua alteridade plena, que Ihesapareceu como uma possibilidade de autotransfiguracao, urn signoda reuniao do que havia sido separado na origem da cultura, capazesportanto de vir alargar a condico humana, ou mesmo de ultrapassi-la. Foram entao talvez os amerindios, nao os europeus, que tiverama "vis5o do paraiso", no desencontro americano. Para os primeiros,nio se tratava de impor maniacamente sua identidade sobre o outro,ou recusa-lo em nome da prOpria excelncia etnica; mas sim de, atua-lizando uma relaco corn ele (relac5o desde sempre existente, sob omodo virtual), transforma.r a prOpria identidade. A inconstancia daalma selva gem, em seu momento de abertura, a express5o de urnmodo de ser onde " a troca, no a identidade, o valor fundamental aser afirmado", para relembrarmos a profunda reflex5o de Clifford.

    Afinidade relacional, portanto, n identidade substancial, erao valor a ser afirmado. Recordemos aqui que a lteologia' de.:algunspovos tupi formula-se diretamente nos termos de uma sociologiada troca: a diferenca entre deuses e homens se diz na linguagem daalianga de casamento (Viveiros de Castro 1986a), aquela mesma lin-guagem que os Tupinambi usavam para pensar e incorporar seusinimigos. Os europeus vieram compartilhar um espaco que ji estavapovoado pelas figuras tupi da alteridade: deuses, afins, inimigos,cujos predicados se intercomunicavam. E a partir dal que se podeminterpretar as diversas observacties sobre a "grande honra" alme-jada pelos indios ao entregarem suas filhas e irmas em casamentoaos europeus (Anchieta 1554: II, 77; 1563: III, 549; 1565: 201-02;Abbeville op.cit.: 63). Alem de urn calculo de benefIcios econOmi-cos ter genros ou cunhados entre os senhores de tantos bens eracertamente uma consideraco de peso , ha que se levar em conta

    os aspectos nio-matetiais, pois esti-se falando de honra. Era em ter-mos dessa mesma ideia de honra que os cronistas interpretavam acessio de mulheres aos cativos de guerra, antes de sua execuco ceri-monial (Correia 1551: I, 227; Monteiro 161o: 411; Cardim 1584:114).A honra parece-me aqui marcar o lugar do valor primordial da cul-tura tupinambi: a captura de alteridades no exterior do socius e suasubordinacao a lOgica social Interna i , pelo dispositivo prototipico doendividamento matrimonial, eram o motor e motivo principais dessasociedade, respondendo por seu impulso centrifugo. Guerra mortalaos inimigos e hospitalidade entusiastica aos europeus, vinganca cani-bal a voracidade ideolOgica exprimiam a mesma propensio e o mesmodesejo: absorver o outro e, neste processo, alterar-se." Deuses, inimi-gos, europeus eram figuras da afinidade potencial, modalizacOes deuma alteridade que atraia e devia ser atraida; uma alteridade sem aqual o mundo sogobraria na indiferenca e na paralisia.

    Perguntas como a de Pindabucu para Thevet ecoam na litera-tura missioniria;" a pregaco escatolOgica dos jesuitas fez grandesucesso, ao menos no comeco. Ela vinha encontrar uma questo-chave da religiao indigena, a recusa da mortalidade pessoal (Clastres1975; Viveiros de Castro 1986a; Combes 1992). Por sua vez, a men-sagem apocaliptica cristi coincidia corn o tema nativo da catistrofec6smica que ira aniquilar a terra." Mas parece-me haver aqui mais

    Por isto, foi tanto o caso dos Tup in ambi 'quererem virarbrancos' quanto ode quererque osbrancos virassem Tupinamb5. As cartas jesuiticas abundam em queixas sobre osmaus cristios que estariarn going native, casando poligamicamente com indios, matan-do inimigos em terreiro, tomando nomes cerimonialmente, e mesmo comendo gente.

    Ver os edificantes dialogos de conversao em Evreux (1614: "second trait", caps.xv a xxt), onde os indios enderecam uma quantidade de questoes cosmohigico-teo-16gicas aos padres.

    22. Mem dos Guarani contemporaneos, cujo caso-tipo so osApapocuva de Nimuen-daju (1914), ver ainda os Wayapi (Gallois 1988) e os Arawete (Viveiros de Castro1986a). Heine Clastres (1975: 35) afirma que praticamente nib se acha memo noscronistas ao tema indigena do apocalipse (exceto uma muito vaga passagem de >

    206 0 mcirmore c a murta 0207

  • que tais coincidencias evidentemente filtradas de um conjunto,sob outros aspectos, totalmente estranho as idiias nativas na aten-co as noticias do Mem trazidas pelos padres. Na medida mesmacm que provinham "do outro mundo", como formulou Anchieta, oseuropeus eram mensageiros da exterioridade, familiares das almas eda morte: como os karaiba ou "santidades" a que foram assimilados,sua provincia era a nao-presenca; como os magos indigenas, os euro-peus estavam na posicao de enunciacio adequada para falar do queestava Aim do dominio da experiencia.

    Nao penso que a inegivel convergencia de conteados entre a religiaotupi-guarani e a palavra dos missionirios possa servir de explicacaofinal. Demandas tao desconcertantes (para os antropOlogos e demaisculturalistas) quanto as dos Tupinamba podem ser observadas aindahoje: P. Gow (1991b, c) relata como os Piro, cuja cosmologia nao particularmente semelhante a dos Tupi quinhentistas, dirigiam aosmissionArios do Summer Institute of Linguistics o mesmo tipo de per-gunta, delegando a ales e a outros gringos a competincia cognitiva,nada isenta de ambigiiidade, quanto ao que se possa no Exterior: amorte, os confins do mundo habitado, os cius.lithos observadorestestemunharam fatos analogos. Por isso, encaro corn reservas a hipO-tese de H. Clastres (1m: 63) de que o exito dos jesuitas junto aosGuarani (o sucesso junto aos Tupi costeiros foi hem menor, diga-sede passagem)23 deveu-se As analogias entre a escatologia crista e o

    > Thevet). Nas Camas dos primeiros jesuitas no Brasil, entretanto, Anchieta narra aanedota de um velho Indio que doutrinarai "Lo que mas se le imprimi6 fue el myste-rio de la RessurrectiOn, lo qual repetia macho vexes diziendo: 'Dios vercladeiro esJes6 que se sali6 de la sepultura y se fue al cielo, y despite* a de venir muy airado aquemar Codas las cosae" (Anchieta 1563:11, 56o). L avio quc ha ai uma ittfluaticiado Juizo Final, mas suspeito tambern da presenca da conflagracao universal da mito-logia tupi; de qualqucr modo, foi esse teina crist5o quc marcau a vellwa.23. Os jesuitas da costa brasilcira, desanimados com sues ovelhas, acalentaramtangos sonhos de mudar-se ao Paraguai, pois ouviam maravilhas sabre os indios >

    terra da Terra sem Mal corn a -vantagem extra, para a primeira, deque ela nab corria o risco de desmentidos, pois, ao contrario do queprometia o discurso profetico nativo, o paraiso cristao nao podia seratingido em vida. A explicacao para a receptividade (inconstante) aodiscurso europeu nao deve, parece-me, ser procurada apenas ou prin-cipalmente no piano dos contetidos ideolOgicos, mas naquele das for-mas socialmente determinadas de (auto-) relacao com a cultura outradicao, de um lado, e naquele das estruturas (culturais) de pressu-posicao ontolOgica, de outro. Uma cultura nao urn sistema de cren-cas, mas antes-- j que deve ser algo um conjunto de estruturacOespotenciais da experincia, capaz de suportar contetidos tradicionaisvariados e de absorver novos: ela um dispositivo culturante ou cons-tituinte de processamento de crencas. Mesmo no piano constituidoda cultura culturada, penso que mais interessante indagarmos dascondicaes que facultam a ccrtas culturas atribuir as crencas alheiasurn estatuto de suplementaridade ou de alternatividade em relacao asprOprias crencas.24

    > de 15, os Guarani: que cram excelentes cristaos, monOgamos, nao corniam gente,tinham chafes de yen:lade, obedeciam aos padres etc. Anchieta resume: "Alan destesindios [Tupi], ha outro gentio espalhado ao longe e ao largo, a que chamam Cari-jOs, nada distinto destes quanto 5 alimentacilo, modo de viver e lingua, mas muitomais manso e mais propenso as coisas de Dcus, coma ficamos sabendo claramenteda experiencia feita corn alguns, quc morreram aqui entre nos, bastante firmes econstantes na fe" (1554: 11, 116; cf. tambem Nunes 1552:1, 339-4 0; NObrega 1553: I,

    493-94; id. 1553: 11, 15-16; id. 1555: II, 171 -72 ; id. .! 557: II, 402-03; id. 1558: 11, 456-57).Nisso entrava, scm dtivida, uma boa dose dc itiealizasao; mas as jesuitas do Brasilinsistiam que muitos CarijOs nit) cram canibais. (Embora as Irmaos Pero Correiae Joao de Souza tenham lido mortos pelos CarijO do sul em *554

    dois indios queos acompanhavam, devorados, Anchieta esclaiece que estes cram ainda indOmitos,mas que a maioria da nava ja estava bem sujeita aos espanhOis.)24. Para uma discussio inspiradara de um problema muito semelhante, ver oartigo de D. Tooker (1m) sobre os Akha da Birminia, cuja referincia agradecoa Tim Ingold.

    .to8 0 mirmore e a murta 209

  • Os missionirios, em particular, foram vistos como semelhantes aoskaraiba, e souberam utilizar-se disso. Sua errancia e seu discursohortativo aparentava-os desde o inicio aqueles. Passaram tambema adotar a pregacio matinal, a moda dos xamas e chefes (Correia1551: I, 220); usaram liberalmente do canto como instrumento deseduco, aproveitando o alto conceito de que gozavam a mUsica eos bons cantores (entre des os karaiba) junto aos Tupinambi, pro-vavelmente beneficiando-se da mesma imunidade que protegia osprofetas errantes e demais "senhores da fala" (Cardim 1583: 186).Atenderam ainda, corn as devidas reservas mentais, a demandanativa, prometendo vitOria sobre os inimigos e abundancia material(Anchieta 1565: 199). Aos pedidos de cura e longa vida, respondiamcorn o batismo e a pregaco da vida eterna (Azpicuelta 155o: 1, 18o);e aceitaram, levemente constrangidos, ate mesmo imputacOes depresciencia (Si 1559: III, 40)."

    25. Helene Clastres interpreta as indicaceies das fontes sobre o prestigio e imunidadedos cantores e "senhores da fala" como se aplicando exclusivamente aos karaiba,conformc sua teoria da extraterritorialidadc dcstes personagens. Isso, penso, n5o sesustenta. Ver Blizquez: "Avia en csta poblaziOn un principal mui antigo y a quien[...] tienen grande credit, porque Ile llaman 'sear de la habla'" (1561: tit, 408).Anchieta: "Fazem muito caso entre si, como os Romans, de bons linguas e lheschamam senhores da fala e urn born lingua acaba corn des quanta quer e lhes fazemnas guerras que matem ou nao matem e que vao a uma parte ou outra, e e senhor devida e morte. [...] Por isso ha pregadores entre eles muito estimados que os exortama guerrear, matar homens e fazer outran facanhas desta sorte" (1585: 433). Soaresde Souza: "Entre este gentio sao os mtisicos mui estimados, e por onde quer quevao, sao bern agasalhados, e muitos atravessaram ja o sera por entre seus contra-rios, sem lhes fazerem mal" (1587: 316). Monteiro: "os dextros nesta arte [canto]sao entre des mui prezados, tanto que se tem em seu poder algum contrario. borncantor e inventor de trovas, que entre eles sao raros, como a insignes na arte thed5o a vida e o tern em muita conta so pela rraisica, que e o tinico remedio corn quealguns se livram de morrer no terreiro" (161o: 415). Nenhuma destas referenciaspode ser interpretada como se referindo exclusivamente aos karaiba, mas apontampara o valor geral quc a mtisica e o discurso tinham na sociedade tupinamba. Sobre >

    IOs Tupinambi souberam tambem, e obvio, aproveitar-se dosmissionarios. Em primeiro Lugar, se los karaiba se mostraram, emdiversas ocasities, opositores ferrenhos dos padres, no poucos des-tes personagens apropriaram-se do dOcurso crist5o, desafiadora ouoportunisticamente:

    Trabaji por me ver con un hechifero, el mayor desta tierra. [...j Pre-guntele in qua potestate hec faciebat, si tenia comunicatiOn con Diosque hit el cielo y la tierra y reinava en los cielos. [...J Respondamecon poca verguenca, que a era dios y avia nacido dios, y presentOmealli uno a quien de'ia aver dado salude, y que el Dios de los cielosera su amigo, y le aparecia en nuves, y en truenos, y en relcimpagos...(NObrega 1549: I, 144)-

    Outro "feiticeiro errante", de uma aldeia pernambucana,

    viendo el credit gue tenian los Padres con el gentil, decia que era su

    pariente y que los Padres devan la verdad, y gue el id muriera y pasaradesta vida y tornara a vivir como decian los dichos Padres, y que por-tanto creiessen en el, y dtivanie en este medio tiempo las has a su petti-don (Rodrigues 1552:1, 320).26

    Em segundo lugar, as intlmeras referencias epistolares a principalsdesejosos de se converter sugerem que os homens politicamentepoderosos, cabecas de aldeia ou de casa, agarraram pelos cabelos aoportunidade de entrar de posse em um saber religioso alternativo

    > a mtisica como tatica de convers5o, cf. Azpicuelta 1. 55o: 1, 18o; o delicioso trecho

    de Pires 1552: 1, 333-84; e Blizquez 1557: II, 350-51.26. Portanto, se os padres eram uma especie de karaiba, os karaiba cram uma especiede padres. Ver os desejos de ser padre exprimidos pelo xam5 Pacim5o, em Evreux1614: 241 e ss. Para urn caso de apropriac5o do discurso crist5o por urn profeta, cf.Abbeville 1614: cap. XII.

    210 0 nuirmore e a murta211

  • ao dos karaiba; sem que seja preciso aceitar integralmente a hip6tesede H. Clastres sobre a "contradicao entre o politico e o religioso" nasociedade tupi pre-colonial, pode-se ainda assim ver aqui uma disputaentre eminencias concorrentes.P 0 use dos padres para a consecucaode objetivos politicos prOprios, alias, era extensivo: os Tamoio deIperoig aceitaram a embaixada de Anchieta de forma a ganhar os por-tugueses como aliados contra seus adversirios tradicionais, os Tupi-niquim de Sao Vicente. Aparentemente pouco inclinados a qualqueroposicao segmentar, os Tupi vendiam a alma aos europeus para conti-nuar mantendo sua guerra corporal contra outros Tupi. Isso nos ajudaa entender por que os indios nao transigiam coin o imperativo de vin-ganca; para eles a religiao, pr6pria ou alheia, estava subordinada afins guerreiros: em lugar de terem guerras de religiao, como as quevicejavam na Europa do semi, praticavam uma religiao da guerra.

    DO QUE COSTA CREH

    Os padres foram, entao, vistos como uma especie particularmentepoderosa de karaiba. Mas, eis-nos diante do grande problema: acredi-tavam os Tupinamba em setts profetas? As primeiras cartas jesuiticaslamentam, nao sem antecipar urn proveito, a credulidade dos indios,que se deixariam guiar cegamente pelas santidades: "qualquier delos suios que se quiere hazer su dios to creen y le din enter() crc-dito..." (Nobrega 1549: 1, 137-38); "ay entre ellos algunos a quien tie-nen por sanctos y dan tanto credito que to que les mandan hacer essohazes" (Correia 1551: 1, 231). Sao bem conhecidas as cerirnOnias detransfusao de poderes espirituais realizadas pelos xamas, as curas,previsaes e proezas sobrenaturais que se Ihes creditavam, suas fun-cOes de mediacao entre o mundo dos vivos e dos mortos, para nao

    27. Cf. Evreux (op.cit.: 220-2t), para o conilito entre um principal c urn "grandbarbier*.

    falarmos nas formidiveis migracaes desencadeadas e conduzidaspelos karaiba em busca da Terra sem Mal. No ha dilvida, ern suma,que xamas e profetas gozavam de "imenso prestigio" (H. Clastres1975: 42) junto aos Tupinambi, desempenhando urn papel religiosode destaque. Resta saber se tal prestigio, que se comunicou em largamedida aos missionarios cristaos, pode ser traduzido na linguagempolitico-teolOgica da fe e da crenca.

    Embora os jesuitas constatem o prestigio deleterio dos karaiba,curioso que estes nao aparecam nas cartas como obstaculo princi-

    pal a conversao do gentio, mas antes como urn percalco suplemen-tar, parte dos maus costumes nativos, incapaz, por si s6, de turvar odesejo de cristianizacao:

    Los gentiles, que parece que ponian la bienaventuranca en matar sus con-trarios y comer corns humana, y tener muchas mugeres, se van muchoemendando, y todo nuestro trabajo consiste en los apartar desto. Porquetodo lo demds es filed, pues no tienen idolos, aunque ay entre ellos algu-nos, que se hafen cantos y les prometen salud y victoria contra sus enerni-gos. Con quanto gentiles tengo hablado en esta costa, en ningunarepugnancia a lo que deficz: todos quieren y dessean ser christianos, perodeixar sus costumbres les parece dspero... (NObrega 1551: 1, 267-68).

    Tinindoles las matancas y el coiner came y quitdndoles los hechi-

    eros y hariindolos bivir con una sola muger... (Blizquez 15 5 8: II, 430).

    No periodo do desencanto jesuitico que logo seguiu o otimismoinicial, a tipica inconstancia selvagem prepondera sobre a ac5odas santidades coma entrave a conversao: "porquc como n ternquem adorem, salvo uma sanctidade que the vem de anno em anno,[...] facilmente dizem que querem ser christios, e asi facilmentewrap

    atraz..." (Pires 1552:1, 324). Pouco a pouco, os padres come-pram a perceber que o tipo de crenca depositada nos karaiba naoera exatamente aquele que gostariam fosse votado a eles e a sua

    212 0 marmore e a murta 213

  • doutrina: "Algunos dellos que se hazen santos entre ellos aora lesdan credit() aora no, porque las mas de las vexes los hallan en men-tira" (Correia 1553:1, 447). N se ponha isto na conta de mero des-peito ou chime profissional; o ceticismo, reconheciam os padres,estendia-se a eles mesmos: -

    Y vale poco ides predicar y volver para casa, porque, aunque algan cre-dit den, no es tanto que baste a los desraigar de sus biejas costumbres, ycreennos como creen a sus hechiteros, los glides a las vetes les mienteny a las veres aciertam a detir verdad... (Neibrega 1558: II, 452).

    Profetas que caiam em desgraca junto a seus seguidores eram fre-qiientemente mortos (Thevet 1575: 81; Cardim 1584: 103). Em cer-tos casos, como naquele do feiticeiro pernambucano reportado porVicente Rodrigues (ver supra), foram os padres os responsiveis portal descredito (ver tambem Abbeville op.cit.: cap. xir). Uma situagaosem drivida inquietante: nao seria esse tipo de adesao condicionadaveracidade das profecias e a eficicia das curas que poderia predispora religiao revelada. 0 estilo de religiosidade tupinambi nao era demolde a criar urn ambiente para a autentica fe: "bien que no hai enesta tierra idolatria, sino ciertas sanctidades que ellos dizen que nicreen ni dexan de creer..." (Gra 1556: II, 292). Nem creem nem dei-xarn de crer: os indios, pelo jeito, nao conseguiam acreditar nem emDeus, nem no terceiro excluido. Ou, como diria mais tarde Vieira,

    "ainda depois de crer, sac) incredulos." Os missionirios, que poucosanos antes haviam insistido sobre a universal credulidade do gentio,deram-se conta que as coisas eram bem mais complicadas, e que acrenca nas santidades e nas fibulas dos antepassados nao demarcavaem negativo o lugar de uma conversao.

    Essa versa() tupinambi do "probUme de l'incroyance au seiTiemesiecle", para evocarmos o celebrado livro de Lucien Fevre, apre-senta dois aspectos interligados: um, cognitivo, e o outro, politico.Quando Vieira dizia que o jardineiro de suas estatuas de murta deve

    214 0 nub-more e a murta

    cortar "o que vicejam os olhos, para que creiam o que nao veem",talvez estivesse fazendo mais que uma alusao evangelica. Do mesmomodo, quando os cronistas pintam os Tupinambi a modalizar cer-tas declaracOes cosmolOgicas por frases do tipo: "conforme nosdizem os nossos karaga", "o lugar que nossos pajes dizem ter visto"(Thevet op.cit.: 85, 99; Lery 1578: 22o-11), isso pode significar mais

    ou antes, menos que o reconhecim irnto da absoluta autoridadedos xamas e profetas no que respeitavalao Alem.

    A lingua tupinambi, como comium nas culturas amerindias,distinguia entre a narrago de eventos pssoalmente experimentadospelo locutor e aqueles ouvidos de terceiros. 28

    Minha experiencia cornos Arawete, povo tupi que apresenta numerosas afinidades com osTupinambi inclusive na centralidade da figura dos xamas comoformuladores e divulgadores do saber cosmolOgico inclina-mea tomar as declaracties do tipo "assim dizem nossos pajes" comoformulas citacionais que marcam uma relacao nao-experiencial dolocutor corn o tOpico do discurso. No caso arawete, onde proliferamxamas e versOes do que se passa no ceu corn os mortos e os deuses,isso esta claramente associado corn uma distincao entre o conheci-mento obtido pelos prOprios sentidos e aquele obtido pela experiin-cia (direta ou indireta) de outrem, conhecimentos que nao possuemo mesmo estatuto epistemico. Estou longe de pensar que os Arawete

    "nao creiam no que nao veem"; mas eles tomam extremo cuidadoem distinguir o que viram do que ouviram; e isso a especialmentemarcado no caso das informacOes cosmolOgicas que dao ou pedem.N duvido que eles acreditem em seus xamas, mas de um modoque Vieira possivelmente resumiria como "ainda depois de crer, saoincredulos", pois certamente nao tem nada de parecido com uma ver-dade revelada, e a nocao de dogma lhes a completamente estranha.

    28. Aproveito aqui ideias apresentadas por Peter Gow (1991b, c) em duas palestrasno Museu Nacional, bem como retomo observacties ji feitas em Viveiros de Castro1986a, sobre a "politica discursiva" dos Arawete.

    215

  • E claro, por fim, que as variadas fabulaceies xamanicas convergempara urn foco virtual corn todas as caracteristicas de urn sistema; masnao penso que se trate de urn sistema de 'crencas'. De resto, a prolife-racao de xamas e discursos xamanisticos impede o congelamento dequalquer ortodoxia. Li nao pode haver crentes, pois n ha hereges.Teria sido diferente no caso tupinamba?

    0 problema epistemico erzL na verdade politico, coma percebe-ram os jesuitas:

    Me parece que se ha de tener con ellos mucho trabajo,y una de las causaly mas principal es porque no tienen rey, antes en coda Aldea y casa aysu Principal. Assi es que es necessario andar de povoacidn en povoacidn.

    Y sy oviera rey, el convertido, fueron todos... (Correia 1151: t, z31);

    Nao estao sujeitos a nenhum rei ou chefe e so tbn nalguma estirna ague-les que fizeratn algum feito digno de homem fine. Pot isso frequente-menu, quando os julgamos ganhos, recalcitram, porque nao ha quern osobrigue pela jolt: a obedecer... (Anchieta 154: II, 114).

    Mas no Dialog da conversdo do gentio que se poe o dedo na ferida:

    Se tiveram rei, poderdo-se converter, ou se adorciram algtuna cousa; mas,como nam salsem que cousa he air nem adorar, nao podem entender hapregacdo do Evangelho, pois ella se funda emfaTer crer e adorar a humtoo Deus, e a use so servir; e como este gentio nam adora nada, nem creenada, todo o que the dileis se figua nada. (NObrega 1556-57: II, 320).

    Aqui esti: os selvagens nao creem em nada porque nao adoramnada. E nao adoram nada, no fim das contas, porque obedecem aninguern. A ausencia de poder centralizado nao dificultava apenaslogisticamente a conversio (nao vigorando o cujus regio, os missio-narios precisavam trabalhar no varejo); eta a dificultava, acima dctudo, logicamente. Os hrasis nao podiam adorar e servir a urn Deus

    soberano porque nao tinham soberanos nem serviam a alguem. Suainconstancia decorria, portanto, da ausencia de sujeicao: "nao hiquern os obrigue pela forca a obedecer..." Crer e obedecer, lembra-nos Paul Veyne 19( R

    3:curvar-se verdade revelada, adorar a

    loco de onde emana, v e4n4e);rar seus representantes. No modo de crerdos tupinambi nao havia lugar para a entrega total a palavra alheia:

    "como no tiene[n] idolos por quien mueran", nao podiam ter religiaoe fe, que exigem a disposicao em morrer por aiguma coisa. Modode crer, modo de ser. E conclui filosoficamente Luis da Gra (1554:II, 147): "y to que parecia gut, les ayudaria a ser christianos, que esno tener idolos, esso parece que les desayuda, porque no tienen sen-tido alguno". Inconstancia, indiferenca, nada: "Lo que yo tengo pormaior obsticulo para la gente de todas estas naciones es su propriacondiciOn, que ninguna cosa sienten mucho, ni perdida spiritual nitemporal suia, de ninguna cosa tienen sentimiento rnui sensible, ni queles dure..." (Gra :556: II, 294)

    A validacao da cosmologia nativa pelo recurso a palavra dos pajse profetas nao significava, portanto, uma

    nesta palavra, nosentido politico-teolOgico do term, porque faltava exatamente

    componente de sujeicao, de abdicacao do juizo e da vontade. 0reformado Liry (1578: 192) notava corn certo prazer perverso :

    Au rem, not Totioupinambaoults [...] nonobstant routes les ceremo-nies yu'ils font, n 'adorent pas en flichissant les genottx ou selond'autres manifestations e.x-tirieures. Its n'adorent ni leurs Caraibes,ni leurs Maracas, ni quelgue creature gut ce soit...29.

    29. [Dc resto, !lassos Tupinambi [...), apcsar de codas as ecrimOnias que fazem, naocult lial de joelbou ou con) sutras manifcstacilcs exteriorcs. Nat, vencram nem scusCaraibas, nem seus Maracis, nem qualquer outra criatura.1

    116 0 anirmore c a nuerta 217

  • A referencia de Lery aos maracas a interessante, pois a insistenciados jesuitas sobre o fato de que os selvagens nao tinham fdolosnao significa que praticassem uma religiao sem qualquer formade objetivacao material. Os chocalhos de xamanismo, sobre possui-rem uma evidente importhricia migica e simbOlica, recebiam umadecoracio antropomorfa, e falavam corn seus donos;" e ha referen-cias esparsas a desenhos e objetos supostos representarem espiritos.Do mesmo modo, os jesuitas e demais cronistas se estendem sobreas marcas de respeito dedicadas aos karaiba errantes: limpeza doscaminhos que os conduziam ate as aldeias, cfinticos de boas-vindas,cloaca de alimentos, extra-territorialidade. Mencionam tambem otemor que estes xamis-profetas despertavam, em sua capacidadede lancar a morte sobre os que os desagradavam; e naturalmenteescandalizavam-se ao ouvi-los se definirem como "deuses e Mhosde deuses", nascidos de virgens etc. Entretanto, nada disto bastoupara caracterizar, aos olhos europeus, uma religio e urn culto, naausencia dos indispensiveis "temor e sujeico" (Anchieta); os Tupi-namba nao adoravam estes objetos e personagens, desconhecendoa capacidade de sentir uma reverencia e urn temor propriamentereligiosos, fundamento de uma crenca digna deste nome.3'

    Assim se ye que as tres ausencias constitutivas do gentio brasileiroestavam causalmente encadeadas: nao tinham fe porque nao tinhamlei, nao tinham lei porque nao tinham rei. Sua lingua nao tinha nem osom (efes, des e erres), nem o sentido. A verdadeira crenca supae a

    3o. Mentes menos teohigicas, como a de 1-lans Staden, tinham os chocalhos porobjeto de crenca: "os selvagens creem numa cousa que cresce como uma abObora"(t55 711 73). Para uma referencia a antropomorfizaco dos chocalhos, cf. Azpicaelta1555: IL, 2,46.31. A repugnincia dos indios a castigos fisicos ou a ordens Aspens, e a dificulcladeque dali advinha em educi-los no temor a autoridade, registrada duas vezes porLuis da Gra (1554: H, 136-7; 1556: II, 294).

    218 0 mdrmore e a murta

    submissio regular a regra, e esta supde o exercicio da coercio por urnsoberano. Porque nao tinham rei, acreditavam nos padres; pela mesma(des)ralia, porque nao o tinham, desacreditavam. A recusa do Estado,para recordarmos um term celebre, n se manifestava portanto ape-nas, ou principalmente, em um discurso profetico negador da ordemsocial (H. Clastres 1975); ela ji estava embutida na relacab corn tododiscurso, enquanto ordem de rubes corn pretensao totalizante, e istoincluia a palavra dos karaiba. 32 Os Tupinambi faziam tudo quantolhes diziam profetas e padres exceto o que nao queriam.

    Ressalvo que nao vejo os Tupinamba como urn povo de empi-ristas ceticos; nem penso que sugerir ser inadequado assimilar umacultura a urn sisterna de crencas deva desaguar no utilitarismo daraid pritica (no sentido de Sahlins 1976). Meu ponto apenas queo 'genie du paganisme"(Auge 1982) n fala a lingua teocratica dacrenca. Pierre Clastres fez uma boa pergunta: possivel conceberurn poder politico que nao esteja funds' o no exercicio da coersio?Bern, ela vale esta outra: possivel co , ceber uma forma religiosaque nao esteja assentada na experiencia normativa da crenca? Tal-vez se trate exatarnente do mesrno problrna; mas a resposta de Clas-tres foi a invencio da Sociedade Primitiva, sujeito transcendente do

    I

    32. A insistencia de H. Clastres na tese do incipierte centralism politico dos Tupi-Guarani e portanto no papel revolucionirio dos profetas, que questionariam opoder perigosamente pre-estatal dos grandes chefes de guerra levou-a, penso, aminimizar as informaes que sugerem um certo ceticismo inconstante dos indiosem relac5o aos karaiba. A autora tampouco parece I evar em conta as iduneras obser-vaciies dos jesuitas c cronistas sobre a `ausencia de rei', i.e., de poder politico forte ecorn algum indicio de centralismo, nos Tupi costeiros. No minimo, deve-se observarque pode ter havido diferencas profundas entre os Guarani do atual Paraguai e osTupi da costa, ou, para char a prOpria autora, "e preciso proceder corn prudencia,Pais a hontogeneidacle [...I da cultura tupi-guarani obviamcnte nao autoriza umaatribuicao automatica aos segundos do que sabemos ser verdade dos primeiros"(1975: 22). Sobre o poder politico entre os Tupi da costa, cf. Fausto 1992.

    219

  • poder politico nao-coercitivo, ao passo que a resposta a segunda per-gunta implicaria uma problematizaco radical desse sujeito.

    0 no da questo esti na ideia de que 'a religioso' a via real queconduz a essencia Ultima de uma cultura. Por tris disso ergue-se oidolo durkheimiano da totalidade: impulso de contemplaco e cans-tituicio do todo, a Crenca da tribo a crenca na Tribo, o Ser e operseverar do Ser da tribo. Duvidar que tal idolo seja adorado pelosselvagens suspeitar da icliia de sociedade enquanto totalidade refle-xiva e identitiria que se institui pelo gesto fundacional de exclusode um exterior. E nao a preciso ser Os-modern (Deus nos livre)para duvidar disso. A religi5o tupinambi, radicada no complex doexocanibalismo guerreiro, projetava uma forma onde o sociu.r consti-tuia-se na relacio ao outro, onde a incorporacao do outro dependiade urn sair de si o exterior estava em processo incessante de inte-riorizac5o, e o interior n era mais que movimento para fora. Essatopologia nao conhecia totalidade, nao supunha nenhuma mOnadaou bolha identitiria a investir obsessivamente em seas fronteiras eusar o exterior como espelho diacritic de uma coincidencia consigomesma. A sociedade era ali, literalmente, um 'Unite inferior da pre-dacios (Levi-Strauss 1984:144), o residua indigerivel; o que a movia a relacio ao fora. 0 outro n era urn espelho, mas um destino.

    Nao estou dizendo para insistirmos nesta antropologia nega-tiva que nao tenha existido alga como uma religi5o, ou uma ordemcultural, ou uma sociedade tupinambi. Estou apenas sugerindo queessa religiao nao se pensava em termos da categoria da crew, essaordem cultural nao se fundava na exclus5o unicista das ordens alheias,e essa sociedade nao existia fora de uma relac5o imanente coma alteri-dade. 0 que estou dizendo a que filosofia tupinambi afirmava umaincompletude ontolOgica essential: incompletude da socialidade, e,em geral, da humanidade. Tratava-se, em suma, de uma ordem ondeo interior e a identidade estavam hierarquicamente subordinadosa exterioridade e a diferenca, onde o devir e a relaclo prevaleciamsabre o ser e a substincia. Para esse tipo de cosmologia, os outros

    sao uma soluco, antes de serem como foram os invasores europeus urn problema. A murta tern razeies clue o mirmore desconhece.

    A inconstancia selvagem apareceu ainda, aos olhos dos jesuitas, soba luz agravante do interesse mesquinho. Crer ou nao crer, eis, parao gentio, uma questao respondida pelas vantagens matcriais quedali adviessem:

    Esta gente, Padre [Loyolaj, no se convierte con k ditir de las cosasde la fee, ni con "atones, ni palabnu de predication. [...j El modode los convertirlar, de los blancos, es alleguar commodidades tem-porales sin noticia alguna de cosas a'e la fee... (Gra 1554: II, 137).

    Y si algunas apparentias de bien y alguna esperanca nos tienendada en estos seis altos que a que con ellos tratamos, alo causadomcis el intetesse,y la esperanca del que ellos tienen, que no elPryorde la fe que en sus coracones tengan (NObrega 1555: II, 171).

    verdade [...] que nossos catectimenos nos deram ao principiogrande maitre de fi e probidade. Mas, como se movem maispcla esperanca de lucro e certa vanglOria do que pela ft, nao temnenhuma firmeta e facilmente ci menor contrariedade voltam aovcimito, sake:ado nao undo nenhum temor dos cristaos (Anchieta1555: 11, 208).

    Huma cousa tem estes peior de codas, que quando vem ci minha tcnda, corn hum antol que lhes di, os converterel a codas, e cornoutros os tornarci a desconverter, por serem incostantes, e naoentrar a verdadeira fee nos coracas... (NObrega 1556-57: II, 310).

    Se, a principio, os jesuitas rejeitaram isso que viam como pura vena-lidade espiritual, n demorou a que recorressem pragmaticamentea chantagem econOrnica como forma de persuas5o e controle:

    220 0 ruirmore c a murta 221

  • Grande es la embidia que los gentiles tienen a estos nuevamenteconvertidos, porque yen grain favorecidos son del gobernador y deotras principales personas, y si quisiessemos abrir la puerta al bap-tisms quasi todos se vendrian, to qua/ no harems si no conocemosser aptos para esso, y que viene[n] con devociOn, y con contritionde los malos costumbres en que se ha[n] criado, y tambien porqueno tornen a retroceder... (Pires 1551: 1, 254).

    Yo tengo dicho a algunos indios princtp. ales destas panes algu-nas cosas acerca de mandar el Rei que no les den cuchillos gran-des ni pequeiios [...] y que to ha tt, porque no es raOn que lascosas Buenas que Dios trig que las den a los que a Dios no conos-cen, pasta entretanto que primero se hagan todos christianos[...] en estas partes de S. Vicente, como por toda la costa, lo=is seguro y firme a de ser ponerlos en necessidad, que veanellos claramente que no tienen ningien remedio pare aver /a hera-mienta para sus rotas, sino es tornarse christianos... (Correia

    1 553 : I , 444-45).

    Ern suma: o gentio n5o so era inconstante, como se guiava, emsuas deambulacOes ideolOgicas, pela cobra de bens temporais.Eis urn outro tema que fez fortuna, na construco da imagemnegativa do Indio sujeito leviano, capaz de fazer qualquercoisa por urn punhado de anthis e que continua a frequentar ospesadelos de muitos observadores bem-intencionados: antropO-logos, indigenistas, missionirios progressistas que gostariam dever `sous' indios recusarem, em nome dos valores mais altos dacultura nativa, as quinquilharias como que lhes acenam. A guisade racionalizaca'o, costuma-se recorrer ao argumento da superio-ridade tecnica dos implementos europeus, cuja irresistivel atra-cao corrOi o marmore do orgulho e da autenticidade culturais.Sem pOr em thivida as vantagens materiais muito palpiveis que

    "cuchillos grandes y pequerios" oferecem a povos desprovidos de

    metalurgia,33 penso que esta explicag5o exprime um utilitarismobanal, terminando por validar juizos como o dos jesultas. A alter-nativa de se considerar a `vena/idade e leviandade indigenascomo uma camuflagem estrategica, que permite a obtencAo decoisas preciosas (como instrumentos de ferro, ou a tranquilidade)em troca de concessOes irrelevantes (como a alma, ou o reconhe-cimento dos poderes constituidos), nio inteiramente falsa, masme parece insuficiente. Certamente muitos povos indigenas trata-ram e tratam os brancos como idiots savants de quem se pode sub-trair objetos maravilhosos em troca de gestos de fachada; e muitosoutros pagam o preco da adesio verbal para que os deixem em paz.34Mas, sobre implicar uma concepcao estitica e reificada da cultura,como algo a ser prescrvado sob camadas de verniz refletor, essearguments esquece que em muitos casos as concessOes foram bemreais, e que os efeitos da introducao de bens e valores europeussobre as estruturas sociais nativas foram profundos. Ele esquecetambem que a relaco corn a parafern5lia dos invasores, ainda queinevitavelmente guiada por fins culturais autOctones, no se deixaler sempre em termos de um instrumentalismo auto-esclarecido.Ele ignora, sobretudo, que a cultura estrangeira foi muitas vezesvisada em seu todo como um valor a ser apropriado e domesticado,como urn signo a ser assumido e praticado enquanto tal.

    NI a mera pirueta dialetica dizer que os Tupinambi nuncaforam mais si mesmos que ao exprimilrem seu desejo de "ser chris-tianos como nosotros". As eventuais iantagens priticas que busca-vam ao declarar seu desejo de converSo estavam imersas em urn

    33. Algumas das quais residindo, justamente, na possibilidade de intensificacio de priti-cas tradicionais valorizadas. Veja-se aqui a notivel carta de Pero Correia 0553:1, 445),onde este observa uma conexo causal entre a introduco de implementos de ferro, oaumento das areas plantadas, e a intensificasio das cauinagens e das guerras.34.0 melhor exemplo dessa tolerincia irOnica para como os brancos esta numa diver-tida passagem de Nimuendaju 1 9 1 4 : 28-29.

    222 0 nuirmore e a nzurta 223

  • "calcul sauvage" (Sahlins 1 985) onde ser como os brancos e o serdos brancos era urn valor disputado no mercado simbOlico indi-gena. Os implementos europeus, alem de sua Obvia utilidade, eramtambem signos dos poderes da exterioridade, que cumpria capturar,incorporar e fazer circular, exatarnente como a escrita, as roupas,os salamaleques rituals dos missionarios, a cosmologia bizarra quepropalavam. Exatamente, alias, como os valores contidos na pessoados inimigos devorados: os Tupinamba sempre foram uma `socie-dade de consumo'. Isto que chamariamos de impulso aloplistico oualomOrfico dos Tupi nio pode estar mais distante do patetismo daalienacao ou do espelhismo do Mestre e do Escravo; etc a contra-partida necessiria de urn canibalismo generalizado, que se distingueradicalmente da vertigem aniquiladora prOpria dos imperialismos,ocidentais ou outros. As leituras da antropofagia tupi nos termossimplistas de um impulso de absorcao e controle (simbOlico, poli-tico ou como se o queira chamar) do outro negligenciam esta duplaface e este duplo movimento: incorporar o outro a assumir sua alteri-dade. A moda inconstante da casa, bem entendido; o 'virar Branco ecristae dos Tupinambi nao correspondia em nada ao que queriamos missionarios, como vein a demonstrar o recurso a terapia de cho-que do compelle intrare."

    Como os Tupinamb6 perderam a guerra

    A pregacao escatolOgica dos padres coincidia corn as ideias nativassob alguns aspectos: imortalidade da alma, destino pOstumo diferen-

    35 Nib o caso de discutirmos acid a virada jesuitica em dire* a linha dura. Ostrechos das cartas jesuiticas pertincntes esti . em: Anchieta *554 t4, *IS; t $15:11, 2o6-o8; Camara 1557: II, 421; NtSbrega '517: H, 401-02; 1558: H s 447-48 , 410;hires $58: n, 463; NObrega 1559: 72; Pereira 156o: III, 293; e a eilebre carta deAnchieta 1563: III, 554.

    ciado conforme a qualidade da vida levada na terra, conflagracaoapocaliptica. Mas havia uma discordancia de principio quanto asinjuncOes envolvidas nas concepcOes crista e indigena do reto cami-nho. Como ouvimos na fala de Pindabugu, guerrear e vingar-seera consubstancial ao ser de um homem. 0 imperativo da vingancasustentava a miquina social dos povos da costa: "como os Tupi-nambi sao muito belicoso

    s, todos os seus fundamentos sao comofarao guerra a seus contrizios" (Soares de Souza op.cit.: 320). 36 Eiso avesso da inconstancia indigena. Pois se os indios mostravam-seadmiravelmente constantes em alga, e se de alguma coisa tinham urn

    "sentimento muy sensible, y que les lure", era em ludo que dizia res-peito a vinganca:

    Tienen guerra linos con otros, scilicet una generacidn contra otra generacidn,a die{ e quinte e veynte leguas, de manera que todos entre si esan divisos.[...] Y en estas dos cocas, siclket, en toner muchas mugeres y matar suscontraries, consiste toda su honrra, y esta es su felicidad y deseo.

    Y notienen guerra por cokkia que tengan [...] sino solamente por odio y ven-ganca... (NObrega t 549: 1, 136-37).

    Llamando todos sus parientes que se viniesen a vengar la qual es lamaior honrra que deficit, porque quando alguno estd en la jin de susmos dins pide carne de sus contrarian para comer, porque asi van conso-lados, y tambiin se honrran mocha tenor en la cabecera de la red, dondeduermen, un novillo de carne... (Rodrigues 1552: 1, 307-08).

    Y lo que mds los tiene ciegos, es el infassiable appetitu que denen de ven-guanfa, en lo qual consiste su honra... (Gra 1554: II, 132-33).

    36. Sobre a guerra c o canibalismo tupi, cf. Mtraux *967; Fernandes 1949, 1952; H.Clastrcs 1972; Viveiros de Castro 19116a; Combs 3992; Carneiro da Cunha & Vivei-ros de Castro 1985; Saignes 1985; Combil & Saignes 1991; Fausto 1992.

    225224 0 mcirmore e a murta

  • Sus guerras, en las quales como tengan puesto quasi todo su pensamientoy cuidado en ellas... (Anchieta 156o: III, 258-59).

    [Anus de partirem a guerra, um principal os arenga, falando-lhes da]obrigacao que dm de it tomar vinganca de seus contrariot, pondo-lhesdiante a