A importância da relação corporal afetiva

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A importância da relação corporal afetiva Para Le Camus (1986), são fecundas para a evolução do pensamento psiquiátrico ocidental as contribuições wallonianas com relação à concepção do “diálogo tônico” – relação corporal afetiva. O diálogo tônico na teoria walloniana é um aspecto central na estruturação do caráter e da inteligência, estabelecendo uma estreita relação entre o tônus postural e o tônus emocional. Dessa maneira, a emoção tem um elo com o orgânico e o social. A estruturação do caráter e da inteligência está diretamente vinculada às relações estabelecidas entre a criança e os outros. Então, nesta abordagem, a criança é concebida como um ser eminentemente social. O neurologista Juan Ajuriaguerra (1962) apresenta um estudo sintético sobre a psicologia do corpo, o que, de certa forma, é uma homenagem a Wallon. Refere-se às ideias wallonianas sobre a importância da “relação tônico- emocional” para o início do desenvolvimento infantil da seguinte maneira: [...] a constante preocupação de Wallon foi a de destacar a importância da fusão afetiva primitiva em todos os desenvolvimentos ulteriores do sujeito, fusão expressa através dos fenômenos motores num diálogo que é o prelúdio ao diálogo verbal ulterior e a que chamamos de diálogo tônico. [...] todos sabem da importância que Wallon concedeu ao fenômeno tônico por excelência que é função postural de comunicação, essencial para a criança pequena, função de troca por meio da qual a criança dá e recebe. É principalmente aí, em nossa opinião que a obra de Wallon abre uma perspectiva original e fecunda na psicologia e na psicopatologia. A função postural está essencialmente vinculada à emoção, isto é, à exteriorização da afetividade (AJURIAGUERRA apud LE CAMUS, 1986, p. 38-39). Para Wallon (2008), a fisiologia mostra que o tono não é algo simples; tem componentes de formas e funções diversas, dependendo dos centros de onde recebe momentaneamente seu fluxo. Neste sentido, Dantas (1992) afirma que toda alteração emocional corresponde a uma flutuação tônica e que modulação afetiva e modulação muscular têm estreita ligação. Com base no papel desempenhado pelo tônus, Wallon classifica as emoções conforme o grau de tensão muscular. Assim, identifica as emoções de natureza hipotônica – relação redutoras do tônus, como a depressão, e as emoções hipertônicas – geradoras do tônus. A raiva e a ansiedade vinculam-se aos estados de hipertonia.

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A importância da relação corporal afetiva

Para Le Camus (1986), são fecundas para a evolução do pensamentopsiquiátrico ocidental as contribuições wallonianas com relação à concepção do“diálogo tônico” – relação corporal afetiva. O diálogo tônico na teoria walloniana é um aspecto central na estruturação do caráter e da inteligência, estabelecendo uma estreita relação entre o tônus postural e o tônus emocional. Dessa maneira, a emoção tem um elo com o orgânico e o social. A estruturação do caráter e da inteligência está diretamente vinculada às relações estabelecidas entre a criança e os outros. Então, nesta abordagem, a criança é concebida como um ser eminentemente social. O neurologista Juan Ajuriaguerra (1962) apresenta um estudo sintético sobre a psicologia do corpo, o que, de certa forma, é uma homenagem a Wallon. Refere-se às ideias wallonianas sobre a importância da “relação tônico-emocional” para o início do desenvolvimento infantil da seguinte maneira:

[...] a constante preocupação de Wallon foi a de destacar a importância dafusão afetiva primitiva em todos os desenvolvimentos ulteriores do sujeito,

fusão expressa através dos fenômenos motores num diálogo que é o prelúdioao diálogo verbal ulterior e a que chamamos de diálogo tônico. [...] todos

sabem da importância que Wallon concedeu ao fenômeno tônico porexcelência que é função postural de comunicação, essencial para a criança

pequena, função de troca por meio da qual a criança dá e recebe. Éprincipalmente aí, em nossa opinião que a obra de Wallon abre uma

perspectiva original e fecunda na psicologia e na psicopatologia. A funçãopostural está essencialmente vinculada à emoção, isto é, à exteriorização da

afetividade (AJURIAGUERRA apud LE CAMUS, 1986, p. 38-39).Para Wallon (2008), a fisiologia mostra que o tono não é algo simples; temcomponentes de formas e funções diversas, dependendo dos centros de onde recebe momentaneamente seu fluxo. Neste sentido, Dantas (1992) afirma que toda alteração emocional corresponde a uma flutuação tônica e que modulação afetiva e modulação muscular têm estreita ligação. Com base no papel desempenhado pelo tônus, Wallon classifica as emoções conforme o grau de tensão muscular. Assim, identifica as emoções de natureza hipotônica – relação redutoras do tônus, como a depressão, e as emoções hipertônicas – geradoras do tônus. A raiva e a ansiedade vinculam-se aos estados de hipertonia. Neste estado, há um excesso de excitação, que pode tornar rígida a musculatura periférica; ou seja, não há escoamento do tônus, o que pode ser acompanhado de incômodo ou dor. De outro modo, nas situações afetivas ditas prazerosas, percebe-se um afluxo tônico; isto é, ele se escoa imediatamente em movimentos expressivos. A alegria é o resultado do equilíbrio e de uma ação recíproca entre o tônus e o movimento. Assim, nas expressões emocionais, as flutuações tônicoposturais funcionam como produtoras de estados emocionais e entre a emoção e o movimento há uma relação de reciprocidade. Entretanto, vale salientar que esta classificação walloniana das emoções não significa uma padronização, ou mesmo o que é normal ou anormal. É preciso deixar claro que, na teoria walloniana, o movimento é intencional. Por exemplo, ao subir uma rocha posso contrair ou relaxar alguns músculos. O movimento depende do mundo exterior, da situação. Portanto, o ser humano é um ser em situação.Ao longo da sua história de vida, o indivíduo está sujeito a flutuações emocionais que podem estar ligadas aos estados de tensão ou relaxamento, depende da situação. Para ter uma vida saudável, mesmo no tumulto da vida cotidiana, é preciso cuidar-se, buscando, à medida do possível, o equilíbrio entre razão e emoção. Para este fim, Pereira (2005) revela que as atividades lúdicas

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podem proporcionar uma flexibilização dos bloqueios que impedem o livre fluxo da energia e, por conseguinte, os movimentos e a expressividade. Assim, declara que[...] vivenciar atividades lúdicas é estimular nosso fluxo de energia vital, oque traz bem-estar; é estimular a pulsação, o que significa mais vida,contribuindo para o equilíbrio das funções antitéticas do sistema vegetativo;enfim, é uma forma de cuidar de nós mesmos. [...] Cuidar de si, neste sentido,significa dar possibilidades de que às contrações (tensões, sustos,dificuldades [...] se sigam expansões (relaxamento, acolhimento, situaçõesprazerosas, apoio [...] E a ludicidade oferece possibilidades para esteprocesso de expansão, de maior conhecimento de si, de restauração de umestado de inteireza, de maior centramento, de estar bem (PEREIRA, 2005, p.103-104).Pereira compartilha com Wallon a ideia de que o lúdico é um recurso devital importância para liberação do fluxo de energia, tanto para a criança quanto para o adulto. No entanto, na sociedade ocidental, principalmente com o desenvolvimento do capitalismo, a brincadeira, que até então, era uma atividade comum entre crianças e adultos, passa a ser algo de domínio infantil. Paulatinamente, o adulto vai se ajustado às condições de disciplina do mundo do trabalho, e as brincadeiras deixam de ser atividades espontâneas, transformando-se em atividades de lazer vinculadas, sobretudo, ao descanso do trabalho. Para Wallon (2007, p. 55), “o brincar não é essencialmente aquilo que exige esforço, em contraposição à labuta cotidiana, pois uma brincadeira ou um jogo pode exigir e liberar quantidades bem mais consideráveis de energia do que uma tarefa obrigatória”. Assim, no contexto da sociedade atual, que enaltece o trabalho e a disciplina, “o brincar é sem dúvida uma infração às disciplinas ou às tarefas que impõem a todo homem as necessidades práticas de sua existência, a preocupação com sua posição, com sua imagem (WALLON, 2007, p. 59)”.A afirmação walloniana permite-nos refletir sobre a prática pedagógicatradicional, que, em prol da dimensão intelectual e da disciplina, tolhe,equivocadamente, as manifestações corporais e as experiências sensoriais, ancorada na ideia de que a imobilidade postural é mais adequada à aprendizagem, submetendo os educandos a uma “ditadura postural”. Como ressalta Galvão (2002), não há um padrão postural para garantir a atenção para a aprendizagem. A postura corporal pode variar de acordo com o tipo de atividade e do estímulo. Uma criança sentada, imóvel, não significa que esteja aprendendo. Daí, ser importante a escola respeitar as condições e as necessidades dos educandos, principalmente da criança, uma vez que seu ato mental projeta-se em atos motores. Romper com a postura tradicional é considerar o movimento como uma multiciplicidade de dimensões e significados, e não como transgressão das regras escolares. Uma educação voltada para a totalidade do educando concebe o movimento como parte indissociável da aprendizagem e, da mesma forma, o lúdico, que possibilita a expressão dos sentimentos e a integração corpo-mente (PEREIRA, 2005).Segundo Wallon (2007), o lúdico é fundamental para o desenvolvimentoinfantil, pois é por meio da brincadeira, do movimento, que a criança adquireconhecimento e compreende a realidade. Todavia, o tipo de brincadeira que a criança realiza está vinculado à etapa de seu desenvolvimento, sendo identificadas como funcionais, de ficção, de aquisição e de fabricação. No estágio impulsivo-emocional, as brincadeiras funcionais consistem em movimentos simples, predominando a emoção como o principal meio de interação e comunicação com o outro. A criança, nesta etapa, está voltada para o meio humano. No estágio seguinte, sensório-motor e projetivo, a atenção da criança volta-se para a exploração da realidade, estabelecendo uma ligação entre os movimentos e as

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sensações. Este estágio corresponde ao segundo ano, no qual ocorre a imitação. Para Wallon (2008), a imitação é uma forma de atividade que mostra,incontestavelmente, a relação entre o movimento e a representação. Na imitação, acriança utiliza os gestos para completar o seu pensamento, sendo o gesto anterior àpalavra, o que revela as origens motoras do ato mental; isto é, o ato mental projeta-se em atos motores. Vale salientar, portanto, que a imitação antecede a representação. Nas brincadeiras de ficção, ou de faz-de-conta, a criança exercita a imaginação. Ela realiza gestos simbólicos, chamados de “simulacros” representação do objeto sem nenhum objeto substituto, caracteriza-se pela própria mímica na qual o significante é o próprio gesto. Ao realizar simulacros, a criança se envolve em representações de situações reais, mas também de ficção, de imaginação. Entretanto, Wallon não considera o simulacro como algo ilusório para a criança, mas como uma descoberta do exercício de uma função, cuja finalidade é a de ordenar e fixar as ideias. O exemplo a seguir é bem esclarecedor disso:

[...] Uma criança de 3 anos e meio brinca de lavar o seu urso de pelúcia, masapenas finge ensaboá-lo. Executa o gesto de pegar o sabão, de agarrar umagarrafa, de tirar a tampa, de esfregar, de enxugar, sem ter nada nas mãos a

não ser o urso. [...] O gesto pode, portanto, tornar presente o objeto ausente esubstituí-lo (WALLON, 2008, p. 122).

Os gestos simbólicos estão na origem da representação, pois a imitação realiza a transição entre o sensório-motor e o mental. Com o fortalecimento da dimensão cognitiva, a imitação dá lugar à representação e, enquanto ato motor, ela ficareduzida pela atividade intelectual. Nas brincadeiras de aquisição, a criança procuraaguçar sua percepção, objetivando compreender elementos do seu meio. E, por último, nas brincadeiras de fabricação a criança deseja construir objetos novos, transformá-los. Para Wallon (2007), estes tipos de brincadeiras não são momentos isolados na vida da criança, esses elementos vão se somando, e uma forma de brincadeira pode estar presente em outra. Por exemplo, nas brincadeiras de fabricação, a ficção e a aquisição também estão presentes. As brincadeiras são importantes para o desenvolvimento afetivo, cognitivo e motor, para a criatividade e para a preparação para a criança lidar com situações futuras. Na educação escolar, o lúdico e o movimento do corpo são importantes para impulsionar desenvolvimento e favorecer a aprendizagem da criança, além de possibilitar o estabelecimento de laços afetivos e de confiança entre o educador e o educando.Fonseca (1993) compartilha a perspectiva walloniana de que o estado-tônicoé uma forma de relação com o meio e está vinculado a cada situação e a cada indivíduo. A função tônica está ligada a todas as manifestações das dimensões emocional, cognitiva e motora, e participa de todos os comportamentos do ser humano. Assim nos diz:

Wallon sublinhou que a função tônica intervém na dialética da atividade derelação e no campo da psicogênese. Entre o indivíduo e o seu meio estabelece

um diálogo corporal, no qual a função tônica integra a história dasinformações exteriores e inter-relacionais para dar origem à fenomenologia

do comportamento humano (FONSECA, 1993, p. 55).Na perspectiva walloniana, pode-se dizer que a emoção é uma forma deinserção no meio ambiente e social. Esta adaptação social origina-se do tono postural, sendo o seu núcleo o tônus muscular. A relação com o outro é fundante no diálogo tônico do qual emergem a comunicação e, por conseguinte, as condições necessárias para o desenvolvimento do pensamento, da simbologia e da linguagem

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verbal. A seguir, serão abordadas as ideias wallonianas sobre o movimento humano que influenciaram os psicomotricistas, sobretudo os da Psicomotricidade Relacional.