A importância da leitura

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LINGUAGENS – ENSINO MÉDIO A importância da leitura como identidade social Identidade social é a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, construída por meio de sua vivência, na qual estão incluídas suas leituras e (re)leituras da vida e também dos livros Por Simone Strelciunas Goh É notória e já foi cotejada em inúmeros textos a importância da leitura. Daremos continuidade a essa discussão; entretanto, tomaremos como norte não apenas a importância da leitura, mas o tipo de leitura que se faz importante e como se configuram seus leitores. Ingedore Villaça Koch e Vanda Maria Elias apontam para três perspectivas de leitura: a primeira, cujo foco está centrado no autor, que se mostra um sujeito individual e produz seu texto por meio da língua, entendendo-o como um produto do seu pensamento. A leitura aqui é vista como um ato de captação de representações programadas. Essa visão se distancia do que conceitua Goodman, para o qual a leitura é uma atividade que se estabelece entre o pensamento e a linguagem. Todos os gêneros podem proporcionar esse tipo de leitura em que o leitor parte deste princípio: vê o texto como um produto acabado, cujas ideias representam máximas a serem aceitas, sem reflexão. A segunda perspectiva de leitura tratada por Koch e Elias centra-se no texto: a língua é vista como um código tanto pelo autor quanto pelo leitor e a leitura se dá apenas no nível do enunciado, tudo está dito no dito. A maioria dos livros que aparecem na lista dos mais vendidos pode proporcionar esse tipo de leitura linear. Tudo é desvendado para o leitor pelo texto, por meio de descrições e diálogos, pelo explícito. O livro de mistério mostra o mistério em cada página, o

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LINGUAGENS – ENSINO MÉDIO

A importância da leitura como identidade social

Identidade social é a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela

própria, construída por meio de sua vivência, na qual estão incluídas suas leituras e

(re)leituras da vida e também dos livros

Por Simone Strelciunas Goh

É notória e já foi cotejada em inúmeros textos a importância da leitura. Daremos continuidade a essa discussão;

entretanto, tomaremos como norte não apenas a importância da leitura, mas o tipo de leitura que se faz importante

e como se configuram seus leitores.

Ingedore Villaça Koch   e Vanda Maria Elias apontam para três perspectivas de leitura: a primeira, cujo foco está

centrado no autor, que se mostra um sujeito individual e produz seu texto por meio da língua, entendendo-o como

um produto do seu pensamento. A leitura aqui é vista como um ato de captação de representações programadas.

Essa visão se distancia do que conceitua Goodman, para o qual a leitura é uma atividade que se estabelece entre o

pensamento e a linguagem. Todos os gêneros podem proporcionar esse tipo de leitura em que o leitor parte deste

princípio: vê o texto como um produto acabado, cujas ideias representam máximas a serem aceitas, sem reflexão.

A segunda perspectiva de leitura tratada por Koch e Elias centra-se no texto: a língua é vista como um código tanto

pelo autor quanto pelo leitor e a leitura se dá apenas no nível do enunciado, tudo

está dito no dito. A maioria dos livros que aparecem na lista dos mais vendidos

pode proporcionar esse tipo de leitura linear. Tudo é desvendado para o leitor

pelo texto, por meio de descrições e diálogos, pelo explícito. O livro de mistério

mostra o mistério em cada página, o envolvimento romântico é desnudado a cada linha; página lida, informação

recebida; página virada, parte-se para outra informação, esquecendo-se da anterior, sem reflexão nenhuma.

Choramos, rimos, a cada página surgem novos sentimentos, advindos dos adjetivos adequados e de marcas de

oralidade que dão o tom de realidade ao discurso. Contudo, ao terminar o livro, esquecemos aquele mundo, a

leitura não nos fez mais gente, não revisitamos nossos pensamentos, o mundo real continua o mesmo, nem mais

feio, nem mais bonito. Tal leitura não torna o leitor consciente de seu papel. Podemos dizer que esse é um tipo de

leitura linear, em que preocupação do leitor está voltada apenas para as palavras e a estrutura textual.

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Monteiro Lobato repudiava esse tipo de leitura, em suas cartas endereçadas ao amigo e também escritor

Godofredo Rangel, editadas sob o título de A Barca de Gleyre, relatou as dificuldades de produzir um texto em que

os "enfeites literários" não fossem os mais importantes.

Chegou-me afinal o livro infantil - mas não é livro infantil. Não é literatura para crianças. É literatura geral. (...) A

coisa tem de ser narrativa a galope, sem nenhum enfeite literário. O enfeito literário agrada aos oficiais do mesmo

ofício, aos que compreendem a Beleza literária. Mas o que é a beleza literária para nós é maçada e

incompreensibilidade para o cérebro ainda não envenenado das crianças. (...) Não imaginas a minha luta para

extirpar a literatura dos meus livros infantis. A cada revisão nova nas novas edições, mato, como quem mata

pulgas, todas as "literaturas" que ainda as estragam. Assim fiz no Hércules, e na segunda edição deixá-lo-ei ainda

menos literário do que está. Depois da primeira edição é que faço a caçada das pulgas - e quantas encontro, meu

Deus!

Monteiro Lobato, em A Barca de Gleyre , como citado em Metalinguagem e marcas de oralidade em Monteiro

Lobato, de Simone Strelciunas Goh. Grifo nosso.

O autor não enxerga o seu texto como algo acabado, mas vê no leitor uma voz

diferente da sua, que vai a busca de perguntas, não enxergando o texto apenas

como resposta para suas dúvidas ou aflições.

O leitor que assim se configura como "leitor ideal" é temido pelo escritor, pois de certa forma irá subverter seus

pensamentos na busca por infinitas interpretações. Machado de Assis tinha plena consciência da importância dos

leitores como reconstrutores de seus pensamentos, o Bruxo do Cosme Velho tratava-os de forma especial,

indagando-os. O grande escritor trazia para cada página de seus livros o inesperado, forçava os leitores às

inferências, inquirindo-os a construir a história com ele.

Conceituados os tipos de leitura, verifica-se que o problema não reside no ato de ler em si, mas como ele é

norteado. Todos somos leitores (não discutiremos aqui sobre os níveis de letramento), até Fabiano de Vidas

Secas é um leitor na medida em que lê (de sua forma) as linguagens de seu meio, mas não lê a palavra escrita,

está longe de ser um leitor comum, quiçá ideal.

Um dos nossos objetivos é incentivar a leitura de textos escritos, não apenas daqueles legitimados pelos

acadêmicos como "boa leitura", mas os escolhidos livremente. Pela análise dos números da última Bienal do Livro

realizada em São Paulo, constata-se que "ler não é problema", pois, segundo o Correio Braziliense de 25 de agosto

de 2010, cerca de 740 mil pessoas visitaram os stands que apresentaram mais de 2.200.000 títulos. Mas,

perguntamo-nos: os livros expostos e os leitores que lá compareceram se encaixam em qual tipo de leitor?

Podemos afirmar que todos os livros foram escritos para um leitor ideal, reflexivo, que dialogará com os textos?

Muitos livros vendidos na Bienal têm como foco a primeira e a segunda visão de leitura, seus autores enxergam o

texto como um fim em si mesmo, apresentando ideias prontas, ou primando pelo seu trabalho como um objeto de

arte, em que o domínio da língua é a base para a leitura.

Assim, cabe-nos refletir inicialmente sobre como transformar um leitor comum em leitor ideal, um cidadão pleno em

relação a sua identidade. A construção da identidade social é um fenômeno que se produz em referência aos

outros, a aceitabilidade que temos e a credibilidade que conquistamos por meio da negociação direta com as

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pessoas. A leitura é a ferramenta que assegurará não apenas a constituição da identidade, como também tornará

esse processo contínuo.

Para tornar isso factível podemos, como educadores, adotar estratégias de incentivo, apoiando-nos em textos como

as tirinhas e as histórias em quadrinhos, até chegar a leituras mais complexas, como um romance de Saramago,

Machado de Assis ou textos científicos. Construir em sala de aula relações intertextuais entre gêneros e autores

também é uma estratégia válida.

A família também tem papel importante no incentivo à leitura, mas como incentivar filhos a ler, se os pais não são

leitores? Cabe à família não apenas tornar a leitura acessível, mas pensar no ato de ler como um processo.

Discutimos à mesa questões políticas, a trama da novela, por que não trazermos para nosso cotidiano discussões

sobre os livros que lemos?

Certo ano letivo, o estado de São Paulo enviou para as escolas públicas livros literários. Um dos títulos distribuídos

foi Eles não usam blacktie, de Gianfrancesco Guarnieri; um exemplar deste acabou por ser ofertado para uma

estagiária por um aluno, na porta da escola, no mesmo dia em que ele o recebera. A estagiária perguntou ao aluno

se ele não queria ler o livro, pois era uma obra importante. Recebeu apenas um "não" como resposta. Mais à frente

da escola, essa mesma estagiária encontrou vários outros livros novos jogados e os trouxe para a faculdade para

compartilhar com seus colegas, futuros professores.

O que fez com que os alunos desprezassem os livros? Esses alunos são leitores, frequentam a escola, não são

como Fabiano, configuram-se como leitores comuns, mas estão longe de ser leitores ideais. Porém, a intervenção

de professores e da família pode tornar esses leitores comuns leitores ideais.

A leitura é a ferramenta que assegurará não apenas a constituição da identidade, como também tornará

esse processo contínuo

Trazemos por fim outra preocupação, muito mais grave: aproximar o homem da palavra escrita nas revistas, jornais

ou em qualquer outro veículo escrito, a formação de leitores comuns. Esse tipo de leitor pode até jogar fora um livro

clássico, ler de forma linear e enxergar o texto como um fim em si mesmo; nós o encontramos nos ônibus, lendo

livros de grande apelo popular, ou até nos bancos das grandes universidades, debruçados sobre textos altamente

complexos, acreditando piamente que tais ideias são imutáveis, sem questionar, sem reconstruir seu mundo.

Contudo, são leitores, convivem com o universo da palavra escrita.

Mas e aqueles que veem o mundo da leitura como algo inatingível, possível apenas para o outro? Esses não-

leitores usam de estratégias evasivas como "não gosto de ler", "não tenho tempo para ler nada...". Em vez de

produzir símbolos e dialogar com as diversas situações da vida por meio de palavras, o não-leitor vive o mutismo, o

não-falar, e isso faz com que ele não se reconheça socialmente e inevitavelmente não seja reconhecido.

Algumas fundações e ONGs fazem trabalhos de contação de histórias, recontos de livros, mas ainda não há um

número significativo de programas para transformar milhões de Fabianos em leitores comuns.

No início de nosso texto apresentamos concepções de leitura e dissemos o quanto esse assunto foi abordado,

talvez aí incida nosso erro, teorizarmos muito. O importante é darmos boas novas para aqueles que não leem:

participar e convidá-los a participar de projetos nas bibliotecas públicas, se não houver bibliotecas, por que não criar

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uma biblioteca circulante, ouvimos histórias de moradores de comunidades que fizeram a diferença, levando livros e

construindo reflexões com crianças e adultos.

Segundo Paulo Freire, durante a abertura do Congresso Brasileiro de Leitura em Campinas, novembro de 1981: "A

leitura de mundo precede a leitura das palavras". Mas é impossível não perceber que a leitura de mundo pode se

expandir ao mergulharmos no universo das palavras. Talvez estejamos longe do momento em que 180 milhões de

brasileiros pensem que o mundo poderá ficar mais triste por eles não terem lido aquele texto, mas se parte dessa

população, que apenas sobrevive e enxerga as palavras como um mundo à parte, tiver contato com esse universo,

talvez abramos perspectivas para um real admirável mundo novo, uma sociedade de leitores ideais.