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Universidade Estadual de Maringá 12 a 14 de Junho de 2013
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A IMAGEM ENQUANTO REPRESENTAÇÃO MENTAL E
MATERIAL
RUBIM, Sandra Regina Franchi (UEM)
OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora/UEM)
Introdução
Nesse trabalho, pretendemos analisar a linguagem imagética como expressão da
construção mental e social que fundamenta as práticas educativas e as identidades
humanas. Por acreditar que o conceito de imagem, como representação, abarca uma
série de pressupostos e probabilidades, refletiremos, também, sobre a importância da
utilização dessa linguagem como evidência histórica. Por isso, destacamos que nossa
abordagem da linguagem imagética, nessa pesquisa, situa-se nos campos da História
Social e da História da Educação, os quais têm como uma de suas finalidades a
compreensão das origens das instituições, dos conteúdos e dos pensamentos que
permeiam a educação contemporânea. Consideramos que uma das razões da História da
Educação é entender o processo educativo por meio das ações sociais. Com base em
seus fundamentos, definimos nosso olhar para as imagens como possibilidade de nos
aproximarmos da compreensão que os sujeitos têm ou tinham do seu tempo e espaço e
das relações sociais que caracterizam suas vidas. Nossa escolha pela linguagem
imagética se justifica por crermos na sua potencialidade de educar os homens e, em
consequência, participar de forma considerável no processo de formação social.
Acreditamos que cada momento histórico produz uma determinada forma de
pensar, correlacionada à maneira como se constrói a existência do ser humano. Desse
modo, podemos afirmar que, por meio das imagens, constroem-se discursos cujos
sentidos difundem-se com uma intenção formativa. Observamos que a imagem tem em
si a probabilidade de transmitir a construção de uma interpretação de certo fato e,
concomitantemente, a projeção de uma intencionalidade daquele que faz o discurso
(OLIVEIRA, 2008).
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Com foco nas manifestações artísticas como estruturas simbólicas, pretendemos,
então, investigar o discurso eclesiástico e laico presente na representação coletiva do
antijudaísmo, nas esferas econômica, religiosa e comportamental, durante a segunda
fase da História da Inquisição na Península Ibérica, no século XVI.
Destacamos, pois, desse modo, que o diálogo entre as fontes, a visual e a escrita,
baseia-se, principalmente, na proposta de Panofsky (1979), em Significado nas artes
visuais. Nessa obra o autor expõe de forma sintética o método denominado iconologia1,
ou seja, um método de interpretação exaustivo do significado intrínseco das imagens,
histórias, alegorias (o mundo dos valores simbólicos). O método iconográfico consiste
em uma tentativa de ler as imagens como se fossem textos; a iconologia preocupa-se
com níveis mais profundos de significado.
Em relação aos cuidados com a leitura iconográfica nos reportamos a outro
intelectual de igual importância: Francastel (1993), em A Realidade Figurativa. O autor
afirma que “[...] apreciaremos melhor a arte do passado e a do presente se lhe
conhecermos melhor a significação humana [...] nossa sensibilidade estética só pode se
refinar pelo estudo” (FRANCASTEL, 1993, p. 48). Como a leitura de imagens implica
compreensão e significação, faz-se preciso aprofundar o diálogo sugerido e implícito na
obra por meio do conhecimento. A apreciação de imagens, por meio do conhecimento e
da sensibilidade, torna possível identificar as posições éticas, estéticas e políticas que o
indivíduo, como autor da obra, assume diante das lutas históricas do presente em que
vive, como aprovação ou negação, que são as formas de se relacionar com o mundo.
Nossa fundamentação teórica também se aporta em Hegel (1996), em Curso de
estética: o belo na arte. De seu ponto de vista as representações (diferentes formas pelas
quais a arte se efetiva: pintura, escultura, literatura, teatro) só se concretizam quando se
submetem ao espírito humano, o qual se constitui como o ápice da obra de arte. Para
ele, o espírito seria o elemento que possibilita as reflexões acerca do belo.
1 Torna-se importante explicitar aqui a distinção que Panofsky (1979) faz dos conceitos iconologia e iconografia. A iconografia é a parte da história da arte que estuda o tema ou a mensagem das obras de arte. O sufixo grafia vem do verbo grego graphein, que significa escrever; que implica um método de simplesmente descrever. Portanto, a iconografia é um método descritivo e classificatório das imagens, o qual fornece dados importantes para a interpretação póstuma de uma obra de arte, como datas, origens. Coleta e classifica a evidência, mas não faz um trabalho investigativo sobre a origem e a significação dessa evidência.
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Assim, quando se fala de imagens, são infinitas as possibilidades de abordagem
que se abrem ao pesquisador. Esses autores destacam a pertinência de buscar uma
formação que nos ofereça a capacidade de compreendê-las. Face ao exposto, afirmamos
a relevância de observarmos a relação das atitudes, valores e suas expressões ou
manifestações em textos, artefatos e imagens com as estruturas econômica, social e
política, as quais são identificadas como padrão das relações sociais características de
um determinado lugar e momento.
Entendendo que a arte, como linguagem humana, acompanha as mudanças
históricas e consequentemente a forma de viver em sociedade, pretendemos também
analisar a imagem como evidência histórica do período de consolidação do pensamento
antijudaico e do Estado Moderno Absolutista. Esse caminho nos auxiliará na
compreensão das transformações que ocorreram nesse momento. Nessa perspectiva,
trabalharemos com a análise e interpretação, de forma preliminar, de imagens de
representações antijudaicas, veiculadas no século XVI, em um momento de
consolidação do poder real dos Estados nacionais, no período moderno, no qual se
iniciou a segunda fase da história da Inquisição.
Temos, assim, como objetivo geral, neste texto, mostrar a relevância do diálogo
entre a Educação e o campo das imagens. A maneira pela qual a arte se direciona para a
sensibilidade oportuniza a materialização das experiências reais, permitindo, então, a
abertura da sensibilidade para os fatos exteriores ao indivíduo. Nessas condições,
postulamos, que a contribuição das diversas naturezas do conhecimento, não somente a
da Educação ou da História, mas também a da literatura, da poesia, das artes, é
indispensável para o processo de educação, sensibilização e humanização do homem.
Arte e Educação: imagens antijudaicas enquanto fonte para a História da
Educação
Segundo Oliveira (2005), a Igreja Católica, do início do século VI até meados
do século XI, era a única instituição capaz de governar a sociedade, pois, trazia em seu
bojo o conhecimento do mundo antigo e a essência do Cristianismo, nova doutrina que
despontava. Até então, essas duas condições legitimaram o governo da Igreja. Nesse
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contexto, a Igreja Católica foi consolidando seu poder por meio da universalidade ritual,
buscando unir as diversidades religiosas locais sob seu jugo. Na Europa ocidental, por
sobre um substrato de base pagã, deu-se a consolidação da hegemonia do papado, ao
qual se submeteram os cleros locais. Este momento, palco de inúmeras tensões em razão
das invasões normandas, majiares e árabes, havia uma necessidade política, de delimitar
e expandir fronteiras. Importa, pois, destacar aqui, que entre os séculos V e IX, o povo
judaico viveram em paz na Europa ocidental. Na antiguidade greco-romana, a
descriminação aos judeus não tinha ainda um caráter econômico, e sim de origem
religiosa e comportamental. Os pagãos não compreendiam costumes judaicos, como não
comerem carne de porco. A circuncisão era um motivo para zombarias. O sabat judaico
foi a instituição que mais os chocou (FONTETTE, 1989), pois escandalizavam-se com
os judeus por manter esse dia de ociosidade. O monoteísmo era também um fator de
estranheza para os outros povos, pois era comum o culto a diversas divindades naquele
período, e a manutenção de somente um deus, além da impossibilidade de aceitar as
demais divindades, tornava os judeus isolados no meio dos povos da antiguidade. O
Papa Gregório I (590-604), porém, adotou uma política de respeito a esse povo, quando
não deixou que fossem atacados, além de interpretar a morte de Cristo como uma culpa
universal, antecipando-se ao Concílio de Trento. Seguindo essa interpretação, o Império
Franco de Carlos Magno (771-814) e Luiz, o Piedoso (814-840), mantiveram um
posicionamento de tolerância em relação aos judeus.
A partir do século XI, todavia, percebemos a delineação de um momento novo
na vida dos homens, um momento de consolidação do mundo feudal. Assistimos, então,
um processo de mudança na região do Império Romano do Ocidente. Surgem diferentes
forças sociais capazes de responder pela sociedade: os senhores feudais (século XI); as
cidades e o comércio (séculos XII e XIII) e as Universidades (século XIII). Segundo Le
Goff (2007), a partir do século XII o mundo medieval delineou-se o processo urbano. É
aí que aconteceram as principais misturas de pessoas, que se firmaram novas
instituições, que surgiram novos centros econômicos e intelectuais. Assim, esse
ambiente singular, possibilita aos homens um olhar distinto sobre suas vidas e relações.
O desenvolvimento das estruturas sociais foi essencial para se esboçar uma
multiplicidade de estilos de vida, instituições e ordens, umas de caráter tendendo mais
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para o religioso e outras mais para o laico, durante o século XII. Nesse contexto,
portanto, forjou-se um cabedal teórico, artístico e prático considerável, os quais seriam
apropriados por antigos e novos personagens sociais. Esse caminho, pois, acabaram por
estimular mudanças não só nas artes, leis e regras, mas, principalmente, na sua forma de
pensar e estar no mundo.
Nesse período destacamos que os protestos2 contra a ordem social eram feitos de
forma a contestar também a ordem religiosa. Isso ocorria não só porque a Igreja fazia
parte de tal ordem, mas, principalmente, porque, naquele momento, o conteúdo religioso
era o limite do discurso de protesto, quer para aceitar, quer para opor-se à ordem social
estabelecida. A própria leitura da Bíblia foi proibida pelo Papa Gregório IX (1227-
1241), em 1229, demonstrando o caráter de dominação que a Igreja exercia, pois a
Bíblia, sendo lida pelos fiéis, sem a mediação eclesiástica, poderia levar a interpretações
subjetivas, consideradas heréticas pela Igreja. Segundo Lopez (1993, p. 23), “[...] as
heresias religiosas representaram o nascimento das primeiras e importantes minorias
dissidentes do ocidente europeu”. Entretanto, as heresias não surgiram por oposição à
religião católica, mas dentro dela, tanto que os grupos tidos como heréticos, como os
valdenses, bogomilos, albigenses, pregavam o retorno da pobreza dos tempos do
cristianismo primitivo, criticando a opulência que a Igreja Católica havia adquirido,
assim como a venda de indulgências e a corrupção do alto clero.
Dessa forma, para combater essas dissidências, a Igreja organizou tribunais
inquisitoriais, para reprimir as heresias. Para isso, apropriou-se dos primeiros escritos
cristãos, como o evangelho de São João, para justificar suas atitudes. Transformar as
heresias em um insulto à fé seria a forma mais eficaz de mantê-las à margem da
sociedade. Torna-se válido destacar que etimologicamente, a palavra heresia significa
escolher, optar. Ao longo do período em que a Igreja exerceu sua dominação, a palavra
passou a significar como herético tudo que contrariava o pensamento eclesiástico.
2 Segundo José Antonio C. R de Souza, no início do século X, quando da decadência do Império carolíngio, a Igreja Romana não só perdeu seu protetor como o fato de passar a ser tutelada pela “aristocracia romana” - que muitas vezes nomeava para o trono pessoas “indignas” de exercer a função de sumo pontífice – implicou em uma grande crise moral. “Essa situação contribuiu para que em toda cristandade latina, mais ou menos intensamente, surgissem e espalhassem por toda a parte as assim chamadas chagas da Igreja: a simonia, o nicolaísmo e a investidura, corrompendo o clero” (SOUZA, 1995, p. 217).
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Na passagem do século XII para o século XIII, a Igreja enfrentou a mais séria de
todas as heresias: os albigenses. Até então, o combate aos heréticos tinha um caráter
local, não sendo necessário existir uma uniformidade de critérios no tratamento do
problema. Com o surgimento dos Albigenses, a situação mudou, pois estes não ficaram
restritos a sua região de origem, no sul da França, mas se disseminaram pelas demais
regiões da Europa ocidental.
Nesse cenário, a Inquisição estava com suas bases lançadas, a partir da decisão
política de comprometer o Estado na repressão religiosa. Vemos, pois, a recorrência da
afirmação que o surgimento da Inquisição esteja relacionado com o aparecimento dos
albigenses e a necessidade de destruí-los. Porém, Lopez (1993, p. 31) aponta para um
fato relevante:
A heresia se disseminou na mesma época em que o papado assumiu o caráter de uma verdadeira monarquia absoluta, a primeira da Europa e munida de uma ideologia transnacional, considerando que a fé não tinha fronteiras [...] estruturado o sistema de dominação, a justiça torna-se um dos modos de exercer o poder e lhe garantir a continuidade. Foi precisamente quando a Igreja definiu seu perfil de Estado centralizado que surgiu a Inquisição.
Podemos constatar que esse excerto é uma constatação importante a se fazer, em
face da situação política da época, em que o poder do rei era dividido pelos feudos,
muito dispersos e fracos.
Foi, entretanto, a partir do século IX que se delineou uma postura mais
intolerante que no passado em relação ao povo judaico. A Igreja, desejosa de efetivar
sua hegemonia pela unidade monolítica da fé, voltou a mostrar o judeu como um
inimigo da fé cristã, e contra ele canalizou-se certa inflexibilidade. Podemos citar, nesse
sentido, o ato litúrgico da colafização, que consistia em toda a sexta-feira santa
esbofetear um judeu diante da catedral de Toulouse, em expiação à morte de Cristo.
Divulgava-se a ideia do deicídio (Figura 1), ou seja, a acusação de que os judeus teriam
sido os responsáveis pela morte de Cristo (LOPEZ, 1993).
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Figura 1
Acervo do Museu do Prado - Espanha- inquisição contra os judeus Spiezer Chronik. Deicídio. 1485. Disponível em:
< commons.wikimedia.org/wiki/Category:Spiezer_C... >.
Responsabilizados pela morte de Cristo eles se tornaram objeto de desconfiança,
inveja, desprezo dos cristãos. Para os cristãos medievais, o crime de deicídio maculara
para sempre o povo judeu. Verificamos que, nesse contexto, com a pregação da primeira
cruzada feita pelo Papa Urbano II (1042-1099), que consistia na libertação da Terra
Santa do poderio muçulmano, criou-se um fanatismo religioso que se alastrou pela
Europa ocidental. No bojo desse fato, surgiu também uma campanha antijudaica3,
levado pelos cruzados de Rouen, em 1096. Estes diziam que era necessário primeiro
combater os infiéis que estavam dentro da Europa. Nesse período, ocorreram massacres
de judeus em Worms, Mainz, Colônia, Treves, Ratisbona e Bamberg, seguindo o
mesmo fato na segunda cruzada, em 1147. O fenômeno das Cruzadas fortaleceu o
sentimento de ódio aos judeus, reaparecendo, dentre outras, a calúnia do assassinato
ritual (Figura 2), que então fora utilizado pelos cristãos contra os judeus. A acusação do
3 Segundo Fontette (1989), o conceito semita se deve aplicar a línguas e não etnias. O autor observa que o termo anti-semitismo é forjado durante o século XIX, adquirindo o caráter de preconceito étnico, o que não se aplica nesse momento histórico de que estamos tratando. Dessa forma, optamos pelo termo antijudaismo, que possui uma conotação religiosa, mais apropriada.
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assassinato ritual consistia na insinuação de que judeus sequestravam uma criança
cristã, depois a matavam e misturavam seu sangue com o pão ázimo da eucaristia.
Figura 2
Anti-semitismo: Libelos de Sangue contra Judeus. 1493. Disponível em: < http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Schedel_judenfeindlichkeit.jpg >.
Esta imagem nos remete à ideia dos libelos de sangue, ou seja, alegações de que
os judeus participavam de sacrifícios de pessoas. Vemos acima a cena de uma criança
cristã sendo sacrificada por judeus, na presença de sacerdotes. As chamas do ódio eram
instigadas pela alegação de que os judeus, ao derramarem o sangue de Cristo, haviam se
tornado sedentos de sangue, torturando e matando cristãos, sobretudo crianças, a fim de
obterem sangue para seus rituais. Essa difamação alastrou-se amplamente e foi a causa
de inúmeras violências contra judeus.
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Sabe-se, pois, que tal acusação se constituía em motivos para massacres de
judeus. Desde então, operou-se a mudança para uma nova etapa, na qual o judeu,
considerado inicialmente um herético impenitente, era agora visto como um inimigo do
cristianismo. Assim, não podemos negar a manifestação de posicionamentos prévios, de
desejos insinuados ou ambições explícitas no discurso imagético. O discurso clerical e
laico expressavam-se nas manifestações artísticas como estruturas simbólicas de
representação, como expressões de construções e análises sociais, que possibilitavam
aos indivíduos se moverem e se equilibrarem no meio social em que estavam inseridos.
Por isso, nossa análise imagética está amparada em noções como a de imaginário e de
representações coletivas4, as quais, como padrão ordenado de significados diferentes,
refletem a complexidade das dinâmicas sociais.
Difundiram-se, assim, inúmeras calúnias contra os judeus, como a profanação da
hóstia e de envenenamento dos poços de água, em conluio com os leprosos. Também a
epidemia de peste bubônica, do século XIV, foi atribuída a uma imaginária conspiração
de judeus, que teriam disseminado a peste contaminando os poços e as fontes de água.
Estes se alimentavam de uma comida diferente, praticavam serviços religiosos distintos,
educavam suas crianças separadamente e tinham autonomia administrativa, fiscal e
judicial. Assim, as atitudes tradicionais e costumeiras dos judeus eram, portanto,
consideradas como suspeitas. Práticas judaicas, como jogar um punhado de terra atrás
de si depois do funeral, o ritual de purificar fornos em preparação para a Páscoa judaica,
eram avaliadas como magia (BETHENCOURT, 2000).
Verificamos também que na conjuntura da revolução comercial e, portanto,
citadina, nasce e se desenvolve uma cultura laica. Tanto os grupos sociais antigos
quanto os que surgiam tinham necessidades novas, ainda que distintas, e ambicionavam
conhecimentos de ordem prática e técnica. Por meio do dinheiro e do poder social e
político, o mercador pode satisfazer suas necessidades e concretizar seus desejos. Le
Goff (1991) elenca as influências consideráveis da burguesia mercantil nesse momento
histórico peculiar: na escrita, no cálculo, na geografia, nas línguas vulgares, na história,
4 Designamos como categorias mentais (imaginário) aquelas que, dotadas de alcance coletivo, transcendendo a experiência individual, correlacionam-se com a realidade vivida. Tendem a fornecer e estruturar padrões e modelos normativos aplicáveis à sociedade.
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nos manuais de comércio, na racionalização da existência humana, na arquitetura, na
pintura, dentre outros. Sua mentalidade racional, prática, levou-a a criar elementos de
saber e meios de expressão que lhe eram próprios.
A partir do século XV, com a expansão marítima e com o desenvolvimento do
comércio que amadureceu no seio da sociedade espanhola, surge uma classe média
cristã ávida por lucros, buscando ascender socialmente. Segundo Novinsky (1999),
nesse período, os judeus possuíam certa liberdade, não sendo perseguidos na Espanha,
como eram no resto da Europa. Desse modo, os judeus puderam desenvolver, de forma
considerável, suas potencialidades intelectuais, atingindo postos de prestígio na política
e na economia. Foram, durante séculos, médicos e conselheiros dos monarcas, atuando
também em campos intelectuais, como professores, escritores e filósofos.
O embate entre a incipiente burguesia cristã e a já estabelecida judaica foi
impulsionado por instituições de poder, como a Igreja e os reis, que lançaram uma
intensiva propaganda antijudaica. Lançavam mão do argumento de que os judeus
haviam roubado as posições que deveriam pertencer aos cristãos. Os judeus, segundo o
discurso de alguns representantes da Igreja como o papa Inocêncio III (1198-1216),
eram culpados por certos males pelos quais passavam a nação.
A partir do final do século XIV, na península, novas restrições às atividades
judaicas sugiram. Destacamos aqui que a burguesia cristã que fortalecia poderia
preencher, no lugar dos judeus, a camada intermediária entre a massa popular e a
nobreza. Por várias regiões eclodiram revoltas antijudaicas. Em Sevilha, no ano de
1391, cerca de 4.000 judeus foram mortos nas ruas. A Igreja tinha atingido seus
propósitos, pois conseguira, por meio do fanatismo, conclamar a população cristã a
perseguir os judeus por quase toda a Espanha.
Sabe-se que a partir do século XV a Igreja conseguiu exercer forte influência
sobre os reis católicos em relação à perseguição aos conversos. Introduziram-se diversas
medidas restritivas contra judeus e os novos judeus conversos (cristãos-novos)5.
Beneficiavam-se os burgueses cristãos, que então não tinham mais que se preocupar
com a concorrência dos cristãos-novos, ao mesmo tempo em que se revertiam os bens 5 Cristãos-novos era a designação dada em Portugal, Espanha e Brasil aos judeus e mulçumanos convertidos ao cristianismo. Já a denominação cristãos-velhos era atribuída aos que não tinham raízes judaicas.
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confiscados para os cofres do Estado. Dessa forma, assegurava-se aos monarcas fundos
para financiar as constantes investidas contras os reinos mulçumanos ainda existentes na
península (KAMEN, 1966).
A Inquisição, que foi realizada na Península Ibérica Moderna, alcançou enormes
proporções assinala Novinski (1999). Apesar de ser autorizada pelo Papa, era realizada
pelo rei, instituindo-se como instrumento político para resolver problemas de ordem
social, política e econômica. Pode-se dizer que a forma como a Inquisição atuou na sua
segunda fase foi mais organizada e sistemática, unificando métodos de investigação e
tortura, como também criando autos de fé (Figura 3). Vemos aqui o julgamento de
alguns judeus. No alto podemos ver o comando do clero.
Figura 4
Museu Judaico de Belmonte Pedro Berruguete (1450–1504): São Domingos Presidindo a um Auto-de-fé (1475). Disponível em: <
http://commons.wikimedia.org/wiki/Pedro_Berruguete >
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Essa prática era a representação terrena do Dia do Juízo. Era um espetáculo
organizado em praças públicas, nos quais eram aplicadas as penas aos condenados pela
Inquisição. O método de perseguição dos inquisidores era simples: eles visitavam os
povoados, em geral acompanhados de funcionários da Justiça local e convocavam a
população na igreja principal. Cada pessoa tinha que confessar seus erros e os dos
amigos e parentes no prazo médio de 30 dias. Os processos eram feitos na base da
delação, dos rumores, do diz-que-diz, e contavam com espiões locais conhecidos como
familiares – homens influentes da sociedade. Se os inquisidores não juntassem provas
de heresia naquele prazo, não tinha problema: os suspeitos eram condenados mesmo
assim a penas como excomunhão, confisco de bens, prisão, açoite e mesmo morte. As
fogueiras davam um caráter mítico e atraíam o povo com promessa de redenção.
Podemos perceber, também, que os conversos agora começavam a ser
perseguidos, pela visível ascensão social que conquistaram, pois continuavam atuando
nos altos postos do Estado. Tornava-se imperativo a aristocracia de cristãos velhos,
restritos às atividades agrícolas, buscar mecanismos para vencer a concorrência dos
conversos. Com a nova ordem social que se delineava, os aristocratas perceberam a
importância das relações mercantis e, consequentemente, financeiras, aquelas que
sempre desprezaram (NOVINSKY, 1999).
A Inquisição, segundo a autora serviu como forma de conter todo pensamento
que contestasse os dogmas católicos, e assim reforçou a hegemonia da Igreja,
conferindo a ela um poder irrestrito. Embora, nesse período, a Inquisição tenha servido
aos interesses do Estado, a Igreja atuou ao seu lado, como impulsionadora legítima da
perseguição a judeus e conversos. Em 1492, os judeus foram definitivamente expulsos
da Espanha e muitos seguiram para Portugal. Neste mesmo ano, em 1º de março, os reis
católicos promulgaram o Decreto Alhambra. Esse decreto estipulava um prazo de dez
meses para que todos saíssem do reino ou se convertessem; caso contrário, seriam
punidos com a morte e com o confisco dos bens. Diante do decreto, a maior parte dos
judeus optou pela saída do Reino, ao invés do batismo. Quase 150 mil judeus
atravessaram a fronteira em direção a Portugal, enquanto outros 50 mil se dirigiram ao
norte da África e à Turquia.
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Constatamos que, ao normatizar práticas e comportamentos, a Inquisição
procurava impedir certos desvios religiosos, as heresias. Ressaltamos, portanto, as
relações entre arte e poder laico e clerical, já que a veiculação das representações
iconográficas destinava-se a divulgar a ideia de combate aos judeus, vistos como
pessoas inimigas de Deus e do Estado.
Nesse contexto, a linguagem imagética tornou-se um elemento significativo na
construção de justificativas, na projeção de interesses e objetivos coletivos, na criação
de necessidades e na modelagem de valores e condutas. A arte, por ser um discurso
menos formal, por apresentar uma linguagem menos codificada, por conter sinais
universais de rápida interpretação, configurou-se como um importante instrumento de
educação dos homens. Era necessário recorrer ao conjunto de crenças, fábulas, ritos,
cerimônias, que identificavam aos judeus uma relação intrínseca com o demônio, com
fins conspiratórios contra a cristandade. Segundo Fontette (1989) era natural que judeus
fossem caracterizados da mesma forma, com chifres, orelhas de porco, barba de bode,
rabo e odor pestilento.
Convém assinalar que o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância da
vida espiritual. O pensamento simbólico não é domínio exclusivo da criança, do poeta,
mas é inerente ao homem. Ele precede a linguagem e a razão discursiva. Eliade afirma
(1979, p. 171), “[...] que a função de um símbolo é justamente a de revelar uma
realidade total, inacessível aos outros meios de conhecimento [...]”. As imagens, os
símbolos, os mitos respondiam a uma necessidade e preenchiam uma função,
condizente com o seu tempo. Nesse momento, as letras, as artes e a religião educavam o
povo no sentido de crer e aceitar as representações judaicas desejadas pela Igreja, bem
como pelo poder monárquico que se efetivava. Assim observando, por meio das
imagens, a coexistência entre antigas e novas formas de pensar, sentir e agir, podemos
acompanhar a direção que a educação também foi assumindo nessa época.
Nesses termos, reiteramos que a leitura da imagem demanda um estudo da
história social dessa linguagem imagética, o que implica observar o momento histórico
em que elas foram idealizadas, ou seja, o quadro das condições econômicas, sociais e
políticas da Europa do século XVI, em especial, a situação da Espanha. Temos
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consciência de que, quando situamos um texto em seu contexto histórico, ingressamos
no próprio ato de interpretar.
Podemos constatar a possibilidade de entender como a mentalidade do homem,
que se constrói pelas produções intelectuais e influências do conhecimento popular de
cada período histórico, se reflete na produção artística. Nesse contexto, a arte assume
um papel quanto área do conhecimento para o processo de formação da pessoa.
Abalizamos, então, a necessidade de a Educação adentrar no campo das imagens
e das linguagens tecnológicas. Torna-se crucial humanizar os sentidos do homem e
desenvolver a sensibilidade humana, ampliando, assim, a dimensão da reflexão.
Acreditamos que esses requisitos podem ser desenvolvidos por meio da capacidade
reflexiva dos homens e do conhecimento. Sublinhamos que o conhecimento se institui
um elemento fundante da formação humana. Isto se converte em um desafio histórico
posto a cada dia para aqueles que trabalham e se preocupam com a Educação.
Considerações finais
Assinalamos que as investigações na Educação e nas Ciências Humanas que
percorrem o caminho da História apontam para uma compreensão da totalidade dos
acontecimentos, transformando, assim, o passado em objeto de investigação. Isso
contribui para que a função social da História da Educação que é promover reflexões
sobre as práticas do presente. Nesse sentido, situando-nos no campo de investigação da
História da Educação e analisando a educação na História, aproximamos fontes
primárias, autores clássicos e a linguagem imagética do período.
Verifica-se, contudo, que o conhecimento produzido implica e pressupõe
métodos e teorias, os quais, sendo igualmente produtos sociais e históricos, embasam o
processo e o resultado da construção do conhecimento científico.
Nesse sentido, consideramos que o campo da linguagem imagética, quando
estudado sob a ótica da dinâmica das relações humanas e da transformação social, pode
em muito beneficiar o historiador da Educação e enriquecer o conhecimento que se
pretende construir. Salientamos que o interesse dos historiadores pelas imagens que
circulam em diferentes espaços e momentos alargou-se nas últimas décadas. As imagens
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têm-se tornado fontes relevantes da pesquisa historiográfica, sobretudo para os
especialistas da História Social e Cultural, ampliando-se para além do universo dos
historiadores da arte.
Destacamos, assim, que a apreciação imagética pode ser considerada como
possibilidade de expressão de construções e análises sociais, portanto educativa. Nossa
proposta de pesquisa incide-se na perspectiva da análise da produção artística como um
meio educativo e como um reflexo do modo de viver e pensar dos homens nos
diferentes períodos históricos, que se constitui como uma possibilidade de compreensão
do processo histórico, da formação do sujeito social.
Observamos, portanto, que as imagens selecionadas são uma evidência histórica,
cujos significados simbólicos e estéticos auxiliam-nos na compreensão das relações
sociais e de poder presentes no processo social da Idade Média para a Idade Moderna.
REFERÊNCIAS
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Universidade Estadual de Maringá 12 a 14 de Junho de 2013
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