A Idade e Suas Controversas

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    A IDADE MDIA E SUAS CONTROVERSASMENSURAES: TEMPO HISTRICO, TEMPO

    HISTORIOGRFICO, TEMPO ARQUTIPO

    Ronaldo Amaral

    Universidade Federal de Mato Grosso do Sul UFMS/Trs [email protected]

    RESUMO:O tempo histrico to produto do historiador como seu objeto. Partindo desta observaopara o perodo medieval, queremos apresentar aqui, ainda que em um breve balano historiogrfico, asdiversas formas e concepes de temporalidade ou atemporalidade, que se tem atribudo ao perodomedieval, e a partir destas, as mltiplas possibilidades e vises que j se apresentaram para entender emensurar este perodo.

    PALAVRA-CHAVE:Histria Historiografia Tempo-Medieval

    ABSTRACT:Historical time is as much a product of the historian as it is an object. Starting from thisobservation of the medieval period, we want to present here, albeit in a brief historiographical overview,the various forms and conceptions of temporality or timelessness, which has been attributed to themedieval period, and from these, the multiple possibilities and visions that are already presented tounderstand and measure this period.

    KEYWORDS:History Hstoriography Time-Medieval

    Como muito bem j se disse, todos os rtulos de fenmenos histricos so ao

    mesmo tempo tanto produtos histricos como produtos historiogrficos e suas escolhas

    implicam, mais que eleies metodolgicas, vises ideolgicas.1 Tal observao nos

    servir aqui para refletirmos acerca do conceito Idade Mdia assim como j o fizemos

    Professor Adjunto do Departamento de Histria da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,Campus de Trs Lagoas. Ps-doutorado em Histria Social pela Unesp-Assis.

    1 FRANCO JUNIOR, Hilrio. Antigidade Tardia ou Primeira Idade Mdia. In: ANDRADE FILHO,Ruy de O. (Org.). Relaes de Poder, educao e Cultura na Antiguidade e Idade Mdia. Santanado Parnaba: Solis, 2005, p. 233.

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    acerca do conceito de Antiguidade Tardia em outro momento e trabalho.2Claro est

    que tal crtica conceitual, no que concerne aos perodos histricos e suas respectivas

    designaes, no so apangio das fases temporais relativas Idade Mdia, podendo e

    devendo ser aplicados a outros momentos e temporalidades histricas.

    Como sabido, e j discutido com alguma insistncia, o Renascimento do

    sculo XV criara a prpria ideia de Idade Mdia, assim como sua terminologia.

    Considerada uma idade intermediria, um nterim entre duas pocas verdadeiramente

    dignas de existncia e temporalidade, ou ainda, a Antiguidade Clssica e o alvorecer da

    modernidade,3 tal valorao se daria sobretudo em funo de um olhar

    fundamentalmente poltico ideolgico, representado pela burguesia politicamente

    ascendente e pelos humanistas filhos das cidades e das universidades geralmente sob o

    patrocnio daquela. Considerada uma volta a antiguidade clssica e aos seus valores

    elevados, a modernidade nascente romperia com a estagnao intelectual e cultural

    ento atribudo aos sculos V a XV. No entanto, como sabemos ainda, o advento da

    modernidade, marcada, sobretudo, pelo chamado o Renascimento italiano, nada mais

    foi que uma longa Idade Mdia. Nesse sentido, o protestantismo seria, em ltimo caso,

    um desdobramento triunfante das muitas contestaes teolgicas, religiosas, ou como se

    quisera, herticas, que afrontavam a Igreja baixo-medieval.4Podemos dizer com HilrioFranco Jnior que o protestantismo foi uma heresia que deu certo. 5 E o prprio

    franciscanismo, uma das ordens mais importantes da Igreja a partir do sculo XIII, no

    seria antes de tudo uma heresia em potencial, ou, em certa medida, um intento

    protestante e reformador6 mesmo? E os franciscanos no s cindiram de todo com a

    Igreja porque ela, num processo j secular, soube os cooptar, os regular e, em ltima

    2 AMARAL, Ronaldo. A Antiguidade Tardia nas discusses historiogrficas acerca dos perodos de

    Translatio. Histria e-Histria,v.1, p. 1-12, 20083 LE GOFF, Jacques. A civilizao do Ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1994, p. 15. V.1; ______.

    Em busca da Idade Mdia. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005, p. 57; FRANCO JNIOR,Hilrio. A Idade Mdia Nascimento do Ocidente. So Paulo: Brasiliense, 2005, p. 11-12; paracitarmos algumas discusses mais recentes e acessveis a este respeito

    4 A reforma protestante antecedida por uma reforma ideolgico-religiosa na prpria Idade Mdia, sema qual a primeira no teria condies de se apresentar e se firmar. Significado a este respeito o livrode: BOLTON, Brenda. A reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1985.

    5 FRANCO JNIOR, 2005, op. cit., p. 156.6 No entanto, aquele grupo de franciscanos mais austeros quanto a critica da Igreja, forma perseguidos e

    condenados pela Igreja nestes sculos de fermento espiritual hertico. Ver FALBEL, Nachman.Heresias Medievais. So Paulo: Perspectiva, 1976; ______. Os Espirituais Franciscanos. SoPaulo: EDUSP, 1995.

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    instncia, os descaracterizar de seu movimento mais primitivo e essencial,

    principalmente pelo arrefecimento do prprio ideal de seu fundador. Com efeito, So

    Francisco talvez no fosse um professo franciscano no final de sua vida.7

    Nessa evoluo da dinmica medieval que engendraria as prprias estruturas

    da modernidade, podemos acrescentar ainda o surgimento da imprensa; da

    Universidade, filha da cidade, que cultivaria no mais somente a teologia, mas outras

    disciplinas humanas, exatas e biolgicas as quais, no obstante, viriam a contestar a

    teologia indiscutida quanto aos dogmas da f; da burguesia que abrira uma fenda na

    estrutura tripartite medieval e mudaria as formas e os modos de ser daquela sociedade,

    como seus gostos, sua extenso geogrfica (o mercador que busca novas terras,

    mercados, e que dispe de meios e dinheiro para tanto). Todas essas novas conjunturas

    seriam os filhos parricidas ou matricidas da Idade Mdia, pois, embora oriundos de sua

    prpria dinmica, romperiam e extrapolariam algumas de suas estruturas materiais e

    ideolgicas mais caractersticas. Assistiramos a partir de ento o inaugurar-se de novos

    tempos, mas, insistamos, novos tempos igualmente medievais. Assim, h mudana,

    transformao, mas no fim ou ruptura.

    Veja-se que o Renascimento italiano assim chamado por Le Goff um

    acontecimento brilhante, mas superficial. Mais do que ser o renascimento, foi s maisum dos tantos renascimentos que a Idade Mdia havia assistido; alis, fora o resultado

    compulsrio dos renascimentos medievais anteriores. Ento, poderamos defender a

    ideia que o Renascimento do sculo XV medieval e, no bastante, duplamente

    medieval: a princpio por sua prpria ideia de ser renascimento, j que os renascimentos

    so uma caracterstica essencialmente medieval enquanto signifiquem a volta a um

    estado anterior sempre prefervel ou, quando menos, a manuteno de um estado de

    coisas pouco mutvel e fiel as suas razes, ou seja, ao apego autoridade e ao peso datradio que implicaria uma constante busca de presentificao do passado ou mesmo

    sua resistncia; o ainda pelo fato do renascimento do sculo XV poder ser considerado

    como o ponto de chegada dos j diversos renascimentos que a Idade Mdia vivenciara,

    sobretudo os renascimentos da Antiguidade Tardia,8no qual a cultura crist se edificou

    7 Um dos melhores trabalhos historiogrficos acerca de Francisco CARDINI, Franco. So Franciscode Assis. Lisboa: Presena, 1993

    8 Ver BROWN, Peter. O fim do mundo clssico. Lisboa: Verbo, 1972; BANNIARD, Michel. GneseCultural da Europa. Lisboa: Terramar, [S/D].

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    pelas apropriaes e amoldamentos da cultura e filosofia clssicas;9 o renascimento

    carolngio do sculo IX,10e aquele dos sculos XII e XIII, chamado mesmo por Le Goff

    de uma verdadeira revoluo em todos os mbitos da vida humana no Ocidente

    Medieval. No mais, afirmaria ainda o renomado medievalista [...] Em histria no h

    renascimentos. H apenas mutaes, que durante muito tempo se ocultam sob a mscara

    de regresso a antiguidade [...]11corroborando e demonstrando a continuidade entre as

    duas pocas histricas, medievalidade e modernidade, em detrimento da ruptura.

    Se o Renascimento, filho ingrato da Idade Mdia, tinha por me postia a

    Antiguidade Clssica, pois afirmara que deveria quela poca suas caractersticas mais

    denotativas (o humanismo, a arte realista, o antropocentrismo, a racionalidade, o poder

    de investigao sobre o homem e a natureza) e, portanto, atribuiria a Idade Mdia uma

    poca de fundamentalismo religioso, de supersties, de cerceamentos de liberdades, de

    uma arte infantil e brbara, como o gtico, o romantismo do sculo XIX inverteria tal

    situao. Passa-se da Idade das Trevas Idade de Aurora em que nossos pais eram

    felizes em sua simplicidade e seus sentimentos mais aflorados. O prprio Jacques Le

    Goff nos contaria que seu interesse pela Idade Mdia surgiria desse encantamento

    romntico, da literatura que lhe apresentava lugares-smbolos dessa poca, como a

    floresta e o castelo; os personagens esteretipos como o cavaleiro, o monge, a dama; ossentimentos, como o amor corts, a coragem, a f, o destemor diante do outro homem e

    do sobrenatural, o temor de Deus.12Mas tambm os lugares concretos como os castelos

    e as catedrais medievais que se mantm erguidas at hoje na Europa ao lado de

    modernas construes, fazendo com que o tempo, os sculos, se reduza s vezes a

    quilmetros ou metros de distncia.13

    Observemos, no entanto, que a Idade Mdia pela qual tantos se vem

    apaixonados hoje to apangio daquela literatura romntica, como das produeshistoriogrficas que tem interessado cada vez mais o leitor comum por temas ligados ao

    cotidiano e ao imaginrio. Os historiadores tm lanado mo em sua escrita, sem perder

    9 Cf. AMARAL, Ronaldo. Saber e educao na Antiguidade Tardia. Os padres monsticos eeclesisticos diante da cultura greco-romana. Mirabilia, v. 6, 2006.

    10 Cf. BOUSSARD, Jacques. La civilizacin carolingia. Madrid: ediciones Guadarrama,1968. p. 118-195.

    11 LE GOFF, Jacques. O Imaginrio Medieval. Lisboa: Estampa, 1994, p. 3612

    Id. Em busca da Idade Mdia. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005, p. 18-1913 Ibid., p. 20.

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    o rigor prprio da profisso, de recursos literrios agradveis e de prazerosa leitura.

    Assim, quem no se apaixonaria pela Idade Mdia apresentada por Jacques Le Goff e

    George Duby14 ou mesmo por historiadores mais antigos como Marc Bloch e Johan

    Huizinga, e ainda no campo da literatura histrica, os livros de Umberto Eco, como seus

    clssicos o Nome da Rosa15e Baldolino.16

    Mas no campo do senso-comum que quase sempre a-histrico, o

    medievalesco substitui o medieval como afirmou Le Goff. E Jerome Baschet observa,

    recrudescendo esta pertinente formulao de Le Goff, que o sculo XIX fez surgir, tanto

    no mbito material, na arquitetura e na arte, quanto no campo intelectual, como o neo-

    tomismo, uma neo-Idade Mdia que, de fato, constituir-se-ia mais em uma obliterao

    do que fora aquele perodo do que efetivamente o seu ressurgir. Construir-se-ia uma

    Idade Mdia idealizada que nebulava os olhos e os entendimentos dos homens do sculo

    XIX sobre a Idade Mdia mesma, mais do que a denotava e a compreendia.17 A

    literatura que idealiza essa Idade Mdia cheia de maravilhas, fora, sentimentos afveis,

    dentre as quais esto as obras de Yvain. O cavaleiro e o Leo, Tristo e Isolda, e toda

    aquela abundante escritura das gestas de cavalaria do amor corts uma certa

    revivescncia de temas no necessariamente cristos contidos em uma literatura laica,

    que retomava temas pagos greco-romanos para fazer frente a unvoca literaturabblica e artstica crist apregoada e disseminada pela Igreja exemplo de todo o

    material que ajudou o sculo XIX a fazer da Idade Mdia no mais uma idade das trevas

    e sim uma idade, seno das luzes, de uma suave neblina de bem estar e romantismo. E o

    prprio Jacques Le Goff nos confessa que seu gosto pela Idade Mdia nascer de seu

    contato juvenil com a literatura de Chrtien de Troyes.18

    A Idade Mdia, como qualquer outra temporalidade histrica, no obstante, de

    forma agravada, ser sempre uma construo contempornea do passado, mais do que opassado mesmo. Se o historiador avisado sabe que no deve ir ao passado

    exclusivamente em busca de seu presente, tendo por parmetro seus valores e

    14 O prprio Le Goff igualmente confessa que se imbuiu de interesse e maravilhamento pela IdadeMdia graas a leitura das obras de Duby, ou ao menos particularmente o Batalha de Bouvines.

    15 ECO, Humberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.16 Id. Baldolino. Rio de Janeiro / So Paulo: Record, 2001.17 BASCHETT, Jerome. A civilizao feudal. So Paulo: Globo, 2006, p. 24.

    18 LE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Mdia. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005, p. 18-19.

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    cosmovises, pois cometeria os pecados mais graves Histria, ou ainda, os

    anacronismos e valores de juzo, ele praticamente no consegue levar outras questes ao

    passado que no sejam aquelas de seu mesmo presente, j que esse ponto de partida a

    prpria razo das escolhas temticas e metodolgicas de praticamente todos os estudos

    historiogrficos.19 Assim, se o historiador, na mais aceitvel das hipteses, busca

    entender a Idade Mdia em suas estruturas mesmas, o olhar que lana, sua opo

    temtica, metodolgica, e s vezes mesmo temporal, sero impostas pelo seu presente,

    por suas questes mais agudas e da ordem do dia. Da que o sculo XIX romntico e

    enfadado do racionalismo, s poderia ver na Idade Mdia, que no encerrava esses

    valores, uma poca to o mais romntica que o prprio sculo XIX. A Idade Mdia

    romntica do sculo XIX uma Idade Mdia do XIX antes de qualquer pretenso de

    se chegar a uma Idade Mdia por si mesma.

    E nos nossos dias? Como temos compreendido a Idade Mdia; como tem

    definido esse perodo o senso-comum histrico, e por outro lado, os historiadores,

    particularmente os medievalistas?

    Talvez estejamos em uma poca de balano; talvez nossa viso, a dos

    medievalistas, deva ser a viso das mltiplas vises para tentarmos acercar-nos de uma

    Idade Mdia por ela mesma, e isto, se de fato conseguirmos.Faz agora dois sculos ao menos que a Idade Mdia balanada deum extremo a outro, sombrio contraponto dos partidos damodernidade, ingnuo refugio daqueles a quem o presente modernohorroriza. Existe de resto um ponto comum entre a idealizaoromntica e os sacarmos modernistas: sendo a Idade Mdia o inversodo mundo moderno (o que inegvel) a viso que se tem dela inteiramente determinada pelo julgamento feito pelo presente. [...].20

    Jerome Baschet observa que somos, por nossa vez, observadores de todas

    aquelas construes da Idade Mdia, mas tambm e necessariamente, novosconstrutores. Um exemplo encontra-se nas discusses sobre os primeiros sculos da

    Idade Mdia em suas valoraes historiogrficas atuais. Jacques Le Goff v os

    primeiros sculos medievais, ou seja, aquele do desfacelamento do arcabouo poltico-

    institucional do Imprio Romano e da entrada e acomodao dos germnicos em terras

    romanas, como tempos de regresso e decadncia, a tal ponto que observa a juno trs

    19

    DUBY, George. A Histria Continua. Rio de janeiro: J. Zahar,1993, p. 9.20 BASCHETT, Jerome. A civilizao feudal. So Paulo: Globo, 2006, p. 24

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    decadncias, a romana, a germnica e a das culturas locais autctones,21que ressurgem

    com o arrefecimento da cultura romana que se impunha quelas quando da conquista do

    Imprio a suas provncias. Tambm v regresso da cultura e da arte, e nisso acompanha

    Roberto Lopez.22Peter Brown, por sua vez, referindo-se a esse mesmo perodo, dele se

    ufana em tal medida, que consegue ver sobretudo novidades, avanos, recrudescimento

    cultural.23A discrepncia dessas vises to grande que esses historiadores parecem se

    referirem a temporalidades distintas.

    Contudo, ainda nos encontramos, mesmo nesse momento em que nos

    constitumos nos juzes dos construtores ufanistas ou pessimistas da Idade Mdia,

    oscilando nessa mesma viso dualista (e no somos mesmo dualistas inatos?), ou ainda,

    entre uma Idade das trevas e uma Idade da aurora da civilizao do Ocidente, onde

    nossos pais eram felizes na aprazvel vida no campo e seguros na inquestionvel f que

    os confortava.

    Somos constantemente testemunhas auriculares de verbalizaes de uma Idade

    Mdia pejorativa. Personalidades polticas, artsticas, religiosas, do mundo da economia,

    se referem freqentemente, quando diante de um cenrio de instabilidade, de

    agressividade, de algum grau ou gnero de crise, e a estamos vivendo nesse incio de

    sculo XXI a uma situao, a um perodo medieval. Toda e qualquer forma defundamentalismo religioso tido como uma volta doutrina e a f medieval.

    Um quadro ainda mais grave quanto viso nada benfazeja da Idade Mdia

    encontramos na academia. Os medievalistas so com frequncia menos importados por

    alguns historiadores da contemporaneidade e da brasilidade por no falarem de ns

    mesmos, de nossa realidade. No vou me estender aqui na dvida, inquestionvel,

    irrepreensvel que a histria da contemporaneidade e mesmo do Brasil tem para com a

    Idade Mdia.24

    21 LE GOFF, Jaques. A civilizao do Ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1994, p. 58. V. 1. E issopara no citarmos obras clssicas a este respeito como as de Edwad Gibbon, Ferdinad Lot e MikhailRostovtzeff.

    22 LOPEZ, Roberto S. El nascimiento de Europa. Barcelona: Editorial labor, 1965. p. 23-69.23 BROWN, Peter. O fim do mundo clssico. Lisboa: Verbo, 1972; BANNIARD, Michel. Gnese

    Cultural da Europa. Lisboa: Terramar, [S/D]. Nesse sentido acompanha o clssico de: MARROU,Henri-Irene. Decadncia Romana ou Antiguidade Tardia?Lisboa, Aster, 1979.

    24 Para o caso do Brasil e a nossa divida a medievalidade ver FRANCO JNIOR, Hilrio. RazesMedievais do Brasil. Revista USP, So Paulo, p. 79-104, agosto de 2008.

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    De outro lado, uma viso idlica da Idade Mdia tambm nos sobrevive.

    caracterstico de nossa viso de mundo, um arqutipo presente na nossa estrutura de

    pensamento, que v no passado remoto um tempo mais feliz, mais perfeito e prdigo, e

    isso, sobretudo, para as sociedades pr-industriais, dentre as quais a medieval. Le Goff

    afirmara que os medievais tinham o seu passado diante de si, ou seja, os primrdios

    constituam o futuro mais desejado, porque melhor, mais perfeito. Esse passado recuava

    at a origem da cristandade, at o den, em que se estava em maior consonncia com a

    prpria criao, desprovida do pecado e de suas mazelas, onde a f e a presena de Deus

    eram constantes e eficazes. Tal percepo de um tempo em que o passado remoto

    constitui-se no futuro perfeito devera-se aos povos primitivos e queles da antiguidade,

    dentre os quais gregos e romanos, que estabeleciam uma mensurao cclica do tempo,

    seja aquela do eterno-retorno, ou do grande crculo em que o futuro se instauraria pela

    volta do passado imemorial, perfeito, onde se dera a criao do mundo e onde naquele

    momento e lugar os homens residiam com os deuses, ou na verso judaico-crist, Jav

    residia com o casal primordial.25

    Mesmo para ns que vivemos em um mundo secularizado, essa percepo de

    um passado benigno e mais prdigo faz-se presente. Freqentemente ouvimos de nossos

    pais que a poca de nossos avs fora uma poca de maior simplicidade, f, eabundncia; e de nossos avs, a confirmao de que eram mais felizes na poca de suas

    infncias, ou naquela de seus mesmos pais.26E para os crentes mais convictos, no seria

    o den um mito de origem o passado mais vvido e saudoso, sobretudo, um lugar a

    ser efetivamente reconquistado? De qualquer forma, para qualquer viso idlica da Idade

    Mdia, temos implcita a vontade desse retorno idade da aurora do homem, ao paraso

    no qual o homem estava no seio seguro e reconfortante de Deus. E desse arqutipo, ao

    mesmo tempo do passado e do futuro, comungam mesmo os mais descrentes daatualidade.27

    25 Realizamos um estudo sobre a persistncia a nvel mental e no imaginrio social do tempo cclicosobre o tempo linear na cosmoviso crist antiga e medieval. AMARAL, Ronaldo. Da renncia aomundo abolio da Histria. O paraso no imaginrio dos Pais do Deserto. Campos Grande,editora da UFMS, 2011.

    26 Proponho inclusive um estudo neste sentido em que conflua a histria oral com a histria do mental edo imaginrio social.

    27 Sobre a nostalgia do paraso mesmo para o homem profano ver ELIADE, Mircea. O mito do eternoretorno. Lisboa: Edies 70, 2000, p. 13.

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    Mas o interesse pela Idade Mdia na atualidade, em um mundo miditico e de

    buscas constantes, movidos por angustias e pela vontade de solues imediatas e

    mgicas, tem residido no que ela teria de extico, de maravilhoso, de mitolgico, e de

    mstico. Cabe lembrar aqui as religiosidades latentes, a fora do rito e da utopia, a viso

    simblica do mundo, as quais, mesmo sem entender suas origens, delas comungamos.

    Sublinha-se o interesse, ainda que a nvel inconsciente, pela fora, pelo maravilhoso, o

    maravilhoso pago, sobretudo. Salta aos olhos o interesse, embora confuso e

    indefinido, pelas religiosidades pantesticas e animistas, presentes nos germanos,

    helnicos e celtas. O que so as pedras, os dolos, as miniaturas de fontes de gua, os

    escapulrios de todo gnero de contedo levados ao pescoo como sinal de proteo, os

    bruxinhos prottipos de Merlin, que tanto sucesso fazem nos dias atuais, que no um

    apelo a esta Idade Mdia mgica e fantstica que a prpria Idade Mdia tanto desejou

    apagar e repelir por meio da Igreja e seus agentes?28 Exalta-se a Idade Mdia dos

    cavaleiros, dos torneios, dos jovens nobres em busca de sua dama e seu feudo, e outras

    tantas grandes idealizaes romnticas e viris; mas no seriam essas personalidades e

    esses seus impulsos vistos com expressivo e estendido desagrado na grande parte das

    vezes pela populao e pela Igreja medieval, pois causariam grandes transtornos, uma

    vez que, por exemplo, esta cavalaria belicosa, sobretudo a constituda pelos filhos noprimognitos da nobreza dos sculos XII e XIII que se digladiavam por terras e poder,

    causavam graves problemas de segurana e estabilidade moral e material a

    feudalidade.29Esse estado de coisas culminou na paz de Deus em que a Igreja teve

    que intervir.

    As cruzadas que retoma o tema da fora, da virilidade, dos cavaleiros

    destemidos e honrosos por sua tenacidade e conquistas, encontra-se igualmente na

    ordem do dia entre os amantes da Idade Mdia, nos bonecos infato- juvenis, nos jogosde RPG, nos desenhos animados da TV e do cinema. Mas o que foram as cruzadas

    seno um dos acontecimentos mais lamentveis da medievalidade, que redundaram em

    fracassos e intolerncias, culturais e religiosas, como so acordes hoje seus

    historiadores.

    28 Sobre a religiosidade medieval ver ORONZO, Giordano. Lareligiosidad en la alta Idade Media.Madrid: Gredos, 1983; WALTER, Philippe. Mitologa Cristiana, fiestas, ritos y mitos de la Edad

    Media. Buenos Aires: Paidos, 2005.29 ROUSSET, Paul. Histria das Cruzadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1980, p. 14.

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    Talvez neste momento tenham que me desculpar aos enfatuados da Idade

    Mdia, que tanto a amam, que tanto a sonham, que tanto desejam verem-se reportados

    quela poca, constituindo-se em cavaleiros e damas, monges exemplares e camponeses

    ligados a simplicidade e a amenidade da vida buclica. Mas licito e salutar avisar que

    o passado perfeito, o tempo feliz e satisfatrio a todos, mais um arqutipo do ser e

    sentir na perfeio com o divino, do que um lugar espao-temporal.

    Interessante ainda ser notarmos aqui a viso de uma Idade Mdia idealizada,

    no seu sentido positivo, pela mdia atual. O cinema idealizou tanto a Idade Mdia, que

    chegou a fazer dela o prottipo de toda poca mgica e fabulosa e, por outro lado, de

    sobrepujante humanidade, de conquistas e fora. No primeiro caso, filmes recentes,

    sobretudo os ingleses e norte-americanos como Harry Potter (Londres, 2001, direo

    de Crhis Columbus) As crnicas de Narnia, (Nova Zelndia, 2005, direo de Andrew

    Adamson)O senhor dos anis, (Estados Unidos, 1999, direo de Peter Jackson) nos

    remetem a uma poca, embora no especificada como medieval por parmetros de

    espao e tempo, de caractersticas e circunstncias sem sombra de dvidas medievais ou

    sobretudo medievalescas; seres fabulosos, a floresta como lugar do mgico e do

    temeroso,30 cavaleiros, espadas, escudos, drages, animais consoantes vontade dos

    homens e deles ntimos, etc., tudo isso encontrado na literatura tanto hagiogrficaquanto laica medieval. Outros filmes, de carter mais histrico, como as Cruzadas

    (Estados Unidos, 2005, direo de Ridley Scott) e El Cid, (Itlia / Estados Unidos /

    Inglaterra, 1961, direo de Anthony Mann)para citar um filme mais antigo e um mais

    recente, no deixam de fazer da medievalidade a poca em que se desejaria viver ou

    participar por sua idealizao de poder, fora fsica e espiritual. No entanto, filmes,

    como o clssico baseado no romance de Umberto Eco, O nome da Rosa, (Alemanha,

    1986, direo de Jean Jacques Annaud

    ) cuja cenografia e figurao fora, alis,trabalhada por especialistas, historiadores entre os quais Jacques Le Goff, nos remete de

    forma espantosa a uma Idade Mdia mais exeqvel e vivida, sobretudo por sua faceta

    de fealdade, pouco bem-quista ao cinema que obedece aos esteretipos de beleza e

    esttica atuais: monges disformes, maltratados, o mosteiro em sua viso eminentemente

    humana, com discrdias, necessidades, expropriaes de camponeses, dissidentes da f

    no seio do prprio clero. Tambm encontramos o sobrenatural, demonstrado sobretudo

    30 LE GOFF, Jacques. O Imaginrio Medieval. Lisboa: Estampa, 1994. p. 83-99; ______. Acivilizao do Ocidente medieval. Lisboa: Estampa, v.1 p. 169-172, 1994.

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    pelos fundamentalistas e msticos; as questes morais e filosficas que permearam e

    fundamentaram aquela poca, basicamente sintetizada no platonismo cristo

    representada pelos beneditinos que surgiu mais ou menos contemporaneamente a esta

    mesma ordem no sculo IV e vigente at a poca em que se passa esse filme, e o

    aristotelismo retomado pelo cristianismo no novo contexto de reconquista do mundo

    pelos homens desses sculos centrais da Idade Mdia, cujos maiores representantes

    foram os franciscanos, que viriam a chamar os elementos da natureza, e assim o mundo

    mesmo, como irmos, fratres.31 .Demonstrar-se- ainda a pobreza do campons, a

    opulncia, para muitos revoltante, da Igreja, as velhas e novas ordens religiosas, como

    os beneditinos e os franciscanos, nas suas especificidades. O franciscanismo ai

    apresentado denota, ademais, que a Igreja medieval no era to unvoca e reinante nos

    seus dogmas e nas suas imposies incontestadas; que o alto clero, o baixo clero e os

    demais fiis constituam uma Igreja bastante plural.

    H tambm uma urea de idealizao sobre o mundo espiritual monstico nos

    nossos dias, e ns mesmos j advertimos sobre o perigo de o historiador medievalista

    dedicado a esse objeto se prender as suas maravilhas, e fazer de sua fonte, mais uma

    profisso de f do que um instrumento de profisso, com o risco de deixar de ser

    historiador.32Muitos se sentem absortos quando vislumbram o claustro de um mosteiro,seus capitis, seus cones, a liturgia; o lindo canto gregoriano que se esvaece em meio a

    nevoa de agradvel odor dos incensos que representa as splicas dos fiis que sobem e

    atingem as narinas de Deus. Quo romntico a paz, a natureza dos seus jardins internos,

    os claustros, pequenos Edns; o hbito do monge, seus passos silenciosos pelos

    corredores, suas palavras suaves de consolo e sabedoria. Quantos em funo dessa viso

    no j desejaram se encerrar neste quinho de Paraso que julgam um mosteiro. E o

    ideal de mosteiro e de monge, insista-se, encontra-se na Idade Mdia, por sua origem,abundncia, e renome. Mas, por outro lado, quantos desses desejosos modernos da vida

    monstica se submeteriam aos jejuns e outras formas de abstinncia impostos aos

    monges; as viglias noturnas, ao despertar antes do sol, ao dia-a-dia totalmente

    31 Sobre as mutaes do Ocidente nos sculos XII e XIII no sentido em ver tambm estas no seio denovas vises do mundo e do sagrado cristo ligado as novas estruturas sociais e mentais podemosconsiderar as muitas obras de Jacques Le Goff sobre este perodo como as mais significativas. Arespeito dos franciscanos vistos como ordem hertica a partir da Igreja ver: FALBEL, Nachman.Heresias Medievais. So Paulo: Perspectiva, 1976.

    32 AMARAL, Ronaldo. A Santidade habita o deserto. A haxiografia a luz do imaxinrio social. ACorua Noia: Toxosoutos, 2009, p. 253.

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    regularizado pelas horas cannicas, ao voto de obedincia ao abade, a abdicao de seus

    bens pessoais e da famlia, do conforto da casa particular, sobretudo nessa poca em que

    somos to individualistas; quantos se acostumariam a simplicidade da cela como

    dormitrio; e se tivermos o monaquismo medieval em mente, os jejuns ainda mais

    freqentes, as noites em claro em viglia contra o demnio que temiam por acreditarem

    em sua presena diuturnamente, as mortificaes, o medo tanto do inferno quanto de um

    Deus terrvel em seu julgamento, as flagelaes e demais castigos fsicos, tantos

    impostos como auto-impostos; e quanto aos recalcitrantes, encarceramentos e

    acorrentamentos? Ouamos Jacques Le Goff advertindo os ufanistas da Idade Mdia

    Se o leitor permite dar-lhe um conselho muito trivial direi que perante

    esta evaso para uma Idade Mdia transfigurada se interroguehonestamente e veja se gostaria se ver transportado quele tempo enele viver. Que pense que as pessoas da idade media no pensavamseno em fugir do seu tempo, em alcanar um alem, um cu, e queentre tantos medos que o fizeram tremer o menor foi o medo da morte[...].33

    Sabemos que toda Histria est to imbuda de imaginrios, de idealizaes,

    quanto a nossa prpria histria. O homem cria sua realidade, a modifica, quando e o

    quanto pode, ou ao menos a forja para o atendimento do seu melhor existir. J havamos

    insistido que o imaginrio, as construes idiossincrticas mentais desenham,

    convergem, em grande medida, a fazer nossa prpria realidade. Daqui podemos

    entender nossa recorrncia a Idade Mdia, pois no fora esta a idade por excelncia do

    imaginrio, do existir mais fabuloso humano, da incrvel capacidade de viver e sentir o

    mgico e faz-lo agir nas prprias condutas humanas e do social?

    33 LE GOFF, Jacques. A civilizao do Ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1994, p. 23. V. 1.