A História não é a his A - · PDF fileLevar o puto à praia; pagar...

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Nº 8 - 11 de Julho de 2014 Levi Martins A História não é a his- tória do quotidiano, em que todos parti- cipamos de igual forma. Não, a História é escrita por quem a pode escre- ver. Ou então por quem a ousar escrever. Por defei- to, o que acontece é que confiamos que alguém irá ditar com algum tipo de justiça o nosso destino: os deuses, Deus, o karma, a troika, (preencher com o que mais vier à cabeça). Porém, quanto mais con- fiamos que essa justiça seja feita sem a fazermos nós próprios, mais o rumo das nossas vidas se co- meça a assemelhar a um barco à deriva no meio do oceano. Dizer que não é importante. Mas ainda mais importante é ter o impulso de inscrever na História qualquer coisa de realmente singular. Numa mão sempre a espada e noutra a pena, escreveu Camões. A espada é o não. A pena é o que se fizer com ela. Teria algu- ma vez Camões corrido o risco de se afogar por uma espada? Imaginem o resto em tiras: Camões cai ao mar com a espada numa mão e Os Lusíadas na outra. Não consegue manter-se à tona. Tem de optar por largar um dos objectos. Olha para um e para o outro. Larga a es- pada. Com a mão que fi- cou livre esbraceja, engo- lindo alguma água e cus- pindo uns palavrões pelo meio. Na outra mão ergue o colossal manuscrito. A espada cai lentamente para o fundo do mar. Naufrágio ENCONTROS DA CERCA Novíssimos argentinos e Thomas Bernhard A manhã é dia de Encontros da Cerca: tempo de intrepelar os jovens criadores argen- tinos sobre os seus processos de criação e realidades artísticas e de assistir à apresentação da primeira tradução em língua por- tuguesa da Autobiografia, de Tho- mas Bernhard. Novos? Novíssimos? Como é que as dificuldades com que se debate a presente geração de criadores argentinos afectou os seus processos de criação? Como inscrevem Bernardo Cappa, Fa- cundo Aquinos, Ignacio de Santis, Nacho Ciatti, Romina Paula e Ser- gio Calvo – aqueles a que chamá- mos novíssimos criadores – o seu teatro na senda dos consagrados Daniel Veronese, Rafael Spregel- burg ou Claudio Tolcachir? A que se deve a excepcional vitalidade da cena teatral argentina, um país em que se estreiam, só em Buenos Aires, cerca de 1000 espectáculos por ano? Os representantes desta nova geração, cujos espectáculos integram o ciclo Novíssimo teatro argentino do Festival, discutem estas questões, apresentando e contextualizando os seus traba- lhos – às 10h30, na Casa da Cerca. Reunindo Coreias à volta de uma mesa E ra para ter sido um chá com as professoras que participa- ram este ano numa formação de teatro promovida pela Compa- nhia de Teatro de Almada e que, nesse contexto, tiveram oportu- nidade de conhecer e reproduzir uma das cenas de A reunificação das duas Coreias, a do professor extremoso que se preocupa com o amor que o pequeno Antoine não tem, porque os pais lho so- negam. Ou por outra: a dos pais inquietos com o comportamento suspeito, demasiado próximo, do professor. Acabou por ser uma imperial. Ontem fazia calor no pal- co principal do TMJB, onde duas bancadas se montaram, frente a frente, criando um corredor lon- go e estreito, no qual pequenos quadros tomavam corpo. “Aque- la é a linha da vida”, afirmou uma das professoras, absolutamente extasiada com o espectáculo. “Adorei. Os actores eram muito bons, tecnicamente irrepreensí- veis. Pareciam flashes de vida, um daqueles momentos em que vamos sentados no comboio-fan- tasma da feira popular e vemos passar cenas da nossa vida, da vida dos outros…”. Discutiram-se as diferentes cenas, aquela que se preferia. E elogiava-se sobre- tudo a capacidade demonstrada por Joël Pommerat para abraçar quase todos os tipos, formas, forças do amor que une (e, por vezes, separa) amigos, pais e fi- lhos, amantes fogosos ou com- panheiros de longa data. “São duas horas de espectáculo, mas nem damos pelo tempo passar”, comentou outra das professoras. N a aula de ontem, dedicada à invenção dos espaços céni- cos, juntaram-se a Luis Mi- guel Cintra a realizadora francesa Christine Laurent e Cristina Reis, cenógrafa e figurinista do Teatro da Cornucópia. Solução precária Nos primeiros anos, Luis Miguel Cintra somava à encenação a ta- refa de conceber os cenários e o guarda-roupa, uma sensibilidade de tipo “artesanal” e a vontade de “fazer uma coisa mais inven- tada para cada caso, mais artís- tica”. As soluções que desencan- tava eram precárias, no início. Pedia-se emprestado o vestido de cocktail da mãe para Glicínia Quartin vestir em O misantropo; enchiam-se sacos de pano cru com desperdícios vários, a fim de causar a dificuldade do andar sobre a areia, num sítio onde não se podia utilizar a quantidade ne- cessária para imitar uma praia, como em A ilha dos escravos. Outra gramática Com a entrada no Teatro do Bairro Alto e a chegada de Cristina Reis, uma “outra gramática” surgiu. À preocupação de uma cenógrafa ainda inexperiente com a fun- cionalidade imediata do cenário, Jorge Silva Melo costumava res- ponder: “Fazes um quadro e não te preocupas com o resto. Pensa em soluções parciais”. E o certo é que, das dezenas de desenhos que então fazia, se aproveitavam, no contexto de uma solução final, diversas sugestões e uma sensi- bilidade e uma poética só suas. “Desses farrapos construíam-se tecidos cada vez mais comple- xos”, explica Cristina Reis. O SENTIDO DOS MESTRES — CINCO DIAS, CINCO TEXTOS A invenção dos espaços cénicos Autobiografia A casa, A cave, A respiração, O frio e a Uma criança: à tarde, pelas 16h00, teremos oportu- nidade assistir à apresentação destes cinco volumes que com- põem a Autobiografia de Tho- mas Bernhard, numa tradução de José António Palma Caetano. Para além do tradutor, o Encontro contará ainda com a presença do professor universitário Orlando Grosseguesse, do encenador e director da Companhia de Teatro de Braga, Rui Madeira, e ainda do Embaixador da Áustria em Lisboa, Thomas Seltzer.

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Nº 8 - 11 de Julho de 2014

Levi Martins

A História não é a his-tória do quotidiano, em que todos parti-

cipamos de igual forma. Não, a História é escrita por quem a pode escre-ver. Ou então por quem a ousar escrever. Por defei-to, o que acontece é que confiamos que alguém irá ditar com algum tipo de justiça o nosso destino: os deuses, Deus, o karma, a troika, (preencher com o que mais vier à cabeça). Porém, quanto mais con-fiamos que essa justiça seja feita sem a fazermos nós próprios, mais o rumo das nossas vidas se co-meça a assemelhar a um barco à deriva no meio do oceano. Dizer que não é importante. Mas ainda mais importante é ter o impulso de inscrever na História qualquer coisa de realmente singular. Numa mão sempre a espada e noutra a pena, escreveu Camões. A espada é o não. A pena é o que se fizer com ela. Teria algu-ma vez Camões corrido o risco de se afogar por uma espada? Imaginem o resto em tiras: Camões cai ao mar com a espada numa mão e Os Lusíadas na outra. Não consegue manter-se à tona. Tem de optar por largar um dos objectos. Olha para um e para o outro. Larga a es-pada. Com a mão que fi-cou livre esbraceja, engo-lindo alguma água e cus-pindo uns palavrões pelo meio. Na outra mão ergue o colossal manuscrito. A espada cai lentamente para o fundo do mar.

Naufrágio ENcoNtros dA cErcA

Novíssimos argentinos e thomas Bernhard

Amanhã é dia de Encontros da Cerca: tempo de intrepelar os jovens criadores argen-

tinos sobre os seus processos de criação e realidades artísticas e de assistir à apresentação da primeira tradução em língua por-tuguesa da Autobiografia, de Tho-mas Bernhard.

Novos? Novíssimos?Como é que as dificuldades com que se debate a presente geração de criadores argentinos afectou os seus processos de criação? Como inscrevem Bernardo Cappa, Fa-cundo Aquinos, Ignacio de Santis,

Nacho Ciatti, Romina Paula e Ser-gio Calvo – aqueles a que chamá-mos novíssimos criadores – o seu teatro na senda dos consagrados Daniel Veronese, Rafael Spregel-burg ou Claudio Tolcachir? A que se deve a excepcional vitalidade da cena teatral argentina, um país em que se estreiam, só em Buenos Aires, cerca de 1000 espectáculos por ano? Os representantes desta nova geração, cujos espectáculos integram o ciclo Novíssimo teatro argentino do Festival, discutem estas questões, apresentando e contextualizando os seus traba-lhos – às 10h30, na Casa da Cerca.

reunindo coreias à volta de uma mesa

Era para ter sido um chá com as professoras que participa-ram este ano numa formação

de teatro promovida pela Compa-nhia de Teatro de Almada e que, nesse contexto, tiveram oportu-nidade de conhecer e reproduzir uma das cenas de A reunificação das duas Coreias, a do professor extremoso que se preocupa com o amor que o pequeno Antoine não tem, porque os pais lho so-negam. Ou por outra: a dos pais inquietos com o comportamento suspeito, demasiado próximo, do

professor. Acabou por ser uma imperial. Ontem fazia calor no pal-co principal do TMJB, onde duas bancadas se montaram, frente a frente, criando um corredor lon-go e estreito, no qual pequenos quadros tomavam corpo. “Aque-la é a linha da vida”, afirmou uma das professoras, absolutamente extasiada com o espectáculo. “Adorei. Os actores eram muito bons, tecnicamente irrepreensí-veis. Pareciam flashes de vida, um daqueles momentos em que vamos sentados no comboio-fan-

tasma da feira popular e vemos passar cenas da nossa vida, da vida dos outros…”. Discutiram-se as diferentes cenas, aquela que se preferia. E elogiava-se sobre-tudo a capacidade demonstrada por Joël Pommerat para abraçar quase todos os tipos, formas, forças do amor que une (e, por vezes, separa) amigos, pais e fi-lhos, amantes fogosos ou com-panheiros de longa data. “São duas horas de espectáculo, mas nem damos pelo tempo passar”, comentou outra das professoras.

Na aula de ontem, dedicada à invenção dos espaços céni-cos, juntaram-se a Luis Mi-

guel Cintra a realizadora francesa Christine Laurent e Cristina Reis, cenógrafa e figurinista do Teatro da Cornucópia.

Solução precáriaNos primeiros anos, Luis Miguel Cintra somava à encenação a ta-refa de conceber os cenários e o guarda-roupa, uma sensibilidade de tipo “artesanal” e a vontade de “fazer uma coisa mais inven-tada para cada caso, mais artís-

tica”. As soluções que desencan-tava eram precárias, no início. Pedia-se emprestado o vestido de cocktail da mãe para Glicínia Quartin vestir em O misantropo; enchiam-se sacos de pano cru com desperdícios vários, a fim de causar a dificuldade do andar sobre a areia, num sítio onde não se podia utilizar a quantidade ne-cessária para imitar uma praia, como em A ilha dos escravos.

Outra gramáticaCom a entrada no Teatro do Bairro Alto e a chegada de Cristina Reis,

uma “outra gramática” surgiu. À preocupação de uma cenógrafa ainda inexperiente com a fun-cionalidade imediata do cenário, Jorge Silva Melo costumava res-ponder: “Fazes um quadro e não te preocupas com o resto. Pensa em soluções parciais”. E o certo é que, das dezenas de desenhos que então fazia, se aproveitavam, no contexto de uma solução final, diversas sugestões e uma sensi-bilidade e uma poética só suas. “Desses farrapos construíam-se tecidos cada vez mais comple-xos”, explica Cristina Reis.

o sENtido dos mEstrEs — ciNco diAs, ciNco tExtos

A invenção dos espaços cénicos

AutobiografiaA casa, A cave, A respiração, O frio e a Uma criança: à tarde, pelas 16h00, teremos oportu-nidade assistir à apresentação destes cinco volumes que com-põem a Autobiografia de Tho-mas Bernhard, numa tradução de José António Palma Caetano. Para além do tradutor, o Encontro contará ainda com a presença do professor universitário Orlando Grosseguesse, do encenador e director da Companhia de Teatro de Braga, Rui Madeira, e ainda do Embaixador da Áustria em Lisboa, Thomas Seltzer.

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À mesa com... Booola Brancaaaa!ReStauRaNte da eSpLaNada

Pratos do dia

– Hambúrguer com pão e tomate– Salmão

sobremesa

– Mousse– Arroz doce– Semi-frio de iogurte– Fruta da época

Hoje

amanhã

aGeNda de aMaNHãColóquios e tertúlias

esPeCtáCulos de rua

esPeCtáCulos de sala

músiCa na esPlanada

Um teatro para lá das palavras

Pratos do dia

– Febras fritas– Calamares

sobremesa

– Mousse– Arroz doce– Semi-frio de iogurte– Fruta da época

o Novíssimo tEAtro ArgENtiNo10h30 | casa da cercaLANçAmENto dE “AUtoBiogrAfiA”de thomas Bernhard16h00 | casa da cerca“os LUsíAdAs” — os diAs E As NoitEs 18h00 | teatro municipal Joaquim Benite

ÚLtimo AdUELA 19h30 | rua cândido dos reis BAiNhA 21h30 | Praça são João BaptistaBLiss PEEk-A-Boo 21h30 | Praça da Portela

fAUNA19h00 | centro cultural BelémA ArqUitEctUrA dA PAz21h00 | teatro municipal são Luizo rEgimE dA rAção22h00 | Escola d. António da costa

EdisoN otEro trio 21h00 | Escola d. António da costaNorBErto LoBo23h30 | Escola d. António da costa

Sabes, acho que vou casar-me de novo.

É o amor, a reunificação das duas Coreias.

Levar o puto à praia; pagar a electricidade; passar na lavandaria; comprar a prenda à Paula;

levar o carro à inspecção...

...a reunião de condomínio na Terça; na Quinta o veterinário do gato; no Sexta toca-me a Margarida;

amanhã deixar o dinheiro para a Dona Otília...

Palheta ilimitada

fim de tarde ameno na esplana-da. Vento fraco. Condições cli-matéricas perfeitas para João

Carneiro, crítico de teatro, receber Ivica Buljan. O encenador croata dirigiu Cais Oeste – uma criação da CTA com ante-estreia no Fes-tival –, e é também o responsável por Macbeth segundo Shakespea-re, espectáculo que trouxe a sua companhia, Mini Teater, a Almada. Em qualquer dos casos, Buljan parte de uma maneira de trabalhar em que privilegia a relação entre o corpo e a palavra, um teatro pós-dramático que “procura as coisas que não estão escritas”. Com a sua companhia, o croata tem tentado desenvolver “uma estética própria, investigando certos autores que não são muito representados”.

a dimensão da alma humana“O que faço não é teatro da palavra. A palavra não está no centro”, afir-mou o croata, “interessa-me mais a presença dos intépretes do que a articulação clara do que dizem”. Ivica Buljan, que tem trabalhado sobretudo a partir de autores como Müller, Jelinek, Walser ou Koltès, quer que os actores representem num estado de “quase transe, para lá do que é comunicável, numa tentativa de revelar uma dimen-são profunda da alma humana”. Em conversa com João Carneiro, o encenador revelou que as suas grandes referências eram Artaud e Meyerhold, homens de teatro que muito pensaram a sua componen-te física – Meyerhold afirmava até que o actor devia ser um atleta.

um trabalho sério e intensoTeresa Gafeira, actriz da Com-panhia de Teatro de Almada que participou em Cais Oeste, decidiu partilhar com o público presente um pouco do que tinha sido traba-lhar com o encenador croata: “foi um trabalho muito profundo, sério e intenso, que exigiu uma prepara-

ção física muito forte. Não há nada de gratuito, tudo tem uma razão de ser. Não procura a violência pela violência ou o sexo pelo sexo”.

Ivica Buljan e João Carneiro

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a teRtúLia de “OS LuSíadaS” de aMaNHã, Os dias e as nOites,

ReaLizaR-Se-á Na eSpLaNada da tMJB e NãO Na dO

FóRuM ROMeu CORReia.

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Ao que é que Rolf Henke, Matthias Langhoff, Claude Brozzonni e Rodrigo Francisco assistem com tanta atenção? As hipóteses são: a) A transmissão em directo, na BBC, do espectáculo do Palco Grande na última terça-feira à noite; b) A estreia da nova novela da Globo; c) Nenhuma das outras.Dada a nacionalidade dos primeiros dois, o momento captado pelo fotó-grafo Rui Mateus acaba por tornar-se bastante claro. Puséssemos balões de banda desenhada nestes quatro, e o resultado poderia ser:ROLf – Ó sôr Nunes, esta Água das Pedras tem pouco gás.CLaude – Fogo, Matthias, onde é que foram desencantar este avançado?Matthias – Fui eu que o descobri num casting: foi rejeitado e dedicou--se a jogar à bola.ROdRigO – Em Portugal isso também se deu, mas com um encenador de musicais e um político de Massamá palrador.