A História e as Nossas Histórias - Contardo Calligaris

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As nossas histórias e "A História" CONTARDO CALLIGARIS "A História" é abstração: as nossas pequenas histórias concretas são seu verdadeiro tecido ASSISTI A "Bobby", de Emilio Estevez, que acaba de estrear. O filme conta o dia da morte de Robert F. Kennedy a partir das pequenas histórias de quem, por uma razão ou outra, estava, naquelas horas, no Hotel Ambassador de Los Angeles (que foi o lugar do atentado). É uma ocasião imperdível e tocante para pensar um pouco sobre a relação entre "A História" e nossas pequenas histórias. Por exemplo, o assassinato de John F. Kennedy, em novembro de 1963, em Dallas, Texas, foi numa sexta-feira, por volta do meio-dia. Sei disso porque lembro que eu estava em Milão, na casa dos meus pais, e ia sair com meu melhor amigo; a notícia chegou na hora do jantar. Logo, o grupinho político ao qual eu e meu amigo pertencíamos (o Círculo Piero Gobetti) convocou uma reunião de urgência (no retrospecto, a urgência parece engraçada). Redigimos uma declaração "oficial", de cujo teor eu me esqueci totalmente, mas que foi impressa em cartaz no dia seguinte. Passei a noite de sábado com meu amigo, colando cartazes pelas ruas, no frio. Como o cartaz não era autorizado, fomos presos, na madrugada. É a melhor lembrança que tenho de meu amigo do peito daqueles dias. Eu também me lembro do exato momento em que aprendi que Martin Luther King tinha sido assassinado, em Memphis, Tennessee, no começo de abril de 1968: estava sendo apresentado a meus sogros, em Houston, Texas. Do dia do assassinato de Robert Kennedy, em junho de 1968, não me lembro. Provavelmente não está ligado a nenhum pequeno evento de minha própria história. Estava em Paris no dia da greve geral de 22 de maio de 1968. Mas saí da cidade, de carro e com dificuldade (era difícil encontrar gasolina), antes da manifestação favorável a De Gaulle, que foi em 30 de maio. Sei disso porque sei onde estava e com quem quando me disseram que a manifestação do dia 30 tinha acontecido, promovida (fato doloroso) por um dos meus ídolos literários, André Malraux. Depois disso, nada até o fim de agosto de 1968: no dia em que os tanques soviéticos entraram em Praga, estava no barzinho do porto de Panarea, na Sicília, onde, naquele ano, eu passava minhas férias de verão (que eram também uma espécie de lua-de-mel). Alguns grandes eventos da "História" me permitem datar minhas pequenas histórias. Reciprocamente, há datas de grandes eventos das quais me lembro porque estão ligadas a momentos cruciais de minha pequena história. Tudo bem, eu uso meu teatro íntimo para me lembrar das datas dos grandes eventos e, reciprocamente, sirvo-me dos grandes eventos para me lembrar de algumas datas de minha vida. Mas qual é a diferença e qual a relação entre minhas histórias e "A História"? Poderíamos dizer assim: os eventos da "História" são aqueles que interferem na vida de

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Uma interessante reflexão entre A História e as nossas pequenas histórias do cotidiano.

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  • As nossas histrias e "A Histria"

    CONTARDO CALLIGARIS

    "A Histria" abstrao: as nossas pequenas histrias concretas so seu verdadeiro

    tecido

    ASSISTI A "Bobby", de Emilio Estevez, que acaba de estrear. O filme conta o dia da morte de Robert F. Kennedy a partir das pequenas histrias de quem, por uma razo ou outra, estava, naquelas horas, no Hotel Ambassador de Los Angeles (que foi o lugar do atentado). uma ocasio imperdvel e tocante para pensar um pouco sobre a relao entre "A Histria" e nossas pequenas histrias. Por exemplo, o assassinato de John F. Kennedy, em novembro de 1963, em Dallas, Texas, foi numa sexta-feira, por volta do meio-dia. Sei disso porque lembro que eu estava em Milo, na casa dos meus pais, e ia sair com meu melhor amigo; a notcia chegou na hora do jantar. Logo, o grupinho poltico ao qual eu e meu amigo pertencamos (o Crculo Piero Gobetti) convocou uma reunio de urgncia (no retrospecto, a urgncia parece engraada). Redigimos uma declarao "oficial", de cujo teor eu me esqueci totalmente, mas que foi impressa em cartaz no dia seguinte. Passei a noite de sbado com meu amigo, colando cartazes pelas ruas, no frio. Como o cartaz no era autorizado, fomos presos, na madrugada. a melhor lembrana que tenho de meu amigo do peito daqueles dias. Eu tambm me lembro do exato momento em que aprendi que Martin Luther King tinha sido assassinado, em Memphis, Tennessee, no comeo de abril de 1968: estava sendo apresentado a meus sogros, em Houston, Texas. Do dia do assassinato de Robert Kennedy, em junho de 1968, no me lembro. Provavelmente no est ligado a nenhum pequeno evento de minha prpria histria. Estava em Paris no dia da greve geral de 22 de maio de 1968. Mas sa da cidade, de carro e com dificuldade (era difcil encontrar gasolina), antes da manifestao favorvel a De Gaulle, que foi em 30 de maio. Sei disso porque sei onde estava e com quem quando me disseram que a manifestao do dia 30 tinha acontecido, promovida (fato doloroso) por um dos meus dolos literrios, Andr Malraux. Depois disso, nada at o fim de agosto de 1968: no dia em que os tanques soviticos entraram em Praga, estava no barzinho do porto de Panarea, na Siclia, onde, naquele ano, eu passava minhas frias de vero (que eram tambm uma espcie de lua-de-mel). Alguns grandes eventos da "Histria" me permitem datar minhas pequenas histrias. Reciprocamente, h datas de grandes eventos das quais me lembro porque esto ligadas a momentos cruciais de minha pequena histria. Tudo bem, eu uso meu teatro ntimo para me lembrar das datas dos grandes eventos e, reciprocamente, sirvo-me dos grandes eventos para me lembrar de algumas datas de minha vida. Mas qual a diferena e qual a relao entre minhas histrias e "A Histria"? Poderamos dizer assim: os eventos da "Histria" so aqueles que interferem na vida de

  • muitos, enquanto nossas histrias s concernem a ns e a um nmero restrito de prximos. Agora, por mais que sonhemos, s vezes, com o progresso da razo, o fim da luta de classe ou a marcha providencial para o juzo final, "A Histria" no tem dinmica prpria. Ela s a resultante das infinitas pequenas histrias da gente. Sirhan Sirhan, o assassino de Robert Kennedy, disse, na poca, que ele se sentia compelido a agir pela "Histria": Robert Kennedy tinha apoiado Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967, e o assassinato aconteceu no aniversrio do comeo da guerra. Por outro lado, Sirhan era um sujeito desequilibrado e influencivel. Sem os percalos de sua pequena histria pessoal, ele nunca teria cometido o ato que o propulsou para o palco da "Histria". Alm disso, "A Histria" no tem interesse intrnseco. Ela s vale porque, de uma maneira ou de outra, ela mexe com nossas pequenas histrias. "A Histria" pode dizer, por exemplo, que, se Robert Kennedy no tivesse sido assassinado, Nixon no teria sido eleito e a guerra do Vietn teria terminado mais cedo. provvel. Mas dizer que "a guerra do Vietn teria terminado mais cedo" uma abstrao. O que importa que Joe, Jack, Ho, Nguyen etc. teriam ficado em casa, teriam amado, criado seus filhos e por a vai - isso o que importa. Quando contamos "A Histria", esquecemos que ela no nada se no uma abstrao de histrias concretas. E, quando pensamos nas pequenas histrias, inclusive nas nossas, esquecemos que elas so o verdadeiro e nico tecido da "Histria".