A história de Jip - Katherine Paterson

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A História de Jip Katherine Paterson

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A História de Jip

Katherine Paterson

Katherine Paterson mora numa pequena cidade do Estado do Vermont.

Conhece bem a história da região, que tem estudado infatigavelmente e que

serve de moldura a vários romances seus. As suas obras foram traduzidas

em cerca de vinte línguas e distinguidas com numerosos prémios literários.

Se Jip, cujas aventuras os leitores irão descobrir, é uma personagem de

romance, Put Nelson existiu realmente. Com efeito, na segunda metade do

século XIX, há notícia de um homem do Estado do Vermont que vivia numa

jaula, na quinta dos pobres em Hartford. Gostava de cantar para as crianças

e repetia indefinidamente a mesma ária. A sua história figura nos arquivos

da Vermont Historical Society e da Vermont State Library, onde a autora a

encontrou.

A minha vida começou na tarde de 7 de Junho de 1947, quando caí de uma

carroça que passava na West Hill Road e ninguém veio à minha procura. Bem, talvez

não tenha razão ao dizer que ela começou naquele dia. Na realidade, começou oito

anos mais tarde, quando o superintendente Flint levou o louco para a quinta dos

pobres.

Capítulo 1 : O pequeno cigano

A velha Berthie foi a primeira a falar dele a Jip.

— Um louco, meu rapaz — disse ela, chegando-se tão perto que ele podia contar-

lhe os pelos do nariz.

— Um louco furioso. — Fungou antes de acrescentar:

— Uns são pobres, como nós, e outros são atrasados mentais. — Virou os olhos

em direção do velho George e de Sheldon Morse. — Mas não fazemos mal a ninguém,

não é? Tem algum cabimento trazer-se um louco para junto de pessoas de bem e

tementes a Deus, só porque elas não tiveram sorte na vida?

Jip meneou a cabeça com ar grave. Nunca contradizia Berthie. Tentara fazê-lo

uma vez e isso tinha-se saldado por uma valente bofetada, que lhe tirara o desejo de

repetir a proeza. Aliás, também ele se perguntava o que poderia significar a chegada

daquele louco à quinta.

— Deve ser uma questão de dinheiro — continuou Berthie. — Ficaria muito caro à

cidade enviá-lo para o asilo.

O superintendente dos pobres tinha vindo à quinta alguns dias antes. Sólido e

imponente, o Sr. Flint olhava para quase toda a gente do alto da sua grandeza. Pela

bela sobrecasaca e pelo chapéu alto, via-se de imediato que se tratava de uma

pessoa importante. Dizia-se que tinha muito dinheiro. Era ele quem designava os

pobres que iam trabalhar nos campos e, sempre que os visitava, esperava

manifestamente que estes lhe expressassem a sua gratidão.

Naquela manhã do início de abril, conduzira o atrelado ao longo dos caminhos

lamacentos, sem parar de gritar impropérios à sua pobre égua, que chicoteava

encarniçadamente. Os habitantes da quinta, respeitosamente reunidos no pátio para

o acolherem, tinham ouvido o rosário de insultos bem pouco cristãos com que ele

mimoseara o pobre animal. Talvez o superintendente estivesse acima das leis a que o

comum dos mortais deve obedecer...

De repente, a roda esquerda traseira da carruagem afundou-se num sulco, tendo

ficado atolada.

— Jip, Sheldon, ide depressa ajudar o Sr. Flint — gritou Otis Lyman, o responsável

pela quinta.

Jip levantou-se de imediato e pegou na mão robusta de Sheldon.

— Anda comigo — disse-lhe. — Vamos soltar a roda do Sr. Flint. Eu e tu, está

bem?

— Sim, Jip, está bem — concordou Sheldon, sempre disposto a ajudar, embora

tivesse alguma dificuldade de compreender o que lhe pediam.

O superintendente parou de praguejar quando ambos se aproximaram.

— Bom dia, Sr. Flint. Se não se importa, faça o favor de descer — disse Jip com

um tom cheio de respeito, enquanto se perguntava a si próprio como é que aquele

homem tão gordo não percebia que com o peso dele a roda estava a enterrar-se cada

vez mais. O superintendente lançou a Jip um olhar de desconfiança e depois, com um

trejeito de contrariedade dos lábios, saltou para terra, evitando a poça maior.

Lançou as rédeas a Jip, que as agarrou, e dirigiu-se a grandes passadas para a

quinta.

— Bem — disse Jip, quando ele já estava demasiado longe para o ouvir. —

Sheldon, vais primeiro ajudar-me a acalmar este pobre animal. O Sr. Flint deixou-o

quase louco com os gritos e as chicotadas.

Aproximou-se da égua e pôs-se a falar-lhe docemente. Em seguida, acariciou-lhe

o pescoço e ela deixou-se acariciar, limitando-se a bater um pouco com os cascos no

chão lamacento.

— Assim está melhor — prosseguiu Jip em voz baixa. — Agora, Sheldon, apoias o

teu ombro contra a roda e, quando eu te disser, vais fazer muita força.

Sheldon, com um largo sorriso, abanou a cabeça com um ar entendido.

— Sou muito forte — declarou com orgulho.

— És muito forte, é verdade. Não és lá muito esperto, mas forte, sim. Sem ti, de

certeza que eu não podia fazer nada. Só sirvo para falar com este pobre animal, mas

és tu que vais fazer o verdadeiro trabalho e desatolar a carruagem do

superintendente.

— Depois, tenho a certeza de que o Sr. Flint vai dizer-me: “Obrigado, Sheldon, és

bom rapaz.”

— Talvez sim, talvez não, sabes? De qualquer maneira, é preciso tirarmos a

carruagem dali. Vamos lá.

Agora que já não lhe batiam nem a injuriavam, a égua puxou um bom bocado,

enquanto Sheldon empurrava, e ambos conseguiram, assim, desatolar a roda.

— Bravo! — exclamou Jip, acariciando o pescoço da égua, húmido de suor. —

Vocês foram formidáveis. Mas sabes, Sheldon, tenho de lhe fazer umas festas mais,

porque ela estava cheia de medo.

— Claro, Jip, eu compreendo.

Conduziram o atrelado até ao pátio da quinta e Jip prendeu as rédeas a um dos

toros da vedação. O Sr. Flint não lhes dirigiu a menor palavra de agradecimento. Nem

pareceu sequer aperceber-se da presença deles. Discutia acesamente com o

responsável pela quinta, que não parecia nada de acordo com ele, e cujo nariz gordo

e vermelho reluzia mais do que o habitual. A Sra. Lyman começou a afastar toda a

gente:

— Vá, entrem. Vocês também, Sheldon e Jip. O que estes senhores têm a dizer

um ao outro não nos diz respeito. O Sr. Flint está a falar de negócios com o Sr. Lyman,

não connosco. — Cacarejava como uma galinha, agitando os braços.

— Entrem em casa, não incomodem estes senhores.

O que fazer senão obedecer-lhe? Eram sete a tentarem sobreviver, tal como

pintainhos à procura da menor migalha de alimento. Quatro tinham sido expedidos

para a quinta porque eram velhos e não havia ninguém que tratasse deles: Berthie,

Joe, Willis e Throsina, que quase não falava. Dois eram simples de espírito, Sheldon,

que devia ter trinta anos, e George, de que pouco se sabia, porque também não dizia

quase nada.

E, finalmente, havia Jip. À sua chegada, depois de lhe ter examinado os dentes, o

Sr. Lyman declarou que ele deveria ter uns dois ou três anos. Caíra de uma carroça

que passava a grande velocidade. “Uma velocidade anormal”, tinham precisado

aqueles que a viram passar. E foi numa curva que o garoto caíra e ficara para trás.

— Depois, ninguém se preocupou em vir à tua procura — repetia por vezes a Sra.

Lyman com ar indiferente.

— E eu não lhe disse, naquela altura, quem era? — voltava Jip a perguntar. Ele

calculava que, com três anos ou quase, já devia ser capaz de dizer como se chamava.

— Não se percebia nada do que tu dizias. E quando não falavas, davas gritos

terríveis. Talvez fosses cigano. Ou então bateste com a cabeça quando caíste e

ficaste sem saber o que dizias. Não penso que sejas pobre de espírito como o

Sheldon, mas, enfim, se calhar não és lá muito escorreito.

E depois deste belo discurso, muitas vezes repetido, a Sra. Lyman batia na fronte

com um ar entendido.

Mas, na realidade, Jip estava longe de ser tolo e punha-se várias questões.

Trabalhava duro na quinta, onde ele e Sheldon eram os únicos capazes de se ocupar

dos animais e dos campos. E, enquanto deitava milho aos pintos, por exemplo,

continuava a perguntar-se como era possível que não tivessem vindo à procura dele...

Imaginemos um casal com seis filhos. À noite, se vissem que só estavam cinco, e

mesmo com pressa de partirem para o Oeste, de cujas terras férteis tanto se falava,

não sentiriam os pais curiosidade de saber o que teria acontecido ao sexto? Até um

ganso é capaz de contar os filhotes e de perceber que uma raposa apanhou um

durante a noite!...

Será que mesmo um cigano sem coração, que rouba os filhos dos outros, poderá

ser completamente indiferente a um dos seus? Claro que não.

Jip tinha cabelos negros e encaracolados e orelhas grandes. Sheldon dizia-lhe que

era bom assim, com orelhas como as dele podia-se ter a certeza de ouvir tudo. Jip, por

sua vez, achava que elas se pareciam com as asas de um cântaro. No verão, a pele

escurecia com o sol. No inverno tornava-se macilenta. Mas era talvez por não se lavar

o suficiente. Tal como os gatos, detestava a água, e a vista de uma bacia fumegante

dava-lhe vontade de fugir. Quando era pequeno, a Sra. Lyman tinha-o agarrado pelo

cachaço para o esfregar da cabeça aos pés. Mas agora não fazia isso. Ele já estava

muito crescido. Sim, no fim de contas talvez fosse um cigano. Ou uma criança

roubada, cujos pais ainda choravam o seu desaparecimento.

Naquele dia, o pastor Avery passava de carruagem pela West Hill Road. Tinha-se

apeado ao ver a criança e gritado: — Vá, xô, vai para casa! — como se falasse a um

animal perdido do rebanho. Mas, ao perceber que não dava resultado, e depois de ter

discutido o assunto com a mulher, agarrara no garoto em pranto como se fosse um

embrulho e levara-o a casa do reverendo Goodrich — que era pai de treze filhos e se

esforçava por sustentar a família com um salário de miséria.

Que outra solução restava aos Goodrich senão dirigirem-se às autoridades, na

ocorrência o Sr. Flint, o superintendente dos pobres, encarregado de livrar a cidade

dos mendigos e dos vagabundos, assim como de expedir os marginais e os doentes

mentais para uma quinta afastada? Assim, eles não perturbariam nem a vista nem o

olfato dos bons cidadãos tementes a Deus e respeitadores das leis — e, além do mais,

isso ficava-lhes quase de graça, o que não era de desprezar.

De início, o Sr. Lyman protestou: a quinta não era nenhum orfanato, fez questão

de sublinhar. O Sr. Flint propôs-lhe então descontar do aluguer que a cidade lhe

cobrava o dinheiro de uma vaga num pensionato afastado ou de uma pensão numa

família dos arredores. O Sr. Lyman aceitou o rapaz de imediato.

Vários anos depois, era o primeiro a gabar-se de ter feito uma boa escolha.

Uma vez, tentara mandar Jip para a escola, mas os outros alunos queixaram-se

de que ele cheirava mal e que não conseguia aprender a ler. Resolveu então colocá-lo

— fazendo-se pagar, bem entendido — num outro caseiro do lugar, e, quando a

mulher objetou timidamente que ele era ainda muito pequeno, retorquiu-lhe:

— Sra. Lyman, quando se come tanto como ele, tem de se ganhar o pão.

Nada havia a responder e o próprio Jip sabia-o bem. Devorava tudo o que lhe

chegava à mão, embora isso não o impedisse de estar magro como um espeto.

— Quem há de querê-lo? — insistiu, no entanto, a Sra. Lyman.

— Slaytor, o nosso vizinho. Vai gritar com ele, bater-lhe como bate no cão, mas o

que se pode fazer, hã? Precisamos de dinheiro. — O tom era sem apelo.

É verdade que mesmo os animais tinham medo de Slaytor. A recordação mais

marcante que Jip conservou de alguns meses passados em casa do patrão foi a de ser

agarrado por uma orelha e apanhar uma série de pontapés, enquanto o homem

berrava: — Cretino, qualquer idiota varria este celeiro melhor do que tu! — Depois da

sova, e quando Jip, a chorar, voltava a pegar na vassoura, o cão vinha roçar-se-lhe

nas pernas para lhe manifestar a sua simpatia. Felizmente, ao fim de um certo tempo,

Slaytor casou-se com uma robusta viúva da cidade vizinha e mandou para casa o seu

bode expiatório.

E, verdade seja dita, ao voltar para a quinta dos pobres, Jip teve a impressão de

regressar a casa. No fim de contas, era o único lar que alguma vez conhecera. Amava

as verdes pradarias que o rodeavam. Gostava de sentir o sopro da brisa primaveril e

de olhar as colinas ao longe, onde se percebiam as manchas cinzentas das pedreiras

de granito. Dizia para consigo que um dia, quando fosse adulto, iria trabalhar para lá.

Partiria pedras e poria pólvora negra nas cavidades, para provocar a explosão dos

enormes blocos de pedra.

Quando regressou a casa dos Lyman, estes acharam-no mudado e perguntaram-

se, sem o dizer, como é que Slaytor tinha podido deixá-lo. Jip, não se podia negar,

tinha maneiras cativantes, tanto com os animais como com os outros pensionistas da

quinta. Pouco mais alto era do que o trigo de verão, e já as ovelhas, quando o viam ao

fundo do prado, corriam ao encontro dele, com os seus modos um pouco

desajeitados. Ainda não tinha os dentes definitivos e já sabia ordenhar a velha Bonnie

como ninguém até então. O leite corria abundante debaixo dos seus pequenos dedos

hábeis, enquanto as tentativas desajeitadas da Sra. Lyman não obtinham quase nada.

E, naquele ano, em lugar do habitual bezerro nado-morto, a vaca teve um, bem vivo e

tão robusto, que o caseiro conseguiu um bom preço por ele na feira, para comprar

tabaco e uma garrafa de álcool, que se apressou a guardar na cave, junto da reserva

de cidra caseira.

Jip não se lamentava pela vida que tinha. O que podia ele adivinhar dos

pensamentos secretos do patrão? É difícil de dizer. Era uma criança normal, com as

curiosidades próprias da idade. E, naquele momento, bem gostaria de estar no lugar

da Sra. Lyman, que colava o ouvido à porta para procurar ouvir o que o

superintendente poderia estar a dizer a propósito do louco.

— Jip!

Teve um sobressalto. A Sra. Lyman fazia-lhe sinal com a cabeça para se

aproximar. Afastou-se do grupo de pensionistas, encolhidos à volta do fogão, e dirigiu-

se para ela, contornando a grande mesa da cozinha.

— O Sr. Lyman vai precisar de ti — disse-lhe. — Mas primeiro, vai depressa à

bomba e passa um lenço na cara. Aqui, temos de andar limpos, e hoje que o

superintendente veio fazer-nos uma visita, não te vais apresentar diante dele com o

focinho tão sujo como o de uma porca. Vai, despacha-te!

Jip recuou, para sair pela porta traseira. Ia abri-la quando a Sra. Lyman se

apressou a acrescentar:

— Leva o Sheldon contigo e lava-o também. Não te esqueças de lhe limpar as

orelhas, ouviste?

Jip foi buscar o rapaz pela mão, e ambos se dirigiram para a bomba.

— Porque é que o Sr. Flint quer ver-me? — perguntou Sheldon. — Não me portei

mal.

— Baixa-te, preciso de te esfregar atrás das orelhas.

— Não fiz nada de mal, pois não, Jip?

— Não, não. Julgo apenas que vão dar-nos qualquer trabalho para fazer.

— Aos dois? A nós dois juntos?

— Parece que sim. Bem, agora põe-te direito. Estás bonito como uma vaca que

enfeitaram para levar à feira.

Sheldon inquietou-se:

— Estás a brincar, Jip?

— Claro. Agora também tenho de me lavar.

Quando acabaram, dirigiram-se à Sra. Lyman para uma rápida inspeção. Sheldon

sorria abertamente, exibindo os seus dentes amarelos meio-partidos. Foram em

seguida para o pátio grande. De imediato, os dois homens viraram-se para eles.

— Uma jaula — disse o Sr. Lyman. — Vai ser preciso uma jaula, Jip.

Este bem teria gostado de saber a razão, mas coibiu-se de perguntar. O

superintendente inspirava-lhe um certo medo.

— De que tamanho? — limitou-se a perguntar.

— Oh! — respondeu o Sr. Flint. — Dois metros por dois, aproximadamente. Deve

chegar. Sabes medir?

— Sim, senhor.

— Mas tem de ser sólida. Muito, muito sólida.

Olhou com ar de dúvida para o rapazinho, como a avaliar a sua força.

— Talvez fosse melhor confiar o trabalho a outra pessoa, Sr. Lyman — disse o

superintendente.

— O quê? E pagar-lhe? Já vai ser preciso comprar o material necessário, e não

será pouca coisa! — exclamou o caseiro.

— Bem, bem, mas o senhor compreende, é preciso que seja à prova de tudo.

Arranje dobradiças metálicas e uma fechadura.

— Não disponho de verba suficiente para uma coisa tão dispendiosa e...

— Se tivéssemos de mandar o seu novo pensionista para o asilo, Sr. Lyman,

deixaria lá toda a sua subvenção. E esteja certo, depois da próxima reunião do

conselho municipal, era o senhor quem ficaria desempregado.

O caseiro baixou a cabeça, vencido.

— Eu e o miúdo havemos de conseguir — disse.

— O Sheldon vai ajudar, não é verdade, Jip? Eu vou ajudar.

— Claro, Sheldon, nunca nos desenvencilhávamos sem ti — aquiesceu Jip

docemente.

— Hum...

O superintendente foi desprender o cavalo e, com muita atenção para evitar as

maiores poças de lama e não sujar as suas belas botas, levou o atrelado para a

estrada.

No dia seguinte, de tarde, depois do Sr. Lyman reunir o número suficiente de

pranchas e de paus de madeira de ácer e de comprar o que era preciso na loja de

ferragens da cidade, Jip e Sheldon começaram a construir a jaula destinada ao louco.

Capítulo 2 : O louco

Jip instalou a enxerga arranjada pelo Sr. Lyman, sentou-se nela e retirou a tábua

que servia de porta. Queria saber o que se sentia quando se era condenado a viver

prisioneiro. Num canto, havia um bacio. Tinha previsto uma pequena abertura por

onde o retirar, sem ter de correr o grande ferrolho, e introduzir os alimentos. Olhou

em volta, respirando o odor agradável da madeira cortada de fresco. Ele e Sheldon

tinham feito um bom trabalho. A jaula estava limpa e, há que reconhecer, confortável.

Começou a imaginar que não devia ser desagradável ter assim um canto,

sobretudo durante a noite. Seria bom para ele, que dormia no meio dos outros, e que,

durante tanto tempo, tinha tido de partilhar a cama com Sheldon, que se agitava

muito e falava durante o sono. Por mais de uma vez, dera por si deitado no chão,

empurrado pelo seu irrequieto companheiro. Um dia, felizmente, conseguiu apoderar-

-se do catre vizinho, porque o velho Rutherford, que o ocupava, tinha morrido. Atirou-

se para cima dele, sem mesmo dar tempo à Sra. Lyman de lavar o cobertor

remendado que lá estava.

Jip estendeu-se. Através do tecido das calças, a palha fresca picava-lhe as coxas

e a barriga das pernas, mas pelo menos não cheirava a mofo como a sua miserável

enxerga. Examinou as tábuas que Sheldon tinha pregado na parte de cima da jaula,

seguindo cuidadosamente as suas instruções — apesar dos resmungos do Sr. Lyman,

que protestava que os pregos eram caros, no mínimo um penny cada. Mas o

superintendente queria tudo sólido, muito sólido mesmo.

Dos dois lados, havia também tábuas entrecruzadas, o que transmitia, por

estranho que pareça, um sentimento de proteção. Uma impressão de isolamento não

desagradável de todo. Jip não se lembrava de ter estado alguma vez verdadeiramente

sozinho. Em casa de Slayton, tinha tido de dormir no mesmo quarto do caseiro. Não

era capaz de exprimir claramente a necessidade que sentia de ter um pouco de

privacidade, um espaço só dele, mesmo que fosse pequeno, onde ninguém, nem

mesmo o seu companheiro Sheldon ou alguns dos seus animais preferidos, tivesse o

direito de penetrar.

— Jip! Jip!

Deu um suspiro e saiu da jaula contrariado, para responder ao apelo frenético da

Sra. Lyman. Se pudessem existir paredes suficientemente espessas para abafarem os

seus gritos estridentes...

Trouxeram o louco durante a tarde. Uma vez mais, a tremer por causa do vento

fresco daquele mês de abril, os habitantes da quinta juntaram-se para ver a

carruagem que vinha pela estrada na direção deles. Não pediram ajuda a Jip ou a

Sheldon. Não, já não se tratava de uma pequena carruagem puxada por uma pequena

égua. Dois grandes cavalos compunham o atrelado e, para além do cocheiro e do

superintendente, havia quatro homens robustos que vigiavam de perto uma silhueta

prostrada, cujo rosto era visível e que soltava gritos espantosos.

— Jesus! — exclamou o velho Joe, que, no entanto, era meio-surdo. Sheldon

tapou os ouvidos com as duas mãos e fechou os olhos, apavorado com aquele alarido.

Quando a carruagem parou no pátio, Jip viu um homem amarrado da cabeça aos

pés, com os joelhos contra o peito e as mãos e os pulsos tão apertados que a grossa

corda lhe tinha cortado a pele. Enquanto gritava desesperado, o infeliz tentava

morder o cânhamo rugoso com os seus dentes amarelos. Tinha cabelos incrivelmente

longos, que faziam lembrar os de uma mulher, tão cinzentos como a barba e

igualmente sujos de baba e escarros.

Sheldon lançou-lhe um olhar e depois, transtornado com aquele espetáculo,

agarrou-se a Jip, que procurou tranquilizá-lo, murmurando-lhe:

— Não tenhas medo, eu não deixo que te façam mal.

Se havia promessa impossível de cumprir, era bem aquela, porque o monstro

parecia estar decidido a despedaçar as cordas e a lançar-se sobre todos eles.

Os quatro guardas saltaram para terra, gritando ordens contraditórias. Mas o

superintendente gritou mais do que eles, mais do que o louco: — Metam-no na jaula!

— Tentaram então, dois de cada vez, dominar o infeliz, fazendo-o rolar nos

braços dos outros dois. Como não foram capazes, pediram socorro a Jip, que teve de

se libertar dos braços de Sheldon. Finalmente, conseguiram, ora levantar ora

empurrar o seu fardo, que não parava de se contorcer e de gemer.

A Sra. Lyman correu a abrir a porta da jaula onde meteram o louco, não sem

antes, no meio da confusão, o terem calcado. O Sr. Flint apressou-se a fechá-lo à

chave e depois entregou-a ao Sr. Lyman, que só reparou nela ao fim de alguns

segundos, porque conservava os olhos fixos no seu novo pensionista — olhos fixos e

desvairados.

— Estamos entendidos, hã? — disse-lhe o superintendente, sem se preocupar

que o caseiro estivesse a tremer como varas verdes. — Vigie-o bem; considero-o

responsável por tudo o que possa acontecer-lhe.

Ninguém se demorou mais. Nem mesmo para beber cidra caseira, que a Sra.

Lyman tinha preparado. Toda a escolta se apressou a subir para a carruagem, e os

cavalos partiram a galope em direção à estrada lamacenta.

— Se não querem, mais fica — acabou por articular a Sra. Lyman, engolindo um

copo de cidra e, depois, um segundo. Estendeu outro ao marido, que engoliu quatro

seguidos, enquanto todos os pensionistas olhavam para eles, contentando-se com

passar a língua pelos lábios secos.

Enfim, todos exceto Jip, que, aproveitando o facto de não estarem a prestar-lhe

atenção, pegou numa faca e voltou ao recanto, ao lado do celeiro, para onde tinham

empurrado a jaula. O louco já não gritava, gemia agora sem cessar.

— Chiu, chiu — disse-lhe Jip. — Chiu, meu pobre velho. Já ninguém vai fazer-lhe

mal.

Os gemidos pararam e o infeliz fixou os olhos injetados de sangue na silhueta do

rapazinho ajoelhado contra as tábuas entrecruzadas.

— Não se importa de se pôr de lado? — pediu Jip. — Ou de se aproximar mais de

mim para eu poder cortar-lhe as cordas?

Falava com o tom que sempre usava para tranquilizar Sheldon e George, ou para

acalmar os animais que tinha de tratar. Milagrosamente, o louco pareceu

compreender. À custa de um imenso esforço, conseguiu colocar-se muito perto do

tabique.

O importante era cortar as amarras sem dar ao idoso a menor possibilidade de se

apoderar da faca. O suor corria pela fronte de Jip, à medida que este fazia deslizar a

lâmina entre duas tábuas para atingir a parte mais espessa da corda. Enquanto a faca

ia e vinha, não parava de falar docemente:

— Assim, assim está melhor... isso, está quase. Mais um minuto ou dois e vou

libertar-lhe as pernas.

Quando terminou, o prisioneiro deu um grito de dor, mexendo os membros

entorpecidos.

— Bem, agora precisa de se virar do outro lado, isso, assim, muito hem, e

estender-me as mãos. Vou desprender-lhe os pulsos.

E Jip mostrou o gesto que era preciso fazer.

— Isso, tente passá-las entre as tábuas. Muito bem.

E, enquanto começava a cortar a corda, acrescentou:

— Cuidado, não se mexa. Por nada deste mundo queria magoá-lo.

O infeliz gemeu um pouco, mas parecia compreender cada vez melhor o que se

lhe dizia. Jip sorriu:

— Olhe, está quase... Vai sentir-se melhor quando deixar de ter a corda a magoá-

lo. Já está!

O louco recolheu as mãos, examinou os ferimentos e esfregou os pulsos, um

contra o outro.

— E se eu fosse buscar-lhe um pouco de bálsamo para aplicar, hã? Tenho a

certeza de que ia fazer-lhe bem.

Um aceno de cabeça serviu de resposta. Em seguida, Jip teve um sobressalto ao

ver aparecer entre os lábios gretados duas fieiras de grandes dentes amarelos. Levou

alguns segundos a compreender. O homem sorria! Retribuiu-lhe o sorriso, primeiro

com timidez, depois mais abertamente.

— Então estamos entendidos. Vou buscar o bálsamo. Mas, entretanto, prometa

que vai ficar tranquilo. Não me demoro.

— Olha lá, o que andas a fazer com a minha faca? — perguntou a Sra. Lyman

desconfiada. Estava um pouco embriagada, depois dos seus dois copos de cidra

bebidos de um trago, ela que não tinha o hábito de beber.

— Bem, disse para comigo que o Sr. Lyman havia de gostar que eu soltasse o

pobre. Estava amarelo como um porco que se leva para o matadouro. Não é humano

tratar-se alguém assim.

— Humano, humano... Não é tão humano assim, aquele doido.

— Queria que me arranjasse um pouco de bálsamo. A corda esfolou-lhe tanto os

pulsos que ele está a sangrar.

Ela foi buscar o que Jip lhe pedia à prateleira reservada aos medicamentos —

onde se encontrava em grande destaque uma garrafa de álcool. De costas voltadas,

perguntou:

— E não tens medo de semelhante criatura?

O miúdo encolheu os ombros. O que poderia responder? Talvez sim, na verdade,

ou talvez não. Tudo o que sabia é que precisava de libertar das cordas o prisioneiro e

de lhe cuidar das chagas.

— Julgo que ele não vai querer-me mal por lhe tratar das feridas — limitou-se a

responder.

A Sra. Lyman virou-se bruscamente e encarou-o, antes de prosseguir num tom

severo:

— Não te esqueças de que tens trabalho, hã? Não julgues que ele vai aparecer

feito, só porque arranjaste um novo queridinho.

— Claro que não — suspirou.

Tinha sido assim que, pouco a pouco, o encarregaram de todos os animais da

quinta, aos quais chamavam os queridinhos dele. Deste modo, o Sr. Lyman parecia

muito bondoso quando o obrigava a tratar deles. Eram os seus queridinhos, não é

verdade?... E, para aumentar o rol, em certas ocasiões, alguns pensionistas doentes

também passavam a sê-lo.

Quando empurrou a porta da pequena divisão onde se encontrava a jaula, ficou

chocado pelo silêncio que ali reinava. Lamentou por um momento não ter limpo na

véspera as paredes cobertas de fuligem, depois de ter deitado fora todas as velharias

ali amontoadas há longos anos. Era tão sombria aquela miserável arrecadação... Uma

minúscula janela virada a norte deixava entrar um fio de luz.

A jaula ocupava metade do espaço. Não havia nenhum móvel. Que lugar sinistro

para se viver... O louco tinha-se estendido na enxerga. Era muito pequena para ele e

os pés ficavam-lhe de fora. Olhava para as tábuas fixadas na parte de cima da jaula.

— Como é que vim aqui parar? — perguntou ele.

— O quê?

Jip teria ficado menos surpreendido se a velha Bonnie, entre dois mugidos, se

tivesse posto a recitar-lhe versículos da Bíblia.

— Como é que vim parar a esta jaula?

A voz era clara, a entoação normal, sem nada que fizesse lembrar os gritos de há

pouco.

— Trouxeram-no até aqui de carruagem, a carruagem do Sr. Flint.

— O Sr. Flint, superintendente dos pobres?

— Sim, senhor.

— E o Sr. Flint faz tenções de me guardar aqui dentro como se eu fosse um

animal feroz?

Jip baixou a cabeça, envergonhado por ter sido um daqueles que ajudaram a

meter ali o prisioneiro.

— O senhor dava gritos terríveis. Julgo que o que quiseram foi protegê-lo.

O homem suspirou profundamente e levantou-se para se sentar em frente dele.

— Trouxe-lhe bálsamo para os pulsos. A corda esfolou-os de verdade. Se fizesse

o favor de passar as mãos por entre as pranchas, eu podia friccioná-las. Não acha que

lhe ia fazer bem?

Esforçava-se por falar no tom que se utiliza quando, com todo o respeito, se

dirige a palavra a uma pessoa mais velha para lhe pedir a opinião.

— És um bom rapaz. Como te chamas?

— Jip, senhor.

— Os meus amigos chamavam-me Put. É a abreviatura de Putnam. Mas, hoje, um

nome de verdade já não condiz comigo, não achas?

Jip sorriu.

— Gosto de Put.

— E Jip? É o diminutivo de quê?

— De nada. Foi o Sr. Lyman que decidiu chamar-me assim. Não se sabe de onde

venho. Caí de uma carroça que ia em direção ao Oeste. As pessoas dizem que talvez

fosse uma carroça de ciganos. Estenda bem a mão direita para eu lhe pôr este

bálsamo muito devagarinho. Depois fazemos o mesmo à mão esquerda.

— Obrigado, meu rapaz. Então isto aqui é uma quinta? Uma quinta que pertence

à cidade?

— Sim, senhor. Na verdade, se o trouxeram para aqui foi, julgo eu, para evitarem

mandá-lo para o asilo.

O homem não fez qualquer comentário. Jip coibiu-se de acrescentar que aquela

maneira de se verem livres dele metendo-o numa jaula ficava, de facto, muito

económica à comunidade...

— Pergunto-me — retomou o prisioneiro — se não me deixariam tomar um

banho. Acrescentou com um ligeiro sorriso: — E cortar o cabelo e fazer a barba.

— Não creio, não — disse Jip, evitando olhá-lo nos olhos. — Estão todos ainda um

tanto nervosos, mal fez uma hora que chegou. Talvez quando estiver mais

ambientado. Assim está melhor?

— Sim, sim. És mesmo um bom rapaz. Podes prestar-me outro serviço? Trazer-

-me um lenço molhado para eu passar na cara?

A semana não tinha ainda terminado e Jip tinha convencido o Sr. Lyman a pôr um

recipiente cheio de água ao lado da jaula, para Put poder lavar-se. Sem se atrever a

deixá-lo barbear-se, cortou-lhe os cabelos e uma parte da barba com uma tesoura.

— Gostas de música, meu rapaz?

— Não sei. Não conheço grande coisa, à parte os hinos na igreja ao domingo, que

a maior parte das vezes são maçadores.

O homem pôs-se então a cantar, com uma voz sonora e vibrante, que ressoava

como sinos de trenó num dia de neve. E aquela canção, Jip aprendeu-a de cor em

poucos dias, porque Put entoava-a com frequência. Dir-se-ia que nunca se cansava da

ária nem das palavras. O refrão acabava por Tudo ficará bem, tudo ficará bem, e o

rapazinho procurava cantá-la, embora percebesse que desafinava imenso.

Já quase não via Put como um louco.

Uma vez lavado, de roupa limpa e cabelos penteados, era mesmo um homem

bastante bem parecido. Já não tinha aqueles olhos desvairados, injetados de sangue,

do primeiro dia. Dir-se-ia que a sua loucura o tinha abandonado, a ponto de, todas as

noites, Jip sentir o desejo de já não fechar a jaula à chave, de tal modo sofria por ter

de encerrar assim o seu novo amigo. Mas Put punha-o de sobreaviso:

— Não, meu rapaz, não se arrisquem a deixar-me sair. A minha maldita cabeça

pode trair-me, e depois não sei que males seria capaz de fazer.

Assim, Jip, contrariado, dava a volta à chave e ia pendurá-la no armário da

farmácia, por detrás da garrafa de álcool.

Mas, uma noite, sem que nada o tenha feito prever, toda a gente da casa foi

acordada por gritos e pancadas. Jip apressou-se a enfiar as calças e precipitou-se

pelas escadas abaixo, sem mesmo ter tempo de apertar os suspensórios.

— Put! Put! — gritou, tentando fazer-se ouvir, apesar do estrépito. Mas o velho

não lhe prestava nenhuma atenção e atirava-se com toda a força contra as paredes

da jaula, como se quisesse arrancá-las.

— Put! Put! — insistiu Jip. — Ninguém quer fazer-lhe mal. Calma, calma, se

continuar, vai magoar-se.

Como resposta, Put arranhou o rosto, a ponto de o sangue lhe escorrer para a

camisa.

Os Lyman e os pensionistas, todos de pijama ou de camisa de noite, tinham-se

juntado na soleira da porta, demasiado assustados para darem mais um passo. Jip era

o único que ousava aproximar-se da jaula, tendo ainda assim o cuidado de ficar a uma

distância prudente, para não correr o perigo de ser agarrado por uma daquelas mãos

enormes.

— Put, volte a si! — insistiu — Não deixe que os demónios o levem, sou eu, o seu

amigo. Sabe, aquele a quem costuma cantar aquela bonita canção.

E, sentado sobre o pavimento, com os braços em redor dos joelhos, murmurou:

Em breve,

do sofrimento e do mal

estarei liberto.

Tudo ficará bem, tudo ficará bem.

Continuou durante muito tempo, até já não ter voz, talvez mais para se

reconfortar a si próprio do que para acalmar o louco, que gritava cada vez mais, e na

vã esperança de que ainda restasse algo do Put de quem gostava. Talvez este

acabasse por compreender que o seu amigo Jip estava ali e não o abandonaria.

Amanheceu. O velho e a criança, ambos esgotados, mergulharam num sono

pesado.

Foram os gritos da Sra. Lyman que acordaram Jip.

— Anda! — intimou. — Tens muito que fazer, seu preguiçoso, vai para o estábulo

mungir a vaca!

E Jip teve de deixar aquele grande corpo prostrado num canto da jaula, coberto

de sangue, de saliva e pior ainda.

A velha Bonnie acolheu-o, mugindo docemente.

— Eu sei, eu sei, minha Hilda — disse-lhe tristemente. — Estou atrasado e tu não

gostas muito. Mas não tinha vontade de o deixar, compreendes? E depois, deixei-me

dormir.

Puxou o pequeno banco para mais perto da vaca e apoiou a cabeça contra o seu

flanco morno. Por baixo dos seus dedos ágeis, o leite começou a escorrer para o

balde. Voltou a pensar na canção, no seu refrão Tudo ficará bem... e disse para

consigo que era de cortar o coração ter diante de si aquele animal de caça, impossível

de capturar.

Capítulo 3 : Novos pensionistas

Put voltou a si já a tarde ia avançada. Mas agora, toda a gente desconfiava ainda

mais dele. Sheldon agarrava-se ao braço de Jip, suplicando-lhe que não se

aproximasse da jaula. Chorou como uma criança quando este o fez. Não era,

evidentemente, para afligir Sheldon, mas Put... bem, era Put, um amigo como Jip

nunca tinha tido.

Parecia impossível de prever quando iriam desencadear-se aquelas crises

espantosas. E sempre que o idoso era autorizado a sair um pouco da jaula, o desvario

dos Lyman estragava todo o prazer que ele poderia tirar daqueles momentos de

liberdade. Jip era o único capaz de aguentar. Quando veio o bom tempo, levou Put até

à pradaria, para que ele aproveitasse o sol e os primeiros dias da primavera.

Na quinta, nasceram dois cordeiros e, como para acabar definitivamente com a

sua reputação de má reprodutora, Bonnie teve outra cria saudável, desta vez uma

bezerrinha.

Findou abril, chegou o mês de maio, e Put continuava a comportar-se

normalmente. Talvez o seu espírito perturbado se acalmasse à medida que os dias

começavam a ficar mais longos. Cantava e tocava numa espécie de flauta, um

pequeno instrumento de madeira que Jip tinha fabricado, seguindo as suas

indicações. Não confiavam a Put nada de mais cortante do que uma colher.

Encontrava-se bem, no dia em que a viúva Wilkens apareceu, acompanhada

pelos seus três filhos. Quando os viu chegar, Jip sentiu o coração pular de alegria,

porque nunca antes tinha havido na quinta alguém da sua idade. A mais velha, uma

menina, parecia ser do mesmo tamanho dele. O seguinte, um rapazinho, começava

agora a falar. O terceiro, outra menina, ainda mamava.

Berthie contou a toda a gente que o marido da Sra. Wilkens tinha sido o maior

bêbedo da vila. Um dia, durante a última tempestade de neve do inverno, escorregara

quando regressava a casa e morrera de frio. Foram encontrar ao lado dele uma

garrafa de álcool vazia. Ninguém tinha considerado o seu desaparecimento uma

grande perda — “exceto talvez a família”, disse Jip para consigo. E como só deixara

dívidas, aquela ficou a cargo da comunidade, que acabou por enviá-la para a quinta

dos pobres.

Jip, encantado, correu ao encontro dos recém-chegados, mas estacou diante dos

seus olhares gelados. Só o rapazinho esboçou um sorriso.

— Leva os Wilkens para o quarto vazio ao lado do dos cavalheiros — ordenou a

Sra. Lyman, que não tinha por hábito empregar a palavra “cavalheiros” a respeito dos

seus pensionistas.

— Está bem, sigam-me — disse Jip, subindo as escadas.

Chegado lá em cima, voltou-se para observar a lenta subida da família. Lucy, a

mais velha, trazia um grande saco de pano, que batia em cada degrau, enquanto a

mãe segurava o bebé de um lado e puxava o garoto do outro. — Levanta os pés,

Toddy — repetia. — Anda lá, levanta os pés.

Jip desceu um pouco para ajudar Lucy, que continuava a debater-se com o saco,

mas mal pôs a mão na pega, ela desatou a gritar:

— Não toques nisto, é nosso!

— Só queria ajudar — disse surpreendido.

— A tua cara está horrorosamente suja.

Jip não lhe respondeu que a dela não estava melhor. De que teria servido? Ele

sabia muito bem ver quando um animal sofria. Com os humanos não era diferente.

Para que fazê-la sofrer ainda mais?

À noite, à hora de jantar, a viúva e os filhos sentaram-se, apertados uns contra os

outros, junto da Sra. Lyman, na grande mesa da cozinha. O nariz do rapazinho

chegava à beira da mesa. A Sra. Lyman enchia as tigelas de sopa e entregava-as a

cada um deles. Lucy olhou para a sua e fez uma careta, como se estivesse enjoada. A

mãe deu-lhe um ligeiro tabefe, assim como ao irmão e, rápida, murmurou-lhes

qualquer coisa. De má vontade pegaram na colher. Jip não perdeu tempo a ver se

comiam. Só esperou para receber a tigela de Put, que se apressou a levar até à jaula.

— Tome — disse-lhe, passando-a pela pequena abertura. — Pelo menos está

quente...

O idoso cheirou aquela lavagem.

— Ah! — disse. — Mais um dos triunfos culinários da Sra. Lyman.

Quando sorria assim, os dentes não pareciam tão grandes nem tão ameaçadores.

— Chegaram novas pessoas — começou Jip. Sabia que Put contava com ele para

lhe dar as novidades do que se passava lá fora. — A viúva Wilkens e os filhos. Berthie

disse que o pai lhes morreu em março, durante uma tempestade de neve.

— Há pessoas neste mundo-cão que são ainda mais infelizes do que nós —

observou Put.

— Suponho que sim.

Mas esta ideia parecia nova a Jip. Ele nunca se perguntava se era feliz ou infeliz.

Era Jip e pronto. É verdade que sentia compaixão pelo seu novo amigo, louco e tão

pobre. Mas talvez fosse ainda pior ser órfão de um pai bêbedo. Quando veio sentar-se

na cozinha, diante da sua péssima sopa, agora fria, decidiu fazer um esforço para ser

delicado com a difícil Lucy.

Mas ela apressou-se a cochichar à mãe:

— Mamã, diz-lhe que pare de olhar para mim…

Como resposta, a Sra. Wilkens inclinou-se e deu-lhe uma bofetada, por cima da

cabeça do irmão.

— Vê se tens maneiras! — ralhou.

“Sim”, pensou Jip, “há pessoas mais infelizes do que nós.”

Mas, alguns dias mais tarde, sentiu-se verdadeiramente feliz.

Ia à vila! Dirigir-se lá por outro motivo que não o do ofício de domingo na igreja

congregacionista era sempre uma pequena aventura. Gostava muito de observar os

cavalos e os movimentos da rua, de ouvir passar as carruagens e ver as pessoas a

cumprimentar-se. Gostava tanto de ter um boné, para lhe tocar com o dedo e

cumprimentar também aqueles que se cruzavam com ele!

Desde o dia em que Lucy tinha feito aquele reparo a propósito da sujidade do seu

rosto, lavava-o mais vezes com água fria e enxugava-o cuidadosamente com uma das

abas da camisa. Desta vez, examinou de perto as mãos vermelhas e gretadas, e

lavou-as também. Não havia nenhum espelho junto da bomba e não se atreveu a

olhar-se no que estava pendurado por cerca da banca da cozinha. Limitou-

-se a acamar com os dedos os caracóis despenteados. Isso. Assim já não devia estar

tão mal.

— Onde vais?

Também Lucy tinha vindo buscar água.

— Eu e o Sr. Lyman vamos levar a bezerrinha à cidade para a vender. Baixou a

voz: — Preciso de lhe dar uma ajuda. Ele não tem jeito para lidar com os animais.

— Oh...

Jip procurou adivinhar se ela gostaria de os acompanhar. Mas sabia que o Sr.

Lyman nunca havia de permitir. Nem de Sheldon queria saber.

— Não estou para aturar aquele idiota — dizia, quando Jip lhe suplicava que o

levasse com eles, sabendo como Sheldon adorava sair da quinta. Mas é verdade que,

se ele fosse, Jip ver-se-ia obrigado a ocupar-se dele constantemente, para além de

cuidar dos animais.

Na estrada, a lama tinha secado e, se o Sr. Lyman conduzisse bem o cavalo, o

velho Jack, pelo meio dos sulcos mais fundos, o trajeto seria longo. Estava um tempo

esplêndido. Jip sentou-se na parte de trás da carroça e acariciou o pescoço da

bezerra. Falava com ela e, ao mesmo tempo, cantarolava-lhe pequenas canções para

a manter calma. Por um lado, estava triste por a ver partir, mas, por outro, o dinheiro

que ela renderia seria mais do que bem-vindo ao orçamento da quinta. Porque, agora,

era preciso sustentar Put e toda a família Wilkens.

Quando as finanças estavam em baixo, isso refletia-se imediatamente na

qualidade das refeições. Sempre muito frugais, transformavam-se numa série de

caldos cada vez mais transparentes, e toda a gente, de uma ponta a outra da mesa,

se lamentava.

Nos bons velhos tempos, como o Sr. Lyman repetidas vezes lembrava aos seus

pensionistas, os mais robustos de entre eles teriam sido alugados a quem desse mais,

e o seu trabalho ter-se-ia tornado uma verdadeira fonte de renda, muito útil às

finanças da vila. Agora, em contrapartida, eles ficavam caros aos habitantes.

Algumas almas bem-intencionadas tinham-se de facto queixado de que

semelhante sistema se parecia bastante com a escravatura que se praticava nos

estados do Sul. Na sequência disso, decidira-se fazer o contrário e enviar os pobres

para casa daqueles que se propusessem aceitá-los, em troca de uma pequena pensão

que a vila lhes pagaria. Mas as almas piedosas também se compadeceram desta

situação, porque eram referidos casos de maus tratos. E até de pensionistas mortos à

fome. De modo que, por pura caridade cristã, a vila tinha comprado aquela magnífica

quinta para exclusivo benefício dos seus pobres — “repito, para seu exclusivo

benefício”, martelava o Sr. Lyman — e tinha-o encarregado a ele de a fazer funcionar

e de olhar por todos os miseráveis cujo encargo a vila assumia.

A esta altura do discurso, o Sr. Lyman dava sempre um fundo suspiro. Porque era

sobre os seus ombros que recaía o fardo de manter o orçamento em equilíbrio. O

superintendente dos pobres, o Sr. Flint, só pretendia duas coisas: não dar mais um

soldo do que o previsto e nunca provocar a cólera da boa gente da vila — os

generosos benfeitores. “E será que podiam dizer-lhe”, retomava o Sr. Lyman, “se

existia algum meio de fazer funcionar aquela quinta, quando só havia entre os seus

pensionistas dois indivíduos do sexo masculino em estado de trabalhar: um garoto

cuja idade desconhecia e um pobre de espírito?”

Talvez Jip tivesse sentido alguma culpa, ou simpatia, se também o Sr. Lyman

deitasse mãos ao trabalho. No fim de contas, estava de perfeita saúde, um pouco

gordo, talvez, mas nem era demasiado jovem nem atrasado mental. Contudo, o

rapazinho também dizia para consigo que nem sempre se pode compreender os

problemas das pessoas adultas.

O sol aquecia-lhe agradavelmente a cabeça e os ombros. O inverno parecia ter

acabado, embora por vezes ainda se visse neve em maio. Mas, agora, tornava-se

pouco provável. Jip nem sequer pensava que em junho teria de trabalhar do nascer ao

pôr-do-sol. O esforço nunca o contrariava. Apenas se perguntava, de vez em quando,

quem é que costumava mungir as vacas, arar, semear, plantar, arrancar as ervas

daninhas e colher, antes daquele famoso dia em que o Sr. Lyman tinha determinado

que a Sheldon caberiam os trabalhos braçais e a Jip a organização geral...

Bem, mas ali, na carripana, e com aquele tempo tão bom, Jip sentia-se em férias

por um breve momento. Estendeu-se a todo o comprimento, com um forte desejo de

dormir. Desde a chegada de Put que ele nunca mais tinha conhecido uma noite

tranquila. Muitas vezes se deixava ficar perto da jaula, para o caso de o infeliz ser

acometido de um acesso durante o sono. Berthie dizia que na lua cheia se ficava

ainda mais transtornado.

Jip perguntava-se se seria verdade. As crises de Put não pareciam ter a

regularidade das fases da lua. Não se podia perceber o que as desencadeava. Era

apenas evidente que o louco ficava menos agitado quando o sol brilhava. E como o

verão, com as suas belas e longas tardes, se aproximava, havia uma certa esperança.

A carroça foi de encontro a uma pedra na estrada. O Sr. Lyman praguejou e

chicoteou o pobre Jack. A bezerrinha soltou um mugido de medo.

— Chiu — murmurou Jip. — Não te levamos para o matadouro. Não tenhas medo.

Alguém há de comprar-te. És tão bonita, hás de ver, vão querer-te pelo teu leite e

viverás até seres velhinha.

A bezerrinha, de grandes olhos castanhos, olhava para ele com adoração. Jip

gostava muito das pequenas crias. Quando Bonnie tinha um nado morto, sentia uma

pena enorme, mesmo que isso significasse mais leite, manteiga e queijo para os

pensionistas, porque já não tinha que dar de mamar.

Estavam agora a chegar à pequena vila.

Como sempre, Jip olhava, fascinado, para as grandes casas diante das quais

passava. Algumas, com as suas cortinas nas janelas, pareciam adormecidas à sombra

de belas árvores de folhagem luxuriante. O que fariam as pessoas que lá moravam?

Nem todas podiam trabalhar na serração, na forja ou no estábulo. Não parecia que

fizessem criação de galinhas, e algumas hortas nem sequer estavam cultivadas. Era

difícil saber de que se alimentavam os ricos.

O superintendente Flint, por exemplo, era aquilo a que se chama um banqueiro.

Jip conhecia o banco, um grande edifício quadrado de um único andar, junto ao

terreiro comunitário. Que tipo de trabalho se faria num banco? Sabia que era alguma

coisa relacionada com dinheiro, mas o quê exatamente? O dinheiro não cresce. Para

que era preciso uma casa inteira para o guardar, quando se poderia muito mais

facilmente metê-lo debaixo do colchão ou de um vaso de flores? Ou, mais

simplesmente ainda, numa gaveta?...

Alguns anos atrás, um visitante que um dia passara pela quinta dera um soldo a

Jip. Como fora a única vez na vida que este recebera dinheiro, guardava-o num bolso

das calcas. O generoso doador recomendara-lhe: — Põe isto de lado, rapaz. Um soldo

poupado é um soldo ganho. O que fez com que ele evitasse gastá-lo, mas nem por

isso ganhou outro. Como é que seria possível? Um soldo não era como uma galinha

que tem pintainhos.

Um dia, porém, no outono, quando se encontrava na cidade, quase se deixara

tentar. Na mercearia, podia-se comprar por um soldo dez bombons de todas as cores.

Dez bombons! Isso representaria cinco dias de prazer, ao menos para Sheldon e para

ele. Mas a frase do visitante ressoava-lhe ainda na cabeça. Aquele soldo, convinha

reservá-lo para algo mais importante do que doçarias.

A carroça passava precisamente junto da mercearia, mas não parou. Era

necessário primeiro depositar a bezerrinha no outro extremo da vila e receber o

dinheiro da venda. Depois, o Sr. Lyman havia certamente de querer ir comprar

alguma coisa. Jip ficaria à espera. Gostava bastante de olhar para os bocais de

bombons, alinhados como lindas rapariguinhas de vestido domingueiro. Pelo menos,

isso era de graça.

Ergueu a bezerra sozinho e colocou-a em terra, meio cambaleante com o peso

dela. O Sr. Lyman vestia o seu fato de domingo e não se podia contar que desse uma

ajuda. Nem pensar em sujar-se! Jip inclinou-se e abraçou docemente o pequeno

animal, à laia de despedida, e depois voltou a saltar para a carroça.

No regresso, o Sr. Lyman parou junto da loja, mas, infelizmente, deu ordem ao

rapazinho para ficar à beira do cavalo enquanto ele fazia as compras. Desapontado,

Jip instalou-se no assento e deixou cair as rédeas sobre a grossa crina de Jack. Seguiu

com os olhos o Sr. Lyman, que entrou pela porta do armazém no momento em que

um homem saía. Ambos se desviaram um pouco e trocaram um aceno de cabeça.

Com uma expressão cheia de nostalgia, Jip observou a montra de cores vivas,

sonhando com todos os bombons que a sua moeda lhe teria permitido comprar.

Por um instante, o olhar do estranho cruzou-se com o seu. O homem teve um

sobressalto, desceu depois os poucos degraus do átrio de entrada e veio direito à

carroça.

— Estás a espera do teu pai? — perguntou. Algo de desagradável, de melífluo, de

estranho no tom de voz deu a Jip o desejo de mentir. Mas uma mentira era muito

pesada para a sua consciência, por isso abanou a cabeça.

— Do teu tio, então?

O que é que aquele indivíduo tinha com isso? Para que lhe interessava saber

quem era o Sr. Lyman? Além disso, quase de certeza que ele o conhecia. Toda a vila

conhecia o Sr. Lyman.

Jip não respondeu nem sim nem não. Desviou a cabeça, para olhar para uma

carroça que passava. O estranho estava a meter-se no que não lhe dizia respeito. Não

tinha nada que fazer aquelas perguntas. Era melhor ignorá-lo.

— Onde moras, pequeno?

Como a resposta não vinha, o homem acrescentou com uma voz irritada:

— Não tens necessidade de ser indelicado. Queria conversar contigo, só isso.

Tudo levava precisamente a crer que não era só isso. E nada se parecia menos

com uma conversa amigável do que aquele interrogatório. Para enorme alívio de Jip, o

Sr. Lyman saiu da loja, a encher o cachimbo com o tabaco que acabava de comprar.

Rapidamente, estendeu-lhe as rédeas e passou para a parte de trás da carroça,

procurando não fitar o estranho, que não se tinha mexido.

— Desculpe, meu caro senhor...

Mas o Sr. Lyman fez que não ouvia, deu um grito ao cavalo para se pôr em

marcha e a carroça começou a andar. O desconhecido ficou no mesmo lugar, muito

vermelho, de boca aberta.

— Quem era aquele tipo com quem estavas a falar, garoto? — perguntou o

caseiro, quando se afastaram um pouco.

— Não estava a falar com ele. Foi ele quem me dirigiu a palavra. Queria saber se

éramos da mesma família.

Manifestamente, o facto desagradou muito ao Sr. Lyman.

— Desconfia dos forasteiros, entendes?

— Sim, ele não tinha nada que saber se o senhor era meu pai. E não é, aliás.

— Nunca o vi. O que é que ele quererá de nós?

— Não sei. Em todo o caso, não lhe disse nada.

Um resmungo serviu de resposta, e não trocaram mais palavra até chegarem a

quinta. Mas, no dia seguinte de tarde, quando Jip e Sheldon regressaram do

galinheiro, o forasteiro estava instalado na mesa da cozinha, a tomar chá e a comer

biscoitos com a Sra. Lyman. Devia ter perguntado a alguém de onde vinha a carroça.

De certeza que não passara pela quinta por acaso. Aliás, a estrada acabava ali.

Ergueu os olhos quando Jip entrou e examinou-o rapidamente da cabeça aos pés.

Depois, voltou-se para a Sra. Lyman e, como se fossem velhos amigos, retomou uma

conversa sobre os malefícios do gelo da primavera. Jip lavou os ovos e colocou-

-os cuidadosamente no cesto. Perguntava a si próprio se o Sr. Lyman sabia que o

forasteiro estava ali, a meter o nariz na cozinha dele. Nem era recebido no salão,

como as visitas habituais; não, tinha conseguido penetrar na cozinha, como se fosse

uma pessoa da família, um hóspede particularmente bem-vindo. Qualquer coisa não

estava a bater certo. O rapazinho sentiu um arrepio.

— Anda, Sheldon — disse.

Jip saiu rapidamente da cozinha, levando Sheldon com ele. Não regressaram a

casa senão quando o desconhecido se fez à estrada, na direção da cidade. Era quase

tão alto como o Sr. Flint, vestido com roupas de cor escura, e não tinha o ar pesado

de um caseiro nem a atitude arrogante de um banqueiro. Não, fazia lembrar uma

doninha a rondar um galinheiro, à procura de um buraco por onde se meter para

apanhar uma galinha. Era mais ou menos isso.

O homem parou e voltou-se para olhar na direção da quinta. Com um salto, Jip

escondeu-se atrás do barracão.

Capítulo 4 : Cuidado com o forasteiro!

Naquela noite, Jip esperou que toda a gente tivesse acabado de jantar e de se

levantar da mesa para levar o conduto a Put. Depois, sentou-se ao lado da jaula.

Precisava do amigo para o ajudar a pôr as ideias um pouco em ordem.

— Na sua opinião, porque é que ele queria saber se o Sr. Lyman era meu pai ou

meu tio? Toda a gente conhece o Sr. Lyman, sabe-se que ele não tem filhos e, de

qualquer forma, não iam confundir um miúdo abandonado pelos ciganos com um filho

dele.

— És um bom rapaz, Jip, cigano ou não.

— Sim, nós dois somos amigos e fico muito contente com isso, mas o que eu

quero saber é por que razão este desconhecido apareceu subitamente na cidade e

começou a fazer-nos perguntas esquisitas, ao Sr. Lyman e a mim. Nós fomos

suficientemente espertos para não lhe dar conversa, mas, qual não é o meu espanto,

vou encontrá-lo na cozinha a conversar com a Sra. Lyman como se se conhecessem

há muito tempo.

— Sim, é estranho — concordou Put.

— Mais do que estranho, até.

— Jip, já pensaste, por exemplo, que ele pode ter-te encontrado antes? Digo isto

por dizer, é claro, não fui eu a cruzar-me com ele.

— Não, nunca nos vimos.

— Há muito tempo, quero eu dizer. Ele pode saber a quem pertencias antes de

caíres da carroça.

— Eu era tão pequeno nessa época, mal tinha começado a andar. Como é que

alguém seria capaz de me reconhecer ao fim de tantos anos? E se fosse o caso? Não

mo teria dito? Em vez disso, anda a farejar à minha volta como um cão de caça atrás

da presa.

— Hum, sim, é estranho — murmurou Put.

— Se julga saber quem eu sou — insistiu Jip — porque não o diz abertamente?

— Sim, seria a única coisa honesta a fazer.

— Ora bem, precisamente. Não é um tipo honesto, Put. Se calhar, estou a fazer

mau juízo, mas este homem não me cai bem. Apanhei um susto enorme quando o vi

sentado na nossa cozinha. E sabe o que mais? A Sra. Lyman não falou da visita dele

ao marido.

— De verdade?

— Durante o jantar desta noite, não disse uma palavra a esse respeito, ela que

costuma perguntar, todas as vezes que o marido vai à cidade: — Que novidade nos

traz, Sr. Lyman? E ele, entre duas garfadas, responde invariavelmente: — Não trago

grande coisa, Sra. Lyman. A seguir, ela começa a contar o que se passou na quinta.

Mas, sobre isto, nem uma palavra. Ora, entre nós, uma visita é um acontecimento.

Quase nunca recebemos visitas. Então, sempre que há uma, quase merece um artigo

no jornal.

— Ela não disse mesmo nada?

— Repito, nada, nem uma palavra. Como se fosse um segredo. No entanto, o

desconhecido tomou chá e comeu biscoitos, e disso o Sr. Lyman vai aperceber-se,

porque, em casa, ele conta tudo e volta a contar.

— Sê prudente, Jip. Não creio que esse homem tenha vindo por causa dos

biscoitos da Sra. Lyman.

— Se fosse por isso, agora estaria meio-morto de fome.

Ambos desataram a rir. Mesmo para quem nunca comera nada de melhor, ou já

perdera a lembrança, os cozinhados da Sra. Lyman eram motivo de brincadeira.

Mas, refletiu Jip, como ser prudente quando não se sabe de onde pode vir o

perigo?

Andou com muito medo durante alguns dias, julgou mesmo aperceber-se de uma

inquietante silhueta na estrada, mas ninguém voltou a aparecer na quinta e a vida

retomou, a pouco e pouco, o seu curso normal. Enfim, não totalmente. Não se podia

negar: a presença da viúva Wilkens e das crianças alterava bastantes coisas.

Jip sentia-se responsável por Lucy e Toddy. O bebé podia ficar com a mãe, mas

os outros dois precisavam dele. Lucy fingia ignorá-lo, enquanto o menino o seguia

para todo o lado como um cachorrinho. Um dia em que Jip ia em direção do prado

mais distante para verificar se os cordeiros tinham nascido durante a noite, ouviu de

repente um choro por detrás dele. Surpreendido, virou-se e viu Toddy estendido na

erva a gritar e a espernear. Precipitou-se para o erguer:

— Muito depressa! — soluçava o garoto. — Vais muito depressa!

— Desculpa, não vi que vinhas atrás de mim.

Levantou-o, tirou-lhe com a mão um pouco de terra da camisa e depois pô-lo às

cavalitas.

— Agora estás melhor?

Encantado, Toddy gritou:

— Upa, upa! — batendo na cabeça de Jip.

— Atenção! Segura-te bem! — disse-lhe este.

E, quando ia começar a correr, viu Lucy. Ela devia ter saído de casa

precipitadamente, à procura do irmãozito, e tinha ficado imóvel no caminho, com uma

expressão de desdém no rosto.

— Anda, Lucy! — chamou Toddy.

— Sim, anda — anuiu Jip. — Vamos ver se há novos cordeiros.

Ela encolheu os ombros e fez menção de voltar para trás.

— Anda, vem!

Como ela não se mexia, partiu, imitando o galope do cavalo, no meio dos gritos

de alegria do pequenito, que se lhe agarrava aos cabelos.

Depressa encontraram um recém-nascido, de cabeça preta, que balia docemente

e se encostava à mãe. Jip pôs Toddy no chão.

— Chiu! — disse. — Não faças barulho. A ovelha não te conhece e tu metes-lhe

medo porque, à beira do filhote, és muito grande. Ela receia que lhe faças mal.

— Eu? — perguntou Toddy, manifestamente encantado com a ideia de causar

medo a alguém. — Eu?

— Sim, tu. Não podes fazer mais barulho do que um coelho. Olha, ela quer

afastar-se um pouco e o filhote vai tentar segui-la, embora mal se segure nas patas.

Não, não, não corras atrás dele.

— Está bem — murmurou Toddy.

— Sabes, esta ovelha gosta tanto do seu filhote como a tua mãe gosta de ti.

O miúdo fez uma careta.

— Sim, está bem, a tua mãe teve outro bebé depois de ti, mas esta ovelha

também há de ter outro cordeiro no ano que vem e, nessa altura, este, que hoje é tão

pequenino, há de estar crescido para correr e brincar na erva, tal como tu.

Alguém tossiu ligeiramente por detrás deles. Jip voltou-se e viu Lucy. Sempre se

tinha decidido a segui-los. Devia fazer de conta que não a vira? Que rapariga

estranha... Nunca sabia o que havia de lhe dizer sem correr o risco de a contrariar.

— Conta comigo, Toddy, este é um novo cordeiro. Sabes contar?

— Um — disse.

— Muito bem. Vamos um pouco mais longe para ver se encontramos outros.

Temos de andar sem fazer barulho para não os assustar. Este vai ficar à beira da mãe,

está em segurança.

Mas, naquela manhã, não havia mais cordeiros. As ovelhas pareciam não ter

pressa de dar à luz. Fazendo um grande desvio para não se aproximar demasiado de

Lucy, Jip levou Toddy para a quinta. Era a hora de apanhar os ovos e não queria que

Sheldon se sentisse posto de parte. Durante muito tempo, foram só os dois, Jip e

Sheldon. Ora, Put e Toddy tinham chegado quase ao mesmo tempo, e Sheldon

resmungava um pouco. Sentia ciúmes da atenção que Jip lhes concedia.

Este levou Toddy até junto da mãe e pôs-se à procura de Sheldon. Mas não o

encontrou em parte alguma. Deu a volta à casa, explorou todos os recantos do pátio e

nada. Bruscamente, ouviram-se no galinheiro cacarejos e gritos. — Oh, não! — disse.

— Bem sabes que não deves ir buscar os ovos sem mim!

Precipitou-se, abriu a porta e descobriu um Sheldon aterrado, sentado no chão,

com uma galinha de cor parda empoleirada na cabeça, a bater as asas e a dar-lhe

bicadas no crânio. Tinha na mão um ovo esmagado, cuja gema lhe corria por entre os

dedos e lhe manchava a camisa.

— Jip! Socorro!

— Francamente, olha o que fizeste!

— A Anabela não gosta de mim!

— Não, olha, não é isso. És tu que lhe fazes medo, és muito brusco com ela.

Deixa-

-me pegar nela, assim... primeiro, vou acalmá-la um pouco, vá, vá… e pô-la com

cuidado no ninho do costume.

— Digo-te que ela não gosta de mim. É ela que me faz medo.

— Bem, digamos que ambos fazem medo um ao outro. Agora, tudo vai correr

bem, Sheldon.

E Jip sorria para o seu companheiro que estava à beira das lágrimas.

— Anda, ajuda-me a limpar-te a camisa, que está toda suja, e a apanhar os

bocados da casca.

Sheldon examinou as suas roupas com um ar inquieto e, depois, a mão cheia de

gema.

— Ficas comigo, Jip?

— Sim, eu e tu, nós dois como de costume, prometo-te.

Lucy viera até à porta do galinheiro. Viram-na quando saíram, e esta fingiu de

imediato estar a olhar na direção da estrada, o que fez com que Jip não lhe falasse.

Capítulo 5 : Uma hipótese em mil

A última geada de maio tinha coberto os campos com um manto branco que

fundiu logo de seguida. Às cinco horas da manhã, o sol já aparecia a este, por detrás

das colinas, e os bosques que pertenciam ao pastor Avery — era proprietário da

pedreira de granito — coloriam-se com todos os tons de verde.

Aproximava-se o tempo das sementeiras.

Naquele ano, Jip já estava suficientemente crescido e forte para segurar o arado.

Foi portanto Sheldon que se encarregou de tomar as rédeas do cavalo e de o fazer

avançar pelo solo húmido. Jip congeminava diferentes projetos. Queria repartir o

trabalho por todas as pessoas válidas da quinta — o que, naturalmente, excluía de

antemão os Lyman. Sempre que havia algo de mais difícil ou desagradável a fazer,

ele pretextava uma pequena deslocação, e ela desculpava-se com as tarefas

domésticas. Jip e Sheldon tinham de tomar conta de tudo. Mas agora havia Put, que

desde há várias semanas se comportava normalmente. Podia, pois, dar uma ajuda, tal

como a Sra. Wilkens e Lucy, se conseguisse convencê-las a semear ou a plantar. Jip

começou por ensinar Toddy a colocar nos buracos batatas greladas e, conforme

esperava, Lucy, depois de ter observado, aproximou-se dizendo:

— Posso fazer isso, não é difícil.

— Mas é difícil para Sheldon — respondeu Jip. — Agradeço-te muito pela ajuda.

Como estava um tempo magnífico e um belo céu azul, sugeriu à Sra. Wilkens que

confiasse, por um momento, o bebé a Berthie e viesse semear feijão. O que ela fez.

Put encarregou-se das abóboras e quando, um pouco mais tarde, Toddy já estava

cheio de sono para continuar, foi dar uma ajuda a Lucy com as batatas. Jip e Sheldon

— “nós dois, eu e tu, Jip” — semearam aveia. E quando tudo acabou, os

trabalhadores, cansados mas contentes, apenas tiveram de esperar pelas primeiras

chuvas.

Quando elas começaram, Jip foi o único que continuou ocupado de manhã à

noite. Dava milho às galinhas, ordenhava a vaca, tratava das ovelhas. Uma tarde

particularmente chuvosa, encontrou o último cordeiro deitado junto da mãe, que balia

lamentosamente: estava morto. Rápido, foi buscar uma pá e enterrou-o, esperando

que Toddy não se apercebesse de nada.

Depois, com o coração pesado e as roupas encharcadas, pegou no balde e

dirigiu-se para o estábulo, porque se aproximava a hora de ordenhar.

— Boa tarde, Jip. Posso chamar-te Jip, não é?

Ficou petrificado. O desconhecido estava ali, a impedir-lhe o caminho, abrigado

debaixo de um grande guarda-chuva negro.

— Não o conheço — respondeu, com a boca e os lábios subitamente secos.

— Não, ainda não.

O homem esboçou um sorriso que pôs à mostra um dente de ouro. — Mas talvez

eu te conheça.

— Tenho muito que fazer.

— Claro, meu rapaz, não te prendas comigo.

Afastou-se para deixar Jip passar. Depois, seguiu-o até ao celeiro, batendo a

porta atrás deles, não sem antes ter fechado cuidadosamente o guarda-chuva. Jip foi

buscar o banco que estava pendurado num prego, e instalou-se, protegido pelo flanco

de Bonnie. Tinha a impressão de sentir o olhar do homem, de pé por detrás dele, a

trespassar-lhe as costas. Durante um longo momento, o silêncio só foi quebrado pelo

ruído do leite a correr para o recipiente e pelo crepitar da chuva sobre o telhado de

tela ondulada. Quando o desconhecido pigarreou, Jip contraiu-se, julgando que se

preparava para falar. Mas acabou por não o fazer. O recipiente encheu-se sem ele ter

dito uma única palavra. Foi então que Jip, enervado por causa daqueles olhos de

fuinha cravados nele, perguntou bruscamente:

— O que quer de mim, afinal?

— O que quero de ti? Ora aí está uma boa pergunta.

— Porque é que anda por aqui às voltas, a meter o nariz em tudo?

Sabia que não estava a ser nada delicado, mas era-lhe indiferente. O homem

esboçou um sorriso.

— Julgas-me mal, meu rapaz. Só quero o teu bem.

Jip teve vontade de responder: — Sim, tanto como um abutre quer o bem de um

frango. — Mas conteve-se.

— Só que — continuou aquela voz detestável — para poder ajudar-te preciso de

saber alguma coisa mais.

— Saber alguma coisa mais sobre quê?

É certo que a Sra. Lyman já lhe tinha contado tudo o que havia para saber.

— Queria certificar-me de que és a pessoa que procuro, a bem dizer, há muito

tempo.

Com a respiração cortada, Jip esperou que ele continuasse. Tinha a sensação de

que, se estivesse calado, o estranho diria mais do que contava dizer. Lembrou-se dos

conselhos de Put, recomendando-lhe que fosse prudente. Era agora ou nunca o

momento de os seguir.

O homem continuou:

— Um dos meus amigos, um dos meus melhores amigos, para ser mais preciso...

— Fez uma pausa e Jip quase rangeu os dentes de impaciência. — Como estava a

dizer, um grande amigo meu teve a infelicidade de perder o seu único filho.

Calou-se de novo.

“Tudo isso é charlatanice”, pensou o rapazinho. “Parece um vendedor

ambulante, que tenta a todo o custo vender uma coisa que não interessa e vigarizar

as pessoas para conseguir o que quer.”

— Disseram ao meu amigo que o filho tinha morrido, o que o fez sofrer muito.

Mandou até erigir um monumento de mármore no cemitério, em memória desse filho.

Jip tinha acabado, há muito tempo, de ordenhar Bonnie, mas não saía do lugar.

Limitou-se a afastar um pouco o balde, para a vaca não o virar com a cauda ou com

as patas. Subitamente, o desconhecido pôs-se mesmo diante de Jip, a menos de dois

metros, com a mão pousada no cabo do guarda-chuva como se fosse uma bengala.

Esboçou um sorriso que fez tremer a criança da cabeça aos pés.

— Sim, meu rapaz, um belo monumento de mármore. Impressionante. Mas,

recentemente, chegou aos ouvidos do meu amigo um rumor de que, afinal, talvez o

filho não estivesse morto.

“Um vendedor ambulante, não”, pensou então Jip, durante o novo silêncio que se

seguiu, “antes um daqueles charlatães que tentam impingir um medicamento

qualquer.”

— Imagina o espanto do meu amigo. Será que ainda estaria vivo aquele filho que

ele chorava tanto? Como poderia ter a certeza?

Talvez fosse uma daquelas partidas cruéis que o destino gosta por vezes de

pregar. Dar-lhe uma esperança vã para o encorajar por um momento; e depois lançá-

-lo num desespero ainda mais profundo. Quem sabe... Apesar das suas resoluções, Jip

sentiu algo estremecer dentro dele. Tinha imaginado muitas vezes essa cena em que

o pai o chorava... Contraiu-se quando o homem prosseguiu:

— Portanto, antes de se dar a conhecer àquele que poderá ser seu filho, precisa

de ter uma certeza absoluta. As hipóteses de o filho estar vivo são ínfimas, mas se

restar uma possibilidade mínima, é preciso explorá-la até ao fim. E é por isso que aqui

estou.

Nesse momento, fez um grande movimento com o braço, brandindo o guarda-

-chuva, e Bonnie, aterrorizada, deu um longo mugido.

Jip não se mexia. A ideia de poder ter um pai algures, decidido a reencontrá-lo, a

amá-lo, era um sonho há tanto tempo acarinhado. Mas que esse pai tenha enviado

um mensageiro como aquele a abrir o caminho... Voltou a examinar a alta silhueta

que o dominava, a fronte estreita, os olhos de fuinha, os lábios finos, por entre os

quais brilhava o dente de ouro, as longas mãos finas de unhas pontiagudas. Não,

nada daquilo podia pertencer a um homem honesto.

— Então, Jip?

Sacudiu a cabeça:

— Não — respondeu em voz baixa. — Não posso ajudá-lo, nem a quem o mandou

cá.

— Não compreendo.

— Compreende muito bem. Não tenho nenhuma lembrança do que pode ter-me

acontecido antes de vir viver para a quinta. Esta é a minha casa, agora e nos tempos

mais próximos.

O homem inclinou a cabeça para melhor perscrutar o rosto de Jip:

— E agrada-te continuar a viver assim? Se existir uma possibilidade, uma em mil,

é certo, mas, ainda assim, uma possibilidade de teres direito a uma vida diferente,

bem melhor...

Esboçou um sorriso e não acabou a frase.

Jip levantou-se, pegou no balde e, num passo decidido, foi pendurar o banco no

prego. Depois, dirigiu-se para a porta.

— Que remédio senão habituar-me à vida que tenho, não acha? — disse, por

cima do ombro.

Agarrou na pequena tábua que costumava servir de tampa, pousou-a para tapar

o leite e, sem se virar, saiu e atravessou o pátio debaixo de chuva.

Quando chegasse à cozinha já se sentiria mais seguro.

Capítulo 6 : Tudo ficará bem

Os tosquiadores de ovelhas chegaram, e depois voltaram a partir.

Começava o verão.

Jip não tinha muito tempo para pensar na visita do desconhecido e, das raras

vezes em que isso acontecia, sentia um certo alívio perante a ideia de ter conseguido

desembaraçar-se tão facilmente daquela sombra sinistra. Enfim, um misto de alívio e

de angústia subjacente e tenaz. Ainda supondo que houvesse uma possibilidade — o

desconhecido tinha sublinhado que talvez fosse uma em mil, o que para Jip era

sinónimo de nenhuma — sim, uma possibilidade, mesmo que ínfima, de que o pai

realmente o procurasse, será que tivera razão ao virar as costas ao forasteiro, só

porque o seu aspeto não lhe agradava? Apesar de tudo, ele não era o seu pai. “E eu,

Jip, tenho de ser o filho perdido de alguém”, repetia para si mesmo. “Não nasci ao

longo da West Hill Road. Fui cair ali, caí de uma carroça. Que carroça? E porque é que

ninguém veio procurar-me? Pais dignos desse nome não teriam tentado saber o que

foi feito de mim? Não teriam explorado, como o bom pastor do Evangelho, todas as

terras vizinhas, na esperança de encontrar a sua ovelha perdida? Se fosse eu, era o

que teria feito e, no entanto, uma ovelha é um animal desprovido de fala, não uma

criança formada à imagem e semelhança de Deus.”

Devia ter perguntado sem rodeios àquele forasteiro por que razão o seu

misterioso amigo achava que existia uma possibilidade, ainda que uma em mil, de ele

ser o seu filho. Jip lembrava-se de ter tido o cuidado de não falar da carroça, mas a

Sra. Lyman devia tê-lo feito. Ela adorava contar aquela história. Disse para si mesmo

que precisava de encontrar um meio de a fazer falar da visita do desconhecido

naquele dia em que ambos tinham tomado chá na cozinha. Visita essa sobre a qual,

ao que parece, ela não tinha dito uma só palavra ao marido. Teria alguma relação

com o aparecimento do homem no celeiro? Sim, forçosamente. Talvez mais tarde ela

tivesse contado ao Sr. Lyman. E talvez não quisesse que os outros habitantes da

quinta ficassem ao corrente. Talvez.

Com o verão, Put passava melhor. As longas horas de sol pareciam ser-lhe

benéficas, assim como às plantas, aos animais e aos outros homens. Prestava uma

ajuda valiosa em todos os trabalhos da quinta. A Sra. Wilkens e Lucy obedeciam-lhe

mais depressa do que a Jip. Fiel a si próprio, o Sr. Lyman nunca esteve presente

quando era preciso trabalhar. Só na altura da visita do superintendente, é que ele se

apressava a vestir as roupas mais usadas, arregaçava as mangas e ia a correr para o

campo, ordenando a toda a gente, mesmo a Berthie e aos outros, que o seguissem.

Jip não tinha coragem de incomodar os idosos. Aliás, eles não faziam

praticamente outra coisa senão resmungar. Mas o Sr. Lyman gostava muito de

mostrar ao Sr. Flint que, em casa dele, toda a gente, homens, mulheres, crianças,

simples de espírito e loucos, tinham as suas obrigações.

— Olhem só para ele, nem capaz é de curvar aquele lombo enorme — resmungou

Berthie, que mal baixava o seu. Foi um dia em que o Sr. Flint tinha vindo fazer uma

inspeção. A idosa esperou que ele e o Sr. Flint se eclipsassem para irem beber uma

golada de cidra, e brandiu as seis cenouras que segurava na velha mão enrugada. Jip

não pôde impedir-se de as contar, quando ela as entregou, protestando:

— Jip, meu rapaz, é certo e sabido que vou acabar por desmaiar debaixo deste

sol tão forte. Este trabalho de escrava não é para a minha idade.

— Está bem, Berthie, leva o que colheste à Sra. Lyman e vai ajudá-la um pouco

na cozinha. Podes também tratar da menina, senta-a um pouquinho no teu colo, por

exemplo.

Na verdade, a menina tinha cada vez menos vontade de ficar no colo de quem

quer que fosse...

Um a um, todos os idosos encontraram uma desculpa para deixar o campo. Só

ficaram Put, a Sra. Wilkens, Lucy, Sheldon e, está claro, Jip. Mesmo Toddy continuou a

correr de um lado para o outro, a mostrar a cenoura que acabava de colher, para

receber os cumprimentos de toda gente.

Jip tinha vergonha de dizer para consigo — baixinho, é claro — que se sentia

quase feliz pelo facto do Sr. Wilkens ter deixado a família sem um soldo, condenando-

-a assim a ir viver para a quinta. Adorava o pequeno Toddy e, embora a Sra. Wilkens e

Lucy não fossem mais sorridentes uma do que a outra, trabalhavam na horta com

uma energia feroz, tornando-lhe a vida infinitamente mais fácil. Quando só havia a

ajuda de Sheldon, nunca as colheitas se tinham anunciado tão boas. O resultado era

que, naquele verão, toda a gente teria mais de comer.

Sem esquecer Put. Ninguém se esforçava tanto como ele.

No início, o Sr. Lyman tinha-se recusado a deixá-lo sair da jaula, mas Jip pôs todo

o empenho em convencê-lo: “Serei responsável por ele”, prometera, sabendo

perfeitamente que, se uma daquelas crises de fúria se apoderasse de Put, seriam

precisos pelo menos quatro homens para o segurarem. Mas ele parecia sentir-se tão

bem com aqueles dias de verão, em nada se assemelhando ao louco chegado à

quinta há três meses, que Jip começou a sentir a esperança de que estivesse curado.

Disse-

-o, aliás, ao próprio Put. Mas este sacudiu a cabeça:

— As crises vão e vêm, sabes? Também eu já pensei isso por diversas vezes, e

afinal...

— Consegue aperceber-se de que estão a aproximar-se, ou aparecem de repente

sem prevenir?

— Não sei, Jip. Penso que sem prevenir. Mas talvez tu consigas aperceber-te

antes de mim.

— Como?

— Bem, posso, por exemplo, começar a dizer algo que te pareça estranho,

mesmo que o diga de um modo normal. Se começar a desfiar palavras sem nexo,

então é preciso que me feches o mais depressa possível. Sem esperar, entendes?

— Sim, sim, percebi.

— Mas prometes que não ficas à espera a ver se passa?

— Prometo.

E Jip ficou responsável pela liberdade de Put.

Toddy também gostava muito do idoso. Pedia-lhe que o levasse às cavalitas e

que cantasse ou tocasse flauta. Put tinha de repetir indefinidamente a mesma canção.

Mal a acabava, o rapazinho gritava-lhe: — Outra vez! Outra vez! — E, sem se cansar,

mesmo depois de já ter cantado meia dúzia de vezes, Put, enquanto acariciava a

cabecita loura, repetia, com uma voz tão clara como a da cotovia:

É a morte, é a morte que se aproxima?

Se é ela, em breve serei liberto,

Liberto da pena e do sofrimento.

Verei o rei da glória.

Tudo ficará bem, tudo ficará bem.

Podia ser uma canção sobre a morte, mas não era triste. Pelo menos, não da

maneira como Put a cantava. Inclinava a cabeça para trás e, com os olhos fixos no

céu, parecia contemplar com prazer a chegada da morte. — Outra vez! — gritava-lhe

Toddy. E sempre pronto para lhe fazer a vontade, Put voltava a cantar:

Não chorem por mim, amigos,

Tudo ficará bem, tudo ficará bem!

Nenhuma nuvem aparecerá

Para esconder Jesus da minha vista.

Em breve subirei aos céus,

Tudo ficará bem, tudo ficará bem!

Pensaria ele realmente que tudo ficaria bem? Pobre Put, a quem a loucura

rondava, como um gato selvagem prestes a saltar... A certa altura, notou o ar

pensativo de Jip.

— Não gostas da canção preferida do Toddy? — perguntou.

— Sim, é bonita.

— Muito bonita, de facto. Sabes, eu compreendo que na tua idade se possa achar

estas palavras um pouco estranhas. Mas pensa em mim, no modo como vou receber

esse dia em que serei liberto das penas e dos sofrimentos. Percebes o que quero

dizer?

— Mas não sente vontade de ficar mais um pouco entre nós?

Put estendeu a mão para a pousar sobre o ombro de Jip.

— É disto também que é feito o Reino dos Céus — disse docemente.

Jip, não muito certo do que aquelas palavras significavam, ainda assim sorriu.

Percebia confusamente que Put lhe explicava desse modo que, graças a ele, os seus

sofrimentos se tinham tornado um pouco mais leves, e isso já era muito.

“Poderá ser da minha imaginação”, pensava Jip muitas vezes, “mas parece que

quando as coisas estão melhores, o Sr. Lyman arranja sempre um meio de estragar

tudo.” E eis que, em meados de julho, de manhã cedo, este mandou chamar o jovem

à sala habitualmente reservada aos visitantes:

— Bem, é o seguinte: estou agora com muita mão-de-obra na quinta.

Jip esperou que ele continuasse. Iriam reexpedi-lo para a quinta de Slaytor ou

enviá-lo para algum lugar horrível no mesmo género? Pressentia que aquilo que iria

seguir-se não seria boa notícia.

— Estamos com muita falta de dinheiro. Trabalho como um louco, mas não é

suficiente. Os pensionistas comem os produtos do campo mais depressa do que eles

crescem. E o que se retirou da venda da lã mal chegou para pagar aos tosquiadores.

Preciso de alguém que ganhe o seu pão e nos traga algum dinheiro.

Jip absteve-se de intervir. Sabia que esse alguém só podia ser ele. Os outros

eram muito jovens, ou muito velhos, ou muito fracos, ou não suficientemente

espertos.

— Estou a pensar no Sheldon...

Sheldon? Mas ele precisava constantemente que lhe dissessem o que devia

fazer. Era incapaz de se desenvencilhar sozinho.

— É forte como um touro. Capaz de levantar um carneiro de cinquenta quilos.

— Sim, mas...

— Já combinei tudo com Avery. Concordou em mandá-lo trabalhar na pedreira.

No início não lhe vai pagar muito, mas, quando o rapaz começar a ter experiência, dá-

lhe um aumento.

Sheldon? Mas Sheldon não sabia dar um nó numa corda sem correr o risco de se

enforcar com ela...

— Sim, bem, eu sei que há quem não se habitue a esse género de trabalho.

Dizem que o barulho lhes faz vibrar os miolos. Mas pelo menos isso não incomodará

Sheldon, porque miolos, ele não tem lá muitos para poderem vibrar.

E o Sr. Lyman, encantado com a sua piada, pôs-se a rir, dando pequenos toques

na cabeça. Jip estremeceu. Tinha uma noção dos enormes blocos de granito que era

preciso deslocar, ouvia o estrondo das explosões e imaginava bem a nuvem de

pedras e de poeira que se abatia em seguida. Era preciso saber proteger-se para

trabalhar em semelhante local.

— Quando tiveres acabado de mungir a vaca, vais levar Sheldon lá baixo,

percebeste?

— Ele sabe ir sozinho, não é isso que me inquieta — respondeu Jip, tentando que

a voz não traísse a emoção que sentia. — Mas depois não vai ser capaz do perceber

as ordens que lhe derem.

— Oh, há de saber levantar pedras, isso basta.

E, com um gesto da mão, o Sr. Lyman mandou-o embora.

Sheldon ficou tão orgulhoso quando soube que tarefa lhe caberia de futuro, que

Jip disse para consigo que talvez estivesse a inquietar-se demasiado pelo amigo.

— Olha, vou levar o meu almoço para o trabalho. Pão e queijo. E uma maçã.

— Muito bem, Sheldon.

— E uma cabaça com água.

— Claro. Para quando tiveres sede.

— Vou ganhar dinheiro para todos vocês na quinta. Nunca ganhei dinheiro antes.

— Sabes, eu também não.

— É verdade?

— É. Ainda não sou suficientemente crescido.

— És bom rapaz, Jip...

— Sheldon...

Como dizer-lhe certas coisas sem lhe causar medo?

— Sheldon, é preciso que ouças com muita, muita atenção, o que te disserem

para fazer na pedreira.

— Prometido.

Mas o certo é que ele não ouvia nada de nada. Estava muito ocupado com a

partida, a meter num balde o pão, o queijo, a maçã e a cabaça.

— Sheldon, por favor, é importante. Quando te disserem “faz isto” ou “não faças

aquilo”, tens de obedecer. É perigoso, lá em baixo.

— É um trabalho de homem.

— Sim. E um homem presta muita, muita atenção ao seu trabalho. Sobretudo na

pedreira. Ouves o que te digo?

— Sim. Vou fazer tudo o que me disserem.

— Prometes, Sheldon?

— Prometo, Jip.

Do fundo da horta, Jip viu o sol poente tingir de ouro as árvores, os campos e, ao

longe, a pedreira de granito. A hora do jantar tinha passado havia muito e Sheldon

não regressava. Lucy e Toddy já tinham sido mandados para a cama. De repente,

uma silhueta curvada que avançava lentamente apareceu no caminho. Jip precipitou-

-se ao seu encontro.

— Então como foi, Sheldon?

— Um verdadeiro trabalho de homem, lá isso foi.

— Estás muito cansado?

— Dói-me o corpo todo.

— É porque tiveste um dia muito duro. Ouve, se for muito pesado para ti, diz-

-me, que eu falo com o Sr. Lyman. Talvez possa...

— Não, quero continuar a ir todos os dias. Precisam de mim.

E o pobre inocente endireitou as costas com orgulho. Não era o único habitante

da quinta a ganhar dinheiro para todos? Jip não insistiu. Não voltou a falar dos seus

receios senão a Put.

— Sinto um medo enorme por ele. Não creio que o Sheldon tenha o menor

sentido do perigo.

— Sim, é perigoso, na verdade. Mas gosto mais do que trabalhar no campo.

— Não sabia que já tinha estado lá em baixo.

— Não durante muito tempo. Tive uma crise. Então, acorrentaram-me e levaram-

me para outro lado. Parece que havia o perigo de eu ferir alguém.

— E o Sheldon, então?

— Não fará mal a ninguém. Mas receio, tal como tu, que lhe aconteça alguma

coisa.

Jip tremeu da cabeça aos pés ao ouvir isto. Porém, vários dias passaram e,

quando Sheldon regressava à noite, esgotado, mostrava-se sempre transbordante de

orgulho ao falar do “seu trabalho”. Bem, parecia que as coisas iam correndo, apesar

de tudo, e Jip acabou por se convencer de que não tinha razão ao comportar-se como

uma verdadeira mãe-galinha.

Depois, nunca viria a saber se aquilo que tinha ouvido era real ou se teria sido

fruto da sua imaginação. Mas, na mente dele, o barulho de uma carroça no caminho

ficaria sempre associado à voz de Put a cantar para Toddy: Tudo ficará bem, tudo

ficará bem.

Tinha acabado de dar meio-dia. Uma hora pouco habitual para uma visita. Meu

Deus! Jip lançou-se em direção à carroça que se aproximava da quinta. O pastor

Avery estava sentado ao lado do cocheiro, com ar sombrio. Impossível de ver o que

vinha atrás mas, no fundo do coração, Jip já o sabia.

— Sr. Avery, Sr. Avery! — gritou. — O que é que traz aí?

Como resposta, um estalar de chicote fez acelerar os cavalos e ele teve de voltar

para trás, com as pernas pesadas como chumbo. Chegou ao pátio no momento em

que o Sr. Lyman aparecia na soleira da porta. O pastor pôs-se de imediato a vociferar.

— Venha ver o que fez!

— Fiz o quê, Sr. Avery?

— O seu idiota, veja o que restou dele! Foi um milagre que só se tenha feito

explodir a ele!

— Foi o senhor que quis utilizá-lo na pedreira — berrou o Sr. Lyman. — Eu nunca

o teria feito. Tinha necessidade dele aqui! Era um bom trabalhador! E agora, tudo o

que vou tirar disto é a despesa de um enterro! Mas, tenha a certeza, é você quem vai

pagar!

— Tente obrigar-me e verá! Digo ao Sr. Flint que você me mandou um cretino,

quando eu tinha necessidade de um bom operário!

Os gritos de ambos zuniam à volta da cabeça de Jip como um enxame de vespas.

Levantou os dois braços como para se proteger. Depois, aproveitando um instante em

que ninguém estava a ver, saltou para a carroça, no intuito de olhar o que restava do

seu amigo.

É a morte? É a morte?

Oh, se ao menos conseguisse acreditar que o pobre Sheldon se libertara das suas

penas e sofrimentos... Mas não era fácil imaginar os santos lá em cima, no Paraíso, a

afinar as suas harpas no momento em que ele atravessava o portão de pérolas. Nem

vê-lo com uma auréola a cantar o Aleluia.

Jip lançou-se sobre o pedaço de tela grosseira que encobria os restos já frios do

seu amigo e pôs-se a chorar como nunca tinha chorado na vida.

Capítulo 7 : As águas negras do Jordão

O comité dos notáveis reuniu-se para decidir quem da vila, da quinta ou de Avery

deveria pagar as despesas do funeral de Sheldon. Coube finalmente ao pastor, o que

significava uma verdadeira cerimónia e não um enterro à pressa, como sempre

acontecia com os pensionistas da quinta.

Discutiu-se longamente para se saber se Put teria autorização de assistir. Por fim,

o Sr. Lyman decidiu que não, não e não, que devia ficar fechado à chave com duas

voltas na sua jaula, era mais prudente. Da cozinha, a Sra. Lyman aguçaria o ouvido

para verificar se ele ficava tranquilo.

— Garanto-lhes que vai portar-se bem — protestou Jip. — Ele tem de estar

connosco.

— Toda a gente sabe que ele é doido. Ninguém se contentará com a tua garantia.

— Não te preocupes, Jip, não tem importância — disse Put, quando o rapazinho

veio dizer-lhe. — Tu e Toddy ides cantar muito alto no meu lugar.

— Sabe que não sou capaz de cantar.

— Não, pelo contrário, és perfeitamente capaz. Há música dentro de ti, Jip. Deves

deixar que ela saia.

Para grande pena de Jip, não cantaram Tudo ficará bem durante o ofício.

Esforçara-se tanto por imaginar Sheldon no céu, rodeado de anjos a tocar harpa... No

seu lugar, cantou-se um hino um tanto lúgubre, onde se falava das águas negras do

Jordão que me rodeiam. Isto fê-lo estremecer. Não queria ver o pobre rosto do seu

amigo, tão bom, tão sorridente, engolido pelas águas geladas...

Por uma vez, os habitantes da quinta não tinham sido relegados para o fundo da

igreja, como acontecia habitualmente. Ocupavam os bancos das duas primeiras filas,

Jip sentado ao lado de Toddy, apertando-lhe a mão pequenina. Reconfortava-o sentir

o menino junto de si, porque, embora só tivesse quatro anos, parecia muito

consciente da tristeza que ele estava a sentir.

O Sr. Lyman devia ter autorizado Put a ir. Praticamente, nenhum habitante da

cidade se deu à maçada de se deslocar. Ele não teria causado medo a ninguém. Aliás,

excetuando os pobres da quinta, quem teria sentido necessidade de vir chorar a

morte de um simples de espírito? Ah, que importa? Sheldon devia ter ficado orgulhoso

de tão bonita cerimónia, com hinos e orações e até um pequeno discurso do

reverendo Goodrich, que explicou que Jesus o amava. Deixai vir a Mim os pequeninos,

dissera, e Sheldon, com a sua alma de criança, tinha certamente ido ao Seu encontro.

Não se devia chorá-lo demasiado.

O reverendo Goodrich falava bem, com os olhos fixos no grupo de fiéis, mas Jip

disse para consigo que mais valia que Sheldon não o ouvisse. Ele sentia tanto orgulho

por se ter tornado um verdadeiro trabalhador! E foi por isso que morrera. Aquele

desejo tão ardente de já não ser uma criança, mas um adulto, tinha sido a sua morte.

Tudo acabou depressa. Após a última bênção, seis homens, que o reverendo

mandara vir propositadamente, levantaram o caixão. Tirando Jip, não havia mais

ninguém para o fazer. Arrastando um pouco os pés, os habitantes da quinta seguiram-

nos até ao cemitério. Constituíam a única família que Sheldon alguma vez tivera.

Toddy agarrava-se sempre à mão de Jip. Ninguém chorava, exceto a velha Berthie.

Dava a impressão de que lhe tinham pago para isso, tanto soluçava para o seu

enorme lenço, como se tivesse acabado de perder o seu filho único, ela que nunca se

tinha preocupado com Sheldon quando ele era vivo. “Enfim, contanto que alguém

chore...”, disse Jip para consigo. “O meu amigo Sheldon merece-o bem.”

De regresso à quinta com os que estavam ainda em condições de fazer o trajeto

a pé, e isso queria dizer os Wilkens, Jip deixou vaguear o pensamento. Tanto

lembrava o amigo a apanhar os ovos ou a arrancar as ervas daninhas, como revia o

seu corpo destroçado e o montículo de terra no cemitério.

— Levas-me, Jip?

Pegou no garoto e colocou-o sobre os ombros.

— Agora canta!

— Não sei cantar, Toddy. Pede ao Put.

— Não, tu! Canta A Alegria divina e o cordeiro!

Jip tinha ouvido tantas vezes aquele hino que o sabia todo de cor. Mas falava

sobretudo da morte, e ele preferia concentrar-se em algo de diferente. Toddy bateu-

-lhe na cabeça com os seus pequenos punhos: — Canta o cordeiro, Jip!

E Jip entoou:

Venho ao vosso encontro

Juntar-me aos vossos cânticos

Salvo, salvo pela graça,

Tudo é paz e alegria divina.

A glória e os céus abrem-se para mim

Aleluia! Cantemos o Cordeiro,

Tudo ficará bem, tudo ficará bem!

Com toda a força, Toddy repetiu: — Tudo ficará bem! Depois gritou: — Outra vez!

— Acreditas mesmo que o Sheldon está a cantar o Aleluia com os anjos? —

perguntou subitamente Lucy, que durante toda a manhã não tinha dirigido a palavra a

ninguém. Agora, olhava para Jip de frente e levantava a questão que o afligia

também.

— Julgo que sim — conseguiu este responder.

Esperava em segredo que no céu houvesse realmente cordeiros. E não só o

Cordeiro de Deus. Conhecia bem os carneiros, sabia-os teimosos e estúpidos, mas,

apesar disso, gostava deles. Seria muito vazio lá em cima se não existissem, pelo

menos, alguns a passear.

Zelosamente, deu conta a Put de todos os pormenores do serviço religioso, e

nem sequer omitiu a pergunta de Lucy.

— Put, acredita que Sheldon está no céu? As harpas e o resto não me interessam

muito. Queria ter a certeza de que, no sítio onde está, há alguém que cuida dele e o

trata como homem. Ele queria tanto que o considerassem um homem.

— Tudo ficará bem, Jip, é apenas o que sei.

— Julgo que é quanto basta.

Não ficou muito admirado quando, naquela noite, ao entrar no estábulo, se

deparou com o forasteiro, que estava à espera dele.

— Não lhe disse que gosto da minha vida tal como é? Porque veio aborrecer-me

outra vez?

Jip sabia que não se deve falar aos adultos desta forma, mas aquele homem não

se parecia com nenhum dos adultos que conhecia.

— Não tem nada mais importante em que pensar?

O desconhecido sorriu, esticando os lábios finos um pouco à maneira de uma

serpente que se prepara para morder.

— Oh, quando viajo é sempre por alguma coisa de importante. Mas, como

passava por aqui, disse para comigo que já tinhas tido tempo de refletir naquilo que

te contei.

— Disse-me que talvez só houvesse uma possibilidade em mil. Até eu sou capaz

de perceber o que isso significa. — Jip absteve-se de precisar que tinha consultado

Put, para ter mesmo a certeza. — Isso significa que não há praticamente possibilidade

nenhuma.

— Esperto, hein? — Outra vez o mesmo sorriso. — Mas não desejas ter a certeza

absoluta?

Jip pegou no banco e acariciou o flanco da nervosa Bonnie. Era preciso acalmá-la

um pouco antes de começar a mungi-la.

— Não tens mesmo vontade de saber?

Jip agarrou nas tetas inchadas e fez como se não tivesse ouvido nada...

— Não? Bom, há alguém que deseja saber. Alguém de muito importante.

Apesar de todas as suas resoluções, Jip sentiu um arrepio percorrer-lhe a

espinha. Mas conteve-se. Não ia deixar que aquele homem asqueroso lhe fizesse

engolir qualquer patranha.

— Pediu-me para te levar a um local onde pudesse ver-te, olhar bem para ti. Se

não fores quem ele procura, nem te dirigirá a palavra. Mas se fores...

— E porque é que ele não vem até cá? Se é alguém de tão importante assim,

pode muito bem fazê-lo, não? Porque tem medo de se encontrar frente a frente

comigo?

— É mais complicado do que tu julgas, não sei se poderias compreender.

— Então é complicado demais para eu me preocupar.

O homem nada respondeu. Ficou por um momento em silêncio, como se

estivesse a ouvir os ruídos do estábulo — o arrulhar das pombas, o jato de leite a cair

no balde. Ao longe, ouviu-se de repente Put elevar a voz. Toddy devia ter andado à

volta da jaula e insistido que cantasse.

— No que me diz respeito, pode ir embora e voltar a ocupar-se dos seus

importantes negócios.

Mas o desconhecido não estava a ouvir Jip.

Com o olhar subitamente fixo, parecia inquieto:

— O que é aquilo? — acabou por murmurar.

— É a morte? É a morte? — clamava o cantor.

— Oh, aquilo! — respondeu Jip com um ar propositadamente indiferente. — Não é

nada. Apenas o nosso louco. Ele adora música.

— O vosso louco?

— Sim. A maior parte do tempo está fechado numa jaula.

— Então é perigoso?

A situação estava a tornar-se divertida.

— Não…enfim, contanto que esteja fechado... Tivemos o cuidado de lhe construir

uma jaula bem sólida. Atá agora, ainda não foi capaz de a quebrar.

— Tenho a impressão de que a tua vontade é ires embora daqui, hã?

— Oh, não, contam muito comigo. Sou o único que consegue acalmar o nosso

louco quando ele se excita. Pergunto-me o que se passaria se eu cá não estivesse. E

de certeza que ele não havia de gostar que me aborreçam.

Jip levantou a cabeça e obrigou-se a olhar o homem bem de frente, com um ar

subitamente amável.

— Sabe como são os loucos — acrescentou deliberadamente.

O homem empalideceu. “Ele sabe”, compreendeu “Ele sabe e morre de medo.

Não de Put, mas de outra pessoa qualquer. É por isso que já nem tem palavras.”

— Bem — acabou por acrescentar o desconhecido, depois de ter enfiado o

chapéu na cabeça. — Eu... eu hei de voltar, mas talvez não tão cedo. Tenho negócios

a tratar aqui e ali, sabes, o que me obriga a andar de um lado para o outro. Enquanto

esperas, reflete mais um pouco, meu rapaz.

Dirigindo-se para a porta, estremeceu por duas vezes. “Está verdadeiramente

apavorado”, disse Jip para consigo e, se se tratasse de outra pessoa, teria sentido

pena. Mas, naquele caso, não. Foi na verdade um pouco aborrecido ter falado assim

de Put, mas de certeza que este último compreenderia. E a sua presença tornara-se

uma espécie de proteção, o que não era de desdenhar.

Jip observou o homem a afastar-se o mais depressa que podia, e pôs-se a

cantarolar. Teria de facto música dentro dele, como pretendia Put? Ia acabar por

acreditar. Uma melodia antiga, quase esquecida, subia à superfície, como pequena

ondulação a afagar o rio quando se lança uma pedra à água.

Que tarde estranha! As águas do Jordão que engoliam Sheldon. As águas do

Jordão... Subitamente, Jip estremeceu da cabeça aos pés. Era mesmo isso, a pedra

atirada à água, uma canção de que não conseguia lembrar-se e em que se falava do

Jordão.

Com um suspiro, foi pendurar o banco no prego e saiu do estábulo. O balde

estava cheio. Apesar de tudo o que viera perturbar-lhe a calma, Bonnie tinha feito o

melhor que podia. Os animais eram tão bons! De certeza que Deus haveria de os

querer no céu. Ser-lhe-iam de certeza mais úteis do que todos os anjos a tocar harpa.

— Quem era aquele tipo?

Jip teve um violento sobressalto.

— Lucy! O que estás a fazer aqui?

— Tenho o direito de andar por onde quero. Isto aqui é a quinta dos pobres, não

uma prisão.

— Assustaste-me, só isso.

— Quem era aquele tipo que falava contigo no estábulo?

— Não sei.

— Como é que não sabes? Respondeste-lhe, que eu bem ouvi.

— Não te julgava capaz de espiar. Bem, bem, não te zangues. É verdade, não sei.

Ele acha que sabe alguma coisa do meu passado.

— Oh! E não tens vontade de saber o que é?

— Sim, claro. Mas tenho a impressão de que se pode confiar tanto nele como

numa raposa dentro de um galinheiro. Tenho a certeza de que não tem boas

intenções. E não sei o que pretende. Portanto, disse-lhe que me deixasse em paz.

Lucy pôs-se a andar ao lado dele, como se fossem velhos amigos habituados a

discutirem os problemas um com o outro. Era uma sensação muito agradável.

— De facto, foi Put que me ajudou a ver-me livre dele.

— Put? Mas Put está dentro da jaula a cantar para Toddy.

— Eu sei, mas foi precisamente quando o tipo ouviu a voz dele que ficou branco

como a cal.

Lucy encolheu os ombros:

— Mas era precisamente a canção que Toddy passa o tempo a pedir.

— Eu sei. Mas, de repente, senti vontade de inventar umas coisas, sobretudo ao

ver que ele morria de medo. Disse-lhe que era o nosso louco, que o mantínhamos

fechado numa jaula, da qual ele poderia muito bem sair um destes dias.

Lucy deitou a cabeça para trás e desatou a rir. Jip achou aquilo maravilhoso.

Olhou para ela e disse suavemente:

— Gostei de te ouvir, sabes? Aqui é raro as pessoas rirem.

— Não há muita razão para isso — respondeu. — Sei o que as pessoas dizem do

meu pai, ou seja, que era um bêbedo e um inútil. Mas sabia fazer-me rir.

— Não se é inútil quando se é capaz de fazer alguém rir.

— É verdade?

Lucy abriu a porta da cozinha e segurou-a para deixar Jip entrar.

— Não era inútil coisa nenhuma.

— De certeza que não — disse — E por vezes não consigo compreender como é

que as pessoas podem ser tão ignorantes. Tratavam Sheldon como um idiota e dizem

que Put é louco. Mas nós sabemos que não é verdade e, no entanto, somos apenas

crianças.

Ela sorriu-lhe com um olhar reconhecido e, um pouco mais tarde, segurou o

pedaço de pano que servia para filtrar o leite. Jip disse para consigo: “Vamos tornar-

-nos amigos”, o que o aliviou um pouco do peso que sentia no coração devido à morte

de Sheldon.

Capítulo 8 : Na escola

Terminada a ceifa, a Sra. Wilkens cismou que Lucy deveria ir à escola. A mais

próxima encontrava-se a quatro quilómetros e meio, para lá da pedreira, e a menina

protestou. Não tinha vontade, nem de fazer sozinha semelhante trajeto, nem de

suportar de novo os sarcasmos dos outros alunos. No tempo em que ela ia à escola da

aldeia, chamavam-lhe “a filha do bêbedo”. Como é que a tratariam agora que vivia na

quinta dos pobres? Evidentemente, se Jip a acompanhasse...

E logo a Sra. Wilkens se apressou a convencer o Sr. Lyman de que convinha que

Jip fosse também. Mas este argumentou que não queria perder tempo com a sua

instrução. Que já tentara mas não valera a pena: o professor era estúpido, a escola

estava muito degradada, os alunos portavam-se mal. Jip depressa concluiu, para

grande alívio do Sr. Lyman, que estudar não era para ele.

Mas, no verão anterior, entre o período da tosquia e o dos fenos, os caseiros dos

arredores tinham construído um novo edifício, espaçoso e confortável, equipado com

quartos de banho, e, maravilha das maravilhas, contratado uma professora de

verdade, com diploma. Quando a Sra. Wilkens soube disso, decidiu que as lições da

única mulher diplomada de toda a região eram exatamente o que convinha a Lucy. E

se esta não queria ir para a escola sozinha — o que se justificava, porque quando

regressasse já seria noite — então Jip teria de acompanhá-la. Era mais seguro.

— Já se tentou mandá-lo para as aulas — argumentou o Sr. Lyman — e não

resultou. Quando caiu da carroça talvez tenha batido com a cabeça. Seja como for,

nunca conseguiu aprender as letras.

— Oh, ele não é nada tolo — retorquiu a Sr. Wilkens. — É praticamente ele que

trata da quinta, não?

De súbito, o seu olhar tornou-se penetrante:

— E é esse o problema, não é? Se for para a escola, tudo isto aqui se desmorona.

— Para sua informação, Sra. Wilkens, sou eu que trato da quinta. Não há

absolutamente nada que dependa daquele fedelho.

— Nesse caso, ele pode ir para a escola com Lucy, como a lei o prevê, aliás.

Não se pode dizer que, noutra situação, a lei a interessasse, mas não hesitava

em recorrer a ela quando isso servia os seus intentos.

— Se o rapaz não é suficientemente esperto...

— É, é. A antiga escola é que não era suficientemente boa para ele. Cansei-me

de dizer que eram os rapazes da família Brackett que faziam o professor perder a

cabeça. Ora, um professor que não sabe ter mão nos alunos não vale grande coisa.

— Não temos com que comprar livros e cadernos.

— Tanto pior. A nova professora terá de encontrar uma solução.

E, no início da segunda semana de novembro, num dia tão suave que a neve

caída na véspera já tinha fundido, Jip e Lucy abalaram rumo à nova escola.

A Sra. Wilkens não estava pouco orgulhosa. Tinha feito um vestido novo para a

filha, aproveitando um dos seus próprios fatos de domingo. E dizia, arranjando-lhe

bem o colarinho branco:

— Assim, estás uma maravilha. Lá na escola, ninguém se vai atrever a troçar de

ti.

Jip esperava pacientemente que ela acabasse de rodar em torno de Lucy.

Segurava o balde dentro do qual Sheldon levava o almoço, e calçava as botas do

amigo, demasiado grandes para ele. Disse para consigo que, apesar da Sra. Wilkens

ter por vezes a língua afiada e a bofetada fácil, não pensava senão nos filhos. Vê-la

esmerar-se tanto na roupa da filha fazia-lhe lembrar uma gata a lamber a cria. Há

muito tempo, também ele tinha tido mãe. Era forçoso. Toda a gente tem uma, assim

como os animais. Mas, estranhamente, não conseguia imaginar a sua. Dir-se-ia que

nascera no momento de cair da carroça. Nem o desconhecido alguma vez mencionara

a mãe — apenas um misterioso e hipotético pai. Com uma hipótese sobre mil de ser

verdade. “Bem, é inútil repisar nisto”, — disse Jip para consigo.

— Lucy, temos de ir, sabes.

A menina arrancou-se às últimas carícias da mãe e correu no seu encalço.

— Eh! — gritou ao fim de alguns instantes. — Espera por mim! Vais muito

depressa!

Já no cimo da colina, Jip parou e voltou-se para a ver aproximar-se. Sim, as botas

de Sheldon eram, de facto, grandes demais para ele, mas a Sra. Wilkens recusara

terminantemente que ele fosse descalço para a escola.

— Jip, a minha mãe diz que não vai ser como antes, mas não acredito.

— O que é que não vai ser como antes?

— Na escola da aldeia troçavam de mim por causa do meu pai. Ela diz que,

agora, ninguém vai troçar. Mas tenho medo que sim, que comentem que vimos da

quinta dos pobres.

Como tranquilizá-la? Ela tinha razão, sem dúvida. Sim, haveriam de troçar deles.

Caminharam em silêncio através dos campos, em direção ao Sul, e depressa

contornaram a enorme ferida que a pedreira tinha aberto no solo e os montes de

pedras feitas em pedaços pelas explosões. Tudo isso para se ter uma verga de

chaminé ou uma escada de pedra... Via-se os traços negros da pólvora no coração dos

blocos de granito, na zona onde a dinamite os fizera explodir. Fora aquela pólvora

horrível que matara Sheldon. Jip teve um estremecimento.

— Anda Lucy, vamos apanhar a estrada.

— Tens medo? Foi por o Sheldon ter morrido aqui?

Não respondeu. Sim, talvez. O que é certo é que se afastaram da pedreira.

Ninguém estava lá a trabalhar naquela manhã. Avery devia ter mandado os homens

cortar árvores na montanha. Ele tinha toda a espécie de trabalhos, muito diferentes

uns dos outros. Desde há algum tempo que as explosões se ouviam com muito menos

frequência, porque recebera severas advertências dos notáveis da vila: nada de

provocar novos acidentes, que fariam novas viúvas e órfãos a cargo da comunidade.

Felizmente, Sheldon era um pobre de espírito que não deixara ninguém...

As duas crianças chegaram, por fim, diante da escola, cujas paredes cor de ocre

ganhavam ao sol um tom ainda mais quente. Saía fumo da chaminé. O recreio estava

vazio.

— Chegámos atrasados — sussurrou Lucy.

Jip respirou fundo, empurrou a porta branca, entrou e encontraram-se numa

grande sala um pouco sombria, com um fogão no meio. Após a intensa claridade do

exterior, foram precisos alguns segundos para os olhos se habituarem. Houve

murmúrios, depois, risos abafados. Olhavam para eles com um espanto não

dissimulado, e Jip pôs-se muito direito para disfarçar a atrapalhação. À direita do

fogão de sala estava a secretária da professora, e ele viu uma mulher alta, esguia,

com os cabelos cuidadosamente puxados para trás a sorrir-lhe.

— Ia dizer-lhes que entrassem, mas vocês foram mais rápidos — comentou esta.

— Agora, vais fechar a porta, por favor.

Jip tornou-se escarlate, o que teve o dom de fazer exultar os três irmãos

Brackett, sentados no banco do fundo. Voltou-se para obedecer, sentindo

confusamente que ia ter de aprender bem depressa as regras que ali vigoravam.

Depois, examinou o local mais em pormenor.

Havia menos de vinte alunos ao todo, os rapazes à esquerda, as meninas à

direita. Os mais pequenos estavam sentados à frente, os outros, atrás. Quanto à

professora, via-se de imediato que era soberana absoluta do seu minúsculo reino.

Parecia efetivamente uma rainha, sem manto e sem coroa, mas imbuída de uma

inegável autoridade. Falava bastante baixo e, no entanto, ouvia-se perfeitamente

cada palavra.

Jip e Lucy ficaram de pé, hesitantes, sem saberem onde se sentar. Não parecia

haver lugar nos bancos reservados aos alunos da idade deles. Deveriam juntar-se às

crianças da idade de Toddy?

— Guardem as vossas coisas no armário ali ao fundo, junto do fogão, e venham

sentar-se, por agora, na fila da frente. Primeiro, tenho de avaliar o nível de cada um

— disse a professora, que ninguém parecia tratar de outra forma senão por

“Professora”.

Estendeu um livro a Lucy, que não teve nenhuma dificuldade de ler algumas

frases simples e mandou-a instalar-se na segunda fila, junto de crianças pouco mais

novas do que ela. Para grande alívio de Jip, não lhe perguntou nada e limitou-se a

dizer a meia-voz:

— Porque não te sentas junto dos Brackett? Vou ficar contente por ver lá alguém

que seja bem comportado. — Em seguida, deu-lhe uma lousa que retirou de uma

prateleira, e um livro, escolhido de entre uma série deles. Jip nunca tinha visto tantos

ao mesmo tempo. E acrescentou, sempre sorridente: — Quando, no intervalo do meio-

dia, os teus colegas forem para o recreio, vais fazer o favor de ficar, para falarmos os

dois por uns instantes.

Os irmãos Brackett tinham, todos eles, uma estatura quase de homem, mas

comportavam-se como três garotos insuportáveis. Não fizeram nada para dar lugar a

Jip, e foi preciso um olhar severo da professora para se dignarem afastar-se um

pouco. Jip sentou-se ao lado do jovem Willie, e ali ficou, rígido, não fosse tocar-lhe.

A manhã decorreu lentamente. Deitava olhares a Lucy, que parecia muito

ocupada a fazer as somas destinadas aos mais velhos. Ele, com a ajuda dos dedos —

e mesmo dos dedos dos pés, que fazia mover dentro das botas — tentou a custo fazer

as operações mais simples que a professora lhe tinha apresentado. Examinou

também as imagens do livro e tentou decifrar algumas palavras, mas não conseguia

juntá-las como devia ser para compreender o sentido da frase.

Por fim, todos foram buscar o almoço ao armário e precipitaram-se para fora da

sala. Ele levantou-se para deixar passar os três Brackett, depois voltou a sentar-se e

ficou à espera. Sabia que não tinha nenhuma hipótese de continuar ali. Alguns dos

alunos mais pequenos sabiam não só dizer o alfabeto mas também ler palavras. Ele

nunca conseguiria alcançá-los. Quando estivessem sozinhos, teria de o dizer à

professora. Nem pensar em provocar a troça dos Brackett.

— Vem para junto de mim e senta-te.

Jip sentou-se no pequeno banco ao lado dela, o mesmo que, na antiga escola, era

reservado aos preguiçosos e aos desobedientes.

— Ninguém me disse o teu nome.

— Jip.

— Jip, que mais?

— Só Jip. Sou um abandonado. Caí de uma carroça quando era pequeno.

— E ninguém pensou em dar-te um nome?

— Julgo que no registo da cidade figura West porque me encontraram na West

Hill Road.

— Estou a ver. Hum... E nunca pensaste em escolheres tu um nome?

— Não, minha senhora.

— Tenho um amigo que fez isso. Chama-se Ezekial Freeman1... Bem, não

1 Freeman significa homem livre. Tal alusão vai ser muito importante para o desenrolar da narrativa. (N.T.)

importa. Não me cabe a mim dizer-te o que deves fazer.

Jip começava a aperceber-se de que simpatizava muito com aquela professora, e

sentiu-se um pouco triste perante a ideia de que aquele seria, de certeza, o seu

último dia na escola.

— Bem, falemos agora dos nossos assuntos. Nunca tiveste possibilidade de vir à

escola, pois não?

Abanou a cabeça, cheio de vergonha.

— Ouve, Jip. Não deves pôr essa cara. Tu não tens culpa.

— Dizem que não sou suficientemente esperto para...

— Quem diz isso? Quem?

De repente, o tom de voz tornara-se duro. Jip ergueu os olhos. Os olhos negros

da jovem mulher lançavam faíscas.

— Nunca deixes ninguém dizer-te que não és inteligente.

— Mas...

Era bem preciso revelar-lhe a verdade, que as palavras e os números davam

voltas diante dele quando tentava fixá-los.

— Tu trabalhas como um homem. Aliás, que idade tens?

— Não sei.

— Como poderias saber? Não apareceste na West Hill Road com um certificado

de batismo preso às roupas, não é?

Troçaria dele? Não, não tinha ar disso. Parecia muito zangada, mas não contra

ele.

— Se te marcar trabalhos para casa, haverá alguém na quinta que possa auxiliar-

te? Que possa ajudar-te a compensar o teu atraso?

— O Put. Talvez o Put.

— O Put?

— Putman Nelson, o nosso louco.

— Aquele que vocês encerram numa jaula?

— Quando não tem crises, é muitíssimo inteligente. E, nessas alturas, passa bem.

Somos muito amigos, eu e ele.

Pequenas mechas de cabelo tinham-se escapado do puxo severo e, de repente, a

professora pareceu mais nova, mais alegre. Sorriu de novo:

— Como ele tem sorte de te ter como amigo! E tu de o teres também.

— É verdade, minha senhora. E a Lucy podia ajudar-me. Ela lê fantasticamente

bem.

— Sim, a Lucy pode ajudar-te.

Olhou para ele atentamente.

— Não te aborrece trabalhar com uma rapariga?

— Não, porquê? O que eu quero é ficar a saber ler e contar.

— Ótimo. Nesse caso, tudo vai correr bem. Não deixes ninguém convencer-te de

que não deves regressar à escola. Vão tentar, mas é um direito teu, a lei é bem

explícita. Tens direito a, pelo menos, três meses de escola por ano.

— A lei diz mesmo que eu devo ir à escola?

Incrível! A lei preocupava-se com ele!

— Sim, vês, a lei é muito sábia. Bem, agora vai ter com os outros e almoça.

Aproveita esta bela tarde, que não haverá tantas assim.

Levantara-se, dando-lhe assim a entender que a conversa tinha acabado. Jip

correu para o armário a buscar o balde de Sheldon e precipitou-se em direção ao

recreio, iluminado pelo sol pálido de novembro.

Viu de imediato que havia briga num dos cantos, mas preferiu ignorá-la e sentou-

se num tronco para saborear tranquilamente o seu almoço de pão e queijo. Mas, mal

tinha desembrulhado a sua frugal refeição, ouviu gritos e reconheceu a voz de Lucy.

— Deixem-me em paz, seus brutos! Não vos fiz nada. Deixem-me!

Pousou o balde de imediato e precipitou-se em seu socorro. Viu Willie Brackett,

que se apoderava do balde de Lucy.

— Dá-lhe o balde! — ordenou, fazendo o possível por imitar o olhar severo da

professora, que parecia ter o dom de acalmar os mais agitados.

— Quem é que ia querer esta comida horrorosa? — respondeu Willie com um tom

afetadamente indiferente. — É coisa de pobre.

E estendeu o balde a Lucy. Sem hesitar, ela agarrou nele pela asa, deu-lhe um

forte balanço e atingiu Willie em cheio na testa. Este deu um berro de animal

selvagem. Lucy virou-lhe logo as costas, enquanto os outros alunos se afastavam para

a deixar passar.

— Anda, Jip — disse. Foram sentar-se no tronco, um ao lado do outro. Os gritos

de Willie tinham atraído a atenção da professora, que apareceu na soleira da porta.

— Anda — chamou. — Pareces ter um grande “galo”, vou pôr-te uma compressa

de água fria.

Lucy baixou a cabeça e murmurou:

— Jip, achas que ela vai dar-me com a cana?

— Mas, porque achas que ela vai fazer isso?

— A minha mãe disse-me que não é permitido brigar no recreio. Na outra

escola...

— Não creio que aqui seja igual. Mas tem cuidado quando bateres em alguém.

Podes levar o troco.

Lucy encolheu os ombros.

Willie Brackett ficou quase toda a tarde sentado no banco, ao lado da secretária

da professora, com um lenço molhado na testa. Depois, uma meia hora antes do fim

das aulas, ela mandou-o para o lugar e disse a todos que fechassem os livros e

guardassem as lousas.

“Bem, vai ser agora”, pensou Jip. Lançou um olhar a Lucy. Esta apoiava a cabeça

nas mãos. Via-se bem que estava com medo, mas, em lugar de punir ou de ralhar, a

professora pegou num grosso volume que estava sobre a secretária e começou a ler

em voz alta. Nem olhou para se certificar de que estavam a ouvi-la. Pareceu

mergulhar nas palavras, um pouco como alguém que se deixasse cair em cima de um

colchão de penas.

Entre outros edifícios públicos de uma certa cidade que, por múltiplas razões, vou

ter a prudência de não nomear, e a que também não desejo dar um nome fictício,

existe um cuja presença se tornou, desde há muito, habitual na maior parte das

cidades, grandes ou pequenas: refiro-me a um asilo; e foi neste asilo que nasceu,

num dia cuja data não tenho necessidade de precisar, porque não teria qualquer

importância para o leitor, pelo menos neste ponto da história — foi, pois, neste asilo

que nasceu o pequeno mortal cujo nome figura como título de todos os capítulos, e

que aqui repito: Oliver Twist.

No início, Jip teve dificuldade de seguir a leitura. As palavras volteavam-lhe na

cabeça mas, pouco a pouco, foi-se descontraindo, e começou a escutar a voz doce da

professora, que se assemelhava a uma ária musical. Sentia-se que ela gostava do que

lia…

Ao subirem a estrada, tendo o cuidado de não passar muito perto da pedreira, Jip

atreveu-se a perguntar a Lucy o que achava daquela leitura.

— Pareceu-me estranho — respondeu ela. — Nunca ouvi dizer que uma

professora lesse histórias aos alunos. Ou, então, só aquele género de coisas que nos

ensinam a sermos bons cristãos.

— Não vais denunciá-la!

— És maluco ou quê? Claro que não! Tomas-me por uma imbecil?

— Aquele rapaz do asilo, o Oliver...

— O asilo é ainda pior do que a quinta dos pobres…

— Ele nasceu…

— E a mãe, coitada, tão bonita, que morreu...

— Ele também não sabia quem era.

Lucy ficou silenciosa por um momento e depois declarou:

— Sabes, julgo que vai acabar por descobrir.

— Como?

— Se não, não haveria história.

— É verdade?

— Sim.

Caminharam um momento em silêncio.

Jip deu pontapés a algumas pedras, depois parou. Se estragasse as botas de

Sheldon, teria direito a uma sova.

— Talvez eu também pudesse descobrir.

— O quê?

— Bem, de onde venho. Sem que o raio do forasteiro se meta. Não achas?

— Talvez. Em todo o caso, não convém perdermos nem que seja um dia de

escola, para ficarmos a saber o que aconteceu ao Oliver.

— Nem um!

E Jip estreitou ao peito o livro de leitura que a professora lhe tinha emprestado,

pedindo-lhe que, com a ajuda de Put, revisse muito bem as letras.

Capítulo 9 : A festa

Mal chegaram ao prado grande que ficava ao lado da quinta, Jip desatou a correr.

Put! Com a excitação daquele primeiro dia de escola, quase o tinha esquecido! Os

Lyman deviam tê-lo mantido fechado na jaula. Ninguém se arriscava a deixá-lo sair,

exceto Jip. Pobre homem, encerrado lá dentro como um coelho na sua toca... Jip foi

buscar a chave ao armário da cozinha e precipitou-se para o compartimento. Lucy foi

ter com ele e ambos levaram Put para o pátio. Este precisava de desentorpecer um

pouco os membros, embora o sol tivesse desaparecido há um bom momento.

— Está escuro, escuro, escuro...

Jip sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias.

— O que está a dizer, Put?

— Está escuro, escuro, escuro...

— Sim, é quase noite, são horas de entrar, venha.

E se fosse tarde demais? E se ele não entrasse? Anoitecia cedo naqueles

princípios de novembro e Put não se sentia bem quando havia menos luz. Jip deu-lhe

a mão e tentou guiá-lo em direção à porta da cozinha.

— Venha, vamos entrar.

— Está escuro, escuro, escuro...

— Sim, é verdade, também não gosto lá muito. Vamos, sim? Deite-se bem ao

quente, enquanto lhe arranjo alguma coisa, um pouco de sopa, por exemplo. Depois,

já se vai sentir melhor.

Put não se mexia. Jip lutou contra o sentimento de pânico que o invadia. E se o

idoso se recusasse a entrar? O que aconteceria?

— Dê-me a mão, a direita. Lucy vai pegar-lhe na esquerda, assim...

Fazia o que podia para que a voz não traísse nenhuma ansiedade. Lucy,

obediente, pegou na grossa mão calosa como se se tratasse da mão pequenina de

Toddy, quando o levava a passear.

— Vamos, um passo, mais um, agora outro. Não é longe. Atenção ao degrau,

isso.

— Está escuro, escuro, escuro...

— Mais um passo, assim. Com a mão livre, Jip abriu a porta da cozinha e,

milagrosamente, conseguiu levar Put e Lucy até ao compartimento. Escorria suor e,

quando, por fim, fechou a porta à chave, os dedos tremiam-lhe como se tivesse febre.

Ao ouvir o ruído da chave, Put levantou a cabeça, mas não disse nada.

— Lucy — murmurou Jip, com os olhos fixos no amigo — fazes o favor de ir

buscar-lhe alguma coisa quente? Leite, por exemplo. Eu vou ficar junto dele, julgo que

é melhor.

Ela assentiu com a cabeça e foi a correr. Quando voltou, segurando com

precaução uma tigela fumegante, Jip bebeu um gole para verificar a temperatura, e

depois fê-la passar para o interior da jaula através da pequena abertura.

— Aqui está, é para si, que a Lucy trouxe. Leite bem quente. É bom, não é?

Put voltou-se lentamente para ele. Oh, meu Deus... tinha o olhar de um cavalo

enlouquecido. Jip não pôde impedir-se de dar um salto para trás quando a tigela se foi

estilhaçar contra o fundo da jaula, num grande estrépito de louça quebrada, e o leite

esparrinhou para todo o lado.

— Put! — gritou Lucy. — Pare!

Ele sentiu vontade de gritar, mas para quê?

De nada serviria. Put tinha partido para longe deles, pelo menos durante algum

tempo.

Primeiro, já sem pensar em jantar, os pensionistas mantiveram-se apertados uns

contra os outros, incluindo os Lyman, a uma distância prudente da porta do

compartimento. Depois, Toddy começou a chorar. A Sra. Wilkens tomou as coisas em

mãos e empurrou toda a gente para a cozinha. Naquela noite, Jip não comeu nada.

Nem sequer ouviu os outros subirem para se deitar. Quando entrou no quarto para ir

buscar o cobertor, os homens dormiam, e ele desceu logo a seguir para prosseguir a

sua vigilância solitária.

O demente gritou toda a noite. Cortou o rosto e as mãos com os fragmentos

partidos. Até que Jip foi buscar um ancinho, que introduziu por entre as tábuas, para

tentar retirar o maior número possível de cacos. Mas Put agarrou no cabo e quebrou-

-o em cima dos joelhos. Depois, brandiu uma parte na direção do rapazinho.

— Oh, Put! — soluçou ele em silêncio. — Não me abandone agora. Tenho tanta

necessidade de si. Como posso fazer os deveres se não estiver cá para me ajudar?

Jip não dormiu praticamente toda a noite, que passou sentado no chão junto da

jaula, enrolado no cobertor, a escutar os gritos inumanos que ressoavam na escuridão

como um canto diabólico. Sabia que não poderia ir às aulas no dia seguinte, tão

cansado se sentiria. Put acabou por ficar prostrado, mas virava-se e voltava a virar-se,

gemendo em cima da enxerga.

De manhã cedo, a Sra. Wilkens apareceu e mostrou-se inflexível.

— Vai mungir a vaca, ela não me deixa aproximar. Eu faço o resto das tarefas do

costume, mas trata tu da vaca. Quanto à escola, ao que parece, Lucy não quer ir sem

ti.

— Precisas de vir — veio esta murmurar-lhe ao ouvido. — Sabes porquê? Temos

de saber o que aconteceu ao Oliver Twist.

Jip passou um lenço molhado pelo rosto. Os olhos ardiam-lhe. Teve grande

dificuldade de percorrer o longo caminho e, mal se sentou no banco, caiu num sono

pesado, com a cabeça em cima da mesa.

Willie Brackett assestou-lhe uma pancada no crânio, gritando:

— Professora! Olhe o cigano que ronca como um cão velho!

— Deixa-o em paz — respondeu simplesmente a mestra.

Jip dormiu toda a manhã. Mal se apercebeu da saída dos outros à hora do almoço

e, em seguida, do seu regresso. No entanto, ao passarem, os três Brackett não se

coibiram de o empurrar. Mas, quando a professora disse a todos que guardassem

livros e lousas, Jip acordou de repente e escutou com avidez a continuação das

aventuras de Oliver.

A crise de Put durou até à sexta-feira seguinte. Todos os dias, Jip passava-lhe pão

e queijo pela abertura, e também água, numa vasilha de madeira que ele não podia

quebrar. Por vezes, o idoso lançava-se sobre a comida como se estivesse a morrer de

fome. Outras vezes, parecia nem mesmo dar conta da presença de Jip. Os cabelos

estavam completamente emaranhados. Tinha a barba cheia de saliva e de migalhas.

A enxerga tresandava a urina.

O rapazinho ficava desolado ao vê-lo assim. E, embora pouco acreditasse na sua

utilidade, obstinava-se a trautear pequenas árias sempre que o pobre louco

recomeçava a gritar. Por vezes, Lucy acompanhava-o. Tudo ficará bem, tudo ficará

bem, cantavam juntos a plenos pulmões, conscientes de que nada estava bem.

A rapariguinha fazia Jip repetir as letras e a tabuada. Mas, quando este aprendeu

a recitar o alfabeto sem se enganar, ela ficou sem saber o que mais poderia propor-

-lhe.

— Podias aprender a escrever o teu nome — sugeriu. — Se se pode dizer que isso

é um nome.

— É o único que tenho — respondeu, e por um triz não acrescentava — de

momento. Na realidade, ele já sabia escrevê-lo mas, para não contrariar Lucy, fez

como se ainda não soubesse. Ela mostrou-lhe então com orgulho como formar um J,

um I e um P sobre a lousa emprestada pela professora e, em seguida, um W, um E,

um S e um T, porque West parecia ser o nome de família com que ele figurava no

registo da pequena vila.

— Tens sorte — disse. — É bem mais fácil de escrever do que Lucy Wilkens.

— Sim, pelo menos é mais curto.

Decidiram em seguida passar aos nomes de toda a gente que conheciam, e

depois as primeiras linhas da oração que recitavam de manhã, antes do início das

aulas. Jip suspirou:

— Vou levar um tempo infinito até saber ler tão bem como a professora.

— Put há de ajudar-te quando estiver melhor — reconfortou-o Lucy.

A professora encorajou-o também:

— Está atento quando eu marcar trabalhos para os mais pequenos. Não tens

necessidade de estar sentado no meio deles para ouvires o que eu digo. E, do teu

lugar, faz os exercícios que lhes dou. Vais ver, hás de progredir bem depressa.

E ele tanto insistiu que fez efetivamente progressos muito rápidos, ainda que as

palavras estivessem muitas vezes cheias de armadilhas. Dava-lhe a impressão de que

as letras lhe pregavam partidas: algumas não se pronunciavam, enquanto outras

mudavam de tonalidade sem se perceber o motivo. Não era justo! Elas deviam ter

uma base sólida sobre a qual se apoiar sem problemas. O mais curioso é que isso não

parecia incomodar os mais pequenos, que aceitavam aquelas estranhas variações

sem discutir.

Ao cabo de cerca de duas semanas, Put, o seu velho Put, de quem gostava tanto,

começou, a pouco e pouco, a libertar-se daquele véu de loucura que tinha caído sobre

ele. Manifestou um vivo remorso quando viu o seu estado e o da jaula.

— Começa a fazer-se escuro em mim e sou completamente engolido, Jip.

Gostaria tanto de poder lutar contra as trevas, mas, sempre que isto acontece, sou

derrotado.

Jip teria gostado de lhe responder que não tinha qualquer importância, que ele

compreendia. Mas, na realidade, tinha muita importância. Como se podia

compreender aquela força obscura que rodava em torno do seu amigo, sempre pronta

a apoderar-se dele, praticamente sem o prevenir?...

Uma vez lavado, vestido com roupas limpas, de cabelo, barba e unhas bem

cortados, o novo Put revelou-se um mestre-escola perfeito. Insistiu contudo em dar as

lições do interior da jaula, porque não se sentia muito seguro de si durante os meses

de inverno. Só aceitava sair para tomar banho, o que parecia, simultaneamente,

relaxar-lhe o corpo e apaziguar-lhe o espírito. E era naquela altura que Jip

aproveitava, por exemplo, para lhe cortar as unhas. Retirou-lhe também a velha

enxerga suja de excrementos e colocou uma nova. Lavou o cobertor, que a Sra.

Wilkens, depois de ter protestado, finalmente consentiu em remendar.

— Há um problema — declarou Put. — Preciso de óculos para te ajudar a

aprender as lições. Ficaram com os meus, antes de me mandarem para cá.

A princípio, Jip não soube o que fazer. Onde é que iria arranjar dinheiro suficiente

para pagar os óculos de Put? Sabia muito bem que o Sr. Lyman recusava dar-lhe

dinheiro. Mas Lucy teve uma ideia. No armário onde a Sra. Wilkens guardava as

roupas dos pensionistas mortos na quinta, havia um pequeno cesto cheio de óculos.

Jip hesitou. Perguntava-se se seria honesto ir lá buscá-los sem dar satisfações a

ninguém.

Mas Lucy não teve tais escrúpulos. Sem ninguém se aperceber, pegou no cesto,

levou-o a Put, e este só precisou de os experimentar a todos até encontrar os que

mais lhe convinham.

— Ficam-me bem? — quis saber.

— Isso não importa — respondeu Lucy.

— Consegue ler agora? — perguntou Jip, com uma voz inquieta.

— Não vou começar a ler sem que vocês me digam que os meus novos óculos

me ficam bem.

— Meu Deus! — exclamou a menina. — Vejam só! Onde a vaidade se pode

esconder!

Jip desatou a rir. Era maravilhoso ver o seu velho amigo novamente de volta.

Toddy insistiu que queria assistir às lições, mas, no início, a Sra. Wilkens não o

permitiu senão com muitas reticências e com a condição de ficar por perto. No

entanto, compreendia a que ponto a criança era afeiçoada ao idoso e não tinha

coragem para a afastar demasiado.

Um dia, Lucy e, a seguir, Jip surpreenderam a Sra. Lyman a tentar persuadir o

marido de que tinha chegado o momento de ele mandar Put para o asilo. A última

crise tinha-a deixado aterrorizada, e a vida na quinta tornava-se sempre mais dura ao

longo dos meses frios de inverno. O Sr. Lyman descia cada vez com mais frequência

as escadas da cave, para beber um reconfortante copo de cidra. Mas os dias estavam

a diminuir. O mesmo acontecia ao orçamento, e o Sr. Lyman comentou simplesmente

que Jip gostava de ter alguém a quem dar mimos e que, contanto que se mantivesse

o doido fechado na jaula, ele não viria a tornar-se perigoso.

— Não acha perigosos aqueles gritos e pragas, Sr. Lyman?

— Não é obrigada a ouvi-los, Sra. Lyman. Nessas alturas, uma cristã que se

preza, o que faz é tapar os ouvidos.

— E pode dizer-me, Sr. Lyman, como é que uma cristã que se preza consegue

tapar suficientemente os ouvidos no meio de uma algazarra daquelas? Pode dizer-

-me?

Mas o Sr. Lyman limitou-se a tomar a direção do quarto, com o copo de cidra na

mão. A discussão ficara encerrada. Pelo menos, por enquanto.

A professora anunciou que tencionava organizar uma festa no último dia antes

das férias de Natal. Todas as famílias tinham sido convidadas e foi-lhes pedido que

levassem provisões para a merenda. Os alunos dariam um espetáculo às duas horas.

Jip sabia muito bem que o Sr. Lyman recusaria oferecer o que quer que fosse a quem

era mais rico do que ele — parecia-lhe estar já a ouvi-lo — e resignava-se com a ideia

de não poder assistir à festa. Mas, como Lucy possuía uma linda voz, a professora

havia-a incumbido de cantar uma ária a solo, pelo que a menina, muito orgulhosa,

tinha metido na cabeça que, além de Jip e ela, a mãe e Toddy tinham absolutamente

de estar presentes.

A Sra. Wilkens insistiu com a Sra. Lyman até esta consentir em lhe dar um pouco

de farinha e de xarope de ácer, o suficiente, ainda assim, para preparar um pequeno

bolo. Quanto ao resto, teriam de contentar-se, como nos outros dias, com pão, queijo

e maçãs.

Mas começou a nevar com abundância e a estrada revelou-se intransitável, pelo

menos para Toddy. A Sra. Wilkens decidiu então confiá-lo, bem como a irmãzinha, aos

cuidados da velha Berthie e, corajosamente, meteu pés ao caminho. Ao sair,

conseguiu mesmo que lhe emprestassem uma lanterna, que, de regresso, seria útil a

todos.

Os caseiros dos arredores tinham oferecido um pinheiro e ramagens bem verdes.

A professora fizera o possível para arranjar velas, que brilhavam por todo o lado.

Quando a festa começou, a sala de aula irradiava luz.

O recreio depressa se encheu de trenós e de cavalos. As pessoas

cumprimentavam-se, riam-se, soltavam exclamações, e todos ocuparam o seu lugar

nos bancos. As crianças foram convidadas a sentar-se no chão, junto da secretária da

professora, que lançou um olhar severo aos três Brackett, quando estes começaram a

protestar que não seria cómodo. Teve o cuidado de os colocar bastante longe uns dos

outros. Depois, deu-se início ao espetáculo.

O neto do pastor Avery leu, do Evangelho de S. Lucas, a passagem referente à

Natividade. Várias meninas recitaram poemas. Os mais novos esforçaram-se por

cantar algumas árias muito simples. Depois, chegou a vez de Lucy. Com uma voz

clara, ela entoou a mensagem do anjo aos pastores:

Não receeis nada,

Pois vos anuncio uma grande alegria,

Que o será para todo o povo.

Jip sentia-se contente de apenas fazer parte do coro. Não teria gostado de estar

em destaque diante de toda a gente, mas via o quanto Lucy gostava disso. Esta não

parecia constrangida por estar com um vestido feito de uma velha roupa de Berthie.

De olhar altivo e queixo erguido, cantava com os olhos brilhantes:

Hoje, na cidade de David,

Nasceu-nos um Salvador

Que é o Messias, Senhor.

Encontrareis um menino

Envolto em panos

E deitado numa manjedoura.

Jip cantou o refrão juntamente com os outros, mas, na verdade, não estava a

ouvir. Pobre ao extremo de nascer num estábulo, Jesus descendia, apesar de tudo, da

linhagem de David. O que queria dizer que não era impossível que um rapaz como

ele…

Olhou para a Sra. Wilkens, cujo rosto, habitualmente tão duro, se encontrava

nimbado de doçura. Também a professora parecia diferente dos outros dias. Trazia

um vestido azul claro com um colarinho de renda. Tinha as faces rosadas e o olhar

brilhante. Jip viu-a virar-se ligeiramente e lançar um olhar em direção ao fundo da

sala, onde se encontrava um homem alto, um pouco afastado dos outros e parecendo

não ter olhos senão para ela. Era a presença dele que fazia com que o seu rosto se

colorisse assim? Willie Brackett tocou com o cotovelo em Jip.

— Parece que a professora encontrou um namorado — cochichou ele, enquanto

as pessoas aplaudiam Lucy.

O rapazinho sentiu um espinho no coração. Não era nada de espantar, é claro, e

no entanto... A ideia de que alguém pudesse reter a atenção da professora deixava-o

um pouco triste. Ela só deveria pertencer aos seus alunos. Ora via-se bem que o

desconhecido a devorava com os olhos. Willie tinha razão.

O programa estava prestes a acabar. Toda a gente se levantou, as crianças

foram para junto dos pais. Lá fora, caía o crepúsculo.

— Mamã, não vamos já embora! — suplicou Lucy. — Ficamos para a merenda.

Ainda saboreava o seu triunfo. Era ela que tinha colhido os mais fortes aplausos,

mesmo os da mãe.

— Só um bocadinho — respondeu a Sra. Wilkens, arranjando algumas madeixas

rebeldes à volta do pequeno rosto afogueado. — Vai anoitecer depressa.

A professora deve ter ouvido, porque se aproximou.

— Veio a pé, Sra. Wilkens?

Esta assentiu com a cabeça.

— Vamos arranjar alguém para os levar a casa de trenó. As crianças que

aproveitem a festa.

Dir-se-ia que, ao oitavo dia, Deus decretara: “Faça-se o alimento” e o alimento

fora feito. As mesas estavam cobertas de iguarias, tartes de maçã ou de abóbora,

pudins, biscoitos com compota, bolos cobertos de xarope de ácer. E tudo estava

delicioso.

— Como é que se chama isto? — perguntava Jip a Lucy, enquanto saboreava uma

nova iguaria. Ela dizia-lhe o nome — e se não sabia, inventava. Pouco importava, ele

gostava de todos os bolos! E para decidir qual era o seu preferido, tinha de os

experimentar um após outro.

— Vais ficar doente — advertiu a Sra. Wilkens.

Mas não tentou impedi-los, a ele ou a Lucy, de se servirem e de voltarem a

servir-se. Foram os últimos a ir embora. O amigo da professora apagou o fogão — não

haveria escola nos próximos três dias. Ajudado pelas duas crianças, guardou

cuidadosamente num cofre as decorações que poderiam servir para o ano seguinte.

Jip pegou numa vassoura para varrer todas as agulhas de pinheiro que juncavam o

chão. Mas a professora deteve-o.

— Não, é simpático da tua parte, mas por hoje basta. Já é tarde e, quando as

férias terminarem, vai ser preciso varrer de novo. Deita apenas estes ramos ao lume,

por favor, e depois o Sr. Stevens vai levar-nos a casa.

E dirigiu ao “Sr. Stevens” um dos seus mais encantadores sorrisos. Jip precipitou-

se para fora, com os braços carregados. Estava muito escuro. Willie dissera “um

namorado”. Que ideia desagradável. Mas ao ver aquele sorriso, tinha de admitir que...

— Eh, tu aí!

Jip sobressaltou-se. A princípio, sentiu medo, depois reconheceu a silhueta

dissimulada na sombra. Era o mais velho dos Brackett.

— Addison? Julgava que tinhas ido para casa com os outros.

— Queria “falar-t'em” particular, mas na escola não houve maneira.

— Queres dizer-me alguma coisa? O quê?

— Há um tempo, chegou um tipo à cidade...

Jip pousou os ramos no chão. Esperava que Addison não visse a que ponto tinha

começado a tremer.

— Não sei porquê, mas ele interessa-se muito por ti. Até me deu uns soldos

“pr'a” eu te vigiar.

— A sério?

— A sério. “Tou-t'a dizer”. Ando “d'olho” em ti.

— Jip!

Era a professora que estava a chamar.

— Ouve. Preciso de ir.

— O.K! Mas “tás” prevenido. Não quero chatices por tua causa. Não “tou” a

brincar, hã?

— Não faço tenções de fugir para parte nenhuma, se é o que queres dizer.

E voltou para trás a correr até à porta da escola, com o coração a bater

desenfreado. Bem, era só o Addison Brackett a dizer disparates à moda dele.

— Está tudo bem, Jip? — perguntou a professora.

— Sim, sim, está tudo bem — respondeu.

Mas tinha dificuldade em articular as palavras.

Capítulo 10 : Uma visita

Os três dias de férias pareciam nunca mais acabar. Quando, de repente, se

descobre na vida coisas tão maravilhosas como a escola, os amigos, uma professora

que lê histórias, começam os aborrecimentos, porque essas coisas fazem uma falta

desesperadora quando deixam de existir.

Antes, Jip contentava-se em viver um dia após outro. As horas passavam,

ocupadas com os trabalhos da quinta, os cuidados a ter com os animais. Se a comida

era má, quase nem reparava, exceto quando não podia comer o que tinha na

vontade. Agora, tanto o seu espírito como o seu corpo reclamavam aqueles manjares

que tinha saboreado. Exigiam mais. A rotina do passado já não os satisfazia. Agora, a

vida parecia-se com uma sopa mal feita, que nem tempero tinha.

E se, ao menos, Put estivesse bem, se se tornasse para sempre o bom e sensato

Put que cantava Tudo ficará bem, daria pancadinhas leves na cabeça de Toddy e faria

crer a Jip que ele era o mais inteligente de todos os rapazes... Estranhamente, quando

se via através do olhar de Put — um Put no seu estado normal, é claro — Jip sentia-se

diferente. Deixava de ser uma criança abandonada, que caíra de uma carroça e que

ninguém tinha tentado reencontrar, e tornava-se o rapaz que melhor sabia lidar com

os animais, que fazia sozinho quase todo o trabalho da quinta, e que nem os

pensionistas nem os Lyman podiam dispensar.

Mas, quando Put era apanhado pelas suas crises de raiva ou quando mergulhava

num mutismo denso como uma camada de nevoeiro, parece que o próprio Jip

desaparecia. Oh, na realidade, ele continuava ali, é claro, realizava todas as tarefas

habituais, mas voltava a ser o rapaz que não sabia ler, aquele que uma pancada na

cabeça, no momento da sua famosa queda, tornara provavelmente atrasado, mais

próximo dos animais ignorantes do que dos homens.

Invadia-o um sofrimento surdo, o mesmo que Sheldon devia ter conhecido,

aquela imensa tristeza de não ser como os outros, de não estar à altura deles. Aquilo

que custara a vida ao seu pobre amigo, que não era tão atrasado quanto se poderia

pensar, fora o desejo louco de ser tratado como um homem. Ele conhecera a mágoa

que se sente quando se foi rejeitado pelos seus semelhantes e não se pôde viver —

senão por alguns dias de uma vida toda ela miserável — a experiência de se tornar

adulto. Oh, Sheldon, não te compreendi o suficiente, poderia ter-te ajudado mais!

Jip agarrava-se às grades da jaula de Put. Volta! — suplicava em silêncio. Mas Put

parecia mergulhado num torpor que o isolava do mundo inteiro.

A escola recomeçou, mas Jip não voltou a ir. Na véspera do início das aulas, o Sr.

Lyman informou-o de que doravante teria de ficar na quinta:

— Não posso dar-me ao luxo de te deixar ires divertir-te, enquanto Put estiver

neste estado. Ele aterroriza as mulheres e as crianças. É o teu queridinho, não é?

Então, trata dele, se não, vou ser obrigado a mandá-lo para o asilo, mesmo que isso

nos tire pão da boca. Percebido?

Jip tinha compreendido. Para ele, acabara a escola. Nunca devia ter afagado o

sonho de que poderia continuar. Quando Lucy soube, bateu o pé e recusou-se a ir

sozinha.

— Vai sim, Lucy, se não, nunca virei a saber o que aconteceu ao Oliver Twist. E

ouve com atenção, para me contares tudo à noite, quando regressares.

— Julgo que a professora não vai ficar contente por não voltares a ir.

— Não há nada a fazer. Não vou deixá-los mandar Put para o asilo. Lembra-te de

como ele estava à chegada, com os braços e as pernas amarrados...

Mas ela não podia lembrar-se. Nessa altura, ainda não morava na quinta.

— É de lei, foi o que a professora disse. Tens direito a pelo menos três meses de

escola por ano, e tu nem um tiveste.

— O Sr. Lyman diz que não sou capaz de aprender.

Lucy fungou com um ar de desdém.

— Eram precisos no mínimo dez cérebros do Lyman para conseguir fazer metade

do teu.

Jip não pôde impedir-se de sorrir.

— Então, preciso que me ajudes, Lucy. Vai à escola por nós dois.

— A professora perguntou porque não estavas presente — anunciou ela na

primeira noite — e o Addison Brackett também, mas eu disse-lhe que se metesse na

vida dele.

Jip tentou não voltar a pensar em Brackett, emboscado na escuridão, perto da

escola.

— Ela leu a história do Oliver Twist?

— Esteve para não o fazer, porque faltavam vários alunos. Mas, na realidade, os

dois ausentes eram o pequeno Turner e tu. Dei-me conta, nessa altura, de que ela

estava a pensar sobretudo em ti.

Jip sentiu-se corar. A professora preocupava-se com ele!

— Mas toda a gente protestou, inclusive os Brackett. Então gritei: — Professora,

eu conto tudo ao Jip! — e ela disse, muito meiga: — Nesse caso, ouve com atenção,

porque ele vai querer que lhe contes os mais pequenos pormenores.

— É verdade que ela disse isso?

— Ora, eu não ia inventar. Vê-se bem que és o preferido dela.

— Não! Ela sabe simplesmente que preciso de fazer muitos progressos se quiser

alcançar os outros. Bem, anda agora comigo para o galinheiro e conta-me a

continuação da história.

Quando se instalaram, Lucy começou:

— Lembras-te de como o Oliver foi apanhado enquanto o Raposo estava a

roubar?

— Sim, claro. Não me esqueci de nada. Não precisas de voltar a contar o que se

passou antes, Lucy, preciso de me despachar. Tenho de recolher os ovos e, depois,

mungir a vaca.

— Então, adiante: um senhor muito bom interessou-se pelo Oliver e recebeu o

pobre órfão em casa, para ele viver nela como se fosse o seu filho adotivo.

— Achas que...

— Que o quê?

— Que esse senhor muito bom poderia ser... enfim... é o seu verdadeiro pai?

— Não, é velho demais. E não é casado.

— Deixa lá, não tem importância.

Mas para Jip tinha.

E assim, todas as noites, ao chegar da escola, Lucy contava-lhe uma parte da

narrativa. Ela fazia o melhor que podia, no entanto, não era o mesmo que ouvir ler a

verdadeira história. Jip tentava imaginar a voz da professora, articulando cada

palavra, mas, apesar dos seus esforços, não conseguia.

— Não é a mesma coisa — disse tristemente.

— O quê?

— Ouvir o que me contas e ouvir a verdadeira história.

— Faço o que posso! Nunca pretendi ser capaz de aprender tudo de cor!

— Eu sei, eu sei. O que tu dizes está muito bem — apressou-se a acrescentar. Se

ela se zangasse, poderia não voltar a fazer aqueles magros resumos.

Passou uma semana. Put não melhorava.

O Sr. Flint apareceu uma tarde, para deitar um olhar ao louco. O Sr. Lyman

reteve-o o tempo que pôde na cozinha enquanto Jip se precipitava para o

compartimento. Meteu os dois braços no interior da jaula e esforçou-se por passar um

lenço molhado nos cabelos sujos e emaranhados de Put, enquanto lhe murmurava:

— Deixe-me fazer isto. Só quero arranjá-lo um pouco, porque o Sr. Flint está cá.

Veio fazer-nos uma visita e tenho muito medo que decida mandá-lo para o asilo. O

que é que seria de mim se o Put não estivesse aqui? É o meu amigo, o melhor que eu

tenho no mundo. Como é que eu teria coragem de os deixar amarrá-lo e levá-lo? Se o

meterem no asilo, há de ser para sempre, e não voltará a poder sair para apanhar sol,

como gosta.

O grande corpo de Put estremeceu, mas foi tudo. Nem uma palavra, nem um

gesto na direção de Jip.

— Put, ouça-me. Pense em si, no que será viver no asilo, tendo loucos por única

companhia. Sem o Toddy para quem cantar. Sem a Lucy, sem o Jip. Vamos, estenda

as mãos para eu as limpar. Elas bem precisam.

Nada. Nenhuma resposta. O rapazinho sentiu o desespero invadi-lo.

— Put, Put, não temos tempo a perder. O superintendente dos pobres vai cair-

-nos em cima dentro de alguns minutos. Peço-lhe, volte-se para eu poder lavar-lhe a

cara e as mãos. Faça-o por mim... Por si... Não vai querer que o Sr. Flint o expulse

daqui!

A porta do compartimento abriu-se e Jip deu um salto para trás, dissimulando o

lenço atrás das costas, não fosse este vir a ser utilizado como prova contra o seu

amigo.

Por um instante, o Sr. Flint examinou-lhe as costas, que continuavam imóveis e,

depois, colocando um lenço no nariz, contornou a jaula.

— Vocês nunca o lavam? — perguntou, depois de ter olhado com repugnância

para os pés sujos de Put. A pergunta dirigia-se ao Sr. Lyman, que, subitamente muito

embaraçado, apontou Jip com o queixo.

— Encarregaram o garoto de cuidar dele?

O Sr. Lyman parecia não saber o que responder. Jip avançou timidamente:

— Senhor, fui eu que pedi autorização para me ocupar do Sr. Nelson. Entendemo-

nos bem, eu e ele. E... bem, é... quase como um pai para mim.

— Um quê?

Jip corou.

— Quer dizer, já que sou órfão, gostava de poder tratar de alguém. É como se

tivesse família.

O Sr. Flint, com um ar cada vez mais arrogante, pareceu refletir um instante,

sempre com o lenço apertado no nariz.

— Bom — declarou por fim — para já, não tem um ar muito perigoso.

— Sim senhor, quero dizer, não senhor.

— Está bem, continuem.

E os dois homens saíram, batendo com a porta.

— Faltam-lhes boas maneiras, não acha? — disse Jip, esforçando-se por sorrir.

Mas as costas continuaram imóveis.

Foi muita sorte que o Sr. Flint tivesse vindo num dia em que Put estava

prostrado, e não num daqueles dias em que gritava e se atirava contra as tábuas da

jaula, vociferando e dizendo obscenidades assustadoras. “Apesar de tudo,” dizia Jip

para consigo, “antes vê-lo desvairado, pelo menos sabe-se que está vivo, do que

mergulhado neste torpor horrível.” Tudo ficará bem, pôs-se ele a cantar em voz baixa,

na esperança de ser ouvido — mas foi mais uma vez em vão.

Passou uma semana e, um dia, a professora apareceu na quinta. Tocou à porta

grande, o que transtornou de imediato a Sra. Lyman, porque já não se entrava por ali

há muitos anos, e os gonzos estavam de tal modo enferrujados que não havia

maneira de mover a porta. Disse pois a Jip que fosse a correr prevenir o visitante ou a

visitante que tinha de entrar pela cozinha — “como faz qualquer cristão que se preze”

— fez questão de sublinhar.

Quais não foram a surpresa e a alegria do rapazinho quando viu que se tratava

de uma visitante, a professora em pessoa, agasalhada num xaile espesso e com um

grande gorro na cabeça.

— Professora? — disse.

— Jip! Como vais?

Estava tão bela, alta e esguia, com os olhos a brilharem de uma tal forma que se

sentia o desejo de ver aquilo que eles viam.

— Estás bem?

— Vai-se indo — respondeu. Sentia o rosto em chamas, debaixo da sujidade que

o cobria. — Mas a Sra. Lyman pede-lhe o favor de entrar pela cozinha. Esta porta não

se abre há muito tempo.

A professora começou a rir:

— Vê-se que me fui embora daqui faz muito tempo. Eu devia saber que não é

costume as pessoas apresentarem-se diante da porta grande. Isto há de ensinar-me a

não querer impressionar os outros, fazendo-lhes crer que a minha visita é importante.

Riu-se de novo e seguiu-o através do pátio, levantando um pouco a saia para não

a molhar na neve.

— Fazes-nos muita falta na escola, sabes? — acrescentou ela, limpando os

sapatos na serapilheira que a Sra. Lyman tinha posto na soleira, a fazer de tapete.

— Sim, professora. Quero dizer, a escola também me faz falta — disse Jip.

— Bem, queria ter a certeza de que ambos pensávamos da mesma forma.

— Mas, aí está, não posso voltar. Pelo menos nos tempos mais próximos.

— E porquê?

— Por causa do Put. Put Nelson. Sabe quem é? Ninguém, exceto eu, quer tratar

dele quando não se encontra bem.

— Estou a ver.

— Compreende, professora, não posso deixar que o levem para o asilo. Isso iria

matá-lo.

— Sim, compreendo.

— É meu amigo.

Ela olhou-o um instante em silêncio e depois murmurou:

— És um bom rapaz, Jip.

Este abriu-lhe a porta, desviando um pouco a cabeça para ela não ver o seu

embaraço, e disse:

— Seria melhor entrar, está um frio danado cá fora.

— É uma forma original de contornar as coisas — comentou, rindo mais uma vez.

Deu-lhe um pequeno toque afetuoso no ombro e penetrou na cozinha.

Sentada na mesa grande, a Sra. Lyman nem sequer fez menção de se levantar

para acolher a visitante. Com um gesto do queixo, limitou-se a indicar-lhe uma

cadeira.

— Jip, vai tratar do Sr. Nelson.

Mas, durante alguns segundos, ele não se mexeu. Gostaria de ter pegado no

xaile e no gorro que a professora estava a tirar, oferecer-lhe uma cadeira, o que quer

que fosse para permanecer junto dela. Cheirava tão bem como o feno acabado de

cortar.

— Jip, ouviste?

— Sim.

A Sra. Lyman deu um grande suspiro.

— Tentamos ensinar-lhe as boas maneiras. Mas calculo que não se ensina um

porco a cantar. — E riu-se estupidamente, com ar trocista.

A professora franziu as sobrancelhas, mas limitou-se a cerrar um pouco os lábios.

— Então, vais ou quê?

Jip baixou os braços estendidos, prontos a pegar no xaile.

— Não te preocupes comigo, sabes, vou pôr isto em cima de uma cadeira.

— E fecha a porta atrás de ti — intimou a Sra. Lyman.

Saiu do compartimento a recuar. Não o queriam presente. A Sra. Lyman ia de

certeza contar à professora que ele era incapaz de aprender o que quer que fosse,

que provavelmente ficaria toda a vida a cargo da comunidade, como Sheldon tinha

ficado. No fim de contas, o que se podia esperar de um miúdo que caiu de uma

carroça e que ninguém se deu ao trabalho de procurar?

Sentiu a cólera subir dentro dele, como bolhas na água prestes a ferver. Sim, era

perfeitamente capaz de aprender. Sabia-o muito bem. Que lhe dessem tão somente a

possibilidade... Mas, ao mesmo tempo, como poderia abandonar Put? O que iria

acontecer-lhe se deixasse de olhar por ele? Enviá-lo-iam para o asilo, prendê-lo-iam e

ficaria privado de tudo aquilo que tornava ainda a sua vida suportável, o céu, os

campos, o ar livre, e aqueles de quem gostava, Toddy, Lucy, os animais da quinta e,

sobretudo, sobretudo de Jip, de quem dependia para tantas coisas. “A Lucy e o Toddy

têm a mãe”, dizia para consigo, “mas o Put só me tem a mim, como eu só o tenho a

ele. Já perdi o Sheldon. Não quero perder o Put.”

Nunca tinha posto verdadeiramente a questão de saber se o idoso, dado o seu

estado de prostração das duas últimas semanas, não estaria, apesar de tudo, melhor

no asilo. Procurava de todo o coração acreditar que era o único a saber tratar dele

convenientemente.

Abriu a porta do compartimento e aproximou-se da jaula.

— Ah, estás aí, meu rapaz. Olha, não podias trazer-me um pouco de água?

Preciso tanto de me lavar como um carneiro de ser tosquiado.

— Put! Put! — exclamou Jip. Finalmente regressou! Está aqui outra vez!

— Estive... ausente, digamos, durante muito tempo?

— Tempo demais!

E Jip começou a chorar. Depois fungou um pedaço e limpou o nariz com a manga.

— Daqui a pouco vou aquecer-lhe água. A Sra. Lyman tem visitas e não vai

gostar se eu for agora à cozinha.

— É claro... Esqueço-me de que a vida continua sem mim.

O tom de Put era tão triste que Jip lamentou de imediato o que acabara de dizer.

— Oh, tanto pior para a Sra. Lyman. Vou lá de mansinho, ponho a chaleira ao

lume e volto num instante.

— É simpático da tua parte. E depois, Jip, será que eu podia mudar de roupa?

— Claro, tudo o que quiser. Oh, esperei tanto que ficasse melhor! Obrigado,

obrigado por ter regressado para junto de nós!

O sorriso que iluminava o rosto do rapazinho ia quase de orelha a orelha.

Precipitou-se para fora do compartimento, esfregou as mãos nas calças e bateu

levemente à porta da cozinha.

— O que é? — perguntou a Sra. Lyman com um tom arrogante.

Introduziu a cabeça com precaução.

— Peço desculpa, mas só queria pôr água a aquecer...

— Não temos tempo de tomar chá.

— Não, não, não é para isso. É para Put que se quer lavar.

Viu a cólera assomar ao rosto da Sra. Lyman e percebeu de imediato que não se

devia falar diante de senhoras sobre a higiene de um homem. A professora ia de

certeza achá-lo mal-educado.

Dissimilou o embaraço correndo em direção à bomba para encher a chaleira.

Quando regressou, a Sra. Lyman ainda resmungava por causa dele. Fingiu nada

perceber, atiçou o fogo e esperou que a água estivesse suficientemente quente. Put

estava melhor. Put queria lavar-se. Era isso que contava. Pegou na grande bacia de

cobre guardada num canto, pô-la ao contrário sobre a cabeça para a levar mais

facilmente, agarrou na chaleira e dirigiu-se para a porta.

— Jip...

Ficou imóvel ao ouvir a voz da professora.

— Jip, conto contigo na próxima semana, de acordo?

— Sim, professora — respondeu com a cabeça sempre debaixo da bacia. — Eu

vou.

— Aquela mulher esteve cá hoje — declarou a Sra. Lyman ao marido, no

momento em que toda a gente se sentava a mesa.

— Que mulher?

— Ela quer dizer a professora — disse Lucy, de imediato brindada com um olhar

furioso da mãe por causa da sua impertinência.

— E o que é que ela queria? — perguntou o Sr. Lyman.

— Meter o nariz nas coisas que não lhe dizem respeito. Exige que o garoto

regresse à escola. Não ouve nada do que lhe dizem. Discute como um político. Isto

não é normal.

— Hum… — resmungou o marido.

Jip esperou ansiosamente o que viria a seguir, mas nada veio, exceto o ruído

habitual das colheres a baterem nos pratos ou nas tigelas, misturado com fungadelas

e tosses. Lucy deitou-lhe um olhar de entendida e ele sentiu o coração saltar. A

professora tinha ganho. “Quer isso agrade ou não aos Lyman”, disse para consigo,

“na próxima semana volto para a escola!”

Capítulo 11 : A aparição

À medida que os dias cresciam, a vida quotidiana tornava-se menos dura.

Quando Jip e Lucy saíam para a escola, era já dia claro e, quando regressavam, ainda

não tinha anoitecido.

Put praticamente já não tinha crises. Desde janeiro que se encontrava bem.

Depois de muitas provas, umas mais terríveis do que as outras, Oliver Twist

reencontrava o velho senhor, que, afinal, não era seu pai, mas tinha sido o melhor

amigo dele. Com grande pena de Jip, Oliver não descobria tudo sozinho.

— Mas ele nunca teria sido capaz — comentava Lucy. — Não compreendes?

Nasceu naquele horrível asilo onde nunca ninguém lhe explicava fosse o que fosse.

Como querias que adivinhasse semelhante coisa?

— Sim... Compreendo — dizia entre dentes, mas não podia deixar de se sentir

dececionado. Esperava que Oliver lhe mostrasse o que era preciso fazer para que um

pobre órfão conseguisse encontrar as suas origens, já que ninguém se preocupava

com isso — à exceção de um desconhecido de aparência inquietante, que parecia

sobretudo querer meter-se no que não lhe dizia respeito.

O trimestre escolar depressa chegara ao fim. A professora falou com os

responsáveis pela pequena cidade, tentando obter autorização para a escola

continuar aberta mais um mês, mas todos votaram contra. Primeiro, porque sentiam

inveja pelo facto de uma mulher ser mais instruída do que eles; segundo, porque os

tempos não estavam fáceis. O dinheiro escasseava. A escola era dispendiosa.

Ninguém queria gastar com a educação dos filhos nem mais um soldo do que a lei

previa. Além disso, em breve seria preciso recolher a seiva dos áceres para fazer

xarope. Teriam necessidade das crianças para vigiar as grandes marmitas.

No último dia de aulas, a professora pediu a Jip que ficasse depois de os outros

saírem. Lucy fez menção de se demorar um pouco mais, mas foi convidada a esperar

no recreio. Obedeceu, suspirando, consciente de que a professora não a queria

presente.

— Jip — declarou a professora, logo que a menina fechou a porta — fizeste

enormes progressos nas últimas semanas.

Estava tão pouco habituado a receber elogios que não soube senão balbuciar

algumas palavras de agradecimento.

— Arranjei-te alguns livros que podes levar para casa. Precisas de trabalhar

sozinho até que a escola volte a abrir, e isto não será antes do próximo novembro.

— Sim, professora. Está bem, professora.

— E, Jip...

Hesitou, como se o que tivesse a dizer fosse bem difícil de formular, e depois

continuou:

— Jip, se por uma razão ou por outra, tiveres, digamos assim, algum problema,

algum aborrecimento... Lembras-te do Sr. Stevens, que nos levou a casa depois da

festa de Natal?

— Sim, claro.

— Bem, então, ouve-me atentamente. O Sr. Stevens encarregou-me de te dizer

que deves de imediato dirigir-te a ele, se alguém ou alguma coisa te ameaçar. Isto é,

se te sentires em perigo.

— Posso defender-me sozinho. Os Brackett não me metem medo.

Mas a professora não estava a pensar nos Brackett.

— Não está a falar do Put, pois não? Ele é estranho, tem a infelicidade de ter

crises terríveis, mas é o meu melhor amigo.

— Julgo que o Sr. Stevens estava a pensar noutra pessoa. Talvez um forasteiro.

Jip teve um sobressalto e viu que a professora se apercebeu. Como é que o Sr.

Stevens podia estar ao corrente da existência do forasteiro?

— Se virmos o sítio onde moras, a quinta da família Stevens fica do outro lado da

aldeia. Estás a ver onde é? Na parte onde vivem os quakers2.

— Não muito hem. Mas não se preocupe comigo. Sei desembaraçar-me sozinho.

Ela fez menção de insistir, mas mudou de ideias.

— Bem, então espero que os livros sejam do teu agrado. Conto contigo em

novembro na minha classe, entendido?

— Espero que sim.

— Até à vista, Jip.

— Até à vista, professora.

Olhou-a demoradamente, para guardar dela uma imagem que iria acompanhá-lo

até novembro. Em seguida, dirigiu-se para a porta. Lá fora, Lucy devia estar

impaciente.

— Jip...

Voltou-se. A professora parecia muito preocupada. E Jip sentiu subitamente o

desejo de se pôr a chorar, como Toddy fazia quando algo o entristecia. Mas conteve-

2 Ver Em jeito de conclusão no final da obra. (N.T.)

-se. Na sua idade, não podia voltar a ser o bebé que nunca fora. Era tarde demais.

— Jip, se precisares de ajuda, e acredita, não é de forma nenhuma um sinal de

fraqueza, podes deixar-me uma palavra na loja do Sr. Peck. É lá que vou buscar o

correio. Está bem?

Assentiu com a cabeça e precipitou-se para o recreio.

O inverno aproximava-se do fim, e sentia-se já a chegada da primavera. Havia

dias em que um nevoeiro cinzento tudo cobria, parecendo não querer desaparecer.

Depois, inesperadamente, dissipava-se em poucos instantes. As pessoas regozijavam-

se por tornarem a ver o sol — mas, inesperadamente, a camada de bruma voltava.

Na quinta dos pobres, há muito tempo que não existiam áceres. O anterior

proprietário tinha mandado abatê-los para aumentar os pastos destinados às ovelhas.

Jip foi contratado para trabalhar de noite em casa do pastor Avery, que reclamava

alguém para vigiar a preparação do xarope — e se mostrava disposto a esquecer as

querelas com o Sr. Lyman para poder tirar proveito da força do garoto.

Uma enorme marmita tinha sido instalada numa cabana em mau estado, feita de

tábuas por entre as quais se infiltrava um vento glacial. Jip não podia dormir, porque

era preciso atiçar continuamente o fogo, para o xarope não deixar de ferver. Tinha

tanto frio que, em certos momentos, se encostava aos três cães de Avery, que

pareciam considerá-lo um dos seus filhotes.

Quando, por fim, tudo terminou, deu-se conta de que as roupas estavam

cobertas de manchas esbranquiçadas causadas pelo açúcar. A Sra. Wilkens, talvez

instada por Lucy, decidiu então confecionar-lhe uma muda completa. Foi explorar o

grande armário onde se empilhavam as velhas coisas outrora pertencentes aos

pensionistas que jaziam agora nos seus túmulos, e retirou um casaco e uma camisa,

lavou-os cuidadosamente, desfez as costuras e as bainhas, e meteu mãos à obra,

começando por talhar as peças.

A Sra. Lyman bem tentou protestar. Para quê estragar tecido para vestir um

garoto que crescia dois centímetros por semana? A Sra. Wilkens respondeu de

imediato que o dito tecido estava há anos a ganhar bolor num canto do armário sem

que ninguém se incomodasse com isso, e que, de qualquer forma, Toddy vestiria

aquelas roupas quando ficassem pequenas a Jip.

Jip estava encantado com as suas novas roupas. As mangas tinham o tamanho

certo, as calças cobriam-lhe os tornozelos e a cada casa correspondia um botão.

— A tua mãe devia estabelecer-se como costureira — disse a Lucy, quando esta o

surpreendeu a saltar em frente da banca da cozinha para conseguir ver-se no espelho

pendurado por cima. — É a mulher mais hábil que já vi a manejar a agulha.

— E tu viste quantas, pode-se saber?

Não muitas, é verdade. Mas nunca andara tão bem vestido. Antes, se perdia um

botão ou rasgava uma manga, tinha de se desenvencilhar sozinho. Ou, então, fazia

por não dar muita importância, solução que adotava de preferência.

Repetiu o seu cumprimento à Sra. Wilkens, mas logo a seguir se arrependeu.

Porque, assim encorajada, esta dirigiu-se à cidade e acabou por ser contratada pela

costureira local. Como havia um quarto quase vazio nas traseiras da loja, convenceu a

nova patroa a cedê-lo gratuitamente, para ela e os filhos o ocuparem. O que deixou

Jip desesperado.

Como poderia resignar-se a ver partir Lucy e Toddy — e até a Sra. Wilkens e o

bebé, que gatinhava por todo o lado e fazia rir os velhos pensionistas quando tentava

pôr-se de pé e caía sobre as nádegas, a gritar “da, da, da”? Era quase tão horrível

como perder Sheldon de novo.

Lucy não lhe foi de grande ajuda. Saltava de alegria, dizendo:

— Que bom, não vão voltar a chamar-me nem pobre nem filha de bêbedo. Vou

ser alguém, compreendes, Jip?

Sim, Jip compreendia. E isso significava igualmente que ele não era ninguém,

nunca tinha sido e assim continuaria para o resto da vida.

— Vá lá, ó Cara Triste, diz ao menos que estás contente por mim!

Ele esforçou-se por isso e, num certo sentido, sim, estava feliz com o que tinha

acontecido aos Wilkens; mas, bem no fundo, sofria terrivelmente no mais íntimo do

coração, que a ninguém queria revelar; com medo de sofrer para além do suportável.

Naquela primavera, Put foi o seu maior conforto. Com os dias a crescerem, o

idoso sentia-se cada vez melhor. E, apesar da saída dos Wilkens, isso permitiu a Jip

ver passar abril e maio sem grandes dificuldades. Claro, não era como no inverno, em

que ele tinha tido simultaneamente a escola e a companhia de Toddy e de Lucy. Mas

Put parecia estar em excelente forma! Em junho, Jip conseguiu esquecer o louco

furioso que ele havia sido em janeiro. Juntos, trabalharam no campo e semearam. A

horta parecia prometer colheitas menos abundantes do que no ano anterior, mas

haveria de futuro menos habitantes na quinta e, portanto, isso não representava

nenhum problema.

Ao manter-se de manhã à noite ocupado, Jip conseguia não pensar muito nos

ausentes — Sheldon e os Wilkens — e procurava contentar-se com o que lhe restava:

Put, que trabalhava a seu lado, os animais, as macieiras em flor. Esforçava-se por

abafar o pressentimento que, em certos momentos, lhe invadia a cabeça e o coração:

dir-se-ia que estava à espera de alguma coisa, ou de alguém. Em nada se parecia

com o que experimentara ao ouvir a professora ler as aventuras de Oliver Twist, no

tempo em que se sentia tão ansioso por saber o que ia passar-se. Não podia impedir-

-se de sorrir, ao recordar a impaciência que o assaltava todas as noites antes de

adormecer, quando pensava no capítulo do dia seguinte.

Não, não era nada de parecido, aquela angústia surda que agora morava nele.

Sentia-se um pouco como um cabrito-montês à espreita na floresta, um cabrito que

sabe, mesmo sem ter visto, que os caçadores vêm no seu encalço. E que ignora de

que lado irão surgir ou de onde partirá o tiro. Mas um cabrito que sente o vento,

ergue a cabeça e se prepara para saltar ao menor sinal de alerta, refugiando-se na

espessura dos bosques.

À noite, quando o trabalho diário terminava, Jip esforçava-se por ler os livros que

a professora lhe tinha emprestado. Começara pela Bíblia. Havia uma, enorme,

pousada numa mesa na sala grande, onde quase nunca se entrava. Mais parecia um

objeto de decoração do que um verdadeiro livro, e nunca se teria atrevido a folheá-la.

Fora, segundo parece, uma oferta da associação feminina da igreja congregacionista.

A Bíblia da professora não tinha o mesmo aspeto. Para começar, era muito mais

pequena. Principiou a ler a primeira página, mas tropeçava em palavras

desconhecidas, cada uma mais estranha do que as outras. Falava sobre o rei e ele

não compreendia porquê. Put teve de lhe explicar que se tratava, de facto, de uma

introdução, onde se indicava quando e como a Bíblia tinha sido traduzida para inglês,

e que era melhor passar diretamente ao Livro do Génesis, onde se explicava a criação

do mundo. Jip ficou então agradavelmente surpreendido ao verificar que compreendia

quase tudo.

Encorajado, pegou num outro livro que se chamava A Cabana do Pai Tomás, e

depressa ficou fascinado pela história, a ponto de fazer um grande esforço para

avançar na leitura. A professora devia saber que o livro lhe agradaria tanto como

Oliver Twist e que ele não se pouparia a esforços para o ler. Tinha uma feição um

tanto moralista, como se o autor não quisesse deixar escapar a menor ocasião de dar

lições ao leitor. Mas, é claro, quem era ele, Jip, um pobre garoto ignorante, para dizer

a um escritor o que deveria fazer?...

E, apesar de tudo, o livro cativava-o. A ponto, aliás, de pedir a Put que lhe lesse

passagens em voz alta, a fim de mais depressa ficar a saber o que ia passar-se. Ao

lutar com as palavras e as frases, acontecia-lhe perder o fio à meada. No entanto, Put

obrigou-o, a cada página lida, a aprender algumas palavras novas, para que Jip,

conforme explicou, continuasse a progredir.

Uma vez, na igreja congregacionista, Jip tinha ouvido um sermão sobre os maus

senhores que, no Sul, maltratavam os escravos. Em A Cabana do Pai Tomás, nem

todos os senhores eram maus, mas dir-se-ia que a sorte nunca sorria aos escravos.

Vendiam-nos a homens por vezes brutais, que pareciam o diabo em figura de gente. E

tudo aquilo cortava o coração a Jip, mesmo que estivesse muito bem contado.

Put confidenciou-lhe que uma vez tinha visto um escravo.

— Era numa quinta não muito afastada do lugar onde na época eu trabalhava.

Contava-se que ele tinha conseguido fugir ao dono. E agora vivia lá, tranquilo, e

tratavam-no como qualquer outro trabalhador, davam-lhe um salário como aos

outros. Naquela época, nenhuma lei autorizava que se viesse para os Estados do

Norte em perseguição dos escravos fugidos. E depois, um dia, ele desapareceu. O

caseiro levou bastante a mal porque, apesar de tudo, ele era bem tratado e recebia o

pagamento devido. Meses mais tarde, recebeu uma carta de Montreal, sabes, no

Canadá. E ficou ao corrente do que se tinha passado. Um dia, mandara o pobre rapaz

fazer compras à cidade vizinha, e não é que este dá de caras na rua com o seu antigo

senhor, que andava de certeza no seu encalço? Transtornado, sem mesmo perder

tempo a passar pela quinta para ir buscar as suas coisas, desatou a correr em direção

à fronteira, que conseguiu por fim atravessar.

— Put, já alguma vez viu um caçador de escravos?

— Não…enfim, não creio. Mas compreendes que esse tipo de pessoas não deve

andar a passear com um letreiro pendurado no pescoço a dizer quem é. Também

nunca ouvi falar de escravos fugidos na nossa região, se bem que...

Calou-se bruscamente, com o olhar de súbito triste e ausente, e pousou uma das

suas grandes mãos na boca, como para se impedir de falar. Jip pensou de imediato

que o infeliz se dava conta de que não era preso na quinta que poderia ver ou

aprender alguma coisa.

— A professora disse que, segundo a lei, se se encontrar um escravo, deve-se

entregá-lo aos seus proprietários sob pena de se pagar uma enorme multa. Mas

acrescentou que nenhum cristão de verdade faria com que alguém voltasse a ser

escravo. Pelo menos, não na nossa região.

— A tua professora é uma mulher nobre. Mas, infelizmente, há muitos que não

pensam como ela. Em todo o caso, não creio que haja escravos fugidos,

tranquilamente instalados nas quintas da região.

— Também acho que não.

Mas Jip já não pensava nos escravos, quer estivessem em fuga quer não. Sentia-

-se inquieto por causa de Put, cujo horizonte se limitava agora às paredes da jaula —

uma jaula que ele e Sheldon tinham construído. E, por essa razão, ainda se sentia

mais responsável pelo seu encarceramento. Contudo, era isso ou o asilo. Então...

No meio de um dos livros, a professora tinha introduzido uma folha de papel.

Nela indicava a direção da loja de Peck e um nome: o reverendo Ezekial Freeman. Jip

refletiu: de onde é que o conhecia? Ah, sim, era um amigo da professora, alguém que

tinha mudado de nome.

No decorrer dos dias quentes que se seguiram, Put continuava a sentir-se bem.

Em contrapartida, o Sr. Lyman parecia sofrer de uma febre persistente. Como já não

restava mais cidra na cave, vinha servir-se com frequência ao armário dos

medicamentos, onde estava guardada a única garrafa de rum que havia em casa. A

sua “doença” dava a Jip uma maior liberdade de movimentos. Era ele que, a partir de

agora, tinha de ir regularmente à vila comprar tudo aquilo de que havia necessidade

na quinta. Gostava de o fazer calmamente, e se lhe viesse à ideia ficar a admirar um

pôr-do-sol, pois bem, deixava-se ficar — ou a devorar com os olhos os bocais de

bombons na montra de Peck. Procurava sempre captar aqui e ali fragmentos de

conversas, ou ouvir a leitura de algum artigo do jornal local, feita por um idoso que

costumava estar sentado à entrada do armazém. Obtinha assim notícias para levar a

Put, que se deleitava com elas.

Naquele dia, enquanto esperava diante da caixa para pagar duas ou três coisas

que a Sra. Lyman tinha pedido, ouviu alguém dizer: — Olha, hoje há dois forasteiros

na vila. — Levantou a cabeça e deixou correr o olhar até à outra extremidade do

longo balcão de madeira.

Ele já tinha ouvido dizer que um dia se pode encontrar o próprio fantasma.

Mais tarde, se lhe tivessem perguntado o que se passara naquele preciso

instante, teria certamente respondido que era isso o que acabara de lhe acontecer.

Porque ali mesmo, a alguns metros, estava um homem louro de olhos cinzentos, a

olhar para ele. E o seu rosto, Jip conhecia-o bem. Era aquele que via todas as manhãs

no pedaço de espelho pendurado por cima da banca da cozinha.

Capítulo 12 : Revelações

Um e outro ficaram completamente imóveis, como que paralisados.

— Jip?

Aquela voz detestável vinha detrás, da penumbra. O forasteiro. Ei-lo de volta. O

rapaz deu um salto e, abandonando as mercadorias, fugiu para a rua. Os dedos

tremiam-lhe tanto que não conseguia desatar as rédeas de Jack, enroladas à volta de

um poste. Saltou para a carroça a toda a velocidade e, no momento em que esta

começou a andar, voltou-se. Lá estavam os dois a olhar, à entrada da loja. O homem

do qual era o vivo retrato, e o outro, que andava a cada passo a envenenar-lhe os

sonhos.

O pobre do cavalo, que nunca tinha ouvido Jip gritar-lhe, não estava, decerto, a

perceber nada. Mas, sem se fazer rogado, começou a trotar e depois a galopar pela

rua fora, como se já se encontrasse na estrada.

O rapazinho estava alagado em suor. Não procurava saber porque sentia tanto

medo, nem por que motivo o seu primeiro reflexo tinha sido fugir, fugir. Mas era o que

estava a fazer, como se a sua vida dependesse disso. Impelia-o uma força

desconhecida, cujo ímpeto não estava em condições de discutir. Quando se viu fora

da cidade, apercebeu-se de que não tinha tomado a direção certa. A quinta dos

pobres ficava no lado oposto, para sul, e ele seguia em direção ao norte. Apesar de

tudo, prosseguiu, até ao momento de alcançar o atalho que levava ao aglomerado de

casas onde viviam os quakers. Afrouxou o passo do cavalo e sentiu que o cérebro

começara a funcionar normalmente.

O forasteiro dissera a verdade desde o início. Não se podia negar a incrível

semelhança existente entre ele, Jip, e o homem louro, que tinha apenas cabelos e

olhos mais claros. O nariz mais comprido também. Mas era o mesmo rosto, o que ele

próprio teria dentro de trinta ou quarenta anos. Um vago sentimento de vaidade

invadiu-o por um momento: o homem era belo. Mas depressa desapareceu para dar

lugar à angústia. Alguma coisa não batia certo. Ele não era, de modo algum, o género

de pessoa que Jip pretendia vir a ser mais tarde. Mesmo que se sentisse incapaz de

explicar porquê, só a ideia o fazia gelar. “Se um dia precisares de ajuda...”

O corpo tinha-se lembrado das palavras da professora, sem que ele próprio desse

conta. E era em direção à quinta dos Stevens que ele se dirigia naturalmente. Quando

viu diante dele uma grande casa com vários anexos, um celeiro e um estábulo, fez

Jack parar e refletiu por um instante. De repente, a sua fuga desvairada parecia-lhe

sem motivo. Estúpida até. Que ideia, a de desatar a fugir como um louco, porque

tinha visto de longe um homem que se parecia um pouco consigo. Era preciso dar

meia-volta, é claro. Regressar a casa e contar tudo a Put. Haviam de se rir juntos

daquele acesso de pânico.

— Com que então, pernas para que te quero e toca a bater no pobre Jack? —

diria Put.

— Sim. Eu fazia lembrar um perdigueiro ferido que vê a sua primeira raposa —

responderia.

Acabara praticamente de decidir voltar para trás, quando se apercebeu de que o

chamavam. Uma senhora idosa — as mechas de cabelo que lhe escapavam da touca

eram brancas — fazia-lhe sinal com a mão. Trazia um simples vestido preto e um

avental branco.

— Em que posso ajudar-te? — perguntou, enquanto se aproximava. No seu rosto

cheio de bondade, os olhos exprimiam preocupação. — És o Jip, não?

Fez um sinal afirmativo, espantado por ela saber o seu nome.

— O Stevens mais novo está?

Ela sorriu.

— Tenho três filhos, sabes? Mas julgo que queres referir-te ao Luke.

— Procuro aquele que é amigo da professora.

— Sim, é o Luke. Não está longe. Prende o teu cavalo e anda tomar leite quente

enquanto esperas.

Jip obedeceu, primeiro porque não sabia o que mais poderia fazer e, em seguida,

porque esta mulher tinha algo de tranquilizador. O forasteiro sabia que ele morava na

quinta dos pobres. Era lá que ele e o companheiro o procurariam. Não junto dos

quakers. Entrou numa grande cozinha que cheirava agradavelmente a sopa. Num dos

cantos, estava instalado um tear. A Sra. Stevens pôs ao lume uma caçarola com leite.

Quando este começou a fumegar, encheu uma tigela e acrescentou um pouco de

xarope de ácer.

— Olha — disse — tem cuidado, está muito quente. Vou procurar o Luke. Não sais

daqui, prometido?

Jip acenou com a cabeça. Pensou, mais tarde, se teria agradecido. Talvez não. O

medo voltava a invadi-lo, tanto mais intenso quanto não conseguia encontrar para ele

uma causa real. Assim era mais difícil tentar combatê-lo.

Esperou bastante tempo, até que viu, de repente, Luke Stevens à entrada da

porta da cozinha. Devia ter vindo a correr, porque segurava o chapéu na mão e

parecia esbaforido.

— Jip? — exclamou.

Mas não perdeu tempo com cortesias inúteis e foi direito ao objetivo:

— Jip, precisas de ir embora daqui imediatamente.

Se ele tivesse declarado «Precisas de te enforcar num galho da árvore mais

próxima», o rapazinho não teria ficado menos estupefacto.

— O quê? — conseguiu finalmente articular. — Preciso de ir embora daqui

imediatamente?

— Sim — respondeu Luke Stevens, que, ao ver a sua expressão de incredulidade,

veio sentar-se num banco em frente dele. — Tu não podes compreender. É mais difícil

do que se eu te falasse em árabe ou em chinês. Ouve... — calou-se e depois

continuou: — Ouve... — Mas não foi mais longe, por se sentir incapaz de exprimir o

que tinha para dizer.

Naquele instante, a mãe voltou à cozinha e, notando que a tigela de Jip estava

vazia, foi de imediato enchê-la de novo. Cortou também uma grossa fatia de pão e um

pedaço de queijo, que colocou sobre a mesa. Com um gesto de cabeça, perguntou ao

filho se ele também queria comer, mas este fez sinal que não. Encontrar as palavras

que faltavam para explicar a Jip o que estava a passar-se mobilizava toda a sua

energia.

— Diz-me — perguntou por fim — o que sabes a respeito das tuas origens?

Jip apressou-se a engolir o pedaço de pão que estava a mastigar. O medo não lhe

tinha tirado o apetite.

— Nada, senhor — explicou. — Apenas que caí de uma carroça na West Hill Road.

Evitou acrescentar que ninguém se tinha dado ao incómodo de vir procurá-lo.

Uma questão de orgulho, apesar de tudo...

— Tens a certeza de que não sabes mais nada? Por exemplo, quem se

encontrava na carroça?

— Não senhor.

Luke Stevens ficou a vê-lo a beber o leite e depois retomou:

— Alguma vez ouviste falar do Caminho de Ferro Clandestino?

— Sim, alguma coisa, a professora deu-me a ler um livro que se chama A Cabana

do Pai Tomás. É disso que está a falar?

— Não é fácil dizer-te tudo de uma vez. A tua mãe... a tua mãe... enfim, a tua

pele é muito clara...

Jip que segurava de um lado o pão e do outro a tigela, teve um sobressalto.

Porque estava ele a falar-lhe da pele? Olhou para as mãos, sujas como habitualmente.

No verão trabalhava tanto na terra que já nem se dava ao trabalho de limpar as

unhas. E porque é que o Sr. Stevens, que parecia tão simpático, tinha um ar

preocupado?

— A tua mãe... — O jovem virou-se para a velha Sra. Stevens: — Mãe, agradecia-

lhe muito que me trouxesse um pouco de leite.

Ela fê-lo de imediato, e depois inclinou-se para o rapazinho, dizendo-lhe com

doçura:

— Qualquer pessoa teria orgulho em ter uma mãe como a tua, Jip. — Sorriu, e

continuou lentamente: — A tua mãe é uma escrava e, aos olhos do seu senhor, tu

também o és. Tens a pele muito clara porque ela própria era mestiça.

Calou-se, para deixar Jip captar o sentido daquilo que ela acabava de dizer. Mas

Jip não compreendia nada. Era como se o tivessem fechado numa gaiola de vidro, no

interior da qual não podia ouvir o que lhe diziam. Apenas via os movimentos dos

lábios dos seus interlocutores, mas não ouvia nenhum som. Luke prosseguiu:

— Eras ainda muito pequeno quando a tua mãe decidiu fugir para o Norte,

seguindo, penso eu, a Estrela Polar, que ela acreditava poder indicar-lhe o caminho da

liberdade. Recebeu, primeiro, a ajuda do Caminho de Ferro Clandestino, uma fileira

que ajuda os escravos em fuga, mas, quando chegou cá, ao Vermont, pensou que não

tinha necessidade de continuar a esconder-se e que podia viajar como qualquer

pessoa. Tinha a pele quase branca, o seu menino também, e ninguém poderia

suspeitar de que, na realidade, eram negros.

Luke parou de falar, como para dar oportunidade a Jip de se manifestar, mas este

continuava prisioneiro da sua gaiola de vidro.

— Por fim, houve alguém, não sei muito bem onde, que a convidou a fazer uma

parte do caminho na sua carroça. Ela aceitou de bom grado, porque era difícil levar o

pequenito ao colo e ir com ele a pé até à fronteira. Parecia-lhe mesmo irrealizável.

Mas o homem era um mentiroso e um traidor. O que ele queria era entregá-la aos que

se tinham lançado na sua perseguição, e assim receber uma boa quantia. Talvez ela

tenha adormecido por um momento durante a viagem. O certo é que,

repentinamente, se deu conta de que não era para Norte que se dirigiam e percebeu

que tinha sido traída. Aproveitando uma curva, conseguiu pousar a criança na berma

da estrada, para que, ao menos ela, nunca viesse a ser escrava.

Como acreditar em semelhante história? Mas, ao encarar Luke Stevens, que

parecia tão honesto, Jip teve de admitir que haveria naquilo tudo uma parte de

verdade, mesmo que fosse ínfima.

— Sempre me disseram — observou ele, no entanto, o mais delicadamente que

podia — que eu tinha caído de uma carroça de ciganos.

— Sim, disseram-te isso, mas ninguém se deu ao trabalho de verificar se era

verdade. Parecia plausível e ficaram por ali.

A Sra. Stevens observava atentamente o rosto de Jip, que espelhava o mais

completo assombro. Virou-se então para Luke:

— Filho, é preciso explicar-lhe como soubemos estas coisas. Se não, como queres

que acredite em nós?

— Tem razão. Ouve-me bem, Jip. Sabes que a Bíblia nos recomenda que sejamos

prudentes como as serpentes e simples como as pombas. De certeza que já ouviste

falar dos abolicionistas, aqueles de entre nós que querem suprimir a escravatura. Nós

tomamos muito a sério estas palavras que te disse. Se os nossos inimigos têm os seus

espiões ou os seus agentes prontos a fazer-nos mal, então devemos utilizar os meios

ao nosso alcance para lhes resistir e realizar a vontade de Deus. É por esse motivo

que, quando correu o boato de que um forasteiro tinha vindo à nossa vila, não uma

mas várias vezes sem razão aparente, nestes últimos tempos, o meu pai acionou

aquilo a que chamamos o nosso telégrafo secreto. Começaram a circular

mensageiros. Estás a acompanhar-me?

Jip fez um sinal afirmativo, mas não era verdade. Luke prosseguiu.

— Não tínhamos conhecimento da presença de nenhum escravo fugitivo na

nossa região. Então, porque é que o homem andaria a rondar estas paragens? Só

tivemos a resposta um pouco antes do Natal.

Um forasteiro? Devia ser aquele que tinha ido à quinta dos pobres. Mas Jip

continuava a não ver que relação isso poderia ter com ele. A Sra. Stevens continuou:

— A tua mãe pousou-te na berma da estrada, mas foi capturada e entregue ao

seu senhor, que ela conseguiu enganar, dizendo-lhe que a criança tinha morrido

durante a viagem.

— Mas então... — Jip clareou a garganta — mas então o tipo que conduzia a

carroça, porque é que ele não disse a verdade?

— Não sabemos. Talvez receasse ser castigado por te ter perdido no caminho. Ou

então envergonhou-se do mal que estava a fazer. Ignoramos quem era e o que foi

feito dele. Em dezembro, quando ouvimos falar pela primeira vez desta história,

ficamos sem perceber nada. Não havia nenhuma criança negra entre nós. E depois,

quando te vi na festa da escola... Mas tu vivias aqui há tanto tempo que ninguém...

Calou-se, não se atrevendo a acrescentar que, para o resto da comunidade, os

pensionistas da quinta praticamente não existiam. Procurou cruzar o olhar com o de

Jip, porém, este baixou a cabeça.

— Sim, é difícil de acreditar. Mas o que sabemos ao certo é que a tua mãe se

mostrou incrivelmente corajosa. Fugiu várias vezes para vir à tua procura e de todas

as vezes foi capturada. Um dia, um caçador de escravos que conhecia o dono dela —

e portanto o teu — viu-te na vila. Falou logo de uma incrível semelhança. Temos a

certeza; porque ele foi contar tudo ao teu senhor, e um dos escravos, que naquele dia

estava presente, ouviu-o e apressou-se a informar-nos. Faz parte da nossa

organização. Era oferecida uma enorme recompensa pela tua captura. A princípio, o

teu senhor mostrou-se incrédulo. A tua mãe afirmara tantas vezes que tinhas

morrido... Interrogaram-na de novo, com uma grande crueldade. O caçador de

escravos insistia. Aquela semelhança, comentava ele...

Luke calou-se mais uma vez, para dar a Jip tempo para compreender — a Jip que

voltava a ver os pequenos olhos maldosos do forasteiro e se lembrava das suas belas

palavras. Com que então, era um caçador de escravos, que tinha querido preparar-

-lhe, lá no celeiro, uma terrível armadilha…

— Ontem à noite, soubemos que o senhor tinha vindo pessoalmente para te ver e

ajuizar por si mesmo. Encontraste-o na vila, a ele e ao forasteiro? Foi por isso que te

refugiaste entre nós?

Jip não respondeu. Nem tinha vontade de fazer perguntas. Sentia-se como que

paralisado. O pão e o queijo que, havia alguns instantes, devorara com tanto prazer,

tinham-se-lhe agora transformado em pedra dentro do estômago. Pousou o que

restava em cima da mesa.

— Compreendes, não é? — perguntou-lhe Luke com insistência. — Compreendes

que tens de fugir daqui o mais depressa possível?

— Não posso — acabou por responder. — Não posso abandonar o Put. O que

seria dele sem mim?

Capítulo 13 : O dilema

Mais tarde, Jip teria sido incapaz de explicar porque respondera assim a Luke

Stevens. Sabia, no entanto, que não era por pura generosidade que colocava o

destino de Put antes do seu. Talvez tudo tivesse acontecido muito depressa, que o

segredo do seu nascimento lhe tivesse caído brutalmente em cima da cabeça. Sentia-

-se incapaz de colocar um pouco de ordem no turbilhão dos pensamentos. Ninguém

como Put tinha estado mais próximo daquilo que devia ser um pai. Se o abandonasse,

seria de certa forma a morte dos dois.

Luke Stevens não protestou. Não tentou convencê-lo de que aquela ideia era

absurda. Foi a mãe que falou, com uma voz cheia de doçura:

— Mas, filho, se ficares, acabarão por te apanhar. E achas que será bom para o

teu amigo?

O que responder? Jip baixou a cabeça. Claro que iam acabar por capturá-lo. Os

dois homens não desistiriam. Conheciam o lugar onde morava. Era evidente que não

poderia contar com os Lyman para o proteger. A perspetiva de uma recompensa,

juntamente com a de uma punição se não o entregassem, seriam mais do que

suficientes para os convencer. Mandariam Put para o asilo ou, pior ainda, deixá-lo-

-iam morrer à fome e à sede na sua horrível jaula, aquela jaula que ele, Jip, tinha em

parte construído com as suas próprias mãos.

Teria sido incapaz de dizer quanto tempo ficou imóvel a ruminar aquelas terríveis

perguntas sem resposta. Um relinchar lamentoso do velho Jack, que continuava

amarrado ao poste, veio tirá-lo do seu torpor. Depois daquela corrida louca, nem

mesmo lhe tinha dado de beber. Era preciso escová-lo e levá-lo, ao menos, para um

local onde houvesse erva.

— O cavalo... — articulou com dificuldade.

— Eu trato dele, não te preocupes — disse Luke Stevens. — Acaba o teu pão e o

teu queijo. Volto dentro de alguns instantes e decidiremos juntos o que temos de

fazer.

Jip tentou obedecer e trincou um pedaço de pão, mas parecia que os maxilares

não funcionavam. Engoliu um pouco, com grande dificuldade. Murmurando algumas

palavras de desculpa, fez sinal de que não era capaz de comer. A Sra. Stevens

embrulhou o que restava num pedaço de pano.

— Sentes um peso muito grande no coração, meu filho. Mas guarda isto. Cedo

vais voltar a ter fome e a precisar de alimento.

E começou a atarefar-se na cozinha, enquanto Jip olhava para ela, dizendo para

consigo que era a primeira vez que via uma verdadeira mãe de família. A Sra. Wilkens

era o que ele tinha conhecido de mais próximo, mas a miséria e os sofrimentos

tinham-na esgotado, quase destruído. A Sra. Stevens ia e vinha, eficaz, calma,

precisa. Começou a amassar farinha para o pão e, se as mãos eram vermelhas e

rugosas, Jip apercebeu-se de que também deviam ser doces e leves quando fosse

preciso. Bruscamente, uma onda de nostalgia invadiu-o, ao pensar nas mãos e nos

braços que não recordava e que, sem dúvida, nunca viria a conhecer. Como seria

aquela mãe cuja existência acabara de descobrir? Pelo menos, sabia agora por que

motivo tinha aparecido um dia na West Hill Road. A mãe tomara essa atitude para lhe

salvar a vida, porque a liberdade é a própria vida. Se tinha sido feita prisioneira, podia

ao menos viver com a esperança de que o seu filho nunca viesse a ser um escravo.

Ficaria triste se soubesse que nada de melhor tinha conhecido do que a quinta

dos pobres? Que ninguém se preocupara em dar-lhe um nome? Que nenhuma família

o protegia? Que a sua vida não era, apesar de tudo, senão uma outra forma de

escravidão? Não, Jip sabia que não era verdade. Possuía riquezas: o amor dos

animais, a afeição de Sheldon, de Lucy, de Toddy, do seu velho e querido amigo Put.

A professora interessava-se pela sua sorte e os Stevens também.

Se Luke dispunha de meios para receber mensagens secretas vindas dos Estados

do Sul, talvez ele pudesse enviar algumas palavras àquela mãe tão corajosa. Fazer-

-lhe saber que tinha agido bem em deixar o filho cair da carroça, que ele era livre, que

aprendia a ler e a escrever, que tinha uma vida muito rica, afinal. Ela ficaria

certamente tão feliz por vir a sabê-lo, que isso apagaria do seu coração a vergonha do

momento em que ele fora concebido. Porque, apesar da sua pouca idade, Jip tinha

perfeita consciência do que se havia passado. Ela não teria fugido se tivesse aceitado

de livre vontade trazer no ventre o filho do seu senhor.

Todos estes pensamentos lhe andavam às voltas na cabeça, enquanto Luke

cuidava do cavalo. Depois, repentinamente, tudo voltou ao seu lugar, talvez mesmo

depressa demais, e foi sem dúvida por isso que o projeto que expôs aos Stevens com

palavras entrecortadas só poderia saldar-se por um fracasso.

— Vou fugir tal como me aconselham, mas levo o Put comigo.

Luke não fez de imediato qualquer comentário. Voltou a sentar-se no banco perto

do rapazinho, e depois perguntou:

— E como contas fazer isso?

— Bem... — Jip esforçava-se por inventar um plano coerente, quando, na

realidade, não possuía nenhum. — Bem, partimos à noite e seguimos a Estrela Polar.

— Sim, sim! — observou Luke. — E como temos amigos ao longo de todo o

caminho para o Norte, podemos ajudar-te. Damos-lhe o nome de estações do

Caminho de Ferro Clandestino.

— Então, será fácil! — exclamou Jip. — Explique-me por onde tenho de ir a partir

daqui.

— Só posso dar-te o nome de uma única estação. Pensamos que é mais seguro

para toda a gente não se saber muitas coisas.

— Mais seguro?

— Sim, compreendes, se se for interrogado de uma forma brutal, pode-se ser

tentado a revelar coisas que seria melhor não revelar e pôr assim em perigo outras

pessoas.

— Mas eu nunca hei de trair ninguém!

Jip calou-se. Quem sabe o que pessoas cruéis e obstinadas são capazes de fazer?

Luke tinha razão.

— Bem — continuou. — Sendo assim, onde é a primeira estação?

— Aqui, nesta casa — disse a Sra. Stevens.

— Nesse caso, se não se importam, esta noite trago o Put.

— Com a ajuda de Deus, havemos de vos pôr no bom caminho, a ti e ao Put.

Jip foi soltar o cavalo, saltou para a carroça e meteu-se a caminho. Era preciso

encontrar uma maneira de explicar aos Lyman por que motivo se tinha demorado

tanto e não trazia as compras pedidas. Naquele momento, isso preocupava-o mais do

que o que iria acontecer à noite. Mastigou com nervosismo o pão e o queijo e ficou

desagradavelmente surpreendido ao verificar que já não havia mais.

Afinal, não era preciso ter-se inquietado por causa dos Lyman. O caseiro parecia

estar naquela noite com uma febre particularmente tenaz, a ponto de a mulher ter de

andar a correr para o armário dos medicamentos, para lhe dar coisas fortes a beber.

Jip dirigiu-se ao estábulo, deu aveia e um molho de feno a Jack e, depois, foi

mungir a vaca. Quando levou o recipiente de leite para a cozinha, viu que ninguém se

tinha preocupado em preparar o jantar. Aqueceu sopa da véspera para os

pensionistas e, quando todos se instalaram à mesa, encheu duas tigelas, uma para

Put e outra para ele.

Put estava sentado na jaula de pernas cruzadas, com os óculos no nariz, a ler a

Bíblia da professora. Jip pousou cuidadosamente as tigelas no chão e foi fechar a

porta.

— Olá! — saudou Put alegremente. Parecia em excelente forma e Jip agradeceu

aos céus com fervor. — Olha, não precisas de andar em bicos de pés. O Lyman não

parou de berrar toda a tarde. Mas obrigado por teres fechado a porta. Pelo menos

agora vou poder ler em paz.

Jip aproximou-se da jaula e colou a boca no espaço entre as duas tábuas. Put,

surpreendido, encarou-o como se fosse ele o doente.

— Put, ouça-me. É uma historia demasiado longa para contar agora, mas o

forasteiro está de regresso e quer raptar-me.

— O quê?

— Chiu! Sei que parece uma loucura, mas é verdade. Então…

— Então?

— Então, preciso de fugir.

— De fugir? Mas porquê? Como? E para onde?

— Não eu. Nós.

— O que queres tu dizer?

— Nós dois. Eu e o Put. Enfim, se se sentir capaz de alcançar a fronteira.

— O quê? Irmos para o Canadá?

— Sim. Há pessoas que estão prontas a ajudar-nos. E eu não vou partir sem o

senhor.

Put, estupefacto, ajustou os óculos no nariz para melhor ver Jip. Veio também

encostar-se às tábuas e perguntou em voz muito baixa:

— Mas, porque queres tu ir para o Canadá?

— Bem... — Jip aclarou a garganta. — Lembra-se de no outro dia termos falado

dos escravos em fuga...

— Sim, mas tu não fugiste de parte nenhuma. Caíste de uma carroça.

— Parece que, na verdade, fui empurrado. Empurrado pela... pela minha... pela

minha mãe... É uma escrava. Estava a fugir e iam capturá-la, lá, na West Hill Road.

Put ficou de boca aberta, o que permitiu a Jip ver as suas pobres gengivas

inflamadas e os restos de dentes partidos que lhe restavam. O idoso recompôs-se por

fim, tirou os óculos, fechou o livro e declarou:

— Não, não posso partir contigo. Ia atrasar-te demasiado. Sabes isso. Precisas de

ir depressa e sem que ninguém te veja. Se me levares, é como se prendesses uma

enorme pedra ao pescoço.

— Se não vier comigo, eu não saio daqui.

Ficaram um momento silenciosos, cada um procurando no rosto do outro um

sinal de cedência. Put insistiu:

— Se ficares aqui, vão apanhar-te de certeza.

— Corro o risco.

— Mas é pior do que a morte.

— Paciência.

Put suspirou tão profundamente que Jip ficou a saber que tinha ganho.

— Bem, partimos a que horas? — perguntou o idoso.

— Quando cair a noite. Logo que toda a gente esteja deitada.

Jip tinha dificuldade de refrear a sua excitação.

Capítulo 14 : A fuga

Jip anunciou ao velho George que dormiria naquela noite na arrecadação, ao lado

da jaula de Put, e, como fazia isso frequentes vezes — para zelar pela tranquilidade

do infeliz — ninguém achou estranho. Resolveu não levar provisões. A quinta dos

Stevens não se encontrava senão a alguns quilómetros, e sabia que podia contar com

os quakers para lhes fornecerem tudo aquilo de que teriam necessidade para as

próximas etapas, e até mais. Não tinha vontade de, antes de partir, se abastecer no

armário das provisões dos Lyman. Mais tarde, lembrar-se-iam dele como um ladrão, e

aquela ideia não lhe agradava absolutamente nada.

A claridade da lua iluminava-lhes o caminho enquanto se escapuliam da quinta e

atravessavam o pátio. Jip tentou não pensar demasiado no que aconteceria aos

animais quando ele não estivesse presente. Quem viria mungir Bonnie de manhã e

conduzir Jack à pastagem? Quem trataria das ovelhas? Mas sabia, ao mesmo tempo,

que não tinha outra escolha senão fugir, fugir juntamente com Put, que, Deus seja

louvado, caminhava agora ao lado dele. Se tivesse ficado na quinta, viriam apanhá-lo

com a mesma facilidade com que se colhe um fruto maduro.

Onde é que os forasteiros teriam ido dormir?

A bem dizer, talvez nem sequer dormissem. Como é que seres humanos

conseguiam comportar-se daquela maneira, perseguindo outros seres humanos?

Excetuando o que tinha lido em A Cabana do Pai Tomás, Jip não sabia praticamente

nada sobre a escravatura. E talvez a professora tivesse feito de propósito ao

emprestar-lhe aquele livro que o pusera de sobreaviso, e ao fazer-lhe compreender

que não devia de modo nenhum deixar-se capturar. Com um objetivo preciso, dera-

-lhe também o nome de Luke Stevens, que era quem iria ajudá-lo a escapar daqueles

monstros. E o de Ezekial Freeman.

Tinha de tomar cuidado para não ir demasiado depressa. Nem um nem outro

tinham sapatos, mas para Put era mais penoso, porque raramente saía, e a planta dos

pés ainda não estava endurecida. Este avançava com precaução pelo solo pedregoso

e Jip pensou: “Se dá conta de que está a atrasar-me, não vai querer continuar. Preciso

de prestar muita atenção. Não quero perder um tempo precioso a discutir com ele se

deve continuar comigo ou não.”

O início da viagem parecia ser o momento mais perigoso, sobretudo aquelas

primeiras horas da noite. Seria, em princípio, de supor que os caçadores de escravos

estivessem a dormir, mas, como ter a certeza? Jip resolveu começar por seguir a

estrada. Era mais fácil. Put parava de tempos a tempos para lhe mostrar a Ursa Maior

e a Estrela Polar, que indicava a direção a seguir. Sobretudo, não manifestar

impaciência... comentar simplesmente que não deviam perder tempo.

Ao fim de mais ou menos uma hora, Jip perguntou-se se não teria sido melhor

cortar pelos campos. Mas isso significava avançar cercas e caminhar por um terreno

muito acidentado. Além disso, ao passarem nas imediações de uma quinta, correriam

o risco de um cão se pôr a ladrar. E se alguém saísse para ver o que se passava,

poderiam tomá-los por ladrões de galinhas. Restava pouco arvoredo onde se

esconder, porque a região acabava de ser em parte desflorestada para dar lugar aos

pastos destinados às ovelhas.

Naquele momento, estavam a dirigir-se para Leste, a fim de contornarem a

aldeia que Jip não queria de modo nenhum atravessar. Mas depressa teve de se

render à evidência: ao ritmo a que avançavam, seria dia antes de chegarem a quinta

dos Stevens. Put, que tinha perdido o hábito de caminhar, era obrigado a parar à

menor subida para recuperar o fôlego. Nesse caso, mais valia abandonar a estrada

rapidamente e cortar através da zona da floresta que subia em direção ao Norte. Jip

nada disse a Put, que parecia já muito cansado e arrastava cada vez mais as pernas.

Limitou-se a fazer-lhe um gesto para ele o seguir.

Mas existia um grave problema: se, de dia, Jip sabia bem como encontrar o

caminho e, tal como todos os que trabalhavam nos campos, guiar-se pelo sol, de noite

não era a mesma coisa. Nunca lhe tinha acontecido perder-se durante o dia. Mas, na

escuridão, não tinha referências suficientes. Quando estava debaixo da copa das

árvores, nem mesmo conseguia ver a Estrela Polar, e a claridade da lua não chegava

até lá. Era quase como avançar de olhos vendados.

Ouvia atrás dele a respiração ofegante de Put, que, provavelmente, se esforçava

por não lhe perguntar se sabia o caminho, tanto quanto ele se esforçava por não lhe

confessar que estavam completamente perdidos. Tinham de subir uma colina

íngreme, e Put agarrava-se a todos os ramos ao seu alcance para manter o equilíbrio.

Tudo isso fazia barulho, barulho demais. Mas como censurar-lho, se estava a esforçar-

se por fazer um percurso esgotante que ele, Jip, lhe tinha imposto?

Acabaram por chegar a um terreno mais plano, onde pararam.

— Ouça Put — acabou por dizer. — Tenho de confessar-lhe que não faço a menor

ideia do lugar onde nos encontramos.

O idoso murmurou qualquer coisa de impercetível; devia sentir-se cansado

demais para falar. Sentaram-se encostados a uma árvore, apertados um contra o

outro para se manterem quentes, e Jip declarou:

— Vamos dormir um pouco.

Ouviu a respiração de Put regressar lentamente ao normal. Iria jurar que não

adormecera e que apenas fechara os olhos por alguns instantes, mas, quando voltou

a abri-los, era já dia claro e os raios de sol deslizavam até eles, por entre a ramaria.

Jip olhou para Put, que também tinha os olhos abertos, mas injetados de sangue.

Parecia muito fatigado.

— Vamos — disse-lhe. — Temos de partir. Eu ajudo-o a levantar-se. Dê-me a

mão... assim...

O idoso tentou gracejar, contar que outrora, no exército, quando passava a noite

fora... mas não acabou a frase.

— Vamos, Jip — disse simplesmente. — Vai em frente. Eu sigo-te.

Esforçava-se por manter um tom jovial, o que deu a Jip vontade de chorar. Se ao

menos fosse capaz de observar a posição do sol, conseguiria, de certeza, determinar

o lugar onde se encontrava, e, dali, ver a direção a tomar para chegar à quinta dos

quakers.

— Vamos, Put — exclamou. — Não podemos enganar-nos no caminho. A dois

havemos de conseguir.

Mas avançavam a um ritmo de caracol. Put não podia fazer melhor. E Jip tinha de

alinhar o passo pelo dele. Chegaram finalmente junto de um ribeiro que ia ser preciso

atravessar a pé. A água era clara e, felizmente, não muito profunda naquela época do

ano.

— Eu seguro-o, preste muita atenção para não escorregar nas pedras.

Mas Put deteve-se.

— Não, agora não avanço mais. Fico aqui à tua espera, enquanto tu vais explorar.

Era como fazíamos durante a guerra. Descobres o melhor caminho a seguir e vens

buscar-me depois. Assim, posso descansar um pouco.

Jip não tinha vontade nenhuma de o deixar, mesmo que fosse por um breve

momento. No entanto, como fazer de outro modo? A simples travessia do ribeiro

afigurava-se perigosa, dado o cansaço do idoso. Bem, pelo menos, ia poder beber um

pouco de água, o que o refrescaria. Que tolice, porém, não ter trazido ao menos um

copo. Tinham de se baixar e de beber com a língua, como os cães. Pela centésima

vez, Jip lamentou ter comido todo o pão e o queijo da Sra. Stevens.

Sem Put para o atrasar, Jip correu como uma lebre por entre os arbustos. E, ao

cabo de um momento que lhe pareceu incrivelmente curto, divisou por entre as

árvores o caminho pedregoso que levava à quinta dos quakers. Uma onda de orgulho

invadiu-o. Afinal, tinha-se desenvencilhado bem. Depois, sem deixar a proteção dos

bosques, prosseguiu até conseguir ver a casa, o celeiro e o estábulo dos Stevens.

Pela chaminé saía fumo. Pareceu-lhe sentir um cheiro agradável de sopa de

legumes e de pão quente acabado de cozer. Sentia-se tão contente que quase teve

vontade de começar a cantar. Era só bater à porta e perguntar se fariam o favor de o

ajudar a ir buscar Put. Começava a correr e já ia pôr-se a descoberto quando ouviu

barulho. Uma carruagem surgira no caminho e os cascos do cavalo que a puxava

batiam na terra seca. Não sentiu medo, mas decidiu ser prudente e não avançar mais.

Não convinha que o vissem.

Reconheceu o cavalo. Conhecia, aliás, todos os cavalos das redondezas.

Pertencia a um homem que costumava alugá-lo. É estranho, quem poderia ter

precisado de alugar um transporte logo de manhã cedo? O cocheiro — não, não via

quem poderia ser e também não via o passageiro. Traziam roupas elegantes e

chapéus domingueiros. E não é que a carruagem deixara o caminho e entrara no

pátio dos Stevens?

A carruagem parou, o cocheiro desceu e foi prender o cavalo ao poste onde ele,

Jip, na véspera, tinha prendido Jack. Em seguida, desceu também o passageiro e

ambos se precipitaram para a porta, começando a bater violentamente.

“Como são mal-educados”, pensou. “Quem poderia imaginar que senhores tão

bem-vestidos se comportassem desta maneira?” Um homem idoso, o Sr. Stevens

certamente, veio abrir. Jip não ouviu o que ele dizia àqueles estranhos visitantes, mas

sentiu o coração dar um salto quando um deles berrou — e aquela voz era-lhe

familiar. Se era!

— Entregue-nos o garoto imediatamente! Temos um mandato de captura!

O velho Sr. Stevens não se mexeu.

Então, os dois homens empurraram-no brutalmente e invadiram a casa.

Capítulo 15 : Perseguido como um animal

O coração de Jip batia tanto que parecia rebentar. O que iriam fazer aqueles

monstros? Ele poderia desembaraçar-se sozinho para alcançar a fronteira, mas o que

seria de Put? Contava com os quakers para lhe arranjarem um meio de transporte.

Nunca imaginaria o idoso a fazer sozinho todo o percurso. Porque, nesse caso, que

sentido fazia tê-lo trazido com ele, tê-lo forçado a vir com ele? Teria sido preferível

um lugar no asilo a uma morte provocada pela fome e pelo esgotamento. Precisava

de ir ter com ele, de lhe explicar o que se passava, de reconhecer a sua própria

estupidez e egoísmo, e o levar de volta para a quinta dos pobres.

Mas, o que aconteceria a seguir? Put morreria certamente, abandonado por

todos, entregue ao desespero. Jip estremeceu e sentou-se na erva, tão incapaz de

avançar como de recuar. “Vou vigiar a casa”, disse para consigo ao fim de um

momento. “Quando verificarem que não estou lá, hão de ir embora e procurar-me

noutros lados. Não devem ser muito espertos. Se não, era ontem que deveriam ter

vindo cá.” O suor começou a escorrer-lhe pelo pescoço. “E se o tivessem feito? Corri

um risco enorme em ter vindo a casa dos Stevens. Devem ser suspeitos de ajudarem

escravos em fuga. E não é legal usar um mandato de captura durante a noite, só se

pode utilizá-lo de dia. É por isso que só agora apareceram, claro.”

Continuava imóvel, agachado entre os arbustos, à entrada do bosque. Os dois

homens deviam estar a vasculhar a casa e os anexos de uma ponta à outra. Jip estava

tão quieto que um carreiro de formigas começou a subir por um dos seus pés

descalços, desceu em seguida e finalmente voltou, a arrastar e a empurrar um

escaravelho morto, infinitamente maior do que o pequeno grupo reunido. Preparava-

-se para varrer tudo com as costas da mão, quando se deteve. Não, não deveria fazer

aquilo, quase parecia uma mensagem que as formigas lhe dirigiam, uma mensagem

de reconforto, que significava que não devia perder a coragem assim tão facilmente.

Ao cabo de um longo, muito longo momento, Jip acabou por ver os dois homens

saírem do celeiro, rodeados por vários membros da família Stevens. Pelos gestos

furiosos do condutor, via-se que estava enraivecido por não ter encontrado a presa

que procuravam. O outro ia muito direito, um pouco afastado. O outro... — era aquele

a quem Jip recusava chamar “senhor” e muito menos “pai”... — parecia não dizer

nada. Acabaram por subir para a carruagem e, saindo do pátio, puseram-se a

caminho.

Fragmentos de conversa chegavam até ao rapazinho, sempre bem escondido. O

forasteiro — que ele sabia agora tratar-se de um caçador de escravos — protestava

muito alto que não estava para vigiar a casa enquanto o companheiro ia retemperar

forças na taberna da aldeia. Não queria ficar só, sem cavalo, sem nada de comer, na

vizinhança daqueles caseiros que não pareciam ter a menor simpatia por ele.

O homem de tez pálida parecia indiferente aos protestos. Falava muito mais

baixo e Jip só conseguiu ouvir:

— Na minha opinião era preciso esquadrinhar estes bosques e...

Não esperou por mais. Recuou um pouco e desatou a correr por entre as árvores.

Pelo menos, os perseguidores não tinham cães. No livro A Cabana do Pai Tomás, os

caçadores de escravos andavam muitas vezes com eles.

Encontrou Put onde o tinha deixado. Segundo disse, durante a sua ausência,

tinha-se limitado a ir beber ao ribeiro. À vista do rapazinho, o seu rosto cansado

exprimira uma tal alegria, uma tal expectativa, que ele teve dificuldade de lhe contar

as péssimas notícias.

— Portanto — comentou Put depois de ter ouvido atentamente — um desses

tipos malvados está a vigiar a quinta dos Stevens.

— Sim, mas calculo que, a certa altura, terá necessidade de ir comer ou dormir.

— Hum... sim, claro. O que não impede que eu e tu estejamos metidos num

grande sarilho.

Put esforçava-se por sorrir, apesar de tudo. E Jip tentou fazer o mesmo.

— Se ao menos tivesse trazido comida...

— E cobertores.

— E um jarro de cidra.

— E uma bolsa de tabaco.

— Ora, ora, o Put não fuma.

— Não, mas pensava começar, agora que tenho tanto tempo livre.

Quem teria pensado que o velho Put seria capaz de o fazer rir em circunstâncias

tão penosas? Pela primeira vez desde há longas horas, Jip experimentou um profundo

sentimento de alegria face à ideia de que o seu velho amigo estava ali com ele. Mas

depressa caiu em si. Não convinha rir muito alto, nem mesmo naquele lugar isolado,

pois corriam o risco de ser ouvidos. Tinham de agir sempre com extrema prudência.

— Put, temos de pôr as nossas cabeças a trabalhar. Penso que, dentro de um dia

ou dois, irão desistir das buscas. Mas, enquanto esperamos, não podemos ficar aqui, é

um lugar muito húmido, e precisamos de arranjar qualquer coisa de comer.

— Vi que havia amoras não muito longe do ribeiro — observou Put.

— Bom, vamos colhê-las, gosto muito de amoras, o Put não gosta?

Jip tentava usar um tom encorajador, mas a colheita foi escassa: alguns frutos já

ressequidos polo sol e praticamente sem gosto. Fizeram ambos de conta que eram

deliciosos; e depois foram beber um pouco de água, cada um entregue às suas

reflexões.

— Tens razão, sabes? Não vão lá ficar eternamente. Além disso, estou

convencido de que a sua forma de proceder não é legal. Tenham ou não um mandato

de captura, não podem deter ninguém se o xerife ou um dos seus homens não

estiverem presentes.

— É verdade?

— Sim. Não podem prender-te de qualquer maneira.

Jip começou logo a sentir-se melhor. Este bom velho Put, que sabia tantas coisas!

Fez menção de falar, mas, com um gesto imperioso da mão, o idoso fê-lo calar-se:

— Vais regressar a casa dos Quakers sozinho, ouviste? Não, não me interrompas.

Os dois, faremos barulho demais por entre a vegetação. Vai e espia o espião. Não,

não estou a brincar. É verdade que ele há de acabar por ir embora. Nesse momento,

entras à pressa em casa deles, onde arranjarão um lugar para te esconder. Está bem?

— Mas...

— Não há mas, nem meio mas. Depois, pedes a alguém que venha buscar-me.

De qualquer modo, se aqueles malvados tropeçassem em mim, não creio que se

dessem ao trabalho de mandar prender um louco. E mesmo que o fizessem, limitar-

-se-iam a encerrar-me numa jaula. Jaulas é coisa que conheço bem, quase se

tornaram para mim um verdadeiro lar.

O plano que Put acabava de expor não agradava a Jip. Mas o que tinha ele a

propor em troca? Tirou a camisola, dobrou-a cuidadosamente, fazendo uma espécie

de travesseiro para o idoso se sentar — o que este fez, não sem antes ter protestado

que o garoto não devia apanhar frio. Depois, encostou-se ao ácer, que se tornara o

único refúgio que tinham encontrado desde a véspera.

Quando Jip voltou a pôr-se a caminho, ia mais atento do que nunca ao menor

estalido de galho debaixo dos pés, ao mais pequeno grito de pássaro, ao mais leve

sussurro de folhas. Tinha de chegar tão perto quanto possível do caçador de escravos,

para o vigiar sem ser visto. O homem não podia ter a menor suspeita de que o

observavam. Quando lá chegasse, talvez fosse preferível subir a uma árvore. Isso

permitir-lhe-ia ver ao mesmo tempo o caminho, o pátio, a casa, e portanto, perceber

de imediato se alguém se aproximava. Sim, parecia-lhe ser uma boa ideia, desde que

não fizesse mais barulho do que um esquilo.

Jip deteve-se. Por entre as árvores, via agora o homem a andar de um lado para

o outro com um ar tenso. Consultava o relógio, metia-o no bolso, voltava a pegar nele,

voltava a guardá-lo. Virava a cabeça para a direita, para a esquerda, incapaz de estar

quieto. Dir-se-ia uma folha agitada pelo vento. “Ele tem medo”, pensou Jip, que, de

repente, julgou ter sido descoberto, porque os olhos de fuinha se viraram subitamente

na sua direção. Mas não, ele recomeçara o vaivém, para, finalmente se sentar num

velho tronco.

O rapazinho recuou prudentemente e procurou uma árvore que lhe conviesse.

Começava a trepar a uma grande faia, quando ouviu a carruagem e os cascos do

cavalo no caminho. Muito rápido, subiu de ramo em ramo, esperando que o barulho

dos cascos abafasse o barulho que ele próprio fazia. Parou a cerca de dois metros do

solo, satisfeito com o seu posto de observação.

Um homem a cavalo seguia a carruagem. Quem poderia ser? Meu Deus, era o

xerife em pessoa. Parou junto do espião, desceu da montada e os dois homens

pareceram começar a discutir. A carruagem também tinha parado. O xerife não

estava com um ar nada contente. Depois do que parecera ser uma viva troca de

palavras, o caçador de escravos veio sentar-se junto do homem de tez pálida e voltou

a pegar nas rédeas.

Bem, iam então regressar à cidade. Jip sentiu-se mais tranquilo. Mas não, eles

não se mexiam, do que estariam à espera? Olhavam para o caminho como se alguém

estivesse prestes a chegar, e a sua irritação parecia quase palpável. O próprio cavalo

batia com uma das patas no chão e agitava a cauda impacientemente.

Finalmente, chegou uma velha pileca, montada por dois cavaleiros. Jip

reconheceu primeiro o animal: era o cavalo usado pelos Brackett nos trabalhos do

campo. Montados nele vinham Addison e Warner.

E uma vez mais se encetou uma discussão que não parecia satisfazer ninguém.

Era Addison que falava mais alto, enquanto Warner se limitava a enxugar a fronte

com uma das mangas. Por fim, apearam-se. O caçador de escravos fez estalar o

chicote e a carruagem começou a andar, seguida pelo xerife a cavalo. Os Brackett

distanciaram-se alguns passos, o suficiente para Jip deixar de os ver. Divisava apenas

a garupa e o andar do cavalo. Talvez se tivessem sentado no chão. Em todo o caso,

uma coisa era evidente: vigiavam a entrada da casa. O que fazer? Jip sabia que os

dois irmãos não morriam de amores por ele; era o mínimo que se poderia dizer.

Deviam achar divertida a ideia de contribuírem para a sua captura, sem esquecer o

importante pormenor do dinheiro.

Se ele não estivesse tão cansado, tão incomodado com a fome, teria

compreendido muito mais cedo o que tinha a fazer. Devia forçosamente haver uma

outra porta na parte de trás da quinta, do lado dos pastos. Se conseguisse escapulir-

-se por lá, sempre pela orla do bosque, bastar-lhe-ia dar uma corrida através dos

campos para contornar os anexos do lado oeste. Graças a Deus, o terreno não era

totalmente plano, havia várias elevações atrás das quais era possível esconder-se,

bem como moitas de espinheiros. Se tivesse cuidado, talvez os Brackett não o vissem.

Toda a gente sabia que eles tinham menos miolos do que uma lebre.

Deixou-se escorregar ao longo do tronco, tendo o cuidado de saltar para o chão o

mais silenciosamente possível. Felizmente, os Brackett também não tinham trazido

cães. O coração de Jip batia com tanta força, que este chegou a pensar que iriam

ouvi-lo a vários metros de distância. Rastejou, rastejou, até que se ergueu

bruscamente, deixou para trás o abrigo das árvores e desatou a correr o mais

depressa que podia através dos campos. Nem perdeu tempo a reparar se o seguiam.

O objetivo era um enorme tanque de madeira que ele tinha visto na zona dos pastos.

Poderia esconder-se lá dentro. As vacas que ali se encontravam lançaram-lhe olhares

desconfiados quando ele apareceu a rastejar, subiu para a borda do tanque e se

estendeu no fundo, onde, felizmente, havia pouca água. Esperou para recuperar o

fôlego e deixou que os animais se habituassem à sua presença. Em seguida, levantou

a cabeça muito devagar e observou as imediações.

A quinta encontrava-se muito próximo e escondia-lhe a parte do caminho onde

os Brackett ainda deviam estar. Convinha sobretudo evitar que as vacas mostrassem

medo, porque isso revelaria, de imediato, algo de suspeito. Esperou um pouco mais e,

em seguida, saiu com precaução do seu esconderijo. Mal tinha dado um passo, sentiu

o coração cair-lhe aos pés, porque uma mão forte o agarrara por um ombro e uma

outra lhe tapara a boca.

Capítulo 16 : A cabana

— Jip, chiu, não queria assustar-te, mas não deves aproximar-te da casa. Estão a

vigiá-la.

— São só os Brackett — murmurou. Jip sabia, enquanto Luke Stevens parecia

desconhecê-lo, que aqueles dois eram estúpidos como uma porta. Luke pôs um dedo

nos lábios do rapazinho e fê-lo virar-se em direção ao local de onde tinha vindo.

Depois, disse-lhe em voz baixa:

— Segue-me, faz o que te digo.

Acionou a bomba para deitar um pouco mais de água no bebedouro, inspecionou

com um ar negligente as tetas de uma vaca, o pescoço de outra, enquanto ia

indicando muito discretamente a Jip como devia passar por entre aqueles grandes

dorsos sem ser visto. Avançaram assim de conluio até ao limite do prado e chegaram

à orla do bosque. Já em segurança, sentaram-se em cima de um tapete de folhas

mortas.

— Sabemos que outros espiões estão colocados ao longo do caminho. E

possivelmente noutros locais. Contam apanhar-te quando voltares a nossa casa. Um

pouco mais longe existe uma cabana que ninguém parece conhecer, exceto eu e os

meus irmãos. Julgo que vais ficar lá em segurança até ao cair da noite. Depois, se

tudo correr bem, poderemos levar-te até à próxima estação.

— Mas, e o Put? Deixei-o lá...

— Lá onde? Explica-me bem e vou mandar alguém buscá-lo. É perigoso, podem

ver-te.

Jip descreveu o melhor que pôde o lugar próximo do ribeiro. Luke acenou com a

cabeça.

— Sim, acho que estou a ver onde é, ainda faz parte das nossas terras. Vou

muitas vezes caçar para lá. Não te aflijas. Vamos encontrar o teu amigo.

Enquanto falava, levantou-se, e ambos se puseram a caminho até uma cabana

de madeira, sem dúvida outrora construída por alguém demasiado pobre para ter

uma casa de verdade. Possuía uma só divisão, bastante pequena. Mas o teto estava

restaurado e a única janela existente tinha vidros.

Luke levantou o trinco, abriu e fez a Jip sinal para entrar. Via-se que a casa

estava desabitada, pois a lareira não era utilizada havia muito.

— Julgo que o melhor é que te escondas em cima, no sítio onde se guarda o feno

— disse Luke. — Nunca se sabe. Alguém pode passar e espreitar pela janela. Vou

deixar-te. Volto assim que puder e trago-te de comer. Enquanto esperas, só tenho isto

para te oferecer.

E estendeu a Jip alguns biscoitos muito duros. Desculpou-se com um sorriso.

— A minha mãe havia de ficar zangada por ver que não tenho nada de melhor

para te oferecer. Vai, sobe para ali e espera por mim. Não hei de demorar.

Mas Jip só conseguia pensar em Put. Put, que podia ficar doente por comer bagas

venenosas. Oh! Porque é que não lhe tinha guardado um pedaço de pão e de queijo?

— Por favor, não esqueça que o Put deve estar cheio de fome.

— Eu sei, não te preocupes. Nós tratamos dele. Vou ver se ficou um pouco de

água num balde. Sim, ainda há. Pega, bebe e descansa, volto assim que puder.

Luke saiu, fechando cuidadosamente a porta. Jip ouviu-o empilhar qualquer coisa

na soleira, galhos com toda a certeza, não para lhe impedir a fuga, mas para melhor

dissimular a sua presença a eventuais perseguidores. Devorou os biscoitos, estendeu-

-se sobre o monte de feno e mergulhou num sono de chumbo. Quando acordou, ouviu

o barulho da chuva no telhado, mas não se inquietou. Put devia estar agora em

segurança, Luke tinha-lho prometido. Muito mais tarde, o ranger da janela a abrir-se

fê-lo levantar-se sobressaltado. Perscrutou a obscuridade, retendo a respiração. Uma

grande silhueta deslizava no interior da cabana. Luke Stevens... Era ele que o

chamava em voz baixa.

— Jip, estas aí?

Embora não houvesse de certeza ninguém nas proximidades, continuava a agir

com precaução.

— Sim — respondeu o rapazinho, debruçando-se. — Onde está o Put?

— Com a minha mãe. Neste momento precisa de cuidados que nem eu nem tu

podemos dar-lhe.

— Não está a dizer que...

— Não, não, ele está no seu juízo, mas sentiu muito frio e muita fome. Quis a

Providência que esta noite chovesse muito, e o teu amigo apanhou o aguaceiro todo.

Até os Brackett se foram embora por causa do mau tempo.

— Então posso descer?

— Sim, vou acender o fogo. A menos que...

Luke pareceu hesitar e depois continuou:

— Ouve, Jip, o teu amigo não se encontra em estado de poder viajar esta noite.

Deseja que partas sem ele. Mais tarde, irá ter contigo.

— Bem sabe que não posso aceitar isso.

Luke suspirou.

— Já sabia o que ias responder, e disse-lho.

Apressou-se a acender o fogo, pôs em cima a panela que tinha trazido e pousou

sobre a tampa algumas fatias de pão para as aquecer. Para aquele pobre rapaz, o

aroma da carne e dos legumes que se espalhou pela cabana parecia vindo do paraíso.

Luke ficou a vê-lo comer avidamente, e recusou com um aceno de cabeça quando ele

o convidou para partilhar do seu festim.

— Se comesse um só bocado do que a minha mãe te mandou, creio que, por

muito meiga e calma que ela seja, me esfolaria vivo — disse com um sorriso.

Deixou Jip chupar com o pão o molho até à última gota e depois prosseguiu.

— Agora ouve. Não sabemos ao certo o que os caçadores de escravos têm em

mente, exceto pretenderem capturar-te vivo. Se te ferissem, ficarias com menos valor

aos olhos deles. Mas podem pregar-nos partidas terríveis e dedicam-se há tanto

tempo a esta prática detestável que, tal como te disse, somos obrigados a ser

manhosos como serpentes se quisermos iludi-los.

Jip ouvia com atenção, mas sentia-se um pouco impaciente. Porque, apesar de

tudo, os Quakers estavam habituados — Luke era o primeiro a dizê-lo — a fazer frente

àqueles malvados e a levar muitas vezes a melhor.

— A minha ideia — prosseguiu o jovem — era fazer com que partisses de noite

rumo ao Norte. A chuva seria útil para nos proteger. Mas, é claro, tu é que decides. Se

queres mesmo que o teu amigo viaje contigo, vais ter de esperar que ele se

restabeleça. Podes ter a certeza de que, entretanto, os inimigos vão mandar espiões

para vigiar todas as casas da vizinhança. Portanto, de amanhã em diante, já não vou

poder arriscar-me a acompanhar-vos ou a mandar alguém acompanhar-vos a pé ate à

próxima estação. Porque é mais do que provável descobrirem-nos. Vai ser preciso

pensar noutra coisa, levar-vos diretamente a Northfield, por onde passa o caminho-

-de-ferro de verdade. Na estação de Northfield existe um funcionário que aceitou

esconder passageiros clandestinos dentro de carruagens de mercadorias. Deste

modo, eles conseguem passar a fronteira sem problemas.

— O verdadeiro caminho-de-ferro? — exclamou Jip.

Nunca tinha visto um comboio mas, na quinta dos pobres, os velhos falavam por

vezes daqueles monstros enormes, todos negros, que cuspiam fumo e chamas, e

corriam, a rugir, ao longo de trilhos intermináveis. Meu Deus, então ele ia em breve

penetrar no ventre de um deles…Vibrou de excitação da cabeça aos pés.

— Um comboio de ferro? perguntou, para ter a certeza.

— Sim, não se trata daquilo a que nos chamamos o nosso Caminho de Ferro

Clandestino. Desta vez, não vais fazer a viagem a pé, vais chegar ao Canadá em

grande. Mas tenho de me certificar de que o nosso amigo estará nesse dia na estação

de Northfield.

Jip disse a si próprio que não iria ter medo. Era bom demais para ser verdade.

Também Put viajaria de comboio. Estaria quente e seco. Bastava que os dois

chegassem sem problemas a Northfield, e não era muito longe.

Deu as boas noites a Luke, voltou a subir para o celeiro do feno e rapidamente

caiu no sono, não sem ter voltado a pensar no grande dragão de metal que iria levá-

-los, a ele e a Put, em direção à liberdade.

Quando a primeira claridade da madrugada iluminou a pequena janela, ele já se

encontrava acordado e começava a sentir fome. Não demorara muito tempo a

adaptar-se à boa comida. Mas nenhum pequeno-almoço chegou. No entanto, Luke

tinha prometido vir cedo...

A meio da manhã, cansado de esperar e inquieto, rastejou até à reserva de

biscoitos que o jovem Quaker lhe tinha deixado. Bebeu depois um pouco de água,

lançou um olhar através do vidro e voltou a subir para o esconderijo. Seguiu-se então

a mais longa espera da sua vida. Mesmo em pleno dia, a pequena cabana era

sombria. Sentado de pernas cruzadas, continuava atento ao menor ruído do exterior.

Os pássaros cantavam, os esquilos corriam pelo telhado por cima da sua cabeça. As

folhas agitavam-se nas árvores próximas. Mas não se ouvia o menor ruído de passos

no carreiro. O que teria acontecido para impedir Luke de cumprir a sua promessa?

Jip esforçava-se por refletir, mas tudo se confundia na sua cabeça, porque se

tinham passado tantas coisas naqueles dois últimos dias, que seriam capazes de

enlouquecer qualquer pessoa. Pouco a pouco, foi-se-lhe impondo o essencial, o que

lhe tinha sido revelado sobre o seu nascimento, as suas origens: era um escravo

negro. Não um cigano. Nem tão-pouco uma criança roubada por ciganos. Era filho de

uma escrava, a mãe dele era uma mulher negra.

Olhou para as mãos. Na penumbra, pareciam-lhe brancas, bem mais próximas da

cor de um carneiro merino do que das penas de um corvo. Mas como é que um negro

seria, de facto? Nunca tinha visto nenhum. Havia um cartaz colado na parede da loja

de Peck a anunciar uma reunião política dos abolicionistas. O negro lá representado

não tinha a pele muito escura. De qualquer modo, ele, Jip, não era nada parecido.

Nem tão-pouco com aquelas horríveis caricaturas de escravos que apareciam

regularmente no jornal do Sr. Lyman.

Sentir-se-ia chocado por saber que era um deles? Sim, um pouco. Era uma coisa

em que nunca tinha pensado. Nunca. Só podia estar surpreendido, mas o pior, o que o

abalava acima de tudo, era o facto de não ser inteiramente negro, de ver o quanto se

parecia com o forasteiro … Só essa ideia lhe dava vontade de vomitar. Não havia

lugar para dúvidas: o homem que lhe estava no encalço, como se ele fosse um animal

de caça, era o seu progenitor.

As horas sucediam-se, intermináveis. Entre a angústia pela sorte de Put e a

inquietação por não ver Luke chegar, sentia a cabeça andar-lhe à roda, juntamente

com o inevitável desgosto que lhe causava a revelação das suas origens. Primeiro,

quanto Luke lhe explicou tudo, ficara como que petrificado, incapaz de sentir fosse o

que fosse. Mas ali, sozinho naquele minúsculo celeiro, sentia-se nu, despojado de toda

a couraça e mergulhado na vergonha.

Lembrava-se daqueles anos em que se perguntara por que motivo ninguém tinha

vindo à sua procura. Deus devia apreciar as brincadeiras de mau gosto. Porque

alguém tinha aparecido finalmente. Ele, Jip, já tinha as respostas para as suas

perguntas. Mas esse alguém queria recuperar o objeto que lhe pertencia, não o seu

filho. Deu-se conta de que tremia da cabeça aos pés.

O fim da tarde aproximava-se. Continuava sem notícias da quinta dos Quakers.

Dez vezes começou a descer do seu esconderijo, dizendo para consigo que tinha de ir

à procura de notícias, sem ser visto. Mas parava a tempo, percebendo que seria uma

loucura. Se Luke Stevens não vinha é porque sucedera algo de sério. Tinha de

continuar à espera.

Esgotou aos poucos toda a sua reserva de biscoitos, demasiado tenso para ficar

deitado mais de um minuto e sobressaltando-se ao menor ruído. Por fim, cerca da

meia-noite — calculou que devia ser por volta dessa hora — viu pela janela umas

luzes que se moviam. Dir-se-ia lanternas presas na sela de vários cavalos, atendendo

à altura a que se encontravam. Não perdeu um instante. Meteu o copo num bolso,

deixou-se cair do monte de feno e esgueirou-se para fora. Escondeu-se por detrás de

uma árvore e ficou à espreita sem se mexer. Aproximaram-se três, não, quatro

cavalos. Só podia tratar-se dos seus perseguidores. Luke nunca teria vindo

acompanhado e, muito menos, a cavalo.

Pôs-se a recuar, sem barulho, em direção à espessura do bosque. Ouviu alguns

homens falarem uns com os outros, depois calarem-se, descerem dos cavalos,

fazerem comentários a respeito do monte de galhos empilhados diante da porta da

cabana e começarem a desfazê-los para entrar. Não esperou mais. Mergulhou na

escuridão. Se conseguisse encontrar o ribeiro junto do qual ele e Put tinham parado

para descansar, talvez Luke — a quem tinha descrito em pormenor a localização para

ele poder descobrir o idoso — sim, talvez Luke tivesse a ideia de ir lá procurá-lo. E se

não conseguisse? O que poderia fazer? Tentar partir sozinho para o Norte, sem

dinheiro, sem saber o caminho, abandonando Put? Ou então esperar que os seus

perseguidores se cansassem de andar no encalço dele? De certeza que depressa se

cansariam de perseguir um garoto que não fora criado para ser um escravo e que, por

isso, iria certamente criar-lhes aborrecimentos.

“Sim, vou ser como o George da Cabana do Pai Tomás”, disse para consigo.

“Tenho a certeza de que sou capaz de ser tão combativo como ele. Ninguém

conseguiu quebrá-lo.” Mas escravos como George, bem o sabia, eram vendidos para

serem mandados para os campos de algodão, onde se tinha de obedecer. Ou então,

batiam-lhes tanto, como fizeram com o extraordinário Pai Tomás, que acabavam por

morrer.

Quando chegou finalmente ao ribeiro, já não tentava convencer-se de que seria

capaz de resistir. Só uma coisa contava: não se deixar apanhar. Era muito bonito

dizer-se que a liberdade é a vida. Mas o melhor seria nunca ter de escolher entre as

duas. Ele, Jip, queria as duas.

“Tenho então de abandonar Put? De o deixar com os Stevens? Em nenhum lugar

do mundo deve ser tão bem tratado como em casa deles. Quase invejo a sua sorte…

Mas, se eu fizer isso e fugir para o Canadá, estarei completamente só. E eu tenho

tanta necessidade dele como ele tem necessidade de mim. Se ao menos eu soubesse

onde está a professora... Ela havia de ajudar-me. Ela, que sabe tudo, descobriria um

meio de nos fazer partir juntos.”

Não teria sido capaz de dizer como acabou por encontrar o velho ácer onde

ambos se tinham encostado para dormir um pouco na noite anterior. Mas conseguiu

lá chegar sob a ténue claridade da lua e deixou-se cair como um corpo morto em

cima de um monte de folhas molhadas.

Seria capaz de jurar que não tinha adormecido, mas já a manhã nascia quando

um ruído o fez levantar-se de sobressalto, uma espécie de estalido no meio da

vegetação. Parecia ainda bastante distante, mas não havia dúvida de que vinha em

direção a ele. Devia subir pelos ramos e esconder-se, ou ficar à espera? Tratar-se-ia

de um homem ou de um animal? Dos seus perseguidores, certamente que não.

Teriam tomado mais precauções para não serem ouvidos. Então o que seria? Um

urso? Contava-se histórias de ursos na região, mas ele nunca tinha visto nenhum.

Capítulo 17 : Pedidos de socorro

De repente, ouviu-se uma voz, a voz de alguém exausto e desesperado:

— Jip, Jip, estás a ouvir, meu rapaz?

Era Put, era Put! Esquecendo toda a prudência, exclamou:

— Sim, sim, estou aqui, junto da nossa árvore! Não se mexa, fique onde está, vou

já para aí!

Lembrou-se, depois, que até as árvores têm ouvidos e apressou-se a baixar a

voz.

— Continue a falar, mas não muito alto. Só para me guiar.

Se os caçadores de escravos tivessem seguido Put, estariam ambos bem

arranjados. Mas, paciência, ninguém poderia impedi-lo de ir ter com o seu velho

amigo. Quando por fim o avistou, curvado, com o olhar exausto, lançou-se-lhe nos

braços e começou a chorar como Toddy teria feito, lágrimas de cólera, de sofrimento,

mas ao mesmo tempo de alegria, porque tinham finalmente voltado a encontrar-se.

Sentia o corpo de Put tremer de encontro ao seu. Primeiro, tentou convencer-se

de que era de satisfação, mas depressa teve de se render à evidência: era de febre.

De imediato, fez menção de despir a sua própria camisa para a colocar nos ombros do

idoso e o proteger um pouco. Mas Put protestou:

— Não, meu rapaz, não fica bem andar de tronco nu. Poupa esse espetáculo a

um velho cavalheiro, peço-te.

Jip esforçou-se por rir, conduziu Put para o seu refúgio, junto do ácer, e ajudou-

-o a sentar-se. Não se atrevia a fazer as perguntas que lhe queimavam os lábios.

— Bem pensei em trazer provisões para nós — acabou por dizer Put — mas as

pessoas que me mantinham prisioneiro ficaram toda a noite sentadas na cozinha e eu

vi-me impedido de o fazer.

— Estava prisioneiro?

Ter-se-iam os caçadores apoderado da quinta?

— Disseram-me que ficasse deitado e, sobretudo, que não fizesse barulho.

Encostaram qualquer coisa à porta para terem a certeza de que eu não fugiria. Mas

não sou tão estúpido assim. Consegui sair pela janela.

— Mas onde estavam os Stevens? — Jip já não entendia mais nada. — Então os

caçadores de escravos sempre se apoderaram da casa?

— Os caçadores de escravos? Não. Eram aqueles Quakers de uma figa que me

conservavam prisioneiro.

— Oh, Put, veja bem, eles são nossos amigos. Só queriam protegê-lo.

— Não me deixavam vir ter contigo! Pedi-lhes que te dissessem que partisses

sozinho para o Norte, mas eles não quiseram. Não ouviam nada do que eu lhes dizia,

só repetiam que devia ficar deitado, muito tranquilo.

— Mas é porque está doente, Put. Está a arder em febre. Só queriam o seu bem.

— Estou a dizer-te, não me deixavam vir ao teu encontro. Mesmo quando eu lhes

afirmava que precisavas de mim. Que seríamos apanhados se não partíssemos ambos

imediatamente. Mas era-lhes indiferente.

Nada a acrescentar. Naquele momento, o sol já ia alto. Debaixo da copa das

árvores estava menos frio do que durante a noite. Mas Put continuava a tremer e a

bater os dentes.

Jip fez várias idas e vindas entre a árvore e o ribeiro, para lhe dar a beber pelo

copo que ele tinha tido a precaução de trazer e lhe deitar água na testa para a

refrescar. Sabia bem que mais uma noite na densidade húmida do bosque acabaria

por matá-lo.

— Como está dos pés, Put? — perguntou. — Acha que seria capaz de caminhar

até à cidade?

Put encarou-o, com os olhos a brilhar de febre. Mas fez que sim com a cabeça e

tentou pôr-se de pé. Jip ajudou-o e disse-lhe em seguida:

— Bem, não há motivo para nos apressarmos. Vamos com calma. De qualquer

modo, não podemos correr o risco de sermos vistos, e teremos de esperar pelo cair da

noite. Quando chegarmos, vamos a casa da Sra. Wilkens, da Lucy, do Toddy e do

bebé. De certeza que havemos de lá ficar escondidos.

Put esboçou um sorriso triste. Nenhum caçador teria qualquer dificuldade de os

seguir, mas paciência. De dia, Jip era capaz de se orientar. Avançaram assim em

direção a uma extremidade do bosque e pararam à vista de uma pequena quinta

rodeada de pastagens. Quem moraria lá? Um amigo ou um inimigo? Ao cabo de um

momento, Jip compreendeu que se tratava da quinta dos Tucker. O pequeno Tucker

frequentava a mesma escola que ele. Mas será que essas pessoas considerariam uma

boa ação dar abrigo a fugitivos? Não tinha a certeza. Mais valia não correr o risco.

Além disso, havia um cão que não parava de ladrar. Não, era melhor não bater àquela

porta.

— É melhor não sairmos do bosque — murmurou. — Vou ver se descubro um

lugar onde possa sentar-se. O solo está todo encharcado.

Vasculhou por um momento à direita e à esquerda e acabou por descobrir um

grande pedaço de casca de bétula que colocou no solo, ao lado de um ácer.

— Olhe, Put! — disse — Quase parece um cadeirão.

O idoso instalou-se, dando um profundo suspiro. Se Jip se tinha lembrado de

trazer um copo, tinha esquecido os últimos pedaços de biscoito. Uma vez mais se

recriminou, não se atrevendo a olhar para Put, que tentava disfarçar o quanto tremia.

Logo que anoiteceu, pôs-se a caminho. Quanto mais cedo partisse, mais cedo

voltaria.

Era lua cheia. As janelas das casas estavam iluminadas. Fazendo por nunca sair

da sombra, aproximou-se furtivamente da casa da costureira da vila. Nenhuma luz

estava acesa. Deteve-se, pronto a afastar-se ao menor ruído. Mas não, nada. Tanto

melhor, era sinal de que toda a gente dormia. Deslizou ao longo das traseiras da casa

e olhou por um vidro da janela. Demorou algum tempo a perceber que aquilo que

distinguia no escuro era uma cama com duas bossas na extremidade. Uma só podia

ser a cabeça de Lucy e a outra, mais pequena, a de Toddy.

Bateu levemente. Lucy mexeu-se, depois virou-se e inclinou-se para olhar pela

janela.

— Lucy?

Esta teve um sobressalto.

— Sou eu, Jip.

A menina colou o rosto ao vidro, muito perto do dele.

— Jip, o que estás a fazer aí? — articulou em silêncio.

— Precisamos de ajuda, eu e o Put.

Ela pôs um dedo nos lábios, deitou um olhar por cima do ombro e fez-lhe um

sinal para ir para a parte da frente da casa. Jip hesitou, com medo de que pudessem

vê-lo, mas ela repetiu imperiosamente o gesto. O rapazinho obedeceu e esperou na

sombra durante alguns instantes. Viu a porta entreabrir-se devagar e Lucy pôs o nariz

de fora. Não perdeu tempo com formalidades.

— Estás com imensos problemas — murmurou. — Tens caçadores de escravos à

tua procura.

— Eu sei. Foi por isso que vim.

— Oh, Jip! A minha mãe ouviu-os oferecerem cem dólares como recompensa pela

tua captura e isso fez-lhe crescer água na boca. Se ela te vê aqui, entrega-te

imediatamente.

— O quê? A tua mãe faria isso?

Se a Sra. Wilkens nunca tinha sido verdadeiramente sua amiga, pelo menos na

quinta tinha-se posto muitas vezes do seu lado.

— Mas por quê?

— Parece que enlouqueceu. Diz que nos mentiste, que fingias ser branco quando

na realidade...

— Mas se eu não sabia! Como é que podia saber?

E como podia a Sra. Wilkens acusá-lo de ter mentido?

— Eu sei, é absurdo. Mas é assim. Proibiu-me de voltar a falar contigo. E se te

visse, teria de ir imediatamente dizer-lhe. Mas é claro que não vou fazer isso, podes

ter a certeza.

De súbito, Jip sentiu o desespero invadi-lo. Ninguém iria ajudá-los, a ele e a Put.

Ninguém. O que teria de fazer então?

— Vai ter com a professora — murmurou Lucy. — Ela ficou a morar em casa do

pastor Avery atá começarem as aulas. Faz-lhe a contabilidade e ajuda nas tarefas

domésticas.

Jip ainda se sentiu pior. Avery já não gostava nada dele quando era pensionista

da quinta dos pobres. Não era agora que ia arriscar-se a socorrê-lo.

— Lucy? — chamou uma voz ensonada, que vinha do interior da casa. — Lucy?

— Preciso de ir para dentro — disse esta.

Jip vasculhou os bolsos e retirou uma moeda que guardava há muito.

— Olha, pega. — disse. — Vai à loja do Peck comprar bombons para ti e para o

Toddy. Assim, não vais esquecer-te de mim.

— Obrigado, Jip. Nunca hei de esquecer-te. Tu és o meu único amigo de verdade.

Toma cuidado.

Jip afastou-se rapidamente sem dizer uma palavra.

Ouviu-a fechar a porta atrás de si.

O que iria dizer a Put? Que já não podia contar com aqueles que julgava serem

seus amigos? Em que é que ele era diferente do rapaz a quem a Sra. Wilkens tinha

confiado a sua Lucy no caminho para a escola durante o último inverno? Ela não o

desprezara quando ainda julgava que ele tinha caído de uma carroça de ciganos. E

mostrava-se agora capaz de o trair, de o entregar, como se ele tivesse feito mal a

algum dos seus filhos! Se ao menos conseguisse acreditar que Lucy não estava a

contar-lhe a verdade! Que a Sra. Wilkens seria incapaz de ter dito coisas tão terríveis!

Mas sabia que era tudo verdade. Para pessoas assim, ele já não era Jip, mas algo de

desprezível. Oh, o seu coração e a sua cabeça não tinham mudado, não! Nem um

pouco. Mas, aos olhos das pessoas, tinha-se de repente tornado um estranho.

Put parecia dormitar. Jip gostaria de o deixar descansar um pouco, mas era

impossível. “Se ele só acordar amanhã e eu não estiver junto dele, vai ficar sem saber

onde está e o que é feito de mim. Vai julgar que fugi, que o abandonei. Isso seria o

bastante para desencadear uma das suas crises. Bem, vou tentar levá-lo para a

cabana onde punha a ferver o xarope de ácer do pastor Avery. Pelo menos lá estará

seco.”

— Put! — murmurou. — É preciso pormo-nos a caminho.

— Falaste com os Wilkens?

— Só com a Lucy. Mas não correu bem. Não podemos ir para casa deles. Seria

muito arriscado.

O idoso ficou em silêncio durante um momento. Jip esperou, sem dizer mais

nada. Não tinha vontade de lhe contar o que acontecera. Depois, subitamente,

pareceu-lhe ouvir um soluço. Inclinou-se:

— Put, Put, não chore. Tudo se há de arranjar. Vou procurar a professora. Ela

encontrará uma solução.

Put limpou o nariz à manga:

— Bem sabia que nunca devia ter-te acompanhado. Vão acabar por te apanhar

e... que idiota fui!

— Chiu! Julga que vou deixar que aqueles patifes me apanhem? Não! Venha,

venha daí.

Jip absteve-se de acrescentar a que ponto desconfiava de Avery. O que contava

era que, de momento, os dois eram ainda pessoas livres e que a sorte parecia estar

do lado deles. E Deus também. Não, não, Deus não havia de permitir que aqueles

brutos levassem a melhor.

— Sabe uma coisa? É engraçado, mas, para irmos a casa do pastor Avery, vamos

ter de passar mesmo ao lado da quinta dos pobres. Não lhe disse ainda, mas a

professora está em casa de Avery. Cuida da contabilidade dele. É mais inteligente do

que qualquer outra pessoa. Sabe que ela até tem um diploma?

Enquanto caminhavam, Jip falava constantemente com Put, que avançava

titubeante, com os braços cruzados no peito, sem dizer uma palavra. Atravessaram os

campos de Tucker, tendo o cuidado de não passar muito perto da habitação — mas

também sem fazerem um grande desvio, porque Jip via muito bem que o seu

companheiro se encontrava no limite das forças.

Quando se aproximaram da quinta “deles”, Jip sentiu de repente o desejo de

correr para a cozinha à procura de qualquer coisa de comer, mas desistiu logo a

seguir, por ser muito arriscado. Uma ovelha que estava a dormir abriu um olho

quando Jip passou junto dela e, reconhecendo-o, veio roçar-se nele. O rapazinho

parou para lhe fazer festas e murmurou:

— Está a ver, Put, mesmo no escuro, ela sabe que sou eu.

Era um pequeno aconchego...

Prosseguiram até chegarem junto da cabana de Avery. Mas este homem mau

tinha fechado a porta à chave. Ninguém na região fechava a porta de casa à chave,

muito menos uma cabana! Jip procurou, de novo, alguma coisa para Put se sentar. Ao

cabo de alguns instantes, encontrou um grande tronco onde o instalou, dizendo-lhe

baixinho:

— Vou à procura da professora e voltamos logo que pudermos.

Esperava não estar a dizer uma tremenda mentira...

Levantou-se e pôs-se rapidamente a caminho. Porém, mal tinha deixado a

proteção das árvores, começou a ver luzes, aquelas luzes infernais que se moviam em

cadência, à altura de uma sela. E ouviu o ruído de cascos no solo. Logo se deitou, de

barriga para baixo, na erva rasa tão retoucada pelas ovelhas que não podia de forma

nenhuma dissimulá-lo. Ficou imóvel, como que paralisado, a ouvir os passos dos

cavalos, que se aproximavam cada vez mais.

Virou ligeiramente a cabeça para ver os cavaleiros que vinham direitos a ele.

Como é que aqueles monstros tinham conseguido adivinhar onde ele se encontrava —

e onde pretendia ir, antes mesmo, digamos assim, de ele próprio o saber? Quase

gritou de raiva.

Nunca havia de conseguir escapar-lhes. No fim de contas, não passava de um

pobre garoto caído de uma carroça e criado na quinta dos pobres. Acaso poderia ser

mais esperto do que o diabo em pessoa?

Capítulo 18 : Prisioneiro

Que idiota tinha sido! A sua camisa branca devia destacar-se na erva sombria tão

nitidamente como se lhe tivessem colocado uma lanterna por cima… Estava prestes a

amanhecer. Rastejou até chegar junto de um bebedouro de pedra que vira no limite

do campo. Havia, precisamente ao lado, um monte de pedregulhos atrás do qual

poderia esconder-se. De certeza que iam começar por vasculhar a casa e os anexos.

Arranjaria entretanto uma ocasião de correr até à orla do bosque. Saltou um pequeno

muro que Avery tinha construído no meio dos pastos para impedir as ovelhas de

fugirem para o lado do carreiro mais próximo, correndo o risco de quebrarem as

patas.

O barulho dos cascos continuava a aproximar-se. Os cães começaram a ladrar.

Os cavaleiros saíam do caminho e dirigiam-se para o pátio da quinta. Jip compreendeu

que não chegaria ao monte de pedras tão depressa como pretendia. Correu em

direção a uma carreta meio cheia de blocos de granito. Alguns tinham ficado de lado,

certamente para serem carregados mais tarde. Foi atrás deles que se agachou, à

espera.

Os cavalos pararam diante da casa. Aguçou o ouvido para procurar ouvir o que

os homens diziam. Começava a clarear. Era imperioso refugiar-se o mais depressa

possível debaixo das árvores. Se não podia arriscar-se a tomar outra direção, tinha de

voltar à ideia de se esconder por detrás do monte de pedregulhos. Se ao menos

pudesse vencer, sem ser visto, a distância que o separava deste...

Os cães ladravam agora furiosamente. Não lhe faziam medo. Conhecia-os muito

bem, tinham sido eles que o aqueceram durante as noites glaciais em que vigiara a

fervura do xarope de ácer. Perscrutou as proximidades da casa. Ninguém. Os seus

perseguidores deviam encontrar-se lá dentro. Tinha de aproveitar aquela

oportunidade!

Levantou-se e desatou a correr como uma lebre através do prado, pedindo aos

céus a graça de o tornarem invisível. Mas a sorte não estava do lado dele. O ladrar

dos cães aproximava-se e compreendeu que alguém os tinha soltado. Corriam-lhe no

encalço como se se tratasse de um jogo e, de um momento para o outro, iriam

assinalar a sua presença. Se ao menos pudesse avançar mais depressa...

Ouviu-se um grito:

— Está ali!

Acabava de chegar ao enorme amontoado de pedras e pôs-se a escalá-lo feito

louco.

Felizmente, andava sempre descalço e tinha a sola dos pés e os calcanhares

endurecidos. Isso permitiu-lhe não sentir as arestas cortantes dos pedaços de granito.

Mas depressa foi obrigado a deter-se, porque tudo se desmoronava à medida que

tentava subir. Afundou-se até aos tornozelos, e depois até aos joelhos. Quando fazia

alguma tentativa para se libertar, as pedras começavam a rolar, quase o impedindo

de se mover. Os cães tinham-no alcançado e saltavam de alegria a abanar a cauda.

— Vira-te e desce! — intimou uma voz.

Jip olhou por cima do ombro e viu o caçador de escravos, que caminhava na sua

direção com uma pistola na mão. Luke tinha-lhe dito que não deviam querer feri-lo

para ele não perder valor enquanto escravo, mas, como ter a certeza? Aliás, isso já

não tinha qualquer importância. Ficara bloqueado a meio daquele monte de pedras e

não havia possibilidade de escapar.

— Desce, estás a ouvir, não quero ser obrigado a ferir-te.

Os outros tinham acabado de chegar, com o homem de tez pálida à frente.

— Chame os seus cães, Sr. Avery — disse.

— Não vão fazer-lhe nenhum mal, eles conhecem-no.

— Chame-os, já lhe disse.

Avery deu um assobio. Os cães lançaram a Jip um olhar desolado e, contrariados,

foram ter com o dono.

— Prenda-os.

Avery deu mostras de hesitação, abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas em

seguida mudou de opinião e partiu na direção da quinta, com os animais atrás.

— Podes descer agora.

Muito lentamente, Jip tentou libertar uma perna e em seguida a outra. A cada

movimento, as pedras caíam em cascata, o que fez recuar os perseguidores.

— Acabem com isso, prendam-lhe as mãos atrás das costas — disse o homem

pálido, lançando um pedaço de corda a Addison Brackett.

— Está a ver que eu tinha razão quando disse que ele ia a correr refugiar-se junto

da professora — disse este orgulhosamente.

— Cale-se e amarre-o.

— Não te atrevas a fazer isso, Addison!

A professora! Era a professora que chegava a correr, descalça e com os cabelos

soltos.

Addison recuou de imediato.

A jovem mulher, ofegante, voltou-se para o xerife.

— O que significa isto, Sr. Glover? — perguntou.

O xerife mostrou-se embaraçado.

— Bem, menina, é que estes senhores têm um mandato de captura e...

— Um mandato assinado por Deus Todo-Poderoso?

Os seus olhos negros lançavam chispas. O homem pálido interpôs-se:

— Este assunto não lhe diz respeito, minha senhora. Tenho a lei a meu favor.

Ela ia retorquir quando o caçador de escravos, que continuava a apontar a pistola

na direção de Jip, a interrompeu:

— Que som é este?

No silêncio do alvorecer elevava-se uma clara voz de tenor:

Verei em breve o Rei da glória,

Será a morte, será a morte?

A princípio, o rapazinho acreditou que era o espírito de Put que lhe dava a saber

que tudo estava bem, que o seu velho amigo já não sofria. Mas depressa se

apercebeu de que os outros também ouviam a voz. E viu-se aparecer na pradaria uma

silhueta alta e andrajosa, que avançava em direção a ele.

— É o nosso louco — disse Jip.

A mão do caçador de escravos começou a tremer e ele brandiu a pistola.

— Ordene-lhe que não se aproxime!

— Não serviria para nada. Quando está numa das suas crises, ninguém pode

acalmá-lo, nem mesmo eu.

— Mas está muito perto de nós!

— Ele não gosta que me façam mal, foi por isso que veio.

Verei o Rei da glória,

Tudo ficará bem, tudo ficará bem!

Sem parar de cantar, Put escalou o pequeno muro, contornou o carro de mão, e

foi direito ao grupo que o via aproximar-se sem se mexer, como que paralisado pelo

medo.

— Não estou a gostar disto — gritou de repente o caçador de escravos, que

tremia da cabeça aos pés. — Não gosto de loucos!

— Não avance mais, seu idiota! — exclamou o homem pálido.

— E o senhor, também não sente medo? — perguntou Jip.

Naquele momento, o caçador de escravos, que até ali tinha conservado a pistola

apontada para Jip, virou-a bruscamente na direção de Put.

— Pare! — gritou. — Pare!

Put continuava a avançar. “Oh meu Deus”, disse Jip para consigo, “ele julga que

pode salvar-me.”

— Não, Put, não! — exclamou. — Recue, Put! Não faça isso.

Tudo ficará bem, tudo ficará bem!

O barulho de um disparo fendeu o ar. Put imobilizou-se, com uma expressão de

surpresa no rosto. Depois, tombou para a frente, arrastando na queda o caçador de

escravos que, mesmo diante dele, tentava recarregar a pistola. Desabaram os dois

sobre uma enorme pedra. O crânio do homem bateu numa aresta e ouviram-no abrir-

-se em dois, como um melão muito maduro. Nenhum dos corpos, enlaçados um no

outro como numa dança macabra, voltou a mexer-se.

Jip deu um salto para a frente, mas uma mão pousou-se-lhe no braço e

imobilizou-o.

— Deixe-me! — gritou. — Tenho de ir para junto dele!

— Ele está morto.

— Não! Não! O meu Put não! Mate-me, mate-me, mate-me, se quiser! Mas não

mate o meu Put! Ele não lhe fez mal nenhum! Peço-lhe, não o mate!

Os olhos cinzentos fixaram-se nos seus. Talvez neles perpassasse um vago

sentimento de vergonha. Mas depressa o homem os desviou e, com uma voz seca,

ordenou a Addison Brackett:

— Já lhe disse que o amarrasse. Despache-se.

Soltou o braço de Jip e foi ter com o xerife e a professora, que se encontravam

junto dos dois corpos. Jip sabia que Put estava morto. Claro que sabia, mas tinha-se

agarrado à esperança, até a professora se aproximar e ele ver a tristeza estampada

no seu rosto. Avery tinha vindo ter com eles. O homem pálido apanhou a pistola e

ordenou-lhe que se ocupasse dos cadáveres.

— Que vai fazer com o Jip? — perguntou a professora.

— Vou levá-lo para minha casa. É o lugar dele, porque me pertence.

A resposta tinha estalado como um chicote.

— Não, não vai fazer isso, não antes que o tribunal se tenha pronunciado sobre a

legitimidade da sua prisão.

— Como, minha senhora...

— Sr. Glover, quer fazer o favor de explicar a este senhor o que diz a lei?

O xerife não parecia muito à vontade nem mostrava estar ao corrente do que a

professora queria dizer.

— Habeas corpus, Sr. Glover. Preciso de lhe lembrar o que é, ao senhor que tinha

a obrigação de o saber? É o nome de um dos textos mais célebres na história das

liberdades e tem o valor de lei desde 1679 perante o Parlamento Inglês. Aplica-se

também entre nós. Ele sublinha que os juízes devem solicitar por escrito a

comparência do detido num tribunal, que deliberará sobre a legitimidade da sua

detenção. Portanto, não pode deixar que levem Jip dessa maneira. Ele tem o direito,

está a ouvir-me, o direito de comparecer diante de um tribunal e de se defender!

— É ridículo! Este rapaz pertence-me! — interrompeu o homem, que ficara lívido.

O xerife aclarou a voz por um momento:

— Sim, mas ouça-me. Tenho de reconhecer que esta senhora tem toda a razão. O

senhor pretende que o rapaz é propriedade sua. Pois seja, mas é o senhor quem o diz,

mesmo que se veja que o rapaz também o sabe. Só que a lei, essa, não sabe. Ainda

não, pelo menos.

— A lei — enfim, um outro artigo — precisa que você me deve assistência se eu

quiser recuperar um dos meus escravos fugidos.

— Sim, está bem, mas entre nós, no Vermont, as pessoas não haveriam de

gostar muito que levasse o rapaz sem ser de forma legal. E, nesse caso...

O homem ficara completamente imóvel. Parecia compreender que até os

Brackett pensariam duas vezes antes de se oporem à professora e à lei.

— Oh, não se preocupe — retornou Glover. — É um garoto que nunca teve

educação, sempre viveu na quinta dos pobres. Não terá grande peso, diante de

alguém como o senhor. Enquanto esperamos, vou metê-lo na prisão.

Sem se atreverem a olhar Jip de frente, os dois Brackett prenderam-lhe as mãos

atrás das costas e montaram-no no cavalo do xerife. E foi daquela maneira que o

levaram para a cidade.

O corpo de Put ficara deitado na erva.

No seu rosto permanecia a mesma expressão de surpresa.

Capítulo 19 : Fim e princípio

Aquilo que o xerife tinha pomposamente chamado de “prisão” não era, na

realidade, mais do que uma pequena divisão na cave do posto de polícia. Era ali que

metiam os vagabundos e os embriagados que faziam algazarra na via pública. A única

janela existente não tinha grades, uma vez que nunca ninguém tinha tentado

escapar. A porta de madeira fechava pelo lado de fora com um simples trinco, para

impedir que algum prisioneiro mais indisciplinado resolvesse andar a vaguear pelo

resto do edifício.

O homem pálido notou de imediato aquelas exíguas medidas de segurança, e

pagou do seu bolso ao assistente do xerife para passar no corredor as duas noites que

iam seguir-se.

“Ele não precisa de se preocupar”, disse Jip para consigo, “não tenho a menor

intenção de fugir.” Sentou-se na beira da enxerga. O quarto cheirava mal, estava

sujo, mas que importava? “Luke Stevens bem tentou pôr-me de sobreaviso. Preveniu-

me de que não devia trazer Put comigo. E eu fiz-me de esperto, não o ouvi, fui um

idiota. Na verdade, pensei mais em mim do que em Put. O resultado é que não foram

os caçadores de escravos que o mataram, fui eu. O único castigo para um crime tão

monstruoso é a escravidão. Nada mais tenho a fazer senão partir, sem protestar, com

aquele demónio pálido, e passar o resto da minha miserável existência no inferno que

ele escolher para mim”.

Jip devia comparecer no tribunal quarenta e oito horas mais tarde. O xerife

explicara que um prisioneiro tinha direito a um dia para preparar a sua defesa, e

como o dia seguinte era domingo, o juiz só lá iria na segunda-feira. Mas Jip não

pretendia preparar absolutamente nada. Na verdade, sentia-se irritado por ter de

esperar até lá.

Estava fechado há várias horas, quando a porta se abriu e Glover veio informá-lo

de que tinha visitas. Era a professora, que entrou seguida de Luke Stevens. Traziam-

-lhe roupa limpa e um cesto de provisões.

— Quis arranjar-te ontem de comer — disse Luke — mas não pude, os caçadores

de escravos pareciam estar em todo o lado. Pergunto-me como é que o teu amigo

conseguiu evitá-los.

— Desculpe, mas não tenho fome — murmurou Jip.

— Claro — disse a professora, que viera sentar-se junto dele. — Mas, mesmo

assim, tenta comer alguma coisa. Vais precisar de todas as tuas forças.

— E... e o Put? O que fizeram do corpo?

— Eu e os meus irmãos fomos buscá-lo — respondeu Luke com uma voz

entrecortada. — E levámo-lo para nossa casa.

— É preciso... É preciso que ele tenha... Enfim, eu queria que ele tivesse um

verdadeiro enterro.

A professora pousou docemente uma das mãos na dele.

— Prometo-te. Na igreja.

— Vão cantar hinos?

— Sim, prometo-te.

— Havia um de que ele gostava muito. — Jip sentia-se incapaz de dizer que era

aquele que Put estava a cantar quando o mataram. — Lucy diz-lhes qual é.

E começou a chorar. Julgou não ser capaz de voltar a sentir mais nada, mas, ao

falar do hino preferido de Put, via de novo o idoso a avançar na pradaria, cantando a

plenos pulmões...

— Acham... enfim, quero dizer... pensam que agora está tudo bem com ele? —

perguntou.

— Sim! — respondeu a professora. — Sim, tenho a certeza.

Limpou os olhos com as costas da mão e ela estendeu-lhe um lenço. Também

tinha os olhos cheios de lágrimas.

— Agora, temos de pensar em ti, Jip — disse.

Ele sacudiu a cabeça.

— O que significa isso? — perguntou Luke. — Resignaste-te a ser um escravo?

Não é possível!

O rapazinho evitou o olhar do jovem Quaker. Como explicar-lhe que era

precisamente o caso?

— Então — exclamou a professora — é como se achasses que a vida do Put não

serviu para nada.

— Não, não é isso!

Olhou para ela, horrorizado. Não podia julgar semelhante coisa!

— Ele morreu por ti — prosseguiu com uma voz mais calma. — E pretendes

esquecer-te disso?

Levantou-se em seguida e começou a andar para trás e para a frente de sobrolho

franzido. Luke aproximou-se então da enxerga e murmurou ao ouvido do rapazinho:

— Tencionamos fazer-te sair daqui às escondidas. Vais para Montreal ter com o

amigo de que te falei, Ezekial Freeman. É para casa dele que tens de ir. Segunda de

manhã, muito cedo, o comboio para em Northfield. Portanto, amanhã à noite...

— Não — interrompeu Jip com os dentes cerrados. — Não, iam castigá-los por

terem ajudado um escravo a fugir.

— Sabes, há muitos anos que fazemos isto.

— Esperem!

A professora imobilizara-se.

— Ninguém tem necessidade de partir às escondidas. Basta prepararmos uma

estratégia de defesa que convença o juiz. Conheço-o, ele não gosta nada de pessoas

que empregam escravos. Não será difícil.

— Não poderão defender-me — disse Jip com uma voz apagada. — Sabe bem que

é verdade o que diz aquele malvado.

— Não! Um demónio nunca diz a verdade!

Onde quereria a professora chegar? Esta esboçou um sorriso:

— Ouve bem, Jip. Tu não sabias de nada, mas és meu filho.

— PROFESSORA!

— É verdade. Há alguns anos atrás, quando trabalhava numa fábrica em Lowel,

tive um deslize. Acontecia a muitas operárias e...

A professora estava a mentir! Jip nunca teria imaginado tal coisa!

Uma mulher tão maravilhosa a mentir como um vadio!

— Ora, não é verdade! Sabe bem que não é verdade! Porque quer acusar-se de

uma coisa tão monstruosa?

— Olha bem nos meus olhos: estou pronta a jurar que é verdade diante do juiz.

Vou dizer que és meu filho.

Transtornado, virou-se para Luke:

— Não pode deixá-la fazer isso! É ilegal, é uma mentira. Ela vai perder a

reputação.

Luke esboçou um sorriso.

— Sabes, ela tem uma vontade de ferro. Se está decidida a isso, há poucas

hipóteses de me ouvir.

— Mas eu julgava que estava apaixonado por ela!

Pronto, tinha-o dito. E, para mais, em voz alta. O jovem Quaker virou-se para a

professora.

— Sim, estou, e ela sabe-o.

Tomou entre as suas as mãos da jovem.

— Se está decidida a recorrer a tal procedimento — disse — não sou eu que vou

impedi-la. Mas, nesse caso, segunda-feira tenciono dizer que sou eu o pai da criança.

Vou solicitar o perdão e pedir-lhe que case comigo.

— Os Quakers hão de expulsá-lo do grupo deles — respondeu ela, sem retirar as

mãos.

— Vão fazê-lo de qualquer forma, se me casar com uma mulher que não seja

Quaker.

— Luke Stevens, você é um homem particularmente obstinado.

— E você, Lidia Worthen, é a mais teimosa das mulheres. Não fomos feitos um

para o outro?

Continuaram a falar um com o outro, mas Jip deixou de ouvir. Não queria de

modo algum envolver-se numa tal conspiração. Que os Quakers rejeitassem Luke já

era terrível, mas nada comparado com a vergonha que iria cair sobre a professora.

Ficou à espera durante muito tempo, até ouvir, por fim, no corredor, o barulho do

ressonar. O assistente do xerife tinha ido em sua perseguição na noite anterior. Era

de esperar que estivesse agora a dormir profundamente.

Pegou no pão e no queijo que os visitantes lhe tinham trazido e embrulhou-os

numa aba da camisa, que segurou com o cinto. Depois, empurrou a enxerga até à

lucarna, pegou no cesto das provisões, envolveu-o no cobertor e lançou-o contra o

vidro. Não fez grande barulho mas, mesmo assim, esperou um momento, retendo a

respiração, para se certificar de que não tinha acordado o guarda. O ressonar era tão

sonoro como antes. Içou-se então até ao rebordo, deslizou para fora e saltou para a

erva.

A noite daquele final de agosto estava clara. Precisava de seguir a Estrela Polar.

Put tinha-lhe ensinado como fazer. Jip levantou os olhos, observou cuidadosamente o

céu e desatou a correr.

Em Montreal não tive qualquer dificuldade de encontrar a direção do reverendo

Ezekial Freeman. Na cidade, era o único pastor a ter esse nome. Os Freeman deram-

-me uma verdadeira família e hoje também tenho o nome deles. Ensinaram-me a ser

um homem livre — “free man” — entre outros seres humanos livres. Estou-lhes muito

grato. Penso que, sem eles, sem a educação que me deram, marcada pela compaixão

para com os outros, nunca teria realmente aprendido a viver como um homem livre.

Mas, no meu coração, guardo a nostalgia do país que tive de deixar. Rebentou a

guerra entre os Estados do Norte, que combatem a escravatura, e os do Sul, que

vivem dela. Está a ser organizado em Nova Iorque um regimento de soldados negros,

e eu decidi alistar-me. A minha mãe adotiva chora por me ver partir para a guerra,

mas o meu pai compreende-me, se bem que seja um homem da Igreja e tenha um

caracter pacífico.

Passa-se o contrário com os meus amigos Stevens. Luke não aprova de modo

nenhum esta guerra e suplica-me que não parta, enquanto a sua mulher, a minha

querida professora, me envia a sua bênção (acabaram por não precisar de passar por

meus pais para se casarem...). Ela escreveu-me que, se não fosse esposa e mãe,

estaria ao meu lado de espingarda na mão.

Mas quem poderá dizer qual de nós terá razão nesta terrível história? O Todo-

-Poderoso, que nunca quis que os homens escravizassem outros homens, não pode

regozijar-se ao ver que nos matamos uns aos outros em Seu nome!

No entanto, vou cumprir o que parece ser o meu dever. E, dia após dia, hei de

apoiar-me naquela fé que Put expressava através da sua canção, isto é, que tudo

ficará bem, quer viva como um homem livre, quer morra para defender a liberdade

dos outros.

Mas, se pudesse escolher, arranjaria um pequeno pedaço de terra, lá no campo,

e viveria até ser velho a criar ovelhas.

Em jeito de conclusão

A história de Jip passa-se em 1855. Seis anos depois, rebentaria a Guerra da

Secessão, a mais sangrenta da história dos Estados Unidos, que oporia os Estados do

Norte, antiesclavagistas, aos do Sul, esclavagistas, e se prolongaria por cerca de

quatro anos. A escravatura foi abolida em 1865 e, em 1868, foram concedidos aos

negros os direitos cívicos.

Mas passar-se-ia ainda muito tempo até que, sobretudo no Sul, os princípios da

igualdade fossem postos em prática.

O movimento Quaker foi fundado em Inglaterra, no ano de 1652, por George Fox,

um jovem sapateiro, em reação ao conformismo da igreja anglicana. Implantou-

-se nos Estados Unidos a partir de 1681. Os Quakers preconizavam, acima de tudo, a

pureza integral e a prática rigorosa da solidariedade. Acreditavam apaixonadamente

na igualdade entre todos os homens e combatiam vigorosamente a escravatura. Era

suposto só se casarem entre si.

Luke Stevens, que aplica com rigor estes grandes princípios de vida, vai, apesar

de tudo, ficar à margem dos seus, ao desposar a professora da escola, que, embora

partilhando as suas ideias, não faz parte dos Quakers.

Marie-Pierre Bay,

a tradutora da versão francesa

FIM

Katherine PatersonA História de Jip

Porto, 2006