A Hist e Histriograf Em Heidegger e Gumbrecht

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113 OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007 VERDADE, SENTIDO E PRESENÇA: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA EM HEIDEGGER E GUMBRECHT 37 Flávia Florentino Varella 1 Resumo: Este artigo discute as simili- tudes entre a proposta de uma cultura de presença exposta por Hans Ulrich Gumbrecht e a filosofia de Martin Heidegger. Gumbrecht sugere que na cultura ocidental existem duas formas de lidar com o mundo: a cultura de sentido e a cultura de presença. Nosso argumento é que a reflexão de Gum- brecht pode ser associada a elementos de fundamental importância dentro da filosofia heideggeriana. Palavras-chave: Hans Ulrich Gum- brecht, cultura de presença, Martin Heidegger. Abstract: This paper discuss the similitudes between the proposal of a presence culture exposed for Hans Ulrich Gumbrecht and Martin Heidegger philosophy. Gumbrecht suggest that inside the occidental culture exist two forms of rela- tionship with the world: meaning culture and presence culture. We argues that Gumbrecht reflection can be associated with elements of fundamental importance inside Heidegger philosophy. Key-words: Hans Ulrich Gum- brecht, presence culture, Martin Heidegger. Introdução A tradição fenomenológica ainda não encontrou uma recep- ção adequada por parte da historiografia brasileira. 238 A obra de Hans Ulrich Gumbrecht e, em especial, sua reflexão em torno da valoriza- ção de termos como substância e essência, que foram correntemente utilizados de forma pejorativa dentro da tradição ocidental, é um dos pontos que queremos abordar neste artigo. 339 Apesar de possuir bi- bliografia vastíssima, poucos de seus livros foram traduzidos para o 1 Licenciada pela Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: flavia_varella@hotmail. com 2 Recentemente foi publicado um dossiê na revista History and theory: studies in philosophy of history sobre questões que envolvem a cultura de presença. 3 Hans Ulrich Gumbrecht nasceu em 1948, na cidade de Wuerzburg, oeste da Alema- nha. Foi professor assistente em Konstanz onde fez PhD. Entre 1983 e 1985 foi vice- presidente da Associação Germana de Filologia Românica. Foi professor visitante no Rio de Janeiro, Buenos Aires, Berkeley, Princeton, Montreal, Barcelona, Budapeste, Lisboa, Capetown e Paris (Ecole des Hautes Etudes). Atualmente é professor de Li- teratura no Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Stanford, Califórnia.

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sobre a noção de produção de presença na historiografia.

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    VERDADE, SENTIDO E PRESENA: HISTRIA E HISTORIOGRAFIA EM HEIDEGGER E

    GUMBRECHT

    37Flvia Florentino Varella1

    Resumo: Este artigo discute as simili-tudes entre a proposta de uma cultura de presena exposta por Hans Ulrich Gumbrecht e a filosofia de Martin Heidegger. Gumbrecht sugere que na cultura ocidental existem duas formas de lidar com o mundo: a cultura de sentido e a cultura de presena. Nosso argumento que a reflexo de Gum-brecht pode ser associada a elementos de fundamental importncia dentro da filosofia heideggeriana. Palavras-chave: Hans Ulrich Gum-brecht, cultura de presena, Martin Heidegger.

    Abstract: This paper discuss the similitudes between the proposal of a presence culture exposed for Hans Ulrich Gumbrecht and Martin Heidegger philosophy. Gumbrecht suggest that inside the occidental culture exist two forms of rela-tionship with the world: meaning culture and presence culture. We argues that Gumbrecht reflection can be associated with elements of fundamental importance inside Heidegger philosophy.Key-words: Hans Ulrich Gum-brecht, presence culture, Martin Heidegger.

    Introduo

    A tradio fenomenolgica ainda no encontrou uma recep-o adequada por parte da historiografia brasileira.238 A obra de Hans Ulrich Gumbrecht e, em especial, sua reflexo em torno da valoriza-o de termos como substncia e essncia, que foram correntemente utilizados de forma pejorativa dentro da tradio ocidental, um dos pontos que queremos abordar neste artigo.339 Apesar de possuir bi-bliografia vastssima, poucos de seus livros foram traduzidos para o

    1 Licenciada pela Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected] 2 Recentemente foi publicado um dossi na revista History and theory: studies in philosophy of history sobre questes que envolvem a cultura de presena.3 Hans Ulrich Gumbrecht nasceu em 1948, na cidade de Wuerzburg, oeste da Alema-nha. Foi professor assistente em Konstanz onde fez PhD. Entre 1983 e 1985 foi vice-presidente da Associao Germana de Filologia Romnica. Foi professor visitante no Rio de Janeiro, Buenos Aires, Berkeley, Princeton, Montreal, Barcelona, Budapeste, Lisboa, Capetown e Paris (Ecole des Hautes Etudes). Atualmente professor de Li-teratura no Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Stanford, Califrnia.

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    portugus. Dentre eles se destacam: Em 1926: vivendo no limite do tempo, A funo da retrica parlamentar na Revoluo Francesa e moderniza-o dos sentidos. O principal objetivo deste artigo delinear as aproxima-es entre as propostas de Gumbrecht e do filsofo Martin Heidegger quando se trata de um desejo por prticas de presena.

    Apesar da grande afinidade das duas propostas devemos res-saltar que, para Heidegger, o contato com o mundo se d em uma deciso440 pelo modo de vida autntico. Heidegger enfatizou em sua filosofia a importncia da antecipao da morte na tomada de deciso do Dasein.541 Atravs da antecipao da morte, no reconhecimento da finitude de sua existncia, que o Dasein se compreende quanto a seu poder-ser, de tal maneira que ele se acha sob os olhares da morte para, assim, poder assumir totalmente, em seu estar-lanado, o ente que ele mesmo (HEIDEGGER, 1996, p. 188-189). A antecipao da morte, o ser-para-a-morte, constitui a condio de possibilidade da ao e do sentimento de acelerao do tempo que caracteriza a modernidade (ARAJO, 2006, p. 326).

    Gumbrecht chega concluso de que a dupla limitao tem-poral da vida humana ocasionada pelo nascimento e pela morte produz o desejo de cruzar essas duas fronteiras. Enquanto Heidegger optou pela morte como transcendncia do mundo, Gumbrecht concentra-se na experincia de transcender o nascimento em direo ao passado (GUMBRECHT, 2007, p. 123). Ou seja, viver em pocas que no se poderia ter vivido a no ser por meio dos efeitos de presena.

    Production of presence: what meaning cannot convey, um dos seus mais recentes livros, trata, entre outras coisas, de como podemos ma-pear dois tipos de cultura no Ocidente: uma de sentido e outra de presena. O objetivo principal deste artigo , a partir do enfoque na cultura de presena, mostrar as similitudes entre este tipo de percep-o de mundo e a filosofia de Martin Heidegger. Para melhor alcanar esse objetivo o texto foi dividido em quatro partes. A primeira consis-

    4 Evitamos a grafia de-ciso utilizada na edio brasileira de Ser e tempo para contornar a obscuridade que esses recursos podem assumir para o leitor no especializado na filosofia heideggeriana.5 A palavra alem Dasein possui inmeras tradues para lngua portuguesa. Tendo em vista essa dificuldade, optou-se por modificar em todos os textos citados a traduo da palavra pelo original Dasein, mudando tambm, quando necessrio, a concordncia frasal.

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    te em uma tentativa de definio dos tipos cultura de sentido e cultura de presena. Na segunda parte, trataremos da virada epistemolgica quanto ao conceito de verdade que ocorre na passagem de uma cul-tura de sentido para uma de presena. Verdade agora significa revela-o, desvelamento, descobrimento. Na terceira parte ser apresentado um pequeno esboo da fenomenologia em sua viso heideggeriana e como ser, ser-no-mundo e desvelamento, categorias empregadas por Heidegger, so de fundamental importncia para a compreenso da cultura de presena. Na ltima parte apresentaremos o que liga Gum-brecht a Heidegger: a crtica hegemonia na conscincia moderna das prticas de sentido. Esperamos, ao final, deixar claro como as propos-tas de Gumbrecht esto relacionadas filosofia heideggeriana e como elas fazem parte de uma mesma vontade de presena.

    Cultura de presena e cultura de sentido

    Dois tipos de percepo de mundo que caminham juntas e que se mostram em diferentes oportunidades so diagnosticados por Gumbrecht em Production of presence. Seus nomes so: cultura de pre-sena e cultura de sentido. A cultura de sentido apresentada como a que preponderou na Modernidade devido a sua constante procura pelo significado do mundo. A hermenutica enquanto mtodo cog-nitivo que busca, atravs da interpretao de textos, descobrir o sen-tido das coisas, entendida como uma das formas epistemolgicas pelas quais a modernidade respondeu a essa demanda por sentido. A verdade na Modernidade foi considerada, principalmente, como a concordncia entre o significante e o significado. A relao direta com o mundo no era suficiente para expressar toda a verdade presente na sua profundidade espiritual, e, portanto, estabelece uma constante demanda de interpretao como um ato que compensa as deficin-cias da expresso(GUMBRECHT, 1998, p. 13) Dentro do paradig-ma sujeito-objeto, outra criao moderna, o mundo visto somente como uma esfera material, que leva o homem ao estado de alienao. Existe uma divergncia entre o mundo e a existncia humana baseada no contraste entre o espiritual e o material (GUMBRECHT, 2004, p. 66).

    O grande objetivo, por exemplo, do romance europeu no s-culo XIX foi a representao da realidade histrica e quanto melhor

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    fosse essa representao maior seu valor epistemolgico. Os roman-ces de Gustav Flaubert, histricos ou no, so vastamente conhecidos pela sua pesquisa incessante objetivando representar de forma com-pleta o mundo que descrevia. Essa representao no buscava produ-zir um sentimento de reviver o mundo no qual o romance se passava, mas de comunicar, por meio da linguagem, algo que s pode ser per-cebido por ela.

    Tanto a crise da representao quanto o relativismo surgem de uma cultura na qual a interpretao pr-requisito para se alcanar um conhecimento vlido (GUMBRECHT, 2004, p. 07; 1998, p. 14). A crise da representao apontou principalmente para a insuficincia da linguagem em comunicar um mundo estvel. Essa insuficincia episte-molgica foi gerada pela percepo de que nenhuma representao melhor que do que a outra e, conseqentemente, no haveria nenhuma representao em especial capaz de expressar a concretude do real.

    Para conseguir dialogar com essa multiplicidade de represen-taes, que devem ser entendidas como tendo o mesmo valor episte-molgico, a Modernidade usou da narrativa em forma evolutiva, cui-dando sempre da linearidade e do desenvolvimento progressivo dos fenmenos tratados. Todas as perspectivas alcanadas so vlidas na medida em que cada uma revela um pedao do grande complexo que a realidade. As filosofias da histria foram as grandes narrativas mo-dernas na medida em que buscavam narrar evolutivamente um pro-cesso linear de desenvolvimento do esprito humano.

    A cultura de presena surge em um movimento de saturao epistemolgica. Enquanto na cultura de sentido busca-se uma repre-sentao capaz de nos permitir manipular sem tocar as coisas, na cul-tura de presena valoriza-se o retorno s coisas em si mesmas. Os mo-mentos de presena no tm nenhuma mensagem, nada se tem para aprender com eles em matria de utilidade para a vida. So momentos de intensidade (GUMBRECHT, 2004, p. 98) na medida em que por um breve momento ocorre a suspenso da realidade presente e outra realidade presentifica-se. A historiografia, desta forma, abandonaria tanto as orientaes ticas e polticas quanto a interpretao como suas funes e deveres.

    O desejo por presena que se apresenta contemporaneamen-te, segundo Gumbrecht, uma reao saturao da viso de mundo cartesiana preocupada com a produo de sentido (GUMBRECHT,

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    2004, p. 110). A ps-modernidade, para Gumbrecht, foi o espao que, em grande medida, colocou em segundo plano ou mesmo abandonou as questes relativas representao da realidade, a busca de sentido e a interpretao como componentes fundamentais das humanidades. O esgotamento do crontopo, tempo histrico, que tinha no tempo a forma de explicar e organizar as narrativas evolutivas marca profun-damente a cultura de presena. O tempo uma dimenso primor-dial para as culturas de sentido na medida em que com o passar do tempo que as transformaes histricas se realizam (GUMBRECHT, 2004, p. 83). A relao com o mundo na cultura de presena no temporal, mas espacial; as coisas no mundo tm um impacto sobre o corpo humano e na descoberta do objeto fora de seu uso prtico que ele adquire um sentido prprio. Para conseguir o efeito de pre-sena devemos suspender as atribuies de sentido (GUMBRECHT, 2004, p. 123-126). O contato com o mundo (estar no mundo, ser-no-mundo) fundamental, pois por meio da materialidade do real que o conhecemos e sentimos:

    Em contraste com a interpretao e a hermenutica, o de-sejo pela experincia direta de mundos passados se dirige s caractersticas sensuais das superfcies, e no profundi-dade espiritual. [....] aquilo que nos orienta especificamente em direo ao passado o desejo de atravessar o limite que separa as nossas vidas do tempo anterior ao nosso nasci-mento. Queremos conhecer os mundos que existiam antes que estivssemos nascidos, e ter deles uma experincia di-reta. Esta experincia direta do passado deveria incluir a possibilidade de tocar, cheirar e provar estes mundos atravs dos objetos que os constituram (GUMBRECHT, 1999, p. 467-70).

    Este desejo pela experincia imediata do passado surge com a dilatao do presente. O presente no mais entendido como um espao comprimido por um passado categoricamente diferente e um futuro aberto:

    This desire for presentification can be associated with the structure of a broad present where we dont fell like le-aving behind the past anymore and where the future is blocked. Such broad present would end up accumulating different past worlds and their artifacts in a sphere of si-multaneity (GUMBRECHT, 2004, p. 121-122).

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    O desejo pela presentificao do passado, ou seja, a possibili-dade de falar com os mortos, de tocar os objetos de seus mundos o efeito de presena que se d no campo da relao com o passado. Na esttica o efeito de presena a epifania, entendida, por Gumbrecht, como um evento na medida em que nunca sabemos quando e onde ele acontecer, a forma e a intensidade que ter e porqu ele se auto-anula quando acontece, ou seja, no possvel manter essa experincia por muito tempo. A epifania refere-se efemeridade do efeito de pre-sena. importante ressaltar que ambas as culturas sempre andaram juntas em uma relao tensa (GUMBRECHT, 2004, p. 105). Existem momentos que uma delas prepondera, o que no causa necessaria-mente a extino da outra.

    Gumbrecht considera que presena, substncia, realidade e ser so palavras com o mesmo valor ontolgico. A filosofia de Martin Hei-degger importante na reflexo de Gumbrecht na medida em que o filsofo caracteriza a existncia humana como ser-no-mundo, com as coisas do mundo. Ser-no-mundo o conceito que tenta recuperar os componentes da presena na nossa relao com as coisas no mundo, tornando a existncia humana um contato permanentemente substan-cial e espacial com as coisas do mundo (GUMBRECHT, 2004, p. 66).

    A verdade como algo que acontece

    Um dos pontos principais de Ser e tempo a reavaliao feita por Heidegger do conceito de verdade. Na modernidade a verdade foi correntemente entendida enquanto concordncia entre a enunciao e o que previamente se presume da coisa ou a conformidade entre o que significado pela enunciao e a coisa (HEIDEGGER, 1979, p. 133). Trs teses estariam na base dessa reflexo:

    1. O lugar da verdade a proposio (o juzo). 2. A es-sncia da verdade reside na concordncia entre o juzo e seu objeto. 3. Aristteles, o pai da lgica, no s indicou o juzo como o lugar originrio da verdade, como tambm colocou em voga a definio da verdade como concor-dncia (HEIDEGGER, 1993, p. 282).

    A verdade, na perspectiva tradicional e, digamos, moderna, seria um problema de conformidade entre as partes. Grande parce-la do pensamento ocidental, principalmente depois de Kant, utilizou

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    desse tipo de proposio para entender a verdade. Kant afirmava que a verdade no se encontrava no objeto, mas no juzo a seu respeito. A verdade no se d pelo objeto ou no objeto, uma coisa formulada subjetivamente. Um dos sintomas da verdade enquanto concordncia a empreitada moderna pela representao na qual se busca a concor-dncia entre o significante e o significado por meio da linguagem.

    A verdade, segundo Heidegger, desde Herclito foi pensada como aquilo que se mostra (HEIDEGGER, 1993, p. 287-288). O que houve foi um soterramento do significado dessa palavra e, por isso, no a entendemos mais assim. A busca de Heidegger por um resgate e por uma re-apropriao da tradio. Para Heidegger:

    A proposio verdadeira significa: ela descobre o ente em si mesmo. Ela prope, indica, deixa-ver (apophandis) o ente em seu ser e estar descoberto. O ser-verdadeiro (ver-dade) da proposio deve ser entendido no seu sentido de ser-descobridor. A verdade no possui, portanto, a estru-tura de uma concordncia entre conhecimento e objeto, no sentido de uma adequao entre um ente (sujeito) e um outro ente (objeto). Enquanto ser-descobridor, o ser-verdadeiro s , pois, ontologicamente possvel com base no ser-no-mundo. Esse fenmeno, em que reconhecemos uma constituio fundamental do Dasein, constitui o funda-mento do fenmeno originrio da verdade (HEIDEGGER, 1993, p. 286-287).

    A verdade se d quando o ente deixa-se ver, quando desco-berto, desvelado; a verdade a verdade do ser-no-mundo. O questio-namento do sentido do ser o que, para Heidegger, precisa ser colo-cado urgentemente. justamente a proposio da impossibilidade de se definir o ser que a faz necessria (HEIDEGGER, 1993, p. 28-289). A questo posta qual o sentido do ser e no o que o ser:

    o ser verdadeiro do lgos enquanto aletheien diz: retirar de seu velamento o ente sobre que se discorre no logein como aphophainesthai e deixar e fazer ver o ente como algo des-velado (alehes), em suma descobrir. Do mesmo modo, o ser falso pseudesthai diz enganar no sentido de en-cobrir colocar uma coisa na frente de outras (deixar e fazer ver) e assim prop-la como algo que ela no . Justamente porque verda-de tem este sentido e o logos um modo determinado de deixar e fazer ver, o logos no pode ser apontado como o lu-gar primrio da verdade (HEIDEGGER, 1993, p. 63-64).

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    O logos, o discurso, apenas um caminho para se chegar verdade. E como todo re-apresentador de algo encobre e descobre a coisa a ser comunicada. Heidegger divide a vida em existncia inautn-tica e autntica. A primeira vista como a cotidianidade e se mostra no falatrio, curiosidade e ambigidade. Neste tipo de vivncia o ser se encontra velado, mas somente a partir dele que possvel chegar ao desvelamento. A existncia inautntica momento fundamental para o desvelamento do ser. Ser o que ao mesmo tempo se mostra e esconde no acontecimento da verdade. Desta forma, no existe men-tira, o ser nunca mente sobre si mesmo, ele se mostra velado. A exis-tncia nunca uma vivncia esttica, ela est sempre em movimento. Quando ocorre um desvelamento do ser ele nunca pode ser mantido eternamente desta forma, existe sempre o retorno, o velamento. S possvel chegar a uma existncia autntica vivendo, ou seja, no mundo. O mundo o lugar onde o Dasein se realiza enquanto desvelamento. A ver-dade vista por Heidegger, como o desvelamento do ser, ou seja, o ser-no-mundo. A manifestao do Dasein a abertura, o descobrir, abrir, explorar o mundo enquanto constitudo de entes (INWOOD, 2002, p. 40).

    Ser um conceito que est estritamente ligado ao de presen-a, ambos implicam substncia, esto ligados dimenso espacial e so associados a movimento (GUMBRECHT, 2004, p. 77). Em uma cultura de presena o conhecimento revelado no contato com as coi-sas no mundo. uma substncia que aparece, que se presentifica sem requerer interpretao e transformao em sentido (GUMBRECHT, 2004, p. 81). O conceito de ser em Heidegger recupera os aspectos de substancialidade e de revelao longamente abandonados pela filoso-fia moderna. A presentificao da coisa se d por meio de tcnicas que produzem a impresso/iluso que os mundos passados podem ser tocados novamente (GUMBRECHT, 2004, p. 94).

    Fenomenologia e cultura de presena

    Como visto anteriormente, algumas categorias heideggeria-nas como ser, ser-no-mundo e sua prpria filosofia so de extrema importncia para entender as caractersticas da cultura de presena diagnosticada por Gumbrecht. A fenomenologia adquire grande im-portncia para o entendimento das propostas de ambos os autores na medida em que anula a relao epistemolgica moderna entre sujeito

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    e objeto. No conhecimento baseado na concordncia entre significa-do e significante a verdade se dava por meio dos questionamentos do sujeito ao objeto. Era um conhecimento de profundidade e apenas o sujeito tinha a capacidade de inquirir e descobrir o mundo. Na feno-menologia essa relao modificada e o objeto, como coisa, passa a se mostrar para o sujeito, como Dasein.

    O aspecto mais importante da fenomenologia para nossa re-flexo a ausncia de mediao no contato do ente com as coisas. A coisa no apenas objeto de inquirio, ela mesma se mostra para o ente e esse mostrar no necessita de um intermedirio entre as partes. A fenomenologia o mtodo sobre o qual ser possvel deixar e fazer ver o ser dos entes. Para Heidegger, o significado da palavra fenome-nologia no pode ser entendido atravs da histria das ontologias, mas deve ser encarado na busca pelo significado original da palavra. Enten-der o significado de fenomenologia atravs da histria das ontologias traria apenas um significado velado que est soterrado pela conceitu-ao. O partir do conceito para entender algo , para Heidegger, um velamento do sentido do ente. O desvelamento se d na busca pelas coisas em si mesmas: pelo mtodo fenomenolgico.

    Para explicar o significado de fenomenologia, Heidegger bus-ca sua origem nas palavras gregas que a compem, ou seja, fenmeno (phainomenon) e discurso (logos). Fenmeno significa o que se mostra em si mesmo, o que se revela. Todo fenmeno uma totalidade do que est luz do dia, ou pode pr luz, ou seja, os entes (HEIDE-GGER, 1993, p. 63). A caracterstica formativa de um fenmeno o mostrar que pode ser um mostrar em si mesmo ou um mostrar aquilo que ele no ; um se faz ver assim como. Essa segunda condio do fenmeno denominada por Heidegger de aparecer, parecer e apa-rncia. Em um querer aparecer ele se mostra na aparncia. O mostrar que aparncia no pode ser entendido como falso j que ele contm o mostrar como movimento primeiro. Apenas porque o ente quer se mostrar que ele pode existir enquanto fenmeno. Mesmo que a coisa se mostre como outra, ou seja, ser aquilo que no , ela mostra nessa projeo do ser algo que : o seu ser. O que pode estar mal colocado a pergunta que se faz ao ente, nunca a sua resposta. Outro ponto importante nesse mostrar aparente que ele adquire esta condio por meio de uma modificao privativa. No se trata de um erro, mas de uma escolha.

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    Heidegger expe que uma manifestao diferente de um fenmeno enquanto aparecer, parecer, aparncia, pois a manifestao sempre algo que em si no se mostra. Ela apenas um anunciar-se. Contudo, uma manifestao s possvel com base no mostrar-se de alguma coisa que o prprio ser do ente. A manifestao carrega em si um fenmeno. E apenas por isso que se pode confundir o manifestar com um fenmeno enquanto aparncia. Analisemos mais de perto essa questo: o fenmeno, o mostrar-se em si mesmo, significa um modo privilegiado de encontro. O encontro que se d com o mundo. A partir do momento que um fenmeno se d em si mes-mo ele se abre para ser experienciado. Por outro lado, a manifestao indica no prprio ente uma remisso referencial, de tal maneira que o referente (o que anuncia) s pode satisfazer a sua possvel funo de referncia se for um fenmeno, ou seja, caso se mostre em si mesmo (HEIDEGGER, 1993, p. 61). A manifestao apenas uma remisso a algo, que s poder ser um fenmeno na medida em que se colocar na posio de possvel questionado. Ele s poder ser refe-rncia enquanto fenmeno.

    O outro radical da palavra fenomenologia logos. Logos, para Heidegger, significa discurso, que deixa e faz ver aquilo sobre o que se discorre e o faz para quem discorre (medium) e para todos aque-les que discursam uns com os outros (HEIDEGGER, 1993, p. 63). Percebe-se que tanto fenmeno quanto logos esto embasados em um elemento: o deixar e fazer ver, a iluminao e a descoberta do ser do ente. Heidegger argumenta que o logos pode ser verdadeiro ou falso, mas no em um sentido de concordncia. Esse seria apenas o conceito tradicional (moderno) de verdade que coloca o lugar da verdade na proposio (o juzo) e a essncia da verdade na concordncia entre o juzo e o seu objeto (HEIDEGGER, 1993, p. 282). Tanto o fen-meno quanto o logos so entendidos como algo que se revela, que se mostra no movimento da verdade. A verdade como revelao uma das caractersticas ressaltadas por Gumbrecht como componente da cultura de presena.

    Partindo da tradio, ou seja, do conceito corrente de verdade, Heidegger, em seu escrito Sobre a essncia da verdade, aponta que a per-gunta que devemos fazer no sobre a essncia da verdade, mas sobre a verdade da essncia. Elementos da cultura de sentido esto sempre servindo para motivar aspectos da cultura de presena e vice-versa.

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    No h uma cultura puramente de sentido ou de presena, Gumbre-cht destaca que ambas esto sempre atuantes e - mais importante -, a preponderncia do sentido produz uma nostalgia das prticas de pre-sena. A saturao de um tipo de viso de mundo pede a outra.

    guisa de concluso: a histria enquanto presena

    Heidegger pe a mostra em Ser e tempo quatro conceitos de histria e diagnostica que apesar de todas as diferenas entre eles exis-te algo que os uni: a primazia do passado. Esta concluso leva ao ques-tionamento: se algo ainda no passou em que medida ele histrico?

    Mas ser que o Dasein s se torna histrico pelo fato de no mais estar pre-sente? Ou ser que ele histrico justa-mente na medida em que de fato existe? Ser o Dasein o vigor de ter sido apenas no sentido do que vigora por ter sido pre-sente ou ser ele o vigor de ter sido enquanto algo atualizante e por vir, ou seja, na temporalizao de sua temporalidade? (HEIDEGGER, 1996, p. 186. grifo em negrito nosso).

    A compreenso da temporalidade da historicidade pode se dar de duas formas: autenticamente e inautenticamente. A temporali-dade da historicidade imprpria a compreenso do passado a partir do presente, na qual resulta a busca pelo moderno (HEIDEGGER, 1996, p. 198). O antiquariato, entendido como uma prtica de colecio-nar sem sistematizao e seleo, mostra a outra face dessa historici-dade que a coleo, ou seja, no interesse pelas relquias e registros histricos em si mesmos (INWOOD, 2002, p. 84). Por outro lado, a temporalidade da historicidade prpria, enquanto in-stante que an-tecipa e re-pete, uma desatualizao do hoje e uma desabituao dos hbitos impessoais. Ela compreende a histria como um retorno do possvel e sabe, por isso, que a possibilidade s retorna caso, num in-stante do destino, a existncia se abra para a possibilidade, numa re-petio decidida (HEIDEGGER, 1996, p. 198). O destino, contudo, no significa na filosofia heideggeriana um caminho ao qual o ser est fadado a trilhar, mas uma deciso prpria, o acontecer originrio do Dasein. na deciso que se constitui a transmisso de uma herana (HEIDEGGER, 1996, p. 189).

    A histria, para Heidegger, comea pela primeira vez quando os prprios entes so especificamente promovidos ao desencobrimen-

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    to e mantidos nele, quando esta manuteno concebida em funo do questionamento acerca dos entes enquanto tais. Para Heidegger,

    somente a partir do modo de ser da histria, a historicida-de, e de seu enraizamento na temporalidade que se poder concluir de que maneira a histria pode ser tornar objeto possvel da historiografia [...] A histria no se encontra no estudo sistemtico dos acontecimentos, na cincia historiogrfica, mas no modo de ser da histria (HEI-DEGGER, 1996, p. 180, grifo em negrito nosso).

    Ou seja, o acontecer da histria o acontecer do ser-no-mundo (HEI-DEGGER, 1996, p. 194).

    A delimitao do fazer histrico e do objeto da histria para Heidegger deve ser pensado tendo como base a proposio de que o estudo da histria, do passado, deve ser feito devido a sua relevncia como presena, como algo que passado, mas que no passou. Nesse sentido, Heidegger e Gumbrecht tambm tm propostas que se en-contram. Na cultura de presena no se trata de produzir um sentido de distncia, mas justamente sua dissoluo pela experincia da fora substancial do objeto que apresentado (ARAJO, 2006, p. 327).

    A proposta de uma historiografia que valorize as prticas de presena testada por Gumbrecht em seu livro Em 1926: vivendo no limite do tempo. O objetivo do livro fazer com que o leitor sinta-se em 1926 atravs de prticas de presentificao do passado. Para conseguir esse efeito o livro deixa de lado o tratamento evolutivo do tema, caracterstico das narrativas modernas, buscando uma organi-zao que produza a simultaneidade. O livro trata apenas de um ano especfico e dos materiais que foram produzidos neste ano. Esta es-colha no foi feita por acaso. A simultaneidade histrica tenta isolar e tornar presente um passado. Neste projeto no existe a necessidade de comear pelo comeo, pois este livro no tem comeo, no sen-tido de que tm as narrativas ou discusses (GUMBRECHT, 1999, p. 09). O grande desafio de Em 1926 fazer pelo menos alguns leitores esquecerem, durante o processo de leitura, que eles no esto vivendo em 1926. Em outras palavras: evocar alguns dos mundos de 1926, represent-los, no sentido de torn-los novamente presentes (GUM-BRECHT, 1999, p. 10).

    Gumbrecht tenta tornar presente o ambiente histrico das

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    realidades de 1926. O que visa suprir o desejo de falar aos mortos em outras palavras, o desejo por uma experincia de primeira mo dos mundos que existiram antes de nosso nascimento (GUMBRECHT, 1999, p. 11). o retorno s coisas por elas mesmas, a experincia no mediada do mundo que a fenomenologia trouxe de novo a tona e que Heidegger desenvolveu em Ser e tempo.

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    Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicao em outubro 2007.