A-herança-de-eszter.-Sándor-Márai (1)

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A HERANA DE ESZTERSndor MraiDOM QUIXOTEDigitalizao e ArranjoAgostinho costaEste livro foi digitalizado paraser lido por Deficientes VisuaisDurante vinte anos Eszter viveu uma existncia cinzenta e montona, fechada sobre si prpria, esperando a morte e sonhando com o retorno de um amor impossvel. At ao dia em que, inesperadamente, recebe um telegrama de Lajos, o nico homem que amou e graas ao qual encontrou, por um breve perodo, sentido para a sua vida. Grande sedutor e canalha sem escrpulos, Lajos no s traiu Eszter como destruiu a sua famlia, tirando-lhe tudo o que possua. Agora, depois de uma ausncia prolongada, regressa e Eszter prepara-se para o receber comovida e perturbada por sentimentos contraditrios.Sndor Mrai nasceu em 1900, em Kassa, uma pequena cidade hngara que hoje pertence Eslovquia. Passou um perodo de exlio voluntrio na Alemanha e na Frana durante o regime de Horthy nos anos 20, at que abandonou definitivamente o seu pas em 1948 com a chegada do regime comunista, tendo emigrado para os Estados Unidos. A subsequente proibio da sua obra na Hungria fez cair no esquecimento quem nesse momento era considerado um dos escritores mais importantes da literatura centro-europeia. Foi preciso esperar vrias dcadas, at queda do regime comunista, para que este extraordinrio escritor fosse redescoberto no seu pas e no mundo inteiro. Sndor Mrai suicidou-se em 1989, em San Diego, na Califrnia, poucos meses antes da queda do muro de Berlim. O romance As Velas Ardem at ao Fim, j publicado nesta coleco, foi entusiasticamente aclamado, tanto pela crtica como pelo pblico.A HERANA DE ESZTERRomanceTtulo original Eszter HagyatkTraduo de Ernesto RodriguesDOM QUIXOTEPublicaes Dom QuixoteEdifcio AreisRua Ivone Silva1050-124 Lisboa - PortugalReservados todos os direitos de acordo com a legislao em vigorm(c) Herdeiros de Sndor MraiVrsvry-Weller Publishing Toronto(c) 2006, Publicaes Dom QuixoteCapa Atelier Henrique CayatteEste livro foi composto em Rongel, fonte tipogrfica desenhada por Mrio FelicianoReviso Eullia Pyrrait1 edio Julho de 2006Paginao - RodapNo sei o que Deus ainda me reserva. Mas, antes de morrer, quero escrever a histria do dia em que Lajos veio ver-me pela ltima vez e me roubou. H trs anos que venho adiando estes apontamentos. Agora, sinto como se uma voz, contra a qual no posso defender-me, me exortasse a escrever a histria desse dia - e tudo, tudo o que sei acerca de Lajos -, porque esse o meu dever, e j no tenho muito tempo. Uma voz assim inequvoca. Por isso, obedeo, em nome de Deus.J no sou jovem nem tenho sade, e, em breve, terei de morrer. Receio a morte?... No domingo em que Lajos veio ver-me pela ltima vez curei do medo de morrer. Talvez devido ao tempo, que no me perdoou, talvez s recordaes, quase to cruis como o tempo, talvez por um particular estado de graa, que, segundo os ensinamentos da minha f, tambm toca, por vezes, os indignos e obstinados, talvez, simplesmente,7pelo peso da experincia e da velhice, olho a morte de frente, com serenidade. Presenteou-me a vida maravilhosamente, e implacavelmente me despojou... o que mais posso esperar? Tenho de morrer, que essa a lei, e porque cumpri o meu dever.Sei que palavra enorme esta e, vendo-a agora, escrita, sinto-me um pouco intimidada. uma palavra arrogante, pela qual vou ter de responder, um dia, perante algum. Demorei algum tempo a reconhecer qual o meu dever, e obedeci, contrariada, sim, uivando e protestando, desesperadamente. Senti, ento, pela primeira vez, como a morte pode ser redeno, e soube, tambm, como a morte resgate e paz. Que estranha foi essa luta! Quem me obrigou, e por que no pude esquiv-la? Tudo empreendi para escapar dela. Mas o inimigo vinha atrs de mim. Agora j sei que no podia ser de outro modo; estamos ligados aos nossos inimigos, e tambm eles no podem fugir de ns. r .8II.Se quero ser sincera - que outro sentido poderia ter esta escrita? -, devo confessar que, na minha vida e nos meus actos, nunca encontrei traos daquela ira bblica, da veemncia, sim, nem sequer da firme determinao e da dureza que caracterizavam as minhas opinies, tantas vezes repetidas frente a estranhos, sobre Lajos e o meu prprio destino. "Cumprir o meu dever", que expresso dura e teatral!9A gente vive... e, um dia, apercebe-se de que "cumpriu" ou "no cumpriu" o seu dever. Comeo a acreditar que as grandes decises fatais, que determinam o nosso destino, so muito menos conscientes do que, mais tarde, supomos, num olhar ao passado, em hora de rememorao. Eu, ao tempo, no via Lajos h vinte anos e julgava estar couraada contra as recordaes. Depois, um dia, recebi um telegrama seu, que era como um libreto de pera, rigorosamente, to teatral, perigosamente pueril e mentiroso como tudo oque Lajos escrevia e dizia vinte anos antes, e antes ainda, a mim e aos outros... Que declarao solene, prometendo muito, misterioso, e limpidamente mentiroso, mentiroso! Telegrama na mo, fui ter com Nunu ao jardim, parei na varanda e disse-lhe, alto:- Lajos est de volta!No sei como soou a minha voz nesse momento. Provavelmente, no gritei de felicidade. Devo ter falado como sonmbula que acabam de acordar. Esse estado de sonambulismo durava h vinte anos. Assim caminhava, h vinte anos, algures, beira de um precipcio, uniformemente, tranquila e sorrindo. Agora, acordava e via a realidade. J no sentia, porm, vertigens. Na realidade, na realidade da vida e da morte, h algo de tranquilizador. Nunu cuidava das roseiras. Olhou-me de baixo, entre as rosas, pestanejando contra o sol, velha e serena:- Pois claro. Continuou a limpar. E perguntou:- Quando chega?- Amanh - respondi.- Bem - disse. - Vou fechar as pratas chave.Desatei a rir. Mas Nunu manteve-se sria. Mais tarde, veio sentar-se ao meu lado, no banco de pedra, e leu o telegrama. "Chegamos de automvel", escrevia Lajos. Deste plural seguia-se que trazia consigo os meninos. "Somos cinco", telegrafava, ainda. Nunu pensou nos frangos, no leite, nas natas. Quem sero os outros dois?10- perguntmo-nos. "Ficamos at noite", comunicava, ainda, o telegrama, e prosseguia num desperdcio de palavras enfticas, palavras que Lajos nunca soube economizar, nem agora, quando enviava um telegrama. "Cinco pessoas", disse Nunu, "chegam de manh, ficam at noite." Os velhos lbios exangues moviam-se, silenciosos, calculando e somando. Deitava contas aos gastos do almoo, do jantar. E disse, ento:- Eu sabia que ele ia voltar mais uma vez. J no se atreve a vir sozinho! Traz ajudantes, os meninos, desconhecidos. Mas aqui j no h nada.Estvamos sentadas no jardim, olhando-nos. Nunu julgava saber tudo sobre mim. Talvez conhecesse, de facto, a verdade, essa verdade simples e definitiva que na vida velamos com tantos farrapos. Chocou-me sempre um pouco a "omniscincia" de Nunu. Mas que boa foi sempre para mim, e como foi boa na secura e na inteligncia. Acabava por me render sempre a ela. No meio da bruma, invisvel e hmida, que cobrira a minha vida nos ltimos anos, Nunu fora a lanterna de luz terna e suave, cuja claridade pde guiar-me. Eu sabia que, tambm agora, ela no previa as hipteses, perigosas e terrveis, que eu imaginava, e que evocar, face ao contedo do telegrama, os objectos de prata que tinha de fechar chave, com a chegada de Lajos, era uma brincadeira. Exagera, pensei, Nunu diverte-se. Ao mesmo tempo, sabia que, no ltimo instante, ela acabaria por guardar os objectos de prata, e, mais tarde,quando j no se tratasse das pratas, quando s fosse questo do que no pode ser guardado, Nunu estaria a, ao meu lado, com as suas chaves, no seu vestido pretofestivo, as suas rugas, em silncio, e pestanejando, cautelosa. E, ao mesmo tempo, sabia que, nesse instante, j nada nem ningum, nem sequer Nunu, poderia ajudar-me.Mas tudo isto em vo "sabia", e, de repente, senti-me bem disposta, como se no me visse ameaada por nenhuma espcie de perigo. Lembro-me de ter brincado com Nunu. Estvamos sentadas no jardim, ouvindo o zumbido das abelhas, brias com os perfumes outonais, e, tranquilas, falvamos longamente de Lajos, dos meninos, de Vilma, a minha irm morta. Estvamos sentadas diante da casa, debaixo da janela para l de cujas portadas morrera a mam, h muito, h vinte e cinco anos. Estvamos sentadas frente s tlias, perto das colmeias do meu pai; mas as colmeias estavam vazias. Nunu no gostava de se entreter com a ninharia das colmeias e, um dia, vendemos as dezoito famlias de abelhas. Era Setembro, com dias tpidos e suaves. Estvamos sentadas nessa segurana familiar, que um pouco a segurana do nufrago, um pouco a da felicidade sem desejos. Ora, pensei, que mais pode levar Lajos daqui?... As pratas? Insinuao ridcula; pois que valem essas colheres de prata amolgadas? Calculei que Lajos j devia passar dos cinquenta anos. Nesse Vero, fizera cinquenta e trs.12Umas colheres de prata j de pouco lhe serviriam; e, se lhe servissem, que as levasse. Nunu devia pensar algo de semelhante. A seguir, suspirou, ergueu-se, dirigiu-se para casa, e disse, entradada varanda:- No fiques com ele muito tempo sozinha. Convida Laci, o tio Endre e Tibor para almoar, como nos domingos que passais juntos e vos divertis com fantasmas. Lajos teve sempre medo de Endre; julgo que ainda lhe deve alguma coisa. Tambm, a quem que ele no deve? - perguntou, e comeou a rir.- Esqueceram-se - disse eu; e tambm me ri.J o defendia. Que mais poderia fazer? Ele foi o nico homem que amei na minha vida.13III.O TELEGRAMA, que trazia nova funesta ou jubilosa, chegara no sbado, por volta do meio-dia. S vagamente recordo a tarde e noite que precederam a chegada de Lajos. No, Nunu tinha razo, eu j no tinha medo de Lajos. Podemos ter medo de quem amamos, ou odiamos, de quem foi muito bom, ou muito desumano, de quem foi, decididamente, infame connosco. Mas Lajos nunca foi cruel comigo; por outro lado, bom tambm no foi, no sentido em que os manuais escolares interpretam a bondade. Foi infame? Nunca senti isso. Mentia, verdade; mentia, tal como o vento uiva, com a fora e a alegria da natureza. Sabia mentir com um pitoresco inacreditvel. A mim, por exemplo, mentiu-me que me amava, que s a mim amava. Depois, casou com a minha irm Vilma. Mas, mais tarde, apercebi-me de que nada disto ele havia programado: uma cabala, clculos mesquinhos e inteligncia perversa nunca15guiavam Lajos. Disse que me amava - e ainda hoje no duvido das suas palavras -, s que casou com Vilma, talvez porque ela era mais bonita, ou porque, nesse dia, soprava o vento leste, ou porque Vilma assim quis; nunca me explicou porqu.Na noite em que espervamos Lajos - eu sabia que o veria pela ltima vez na minha vida - demorei a adormecer: ordenei objectos e lembranas, preparei-me para a visita e, antes do sono, li as velhas cartas de Lajos. Ainda hoje creio, supersticiosamente - e, lendo essas velhas cartas, tive de novo esse pressentimento, com uma fora estranha e convincente -, que em Lajos se escondia uma qualquer fonte de energia, como, nas grandes montanhas, esses veios minsculos que atravessaro as entranhas dos montes, sem uma direco determinada, e se perdem, sem deixar rasto, nas profundezas das grutas. Essa fora no fora aproveitada nem dirigida para ningum. Agora, ao ler, na noite que precedia to fantasmtica visita, as suas cartas, fascinava-me a intensidade dessa energia sem objectivo. Em todas as cartas, dirigia-se a mim com tal vigor que esse vigor bastava para mexer no s com um homem - e ainda mais com uma mulher sentimental -, mas tambm com um grupo inteiro de pessoas, e talvez, mesmo, com as massas. Nessas cartas, nada havia de especialmente "profundo" para dizer, e, na redaco, no se sentia a tcnica de um escritor, pois os eptetos eram negligentes e o estilo descosido - mas o modo de1116exprimir-se era, em cada linha de texto, inconfundvel, unicamente seu, s seu! Escrevia sempre sobre a realidade, sobre uma qualquer realidade imaginada, que acabava de conhecer, e queria comunicar-me urgentemente.Nunca descrevia os seus sentimentos nem os seus projectos - descrevia a cidade, onde se encontrava, com tal fora expressiva, que, leitura da carta, eu via as ruas, o quarto em que Lajos escrevia a carta, ouvia as vozes das pessoas que, na vspera, lhe tinham dito algo de espirituoso ou inteligente, esboava o grandioso projecto que, precisamente agora, lhe ocupava a mente -, e tudo revivia de forma maravilhosa nas cartas de Lajos. S que - como podia compreender at um leitor menos atento - nada era verdade, ou melhor, era verdade, mas de uma forma rigorosamente distinta da que Lajos descrevera, e a cidade, que ele delineara com a fidelidade de um cartgrafo provavelmente s existia na Lua. Nas suas cartas, ilustrava, com cuidado e escrpulo, esta realidade mentirosa. Tal como descrevia homens e paisagens,com cuidados de especialista.Reli estas cartas e comovi-me. Talvez, talvez tenhamos sido fracos face a ele, pensei. Por volta da meia-noite, comeou a soprar, em torno da casa, um vento clido e impetuoso; levantei-me da cama para fechar as janelas. E, meia-noite, com essa fraqueza feminina que nem quero justificar, parei diante do espelho17grande, que cintilara, outrora, no toucador da mam, e observei-me minuciosamente. Sabia que ainda no era velha. Graas a um singular capricho do destino, os ltimos vinte anos tinham deixado poucas marcas na minha aparncia. Nunca fora feia, mas tambm no era uma dessas belezas que atraem os homens; inspirava-lhes, antes, respeito e uma tmida languidez. Graas jardinagem, ou minha prpria constituio, no engordara; e alta, direita e bem proporcionada. O cabelo, nos ltimos anos, encanecera um tudo nada; mas os fios passavam despercebidos no loiro claro, que foi sempre o mais caracterstico em mim. No contorno dos olhos e dos lbios desenhara j o tempo rugas minsculas e finssimas; as mos no eram as de antigamente, um pouco speras do trabalho domstico. Agora, porm, via-me ao espelho como mulher que espera o amante. Este instante era, claro, ridculo; eu j fizera quarenta e cinco anos, Lajos vivia h muito com outra mulher, talvez se tivesse casado. Nos ltimos anos no ouvira absolutamente nada a seu respeito. Por vezes, via o seu nome nos jornais e, certa vez, relacionado com um escndalo poltico qualquer. No me espantava que, um dia, o nome de Lajos tomasse - no bom ou no mau sentido - as asas da fama. Mas o rudo daquele escndalo logo se extinguiu; outra vez, li que se batera em duelo, algures, no ptio de uma caserna, disparara para o ar e no ficara ferido - e tudo se conjugava to maravilhosamente nele, o duelo e no ter sado ferido.18Nunca soube, tambm, que estivesse seriamente doente. O seu destino diferente, pensei. E voltei para a cama com as minhas cartas, as minhas recordaes, a amarga conscincia da minha juventude perdida.Mentiria, se afirmasse aqui ter-me sentido particularmente infeliz nesse momento. Anos antes, sim, h vinte, vinte e dois anos, fora infeliz. Mas depois esse sentimento coagulou em mim, como coagula o sangue numa ferida. A fora que amarrou em mim o borbulhar da dor era, para mim, desconhecida. H feridas que no "cura o tempo". Eu sabia que tambm no estava curada. S alguns anos aps a "separao" - muito difcil enctrar as palavras exactas para o que aconteceu entre mim e Lajos - o insuportvel se fez, de um golpe, mais natural e mais simples. J no sentia necessidade de estar sempre a pedir ajuda a algum, no gritava pela polcia nem pelo mdico, ou pelo padre. De certa maneira, eu vivia... Um dia, concentraram-se de novo homens minha volta, homens que sustentavam precisar de mim. Depois quiseram casar comigo, e por duas vezes: Tibor, que mais novo do que eu, e Endre, que s Nunu trata por "tio", e, contudo, no mais velho do que Lajos. Resolvi, como pude, esses delicados entreactos acidentais. Os pretendentes conservaram-se bons amigos. Uma noite conclu que a vida, de forma maravilhosa, fora mais clemente comigo do que eu alguma vez esperara.19IV. meia-noite Nunu veio ao meu quarto. A casa continuava sem electricidade - a mam no tolerava essa inovao e, mais tarde, aps a sua morte, adimos a instalao para poupar - e, por isso, as visitas de Nunu meia-noite eram sempre um pouco teatrais. Tambm agora ali estava ela, vela trmula na mo, cabelo branco desgrenhado, em camisa de noite, semelhando uma apario nocturna. "Lady Machbeth", disse-lhe, sorrindo. -"Aproxima-te e senta-te." Sabia que viria ver-me nessa noite.Nunu a parente que, em casa, assumiu o papel de todos os parentes. Chegou h trinta e cinco anos, numa dessas migraes familiares que obcecam todas as pocas mticas parentais: vinha de uma famlia antiga, e de um complexo tecido tribal de tias e primas, para uma visita de algumas semanas. E aqui ficou, por precisarmos dela. E, mais tarde, por c continuou, porque,21entretanto, extinguiu-se toda a hierarquia familiar que a precedia, e Nunu, em cada dcada, subia lentamente de escalo, como num servio oficial: um dia, tomou o lugar da minha av, mudou-se para o seu quarto no primeiro andar e comeou a desempenhar as funes da defunta. Depois, morreu a mam, e, a seguir, Vilma. Um dia, Nunu apercebeu-se de que j no "substitua" ningum; deu-se conta de que ela, a recm-chegada, ela, a remanescente, constitua a verdadeira famlia.O xito desta intrincada carreira no lhe subiu cabea. Nunu nunca quis ser uma "me" para mim, nem representou o papel de gnio tutelar da famlia. Com o passar dos anos, fez-se mais parca em palavras, sbria, to feroz e secamente sbria como se j tivesse provado todas as aventuras da vida, e, em termos objectivos, indiferente, como um mvel. Disse Laci, certa vez, que Nunu j estava um pouco envernizada, como velho armrio de nogueira. Vestia-se sempre da mesma maneira, de Inverno e de Vero, pondo vestido preto, de tecido liso, que no fosse seda, mas tambm no fosse burel, e mantinha um ar levemente solene, quer aos meus olhos, quer aos dos convidados. Nos ltimos anos, s j pronunciava as palavras estritamente necessrias. Da sua vida nunca disse nada. Eu sabia que ela desejava partilhar todas as minhas preocupaes e tristezas; mas desejava partilhar sem palavras, e quando, ento, se pronunciava, era como se discutssemos h meses o mesmo assunto, veemente e apaixonadamente,22at que Nunu, com uma frase curta, punha ponto final na longa disputa. Agora, dizia-me assim, e sentava-se na beira da cama:- Mandaste avaliar o anel?Sentei-me na cama, massajando as fontes da cabea. Sabia no que ela estava a pensar, e tambm sabia que tinha razo: nunca falramos disso, nem, talvez, lhe mostrara o anel, e, contudo, uma vez mais sabia que ela tinha razo, que o anel era falso, como eu bem suspeitava. Nestes assuntos Nunu era fantstica. Quando ouvira falar do anel? - perguntei-me; mas logo deixei cair a pergunta, porque era muito natural que Nunu soubesse tudo da casa, da famlia, da minha pessoa e da minha vida, do que se escondia na cave, no sto ou na vida da minha irm morta; e, assim, saberia tambm do anel. Eu j quase esquecera a histria deste anel, porque me incomodava pensar nele. Quando Vilma morreu, Lajos deu-me essa jia, o anel da minha av. Era de platina, com um diamante de tamanho mdio incrustado, nico objecto de valor na famlia. No fao a mnima ideia de como ficou em nosso poder - o pai, inclusive, tratava o anel com supersticiosa cautela, esse pai que teve mo to leve para as terras e objectos de valor. Quais os diamantes famosos propriedade das famlias reais, os Koh-I-Noor ou esse gnero de pedras preciosas catalogadas, que ningum pensa em colocar venda, e s resplandecem, nos eventos dinsticos festivos, no dedo de um membro nobre da famlia, ou na fronte,23assim guardmos, por quatro geraes, o "anel". Nunca soube o verdadeiro valor dessa pedra. De qualquer forma, deve ter sido altamente valioso, embora no to precioso como pretendia a lenda familiar. Da minha av passou mam; aps a morte da me, herdou-o Vilma. Quando Vilma morreu, Lajos, num dos seus momentos sentimentais e patticos, obrigou-me a aceit-lo.Lembro-me bem da cena. Enterrmos Vilma tarde. Ao regressar do cemitrio deitei-me, esgotada, num div, no meu quarto escuro. Lajos entrou, vestido de luto - pusera luto com o cuidado de um soldado que vai desfilar, lembro-me que at mandou fazer botes de punho pretos para a ocasio -, e, pronunciando algumas palavras austeras, consignou-me o anel. Estava to cansada e confusa que no percebi exactamente as suas palavras; vi, distraidamente, como deixava o anel na mesinha que havia ao lado do sof, e permiti, sem resistncia, que, mais tarde, chamasse a ateno para o anel e mo enfiasse no dedo. "O anel pertence-te" -disse, eloquente e srio. Algum tempo depois, tomei conscincia de tudo isso. O anel era de va, naturalmente; o anel cabia filha da minha irm morta, o que era natural. Mas Lajos ops-se com estranha violncia a tal ideia. Um anel assim, disse, no era s um objecto de valor, mas tambm um smbolo, smbolo da hierarquia familiar. Depois da morte da me e de Vilma, cabia-me, pois, a mim, a filha mais nova. No podia discutir com ele.24Calei-me e guardei o anel. Naturalmente, nem por um s instante quis ficar com esse objecto de valor. A minha conscincia, e a carta que escrevi, caso morresse - estava junto do anel, na cmoda da roupa branca -, eram testemunhas de que eu guardava o anel para va, e dispusera que ela o recebesse aps a minha morte. Mais tarde decidi que se enviaria filha de Vilma aquando do noivado, ou para a boda, se alguma vez casasse. A carta, contendo instrues precisas sobre os meus pobres pertences, designava, de modo inequvoco, os rfos de Vilma como meus herdeiros, com a nica condio de que a casa e o jardim no pudessem ser vendidos enquanto Nunu vivesse. (Imagino que Nunu viver ainda muito tempo - por que no? No h nenhuma razo para morrer, tal como no h nenhuma razo especial para viver! - e, de qualquer modo, vai sobreviver-me. Este sentimento , para mim, venturoso e tranquilizador.) Peguei no anel, porque no queria discutir com Lajos e porque senti que esse humilde objecto de valor, que, na nossa situao familiar, ainda poderia ajudar algum um dia - acreditava que, com a sua venda, iria financiar o dote de uma jovem -, estaria melhor comigo do que no meio daquela desordem que florescia com natural profuso volta de Lajos, como ervas daninhas em clima adequado. Ele vende-o, joga-o s cartas, pensei; e comovi-me um pouco por mo ter dado. E, nesse momento Senhor, dai-me fora, para ser sincera! -, sim, nesse momento,25quando descramos o caixo da minha irm terra, em mim sobrevinha, efectivamente, a esperana de que fosse ainda possvel remediar a vida de Lajos, das crianas, talvez a minha prpria vida. O anel j no contava muito, tratava-se de tudo o mais... Nesse estado, guardei o anel. Nesse estado de esprito, o conservei comigo, mais tarde, quando nos separmos, e, junto com o testamento, o escondi entre velhas recordaes.E no entretempo, nos anos em que no vi Lajos, nunca mais olhei para o anel, mas sabia, com a certeza do sonmbulo, sabia que o anel era falso."Sabia", que palavra! Nunca tive o anel na mo. Tinha medo dele. Metia-me medo essa certeza que nunca exprimi em palavras. Sabia que tudo o que Lajos tocava perdia a sua natureza originria, se decompunha nos seus elementos, se transformava, como os metais nobres nos alambiques dos velhos alquimistas... Sabia que Lajos era capaz de falsificar at os homens, no somente as simples pedras e os metais. Sabia que um anel no poderia conservar a sua nobre inocncia nas mos de Lajos; Vilma estivera muito tempo doente, no podia ocupar-se dos trabalhos domsticos, era Lajos quem mandava em casa, sem controlo, e apoderara-se do anel... No instante em que Nunu perguntou, soube que era verdade. Lajos enganara-me com o anel, como com tudo mais. Levantei-me na cama, devia estar plida:- Tu mandaste-o avaliar?- Sim - respondeu Nunu, tranquila. - Uma vez, em que no estavas em casa, e me confiaste as chaves. Levei-o ao ourives. At a platina mudou. Trocou-a por um metal esbranquiado, um metal de valor inferior platina. Ouro branco, disseram-me. Tambm trocou a pedra. O anel, assim, que guardas h anos no vale cinco tostes.- No verdade - disse. Nunu encolheu os ombros:- V l, Eszter - disse, em tom severo, de censura. * Calei-me, olhando para a chama da vela. Claro, seNunu dizia, ento, era verdade. E porqu negar a mim mesma o que sempre suspeitei, se, desde o momento em que Lajos me entregou o anel, intu que era falso? Tudo o que ele toca torna-se falso. E a sua respirao como a peste, pensei; e cerrei os punhos. No pelo anel... que me importava, j nesta fase da vida, ter um ou mais anis assim? Tudo era falso, tudo aquilo em que tocara, pensei. Depois, tive outra ideia, e disse-lhe:- Ser que mo deu por mero clculo? Receava, acaso, que as crianas o procurassem, ou algum... e, porque o anel era falso, passou-mo, responsabilizando-me, se o encontrassem comigo? Inculpando-me, se, um dia, descobrissem que era falso?...Eu pensava em voz alta, como sempre fazia, na companhia de Nunu. Se algum que conhece Lajos a velha Nunu, conhece-o verdadeiramente, no seu interior, em todos os pensamentos, mesmo nos que no se atreve27a confessar a si mesmo. Nunu sempre justa. Disse, terna e secamente:- No sei. possvel. Mas isso j seria uma grande infmia. Lajos no to calculista. Lajosunca cometeu nenhum crime. Tambm gostava de ti. No acredito que, com o anel, quisesse arrastar-te na lama. T-lo- s vendido, por precisar de dinheiro; depois, no teve coragem de confessar, pelo que mandou fazer uma cpia. E deu-te o anel sem valor... porqu? Por clculo? Por maldade? Talvez s quisesse ser generoso. O momento era to extraordinrio: regressais do enterro de Vilma, e ele, Lajos, como primeiro gesto, entrega-te o nico objecto valioso da famlia. Quando me contaste cena to bonita, logo suspeitei. Por isso, mandei avali-lo mais tarde. Falso.- Falso - disse, chmente, como um autmato. E perguntei:- Por que dizes s agora?Nunu afastou da testa as mechas brancas.- No preciso dizer tudo imediatamente - disse, quase com doura. - Lajos j te fizera sofrer bastante.Levantei-me da cama, fui cmoda, procurei o anel na gaveta secreta. Nunu ajudou-me a procurar, com a luz trmula da vela. Depois, aproximei a pedra da chama e examinei-a, atentamente. No percebo nada de pedras preciosas.- Risca com ela o vidro do espelho - sugeriu Nunu. Mas a pedra no deixou marca no vidro. Enfiei o anelno dedo: olhei. A pedra resplandecia numa luz fria, vazia. Era uma cpia perfeita, devia ser obra de mestre. Assim estivemos por instantes, beira da cama, fixando o anel. Depois, Nunu deu-me um beijo, suspirou e, em silncio, saiu. Mantive-me ali, por largo tempo, olhando a falsa pedra. Pensava que, sem ainda ter chegado, Lajos j me roubara qualquer coisa. Pelos vistos, no pode ser de outra maneira. Esta a lei, a sua lei. Lei terrvel - pensei; e comecei a tiritar. Assim adormeci, com pele de galinha, o falso anel no dedo, aturdida, como quem, tendo vivido muito tempo fechado num quarto, subitamente tomado de vertigens, ao contacto com o ar forte e cortante, com as rajadas de vento da realidade.29O dia em que Lajos regressou caiu num domingo de finais de Setembro. Era um dia maravilhosamente tpido e cristalino; entre as rvores flutuavam fios, e o ar vibrava vaporoso e lmpido, envolvendo os objectos com uma leve patina, como se tudo, os sinais do horizonte e do cu, fosse retocado a aguarela. Manh cedo, fui para o jardim, e colhi dlias para trs jarras. Este jardim no muito grande, mas d a volta completa casa. Talvez ainda no fossem as oito. Estava de p, no silncio profundo e orvalhado do jardim, e ouvi que falavam varanda. Reconheci as vozes do meu irmo e de Tibor. Falavam baixinho, e, no silncio matinal, cada palavra chegava ntida at mim, como se ecoasse de um altifalante invisvel.Nos primeiros instantes, gostaria de os ter interrompido, adverti-los de que os ouvia, que no estavam ss. Mas logo a primeira frase, pronunciada em tom sufocado,31me obrigou a ficar calada. Laci o meu irmo, perguntava:- Porque no te casaste com Eszter?- Porque ela no quis casar comigo - foi a resposta. Reconheci a voz de Tibor, e bateu forte o meu corao. Sim, era ele, Tibor, essa voz calma e serena, cujas palavras transpiravam bondade e uma verdade tingida de tristeza, essa pacincia e objectividade. Porque lhe pergunta Laci uma coisa dessas? - pensei, magoada e nervosa. As perguntas do meu irmo tm sempre algo de inquisitorial, de intoleravelmente confidencial e com o seu qu de agressivo. Laci no suporta segredos sua volta. Mas as pessoas preservam os seus segredos. Talvez outro desse a esta pergunta uma resposta evasiva, ou protestasse contra tanta confiana. Tibor respondeu serenamente, com franqueza e preciso, como se algum lhe perguntasse pelos horrios de um comboio.- Porque ela no quis casar contigo? - ouvi a voz agressiva do meu irmo.- Porque amava outro.- Quem? - soou a pergunta esbatida e crua.- Lajos.Agora, calavam-se. Algum riscou um fsforo e acendia um cigarro. No silncio profundo, ouvi que Tibor soprava a chama do fsforo. A pergunta, que eu esperava, chegou com a preciso do trovo aps um relmpago.32- Sabes que ele no vem hoje?- Sei.- O que quer daqui?- No sei.- A ti, tambm te deve dinheiro?- Deixemos isso - disse, numa voz seca. - Foi h muito. J no importante.- Porque, a mim, deve - disse Laci, com um orgulho pueril, envaidecido. - At me pediu o relgio de ouro do meu pai. Disse que lho emprestasse por uma semana. E j passaram dez anos. No, espera, doze anos. Ainda no o restituiu. Uma vez, levou todos os volumes da enciclopdia. Emprestados. Nunca mais vi os volumes. Outra vez, pediu-me trezentas coroas. Mas no lhas dei - disse a voz, com um entusiasmo infantil.E a outra voz, mais profunda e silenciosa, respondeu-lhe, desenganada e humilde:- Tambm no era grande desgraa, se lhas tivesses dado.- o que pensas? - perguntou Laci, meio envergonhado. Eu estava de p, entre as flores, e era como se visse o seu rosto ruborizado, de criana envelhecida, sorrindo, com embarao. - O que pensas: ele ainda ama Eszter?A esta pergunta, a resposta demorou. Agora, j queria interromp-los; mas era tarde. E, nessa situao ridcula, sozinha, avelhada, no meio das flores do meu jardim, como um poema antiga, nessa manh em que33esperava a visita do homem que me enganara e despojara, na casa onde tudo aconteceu, onde decorreu toda a minha vida, onde, numa gaveta, guardava as cartas de Vilma e Lajos, e o anel, que, desde a noite anterior, sabia, com segurana, ser falso, como, no fundo, sempre suspeitara - numa situao de recorte assim teatral, ao ouvir aquilo, dei-me conta, subitamente, de que demorava a resposta a tal pergunta, a nica pergunta que poderia ainda interessar-me. Tibor, o juiz consciencioso, pesava as palavras.- No sei - disse ento. - No sei - repetiu, mais calmamente, como se discutisse com algum. - Os amores sem esperana nunca terminam - concluiu.Conversavam em voz baixa e entraram em casa. Entendi que me procuravam. Coloquei as flores no banco de pedra, recolhi-me ao fundo do jardim, junto do poo, sentei-me no banco onde, h vinte e dois anos, Lajos me pedira em casamento, cruzei os braos sobre o corao, apertei contra o peito o xaile de malha, porque tinha frio, olhei para a estrada e, de repente, eu no compreendia a pergunta de Laci.34vi.Quando Lajos, muitos, muitos anos antes,chegou a nossa casa, Laci foi o primeiro a receb-lo com uma simpatia transbordante. Nesse tempo, ambos eram considerados, na famlia, "grandes promessas". Ningum sabia dizer com inteira exactido o que "prometiam" Laci e Lajos - mas, verdade, tornavam-se indiscutveis promessas para quem os ouvisse discursar. O que era comum ao seu carcter - uma ausncia absoluta do sentido da realidade, uma marcada tendncia para fantasmagorias sem nexo, uma necessidade inconsciente de mentir -, tudo isso os aproximava com uma fora irrefrevel, como a dos enamorados. Laci introduziu, orgulhosamente, Lajos na nossa famlia. Assemelhavam-se at fisicamente: tinham ambos um rosto lembrando vagamente o sculo passado, romntico, algo que sempre apreciara em Laci e descobri com simpatia em Lajos. Houve uma poca em que se vestiam do mesmo modo, e a cidade fazia eco35das suas aventuras frvolas e todos lhes perdoavam, porque eram simpticos e jovens, e, no fim de contas, nunca tinham dado azo a indecncias. Assemelhavam-se pavorosamente, nocorpo e na alma.Essa amizade, que, nos anos de universidade, j se mostrara de uma intimidade inquietante, no diminuiu quando Lajos comeou a interessar-se por mim; no diminuiu, s se transformou de maneira estranha. At um cego via que Laci tinha cimes ridculos de Lajos. Fazia tudo para que o amigo se ligasse famlia, e, ao mesmo tempo, via com maus olhos a corte de Lajos, perturbava, como podia, as nossas desajeitadas aproximaes e brincava com os tmidos sinais de uma atraco nascente. Laci tinha cimes, mas, estranhamente, ou talvez no to estranho quanto isso, s tinha cimes de mim; quando Lajos casou com Vilma, pareceu contente, e comportou-se, at ao fim, com grande delicadeza e devoo. Na famlia, todos sabiam que eu era a preferida de Laci, que ele tinha um "fraco" por mim. Mais tarde, cheguei a pensar que as simpatias e antipatias de Laci talvez tivessem infludo na infidelidade de Lajos. Mas nunca pude encontrar provas desta conjectura.Aqueles dois homens to semelhantes, aqueles caracteres quase idnticos, afadigavam-se em procurar a amizade recproca. Numa altura em que Lajos recebeu a sua herana, viveram juntos na capital, numade Laci, este apartamento foi palco dos mais importantes encontros intelectuais e mundanos daqueles tempos. Eu tenho, porm, todas as razes para duvidar da importncia dessa vida social. De qualquer forma, viviam juntos, tinham dinheiro - nessa poca, Lajos era quase rico e Laci s pode mencionar, com um ressentimento pueril, o relgio de ouro e as notas de cem emprestadas, porque Lajos, nos tempos efmeros da abundncia, gastava com todos, e, naturalmente, com o seu compincha -, rodeavam-se de alguns membros esgalgados da juventude dourada do fim-de-sculo feliz e ocioso, e, como pude verificar mais tarde, viveram uma vida de romance. No que tivessem sido dissolutos. Lajos, por exemplo, nunca gostou de vinho, Laci evitava as noitadas. Antes viviam numa espcie de cio caro, complexo e exigente, num cio que pessoas de fora podiam facilmente confundir com uma actividade febril, profunda e decidida, com um modo de viver responsvel, ou, justamente, com "um novo estilo de vida" - era a expresso preferida de Lajos -, para cuja concretizao esses dois jovens de talento se tinham congraado. Na verdade, mentiam e sonhavam. Mas isso s muito tarde percebi.Com Lajos, o novo amigo, entrou nesta casa uma agitao novelesca. Ele olhava para as nossas diverses provincianas e para a nossa maneira de viver com indulgncia tingida de desprezo. Sentamos a sua superioridade36 - 37e esforvamo-nos, assustados, por remediar as nossas falhas. De repente, comemos a "ler", em particular, os autores para cuja importncia Lajos nos alertara primeiro - a "ler", com uma aplicao e uma humildade desmedidas, como se nos preparssemos para um exame decisivo da vida. Mais tarde, viemos a saber que Lajos nunca lera as obras desses autores e pensadores, obras e ideias que s folheara, para que chamava a ateno com nfase, severidade e benevolncia, repreendendo-nos. O seu feitio resultava de imediato, como nos bruxos cruis das feiras. A nossa pobre me foi a primeira a ser apanhada na vertigem. "Lamos" continuamente, sob a influncia de Lajos e em sua honra, e "vestamo-nos" de uma maneira completamente diferente da anterior, e "vivemos a vida social" de maneira distinta da precedente; inclusive, mobilmos de novo a casa. Tudo isto custava muito dinheiro, e ns no ramos ricos. A nossa me esperava por Lajos e preparava-se para a sua visita como para um exame: mastigava obras dos filsofos alemes contemporneos, porque Lajos, uma vez, inquirira, condescendente, se conhecamos um certo B. de Heidelberga. No, como havamos de conhecer. Rapidamente, pusemo-nos a ler as suas to elevadas ideias, um pouco nevoentas, sobre a vida e a morte. At o nosso pai, nessa altura, se encheu de coragem. Bebia menos e controlava-se, em especial se tnhamos convidados, e escondia-se dos olhos inquisidores de Lajos,ocultando a vida triste e remendada. Os convidados, o meu irmo e Lajos visitavam-nos todos os fins-de-semana.Ento, a casa enchia-se de gente palradora. A velha sala de estar transformava-se, momentaneamente, numa espcie de "salo", onde Lajos recebia as pessoas mais interessantes da cidade; pessoas que, at ali, nos pareciam mais suspeitas do que interessantes, sim, e que nunca teramos recebido em nossa casa. Agora, bruscamente, tinham acesso livre casa. O meu pai movia-se, intimidado, entre as visitas dos fins-de-semana usando um casaco coado e a gentileza de antigamente - e, nesses dias, nem se atrevia a acender o cachimbo... E Lajos recebia, concedia audincias, fulminava ou aprovava com o olhar, elevava alguns aos cus, premiava ou condenava ao inferno. Assim continuou por trs anos.Eles no eram, o meu irmo e o seu estranho amigo, simples rapazes inconscientes e mal-educados. No fim do primeiro ano, mesmo um estranho perceberia que Laci estabelecera uma relao de dependncia em relao a Lajos, e assim a minha me, Vilma e, mais tarde, tambm eu. Poderia afirmar, agora, que fui quem mais resistiu a esse feitio cruel, que me mantive lcida e tenaz durante mais tempo; mas porqu cobrir-me com essa pobre vitria? Sim, eu "via" Lajos desde o primeiro instante; mas no me correra a pr, cega e avidamente, ao seu servio? Era to srio e gentil.38 - 39Os estudos universitrios, como cedo noa dariamos conta, abandonara-os, juntamente com Laci; dizia -recordo-me das palavras que pronunciou, de p, ao lado da janela, num fim de tarde, caracis sobre a testa, e como a sua voz soava a desiluso, como quem se resigna a um grande sacrifcio: "Sinto-me obrigado a trocar a silenciosa e fecunda solido do meu quarto de estudo pelas possibilidades, perigosas e turbulentas, do campo de batalha da vida." Falava sempre como se estivesse a ler um livro. Essa declarao comoveu-me e perturbou-me. Sentia que Lajos abandonava a sua vocao no interesse de um objectivo grandioso e um pouco obscuro e prosseguia a sua batalha por algum - provavelmente, pela humanidade -, no com as armas do saber, mas com as da realidade concreta. Tal sacrifcio inquietou-me, porque, na nossa famlia, via-se com bons olhos que os rapazes terminassem os estudos antes de entrarem no "campo de batalha da vida". Mas eu acreditava ser diferente o caminho de Lajos, e diversos do comum os seus meios. Naturalmente, Laci seguiu-o logo no caminho escolhido. No terceiro ano da universidade, abandonaram. Eu ainda era, ento, uma criana. Laci voltaria, mais tarde, ao "mundo do esprito"; com o ltimo crdito da nossa famlia, abriu uma livraria na cidade e, aps projectos iniciais grandiosos, dedicou-se a viver modestamente e a vender livros escolares e artigos de papelaria. Lajos reprovou duramente este passo. Mas depois, quandofalar dele.Jamais conheci com exactido os ideais polticos de Lajos. Tibor, que interroguei muitas vezes a esse respeito, limitava-se a encolher os ombros e dizia que Lajos no tinha nenhuma convico poltica, era simplesmente um impostor, que procurava aventura l onde os homens repartiam o poder. Essa acusao podia ser correcta; e, todavia, no era rigorosamente correcta. Eu intua que Lajos estava disposto a alguns sacrifcios pela humanidade, ou pela ideia de humanidade - porque sempre gostara mais das ideias do que da realidade, provavelmente, porque as ideias so menos perigosas e mais fceis de atingir -, e que, quando "procurava aventura" na poltica, estava disposto a arriscar o plo, no tanto pelos despojos, antes pela seduo da aventura, para sentir e sofrer o seu pathos por inteiro.Conhecia Lajos como algum que se inaugura por uma mentira e que, no meio das suas mentiras, se extasiava e chorava; continuava a mentir com as lgrimas nos olhos, e, por fim, para grande surpresa de todos, j dizia a verdade com a desenvoltura com que, no incio, mentira... Esta capacidade, naturalmente, no o impediu de apresentar-se durante dcadas como paladino de vrios partidos extremistas de sinal oposto; e, a breve trecho, expulsavam-no de todos. Por sorte, Laci no o acompanhou nessa via. Mantivera-se no "mundo do esprito", na atmosfera40 - 41um pouco emoliente dos artigos de papelaria e dos amarelentos livros escolares em segunda mo. Mas Lajos perdeu-se no meio desses perigos; ningum saberia dizer exactamente que "perigos" eram esses, e, de longe, ns vamo-lo sempre como algum que vivesse numa paisagem de raios e troves, ao alcance da ira divina.Quando Vilma morreu e se deu a ruptura entre ns, Lajos afastou-se do horizonte familiar. Ento, regressei eu aqui, a esta pobre casa e meu ltimo refgio. Nada me esperava, excepto uma cama e um po seco. Mas quem chega de uma tormenta feliz, pois tem um tecto por cima da cabea.42VII. Este tecto - ao menos, no princpio, assim me pareceu - estava bastante decrpito. Quando o meu pai morreu, Tibor e Endre, amigos da famlia, examinaram ao pormenor o testamento. Endre, notrio, procedia tambm a este exame por dever de ofcio. Nos primeiros tempos, a nossa situao econmica parecia desesperada. O pouco que restara aps as ltimas desgraas - a administrao ostensivamente negligente e mal-humorada do meu pai, a doena da minha me, o casamento e morte de Vilma, o financiamento do negcio de Laci - esfumava-se da famlia atravs do sistema invisvel de vasos capilares de Lajos. Quando j no podia encontrar mais dinheiro fresco, retirou da velha casa objectos - objectos de "recordao", dizia, que coleccionava com a curiosidade e a paixo tpicas de uma criana. Algumas vezes, mais tarde, defendi-o perante Endre e Tibor. "Brinca", dizia eu, quando o acusavam.43"H algo de infantil no seu carcter. Gosta de brincar." Mas, nestes Endre protestava energicamente. Os meninos brincam com barquinhos, ou berlindes, dizia, irritado; Lajos, porm, uma "eterna criana", que brinca gostosamente com letras de cmbio. No disse mais, mas entrevi, nas suas palavras, que essas letras de cmbio, as letras de cmbio de Lajos, no as considerava jogos completamente inocentes e incuos. O facto que, aps a morte do meu pai, foram aparecendo, cada vez mais amide, letras que, supostamente, ele passara a Lajos; mas eu nunca pus em causa a autenticidade dessas assinaturas. Depois, tambm isso perdeu importncia, tal como o resto, no meio do cataclismo geral.Quando me apercebi de que j no tinha nada no mundo - ou somente Nunu, com quem vivia numa estranha unio, como o visco na rvore, e sem nenhuma de ns saber quem era a rvore e quem era o parasita -, Endre e Tibor tentaram salvar-me qualquer coisa do desastre geral. Aconteceu, por essa poca, que Tibor quis casar comigo. A, gaguejei, rechacei-o; mas no estou segura da verdadeira razo dessa negativa. No posso assegurar que, j ento, em segredo, esperava por Lajos, esperava alguma notcia dele, uma mensagem, talvez um milagre. Lajos estivera sempre rodeado de um halo de mistrio: efectivamente, no me parecia impossvel que, um dia, ele aparecesse, talvez de modo teatral, disfarado de Lohengrin44e atacasse uma qualquer ria sublime mas depois ua parecera como por milagre, como se tivesse enfiado na cabea um chapu encantado. Durante anos, no ouvi falar dele.No ficou mais nada seno a casa e o jardim. Sobre a casa pesava uma pequena hipoteca. Eu tive sempre uma fibra de resistente, orgulhosa e prtica. Na altura, quando fiquei sozinha, tive de admitir que vivera nas nuvens, at ali - numa espcie de nuvens perigosamente carregadas de electricidade -, e quase nada sabia, de exacto e fivel, acerca da realidade terrena. Nunu disse que o jardim e a casa eram suficientes para ns. Ainda hoje no entendo como foram "suficientes". verdade que o jardim era grande, estava cheio de rvores de fruta, e Nunu baniu as flores decorativas e romanescas, os caminhos serpenteantes cobertos de saibro vermelho, a cascata de romance com rochas de musgo, e aproveitou cada palmo de terreno com uma aplicao to gulosa e prtica como se cuida da terra e dos jardins no Sul rochoso, onde cada metro quadrado de solo argiloso rodeado de pedras, protegendo-o das tempestades e de intrusos. Esse jardim era o que nos restava. Numa certa altura, Endre e Tibor aconselharam-nos a alugar alguns quartos da casa e a cozinhar para os inquilinos. O projecto, estranhamente, naufragou perante a resistncia de Nunu. No disse porqu, nem deu explicaes, s percebi, pelas suas palavras, e mais pelos seus silncios, que no estava45disposta a admitir estranhos em casa. Nunu gere tudo de maneira diferente, "resolve" de maneira diversa da que se espera dela. Duas mulheres ss e inbeis podem, segundo o senso comum, abrir uma casa de modista, uma doaria, podem ocupar-se na costura - mas Nunu no pensava nessas coisas. Demorou a aceitar que eu desse aulas de piano aos filhos de algumas famlias conhecidas.Bem ou mal, vivamos... Agora, j sei que foi a casa a manter-nos, o jardim, tudo o que o meu pobre e aventuroso pai me deixou. S isso nos restava, s isso tnhamos. A casa dava-nos um tecto; com os seus velhos mveis, ainda que estragados, oferecia-nos um lar. O jardim dava-nos alimentos, nem mais nem menos do que necessitavam dois nufragos. O jardim foi como se crescesse nossa volta, porque lhe dvamos tudo, trabalho e esperana, esse jardim, s vezes, parecia uma verdadeira propriedade onde poderia viver, sem preocupaes, quem nele ancorasse a vida. Um dia, Nunu decidiu plantar amendoeiras nas traseiras do jardim, num pedao de terreno arenoso de meio hectare. Estas amendoeiras inclinaram-se sobre as nossas vidas qual mo misteriosa que lana man do cu aos famintos. Todos os anos as rvores davam-nos frutos, que Nunu vendia em grande segredo e ar festivo; e com o dinheiro da colheita vivamos menos mal, pagmos, at, uma dvida da hipoteca e, algumas vezes, ainda sobrava para Laci. Durante muito tempo, no percebi;46mas Nunu s se ria e calava. Por vezes, eu estacava diante do nosso bosque de amendoeiras e olhava-o, com um espanto supersticioso. Como se tivesse acontecido um milagre, na areia, na nossa vida. Algum olhava por ns! -pressentia.Plantar amendoeiras fora ideia do meu pai; mas o meu pai j estava cansado para concretizar a sua ideia. Uma vez, dissera a Nunu, dez anos antes, que a parte de trs do jardim, arenosa, era boa para amendoeiras. O pai no se importava com as possibilidades que oferece a vida, e, aos olhos de estranhos, fora ele quem deixara escorregar das mos e delapidara o exguo patrimnio da famlia. Todavia, aps a sua morte, convimos que, sua maneira silenciosa e ressentida, deixara em ordem tudo o que conseguira salvar: no foi ele a hipotecar a casa, mas a mam, a pedido de Lajos, o jardim foi ele quem no-lo conservou, ele que protestou, at ao ltimo minuto, contra a mudana. Quando Nunu e eu ficmos sozinhas, no fizemos outra coisa que acomodar-nos no jardim, que meu pai construra. Restaurmos a casa graas a Endre, que nos conseguiu um emprstimo vantajoso. Tudo isso aconteceu sem que o programasse, sem particulares intenes ou um objectivo de qualquer espcie. Um dia, apercebemo-nos de que tnhamos um tecto por cima de ns, que eu, de vez em quando, podia comprar tecido para fazer um vestido, que Laci podia alugar livros que eu precisasse de ler47e que a solido em que nos encerrramos depois do cataclismo, como animal ferido no seu buraco, se dissolvera nossa volta: inclusive, j tnhamos amigos, e, nos domingos noite, a casa ressoava de vozes de homens conversa, as pessoas concediam-nos, a mim e Nunu, um lugar no mundo, consignavam-nos um espao no recanto das suas mentes, onde poderamos viver as nossas vidas sem perturbao. Nada era assim to desesperado e insuportvel na vida como eu imaginara. Lentamente, as nossas vidas retomaram a actividade: tnhamos amigos, sim, at tnhamos inimigos, como a me de Tibor, que temia pelo filho, como a mulher de Endre, que temia pelo marido, com um cime infundado e ridculo da nossa casa. Por vezes, a vida em casa e no jardim era como se fosse uma vida verdadeira que interiorizasse objectivos e tarefas. S que tudo isso no tinha nenhum sentido; podia continuar assim durante dcadas, mas no teria protestado, se me intimassem a largar tudo de hoje para amanh. Era uma vida lisa e sem riscos. Lajos corroborava Nietzsche, que advoga viver perigosamente. Ele, contudo, receava o perigo: lanava-se em cada aventura, fosse aventura poltica ou sentimental, com fogosa eloquncia, mas provia-se de armas secretas, com mentiras defensivas previamente seleccionadas, misturando nos bolsos artigos de cosmtica e cartas de assunto escandaloso para os adversrios. Mas, at certo tempo, a minha vida foi, efectivamente, "perigosa", prxima da de Lajos. Agora, 48que esse perigo passara, dava-me conta de que nada ocupava o seu lugar; percebia que esse perigo era o nico e verdadeiro sentido da minha vida.49VIII.Entrei em casa, coloquei as dlias nas jarras e sentei-me na varanda com os meus hspedes. Laci costuma vir todos os domingos de manh para tomar o pequeno-almoo. Quando assim , pe-se-lhe a mesa na varanda ou, se o tempo est mau, no antigo quarto das crianas, que, agora, usamos como sala de estar. Colocamos na mesa as velhas chvenas de porcelana e o servio de prata ingls, e as natas nessa caneca de prata que, h cinquenta e dois anos, um generoso parente de gosto duvidoso lhe ofereceu no baptizado. No copo est gravado em cursivo o nome do meu irmo. Ali estavam, na varanda: Tibor fumava cachimbo e, embaraado, olhava o jardim. Laci devorava a comida, como um adolescente; era como se este pequeno-almoo dominical, a que jamais renunciaria, lhe fizesse reviver gestos da infncia.- Tambm escreveste a Endre? - disse Laci, com a boca cheia.51- o que escreveu? - perguntei, surpreendida.- Disse-lhe para ficar mo, que no se ausentasse hoje. Porque precisa dele.- De Endre? - perguntei, e ri-me.- Tibor, no verdade? - perguntou Laci, que estava sempre a precisar desta testemunha fivel. Laci j no confiava nem na suas prprias palavras.- verdade, verdade - disse Tibor, mal-humorado. - Como queira. Talvez - disse, e o rosto iluminou-se, como se tivesse encontrado, por fim, a nica resposta digna e honrada pergunta -, talvez queira saldar as dvidas.Reflectamos. Eu queria acreditar em Lajos e agora que Tibor exprimira esta opinio eu prpria no a sentia j impossvel. Por instantes, invadiu-me uma alegria selvagem e uma f ardente. Pois claro, se regressa vinte anos depois! Aqui, onde - para qu tambm embelezar? - nos deve a todos alguma coisa, dinheiro, promessas, juramentos! Aqui, onde cada encontro seu est cheio de sofrimento, de embaraos e de tenses: regressa para enfrentar o passado e cumprir a palavra dada! Que espcie de fora e esperana me motivavam nesse instante? Subitamente, eu j no receava o nosso encontro. Uma pessoa no regressa, transcorridas dcadas, ao cenrio dos seus fracassos. Demorou anos a preparar-se para esta difcil viagem! - pensava, agora, compassiva. Preparou-se durante anos, e quem sabe quantos precipcios e caminhos pedregosos no percorreu,52at se decidir. Bruscamente, eu despertava. Essa esperana descabelada, afastando qualquer suspeita razovel e mesquinha, essa luz, semelhante ao nascer do Sol, que, para mim, antecedia a chegada de Lajos, dissipou em mim todas as dvidas. Lajos volta com as crianas, vem j a caminho, est perto. E ns, que o conhecemos, que sabemos das suas fraquezas, temos de nos preparar para a grande prestao de contas, quando Lajos devolver a todos o que deve: juras e letras de cmbio! Nunu, que viera, silenciosamente, at porta, e ouvia a conversa com as mos debaixo do avental, dizia, entretanto, serena:- Endre manda dizer que est quase a chegar. Diz que Lajos o convocou na qualidade de notrio.Esta informao reavivou as minhas esperanas. Lajos precisava de um notrio! Conversmos para trs e para a frente. Laci contou, gesticulando, emocionado, que j por toda a cidade corria a notcia da sua chegada. A noite, no caf, um alfaiate aproximara-se dele e falara-lhe de contas antigas, contas de um fato que Lajos no pagara. Um conselheiro municipal referira bancos de cimento que, quinze anos antes, lhe propusera Lajos; at lhe deram um adiantamento, mas os bancos nunca mais chegaram. Estas notcias, agora, j no feriam as minhas recordaes. O passado de Lajos estava cheio de promessas e de iniciativas irresponsveis. Desta feita, eu via tudo isso como uma irresponsabilidade tipicamente infantil. Entretanto,53superramos alguns momentos difceis na vida; Lajos passava dos cinquenta anos, j no brincava com as palavras, vinha a dar a cara pelo passado, dirigia-se j para c. Retirei-me para vestir algo decente e festivo. Laci devaneava:- Pedia sempre qualquer coisa. Lembras-te, Tibor, quando o viste pela ltima vez, depois de uma grande discusso, e lhe disseste na cara que no tinha carcter, lhe enumeraste os crimes, tudo o que fizera famlia e aos amigos, lhe chamaste velhaco e ele desatou a chorar, e nos abraou a todos, e, despedida, ainda te pediu dinheiro? Cem, ou duzentas? Lembras-te?...- No me lembro - disse Tibor, penosamente, envergonhado.- Mas sim! - exclamou Laci. - E, como no lhe deste, largou a correr, fora de si, como quem se atira para a morte. Estvamos aqui mesmo, neste jardim, s que dez anos mais novos, e falvamos de Lajos. Ele parou no porto e, calma e sossegadamente, pediu-te vinte - "uns trocos", disse -, porque no tinha dinheiro para o bilhete de comboio! Ento, deste. Um homem assim eu nunca vi! - disse Laci, entusiasmado; e continuou a comer.- Dei, dei - disse Tibor, embaraado. - Porque no havia de dar? Nunca pude entender porque se no h-de dar, quando se tem. E, no caso de Lajos, isso nem era o mais importante - disse, pensativo, e, mope, olhava para o tecto.54- O dinheiro no tinha importncia para Lajos? -perguntou Laci, estupefacto. - como se dissesses que o sangue no tem importncia para o lobo.- No compreendes - disse Tibor, e corou. Corava sempre que lutava contra o seu papel de juiz, contra o papel de algum condenado a julgar; tinha de dizer sempre a verdade, mesmo sabendo que no correspondia ao conceito de verdade em que crem os homens, e qual ele, o juiz, jurou fidelidade. - No compreendes - repetiu, obstinado. - Pensei muito sobre Lajos. A inteno tudo. Mas as intenes de Lajos no so infames. Sei de um caso... Certa vez, numa brincadeira, pediu-me dinheiro, uma quantidade enorme... e, por acaso, eu soube que, na manh seguinte, entregou essa quantidade, intacta, a um empregado meu, que estava em apuros. Espera, ainda no terminei. Naturalmente, no um acto herico algum mostrar-se generoso com o dinheiro de outrem. Mas, nessa altura, Lajos tinha uma necessidade imperiosa de dinheiro, tinha letras para pagar, como dizer... em resumo, letras urgentes. Aquela quantidade que pedira emprestada, bbedo, e, no dia seguinte, lcida e friamente dera a um desconhecido podia t-lo ajudado. Compreendes?- No - disse Laci, sincero.- Eu julgo ter compreendido - disse Tibor; e, como habitualmente, quando se arrependia das suas palavras, calou-se, renitente.Nunu disse, ainda:55- Tende cuidado, porque ele vem por dinheiro. Mas intil ter cuidado. Tibor h-de voltar a dar-lho.- No, eu nunca mais - disse Tibor, e ria-se, negando com a cabea.Nunu encolheu os ombros:- Claro que sim. Como na ltima vez. Qualquer coisa. Uma nota de vinte, uma vez mais. preciso dar-lha.- Mas porqu, Nunu? - perguntou Laci, com uma profunda admirao e inveja.- Porque ele o mais forte - respondeu Nunu, com indiferena. E regressou cozinha.Enquanto me vestia, frente ao espelho, fui obrigada a apoiar-me; tive uma viso. Vi o passado, mas com a fora com que se v a realidade do presente. Vi o jardim, o mesmo jardim, onde, agora, espervamos Lajos - estvamos debaixo do enorme freixo, vinte anos mais novos, e os nossos coraes enchiam-se de desolao e ira. Voavam pelos ares palavras fortes e colricas, quais moscardos outonais. Era tambm Outono, em finais de Setembro. O ar perfumava-se, vaporoso. Tnhamos vinte anos a menos, parentes, amigos e conhecidos de vista, e Lajos estava no meio de ns, como ladro apanhado em flagrante. Estava tranquilo, pestanejava, tirava os culos de vez em quando, limpando-os cuidadosamente. Encontrava-se sozinho, no meio de um crculo inquieto, com a tranquilidade de quem sabe que perdeu a jogada, de que tudo se desvelou, de que,56agora, j no pode fazer mais nada, seno estar ali e esperar, pacientemente, que lhe leiam a sentena. E, subitamente, Lajos desaparece do crculo. Ns continuvamos a viver, quais autmatos, uma vida de figuras de cera. Como se s vivssemos de maneira figurada: a verdadeira vida a luta, a clera, que Lajos em ns provocava.Agora, vejo-o, no meio do velho crculo, no velho jardim: todos recomeamos a viver, com as velhas paixes. Pus o meu vestido lils. Como se vestisse um dos meus antigos disfarces, o disfarce da vida. Senti que tudo o que caracteriza um ser humano - a sua fora e comportamento - evoca nos adversrios a memria de certas sensaes. Todos pertencamos a ele, vivamos em aliana contra ele, e, agora que se aproxima, outra vez vivemos de maneira mais agitada, mais perigosa. Ali estava eu, com os meus pensamentos, no meu quarto, e com o velho disfarce, frente ao espelho. Lajos trazia de volta o tempo, a experincia intemporal da vida. Eu sabia que ele nada mudara. Sabia que Nunu tinha razo. Sabia que nada podamos obrar contra ele. E tambm sabia que eu ainda no tinha ideia da verdade da vida, da minha prpria vida e da dos demais, e que s atravs de Lajos poderia saber a verdade - sim, atravs do mentiroso Lajos. O jardim enchia-se de conhecidos. Algures, um automvel buzinou. De repente, sentia-me estranhamente calma; sabia que Lajos chegara, porque no podia fazer outra coisa,57e que amos receb-lo, porque no podamos fazer outra coisa, e que tudo isso era, justamente, perturbador, desagradvel e inelutvel, quer para ele, quer para ns.58IX.MAS A realidade, esse estranho duche gelado, acordou-me das minhas vises. Lajos chegara e comeava o dia, o dia da visita de Lajos, que Tibor, Laci e Endre iriam contar at hora da morte, confundindo os discursos, corrigindo as recordaes, evocando e negando as imagens da realidade. Gostaria de contar fielmente os acontecimentos desse dia. Tardei em compreender o verdadeiro sentido dessa visita. Comeou como um nmero de circo ambulante. E terminou - no, o final e a partida no os posso comparar a nada. Terminou de maneira simples. Lajos foi-se embora, o dia fechou-se, e uma parte das nossas vidas. Continumos a viver.Lajos chegou com um verdadeiro squito. J o automvel, que parou fronte casa, chamou a ateno dos vizinhos. Era um automvel vermelho e extraordinariamente grande, como um autocarro. O primeiro a sair, como me contaram mais tarde - porque perdi o momento da chegada,59esse momento to custosamente esperado, e s posso reconstru-lo graas s descries fantasiosas de Laci, cautelosamente redimensionado por Tibor -, foi um jovem desconhecido, vestindo estranhamente, com um co de plo amarelo e focinho leonino nos braos. O co, de uma apreciada raa do Tibete, estava furioso e pronto a morder. Depois, desceu uma senhora idosa, mas em roupa juvenil, e pintada, num casaco de pele, seguida de Eva e Gbor, e, por fim, do lado do condutor, Lajos. A sua chegada confundiu os presentes; ningum se apressou a saud-lo. Estavam no jardim e observavam a mquina vermelha, imveis. Lajos conversou com o condutor e entrou no jardim, olhou em volta, reconheceu Tibor e, sem uma saudao, disse-lhe:- Tibor, d a uma nota de vinte, por um instante. O chofer quer pr leo e no tenho trocado.E, porque dissera, rigorosamente, o que dele esperavam nesse momento, ningum protestou, ningum se escandalizou; como enfeitiados, ali permaneceram, no jardim, onde o tinham visto, pela ltima vez, h vinte anos, debaixo da mesma rvore e da mesma luz; e, porque os saudava com os mesmssimos termos com que se despedira, compreenderam que tudo respondia a certas leis; e calaram-se. Tibor, sem uma palavra, deu-lhe a nota. Ficaram ainda um pouco em silncio, como os actores de um filme mudo. E Lajos pagou ao condutor, regressou ao jardim e apresentou os recm-chegados. Assim comeou.60Mais tarde, interroguei-me muitas vezes se tudo aquilo no fora premeditado, com o seu qu de teatral. Creio que sim; s que essa teatralidade no era consciente. De outro modo, Lajos no saberia causar efeito; antes ou depois, t-lo-iam rechaado, como um prestidigitador, um comediante de baixa estirpe, algum que talvez entretenha o seu pblico por algum tempo, talvez o escandalize, mas que dele termina cansado, virando-lhe as costas, porque intenes e truques resultam aborrecidos. Mas a Lajos no viravam as costas, porque as suas pequenas actuaes estavam cheias de surpresas, que tambm o divertiam, no vinham preparadas, e provocavam-lhe, de bom grado, no momento mais hilariante, o riso e o aplauso a si mesmo. Lajos citava muitas vezes versos de uma pea de Shakespeare que comea assim: "O mundo inteiro teatro." Ele actuava nesse teatro e fazia sempre de protagonista nas cenas mais importantes, sem nunca preparar o texto. Agora, no instante da chegada, dirigia o espectculo, recitava e declamava, com evidente satisfao. Apresentou os dois filhos numa entoao segura e de difcil qualificao e, todavia, com gestos dramticos insinceros, como se fossem uns rfos.J as suas primeiras palavras soavam em tom acusatrio, acusatrio e reivindicativo. Eis os rfos! -deste modo apresentou os dois filhos a Tibor e Laci, filhos que, entretanto, haviam crescido, Gbor terminara engenharia, engordara, era um jovem lento e taciturno,61sempre a pestanejar e liva j uma senhora, muito citadina, roupa desportiva, ltima moda, com duas raposas volta do pescoo, um sorriso algo irnico, ressentido e expectante. Eis os rfos! - diziam, todavia, os gestos e olhar de Lajos, ao apresentar os filhos de Vilma, que, efectivamente, eram rfos, rfos de me, mas eram mais fortes do que as adversidades do destino: tinham crescido, e, da profundidade dos tempos, vinham ter connosco, fazendo gala de um aspecto fsico tranquilizador. difcil explicar isso. Estvamos confusos, e mais tarde tambm, diante dos rfos, com os olhos no cho. Lajos mostrava-os de todos os lados, de frente e de lado, como se fossem umas crianas esfarrapadas que tivesse encontrado na rua, abandonadas por Deus e pelos homens, e como se algum, ali, em casa - Tibor, ou Nunu, ou, se calhar, eu -, fosse responsvel pela sua orfandade. Essa acusao no se exprimiu por palavras, mas era assim que nos apresentava Eva e Gbor desde o primeiro momento. E o mais estranho que ns, diante daqueles dois jovens bem tratados e, visivelmente, bem vestidos, alis, suspeitosamente maduros e bem informados, que da Lua caam no meio das nossas vidas, ns, ali, no jardim, sentamo-nos, efectivamente, algo responsveis por eles - responsveis no sentido prtico do termo, como se no tivssemos partilhado com eles o nosso po e o nosso afecto, a que tinham direito e de que necessitavam. Os dois rfos mantiveram-se tranquilos,62 espera, com o olhar de quem j se habituou s representaes de Lajos, sabendo que no podiam evitar tais espectculos e que preciso esperar enquanto no se cumpre todo o programa e no irrompem os aplausos. Lajos, aps uma breve pausa a armar ao efeito, quando j estvamos cheios de remorsos pelos "rfos", tossiu duas vezes, segundo velho costume, e lanou de imediato os seus nmeros de prestidigitao. Todas essas demonstraes lhe ocuparam a manh inteira. Trabalhou com fervor; via-se que dava o mximo e o melhor de si, oferecendo, efectivamente, quanto podia, com todo o corao, com verdadeiras lgrimas e beijos ardentes, e ofertava, com espantosa fora evocativa, singulares nmeros de outrora; estavam todos fascinados com essa capacidade. Nunu tambm. Durante a primeira hora, nem conseguimos abrir a boca. Admirvamos a sua interpretao, sustendo a respirao. Beijou Nunu, e uma segunda vez, na face direita e na esquerda, e, na sequncia, tirou da carteira a missiva de um secretrio de Estado; o alto funcionrio informava Lajos, seu caro amigo, ter recebido a carta em que lhe solicitava energicamente a nomeao de Nunu como empregada dos correios e prometia satisfazer o pedido. Tambm eu vi o escrito; estava redigido em papel oficial, com carimbo e marca de gua, e, no canto superior esquerdo, era possvel ler esta inscrio em caracteres de imprensa: "Secretrio de Estado". A carta era autntica e original; de facto,63Lajos fizera alguma coisa para ajudar Nunu. Ningum referiu, todavia, que ele prometera interessar-se por Nunu quinze anos antes, de ningum se ouviu que Nunu j andava em setenta anos, esquecera o sonho de ser empregada dos correios e nem se sentia capacitada para tal tarefa, nem lhe era permitido pela idade empregar-se num trabalho de tanta responsabilidade, e Lajos chegava tarde com esse gesto nobre; em rigor, atrasara-se quinze anos. Mas, agora, ningum pensava nisso. Rodemo-los, a Lajos e Nunu, com os olhos a brilhar e uma sensao de alvio e triunfo. Tibor olhava em volta, orgulhoso, e at os culos fulgiam, de alegria: "A est, enganmo-nos! Lajos, apesar de tudo, manteve a sua palavra!", lia-se no seu olhar. Laci sorria, confuso; mas tambm ele estava visivelmente orgulhoso de Lajos. Nunu chorava. Fora, durante trinta anos, uma empregada auxiliar nos correios da sua terra, no norte do pas; durante trinta anos esperara em vo que a metessem no quadro; e quando, com o tempo, se desvaneceu a esperana, mudou-se para nossa casa e renunciou ao sonho da colocao. Agora, em lgrimas, comovida, lia aquelas linhas, em que se citava o seu nome; o secretrio de Estado ainda nada prometia de seguro, limitava-se a luzir a esperana de que iria ocupar-se do caso de Nunu com o mximo empenho, "examinando todas as possibilidades". Nada disto tinha j um significado prtico. Mas Nunu ainda chofrava e, num fio de voz, disse:64- Obrigada, meu querido Lajos. Talvez seja tarde. Mas estou muito feliz.- No tarde - disse Lajos. - Hs-de ver que no tarde.Dizia-o com tanta segurana como se no s tratasse por tu o secretrio de Estado, mas ainda Deus Nosso Senhor e pudesse resolver tudo, inclusive, questes ligadas velhice e morte. Escutvamos, comovidos.Logo desataram todos a falar; chegou o tio Endre e, um pouco tmido e embaraado, teve-se em p, ao lado do banco de pedra, como quem no estava ali de sua livre vontade, mas convocado por Lajos, "a ttulo oficial". Lajos dava ordens. Fez as apresentaes e recomps os grupos, improvisou pequenas cenas, cenas de reencontro, cenas jubilosas e emocionantes de reconciliao - todas com meias palavras, escondendo o verdadeiro significado e contedo dos acontecimentos atrs de uma atmosfera pattica e teatral da imagem de unidade; e todos lhe obedecamos, sorrindo, enleados, mesmo o tio Endre, com a sua pasta debaixo do brao, cujo contedo nunca chegmos a ver, e que, provavelmente, s levava como smbolo para se proteger, assim mostrando que, por si, no teria vindo se no fosse para cumprir obrigaes. E via-se que todos estavam satisfeitos por rever Lajos, satisfeitos por poderem assistir a este encontro. No me espantaria se, para l do cancelo do jardim, se reunisse pequena multido e cantasse qualquer coisa. Mas a atrapalhao geral65embargou-nos a tal ponto que todos os pormenores se dissolveram nessa mar de emoes. Mais tarde, ao cair da noite, quando despertmos, pasmvamos, incrdulos, como se fssemos testemunhas enfeitiadas no nmero de um faquir hindu; o faquir lanara a corda para o cu, trepara por essa corda e desaparecera da nossa vista, entre as nuvens. Olhmos para o cu, onde o procurmos; e vimos, com surpresa, que j aqui, na terra, se inclinava para ns e pedia o seu bolo.66X.Serviu O almoo, os convidados sentaram-se na varanda, deram-se a conhecer e comeram, nervosos. Todos sentiam que as emoes s eram controladas pelo fascnio que a fora dos sortilgios de Lajes exercia. Como se as palavras de cada um fossem ditadas pelo papel que ele lhes designava. E cada hora tinha o seu contedo artificial; "primeira cena": o almoo; mais tarde, "visita ao jardim". Lajos, por vezes, com olhar de realizador, percebia sinais de cansao em algum dos grupos e batia as mos, marcando o ritmo. Mas, depois, ficou sozinho comigo no jardim. Da varanda ouvia-se a voz exaltada de Laci, dando livre curso ao seu entusiasmo, e encantado, porque fora o primeiro que logo se lhe rendera, esquecera as dvidas, comeando a regozijar-se, feliz e desmemoriado, sob os raios do fluxo hipntico emanado da presena de Lajos. A primeira frase que Lajos me dirigiu soou assim:67.- Agora, pomos tudo em ordem.A esta frase o meu corao comeou a bater forte e agitadamente. No respondi. Estava diante dele, debaixo da rvore, ao lado do banco de pedra, onde tanto me mentira, e, por fim, observava-o bem.Havia nele algo de triste. Algo de um fotgrafo, ou de um artista envelhecido, que j no conhece as novas manhas e ideias do presente e se aferra, obstinado e ressentido, aos velhos truques, s prticas afveis de prestidigitador. Havia nele, tambm, algo de um velho domador de feras que j nem sequer os seus animais temem. At a sua vestimenta era estranhamente antiquada, como algum que se esfora teimosamente em seguir a moda, mas se v inibido por uma espcie de resistncia interior que o impede de se mostrar elegante, ou na moda, tal como julga conveniente e como gostaria. A gravata, que era um tudo nada berrante para estar de acordo com a roupa, com a sua personalidade e com a estao do ano, conferia-lhe um vago aspecto de aventureiro. Vestia um fato claro, um traje de viagem largo, desses da moda, que, nas revistas ilustradas, usam os produtores de cinema estrangeiros em trnsito. Tudo nele tinha o seu qu de novo e, ao mesmo tempo, seleccionado; os sapatos e o chapu tambm. E em tudo havia algo de impossvel. Apertava-se-me o corao. Se viesse no fio, gasto e sem esperana, talvez no me provocasse essa compaixo barata: cumpriu-se o destino, penso. Mas essa galhardia vergonhosa68e desesperada enchia-me de comiserao. Olhava para ele e, subitamente, deu-me pena.- Senta-te, Lajos - disse-lhe. - O que queres de mim?Sentia-me tranquila e benevolente. J no tinha medo dele. Este homem um falhado, pensei; e no senti que este pensamento me satisfizesse, no senti mais nada, s comiserao, uma profunda e humilhante comiserao. Como se me inteirasse de que ele pintava o cabelo, ou qualquer outra coisa, igualmente despropositada: teria gostado de o invectivar, pelo passado, pelo presente, severamente, mas sem excessivo rigor. De repente, senti-me muito mais velha do que ele, e mais madura; Lajos parara num estdio do desenvolvimento, fizera-se velho sem perder o esprito goliardesco dos estudante de leis, que no especialmente perigoso e - o que , talvez, mais triste - tambm no leva a lado nenhum. Os olhos eram lmpidos, de cinza e irresoluo, como antigamente, quando o vi pela ltima vez. Fumava os cigarros por uma longa boquilha - as mos, de veias inchadas, tinham envelhecido estranhamente, e estavam sempre a tremer - e tambm ele me observava atentamente, to cuidadosa e serenamente como se soubesse que, desta vez, todos os seus expedientes eram inteis, que eu conhecia os seus nmeros, conhecia os segredos do seu ofcio, e qualquer coisa me dizia que, por ltimo, ele tinha de me responder, com ou sem palavras; mas agora unicamente com a verdade... Naturalmente, inaugurou-se com uma mentira:69- Quero pr tudo em ordem - repetiu, mecanicamente.- O que queres tu pr em ordem?Olhei-o nos olhos e desatei a rir. Ele no pode estar a falar a srio! - pensei. Transcorrido um certo tempo, nada se pode "pr em ordem" entre duas pessoas; compreendi essa verdade sem esperana naquele instante, quando nos sentmos, ali, no banco de pedra. O homem vive, e corrige, ajusta, edifica, e destri, algumas vezes, a sua vida; mas, passado tempo, d-se conta de que o todo, tal como est, por fora dos erros e do acaso, imodificvel. Lajos, aqui, nada podia fazer. Quando algum emerge do passado para anunciar, em voz comovida, que quer pr "tudo" em ordem, s podemos lamentar e sorrir das suas intenes; o tempo j tudo "ps em ordem", sua estranha maneira, da nica maneira possvel. Respondi:- Deixa l, Lajos. Naturalmente, estamos todos felizes por ver... os meninos, e tambm a ti. No sabemos dos teus projectos, mas estamos felizes por estares de novo connosco. No falemos do passado. Tu no deves nada a ningum.Ao dizer isto dei-me conta de que tambm eu me deixara arrastar pelo momento; tambm eu dizia uma espcie de "palavras introdutrias", cujo verdadeiro contedo eram mentiras. S um excesso de sentimento e um estado de confuso podiam levar-me a afirmar que o passado no existia e Lajos "nada devia a ningum".70Ambos percebemos o meu tom de falsete e baixmos os olhos, fixando os calhaus. O tom em que inicimos a conversa era demasiado elevado; elevado, vibrante e falso. Subitamente, apercebia-me de que comeava a discutir de modo no muito consequente, mas, ao menos, com palavras verdadeiras, apaixonadas, que em vo tentava dissimular:- Provavelmente, no vieste s por isso - murmurou, porque receava que, na varanda, onde a conversa esmorecia de quando em vez, como atentando em ns, ouvissem as minhas palavras.- No - disse, e tossiu. - No vim s por isso. Eszter, preciso de falar contigo uma ltima vez na vida.- Eu j nada tenho - disse, com involuntria audcia.- Eu j no preciso - respondeu; e no pestanejou. -Agora, sou eu a oferecer-te. V, passaram vinte anos, vinte anos! Outros vinte anos assim no teremos na vida; estes talvez sejam os ltimos. Em vinte anos tudo se torna mais claro, transparente, compreensvel. J sei o que aconteceu e tambm porque aconteceu.- Que odioso tudo isso - disse, com voz rouca. -Odioso e ridculo. Aqui estamos ns sentados, no banco, pessoas que, um dia, tiveram algo em comum, e falamos do futuro. No, Lajos, no existe nenhum futuro; quero dizer, para ns dois. Desamos terra. H qualquer coisa que tu no conheces, uma espcie de dignidade humilde, a dignidade de viver. Chega de humilhaes. J uma humilhao falarmos do passado.71U que queres? O que te vai na cabea? Quem so estes desconhecidos? Um dia, preparas a mala, renes pessoas e animais e apresentas-te, em grande pompa, com as palavras de antigamente, como Deus a falar do cu... mas, aqui, j te conhecem. J te conhecemos, meu amigo.Falei com tranquilidade, com uma solenidade ridcula, e pronunciava cada palavra de modo decidido, como quem tem um discurso preparado. Na realidade, como evidente, no tinha nada preparado. No acreditava mesmo nada que algo, aqui, se pudesse "pr em ordem", nem desejava atirar-me ao pescoo de Lajos, ou, to-pouco, discutir com ele, O que queria eu? Teria gostado de me mostrar indiferente. Aqui est ele, chegou, isso tambm faz parte dos factos estranhos da vida, quer alguma coisa, est a magicar alguma, mas vai-se logo embora e ns continuaremos a viver como at aqui. J no tem poder sobre mim! - sentia eu, e, com segurana e superioridade, olhei para ele. J no tem nenhum poder sobre mim, no sentido sentimental de antes. Mas, simultaneamente, apercebia-me de que a excitao que me embargara nas primeiras frases da nossa conversa se parecia a tudo menos a "indiferena"; dava-me conta de que a emoo com que me dirigia a Lajos era sinal de que havia entre ns uma relao, embora no to romntica, nem to dolente, nem to sonhadora como no passado, sem a memria de um lugar que nos iluminasse. Falvamos da realidade.72E, como se fosse uma urgncia, aps tanta nvoa e obscuridade, agarrar-me realidade, logo respondi, sem escolher as palavras:- Tu no me podes dar nada. Levaste tudo contigo e tudo arruinaste.Respondeu o que eu esperava:- verdade.E olhou-me com tranquilidade, nos seus olhos lmpidos cinzentos; de seguida, para o vazio. Dissera essas palavras num tom infantil, quase satisfeito, como se o tivessem elogiado num exame. Estremeci. Que espcie de homem era este? Estava to sereno; agora olhava em volta, pelo jardim, e examinava a casa com a objectividade de um arquitecto. Ento comeou a conversar:- A tua me morreu ali em cima, no primeiro andar, por trs das portadas fechadas.- No - respondi, e surpreendi-me. - A minha me morreu em baixo, na sala de estar, onde agora vive Nunu.- Interessante - disse. - Esquecera-me.E deitou fora o cigarro, ergueu-se, deu uns passos em direco casa, apalpou os tijolos da parede, meneou a cabea.- um pouco hmida - disse, em tom de reprovao, distraidamente.- Reparmo-la no ano passado - disse, e cada vez mais espantada comigo mesma.73Voltou para a minha beira, olhou-me profundamente nos olhos. Silenciou por largo tempo. Fixvamo-nos, as plpebras meio fechadas, com ateno e curiosidade. O seu rosto era, desta vez, srio e recolhido.- Uma pergunta, Eszter - disse, em voz baixa e srio. - Uma nica pergunta.Fechei os olhos; sentia um ardor, uma vertigem. Esta vertigem durou uns segundos. Levantei a mo para me proteger. "Vai perguntar-me, agora", pensei, "meu Deus, vai perguntar-me, agora. O qu? Talvez porque se passou tudo assim? Talvez porque que eu fui cobarde? No, agora tenho de responder!" Respirei profundamente, e olhei-o, pronta a responder.- Diz-me, Eszter - perguntava, agora, em tom ntimo e sereno -, esta casa ainda est hipotecada?74XI.OS ACONTECIMENTOS da manh,pelo menos os que se seguiram a essa pergunta, turvaram-se um pouco na minha memria. Nesse momento, o tio Endre reunia-se a ns. Lajos mostrou-se perturbado e, em voz alta, comeou nas suas mentiras. Como se pretendesse esconder receios, atacou com um d de peito, assumindo um ar de artificiosa benevolncia e de superioridade vazia, que no fez efeito em Endre. Lajos atirou-lhe ainda com um "velho amigo"; agarrou Endre pelo brao, contou-lhe histrias divertidas e comportou-se como um ilustre convidado, recebido com grandes honras em casa, onde tudo e todos so de categoria ligeiramente inferior sua. Endre escutava-o, tranquilamente. Endre era a nica pessoa no mundo de quem Lajos tinha medo, que Lajos no iria enfeitiar, indiferente, no seu foro ntimo, aos raios e sortilgios com que Lajos julgava alcanar tudo e todos,75inclusive os animais e os objectos inanimados. Endre escutava Lajos com ateno, como quem conhecia os segredos do ilusionista, conhecia os mecanismos escondidos dos seus nmeros, e nem se admiraria se Lajos tirasse da cartola a bandeira nacional ou fizesse desaparecer a fruteira, subitamente, do centro da mesa na sala de jantar. Escutava-o, com interesse e curiosidade; sem malcia, com um visvel interesse. Como se lhe estivesse dizendo: "Ora, que sabes tu?" Entre nmeros, Lajos permitia-se uma pausa e, em rpidas olhadelas, num pestanejar cuidadoso, observava o tio Endre.Esse mal-estar talvez s eu o visse; Tibor e Laci submergiam na beleza encantatria dos nmeros. Depois, durante a tarde, soube que tambm a pequena Eva percebera a incomodidade de Lajos. Era como se Endre estivesse ao corrente de alguma verdade simples e inquestionvel com que, a qualquer momento, podia encostar Lajos parede. Mas no se riu dele, nem sequer se mostrou descorts.- Com que ento, Lajos, chegaste? - disse; e apertaram a mo.Foi tudo. Lajos sorriu, embaraado. Naturalmente, poderia ter corrido melhor se no houvesse testemunhas nos instantes iniciais do reencontro. Mas, no fim de contas, fora ele a convoc-lo, "a ttulo oficial", como sabamos. Pedira, em correio expresso, que Endre se no ausentasse nesse dia, gostaria de falar com ele. Endre viera, com esse convite de Lajos no bolso,76e, gordo e tranquilo, ali estava, no meio do jardim, olhando-nos com uma pacincia benvola e ouvindo Lajos, sem ares de superioridade, e, todavia, com a segurana imperturbvel de quem no quer aproveitar-se do seu poder, porque sabe que um s olhar suficiente, ou basta levantar um dedo, para Lajos se calar logo, aniquil-lo e acabar com o espectculo. Pelos vistos, Lajos no podia evitar essa testemunha incmoda. Como se, depois de muito ter lutado contra si mesmo, estivesse decidido, por fim, a enfrentar a realidade - para Lajos, sempre Endre estivera na realidade da sua vida, juiz e testemunha incorruptvel, esse elemento de resistncia incmoda e cruel, opondo-se aos truques de Lajos - e dissesse: "Acabe-se de uma vez por todas." Assim olhava Lajos para um Endre envelhecido.Endre s envelhecera nos ltimos trs ou quatro anos. Tudo o que, no seu carcter e natureza, era pesado e grave, essa resistncia oculta contra o mundo que nunca permitia que as pessoas se aproximassem dele, o seu comportamento do gnero cerimonioso e calado, que o caracterizava desde jovem, impedia, h alguns anos, at as suas relaes com estranhos. No era propriamente um misantropo; mas, quando se estava sua beira, era como se Endre conhecesse algo que fosse contra as leis do mundo; e para si guardasse esse conhecimento. A sua bondade era pesada, tmida e desajeitada. i Agora olhava para Lajos como se dele soubesse tudo,77e sem inteno de julgar, ou absolver. Aquele "com que ento, Lajos", com que o saudava vinte anos depois, em rigor no fora nem condescendente nem altivo, ou rigoroso, e, contudo, percebi que Lajos se fazia inseguro ao ouvi-lo, olhava, nervoso, em redor, falava mais depressa, limpava a testa com um leno. Falaram, julgo, de poltica ou da colheita. Depois, Endre encolheu os ombros, como se j tivesse visto e ouvido bastante, sentou-se no banco de pedra e cruzou as mos na barriga, no gesto de um velho senhor. No resto do dia, at noite, quando redigiu o documento em que autorizava Lajos a vender a casa, no dirigiu mais nenhuma palavra ao hspede.Naturalmente, todos sabamos que Lajos ameaava a minha vida, mais exactamente a vida de Nunu e os meus ltimos anos de sossego. S a casa se mantinha de p, um pouco maltratada pelo tempo, mas, ainda assim, poderosa; a casa, o ltimo objecto de valor que Lajos ainda no levara e que agora viera buscar. No preciso instante em que recebi o telegrama de Lajos soube que ele vinha por causa da casa; so coisas que no se exprimem por palavras e, todavia, sabem-se. At ao derradeiro momento, procurei iludir-me. Quer Endre quer Tibor sabiam-no. Mais tarde, todos nos surpreendemos com o abandono e a fraqueza com que a demos a Lajos - e acabmos por nos resignar ao facto de que, na vida, no h meias solues, algo se iniciara uma vez h muito, h quinze anos, e era tempo de terminar com isso.78Lajos tambm o sabia. Confirmou que a casa era um pouco hmida e desatou logo a falar de outra coisa, como se, resolvido o mais importante, j no valesse a pena gastar muitas palavras com pormenores. Tibor e Laci seguiam-no com curiosidade. Um pouco mais tarde, antes do almoo, chegou um alfaiate, o velho alfaiate de Lajos, e, confuso e inclinando-se, apresen-tou-lhe uma conta com vinte e cinco anos. Lajos abraou-o e mandou-o embora. Os senhores tomavam um aperitivo, falavam ruidosamente e riam-se muito com as piadas de Lajos. Num ptimo ambiente, sentmo-nosmesa.79XII.Eu s No entendia a presena daquela mulher desconhecida. Era demasiado velha e austera para ser amante de Lajos. Demorei tambm a perceber que o jovem do casaco de pele, o que sara primeiro do automvel vermelho, murmurara a apresentao em frases corteses e, depois, no se dirigira a mais ningum - limitava-se a adestrar o seu co de focinho leonino - era filho da mulher. Em tudo havia algo de anti-regulamentar. O jovem era loiro, de um loiro claro, quase prateado; o rosto era clarssimo e, na sua ctis branca, mal se distinguiam as sobrancelhas; e pestanejava sem parar. O cabelo encrespava-se, como a grenha de um velho negro. Mais tarde, montou uns culos azuis-escuros e desapareceu por completo atrs das lentes. S tardinha que soube que este jovem era o noivo de Eva; e que a mulher, de origem nobre, que semeava o discurso de palavras francesas mal pronunciadas, se ocupava h anos da casa de Lajos.81Na confuso das primeiras horas nada disto percebera.A mulher, a quem os jovens chamavam Olga, parecia confusa e triste - no se intrometeu na nossa conversa, e, feitas as apresentaes, manteve-se durante horas silenciosa mesa, brincando com a sombrinha e fixando o prato. Uma aventureira, pensei no primeiro momento. Mas depois percebi que era uma aventureira cansada e mal-humorada; algum que j no acreditava verdadeiramente em aventuras, como se preferisse deixar tudo e dedicar-se a algo mais sossegado, a fazer croch ou artesanato. s vezes, mostrava um sorriso amargo em dentadura de homem amarelada. Quando, por fim, tive de me confrontar com ela, no soube o que dizer-lhe. Olhmo-nos primeiro com um sorriso e, logo depois, sem sorriso, num olhar penetrante e clara desconfiana. Nuvem de perfume adocicado soltava-se da roupa e do loiro cabelo pintado.- Querida Eszter - disse ela.Mas eu, em voz alta e tom de protesto, respondi: - Senhora.E desatei a rir. A casa, nesses momentos que antecediam o almoo, parecia flutuar, qual miragem multicolor. Portas batiam, Lajos tirou uma tartaruga de uma caixa e mostrava como o animal apreciava msica, movendo-se aos seus assobios, estendendo o pescoo repugnante em resposta silvada. Trouxera o rptil como um fenmeno, como um instrumento do ofcio,82como uma prova dos seus incomparveis dotes de domador. A tartaruga foi um grande sucesso. Todos assistiram com entusiasmo ao espectculo, e at um Endre austero se deixou vencer pela curiosidade.A seguir, Lajos distribuiu os presentes: um relgio de pulso para Laci, duas raras encadernaes em pele de poesia francesa para Nunu - com uma dedicatria especialmente escrita para ela, e sem olhar, sequer, ao facto de Nunu no saber uma palavra de francs! A Tibor e Endre trouxe caros charutos de importao e a mim um pesado xaile de seda lils. A excitao era geral e atingia o auge. Para l da cerca do jardim j se formara um grupo de curiosos; por isso, fomos para dentro. A casa enchia-se de um aroma a comida quente, prprio dos dias festivos, em que h algo de eterno e inolvidvel, algo de excitante, como a prpria vida, de pressas, dos rudos a pr a mesa, de portas que batem, do entrechocar de pratos, da sufocante conversa dos convidados que chegam, dos seus gritos, de um fortssimo musical e fsico que diz ser a vida maravilhosa e festiva. Assim era, para onde quer que olhasse. A mulher desconhecida sentou-se num canto e dirigiu-se-me em voz montona.Contou-me que conhecia Lajos h oito anos, quando abandonou o marido. O filho era empregado em qualquer lado; no precisou onde, e que tipo de trabalho tinha. Eu nunca vira ningum parecido quela mulher e quele filho. Fixara algumas fotografias nas revistas ilustradas,83que mostram jovens modernos, ou esse gnero de homens que danam tarde nos sales de baile dos hotis, ataviados de fatos com grandes ombreiras, ou pilotam avies, ou correm em motas para diversos destinos, com uma jovem sentada atrs, cuja saia desliza para cima do joelho. Sei que existem outros tipos de jovens, mais autnticos. Aqueles so uma caricatura impressa na minha memria - uma espcie estranha e inquietante, que no conheo nada bem. S sei que j nada tenho a ver com esta espcie de homens. Para l da confuso e da ignorncia que sinto na sua presena, sei que existe no mundo um tipo humano para mim inatingvel, esses sujeitos das motos e os danarinos que aparecem nos filmes, que deitaram para trs das costas as convenes sociais que os meus e eu respeitvamos. Havia algo naquele rapaz alheio ao teatro do quotidiano; pode ser que seja um heri de romance, pensei, mas, ento, preferia que fosse um heri de romance policial. Falava pouco; e, quando falava, olhava para o tecto e articulava, pronunciando as palavras como uma cantilena. Tambm ele parecia triste, como a me; emanava de ambos uma desolada tristeza. Eu nunca me dera conta de que pudesse haver pessoas to violenta e categoricamente estranhas. Ele no fumava nem bebia. Usava uma pulseira de ouro fina no pulso da mo esquerda e, de tempos a tempos, com a rapidez de um raio, como se quisesse bater em algum, levantava a mo e a pulseira, num gesto nervoso,84subia-lhe, por vezes, no brao. Soube que fizera h pouco trinta anos e era secretrio, algures, na sede de um partido poltico; mas quando tirava os culos azuis-escuros e, com olhos hmidos, fixava objectos e pessoas que se encontravam na sala, parecia mais velho do que Lajos.Porqu maares-te com esta gente?, pensei. Mas tive de convir que ele tinha toda a gente debaixo de olho. J nem do seu nome gostava, desse nome to comum e vulgar: chamava-se Bela. Reajo sempre violentamente aos nomes, com aprovao ou reprovao. um sentimento primrio e injusto. Mas estes sentimentos que determinam a nossa relao com o mundo, as nossas simpatias e antipatias. No pude dedicar-lhe muito tempo porque a me me entreteve at hora do almoo. Sem lho pedir, contou-me a sua vida. Esta histria era um nico e desesperado requisitrio, invocando o juzo dos poderes celestes e terrenos contra homens e mulheres, contra parentes e amantes, contra filhos e maridos. Apresentou a acusao em tom montono, em frases curtas e precisas, como se estivesse a recitar uma lio sabida de cor. Todos a traram, todos a maltrataram e todos, por fim, a abandonaram: foi tudo quanto percebi da sua algaravia. s vezes, eu estremecia; era como se um louco se me dirigisse. Depois, sem transio, discorreu sobre Lajos. Falava em tom confidencial e cinicamente. No suportava esse tom. Agora sentia-me humilhada por Lajos85se me ter apresentado com os seus cmplices; que a gente tambm tinha a sua dignidade. Levantei-me, com o xaile de seda lils na mo, presente de Lajos:- No nos conhecemos - disse-lhe. - Talvez seja de no falar disso.- Oh - disse, com tranquilidade e indiferena -, teremos muito tempo para falar disso. Havemos de nos conhecer melhor, querida Eszter.Acendeu um cigarro, expirou longa fumarada e, serenamente, fixou-me atravs da nuvem de fumo, como se j tudo estivesse tratado, tudo decidido, soubesse algo que eu ainda no sabia e eu no tivesse mais do que obedecer-lhe.86XIII.Tenho de anotar aqui trs conversas.Foram todas nessa tarde: apresentaram-se no meu quarto, Eva, Lajos e, por fim, convocou-se "oficialmente" Endre. Depois do almoo, os hspedes dispersaram. Lajos deitou-se a dormir, to naturalmente como se estivesse em casa, sem admitir renunciar aos seus hbitos. Gbor e os des