A HERANÇA COLONIAL DAS “NOVAS” OPERAÇÕES DE PAZ … · Revista Ética e Filosofia Política...
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Revista Ética e Filosofia Política – Nº 13 – Volume 2 – Junho de 2011
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A HERANÇA COLONIAL DAS “NOVAS” OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU
Marta Fernández Moreno (PUC-Rio) .
INTRODUÇÃO
No contexto de exagerado otimismo que caracterizou o fim da Guerra Fria
decorrente da superação das tensões ideológicas entre Estados Unidos e a União
Soviética, a Organização das Nações Unidas (ONU) experimentou uma mudança
na natureza das suas operações de paz, as quais passaram a estar cada vez mais
comprometidas com a reconstrução de Estados fragmentados por guerras civis.
Enquanto as missões de peacekeeping clássicas da ONU durante a Guerra Fria
envolviam forças multinacionais levemente armadas que ajudavam a observar e a
manter os acordos de cessar fogo entre os combatentes, no contexto do pós-
Guerra Fria estas operações passaram a envolver um escopo muito mais vasto de
atividades e atores. As atividades das “novas” operações de construção de
Estados são abrangentes e variam de país para país, mas geralmente envolvem:
desmobilização e integração dos antigos combatentes à sociedade civil,
fornecimento de ajuda financeira, assistência humanitária, organização e
fiscalização de eleições, repatriação de refugiados, reconstrução da estrutura
física dos países, monitoramento dos direitos humanos, reestruturação do sistema
judiciário e reforma legislativa. Além disso, estas operações contam com uma
vasta gama de atores internacionais, tais como: organizações não-
governamentais, instituições financeiras internacionais, agências de
desenvolvimento, e organizações regionais e internacionais (Paris, 1997, 2002).
Essas “novas” operações não estão voltadas apenas para impedir que os antigos
inimigos reiniciem o conflito, mas, também, têm a pretensão de lidar com as
causas profundas do mesmo, evitando sua retomada por meio da recriação das
instituições centrais do Estado e da sociedade (Call; Cook, 2003).
Nesse sentido, a paz que o processo de reconstrução de Estados se propõe a
instaurar não é negativa, ou seja, caracterizada pela mera cessação das
hostilidades físicas entre os combatentes, mas dirige a atenção para a erradicação
das novas fontes de insegurança, tais como a econômica, a social e a ambiental,
ao mesmo tempo em que ressalta a interdependência entre tais dimensões. Por
conseguinte, estas operações partem de um conceito ampliado de segurança não
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mais vinculado exclusivamente a dimensão militar, como ocorria durante a Guerra
Fria, e não mais focado no Estado, uma vez que voltado para a “humanidade”1.
Na maior parte da literatura sobre as “novas” operações de paz da ONU, tais
práticas são percebidas como um sinal de progresso e de “humanização” da
política mundial. Segundo Roland Paris (1997), isto ocorre na medida em que tal
processo é apresentado como mais consensual e multilateral do que os anteriores,
desprovido de quaisquer objetivos exploratórios, dotado de um prazo determinado,
levado a cabo com a participação da população do Estado alvo e, até mesmo,
como um ato “caritativo” empreendido por parte da “comunidade internacional” em
nome dos direitos da humanidade.
AS (DES) CONTINUIDADES DAS “NOVAS” OPERAÇÕES DE PAZ
O argumento central do ensaio é o de que as “novas” operações de paz da
ONU são informadas por um velho discurso logocêntrico2 evidente desde os
tempos coloniais. Continua em vigor, portanto, a estratégia colonial de estabelecer
fronteiras entre o “Eu” e o “Outro”, o “moderno” e o “tradicional”, a “ordem” e a
“desordem”.
Argumenta-se que a construção discursiva das sociedades alvo de tais
operações como “atrasadas”, “falidas” ou “pré-modernas” vem criando as
condições de possibilidade para as operações de paz conduzidas pelas Nações
Unidas em nome da “salvação”, do “progresso” e da “modernização” de tais
sociedades.
Nesse sentido, a produção da descontinuidade/inovação das operações de
paz em relação ao passado colonial depende da construção da continuidade das
sociedades alvo de tais operações vistas como sujeitas a conflitos ancestrais de
natureza endógena, ligados a um passado pré-colonial; revelando, desse modo,
uma dependência mútua entre as identidades “moderna” e “tradicional”.
1 O termo “novas” operações de paz será utilizado nesse ensaio como um termo genérico para se referir a uma
ampla variedade de missões que a ONU passou a conduzir no momento do pós-Guerra Fria e que não
pareciam se encaixar no modelo tradicional de peacekeeping (ver Paris, 2004). 2 Derrida denomina de “logocentrismo” a predisposição para produção de dicotomias tidas como naturais,
auto-evidentes, tais como colonizador/colonizado, e que vêm acompanhadas, freqüentemente, de julgamentos
morais do que é bom e mau (Derrida, Jacques: A Escritura e a Diferença, São Paulo: Editora Perspectiva,
1967).
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O ensaio sugere que o reconhecimento do caráter híbrido das sociedades pós-
coloniais nos permite desestabilizar o discurso logocêntrico subjacente às “novas”
operações de paz da ONU. Entendemos que as sociedades sujeitas às “novas”
operações de paz da ONU só podem ser produzidas como “tradicionais” e os seus
conflitos como “imutáveis” e “endógenos” se silenciarmos acerca de um discurso
alternativo, o qual aborda o impacto dos processos e atores globais sobre os
mesmos3.
TEMPORALIZANDO A DIFERENÇA SOMALI
O presente ensaio iluminará o discurso dos Estados Unidos em relação à
Somália e aos somalis no contexto da UNITAF (United Task Force), conhecida
pela alcunha “Operação Restaurar a Esperança”. Essa operação, estabelecida por
meio da resolução 794 do Conselho de Segurança da ONU de dezembro de 1992
e levada a cabo sob o comando dos Estados Unidos, encarregou-se de garantir o
acesso à ajuda humanitária ao povo somali por meio do envio massivo de tropas
norte-americanas.
A percepção de que os Estados Unidos deveriam ter uma participação mais
ativa na Somália foi expressa pelo presidente Bush após o embaixador norte-
americano no Quênia, Smith Hempstone, ter lhe apresentado, em maio de 1992,
um relato dramático das condições de devastação e de fome de um campo de
refugiados somalis por ele visitado na fronteira entre o Quênia e a Somália (ver
Tripodi, 1999; Kansteiner, 1996). Todavia, foi somente a partir do final de junho de
1992 que o alerta da fome na Somália foi acionado nos Estados Unidos uma vez
que o apuro da população somali começou a ganhar destaque na cobertura da
mídia. As reportagens da CNN (Cable News Network) chamando a atenção para a
fome nas áreas do sul e do centro da Somália foram reforçadas a partir de julho de
1992 por diversos artigos da jornalista Jane Perlez no New York Times que, desde
Boidoa, no sul agrícola da Somália, estimularam outras mídias a cobrir a mesma
estória (Kansteiner, 1996; Petterson, 2000; Sahnoun, 2005). Desde então,
3 De acordo com Darby (2008), a violência que é comumente apresentada como tendo causas endógenas, não
pode ser explicada adequadamente com referência às formações culturais locais ou ao fenômeno dos Estados
“falidos”, mas suas raízes podem ser traçadas aos governos coloniais que criaram novas divisões no marco
das sociedades tradicionais e exacerbaram as velhas, acentuando identificações étnicas e religiosas.
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imagens de somalis imersos em carnificina e fome passaram a causar
desconforto, especialmente, nas audiências ocidentais.
Argumenta-se aqui que o discurso de Bush sobre o conflito na Somália
simplifica a complexidade da sociedade somali, ao dividi-la entre culpados e
vítimas.4 Enquanto a origem do conflito somali não é mencionada nos discursos de
Bush, as causas da reprodução e da intensificação da fome na Somália são
localizadas nas gangues armadas, as quais vinham impedindo que a ajuda
humanitária chegasse aos seus destinatários. Todavia, enquanto o Secretário-
Geral da ONU enfatizava a necessidade de desarmar tais gangues, não existia
nos discursos de Bush qualquer menção a tal necessidade.
Argumenta-se nesse ensaio que tal silêncio se deveu à idéia amplamente
veiculada na mídia norte-americana de que o problema da Somália não residiria
nas armas per se, adquiridas, sobretudo, das superpotências durante a Guerra
Fria, mas, sim, no encontro dessas armas modernas com ódios clânicos
ancestrais. Nesse sentido, o problema desde tal visão não estaria localizado,
primordialmente, na condição estrutural de ausência de governo na Somália e na
conseqüente descentralização dos meios coercitivos, mas, sim, no caráter violento
da cultura clânica somali inalterável desde os tempos pré-modernos.
ETERNIZANDO A FOME SOMALI NUM TEMPO PRÉ-MODERNO
A fome na Somália foi lida como derivada da guerra civil ativada depois da
queda do ditador Siad Barre em 1991. No entanto, essa guerra foi narrada pela
mídia norte-americana como uma mera reincidência, talvez de maiores
proporções, de rivalidades advindas de uma Somália pré-moderna. E ao conferir
tal tratamento racista ao conflito, a fome foi, por conseqüência, despolitizada e
eternizada junto com conflito. Essa visão fica clara no artigo de Keith Richburg
publicado no The Washington Post em 9 de dezembro de 1992, o qual explica a
fome somali da seguinte maneira: ―[I]n Somalia, clan warfare seems doubly
senseless since it has turned what was once a nation into a land of mass starvation
where the economy has collapsed and chaotic streets are ruled by marauding
gunmen”. E mais adiante, o jornalista complementa: ―[T]he clan feuds help to
4 Essa é a racionalidade que, segundo Jabri (2010), vem informando as operações policiais cosmopolitas.
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explain why there is a famine here in the first place, and why it will prove difficult to
put the puzzle of Somalia back together again”.
O mesmo embaixador, Hempstone, quem havia alertado Bush para a situação
deplorável dos somalis quando visitou um campo de refugiados na fronteira do
Quênia, advertiu o Departamento de Estado no dia 06 de dezembro de 1992, por
meio de um telegrama,5 a não “embrace the Somali tar baby”. Para Hempstone
(1992), os Estados Unidos deveriam abster-se de enviar tropas e de sofrer baixas
nas mãos de “natural-born guerrillas”. Nas palavras do embaixador (1992, grifo
meu): ―Somalis, as the Italians and British discovered to their discomfiture, are
natural-born guerrillas. They will mine the roads. They will lay ambushes. They
will launch hit and run attacks. They will not be able to stop the convoys from
getting through. But they will inflict--and take—casualties‖. A idéia de que os
somalis eram “guerreiros naturais” foi reproduzida por John Drysdale, ativista de
direitos humanos, na fase final do envolvimento da ONU na Somália, quando
disse: ―Somalis know all about tactics, and are natural fighters. It is second nature
to surround and ambush effectively‖ (apud Petterson, 2000:77, grifo meu).
Localizando a causa do caos no comportamento inato dos Somalis, Hempstone
reproduziu o tom racista das declarações italianas do século XIX quando disse no
telegrama:
Finally, what will we leave behind when we depart? The Somali is treacherous. The Somali is a killer. The Somali is as tough as his country, and just as unforgiving. The one "beneficial" effect a major American intrusion into Somalia is likely to have may be to reunite the Somali nation: against us, the invaders, the outsiders, the kaffirs (unbelievers) who may have fed their children but also have killed their young men. ... In the old days, the Somalis raided for camels, women and slaves. Today they raid for camels, women, slaves and food.
Se, durante a tutela italiana sobre a Somália no pós-guerra, os somalis
deixaram de ser representados como biologicamente e inatamente inferiores e
passaram a ser representados, sobretudo, como culturalmente atrasados,
Hempstone volta a empregar, tal como nos tempos coloniais, adjetivos pejorativos
(traiçoeiros, assassinos, agressivos) para caracterizar a natureza dos somalis. A
partir dessa naturalização do conflito, Hemsptone não prevê qualquer solução de
5 O telegrama foi dirigido ao subsecretário de Estado, Frank Wisner. Excertos do mesmo foram publicados no
U.S. News & World Report, de 06 de dezembro de 1992.
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curto-prazo para o mesmo, mas um envolvimento indeterminado no país. Tendo
constatado que o problema da Somália exigiria uma atuação deveras duradoura e
dispendiosa por parte dos Estados Unidos, Hempstone se posiciona a favor da
inação se valendo das duras palavras: ―Leave them alone, in short, to work out
their own destiny, brutal as it may be‖.
UNITAF: UMA OPERAÇÃO EMERGENCIAL
Ainda que o presidente Bush não tenha seguido o conselho de Hempstone de
deixar a Somália à sua própria sorte, ele vai optar por um envolvimento limitado
por meio do qual os Estados Unidos seriam guiados pelo propósito humanitário
mínimo de, apenas, alimentar os somalis. O objetivo era o de garantir um
ambiente seguro para a distribuição de ajuda humanitária para que o centro e o
sul da Somália pudessem vencer a fome (Tripodi, 1999). Segundo o presidente
norte-americano declarou num discurso de 04 de dezembro de 1992: “Our mission
has a limited objective: To open the supply routes, to get the food moving, and to
prepare the way for a U.N. peacekeeping force to keep it moving. The operation is
not open-ended. We will not stay one day longer than is absolutely necessary”.
Mais adiante ele volta a enfatizar com outras palavras a natureza do propósito
limitado dos Estados Unidos na Somália: “To the people of Somalia I promise this:
We do not plan to dictate political outcomes. (…) We come to your country for one
reason only, to enable the starving to be fed”. Por conseguinte, a operação passa
a ser produzida como uma operação apolítica, técnica; voltada para um objetivo
único: o de alimentar a população somali a fim de “salvar vidas”.
Argumenta-se aqui que o discurso acerca da imutabilidade do conflito somali
criou as condições de possibilidade para esse envolvimento pontual por parte dos
Estados Unidos, cujo foco exclusivo era o de garantir o acesso do faminto à
comida e, daí, garantir a sua mera sobrevivência. Nesse sentido, os Estados
Unidos se propunham a lidar apenas de uma forma emergencial com os efeitos do
conflito e, não, com as causas do mesmo. Argumenta-se nesse ensaio que em
função da construção discursiva do conflito como enraizado na natureza da cultura
somali ou dos próprios somalis, o conflito foi entendido como precisando de muitas
gerações para se solucionado. Segundo Madeleine Albright colocou num artigo do
New York Times de 10 de agosto de 1993: ―[P]eace cannot be made overnight. It
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will take time for people who have been shooting at each other to start trusting
each other‖.
A natureza emergencial da intervenção dos Estados Unidos na Somália aparece
de forma clara numa metáfora utilizada pelo presidente Clinton no seu discurso do
dia 07 de outubro de 1993, onde ele recorda os motivos iniciais da missão do seu
país na Somália. Nesse discurso, o presidente faz uma analogia entre a ação
norte-americana com uma ação de resgate de pessoas inocentes numa casa em
chamas: “In a sense, we came to Somalia to rescue innocent people in a burning
house. We‘ve nearly put the fire out, but some smouldering embers remain. If we
leave them now, these embers will reignite into flames, and people will die again‖.
Sugiro aqui que o discurso acerca da continuidade ou da imutabilidade do
conflito somali criou as condições de possibilidade para a tamanha hesitação por
parte da Administração Bush de se envolver no mesmo, pois como Robin Wright
(1993) colocou no Los Angeles Times: ―most analystis agree that there is virtually
no chance that mediators can end the clan rivalries that date back to the nomadic
origins of the clan themselves”. Segundo o acadêmico Paul Diehl, a visão popular
entre os diplomatas internacionais na Somália era que o conflito ainda não era
maduro de solução ou que: ―[T]he Somalis (...) .just hadn‘t grown adequately weary
of war yet and perhaps needed a decade or two (...) before they were ready to sit
at the negotiating table in good faith‖ (Diehl, 1994:57).
Nesse quadro, o desafio de reconstrução de Estado foi deixado para a
UNOSOM II que substituiu a UNITAF por meio da resolução 814 de março de
1993. Como nos mostra Tripodi (1999), a posição de Boutros-Ghali divergiu da
posição de Bush desde o início, já que o Secretário-Geral insistiu na necessidade
de uma força internacional voltada para a tarefa de desarmar as facções somalis e
de promover o “nation-building”. Todavia, tais demandas não foram acolhidas pelo
Secretário de Defesa, Dick Cheney, para quem o desarmamento ativo não deveria
ser parte da UNITAF (Tripodi, 1999). Essa disputa de visões entre os Estados
Unidos e a ONU foi o que permitiu que os primeiros tivessem considerado a
operação um sucesso, já que, segundo o discurso dominante sobre a UNITAF, ela
conseguiu, de fato, “vencer” a fome somali.
Voltamos então ao argumento aqui elaborado de que o desarmamento não foi
perseguido pelos Estados Unidos justamente devido à crença discursivamente
construída de que a militarização do país durante a Guerra Fria não era um
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problema em si, já que o que explicava o conflito somali era o fato das armas
modernas terem caídos nas mãos de somalis movidos por animosidades
ancestrais. De acordo com a antropóloga Besteman (1999:4), o discurso
dominante representa o conflito somali como dando continuidade à: “Stone Age
ancestral clan rivalries, but with Star Wars military technology”. Scott Petterson,
jornalista do jornal London‘s Daily Telegraph apresenta uma visão informada por
tal lógica no livro “Me Against My Brother. At War in Somalia, Sudan, and Rwanda.
A Journalist Reports from the battlefields of Africa‖ quando diz:
I wanted to understand ‗these people‘ – these ancient nomadic warriors and peacemakers – who were thrown by default into a new era in which the measured calculus of killing with a spear had been displaced by weapons of much greater efficiency. This dangerous cocktail was, curiously, both ancient and modern and it mixed medieval demands for vengeance with today‘s disturbing ability to thoughtlessly kill vast numbers of people. This disease is not limited to Somalia. Several African states (…) have been similarly driven to battle for ethnic or tribal differences. In Africa it has always been so, but has proved all the more potent when destructive firepower is easier to find than food and when government disappears or is complicit (Petterson, 2000:6-7).
Conforme a narrativa de Petterson, portanto, foi esse “coquetel perigoso”
formado pela mistura de demandas medievais por vingança com armas modernas
e eficientes que gerou a “doença” somali. Mais adiante, Petterson (2000:7) volta a
expressar a mesma lógica quando diz: “It was the efficient modern methods of
taking life –in such hard-worn and pitiless hands –that complicated the equation.
Because Somalis are (…) as hard as their country‖.
Krauthammer, em dezembro de 1992, também expressa essa idéia quando
declara num artigo do The Washington Post: ―The United States and the Soviet
Union shipped M-16s and AK-47s to every corner of the Earth. Yet only in Somalia
have the guns been used for cruelty beyond barbarism: stealing food from the
mouths of starving children‖. Outro artigo publicado no mesmo jornal um ano
depois por John Burgess (1993) expressa uma visão coincidente quando coloca:
―ancient clan enmity, pursued with modern weapons that are so abundant in
Somalia, is at the root of the country‘s conflict‖.
É interessante notar que a visão exposta acima - de que as armas modernas
teriam apenas acentuado um conflito derivado de ódios ancestrais- já se
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encontrava embrionariamente presente nos prognósticos feitos pelo explorador
inglês Richard Burton sobre os somalis: “At present, a man armed with a revolver
would be a terror to the country; the day, however will come when the matchlock
will supersede the assegai, and then the harmless spearman is his strong
mountains will become (…) a formidable foe” (Burton, 1984:88).
Assim, ora destacando a natureza violenta dos somalis ora destacando o
caráter violento da cultura clânica somali, argumenta-se que o discurso dominante
nos Estados Unidos atribuía ao conflito uma dimensão meramente endógena, isto
é, sem qualquer conexão com o colonialismo e com o Estado pós-colonial
vivenciados pela Somália. E, ao fazê-lo, relacionavam o conflito a um passado pré-
moderno, temporalizando a violência, a qual passava a ser vista como símbolo do
atraso da sociedade somali.
Besteman (1996) argumenta que por meio do discurso dominante, a Somália
apenas simulou ser um Estado quando, de fato, permaneceu tribal. Daí, segundo
Besteman (1996), se imaginou a Somália retornando desde um pseudo-Estado
para uma organização social baseada em laços de parentesco. Tal visão é
claramente colocada, por exemplo, no artigo de Richburg do The Washington
Post, de setembro 1992, segundo o qual: “As rebels opposing Barre closed in on
the capital, the artificial Somali state unravelled, and Somalis were left in
essentially their pre-colonial condition -a collection of regionally based clans, newly
laden with modern arms‖.
E, assim, o discurso dominante retratava o conflito somali como derivado de
rivalidades pré-coloniais que voltaram a explodir no cenário do pós-Guerra Fria
(ver Besteman, 1996). Em conformidade com tal visão, as notícias sobre o conflito
somali enfatizavam a idéia de que após a queda de Barre o que de fato sucedeu
foi o reaparecimento das velhas rivalidades clânicas, congeladas no tempo. No
rastro da queda de Barre, Scott Petterson (2000:15) observou: “The power vacuum
was readily filled by the ferocious ghosts of Somali warriors past‖. Essa visão
também foi compartilhada, por exemplo, por Sophfronia Gregory que escrevendo
no Time Magazine em dezembro de 1992 argumentou que: ―[A] divisiveness has
infected them [the Somalis] since ancient times, when rival groups laid claim to the
same wells and grazing lands‖. Também em dezembro de 1992, mas no Chicago
Tribune, Liz Sly temporaliza o conflito, todavia, localizando-o não no passado da
própria Somália, mas, curiosamente, no passado europeu, já que a jornalista
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argumenta que a Somália estaria regressando à “Idade Média”. Sly se vale,
portanto, de uma referência temporal européia para julgar a condição da Somália
no final de 1992 ao dizer: ―Within days, Siad Barre fell and Somalia began its long
and bloody decline into a state of anarchy unprecedented in recent history. Over
the next two years, vicious clan fighting reduced downtown Mogadishu to rubble
and plunged the city back into the Middle Ages‖6.
A representação do conflito somali como um conflito pré-moderno, por sua vez,
criou as condições de possibilidade para o seu entendimento como intratável e,
conseqüentemente, para a atitude distante dos Estados Unidos em relação ao
mesmo bem como para a sua retirada prematura do conflito. Afinal, no dia 11 de
outubro de 1993, ou seja, pouco depois do incidente dos soldados norte-
americanos arrastados pelas ruas de Mogadíscio - estopim para a retirada dos
Estados Unidos do conflito -, o jornalista Wright argumentou sobre a
impossibilidade de se resolver um conflito que tem suas origens no sistema
clânico. A culpa pelo conflito somali acabou sendo atribuída, portanto, unicamente
a fatores endógenos relacionados ao atraso do modo de vida somali e, mais
especificamente, a facções e líderes hostis que por estarem embebidos nessa
cultura violenta são tidos como resistentes aos múltiplos esforços de paz
intentados pelos agentes externos.
Usualmente entendido como um conflito com causas meramente endógenas,
diversos artigos se referem ao mesmo como um “suicídio nacional” (ver, por
exemplo, Editorial Desk, The New York Times, fevereiro, 1992). Tal visão foi, em
grande medida, introduzida por Jane Perlez que, num artigo para o The New York
Times em 29 de dezembro de 1991, definiu a guerra civil em Mogadíscio do
seguinte modo: “Far more than a month now, Mogadishu (...) has been enveloped
in a mad swirl of self-genocide‖7.
A imagem do suicídio, por sua vez, nos sugere uma forma de violência irracional
e antinatural, tendo em vista que ações suicidas ou, como chamadas por Perlez,
“autogenocidas”, entram em contradição com a lógica do contrato social
hobbesiano internalizada nos Estados ocidentais, segundo a qual, os indivíduos se
submetem ao Estado em função do medo que sentem da morte violenta e
inesperada, motivação aparentemente ausente entre os somalis. Nesse sentido,
6 Grifo meu. 7 Grifo meu.
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argumenta-se que tais ações suicidas são deslocadas para o espectro da
anormalidade, não sendo passíveis de explicação e entendimento racionais. Tão
logo o governo de Barre foi deposto, um artigo na Time Magazine descrevia o
conflito da seguinte maneira:
The rebel factions have no political program; the only principle that unites them is their hatred of Siad Barre and their determination to oust him. Their organizations are completely clan-based and are divided by hundreds of years of intramural fighting. With no restraining influences from abroad and the superpowers attending to other concerns, Somalia‘s future is likely to be sadly similar to its bloody past (Nelan, Mcallister, Mutiso, 1991).
De acordo com tal artigo, portanto, as facções somalis que depuseram Barre
careciam de programa político e, no rastro de tal deposição, estavam destinadas
a, apenas, dar seguimento a séculos de lutas clânicas; fazendo do presente uma
mera reprise de um “passado sangrento”. Em outubro de 1992, Richburg definiu,
no The Washington Post, o conflito na Somália de forma similar: “a dirty little war
with no borders, no real armies and no particular meaning behind the chaos”.
A leitura dominante do conflito, a qual o representa como “sem sentido” e
“suicida”, o despolitiza. A atribuição de irracionalidade ao “Outro”, por sua vez,
ajuda a construir a “racionalidade” dos atores externos representados como
salvadores e condutores de ordem e de organização para uma sociedade
desestruturada e descontrolada.
DESESTABILIZANDO O “TRADICIONALISMO” POR MEIO DA ABORDAGEM
PÓS-COLONIAL
Esse item final visa desestabilizar o “tradicionalismo” e “continuísmo” da
sociedade e do conflito somalis por meio de uma abordagem pós-colonial. Será
utilizada aqui a chamada terceira fase do pós-colonialismo8, caracterizada pela
virada lingüística e cultural experimentada no final dos anos 70, e associada com
os trabalhos de Edward Said9, Chakravortky Spivak e Homi Bhabha, entre outros
8 Para saber sobre as três fases do pós-colonialismo ver em Krishna, 2009; Darby e Paolini, 1994. 9 Nem sempre Said é alocado na terceira fase do pós-colonialismo. Para uma visão alternativa ver Darby e
Paolini (1994) os quais incluem Said no segundo movimento pós-colonial.
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(ver Krishna, 2009). O capítulo se concentrará, contudo, no discurso pós-colonial
do crítico literário indiano, Bhabha.
Nesta terceira fase, o pós-colonialismo se afasta das suas fundações
intelectuais marxistas e se aproxima do pós-estruturalismo, inspirando-se em
Foucault e Derrida10, passando a reconhecer o caráter discursivo do social
(Krishna, 2009; Costa, 2006). Dentre os pontos em comum entre estas duas
perspectivas, destaca-se aqui a crítica feita por ambas às oposições binárias e,
daí, a suspeita do essencialismo contido, por exemplo, nas noções de classe, raça
e nação bem como às grandes narrativas de emancipação (Krishna, 2009, Manzo,
1999)11.
As teorias liberais que informam as “novas” operações de paz são estruturadas
a partir de uma série de oposições binárias com uma longa história no
pensamento ocidental, tais como: moderno vis-à-vis tradicional, liberal vis-à-vis
não liberal ou desenvolvido vis-à-vis subdesenvolvido (ver Lidén, 2009). A tarefa
pós-colonial é justamente a de evidenciar tais polaridades, as quais constroem no
plano discursivo e legitimam no plano político uma relação assimétrica entre o
Ocidente e o seu “Outro” (Costa, 2006). O mérito da perspectiva pós-colonial
reside no fato de que ela nos permite desconstruir tais polaridades acima
mencionadas, as quais seguem orientando a produção de conhecimento e a
intervenção política mesmo depois da extinção do colonialismo formal (ver Costa,
2006).
Para tal fim, não basta, como nos alerta Manzo (1999), simplesmente inverter o
binarismo convencional em prol da categoria até então depreciada. O
logocentrismo não pode ser desafiado tratando as categorias de uma oposição
conceitual como autônomas e buscando nas mesmas a fonte original do bem e da
verdade, mas sua contestação depende de uma atitude crítica voltada para pensar
o presente historicamente, a qual indaga, por exemplo, como um determinado
binarismo veio à tona (Manzo, 1999). Nesse sentido, em conformidade com a
visão de Derrida (2001), revela-se imprescindível a adoção de um gesto
10 A identificação de afinidades entre o pós-estruturalismo e o pós-colonialismo, contudo, depende da
interpretação de textos particulares, como bem nos alerta Manzo (1999). 11 Assim, os esforços nacionalistas para descobrir uma identidade nativa autêntica são mais típicos do segundo
movimento pós-colonialista, o qual continua operando a partir de um quadro de referência maniqueísta ao
caracterizar a relação colonizado/colonizador em termos de oposições binárias, ainda que, agora, invertidas.
Dentre os autores representantes deste segundo movimento, destacam-se: Albert Memmi e Frantz Fanon (ver
mais em Manzo, 1999; Darby; Paolini, 1994).
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historizador que desvele a violência política que deu origem a tais binarismos, os
quais nada têm de naturais ou auto-evidentes.
Os caminhos aqui propostos, portanto, não se confundem com a idéia de “native
peacebuilding‖, ou seja, de apoio a formas tradicionais de resolução de conflitos
em conformidade com práticas indígenas nativas12 (ver Lidén, 2009). Informado
por Derrida, o pensamento de Bhabha nos adverte contra este tipo de iniciativa,
pois, para ele, o retorno para uma identidade nativa “pura” ou a busca por uma
história nacional “autóctone”, “verdadeira” conduz a um etnocentrismo sob a forma
de um racismo às avessas uma vez que reproduz a própria estrutura binária de
significação (Kapoor, 2003). Nas palavras de Bhabha:
O extremismo odioso do nacionalismo sérvio prova que a própria idéia de uma identidade nacional pura, ‗etnicamente purificada‘, só pode ser atingida por meio da morte, literal ou figurativa, dos complexos entrelaçamentos da história e por meio das fronteiras culturalmente contingentes da nacionalidade moderna (Bhabha, 1997: 24).
Por meio da citação acima, Bhabha expõe não só os perigos, mas, também, a
impossibilidade de se acessar uma identidade nacional pura ou originária (ver
Kapoor, 2003).
Appadurai (1998) por sua vez, nos mostra que a própria idéia do “nativo” é uma
invenção antropológica. Os “nativos” são, em geral, assumidos como aqueles que:
“represent their selves and their history, without distortion or residue” (Appadurai,
1998:37). Todavia, tal autenticidade mítica dos “nativos” se constrói em oposição à
complexidade e à diversidade das sociedades ditas “modernas”. Nas palavras de
Appadurai (1998:37), os ocidentais se vêem à parte desse tipo de reivindicação
por autenticidade: “because we are enamored of the complexities of our history,
the diversities of our societies, and the ambiguities of our collective existence”.
Além de construir identidades e histórias extremamente simples, sem
ambigüidades e autóctones, a atribuição do rótulo “nativo” carrega clamores
acerca da sua imobilidade física, mesmo que, como no caso de muitos somalis,
por exemplo, esses “nativos” sejam nômades (ver Appadurai, 1998). Nesse
sentido, os “nativos”, segundo Appadurai (1998:37): “are not only people who are
from certain places, and belong to those places, but they are also those who are
12 Os esforços nacionalistas para redescobrir uma identidade nativa autêntica são típicos do segundo
movimento pós-colonialista (ver Lidén, 2009; Krishna, 2009).
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somehow incarcerated, or confined, in those places”. Em contraposição a esses
seres contidos, encarcerados e culturalmente isolados, situam-se os ocidentais.
Assumindo durante o curso dos anos, os papéis de exploradores, de missionários,
de antropólogos, de administradores e, hoje, poderíamos agregar, de agentes das
“novas” operações de paz, os ocidentais foram concebidos como essencialmente
móveis (ver Appadurai, 1998:37). E, assim, enquanto os nativos encontram-se
imobilizados pelo pertencimento a um lugar, os ocidentais se auto-representam
como: “the movers, the seers, the knowers” (Appadurai, 1998:37).
O ponto de Appadurai (1998) é que tais “nativos” que constam nos discursos
ocidentais não constituem uma verdade verificável. Nas suas palavras: “My
general case is that natives, people confined to and by the places to which they
belong, groups unsullied by contact with a larger world, have probably never
existed” (Appadurai, 1998:39). Appadurai (1998) nos mostra que os grupos que os
antropólogos estudaram foram afetados, de alguma forma, pelo conhecimento de
outros mundos com os quais eles aprenderam por meio das migrações, do
comércio, da conquista e das narrativas indígenas. Do mesmo modo que
Appadurai, Said reconhece que o imperialismo e a colonização dos séculos
passados resultaram numa mistura irresistível de culturas, populações e idéias; o
que faz com que, no mundo atual, as reivindicações de superioridade civilizacional
ocidental ou de essências nativas sejam vistas como racistas e inatingíveis
(Krishna, 2009). Nesse sentido, tanto Appadurai como Said e Bhabha, nos alertam
para a inexistência de qualquer identidade “pura” ou “originária” e, por
conseqüência, o pensamento desses autores pós-coloniais, nos ajudam a iluminar
a falácia de qualquer processo de construção da paz assentado em práticas ditas
“nativas”.
Esse ensaio, seguindo o argumento anti-essencialista desenvolvido por Bhabha,
sugere que a condição pós-colonial não é nativa, tradicional ou pré-moderna, mas
híbrida; o que contradiz as concepções nacionalistas de história e de comunidade
(ver em Manzo, 1999; Bhabha, 2007).
De fato, estas sociedades pós-coloniais experimentaram uma história de
presença colonial e de modernização que deu origem a uma nova formação
cultural que não pode ser definida nem como moderna nem como pré-moderna,
mas como híbrida. Isto ocorre porque, segundo Bhabha, qualquer tentativa de
dominação ou colonização sempre carrega consigo a possibilidade de que o
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original seja subvertido (Bhabha, 1997). A subversão em Bhabha está relacionada
com o deslizamento do sentido dos signos (Costa, 2006). A ação criativa é aquela
que subverte, redefine o signo, a partir de um lugar de enunciação deslocado dos
sistemas de representação fechados (Costa, 2006). Não se trata de uma
intervenção informada por um sistema de representação concorrente, mas feita
desde um lugar fronteiriço, de alguma maneira fora dos sistemas de significação
totalizantes, e que é capaz, por isso, de introduzir inquietação e revelar o caráter
fragmentário e ambivalente de qualquer sistema de representação (Costa, 2006).
De fato, a questão da distância entre as mensagens culturais transmitidas e a
sua recepção e interpretação local ressoa como uma preocupação central da
perspectiva pós-colonial (Lidén, 2009). A possibilidade de conversão do
colonizado é permanentemente sabotada porque este não está inscrito numa
tabula rasa, mas sim num terreno previamente ocupado; o que faz com que todas
as tentativas de tradução contenham a possibilidade perigosa de não
reconhecimento. Fica claro, portanto, que, em Bhabha, a hibridez não é definida a
partir da mera combinação de duas ou mais entidades (modernidade e não
modernidade ou global e local, por exemplo) refletindo parcialmente seus
atributos, mas é um “terceiro espaço”, ou seja, algo qualitativamente diferente (ver
em Krishna, 2009; Bhabha, 1997). O “terceiro espaço” é um “entre- lugares”, uma
locação não dialética13 - não sendo, portanto, uma síntese - criada nos interstícios
do imperialismo (Kapoor, 2003; Bhabha, 1997).
O reconhecimento do caráter híbrido das sociedades pós-coloniais nos permite
desestabilizar o discurso dominante no âmbito das “novas” operações de paz, o
qual continua, conforme foi visto a partir do exemplo da Somália, a reproduzir os
binarismos e essencialismos coloniais e a identificar o “Outro” como “violento”,
“atrasado”, “primitivo” e “falido”. De fato, como nos mostra Richmond (2010),
quase todas as abordagens de construção da paz normalmente colocam que a
agência internacional é boa enquanto que as agências locais são problemáticas.
Segundo Richmond (2010:683): “the space of the local, the everyday, and its
attendant actors are often seen as sites of violence, poverty, illiberalism, and
13 Da mesma forma, Derrida (2001) se opõe ao idealismo hegeliano tendo em vista que este busca suprimir as
oposições binárias, resolvendo sua contradição numa síntese, ou num terceiro termo. Derrida, por sua vez, se
opõe a qualquer tentativa de resolver, apaziguar ou reconciliar as ambigüidades.
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resistance (...) rather than varied and dynamics sites of politics in their own right
from which institutions may emerge”.
Vale notar que tanto os discursos sobre a identidade “pós-moderna” atribuída à
“Nova Europa”, como sobre a “pré-moderna” atribuída aos Estados africanos,
ressaltam o papel desempenhado pelos atores não-estatais, mas, enquanto no
primeiro caso, esse caráter pluralista do Estado adquire uma conotação positiva,
no segundo caso, as referências aos atores não-estatais sempre são feitas no
sentido de reforçar o caráter caótico dos mesmos. Como nos lembra Crawford
(1996), nas estórias caricaturais da África não existem corporações multinacionais
e “if one were to trust the western press, there are no social movements, unions,
student activists, political parties, intellectuals, writers, or artists worth mentioning”
(Crawford, 1996:33). Essa leitura depreciativa da diferença nos condiciona a
enfocar apenas a natureza tradicional e violenta das sociedades pós-coloniais, as
quais passam a ser vistas como meros entraves para os esforços da ONU de
reconstrução e modernização dos seus Estados; o que inibe, por sua vez, que as
mesmas sejam incluídas como co-participantes desse processo. Nesse sentido,
segundo Brigg (2010:431): “indigenous and marginalised people remain, as in the
colonial era, peoples without king, law, or history”
Se, por um lado, criticamos aqui as tendências contemporâneas da literatura
sobre as “novas” operações de paz no sentido de associar o “local” com a
“tradição” e, por tabela, com a “regressão”, a “desordem” e a “violência étnica”, por
outro lado, estamos cientes do risco inverso, a saber, o de romantizar e enaltecer
o “local” (Lidén, 2009; Kaplan, 2009; Richmond, 2010; Mac Ginty, 2010).
Abandona-se, portanto, a associação usual entre o “global” e a dominação e entre
o “local” e a resistência, uma vez que, tal como nos mostra Darby (1996), o
“global” passa a residir no marco do “local”. Embora convenientemente
negligenciada, por meio de histórias seletivas, a presença do “global” no “local”,
para Darby (1996), é um tributo do envolvimento colonial na reconfiguração das
identidades locais, o qual, muitas vezes, foi responsável pelo acirramento da
identificação étnica e comunal.
O reconhecimento do “global” no “local”, portanto, faz com que não possamos
mais traçar uma linha fixa clara entre o doméstico, aquilo que se passa no âmbito
das fronteiras somalis, por exemplo, e os processos globais. Tais processos
passam a ser cúmplices da recente eclosão de violência nas sociedades pós-
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coloniais, a qual é, conforme mostrado, usualmente vista como um problema
endógeno.
A denúncia pós-colonial do logocentrismo e da tendência à depreciação da
diferença subjacente ao discurso dos atores ocidentais que hoje vem se colocando
a frente das “novas” operações de paz contribui para desestabilizar a alegada
natureza inédita, progressiva, humanitária e inclusiva das mesmas. Essas
operações, conforme esse ensaio veio argumentando, continuam norteadas por
uma velha lógica modernizadora que, tal como ocorria à época colonial, continua
dividindo os seres humanos em estágios definidos pelo Ocidente e, a partir de tal
classificação, criando as condições de possibilidade para intervenções cada vez
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