A Harmonia Das Esferas

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A Harmonia das Esferas Gregório Queiroz Artigo anterior | Parte 2 Para entender o que significam os planetas, é preciso olhar para seu movimento enquanto ciclo e onda, enquanto ondas do tempo, e não apenas como corpos no espaço. Esta concepção já havia sido percebida por Kepler quando elaborou o conceito da Harmonia das Esferas. Este artigo é continuação do anterior, O que os corpos celestes tem a ver comigo . No começo do século XVIII, um inventor e relojoeiro inglês, juntamente com um especialista em fabricar instrumentos de precisão, criaram a primeira máquina que reproduzia o movimento dos planetas em torno do Sol; primeiro, criaram um mecanismo que reproduzia os movimentos da Terra em torno do Sol, e da Lua em torno da Terra; em seguida, uma máquina mais completa, reproduzindo os movimentos dos planetas em torno do Sol. Esferas representavam os planetas a orbitar em torno de uma esfera central representando o Sol. Por meio de um sistema mecânico engenhoso, cada planeta circundava o ponto central

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A Harmonia das EsferasGregrio Queiroz

Artigo anterior | Parte 2Para entender o que significam os planetas, preciso olhar para seu movimento enquanto ciclo e onda, enquanto ondas do tempo, e no apenas como corpos no espao. Esta concepo j havia sido percebida por Kepler quando elaborou o conceito da Harmonia das Esferas.Este artigo continuao do anterior, O que os corpos celestes tem a ver comigo.No comeo do sculo XVIII, um inventor e relojoeiro ingls, juntamente com um especialista em fabricar instrumentos de preciso, criaram a primeira mquina que reproduzia o movimento dos planetas em torno do Sol; primeiro, criaram um mecanismo que reproduzia os movimentos da Terra em torno do Sol, e da Lua em torno da Terra; em seguida, uma mquina mais completa, reproduzindo os movimentos dos planetas em torno do Sol. Esferas representavam os planetas a orbitar em torno de uma esfera central representando o Sol. Por meio de um sistema mecnico engenhoso, cada planeta circundava o ponto central com uma velocidade diferente. Acionadas por engrenagens e uma manivela que colocava todo o mecanismo em funcionamento, esta mquina, mais do que reproduzir o tamanho dos planetas ou as corretas distncias destes para o Sol, reproduzia a forma e a proporo aproximadas de seus movimentos. Foto: planetrio construdo no final do sculo XVIII pelo arteso, relojoeiro e cientista George Adams, Jr. (1750-1795) para o rei George III. Abaixo: globo terrestre do mesmo arteso. Este planetrio mecnico e movente mostrava o sistema solar a partir de uma perspectiva diferente daquela que temos quando olhamos diretamente o cu ou, ao menos, olhando o cu sem observao mais atenta (olhando-o sem reparar em seus ciclos e movimentos, reparando apenas na impresso espacial esttica). Com esta mquina podia-se ver o deslocamento das esferas em suas rbitas, seus diferentes tempos de deslocamento, as propores entre as rbitas, e assim o aspecto do tempo presente no movimento do sistema solar tornava-se visvel aos olhos humanos. Os acordes do tempo observveis nos corpos do sistema solar tornaram-se evidentes, quase palpveis.Foi um relojoeiro quem primeiro idealizou e construiu essa rplica do movimento do sistema solar. O mecanismo utilizado na construo desse planetrio em movimento era o mesmo utilizado na construo dos relgios: engrenagens de diferentes tamanhos movendo ponteiros em diferentes velocidades em torno de um mesmo eixo central. O sistema solar se assemelharia, segundo essas mquinas e seus construtores, a um relgio, a um marcador do tempo. Cada ponteiro do relgio tem uma velocidade prpria sua, assim como cada planeta tem sua velocidade prpria em torno do Sol. Sobre esta analogia se assenta a construo desse tipo de planetrio, mas se assenta tambm uma fronteira sutil e confusa entre os limites da dimenso tempo e da dimenso espao.O relgio reconhecidamente o instrumento utilizado para marcar o tempo, o instrumento que traz visualizao e, de certo modo, tangibilidade, essa dimenso to mais incorprea do que o espao, que o tempo. O relgio uma mquina que parece medir a passagem do tempo. Contudo, o que temos no relgio com ponteiros e mostrador, o deslocamento dos ponteiros pelo espao; indiretamente, inferimos desse deslocamento uma medida de tempo. Os trs ponteiros do relgio clssico deslocam-se a diferentes velocidades e isso o que faz com que cada ponteiro se desloque pelo mesmo espao em diferentes tempos; a diferena entre essas velocidades de deslocamento em um mesmo espao que acabamos por chamar de tempos diferentes: as horas, os minutos e os segundos.O tempo que reconhecemos a partir do relgio um tempo espacializado, no dizer de Brgson. No tempo realmente, corpo percorrendo o espao. Por meio de um artifcio de percepo, chamamos isso de tempo, e com esse tempo organizamos nossa vida prtica, ao estabelecermos as divises do tempo em partes iguais. Contudo, se olharmos um relgio sem os ponteiros, essas divises do tempo em partes iguais permanecem l como divises do espao, mais acuradamente divises da circunferncia em doze partes iguais. Temos aqui um grfico muito semelhante ao grfico astrolgico.No preciso dizer como as experincias psicolgicas, mesmo as mais simples, desmentem ser esse tempo espacializado a essncia real da dimenso tempo.O relgio nada sabe de possveis diferenas de qualidade do tempo, de diferentes modos de atuao do tempo nem de dinmicas que possam ocorrer em um determinado instante mas no em outro. Em resumo, o relgio nada sabe efetivamente da passagem do tempo; o relgio sabe dividir o tempo em pores equivalente a certos trajetos de ponteiros pelo espao [1]. O relgio marca um tempo retirado de sua verdadeira natureza e traduzido para a natureza espacial. O relgio marca o espao. No dizer de Bergson, o tempo mensurvel tempo espacializado, tempo que teve sua verdadeira natureza sacrificada [2]. Apesar de tudo isso, por meio do relgio que estabelecemos uma relao organizada para com o tempo. por meio do tempo espacializado que esta dimenso impalpvel se aproxima, no apenas de nossos instrumentos de medio mas tambm de uma ordem mental capaz de cont-la. Podemos no compreender a natureza do tempo atravs de um relgio, mas por meio dele organizamos nossa relao com o tempo. A espacializao do tempo parece ser condio para que este se torne palpvel aos sentidos e organizvel pelo intelecto.O movimento dos ponteiros dos relgios em torno de seu eixo central tem muita semelhana com o movimento dos planetas em torno do Sol, com os movimentos que definem a posio espacial dos planetas e astros que utilizamos no trabalho astrolgico. No obstante, a Astrologia trabalha, por assim dizer, no sentido contrrio ao do relgio. O tempo como nos dado pelo movimento dos planetas um tempo cclico, o tempo de um deslocamento que vai at um ponto diametralmente oposto e deste retorna sua origem seja qual for o ponto que escolhamos como origem. Completado o ciclo, o movimento do planeta retoma mais uma vez o mesmo ciclo: um planeta est sempre a ir adiante desde e a voltar para em cada um dos pontos a partir do qual se tome seu ciclo. No apenas a rbita completa dos planetas em torno do Sol (ou a da Lua em torno da Terra) um ir adiante desde e um voltar para, mas cada instante que se tome na rbita contm esse ir e esse voltar: o conjunto da rbita e cada trecho embora visualmente percebidos um fluxo so mais propriamente uma oscilao entre os pontos percorridos.

Embora visual e espacialmente o astro siga uma trajetria contnua em sua rbita, seu aspecto temporal melhor compreendido e visualizado como ciclo, como onda. Em termos do tempo, o que se tem um balano rtmico, um ir e vir, uma descida desde a crista da onda, uma reverso do movimento no trmino da onda, um ascender em direo a uma nova crista, o atingimento do cume o qual imediatamente se torna nova descida com o que outra onda comea. A oscilao rtmica no visualmente aparente no movimento do astro, entretanto ela a marca da dinmica temporal do astro em sua rbita. Em termos de espao, trajetria contnua; em termos de tempo, oscilao rtmica.O mesmo acontece com a msica. Uma melodia segue como um fluxo em uma direo (as linhas da partitura mostram graficamente esse aspecto da msica: a sequncia linear de notas). Contudo, a sucesso do tempo na msica no mero fluxo, no simples passagem linear do tempo, no um tempo feito de uma linha infinita para adiante, mas o tempo ouvido na msica uma combinao de fluxo e ciclo, o tempo musical mais bem caracterizado como onda. A mtrica e o ritmo da msica existem pelo balano de ida e vinda do tempo, pelo tempo apresentado com acentuaes que perfazem uma ida e uma vinda, da batida 1 de um compasso para sua batida 2, e de volta para a batida 1 (no caso de um compasso binrio, e analogamente para qualquer outro padro de compasso utilizado). Ou mesmo em uma msica onde no h compasso, essa ida e vinda, essa onda do tempo se faz audvel, como o caso do cantocho. A experincia musical mais simples, o entoar de um acalanto ou de uma marcha infantil, e tambm toda a estrutura da msica mais complexa, contm este oscilante vai e vem. No uma ida e vinda entre lugares do espao, pois que na msica no h deslocamento no espao (a no ser que os msicos se desloquem, como numa banda desfilando; mas a quem se desloca so os msicos: o movimento interno da msica no muda, seja ela tocada com seus msicos andando pelas ruas ou sentados em cadeiras em um palco o movimento da msica de outra natureza que no o de corpos em trajetria pelo espao). O deslocamento de ida e vinda com o qual estamos descrevendo o tempo no corresponde a um trajeto no espao, e sim a uma mudana ondulante de estados dinmicos que transcorre no tempo. O tempo na msica se revela como sendo primordialmente uma onda cclica; e esta uma caracterstica do tempo, e no apenas do tempo musical, uma caracterstica prpria do tempo que a msica desvela e torna transparente.Podemos ainda dispensar as diferenas das notas e deixar nada que no a mesma nota soando sempre por iguais extenses de tempo, - - - - -. Ainda aqui, e na verdade aqui com particular clareza, h ainda o para c e para l, o movimento pendular, a onda; nunca como temos demonstrado suficientemente h mera seqncia. O que produz a onda? O que gera a distino entre para c e para l? A nota sempre a mesma; a interrupo sempre a mesma; o intervalo de tempo sempre o mesmo. Somente uma coisa diferente: o instante no qual a nota soa. Nada acontece de uma nota a outra nota salvo uma coisa: o tempo transcorre. O mero fato da sucesso temporal das notas, e nada mais, pode produzir a distino entre para c e para l: o movimento pendular, a onda, o trabalho do mero lapso de tempo. A onda no um evento no tempo mas um evento do tempo. O tempo acontece; o tempo um evento. [3] msica, costuma-se atribuir a caracterstica de arte do tempo. E naturalmente que assim. A obra musical no nos dada toda ao mesmo tempo, como um quadro, uma escultura ou uma obra arquitetnica que esto diante de nossa percepo inteiros a um s instante. As notas da msica nos so dadas em uma sucesso temporal. Uma nota soa depois da outra; isto msica. Fazer soar todas as notas de uma obra musical ao mesmo tempo tirar-lhe o sentido. A msica ocupa uma certa durao do tempo, e esta a primeira maneira da msica trazer a dimenso tempo nossa percepo mais direta: ao percebermos msica, percebemos com mais proximidade o transcurso do tempo.Contudo, o tempo musical revela uma outra face do tempo que no identificada primeira vista, que no apenas seu transcurso linear. Assim como os planetas percorrem suas rbitas, as notas musicais se seguem no tempo linear, mas em ambos os fenmenos uma segunda dimenso do tempo se abre nossa percepo. Estamos familiarizados com o tempo como sendo apenas o contnuo transcurso passado presente futuro. Contudo, a msica abre essa outra janela sobre a realidade do tempo, e por esta mesma janela contemplamos tambm o movimento planetrio com outros olhos: olhamos para sua dinmica e no apenas para a trajetria de seus corpos; olhamos para seu movimento enquanto ciclo e onda, enquanto ondas do tempo, e no apenas como corpos no espao.No toa, os antigos quando quiseram falar da percepo mais elevada que os astros lhes inspiravam, a impresso do universo como algo vivo, falaram da harmonia das esferas, um termo musical referido aos astros. A msica dos astros no est na consonncia espacial entre eles, no faria sentido chamar isso de harmonia. O simples fato de eles se moverem a diferentes rbitas e velocidades no promove um soar conjunto e internamente ordenado, uma harmonia. A ordenao musical e harmoniosa dos astros s percebida realmente no entendimento de que o cerne movente dos astros, o aspecto temporal de sua natureza, segue propores cclicas. Kepler [imagem abaixo] dedicou parte de sua obra para demonstrar a existncia de propores matemticas entre as rbitas planetrias e a as notas da escala diatnica, chamando de arqutipos [4] estas propores encontradas muito semelhantemente na msica e nos planetas.A imagem das constelaes circulando no-sonoramente no uma imagem da vida para ns. No do movimento das esferas mas de sua harmonia, seu soar conjunto, da qual o homem falou quando pensou no universo como sendo vivo. Pareceu a ele que a vida universal deveria revelar-se como algo audvel mais do que visvel. Talvez seja levar a anttese muito longe dizermos que o homem atinge a interioridade da vida pela audio e sua exterioridade pela viso. [5] O cerne dos seres feito de tempo; a forma dos seres feita de espao. A audio e a msica escancaram a natureza do tempo nossa percepo, e por meio delas podemos compreender ao que se refere aquilo que os astros simbolizam to empaticamente a ponto de serem aquilo que indicam muito mais do que apenas indicarem (deixando de ser apenas referncia espacialmente distante): a qualidade das dinmicas do tempo no qual vivemos. No a posio que o astro ocupa no espao o que importa para a Astrologia, mas sim a fase da onda cclica que o astro ocupa no tempo.A Astrologia nos faz conhecer o que se passa com alguns aspectos do ser humano e da natureza, a partir da correlao entre a fase da onda cclica do astro no cu e a dinmica presente no cerne dos seres e da natureza. o tempo o que compartilhamos com os astros, no o espao. Afinal, o espao nos separa dando a cada um o seu lugar: coisas s podem ocupar diferentes lugares do espao. No obstante, partilhamos o mesmo tempo com os planetas no cu. O que compartilhamos ou, mais enfaticamente, o que nos une com a disposio planetria no uma certa disposio dos planetas pelo espao, mas sim a disposio destes no tempo.A distncia do espao pouco importa na Astrologia; importa o tempo compartilhado com os astros no instante de um evento ou nascimento, o qual pode ser lido na carta astrolgica que agora sabemos por qual motivo pode ser chamado de um grfico do tempo. E isso no apenas porque a carta levantada para um instante do tempo. J vimos que o aspecto linear do tempo espacializado o que menos conta aqui. A carta astrolgica um grfico do tempo pois que nos d a conhecer a qualidade da dinmica presente num dado momento do tempo e conseqentemente e esta a grande afirmao da Astrologia est correlacionado s qualidades dinmicas presente em um ser nascido naquele instante ou em um evento que est a ocorrer naquele instante.NOTAS[1] Uma rgua tambm nada sabe da natureza do espao, embora a utilizemos como padro para mensur-lo. Contudo, as diferentes naturezas do espao esto ao acesso direto da viso e do tato, enquanto a natureza do tempo no assim acessvel.[2] Apud Zuckerkandl, em Sound and Symbol.[3] Zuckerkandl, 1976 p. 124.[4] Kepler, 1995, p. 210. Astrlogos podem reivindicar esta palavra como pertencente ao estudo do significado das propores dos astros, muito antes que psiclogos deitassem sobre ela suas reivindicaes.[5] Zuckerkandl, 1976, pg 5.Referncias BibliogrficasKEPLER, Johannes. Harmonies of the World. New York: Prometheus Books, 1995.ZUCKERKANDL, Victor. Sound and Symbol: Music and the External World. Princeton: Princeton University Press, 1973.ZUCKERKANDL, Victor. Man the Musician. Princeton: Princeton University Press, 1976. Outros artigos de Gregrio Pereira de Queiroz