A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou...

13
A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD COMO UM REGISTRO DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NUNES, Meire Aparecida Lóde - UEM [email protected] OLIVEIRA, Terezinha - UEM [email protected] Eixo Temático: História da Educação Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo O texto em tela está vinculado a uma pesquisa mais ampla que tem como objetivo geral investigar, por meio da análise das obras de Hieronymus Bosch (1450-1516), a História da Educação no final da Idade Média. Assim, nossa intenção nesse estudo, é enriquecer a fundamentação teórica acerca da contextualização social do pecado, pois sabemos que durante a Idade Média uma das formas das ações humanas serem comedidas era o temor dos castigos pelas transgressões as leis de Deus, as quais eram difundidas pelo cristianismo. Entretanto, será que no período de transição para o Renascimento o pecado se mantém como um elemento de direcionamento da conduta humana? Procurando refletir acerca dessa indagação, direcionamos nosso olhar, especificamente, à gula e da luxúria, uma vez que esses pecados são recorrentes nas pinturas de Bosch. Utilizamos as imagens de Bosch e Robinet Tetard (1475–1523), com o intuito de verificar a mesma temática em contextos diferentes, uma vez que o primeiro artista é holandês e o segundo francês. Esse nossa opção em verificar como diferentes artistas trataram a mesma temática se fundamenta em Panofsky, o qual pontua a importância de buscar abordagens distintas quando a proposta é a análise iconográfica. Por meio das reflexões verificamos que o modo de pensar de uma sociedade não muda de modo abrupto, mas sim é decorrente de um longo processo social e mesmo assim, existem temáticas que se perpetuam. Dessa forma, ressaltamos a importância das fontes iconográficas para o estudo histórico, pois, configuram-se um registro de como os homens se posicionaram diante de suas sociedades. Palavras-chave: História da Educação. Gula e luxúria. Iconografia. Bosch e Testard. Introdução O rompimento de um período histórico para o surgimento de outro não se evidencia apenas em um campo da sociedade e nem ocorre de forma precisa. Esse é um processo

Transcript of A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou...

Page 1: A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme

A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD

COMO UM REGISTRO DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

NUNES, Meire Aparecida Lóde - UEM [email protected]

OLIVEIRA, Terezinha - UEM

[email protected]

Eixo Temático: História da Educação Agência Financiadora: Não contou com financiamento

Resumo O texto em tela está vinculado a uma pesquisa mais ampla que tem como objetivo geral investigar, por meio da análise das obras de Hieronymus Bosch (1450-1516), a História da Educação no final da Idade Média. Assim, nossa intenção nesse estudo, é enriquecer a fundamentação teórica acerca da contextualização social do pecado, pois sabemos que durante a Idade Média uma das formas das ações humanas serem comedidas era o temor dos castigos pelas transgressões as leis de Deus, as quais eram difundidas pelo cristianismo. Entretanto, será que no período de transição para o Renascimento o pecado se mantém como um elemento de direcionamento da conduta humana? Procurando refletir acerca dessa indagação, direcionamos nosso olhar, especificamente, à gula e da luxúria, uma vez que esses pecados são recorrentes nas pinturas de Bosch. Utilizamos as imagens de Bosch e Robinet Tetard (1475–1523), com o intuito de verificar a mesma temática em contextos diferentes, uma vez que o primeiro artista é holandês e o segundo francês. Esse nossa opção em verificar como diferentes artistas trataram a mesma temática se fundamenta em Panofsky, o qual pontua a importância de buscar abordagens distintas quando a proposta é a análise iconográfica. Por meio das reflexões verificamos que o modo de pensar de uma sociedade não muda de modo abrupto, mas sim é decorrente de um longo processo social e mesmo assim, existem temáticas que se perpetuam. Dessa forma, ressaltamos a importância das fontes iconográficas para o estudo histórico, pois, configuram-se um registro de como os homens se posicionaram diante de suas sociedades. Palavras-chave: História da Educação. Gula e luxúria. Iconografia. Bosch e Testard.

Introdução

O rompimento de um período histórico para o surgimento de outro não se evidencia

apenas em um campo da sociedade e nem ocorre de forma precisa. Esse é um processo

Page 2: A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme

10326

lento que rompe gradativamente com determinados pensamentos e pode, mesmo com a

mudança generalizada, manter preceitos de outrora. Esse fato pode ser evidenciado por

meio do pensamento religioso que foi predominante na Idade Média e colocava Deus no

centro do universo. No Renascimento essa forma de pensar ganha outros contornos, os

quais vão levando o homem a rever seu posicionamento. Todavia, o pensamento religioso

não foi banido da humanidade ele se perpetua, com outro formato, como podemos verificar

no apontamento de Huizinga (19--, p. 145) ao comentar da morte no declínio da Idade

Média “[...] Em tempos anteriores também a religião tinha insistido no constante

pensamento da morte, mas os tratados religiosos dessas idades apenas iam às mãos

daqueles que tinham voltado costas ao Mundo”. Portanto podemos verificar que um

mesmo tema pode ser entendido de forma diferente conforme o período, ou seja, a forma

de entender determinado conceito é uma conseqüência de como a mentalidade social esta

construída.

Diante desse pressuposto, apresentamos nosso tema de abordagem: o pecado.

Sabemos que a sociedade medieval estruturou-se seguindo as regras do Cristianismo, o

qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar

contra sua natureza de pecar, conforme o pensamento medieval, a vida terrena é o local

onde essa batalha deve ser travada. Dessa forma, o pecado pode ser entendido como um

preceito para o comportamento do homem e determinante na organização da sociedade,

mas que pode assumir um significado distinto conforme o período histórico questionado.

Nossas reflexões acerca do pecado serão feitas com o olhar da História da

Educação, sendo que a efetivação da pesquisa será pela analise de imagens, por

acreditarmos no grande valor histórico das fontes iconográfica. Segundo Burke (2004) a

iconografia é muito importante, pois foi usada como uma forma de doutrinação religiosa.

Dessa forma “[...] elas também são um meio, através do qual, historiadores podem

recuperar experiências religiosas passadas, contanto que eles estejam aptos a interpretar a

iconografia” (BURKE, 2004, p. 58). Contudo, a análise iconografia requer um

conhecimento especifico, sobre essa questão Panofsky (2007) pontua que esse tipo de

estudo requer mais do que as experiências práticas, pois para analisar as imagens faz-se

necessário uma proximidade com conceitos e temas específicos, os quais podem ser

adquiridos por meio de fontes literárias. Contudo, apenas o conhecimento por meio das

fontes literárias não garantem a exatidão da análise. Portanto, há a necessidade de uma

investigação em outras imagens sobre o ponto de indagação não esclarecido por meio da

Page 3: A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme

10327

literatura. Essa investigação é nomeada pelo autor como História dos Tipos, a qual visa

“compreensão da maneira pela qual, sob diferentes condições históricas, temas ou

conceitos foram expressos por objetos e eventos” (Panofsky 2007, p.65).

Diante dessa perspectiva, nossa proposta se concretiza pela analise da obra de

Bosch, Os Sete Pecados Mortais e o Quatro Novíssimos do Homem, sendo que o fio

condutor se estabelece pela premissa de como Bosch, enquanto um representante do

ideário mental do declínio da Idade Média, materializava as preocupações acerca do

pecado em sua arte. Para dialogar com Bosch, visando verificar como o pensamento sobre

o pecado permanece inserido nas sociedades, trazemos as iluminuras do século XV do

francês Robinet Testard (1475-1523).

Nossa opção em refletir sobre a História da Educação por meio da Arte de

Hieronymus Bosch, um pintor que viveu no sul da Holanda durante a Baixa Idade Média,

se justifica pelo fato desse ser um artista, o qual, até os dias atuais, desperta muitas

inquietações naqueles que se deparam e tentam entender suas criações. Autor de uma Arte

cheia de especificidades, muitas vezes, pode nos remeter à um fantástico mundo de sonhos,

ou pesadelos, Bosch é a expressão de muitas contradições que permeiam o imaginário

humano e, portanto, pode nos oferecer muitas contribuições quando se deseja pensar a

cerca da desconstrução e reconstrução do imaginário coletivo que caracteriza o final da

Idade Média. Diante dessa complexidade simbólica que se instaura as obras de Bosch,

entendemos que o conjunto de seus quadros representa uma fonte riquíssima ao estudo da

História da Educação. Já a opção pelas iluminuras de Testard, vem pelo fato de

verificarmos que mesmo os artistas estando inseridos em um mesmo contexto histórico,

cada um tem suas particularidades decorrentes das experiências vividas de forma

especifica. Assim, propomos o dialogo entre as criações de dois homens que viveram no

mesmo período, porém um francês e outro holandês, com o intuito de verificar como esses

tratavam de um mesmo tema. Ressaltamos que não é nossa intenção relacionar o contexto

dos artistas e nem suas particularidades, nesse momento, procuramos identificar as

similaridades e divergências em suas representações.

O texto estrutura-se partindo da abordagem da obra Os sete pecados mortais e os

quatro novíssimos do homem, pois temos como foco central de nossas pesquisas estudar o

período de transição entre a Idade Média e Renascimento por meio da analise das criações

de Bosch, constituindo-se, portanto, nossa fonte principal de reflexão. Na seqüência

Page 4: A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme

10328

entramos na abordagem acerca da relação entre os pecados, especificamente da gula e da

luxuria, presentes nas imagens de Bosch e Testard.

‘Os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos’ refletindo os conceitos de pecado no

final da Idade Média.

Bosch foi criador de um legado de obras que produz inquietações àqueles que

tentam decifrá-las, principalmente devido às poucas informações que se tem a seu respeito,

o que dificulta a reconstrução de sua contextualização, mas ao mesmo tempo torna-se

fascinante pelas múltiplas interpretações que nos possibilita. Não se pode afirmar com

precisão a intenção de suas obras, contudo a maioria dos historiadores de arte entende seus

quadros como reflexo das expectativas e angústias do final da Idade Média, como

traduções visuais da mentalidade do homem medievo. Esse apontamento é consolidado

quando analisamos a afirmação de Huizinga (19--, p. 159) que

No final da Idade Média dois factores dominaram a vida religiosa: a extrema tensão da atmosfera religiosa e a marcada tendência do pensamento a representar-se em imagens. [...] O espírito da Idade Média, ainda plástico e

ingênuo, anseia por dar forma concreta a todas as concepções. Cada

pensamento procura expressão numa imagem, mas nessa imagem se solidifica e se torna rígido.

Page 5: A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme

10329

Figura 1: Os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos do Homem

Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/Image:Hieronymus_Bosch

The_Seven_Deadly_Sins_and_the_Four_Last_Things.JP

Assim, essa busca que se instaura no sentido de expressar o pensamento numa

imagem favorece nosso caminhar rumo ao entendimento desse período por meio da Arte.

Para efetivarmos nossa proposta, adentrando no universo que constitui o pensamento

medieval trazemos um tampo de mesa que Bosch pintou, no qual está expresso os sete

pecados capitais. A obra que recebe o nome de Os Sete Pecados Mortais e o Quatro

Novíssimos do Homem (figura 1), traz uma temática que era muito comum nesse período,

pois a Idade Média foi um período em que o pensamento do homem era conduzido por um

ideal de felicidade pós morte. A recompensa, que seria a vida eterna no Reino dos Céus,

somente seria dada a aqueles que conseguissem ter uma vida terrena condizente com os

preceitos de Deus, os pecados constituem-se como obstáculos a serem vencidos pelos

homens. O homem do final do medievo vivia nesse momento, em uma constante aflição,

uma tristeza generalizada, uma falta de esperança que se agravava “[...] pela obsessão da

proximidade do fim do mundo, pelo medo do inferno, das bruxas e dos demônios. O pano

de fundo de todos os modos de vida parecia negro. Por toda a parte as chamas do ódio se

alteiam e a injustiça reina. Satã cobre com as suas asas sombrias a Terra triste”

(HUIZINGA 19--, p. 30).

A obsessão pela aproximação do dia do Juízo Final, no qual cada um seria julgado

de acordo com seus atos, era um fator que contribuía para a propagação do tema dos sete

pecados capitais. Para entendermos o sentido de pecado vamos nos fundamentar em Tomás

de Aquino, que na tradução de Lauand (2004, p. 89-90), elucida que “[...] o desejo de

conhecer é natural ao homem, e tender ao conhecimento de acordo com os ditames da reta

razão é virtuosismo e louvável: ir além dessa regra é pecado da curiositas, ficar aquém dela

é pecado da negligência”. Podemos entender que o princípio para o homem não pecar está

na razão. Os atos realizados de forma comedida não se caracterizam como pecado, o que o

leva a este estado é a extrapolação dos limites, o qual se dá pela falta de consciência, ou

razão. Portanto, em um momento em que a sociedade se encontra desorientada, há a

necessidade de uma retomada de consciência, assim quando Bosing (2006) afirma que “É

Page 6: A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme

10330

de supor que o tampo de mesa do Prado servia de incentivo à meditação, nomeadamente,

ao exame de consciência intensivo que todos os bons cristãos deveriam fazer antes da

confissão” leva-nos a entender que a obra de Bosch vem a atender essa necessidade de

conscientização, para que os atos do homem não sejam excedentes ao ponto de

transgredirem o bem social.

O fato evidenciado em Tomás de Aquino, do homem ser virtuoso ou pecador como

conseqüência de sua razão e a pintura de Bosch ter a função de meditação, a qual influirá

nas ações humanas, nos leva a uma outra questão característica desse período de transição

entre a Idade Media e o Renascimento: o homem passa ser responsável pelos seus atos.

Deus continua a ser o centro, mas o homem, pela sua razão, é senhor de seu destino, esse

apontamento pode ser verificado ao observarmos o tampo de mesa de Bosch que é

composta por um círculo central, os sete pecados estão distribuídos em volta desse circulo

formando outro maior. A disposição dos pecados em círculo não é inédita, o que de fato é

interessante, de acordo com Bosing (2006), é o fato de Bosch ter transformado essa

disposição no olho de Deus que tudo vê, pois no centro do circulo central está Jesus

mostrando suas chagas e a sua volta está escrito “Cuidado, cuidado, o Senhor vê”. Esse

cenário, mostrado por Bosch leva o medievo a refletir seus atos, pois, a justiça divina que

tudo vê, julgará as ações do homem sim, porém ele, o homem, pode, por meio da razão, ser

virtuoso ou pecador.

Em torno da representação de Jesus Cristo, Bosch traz cada um dos pecados

capitais e nos quatro cantos do painel são representados em pequenos círculos a Morte, o

Juízo Final, o Céu e Inferno. Essas quatro pinturas não serão discutidas nesse momento,

pois são temas de grande complexidade e sua abordagem não está dentro da nossa

delimitação que é estabelecida pelos pecados capitais.

A gula e a luxúria nas criações de Bosch e Testard

Dos sete pecados capitais apresentados por Bosch, nota-se, em outras obras como A

Nave dos Loucos e Alegoria da Gula e da Luxuria, uma tendência em representar

principalmente a gula e a luxúria. Bosing (2006) elucida que durante o século XV

ocorreram muitas críticas a esses dois pecados, sendo entendidos como os mais

corriqueiros dentro dos conventos. Nessa perspectiva, nos delimitamos a fazer alguns

apontamentos apenas à esses dois pecados.

Page 7: A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme

10331

Seguindo nosso delineamento, iniciamos nossa abordagem pela luxuria. Sobre esse

pecado Tomás de Aquino pontua que o prazer sexual e a finalidade da luxuria, sendo esse

o mais intenso dos prazeres corporais e, portanto entendido como vicio capital. Esse vício

capital, que tem como matéria os prazeres sexuais, pode ser isento de pecado quando o seu

fim, guiado pela razão, é voltado à conservação da espécie humana. Contudo, a obra de

Bosch apresenta uma cena que está mais voltada a satisfação carnal. Esse apontamento

ganha mais significação ao observarmos, no lado direito da imagem, um casal cuja

aparência nos remete à dois homens. As relações homossexuais são muito comuns desde a

Antiguidade, como podemos comprovar nos apontamentos de Ullmann (2007, p. 16) “Já

no século VI a. C a homossexualidade estava espalhada amplamente pela Grécia. E devido

à pouca oposição do povo a esse fenômeno, os atenienses, no século IV antes de nossa era,

aceitavam, sem problema, o intercurso sexual entre homens”. Contudo, essa situação não é

a mesma na Idade Média, sendo condenada pela doutrina cristã, pois contraria o destino

das relações carnais pelo fato de não levar a reprodução ficando relegada apenas as

satisfações terrenas.

Figura 2: Os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos do Homem (detalhe: Luxúria)

Fonte:http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jheronimus_Bosch_Table_of_the_Mortal_Sins_(Luxuria).jpg

A ilustração é composta também pela presença de dois outros casais, sendo que um

deles está em segundo plano em posição mais reservada dentro de uma tenda e as

condições em que se encontram proporciona um ar de intimidade devido a proximidade e o

gesto que o homem está em relação a mulher. O segundo casal encontra-se em primeiro

plano, mesmo estando distante do anterior, esses também estão amparados por uma parte

da tenda que dá uma dupla intenção: ao mesmo tempo em que a ação parece ser pública

também tem um aspecto de privado. Observamos no local, sobre uma mesa, uma jarra de

vinho e frutos vermelhos sendo esses símbolos da luxúria, desde a mitologia grega. A

Page 8: A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme

10332

relação do vinho como a luxúria, origina-se dos festivais conhecidos como bacanais em

honra de Baco, o deus do vinho, “Tais cerimônias tornaram-se violentas orgias, nas quais

era consumida carne crua de animais” (CARR-GOMM 2004, p. 35). O vinho, ainda, pode

ser entendido como veiculo que leva ao êxtase, um meio de liberdade dos prazeres, de

abandonar a racionalidade, ou seja, um facilitador à irracionalidade. Entretanto,

simplesmente o ato da luxuria em si já conduz à esse estado

Há um fato evidente: quando a alma se volta veemente para um ato de uma faculdade inferior, as faculdades superiores se debilitam e se desorientam em seu agir. No caso da Luxuria, por causa da intensidade do prazer, a alma se ordena às potencias inferiores – à potencia concupiscível e ao sentido do tato. E é assim que, necessariamente, as potencias superiores, isto é, a razão e a vontade, sofrem uma deficiência (TOMÁS DE AQUINO, 2004, p. 108).

Esse apontamento de Tomás de Aquino pode ser relacionado com a imagem do

francês Testard, que no Livro de Horas, traz iluminuras dos sete pecados capitais. Suas

representações são organizadas em duas partes, uma superior e outra inferior. Na parte

superior observam-se as características que nos remete a cada pecado se configurando na

imagem de um homem, assim, podemos entender o pecado agindo nas faculdades

superiores, na razão, que tem uma conseqüência em seu agir. A ação dos homens tomados

pelo pecado pode ser observada na parte inferior da imagem de Testard, que ilustra uma

cena da sociedade sendo guiada pelas faculdades inferiores do homem.

Figura 3: Luxúria de Robinet Testard (Book of Hours, France, Poitiers, ca. 1475 MS M.1001, fol. 98r)

Fonte: http://www.ricardocosta.com/pub/nocaopecado.htm

Page 9: A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme

10333

Na imagem que expressa a luxúria podemos observar, na parte superior, um

cavaleiro de aparência jovem usando um elegante traje. A postura do jovem é altiva, mas

em vez de montar um belo cavalo ele esta sobre um bode, o qual apresenta vários

significados, sendo que dentre eles há a relação com a luxúria, como Carr-Gomm (2004,p.

39) aponta “Os bodes também podem ser associados a Baco ou Pã e seus sátiros

libidinosos”. As conseqüências da luxúria na sociedade encontra-se expressa na parte

inferior da imagem, a qual apresenta de imediato um demônio indicando toda a ação. A

cena é composta por três situações, sendo que na parte central da imagem observamos uma

mulher sendo cortejada por três homens. A mulher está com sua mão direita dada a um de

seus assediadores e tem sua cintura tocada por outro que se encontra atrás dela, o terceiro

homem está próximo, mas não a toca. A mulher é representada com gestos de aprovação,

não apresenta nenhuma posição que nos leva a verificar sua rejeição aos três cavaleiros. No

canto direito da imagem encontra-se um casal, o homem está com a mão direita segurando

as costas da mulher e a outra está em baixo de seu vestido. A mulher está em uma posição

em que aparenta resistência à ação do homem. Logo atrás, que pode ser entendida como

um abuso sexual, tem outra mulher que assiste com conformidade a cenas a sua frente.

Por meio da observação dessa imagem podemos entender que o pecado é aceito e

praticado espontaneamente por uma parte da sociedade, enquanto que por outra não. A

resistência ao pecado não implica sua extinção da sociedade, pois existem questões que

não podem ser evitadas, como no caso da mulher que é molestada, a diferença corporal do

homem e da mulher que proporciona uma maior força física ao homem, permite a ele

impor a sua vontade mesmo diante da reprovação do outro. Temos ainda uma terceira parte

da sociedade, representada na imagem pela mulher que observa a cena e nada faz, que

pode ser entendida como aqueles que por não se manifesta nem a favor e nem contra,

contribuem para a permanência da situação.

Na mesma condição da luxúria, enquanto uma transgressão da razão, situamos a

gula. Esses pecados encontram-se no mesmo campo por serem entendidos como

pertencentes às coisas sensíveis, cujo prazer “se dá no tato: nas comidas e nos prazeres

venéreos, daí que a gula e a luxuria sejam considerados vícios capitais” (TOMÁS DE

AQUINO, 2004, p. 102).

Para abordarmos a gula retornando ao conceito de pecado e, portanto, novamente as

questões acerca da razão, pois o pecado sempre esta a margem da razão, podendo ser

entendido como uma ação desordenada acarretada pelo abandono às regras da razão. De

Page 10: A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme

10334

acordo com Tomás de Aquino, o que se torna mais difícil de se submeter a razão são os

prazeres naturais como o de beber e de comer. Essa ação desordenada pode ser visualidade

na imagem em que Bosch expressa o pecado da gula, a qual é composta por um homem

obeso sentado a mesa, comendo desenfreadamente. A seu lado tem a representação de uma

criança, também com aspecto obeso, que parece solicitar o alimento. Do seu lado oposto

está outro homem, esse, porém com um biótipo esguio, mas está a beber em uma jarra em

uma atitude que não apresenta nenhuma

moderação. Há ainda a figura de uma mulher

que traz mais alimentos em uma bandeja, ela

parece observar a cena que é constituída pelo

desejo sem temperança, por isso constitui-se

enquanto pecado, pois o ato de comer e beber

não é pecado quando realizado com

moderação com a finalidade de manutenção da vida corpórea.

Figura 4: Os Sete Pecados Mortais e os Quatro Novíssimos do Homem (detalhe: Gula)

Fonte:http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jheronimus_Bosch_Table_of_the_Mortal_Sins_(Gula).jpg

Situação muito semelhante é a que Testard usa para representar a gula. Na imagem

superior, indicando o pecado da gula encontra-se um cavaleiro de aparência obesa, assim

como na representação de Bosch, bebendo diretamente em uma jarra e segurando um

enorme pernil. O animal que o cavaleiro esta montado é um grande javali, também

chamado de “porco selvagem”, o qual Carr - Gromm (2004,p. 187) elucida que “Os porcos

também eram considerados animais gulosos e inclinados à lascívia”.

A parte inferior é composta, novamente com a presença do demônio que indica a

ação com uma das mãos e tem sua boca tampada com a outra. A cena principal configura-

se com uma mesa que ampara os alimentos. A sua volta encontram-se várias pessoas

comendo e bebendo de forma entusiasmada. No canto esquerdo da mesa observa-se uma

Page 11: A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme

10335

mulher segurando a cabeça de um homem que vomita, sendo essa, a nosso ver, a

representação que mais expressa a falta de temperança e caracteriza o prazer desmedido

pelo ato de comer.

Fica-nos evidenciado que as imagens, tanto de Bosch como de Testard, que

representavam os pecados, estão relacionadas às discussões feitas anteriormente por Tomás

de Aquino o que nos leva a entender que os artistas eram conhecedores do significado de

cada pecado. Como pouco se sabe a respeito dos artistas e por não ser intenção do trabalho,

nesse momento, realizar uma investigação biográfica, não podemos afirmar como precisão

como eles adquiriram esse conhecimento. Pelo fato dessa temática ser muito divulgada

nesse período acreditamos que esse conhecimento pode ser proveniente das doutrinas

eclesiásticas ou simplesmente da cultura popular medieval, como afirma Bosing (2006, p.

9), ao se remeter especificamente a Bosch, valendo-se das investigações realizadas pelo

flamengo Dirk Bax, “[...] devia-se, sobretudo procurar as fontes de Bosch nas doutrinas

eclesiásticas e na linguagem e nos costumes populares do seu tempo”. Contudo, atentamos

ao fato de que mesmo pautado em conhecimento corriqueiros, presente em outros

momentos, ambos os artistas, trouxeram em suas obras uma forma de reflexão sustentada

nas questões presentes em suas sociedades. A ambientação de ambos refletem a sociedade

do século XV, Bosch traz, quase que predominantemente os pecados em espaço externo

que evidencia as cidades holandesas e Testard, situa seus pecados em lugares internos,

remetendo-se a corte.

Figura5: Gula (Book of Hours, France, Poitiers, ca. 1475 MS M.1001, fol. 84)

Fonte: http://www.ricardocosta.com/pub/nocaopecado.htm

Page 12: A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme

10336

Assim, o estudo realizado vem comprovar nossa inquietação primeira, acerca da

importância de se estudar os registros deixados pelos artistas a fim de entender a

mentalidade coletiva das diferentes organizações em diferentes tempos históricos, bem

como, evidenciar que a ruptura com o imaginário coletivo não se dá abruptamente, mas de

forma gradativa, pois dois artistas distintos do século XV tratam de forma semelhante o

mesmo conteúdo que foi tratado por Tomás de Aquino no século XIII enquanto uma forma

de regular a sociedade, e que nos leva a entender que essa temática ainda estava presente

nessa sociedade de embates.

Considerações finais

Por meio das reflexões desenvolvidas no decorrer do texto pudemos entender que a

classificação dos períodos históricos são necessários para a localização do homem no

tempo, porém a alma coletiva de um povo não muda em uma data especifica, ela vai sendo

transformada ao longo dos tempos. Esse apontamento se evidencia ao abordarmos o

pecado, pois esse tema que agiu durante a Idade Média como uma forma de regular a

sociedade, ainda, no inicio do período subseqüente estava inserido nas reflexões, atuando

como mediadora das críticas às instituições sociais.

Esse apontamento ganha maiores proporções ao observarmos as semelhanças das

criações artísticas de Bosch e Testard, homens que viveram em lugares diferentes, mas que

abordando o mesmo tema se tornam próximo em alguns aspectos. Dessa forma ressaltamos

a importância da fonte iconográfica para o estudo da história de forma geral e,

especificamente à História da Educação.

REFERÊNCIA

BOSING, W. Hieronymus Bosch: cerca de 1450 a 1516. Entre o céu e o inferno. Paisagem, 2006.

BURKE. P. Testemunha ocular: historia e imagem. São Paulo: Edusc, 2004

CARDOSO, C. F. VAINFAS, R. Domínios da história : ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997

CARR-GOMM, S. Dicionário de símbolos na arte: guia ilustrado da pintura e da escultura ocidentais. São Paulo: Edusc, 2004.

Page 13: A GULA E A LUXÚRIA NAS IMAGENS DE BOSCH E TESTARD … · qual entende o pecado como um ato ou desejo contra as leis de Deus. O homem deve lutar contra sua natureza de pecar, conforme

10337

LAUND, L. (trad.). Sobre o saber (De magistro), os sete pecados capitais. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004

HUIZINGA, J. O declínio da Idade Média. Ulisseia, [19--]

TOMÁS DE AQUINO. Sobre o saber (De magistro), os sete pecados capitais. Trad. e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004

ULLMANN, R. A. Amor e sexo na Grécia Antiga. Porto alegre: Edipucrs, 2007.

PANOFSKY, E. Significado nas artes visuais. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007