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JÚLIO CÉZAR RIBEIRO A GEOGRAFIA DAS FORMAS ESPACIAIS DE REPRODUÇÃO DA EXISTÊNCIA HUMANA AO LONGO DO TEMPO À LUZ DO MATERIALISMO HISTÓRICO-GEOGRÁFICO TESE DE DOUTORADO NITERÓI 2006

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JÚLIO CÉZAR RIBEIRO

A GEOGRAFIA DAS FORMAS ESPACIAIS DE REPRODUÇÃO

DA EXISTÊNCIA HUMANA AO LONGO DO TEMPO

À LUZ DO MATERIALISMO HISTÓRICO-GEOGRÁFICO

TESE DE DOUTORADO

NITERÓI 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

A GEOGRAFIA DA FORMAS ESPACIAIS DE REPRODUÇÃO

DA EXISTÊNCIA HUMANA AO LONGO DO TEMPO

À LUZ DO MATERIALISMO HISTÓRICO-GEOGRÁFICO

Tese apresentada ao Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense-UFF, campus de Niterói/RJ, para obtenção do grau de Doutor (Área de Concentração: Ordenamento Territorial).

Orientando: Prof. Ms. Júlio Cézar Ribeiro

Orientador: Prof. Dr. Ruy Moreira

Niterói 2006

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JÚLIO CÉZAR RIBEIRO

A GEOGRAFIA DAS FORMAS ESPACIAIS DE REPRODUÇÃO DA EXISTÊNCIA HUMANA AO LONGO DO TEMPO

À LUZ DO MATERIALISMO HISTÓRICO-GEOGRÁFICO

COMISSÃO JULGADORA

TESE SUBMETIDA À BANCA DE DEFESA

Presidente e Orientador:..................................................................

2o Examinador.................................................................................

3o Examinador................................................................................. 4o Examinador................................................................................. 5o Examinador.................................................................................

Niterói, de de 2006.

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Dedicatória

Aos que, na atualidade, emparedados por

esse cada vez mais claustrofóbico espaço, afundam-se no

território reproduzido pela racionalidade brutal do capital

mas que inegavelmente possuem os instrumentos para

se desatolarem: lendo os atuais, conhecendo os passados,

para escreverem espaços futuros.

Agradecimentos

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Várias foram as pessoas que acompanharam e da sua forma

contribuíram à realização deste trabalho. Na rede cotidiana de relações,

algumas saltam aos olhos e de forma particular a elas externo gratidão.

Exemplo do amigo Fernandez, pessoa dum coração tão grande como uma

casa e de tantos “sorrisos tortos” que a simpatia fácil se faz notada.

Dos amigos novos, o registro ao Carlos; ao Toni e à “casa de suas três mulheres”

Valdirene e as cambites Tainá e Tamiris; ao André (FBI);

ao thundercat Elias; os gaúchos Marcos e Airton,

o Luciano (Geannechini) e o companheiro Vanderlei e família.

Faz bem lembrar os amigos pra todos os lugares:

o Fabrício (Brad Pitt, cada vez mais fenômeno); o Ricardo (sempre Pessoa Boa);

Alexandre (Lei), Dirceu (Didi Delas) e o companheiro Marcelino.

Dos tipos de amigos que a vida faz família...

A eles o elogio maior no silêncio da palavra gratidão.

Lembro também familiares, as contradições não-antagônicas:

minha mãe Helena, minha tia Nice e minha grega sobrinha Heloísa,

que porta luz em seus castanhos olhares de fogo.

Igualmente agradeço ao Thomaz, sempre presente de várias formas.

Aos professores que participaram das bancas da pós-graduação: Jacob

e Paulo Alentejano (qualificação e defesa), e ? (defesa).

À Ancilla, por preencher algumas lacunas e suscitar esperanças outras.

Por fim e por tudo, ao Ruy, o começo da jornada, por ter contribuído e muito

à chance de eu continuar a caminhar.

A todos, minha profunda gratidão!

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“Uma vida que não é examinada não merece ser vivida”

(Sócrates).

--------------------------------------

“Quem em dois mil anos não conhece a história,

não conhece a si mesmo, vive nas sombras”

(Goethe).

--------------------------------------

“Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de

diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”

(Marx).

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A GEOGRAFIA DAS FORMAS ESPACIAIS DE REPRODUÇÃO DA

EXISTÊNCIA HUMANA AO LONGO DO TEMPO À LUZ DO

MATERIALISMO HISTÓRICO-GEOGRÁFICO

Resumo

Apresentadas algumas das correntes teóricas mais características

ao pensamento filosófico ocidental e abordados os métodos mais frequentemente

utilizados, iniciamos um enfoque específico sobre a abordagem do materialismo

histórico-dialético marxista, trazendo-o para a seara da geografia já como

materialismo histórico-geográfico, para que pudéssemos ler as formas espaciais de

como as sociedades têm se materializado ao longo do tempo.

Compreendido como motor-estruturante da sociabilidade, o

modo de produção fez-se elemento central para isso da análise, por ser o coração

da formação espacial da sociedade.

Realizada a leitura geográfica e a discriminação dos principais

modos de produção existentes desde antes do surgimento da civilização,

buscamos explicitar a bifurcação societária contemporaneamente manifesta nos

modos de produção capitalista e pós-capitalista, realizando uma verticalização

mais profunda sobre os fundamentos da nova economia política espacial do

capital.

A apresentação das possibilidades metódicas do olhar e o trato

sobre o evoluir histórico-geográfico do estar tem como finalidade rasgar as

cortinas do paisagístico-fenomênico, para então se ler melhor o conteúdo do ser

via passado no mutante-presente, para que possamos melhor escrever o futuro.

Palavras-chave: Método, materialismo histórico-geográfico, modos de produção,

espaço, trabalho.

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THE GEOGRAPHY OF THE SPACE FORMS OF REPRODUCTION

OF THE HUMAN EXISTENCE ALONG THE TIME TO THE

LIGHT OF THE HISTORICAL-GEOGRAPHICAL MATERIALISM

Summary

Introduced some of the theoretical currents more characteristics

to the western philosophical thought and approached the methods more frequently

used, we began a specific focus on the approach of the materialism historical-

dialectic Marxist, already bringing it for the wheat field of the geography as

historical-geographical materialism, so that we could read the space forms of as

the societies are had materialized along the time.

Understood as motor-maker of the sociability, the production

way was chosen as central element of the analysis, for being the heart of the space

formation of the society.

Accomplished the geographical reading and the discrimination of

the main existent production ways from before the appearance of the civilization,

we looked for explain the bifurcation social of the contemporary world manifests

in the ways of capitalist production and powder-capitalist, accomplishing a deeper

study on the foundations of the new political economy spacial of the capital.

The presentation of the methodical possibilities of the glance and

the treatment on developing historical-geographical of the being it has as purpose

to tear the curtains of the landscape- phenomenal, for then if it reads the being's

social road content better passed in the mutant-present, so that better we can will

write the future.

Key-words: Method, historical-geographical materialism, way of the production,

space, work.

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SUMÁRIO

RESUMO..................................................................................................... vi

SUMMARY................................................................................................. vii APRESENTAÇÃO..................................................................................... 1 INTRODUÇÃO........................................................................................... 4 CAPÍTULO 1 – PROLEGÔMENO AO MÉTODO. DO CAOS

PERCEPTIVO À TOTALIDADE DIALÉTICA:

ESPACIALIZANDO O OLHAR..............................................................

9

1.1 Breve legado das contribuições teóricas edificantes do

pensamento ocidental: irracionalismo, eleatismo e pendularidade

entre idealismo-materialismo. Os genitores do método....................

10

1.2 Um pouco mais sobre (teoria do) método: a reta e o círculo, o

pontilhado... a espiral...........................................................................

95

1.2.1 A reta e o círculo.................................................................... 121

1.2.2 O pontilhado... ....................................................................... 131

1.2.3 A espiral.................................................................................. 140 CAPÍTULO 2 – DA NATUREZA ESPACIAL DO TRABALHO

CONCRETO DE SOCIEDADES PRÉ-CAPITALISTAS À

NATUREZA ESPACIAL DO TRABALHO ABSTRATO DE

SOCIEDADES CAPITALISTA E PÓS-CAPITALISTA.......................

158

2.1.1 A plenitude do espaço como organização temporal das

formas de reprodução do ser social a partir do trabalho............

159

2.1.3 Teorias (e métodos) sobre a evolução humana.................... 191

2.1.3.1 O modo de produção comunista primitivo................. 196

2.1.3.2 O modo de produção “asiático” ou oriental............... 213

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x

2.1.3.3 O modo de produção escravista clássico..................... 222

2.1.3.4 O modo de produção servil ou feudal......................... 233

2.1.3.5 O modo de produção capitalista.................................. 249

2.1.3.5.1 Indicativos da nova economia política

espacial do capital: as transformações no mundo do

trabalho e no espaço vivido.............................................

267

2.1.3.6 O modo de produção de capital pós-capitalista......... 296

3. Palavras finais......................................................................................... 309 4. Bibliografia.............................................................................................. 311 5. Outras fontes........................................................................................... 331

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Apresentação

Expomos neste as dúvidas e questões, implícitas, surgidas

quando da realização do mestrado mas que desde então nos instigavam,

impulsionando-nos à frente na realização de um trabalho em muito amadurecido.

Outro não menor estímulo condisse com a possibilidade de

trabalhar com o Ruy, com o Thomaz introdutores em mim do gosto pela ciência

geográfica de cunho crítico-dialética.

Descobrimo-nos geralmente quando desvelamos

verdadeiramente o real objetivo. Reconstruindo a subjetividade na e pela

revelação da relação sujeito-objeto.

Na arena da geografia e em seu cruzamento com a filosofia,

buscamos desenvolver respostas relativas à ciência geográfica, propriamente no

que concerne aos métodos, com pontuações diretas e indiretas à teoria do

conhecimento nesse atual período em que o saber explicitamente político mais

fortemente é posto em xeque pelo fenômeno sócio-capitalístico de banalização da

ciência (tecnologizada), endireitamento ideológico pelo Pensamento Único da

única via (Terceira) e (des)comprometimento e segmentação exógena e endógena

dos espaços universitários. O que torna mais hercúleo qualquer objetivo de

trabalho discordante e de maior monta.

O estudo sobre os pilares do pensamento ocidental permitiu-nos

compreender como foi a filosofia e o pensar racional se constituindo e como já

por essas épocas, por dentro dos marcos divisórios das correntes do materialismo

e do idealismo, foram se desabotoando métodos de compreensão da realidade,

bem como de ceticismo ou negação total a essa potencialidade. O percurso do que

julgamos necessário para o desvendar do metabolismo sócio-espacial atual serviu-

nos como referencial teórico-conceitual guiado pelo método do materialismo

histórico-geográfico, que floresceu em meio às mais variegadas possibilidades de

tratamento metódico, entre os mais distintos campos do saber, donde sugou seiva

para decidir sua especificidade. Cremos que o tratamento do assunto para além

das raias da geografia prestou à ampliação do arco de possibilidades de

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abordagem, o que virtualmente permite ao leitor edificar sua própria compreensão

nessa seara. O mais importante, porém, foi reunir o referencial que nos permitisse

construir elementos teórico-metodológicos de tratamento da evolução/involução

dos modos de produção, aqui entendidos como motores-estruturantes de qualquer

formação sócio-espacial, seja ela nucleada pela dimensão econômica seja pela

política; o que requer precaução com o enfoque economicista.

Sem nem à mínima distância querer esgotar as possibilidades de

classificação das formas geográficas arranjadas pelas sociedades ao longo do

tempo, expomos um evoluir não-mecanicista e não-isolacionista, pois tanto a

sucessão como a territorialização dos modos de produção não se deram de modo

linear e puro, sem que recebesse influência de outros modos de produção deitados

ou coexistentes.

Sabemos que muito há por ser reescrito a respeito do método na

geografia, mais sobre os modos (geográficos) de produção, a despeito dos avanços

já realizados sobre os estudos dos espaços a partir das técnicas socialmente

criadas, idéia defendida por Marx (que, em verdade acabou trabalhando com a

teoria dos modos de produção) e desenvolvida na geografia por Milton Santos

(que se propôs quase que à elaboração da genealogia espacial das técnicas).

O percurso que realizamos serve para reencontrarmo-nos com o

concreto-real, tentando aproximar, sob o ponto de vista do materialismo histórico-

geográfico, o sistema de idéias com o sistema do capital, pois sabemos que o

segundo se utiliza do primeiro, entretanto existirem poucos daqueles que se

oponham a este.

Perguntamo-nos sempre de onde viemos, quem somos, para

onde iremos. Respostas menos idealistas e mais materialistas podem ajudar à

clarificação.

O método como lanterna a iluminar a partir da energia existente

em cada espaço-tempo, lançando-se por sobre as substâncias dos cenários dos

modos de produção que, qual estrutura donde mana as funcionalidades às formas

espaciais, podem contribuir ao entendimento de como tornamos o ser e o estar

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social atuais que, diria Sartre, constroem-se mediante o movimento de certa forma

livre dos sujeitos sociais.

Entender o sistema de objetos e o sistema de ação, a conjugação

da infra-estrutura e da superestrutura, os fatores de produção e as relações sociais

de produção e, hoje mormente, de reprodução sócio-espacial, tornam-se vitais.

Isso é imprescindível para que os dominados percebam as contradições espaciais

nas quais vivem, podendo daí retirar elementos diretrizes à construção de seu

próprio espaço vital.

Concordamos com o Aristóteles que disse que é pelo estudo da

relação com o Outro que nos descobrimos. Como somos mais que individualidade

isolada, apreender os elementos determinantes e estruturantes da sociabilidade

torna-se fundamental, e nesse ponto se justifica a abordagem sobre outros modos

de produção.

Tentamos no fundo cruzar o sistema de idéias concretas com o

sistema social concreto, espaço-individual-mental com o espaço-social-objetivo.

O estudo talvez possa nos ajudar um pouco mais a nos antecipar

na leitura e escrita de espaços novos, a não aceitar os sistemas de idéias opacas,

sobretudo se estes pregarem exatamente a inexistência de sistemas e de ordem,

afirmando que tudo é caos, irracional, ou que as coisas são e serão, simples e

naturalmente como têm sido, tentando fechar o círculo da espiral evolutiva.

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Introdução

Antecipar a que se propõe o trabalho requer principiarmos a

apresentar a arrumação de suas partes, o composto de compartimentos que, quais

cômodos, tentarão espelhar o conjunto da imagem espacial que o visor do sujeito-

observador alcançou abranger. Provavelmente a ordem da exposição venha a

receber uma menor consideração nesse sentido, se concordarmos que a dialética

igualmente se exprime na argumentativa, no nível do discurso ou no plano da

teoria do real discursado, e isto porque, se de um lado o trato empírico conduz às

teorias mais à frente, o optar de antemão pela teoria igualmente pode anunciar-se

útil se se retornar ulteriormente em visita à empiria, mãe e morada elementar do

saber. O problema à teoria do conhecimento está mais na disjunção do que

exclusivamente na primazia do nível que se arremessa a narrativa, propriamente,

haja vista tal disjunção não ser suficiente para que o sucesso do resultado se faça

melhor possível.

Elucidamos isso tendo em vista que a seqüência se desenreda a

partir da exposição, resumida e selecionada, da história do pensamento filosófico

ocidental, a atmosfera na qual se ventilaram os métodos ao longo dos tempos e

dos lugares. A infreqüência, quando não o descuido, reinante nesse domínio, a

esporadicidade e assistematicidade dos estudos geográficos nessa arena, cremos

redundarem de pelo menos dois motivos basilares: um quiçá decorrência da falta

de ousadia, despreparo, cizânia ou ranço enraizado pela força do imaginário que

muitos perpetram de a geografia sacramentada identificar-se ainda como ciência

eminentemente empírica (empiricista) e, no outro extremo, retro-alimentando (e

nutrindo-se de) tal processo, está o fato de teorias e métodos sistematizantes e

não-tecnologizados receberem pouco crédito como objeto de atenção na grade

hierárquica do conhecimento atual, sempre mais e mais caoticizante, instrumental

e positivista.

Não poucos geógrafos advertiram-nos do pavor à teoria que

encarnava o espírito da tradicional ciência geográfica, tendo em conta que seus

feitores se agrupavam entre os mais cordatos e passivos homens a servir o sistema

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econômico e seu Estado. Situação que coloca o presente trabalho diante da dupla

necessária tarefa: de pensar algo pouco afeito à Geografia, ou seja, o método

como concreto em pensamento ou concreto pensado, vis-à-vis à realização de

estudos empíricos, sobre o concreto real em sua evolução e entrecruzamento

espaço-temporal; desfazendo-se ao mesmo tempo a díade, quase dualidade, entre

empiria(meta)teoria na Geografia e as cismas que perduram entre ela e os demais

ramos do conhecimento que verdejam a árvore do saber, para que mais facilmente

sejam ultrapassados os limites fragmentários internos à própria ciência geográfica,

esfacelada numa miríade quase sem unidade e bastante caótica de informações

que retrata bem, em resumo, o perfil pós-moderno, manifestamente mais

contemplativo que crítico e provocativo.

Como instrumental teórico, partíamos da base do horizonte

materialista vislumbrado por Marx, e de cuja imediaticidade permitia-nos alçar

ontológica e holisticamente à invisibilidade da mediaticidade distorcida mas, de

outro lado, sentíamos que nosso olhar não poderia se furtar a estender-se sobre

outros horizontes, até para que nossa vista pudesse abraçar visualmente paragens

novas não visualizadas outrora por esse pensador, que como a maioria dos de

então, não-geógrafos especialmente, desmereciam o que se tomava por

geográfico. Lastreamos essa trilha na tentativa de entender a processualidade do

fenômeno de totalização da sociabilidade do capital a partir da totalização uno-

diversificada do espaço, unidade essa manifesta ora mais politicamente e

momentos outros caracterizada por uma substância eminentemente econômica. O

desafio, já significativo no contexto do saber atual portanto, amplifica-se por

dentro dos marcos geográficos, cujos raros rastros foram acompanhados aqui e ali,

na medida da máxima consciência possível, por sujeitos das mais variadas

inclinações teórico-metodológicas.

Visitas a pensadores e outros contextos histórico-espaciais

foram importantes, tanto para reunirmos um mínimo referencial teórico-analítico,

como para cruzá-lo com o que foi possível se perceber na geografia e avançar,

destarte, numa e noutra questão a respeito do passado e do presente concretizados,

teórico e espacialmente.

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As razões dessa tal opção coligam-se à necessidade por nós

sentida de não apenas lustrarmos conscienciosamente a lente do método que nos

permite ler as grafias do espaço, como formular um seqüenciamento, nada

retilíneo, das espacialidades e contra-espacialidades criadas pelas sociedades ao

longo do tempo, para podermos ver como muitos traços espaciais foram fisgados

do passado pelo modo capitalista de produção. Ou seja, grosso modo a proposta

foi a de avaliar minimamente a pluralidade de possibilidades metódicas de

investigação para que, escolhido conscienciosamente um deles, pudéssemos

averiguar os contextos históricos pelos quais a humanidade caminhou e se grafou

espacialmente até que, adiante, tivéssemos as ferramentas apropriadas para julgar

o complexo contexto contemporâneo em que vivem todos os subordinados pelo

sistema do capital.

Alguns se pronunciaram favoráveis a uma “geografia do

presente”, o que é válido para não fugirmos abstratamente dos problemas

materiais hodiernos enredados em vãs divagações retro(in)ativas. No entanto,

revisitar o passado torna-se premente, e por vários motivos. Um deles, se for com

intuito de percebê-lo dialeticamente no e como presente re-vivido

intencionalmente por forças que animam o espaço social. Ademais, porque a

afirmação da contradição deixa de ser algo apenas teórico e abstrato se

acompanhada da comprobação científica de sua manifestação empírico-

geográfica.

Interesse não há por qualquer espécie de arqueologia geográfica

(arqueologias que tomam a cena e ritmam os passos das ciências, como as

inspiradas no método filológico nietzscheano ou na arqueologia foucaultiana).

Urge compreendermos o espaço atual, transpassando-se a superfície paisagístico-

fenomênica.

O estudo continua pois na análise das espacialidades, talvez as

mais significativas ou pelo menos as mais abordadas ao longo do tempo. Se os

dominantes o fazem para reinventar a modernização conservadora da estrutura

societária, quem sabe não seja tão inútil aos dominados a percepção das tramóias

armadas a eles, com o objetivo de que se desviem das muitas arapucas lhes

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endereçadas, erguendo pela análise um olhar macro-estrutural do fenômeno ao

invés de se enveredar em relatos micro-narrativos e micro-analíticos cuja miopia e

pequenez pouco de significativo trazem para pensar e desvendar as leis da

tragédia social. Esse, um dos motivos. O outro, é porque o passado não condiz

com o real que a flecha do tempo deixou para trás: muito do passado é semeado

no tempo-espaço presente por uma flecha de envergadura e de cujo traçado não se

fazem tão retilíneos, como que se o tempo se igualasse a um bumerangue que se

entrelaça ao espaço social quase sempre pelo trançado ludibrioso projetado pelas

elites, que fazem assim a “farsa” histórica renascer (classisticamente) sob a

aparência naturalizada (socialmente) da humana “tragédia”, como pegadas

espaciais que não cessam de no chão encravar-se.

Percebe-se então que o percurso evolutivo/involutivo objetiva

munir-se do método (saber como técnica e técnica como olhar não-tecnicizado por

perversos interesses) e do conhecimento dos tempos-espaços enterrados-

ressuscitados (a tecnologia espacial humana criada, reinventada e redividida

socialmente), para tratarmos do metabolismo do capital que in-corpo-ra em seu

organismo grupos sociais e espaços antes tidos como reservatórios de valor, além

de outros territórios do orbe agregados ao processo produtivo e reprodutivo do

valor (produzindo mercadorias ou matérias-primas e reproduzindo,

ampliadamente, o valor econômico abstrato).

Atingimos muitos dos alvos prepostos. O maior deles a denúncia

consciente e racional que carregue algo mais que indignação, armando a

indignação de teoria e coragem: a teoria de mãos dadas com o saber metódico e a

coragem, com a experiência histórico-geográfica acumulada e (re)visitada

criticamente.

Por isso, em tempos de quebradeira do saber, cegueira

intencional da teoria, que muitos querem ter por morta, a significância do trabalho

quem sabe esteja mais na determinação da proposta do que no resultado

alcançado, exclusivamente.

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Se ao marxismo teoria e prática não se excluem, antes se inter e

intracruzando, a validade do método está no aclarar da teoria e no iluminar da

práxis, no manifestar geografizado da metodologia.

Aspiração há pois, que o leitor junte-se à massa crítica em todos

os múltiplos e variegados embates, na teoria e na empiria, os existentes e os que

virão.

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– CAPÍTULO 1 –

PROLEGÔMENO AO MÉTODO.

DO CAOS PERCEPTIVO À

TOTALIDADE DIALÉTICA:

ESPACIALIZANDO O OLHAR

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1.1 Breve legado das contribuições

teóricas edificantes do pensamento

ocidental: irracionalismo, eleatismo e

pendularidade entre idealismo-

materialismo. Os genitores do método

ersiste a pendenga teórica entre a circularidade da “dinâmica”

metafísico-idealista e o movimento espiralado da dialética

materialista, como correntes em disputa à explicação metódica da

qualidade nexal da relação homem-realidade.

PSão debates teórico-conceituais fervorosos esses, em torno de

questões que há tempos têm intrigado pensadores, seja na polêmica que rodeia a

questão da Totalidade, seja na que concerne ao Homem Total ou a respeitante à

Natureza. No fundo, problemáticas todas a abalizar, na avaliação do filósofo e

sociólogo francês Henri Lefebvre (1901-1991), o eterno retorno da velha querela

metódico-explicativa rivalizada entre materialistas e idealistas, marxistas e

antimarxistas, no transcorrer maiormente do período regencial do capital, maestro

e orquestrador do ritmo e dos passos sociais dados (LEFEBVRE, 1981, p. 24).

Ocupando-se com a elucidação da relação Homem-Natureza,

Homem-Meio, Sociedade-Espaço ou Humanidade-Planeta, a Geografia não se

exclui desse caldeirão fervente de teorias.

A história desse campo do saber demonstra ter ela ora se

impregnado de temperos metafísicos e idealistas, momentos outros recheada por

materialismos vulgares de cunho naturalista, empirista e determinista

(ambientalismo e economicismo), cujo trato reporta-se à perspectiva mnemônico-

descritiva preocupada ou com a morfologia ou com a geometria do espaço, de que

são exemplos a geografia tradicional e a nova geografia, que buscavam as leis do

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real-aparente (concreto-visível) e os padrões (tipologias) da organização espacial,

respectivamente. Noutros momentos, sobremodo na segunda metade do século

último, fora a Geografia parametrada em instrumentos metódicos mais concretos,

menos idealistas, na lapidação cognitiva do real, encetado pelo poder de crítica

que a geografia nova ou a geografia crítica exercera, e em que pese a saraivada

de críticas que os adversários do essencialismo (leia-se, economicismo) tenham

lançado aos que se preocupavam excessivamente com as relações de produção e

os processos de acumulação, desprestigiando temáticas como o ambiental, o

gênero, o racismo ou a etnicidade.

Do que se deduz que a história da Geografia, o “espaço” social

do prestígio seu angariado, não se distingue tanto do espaço político concreto ao

qual se dispõe a examinar. Sobretudo se a serviço de Estados-maiores e

empresários e em se prestando “para fazer a guerra” que ultima o capital,

conforme constatação do geógrafo francês Yves Lacoste (1997).

Qual seu objeto de estudo e porque entrelaçada à estrutura de

poder, a Geografia contém abissais rachaduras dividindo-a em múltiplos

“espaços” teóricos internos que orbitam e se movimentam em redor de duas

grandes forças que se vêm colidindo historicamente, pendendo ora ao curso da

neutralidade da metafísica idealista (pacto dos que compõem a classe dominante),

ora bandeando-se ao pólo do materialismo marxista (compromisso dos dominados

e aliados, que outras propostas de geografia se dispõem a encetar).

Nenhuma ciência que se planeasse crítica no campo do saber

social pôde esquivar-se em todos os momentos da fogueira da crítica que o

marxismo acendeu nas asas do idealismo flutuante ou do olhar cabisbaixo do

empirismo analítico e do descritivismo vulgar, notadamente na segunda metade do

século dobrado, quando a insatisfação no âmbito das ciências, e particularmente

na raia da Geografia, se fizera sentir com maior ímpeto.

Discussões sobre o espaço assumiram tamanha envergadura e se

tornaram tão essenciais ao entendimento do universo social contemporâneo que

mesmo não-geógrafos por formação, como Lefebvre (1973) e Michel Foucault

(1926-1984) em Sobre a geografia, reconheceram a importância de se adicionar a

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questão espacial no âmago do debate teórico do materialismo histórico, para que a

dialética como lógica de compreensão do real se envergasse ao desvendamento da

dialética espacial, das estratégias essencialmente contraditórias de organização do

território pela “geografia do capitalismo”, diria Neil Smith (1988).

As ciências e os métodos atravessavam a fase que poderíamos

denominar de crise paradigmática da produção científica. Fenômeno que não tão

diacronicamente, conquanto quiçá de modo distanciado, poderíamos ter por

coincidente à crise pragmática do paradigma da reprodução capitalista, inclusive

por conta do desdobramento da cientificização da produção.

No compasso do rebuliço do saber científico, então

tecnologizado, o método punha-se em efervescência juntamente com as teorias

tradicionalmente consagradas à apreensão do real.

No domínio do materialismo não foi diferente.

Qual Fênix do solo reerguida, desde então algumas ciências (a

Geografia inclusa) campearam se reorientar em seus vôos teóricos com os olhos

não se afugentando do chão. Fitando fixo seu objeto concreto para não se

abalroarem novamente com os conteúdos esconsos da morfologia dos “relevos

sociais”, isto é, com os obstáculos materiais que a sociedade (estratificada) erige

em seu movimento de contradição interna. Um tipo de prudência nem sempre

suficiente para que o retorno das “levitações idealísticas” se interponha no mais

das vezes.

Querela que persiste e resiste, pois, em regresso quase que

matemático. Possível pô-la termo?

Na dimensão prático-imediata não, por não se tratar de

controvérsia unicamente confinada ao descerramento do saber e no colher da

verdade, fazendo-a valer. No que acata ao plano teórico da racionalidade

científica, tudo indica que a polêmica idealismo-materialismo possa ser em muito

desmanchada no ar ou grande parte dela dissipada se se inferir que no universo

material a que competem é onde precisamente jaz a conexão da explosão do

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movimento social do trabalho humano com a natureza-totalidade1, tão apenas

preteritamente alentada por forças da contingencialidade a ela imanente, atinente

ao estágio da história que o homem não faz no dizer do filósofo italiano Vico

(1668-1744)2, história duma natureza tida como autocontida pelo filósofo e

matemático inglês Alfred North Whitehead (1861-1947), cuja legalidade, ao

magiar filósofo Georg Lukács (1885-1971), far-se-ia vizinha da dialética da

natureza encetada no materialismo dialético pelos estudos do pensador germânico

Friedrich Engels (1820-1895), suporte teórico que autorizou ao marxista Lefebvre

(1981) conceituá-la de natureza material objectiva.

Noutras palavras: o conhecimento é erigido dos fenômenos.

Contudo, não habita a “natureza” ou os objetos que se nos antepõem como

1 Essa nossa expressão, de natureza-totalidade, aproxima-se da de Karpik (1972 cit. por SANTOS, 1997, p. 94), que a totalidade compreendeu como sendo todo o Planeta, isto é, a natureza e a comunidade humana. Concordamos, pois, com a lembrança de Alfred Schmidt (The concept of nature in Marx, 1971, p. 27) sobre a concepção marxiana dos primeiros trabalhos, de que “A natureza era, para Marx, tanto um elemento da prática humana quanto a totalidade de tudo o que existe” (apud SMITH, 1988, p. 50). O geógrafo Ruy Moreira (1993, p. 37; idem, 2006, p. 74) afirma que “A natureza é o eterno processo de produção/reprodução que desemboca em uma síntese das novas formas materiais no planeta justamente porque desde o começo é múltipla em formas e movimentos”. O interessante a ser observado sobre a questão da unidade da natureza-totalidade nos dias atuais é que, embora esteja ainda longe de perder a legalidade ou a processualidade autocontida, as múltiplas formas e movimentos (naturais) da Natureza cada vez mais se imbricam de modo interdependente, e isso porque a natureza social vem crescentemente demonstrando potencial de acelerar intencionalmente o movimento primitivo-espontâneo da natureza humana biológica e histórica (a engenharia genética comprovando a capacidade crescente que o homem desenvolve de influir em sua natureza não apenas histórica e espacial, como biológica, orgânica e fisiológica, ou seja, a própria produção humana parece prenunciar a mercantilidade, como já acontece com as demais espécies dos reinos animal e vegetal). Eis então que a natureza-totalidade se relaciona organicamente de forma dinâmica. Talvez tenhamos por isso menos razão para defender a tese da natureza autocontida pura, aquela que o homem não faz pois, globalizando-se, a sociedade alterou espacialmente o clima (presenciaríamos a globalização social do clima natural global?), como o faz com o ambiente. Se a geografia ou o espaço de determinada sociedade é o acúmulo de tempos desiguais (espaço como herança histórica), essa história ou esse tempo igualmente é o acúmulo filtrado de espacialidades diferenciais (história como herança espacial), vez que a história como eventos e acontecimentos não se dão de modo desespacializado, como se fosse o homem um ser atópico. É função do materialismo histórico-geográfico explicar a natureza-totalidade pelo viés da sociedade organizada concretamente, temporalmente e espacialmente, buscando explicar e superar os vários mapeamentos realizados pela ciência burguesa: o mapeamento-explicação do espaço objetivo do planeta realizado pela geografia-cartografia oficial, o mapeamento da subjetividade para programar melhor os mapas mentais e, agora, a feitura do mapa genético, que a burguesia persegue para ampliar formas de lucrar. 2 O historiador Giambattista Vico é tido como o primeiro pensador a lançar a hipótese da existência do princípio harmônico, organológico e antimecânico na evolução da humanidade, que a ele evoluiria gradativamente de forma análoga à natureza, com a conexão entre a história e os fenômenos da natureza se manifestando.

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desafios cognitivos. Produzir conhecimentos é transformar informações

complexas em processo de trabalho abstrato, remetendo à intervenção intelectual

objetos simbólicos (intuições, representações, observações), sem a transformação

da própria realidade observada.

Homem, Natureza, Totalidade, Espaço: realidades, fenômenos

como concreto real projetado como representações que muitas vezes opõem-se à

própria manifestação do fenomênico. (Des)Realidades conceituadas. Como

abordar esses entes e dimensões relacionalmente e não aritmeticamente (como

soma de fatores divididos) e tendo como esteio a ótica geográfica para que o

subjetivo-pensar não se distancie do objeto-pensado? Como garantir que a

verdadeira relação descoberta se faça sempre re-contextualizada, não se

sacramentando em eternização de uma qualquer fórmula geral idealizada? O

método pode auxiliar? Que é ele? O que legitima sua coerência? Como presumir o

melhor? A complexidade do real demanda a inevitabilidade de métodos vários?

Como poderia a Geografia equipar-se para, em meio à pluralidade de

possibilidades, melhor “ler” e “escrever” o espaço? Poderia a Geografia apenas

“ler”, despreocupando-se com o “escrever”, o geo-grafar?

Se considerarmos a questão do saber como política teórico-

ideológica de comprometimento social, em qualquer época ou lugar recuado,

veremos que a ilação de J.P. Vernant detém extenso sentido, seja no que atine à

Filosofia, de que mais detidamente versou, ou aos outros portais do saber (como a

dobradinha realizada entre a dialética materialista e a Geografia, por exemplo).

Propriamente sobre a Filosofia, Vernant a enaltece como fruto da exigência

dominante da sociedade grega ao surgimento da pólis, já que a espacialidade

geográfica em construção necessitava deslocar as discussões filosóficas havidas

no campo cosmológico e materialista para a praia discursiva da moral e da

política, com o fito de se elaborar uma forma de convivência e uma educação

formal. Portanto, o novo enquadramento social.

Então, segundo a tradição marxiana que busca apreender os

elementos estruturais-relacionais do complexo social existentes entre o plano

superestrutural e infra-estrutural da sociedade, veremos em rápidas incursões por

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tempos idos os indícios do processo de vaporação de novos referenciais a partir do

chão produtivo e material. Será a filosofia a ideologia ou a visão de mundo mais

racional e organizada da pólis, ficando à Grécia rural o característico do saber

mitológico, enredado à esparsa e popular tradição oral.

Com os sofistas outra filosofia principia. Ao lado dela realiza-se

o período antropomórfico e o apogeu da conhecida Democracia Grega. Tudo no

encalço da mudança “de espaço geográfico, das colônias jônias para o espaço

cultural da Grécia e esta mudança acarreta também a variação do objeto de

pesquisa: da natureza para o Homem!” (NUNES, 1992, p. 31).

Esse embasamento geográfico contribuirá de certo modo para

que a dialética, nascida nos braços da Filosofia e nutrida por um corpo de saber já

somado em 2.500 anos no Ocidente, busque firmar-se como o conhecimento a

respeito do mundo da natureza e da natureza do mundo, sobre a condição humana

pessoal e social, sobre a sociedade e a cultura. Como teoria da compreensão da

realidade que não pode ser descolada das condições espaço-temporais, estruturais

e conjunturais, sintetizadas pelo ser social e individual, que as vive e reflete.

Sabe-se que muito provavelmente pelos escritos de Pitágoras (V

a.C.), quem humildemente considerava-se “amigo do saber”, esse termo tenha

vindo à luz. Mas com Heráclito de Éfeso (544-480 a.C.) é que a filosofia se

anuncia como “busca da compreensão da realidade total”, ficando a ele rendida a

reputação de pai da Dialética.

Em todas as classificações da Grécia antiga, vemos que o fio de

ligadura é a tendência a opor-se aos mitos, de forma totalizante, sistematizada e

disciplinada. Opondo-se àquele conceito de polimathéia, fixado como o saber

comum, desconexo, fragmentado e ao nível do senso comum, quase sempre

preconceituoso e limitado, sobre a realidade pessoal, social e natural. E por querer

se opor aos mitos, mistificações, ideologias, senso comum e lugares-comuns,

como saber essencial e sistematizado da realidade, desde que criada a Filosofia

sofreu ataques e difamações, sendo perseguidos e à morte condenados muitos de

seus adeptos, porque no espaço social cujos dominantes buscam reciprocidade,

sintonia, disciplina e ordem, a discordância, contradição, re-ação em pensamento

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e ato, a des(contra)ordem deve ser controlada/eliminada e isso porque o conteúdo

e a nova unidade que queriam do saber não se dissociava de determinada unidade

de interesses políticos hegemônicos3.

Onde houver reprodução da perpetração da dominância classista

haverá regulação espacial segregacionista.

O espaço, vê-se que desde há muito, talvez possa realmente

condizer com a consideração que o tem como “forma de regulação” (MOREIRA,

2003, p. 51).

Mas então convém indagar: que regulação é essa? A quem,

quantos serve? Desde quando e desde onde? Sempre foi a que conhecemos e

sempre o será? Quais são as peças e o mecanismo dessa engrenagem? Detém ela

caráter natural ou tem a regulação espacial mais a ver com o acondicionamento do

modo de produzir, firmando-se simultaneamente à concepção louvada de ordem e

desprezada de caos?

Conhecer o passado, lembrando-o e enxergando-o no presente

para melhor entrever o futuro quem sabe possa ajudar. Alguns passos iniciantes é

o que tencionamos oferecer no capítulo que segue. Para tal, devemos ter em mente

a materialidade conflituosa da relação histórico-geográfica, por resvalar e

esparrama-se ela no modo (método) como a sociedade se entende e se (re)faz.

O recuo espacial aos Tempos Homéricos4 nos revela que a

geografia das ilhas grega sedimentada pelos povos invasores indo-europeus

(Aqueus, Eólios e Jônios) baseava-se na caça marítima (sobremodo por conta da

pobreza dos solos da região) e que, em meio à transição desse modo de pensar,

reputar-se filósofo nada tinha de possuidor da verdade. Amigo do saber a todo

custo, às vezes com o custo da vida. Filosofia então como saber relativo, histórico 3 Exemplo ilustrativo dá-se muitos séculos depois, quando o filósofo francês Augusto Comte (1798-1857) cria a “doutrina orgânica” para Reorganizar a sociedade (2005), opondo-se à “doutrina crítica” dos povos e à “doutrina retrógrada” da nobreza feudal. Mudando-se os agentes e não a lógica da hierarquia distributiva na qual deveriam todos se acomodar. 4 Os chamados Tempos Homéricos perduraram até cerca de 1.000 anos a.C. Foi nesse período que a tradição grega foi sistematizada por Homero, nas obras que consideradas são o início da narrativa ocidental (Ilíada e Odisséia). Já sobre esse personagem, pouco se sabe. Inúmeras cidades disputam a honra de ter sido seu berço. Não poucos questionam igualmente sua existência, dada as enormes diferenças de estilo de cada poema, aferindo se não pertenceriam eles a uma tradição oral grega compilada por um poeta anônimo.

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e espacial, não “um conjunto de ‘verdades’ perenes ou um método etéreo de

pesquisar as últimas causas de tudo o que existe” (NUNES, 1992, p. 15).

O valor e a grandeza da filosofia de então estavam mais na

proposta, na processualidade, do que nos resultados atingidos. Sempre históricos,

contextuais e pessoais.

Mas reconhecido que às transformações no universo das idéias

tem-se paralelamente, como motor e resultado, modificações no âmbito da

materialidade, tentemos observar outras oposições de idéias e conceitos que tão

vivamente desabrocham quando tumultuada se posiciona a sociedade. Impossível

eliminar-se a dialética existente entre a materialidade e imaterialidade social.

O que vem então a ser a dialética, ou as dialéticas, já que é ela

conceito corrente entre os gregos, estando na base dum pensamento cada vez mais

racionalmente dirigido a explicitar a conexão causal dos fenômenos do mundo, a

partir do momento em que a razão vai-se acoplando e, ao mesmo tempo,

substituindo o mito e as fantasias. Vejamo-la, é ela a mãe de muitos métodos.

A continuidade no regresso a tempos idos nos mostra que o

fortalecimento da base racional que conhecemos, essencialmente dialética ou não,

é o acúmulo dum processo antigo, lento e demorado e que muito provavelmente

Hesíodo (séc. VIII a.C.) tenha sido o primeiro a lançar elementos à base de tal

racionalidade quando se pôs a traçar toda a genealogia e hierarquia dos deuses por

meio dum encadeamento causal que punha ordem ao caos da teogonia e

cosmologia gregas, tratando como a Terra e o Amor dos deuses surgiram e como a

fúria divina fora arremetida aos homens que se atreveram a roubar o fogo sagrado

de seus domínios com a ajuda do imprudente Prometeu, e que a partir de então

tiveram de pagar com a infelicidade de uma vida tortuosa e repleta de todos os

males antes contidos na jarra de Pandora.

Os primeiros bafejos duma principesca racionalidade estavam

sendo espirados. A dialética não se isolará do calor dele emanado.

Aí, o marco do muito alardeado Milagre Grego. Fruto do

acúmulo histórico de evolução-distinção por meio do qual vão aparecendo as

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primeiras filosofias gregas, sob a forma de “mitos racionalizados”, no movimento

pendular em que se tocam razão e mito (GOBLOT, 1962).

Foi aliás como confronto de idéias que a dialética primeiro se

fez identificada. Raiada entre os gregos, a dialética distanciou-se da acepção

inicial deles auferido e que então atribuía significado à palavra diálogo, tão

valorada pelo sábio Platão (429-347 a.C.), que o tinha como o mais apropriado

meio para se atingir a verdade, como mecanismo a deslocar o saber do plano da

doxa (opinião) para o da epistéme (conhecimento)5.

Uma opinião essa não compartida pelo grego Aristóteles (384-

322 a.C.) que ao contrário de Platão a vivamente combatia, questionando o ponto

certo no qual a dialética finalizar-se-ia, o momento no qual a essência verdadeira

da coisa far-se-ia tocada pela mente perscrutante.

O desacordo de Aristóteles para com o juízo platônico da

dialética fê-lo sugerir que o processo de construção do conhecimento deveria

efetivar-se por intermédio de silogismos, em que se partindo de duas proposições

se alcançaria a conclusão verdadeira através da dedução; em busca mediada por

termos-certezas que receberia ainda a adição da indução, essa construída nas e

pelas experiências reais. O silogismo a esse grego destarte possibilitaria a escalada

ao platô genuíno do ainda recôndito saber6.

Entretanto, mesmo mostrando-se correto ao assinalar que a

discussão pela discussão não leva à verdade, Aristóteles não logrou anular o

movimento que a dialética atravessava, sendo seu silogismo considerado por

alguns como mediação vivificadora do método dialético de se pensar.

A condição que ele queria metódica tornou-se recurso lógico-

metodológico ao método dialético de raciocinar. A dedução e a indução, nessa

5 Platão aproximava-se da concepção de filosofia que possuía Sócrates (470-399 a.C.), ocupado com questões como o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem. Sentido que o alemão Friedrich Nietzsche (1844-1890) veio a repugnar, tendo Sócrates por “inventor” da metafísica e desdenhador da tragédia, que tinha por “irracional” e despertadora de emoções “indignas de filósofos”, desviando a filosofia do caminho da “afirmação” da vida para o do seu “julgamento”, com o qual Nietzsche discordava inteiramente. Examinar: CHAUÍ (cons.), 1999, p. 8. 6 O conhecimento não somente genealógico mas multidimensional do silogismo é considerado vital por ter determinado inúmeras propostas de abordagens geográficas, especialmente quando combinado com os métodos comparativo, taxonômico e quantitativo.

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concepção epistêmica, passaram a ser meios e não princípios e baldrames do

conhecimento.

Inevitavelmente o sentido da dialética foi-se demudando. Ao

invés simplesmente de confronto de teses, reorientou-se ao propósito de

elucidação das contradições no real, deixando de ser emparedada na sofística

discursiva para que uma contenda verbal fosse ganha sem que qualquer

compromisso com a verdade houvesse.

Aliás, o próprio “direito” de se pensar (dialeticamente ou não)

na antiga Grécia, provinha da organização infra-estrutural do trabalho e da

superestrutura jurídica que apartava os que podiam pensar (no sentido amplo do

termo) daqueles aos quais, porque escravos, somente o fazer manual restava.

Especialmente naquela Grécia já urbanizada, da pólis, que quase sempre tinha os

filósofos como visionários aristocráticos, figuras educadoras mantidas para o bom

comportar e conviver dos citadinos, dos livres e privilegiados.

Mas o fato é que não há argamassa social classista em qualquer

sociedade que seja que possa impedir o pensamento de se rachar e mover, latente

ou explicitamente.

Nesse embalo de sábios vai a dialética se desanuviando

finalmente. É já doutrina do movimento. Doutrina em movimento.

Distintamente do vaticínio dos gregos eleatas do século V a.C., a

dialética é já movimento no espaço concreto real e não somente no espaço mental

do concreto pensado; condição negadora das teses da unidade e imobilidade

absolutas do ser pregadas pelos gregos Parmênides (540-450 a.C.) e Zenão,

seguidores dos enunciados eleáticos de Xenófones de Cólofon (séc. V a.C.).

Para Parmênides as coisas não mudam, multiplicam-se e se

repetem infinitamente no ciclo monótono que não se transforma. Permanecendo

sempre igual. A tarefa da filosofia resumir-se-ia a dois caminhos: o que busca a

verdade (aletéya), perfeita, una, eterna e imutável e o que conduz ao Inteligível,

ao Ser. Entre eles, o caminho da opinião (doxa) ou o caminho do Não-Ser, que se

confunde com a experiência individual das realidades sensíveis, quando os

enganadores sentidos antepõem-se como negro abismo ao saber verdadeiro.

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Também ao aristocrata Zenão, o Ser é por definição. Não

podendo ser tratado como vir-a-ser ou como deixar-de-ser. Sem importar o

momento, a mudança e transformação são-lhes irrealizáveis.

De modo sistêmico e ordenado, os eleatas inauguram o método

idealista na Filosofia.

Aos eleatas, o espaço da política e a política espacial recebiam

todas as justificativas de ser-estar, dando realidade às suas idéias cosmológicas e

aristocráticas na pólis grega de Eléia, como se do espírito se originasse a

materialidade. Um Ser ideal, espiritual, institui-se como fundacional à natureza.

Zenão mesmo, negando a realidade e abandonando a pesquisa

empírica e materialista da natureza, irá conceber o espaço como “infinito”, pois ao

argumentar sobre as partículas infinitas que teriam que ser atravessadas acabou

desacreditando o movimento dos corpos.

Em meio ao materialismo dos jônicos e ao idealismo panteísta

dos eleatas e à dialética heraclitiana, estava o eclético Empédocles de Agrigento

(493-430 a.C.) tentando fornecer a síntese a esse redemoinho de correntes,

advogando o que a ele seria a lei imutável: a lei da evolução, pela qual apenas os

mais aptos sobreviveriam mediante a seleção natural; pondo-se entretanto, às

substâncias naturais um agregado de misturas e trocas entre água-ar-terra-fogo,

animados, aditados e segregados pela força do amor e do ódio.

O que comprova que intermediando as duas macro-correntes já

se conjeturavam fórmulas ecléticas de pensar relacionando as forças materiais e as

forças espirituais. Razão, mitologia, misticismo se interpenetrando.

O conflito central foi e continua a desenlear-se entre as correntes

dos dois extremos, entretanto.

Podiam os eleatas, na ânsia de manter a sociedade de seu tempo,

gritar a todos os ventos que a natureza nunca muda. Somente o discurso

permanecia. A realidade inevitavelmente deles fugia.

Mas, assim como estão os eleatas para o idealismo, está

Heráclito para o materialismo.

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Heráclito bem soube que a única lei existente era a da

peremptória mudança. Por isso defendeu a luta dos opostos por princípio regedor

do devenir, argumentando que a natureza e a sociedade sofriam inegáveis

mutações – e embora muito de seu pensar também fosse de várias formas

influenciado pela ideologia dominante da época.

A compreensão materialista e dialética da realidade, muitos

crêem, com ele faz-se inaugurada.

O pensar não consegue e já não quer se furtar ao movimento,

que salta aos olhos e à mente.

A mente eleática, já havia muito, corria e discorria em

argumentações acrobáticas e inúmeras aporias para tentar driblar o movimento

perceptivo do real.

E é pois do ventre dum ilusório imobilismo que o saber caminha

a par do peripatético Aristóteles, saboreando o discursivo Platão, de mãos dadas

com a irônica, agnosiológica e maiêutica postura de Sócrates ou na companhia

dum seu cínico seguidor de Sínope, de nome Diógenes (413-323 a.C.).

Os menos e até alguns dos mais idealistas sabiam reconhecer a

veracidade do movimento. Inda que o apercebessem de modo intuitivo, pré-

julgado, ideado...

Debatendo-se entre cabeças, escolas, séculos, enfim espaços, o

pensamento avança despregando-se da idéia estática do real imóvel.

Conforme o ritmo das teorias, dança o saber no salão de cada

escola filosófica, em ambientes às vezes iluminado pela racionalidade científica e

outras mais trespassado pelas tendências mítico-poéticas que em lábios múltiplos

proliferavam, engrossando voz.

Vez ou outra a dialética, como processo de luta nos domínios do

empírico e do cognoscível, deixava-se embalar pelas divagações da metafísica,

retirando os pés do solo concreto.

As doutrinas titânicas se trombam nas elucubrações aristotélicas

e platônicas. Porém, de forma menos idealista que o sofístico Platão, por que

interessado com a concretude dos fenômenos, Aristóteles apercebeu-se que o

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movimento (kinesis, em grego) se efetua mediante causalidades. E notando a

ordem das coisas, fenômenos e eventos através da ligação causal, pôs-se a

classificar as causalidades em: qualitativa, quantitativa, locacional ou locomotora,

periódica ou perene; com o cuidado devido em identificar as quatro imanentes

causas do movimento como sendo: material, formal, motriz ou eficiente, final.

Passos significativos avançavam no organizar metódico do

processo investigativo até que a dialética chegasse ao estado em que hoje se

molda, em que pese as obscuridades a ela arremessadas.

Como hoje se compreende ela?

Como movimento do concreto em pensamento sobre o

movimento do concreto real, a dialética figura-se como o instrumental teórico

capaz de estimular e habilitar a aproximação do movimento que deve ocorrer

entre a mente e o movimento inesitante do real. E por ser prodígio real e não só

realidade pensada, a manifestação tridimensional da dialética, em termos

materialistas, verifica-se na:

Natureza: orgânica, material, objetiva e de realidade pré-humana e extra-

social;

História (Geografia): produzida e reproduzida socialmente, geograficamente,

contraditoriamente (em classes, estamentos, etc.), podendo ser considerada

como contradição antagônica a existente entre escravos/amos,

servos/senhores, operários/burgueses e como contradição não-antagônica a

que permeia a relação homens-mulheres, adultos-jovens, operários-

camponeses, trabalhadores manuais-trabalhadores intelectuais7;

7 A diferenciação entre contradições antagônica e não-antagônica é tomada de Mao Tsé-Tung (1893-1976). Milton Santos pronunciou no programa “Conexão Roberto D’Ávila”, da Rede Cultura, que a sociedade atual é caracterizada pela contradição pura, paroxística. Jameson (1997) já prefere diferenciar antinomia de contradição, afirmando que é a primeira que responde mais ao estado da sociedade pós-moderna. Consideramos a relação de contradição do ser capitalista como antagônica porque, distintamente das sociedades antecedentes (feudal ou escravista), a classe capitalista, malgrado inexistir sem a classe dos proletários e despossuídos, nega-a a todo instante, ainda que não seja possível a existência duma senão pela outra. A contradição antagônica significa contradição profunda, enquanto as não-antagônicas das formações espaciais anteriores se manifestavam como contrariedades latentes, por isso que a suplantação do antagonismo capitalista só pode se dar pela sua derrocada, por parte dos dominados que o suportam sobre os ombros, numa

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Consciência: pensamento reflexionante sobre as contradições reais, elevadas

em específicos contextos evolutivos de modo a não se permitir que sejam

isolados os conhecimentos (ou a consciência, nos níveis: passivo, vivido e

reflexivo) do conjunto do desenvolvimento espacial e material humano.

Mas como poderia o pensador substituir a “lógica formal” pela

“lógica dialética”? Cremos que inevitavelmente no abandonar do alvéolo da teoria

do conhecimento, o casulo da “reflexão filosófica” sobre o conhecimento, os

domínios da gnosiologia, dimensionando-se metodicamente à prática social por

meio da efetiva “reflexão científica” (LEFEBVRE, 1968a, p. 103), com o

processo reflexionante atinado à devida compreensão das possibilidades e

limitações relacionadas aos procedimentos dedutivo e indutivo. Antes de mais,

tendo-se já por sabido que para achegar-se ao particular iniciando-se do universal

(dedução) tem-se antes de tudo que se estar ciente das leis que regem

dialeticamente o real, de modo ao menos que a elas não se venha a distar; ao

mesmo tempo em que, para do particular aferir-se conclusões universalizantes

(indução), convém que se tenha por analisado, empírica e concretamente, o real

que se quer conhecer, mediante averiguações sistemáticas que traduzam

cognitivamente, na mente, a ordem dos fenômenos que se transluz na ordenação,

nem sempre ou quase nunca harmônica, da espacialidade social concreta.

Nem apenas a dialética platônica e tampouco o solitário

silogismo aristotélico. Dialeticamente pensando, um pouco de ambos: a dialética

tarefa classicamente considerada como missão do proletariado e que agora passa a ser revisitada, devido à complexificação e heterogeneização da força de trabalho. O fato é que pela primeira vez na história das sociedades de classes a liberdade só pode ser atingida pela eliminação das forças e dos agentes que a impede de realizar-se, acabando com a exploração e com os exploradores. De sua parte, a filósofa Marilena Chauí (1991, p. 37) concebe a contradição como movimento de negação que existe apenas na e pela relação, num movimento de negação interna na qual os termos se fariam criados/transformados/superados na/pela/como relação, e isso porque a filósofa recorda que a Marx “a contradição se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais e se chama luta de classes” (ibid., p. 46-47) e, com base nesse enunciado, expõe a discrepância existente entre os termos oposição e contradição: o primeiro termo se anunciaria no âmbito dos interesses dos proprietários, como conflito intraclasse e a segunda condição se consignaria na seara contraditória da esfera interclasses, na divergência dos interesses de todos os proprietários com os interesses dos não-proprietários, “pois onde houver propriedade privada não pode haver interesse social comum” (ibidem, p. 60).

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do primeiro já é menos idealista que o “idealista” Platão e o silogismo do segundo

é já mais materialista que o “materialista” Aristóteles.

Ao que acata ao procedimento indutivo, notamos haver

diferenciações internas substanciais ao mesmo, dividindo-se em:

Indução rigorosa ou aristotélica: aplica uma fórmula a todos os casos

estudados; procedimento que permite que pela mediação racional do

silogismo se chegue ao terceiro termo, a verdade;

Indução amplificadora, experimental ou baconiana: obtém, de número finito

de casos estudados, um número infinito de fatos possíveis8.

Após esse primeiro contato com o componente metódico

hipotético-indutivo criado no antigo solo grego e em chão europeu “renascido” –

cuja prepositiva ciência ainda aproximava-se da metafísica interessada

enormemente com a essência das imutáveis, ideais e totais causas primeiras –

mister a atenção para que do silogismo formal, que pelas penas dos positivistas9

foram escorridos ao largo do mundo e dos séculos na indução e no proceder

deducional pseudocientíficos, se marche à metodologia dialética que contemple,

como base à hermenêutica de um fecundo silogismo concreto, o intercambiar

social e espacialmente relacional das dimensões tribias do real, entre o singular-

particular-universal, na interescalaridade geográfica do micro-meso-macro,

experienciada e refletida pelo sujeito-objeto, em um ir-e-vir que parta e tenha por

8 A metodologia aplicada pelo filósofo e político inglês Francis Bacon (1561-1626) condizia com a procura por exemplos de casos cujos efeitos tenham sido causados por mudanças específicas. Posteriormente, de posse dos exemplos, se partiria à identificação das causas possíveis responsáveis pelo efeito. Daí então, buscar-se-ia ocorrências nas quais as mudanças específicas não se fizessem presentes e nas quais o efeito não se manifestasse. A partir disso, poder-se-ia inventar formas para se compreender a lógica imanente que rege a mudança e os seus efeitos. Para Bacon, conforme o filósofo Will Durant (2000, p. 141), “O método de indução deve incluir uma técnica para a classificação de dados e a eliminação de hipóteses; a fim de que, através do progressivo cancelamento de possíveis explicações, finalmente só reste uma”. 9 O positivismo, corrente teórica formulada por Comte, tem como características basilares a observação, a experimentação e a realização de deduções (formulação de leis gerais ou leis naturais). Não se preocupa como o porquê e o para quê das relações entre os fatos, mas com o como e, nesse processo de pesquisa, nega qualquer interferência de juízo de valor (sentir, intuir, imaginar e atributos subjetivos).

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porto seguro de regresso a realidade social atualmente globalizada, a sociedade

historicamente geografada no seu movimento antitético com o espaço socialmente

produzido e reproduzido, que lhe (re)amolda ou atravanca; espaço que se firma

como escol concreto do sujeito localizado histórico-geograficamente, que vive,

interage e pensa a partir das contradições intrínsecas a toda e qualquer

(re)produção, começando pela relação do ser social com a natureza através do

trabalho, para que das formas (paisagens) se apreenda a lógica da essência

subpaisagística do ser espacial.

A esse transe cultural, teórico e ideológico, vieram as chamas do

Século das Luzes se somar, ao aclarar que a “natureza humana” pode buscar a

multiplicidade das causas antropomórfico-fenomenais da relação entre natureza e

cultura, criando novas cosmogonias despregadas do determinismo teológico, da

tradicional cosmo(teo)logia. Ainda que isso não implicasse afiançar que um salto

progressivo ocorreu instantaneamente, porque o saber sempre cambaleia no jogo

de forças travadas no espaço social, conforme a tradição cultural engessada e seus

invisíveis aculturadores. É por isso que ao que consideramos de determinismo

teológico sucedeu o determinismo natural de que foram vítimas inclusive

sistematizadores da ciência geográfica. Avanços e retrocessos sempre a

manifestar-se porque previamente autores já haviam atentado ao fato de que:

o século de Linneu e de Buffon inscreve o homem no quadro das ciências naturais, mas descobre no mesmo momento que a história natural da espécie humana é ao mesmo tempo uma história cultural (GUSDORF, 1977, p. 80 apud GOMES, 1996, p. 70).

Acúmulo de saberes antigos. Das opiniões na Antiguidade

oferecidas pelo latino Lucrécio (95 a.C.) e pelos atomistas gregos que procuravam

apreender os componentes últimos da física da natureza chegou-se, sobretudo no

desenrolar do século XVIII, à tendência do perscrutar a natureza, com destaque

para os pensamentos do inglês Denis Diderot (1713-1784) e de seus amigos

materialistas d’Holbach, Helvétius e La Mettrie; para não dizer do francês

Georges Louis Leclerc Buffon (1707-1788), portador da visão materialista que

objetivava a compreensão lógica da cadeia de conexões entre os fenômenos

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naturais e sociais, crente na idéia de unidade entre todos os fenômenos

observáveis, mormente na continuidade conectiva de espécies (opondo-se assim à

classificação hierárquica de Lineu); propondo que a natureza devesse ser

entendida como o plano encadeado e necessário de fenômenos de tal forma que de

uns se deduziram os outros.

Entre geometrismos e fórmulas matematizantes de pensar,

transcendentalismos metafísicos e determinismos naturalistas, a natureza da

geografia e a geografia da natureza foram sendo esculpidas, com os corpos

teórico-conceituais sendo formados e reformados no seio do processo político-

econômico de espacialização do produzir economicamente universalizante10.

Obviamente que o ingrediente central das sociedades varia, isto

é, as determinidades ontológicas construtoras da sociabilidade não são as mesmas

sempre e por todos os cantos. Veremos por isso que ao nos debruçarmos sobre os

modos de produção havidos (não-classistas e classistas), até que se desaguasse no

capitalismo o elemento característico ordenador da totalidade sócio-espacial fora

em algumas regiões de teor mais cultural do que produtivo, e isso porque, na

opinião de Bottomore, é o essencial o que deve ser averiguado nas formações

sociais tangenciadas por múltiplos modos de produção – daí a principalidade do

modo de produção escravista no vasto Império Romano.

O conteúdo dos espaços muda conforme as realidades concretas

sob as quais se levanta a cognição. Entender o que se fez produzido e os porquês

dos silêncios sobre a dimensão espacial, dado os vícios do pensar pelo aspecto

único do temporal, pode municiar-nos para apreendermos a complexidade da

concretude do real.

Adiemos por hora, contudo, a reflexão sobre a categoria do

espaço e nos concentremos na da teoria do método, que nos possibilitará

10 Faremos adiante reflexão mais demorada sobre a categoria do espaço. Contudo, é interessante notarmos que paulatinamente o espaço vai-se figurando como algo mais que a tridimensionalidade geométrico-formal-cartografável: largura-espessura-profundidade e descrição da localização-distribuição-disposição intencionada pela macro-política oficial e pelos que a superestrutura representa. Acena já à tridimensionalidade trans-escalar da essencialidade do ser: singular-particular-universal ou lugaridade-regionalidade-globalidade, em que os traços do poder global se hegemonizam territorialmente sob formas particularizadas, singularizadas, em regiões e lugares do mundo, este se pondo como unidade social de espacialidades diversas armadas em rede.

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referenciar a exposição daquela, inclusive porque a geograficidade da dialética

materialista está na capacidade de ler espacialmente as contradições histórico-

geográficas. Premente torna-se o seu conhecimento. Caso contrário, apenas no

império da dialética filosófica (formalismo lógico-gnosiológico), fechada no

pensar a-espacial, corre-se o risco de a geografia permanecer.

A visão que se institui liga-se ao ferramental teórico-conceitual

que se tem em mãos e se se está a refletir pela forma aparente do fenômeno lógica

e intelectualmente matematizado ou pela essência contraditória do conteúdo

sempre relacional, transformante e de certa maneira fugaz.

Para que tal ocorra, para que se exercite o movimento científico

pela pendulação metódica entre forma e essência, e que da indução baseada no

silogismo formal (silogismo por extensão) se transite à teoria do silogismo da

essência (silogismo da compreensão), convém que o processo de construção do

conhecimento esteja aportado na lógica concreta, empreendendo o silogismo da

essência que vá além das abstrações tautológicas da lógica formal entranhada pelo

silogismo formal, extensivo e da aparência. Como alertou-nos Lukács, é preciso

rasgar o véu da “coisidade” que dissimula a essência da totalidade social.

Obviamente que as posturas teóricas quanto a este método não

são unânimes entre os pensadores11. Basta que citemos a esse respeito o filósofo

austríaco Karl Popper (1902-1995) que influenciado pelo Círculo de Viena se

dispôs a recuperar a linguagem matemática de linhagem cartesiana e a aprimorar a

doutrina positivista (apontada de neopositivista12) e que, juntamente a esse

Círculo13, defendia todo e qualquer esforço metódico amparado no procedimento

inducional, porque a verdade das ciências estaria a evoluir por acúmulos de

11 A geografia, tradicionalmente caudatária do discurso formal protocolado sobre a forma espacial, exemplarmente o comprova, vez que só (se muito) se ocupava com o concreto-visível, em nada se interessando pelo concreto-invisível. 12 No neopositivismo percebe-se preponderar, como características essenciais: a) a linguagem matemática; b) a lógica da razão como contraponto à experiência e à experimentação; c) a separação entre sujeito e objeto; d) a cientificidade como fator resistente ao teste da falseabilidade; e) o conhecimento permeado pela idéia de progresso; f) e a idéia de que teorias científicas, como enunciados universais, possam racionalizar-explicar-dominar-reformar o mundo. 13 Liderado por Rudolf Carnap (1891-1969), o Círculo contava com as presenças de Moritz Schlick (1882-1936), Otto Neurath (1882-1945) e, dentre vários outros, com o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e Bertrand Russel (1872-1970).

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saberes resistentes à falseabilidade, por meio de provas empíricas sistemáticas a

lhe galvanizar. Ou seja, racionalizada a indução, deve ela ser posta à prova da

falseabilidade para se saber se a idéia nova se confirma cientificamente ou não (se

sim, progride a ciência), vez que o sistema científico só é reputado válido por

Popper caso passe no teste da falseabilidade, imunizando-se à prova da

experiência. A objetividade dos enunciados científicos se sustenta na

possibilidade de poderem ser subjetivamente submetido a testes. Para ele, o

método deve possuir postura lógica, com cânones metodológicos e linguagem

universal (matemática) a todas as ciências, que dessa forma se pretendia que

fossem unificadas. Negando a concepção naturalista do método, como se opondo

às tendências psicologistas, Popper reproduz a concepção cartesiana da ciência,

revitalizando a força inerente do positivismo lógico. Aqui, temos os positivistas

negando o determinismo teológico, o determinismo natural e o determinismo

psicologista, escorregando entretanto no determinismo matemático: espécie de

determinismo metafísico a se predizer (onis)científico.

Enlaçada ao discurso neopositivista, a nova geografia ou

geografia quantitativa orientou-se ao estudo do espaço homogêneo, destituído de

rugosidades e de contradições econômicas típicas da sociedade burguesa.

No âmbito do marxismo a situação se modifica. O que significa

asseverarmos agora, desapegados da rigidez matematizante e do comportamento

“negativista” da ciência-neopositivista-metodologicamente-neutra-popperiana,

que a dedução pode servir ao silogismo da essência que aponte a algumas

“previsões” ou hipóteses tão logo descobertas as leis elementares do real, os seus

vetores sociais fundamentais, contribuindo para a atuação dos que se identificam

como engenheiros das forças sociais, a canalizar e orientar forças que jamais

deixam de pulsar e coadunar-se, para que o novo espaço social surja da

cosmização (reordenamento) da energia social fundada nas dimensões dos

mundos do trabalho e do além-trabalho, de um sujeito que ao conhecer não mais

se separa do objeto, já que se percebe-concebe como objeto de outros sujeitos, e

que por conta disso intenciona se desobjetificar, humanizar, hominizar, a

desenvolver processualmente a omnilateralidade. Isso o que realizara Karl Marx

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(1818-1883) e vários de seus seguidores por meio do materialismo histórico,

partindo da situação vivida, sem cair no profetismo metacientífico a descrever o

sentido inelutável da história, mas que, doutra parte, se recusa a ser expressão

acanhada de seu tempo14 e espaço, como ciência míope por definição ao furtar-se

a dispor o quadro de probabilidades do curso dos eventos (FERNANDES, 1995,

p. 92; SÈVE, 2001, p. 4; SROUR, 1978, p. 45, 51-52; MÉSZÁROS, 2003, p.

110). Embora alguns marxistas assim não pensassem: qual o filósofo italiano

Antonio Gramsci (1891-1937) que afirmava que o materialismo histórico deveria

se propor a desvelar o que “foi” e “é” e não o que “será”, entendendo o será

como “não-existente” e incognoscível por definição; mas como nos recorda

Robert Henry Srour (op. cit., p. 52, nota de rodapé no 21) em questionamento da

filosofia da práxis gramsciana, o foi também é um não-existente do qual resta

apenas representações que somente na teoria se perpetuam e não mais como

realidade, daí que, operar como Gramsci implica em suprimir da teoria marxista o

caráter de “ciência da prática social”.

Queremos com isso dizer que o fato de nenhum método poder

dar a matematização lógico-formal (suprafísica) da realidade social não sugere de

antemão a negação da potencialidade do conhecimento retroativo ou conjetural

(metafísico). Conhecer não é prever a inevitabilidade do futuro e sim apreender

diretrizes (leis) que guiam o complexo no qual a sociedade se geo-grafa.

Tal trilhar mais condiz com o desemaranhar do fio de Ariadne,

possibilitando o imprescindível pousar das asas da teoria no ninho do espaço

social concreto, de onde alçara vôo, rodopiando em acrobacias idealísticas tão

logo achou-se estranhado o pensar do pensador, por ingênuo descuido ou

maleficência perambulando nos labirintos da metafísica desgeografada,

descuidado em evitar as hipóstases de conceitos eternos e das abstrações teóricas.

Em raias bem opostas, tais formas metafísicas (inocentes ou

perversas) de se pensar manifestam-se ao longo dos séculos sob duas distintas

14 Discordamos da posição de Ítalo Moriconi (1994, p. 18) de que o marxismo, considerado por Sartre como “filosofia insuperável de nosso tempo”, teria sucumbido com aquele “nosso tempo”, de Sartre. O tempo do marxismo se confunde com o do capitalismo. Tenta um destruir o outro.

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formas. Seu conhecer torna-se imprescindível para se avaliar o adubo sócio-

espacial do qual fertilizaram os saberes e os métodos:

Na interpretação mística, mágica, idílica e inocente do real, em um mix de

visão contemplativa, entendimento e imaginação, as representações são

suscitadas sem o ensejo do engodo, como posições teleológicas primárias

despertas no contexto social arraigado às mediações de primeira ordem,

fundamentada no trabalho concreto (work) produtor de valores-de-uso, na

conformação do metabolismo natural homem-meio (relação intranatural).

Aqui a consciência (simples e parcial) da natureza erige-se da sensação

imediata, como “consciência animal da natureza” (LEFEBVRE, 1981, p.

144), com a lógica que mescla saberes concretos advindos da experiência

concreta (medicina natural e saberes atmosféricos, climáticos, celestiais e

estacionais) com mitificações e interpretativas “reificações inocentes”

(TERTULIAN, s/d) que tentam preencher o vazio de relativa ignorância e

impotência para com a grandiosidade do envolvente; como

concomitantemente na forma que arranjavam espacialmente a relação

homem-meio, já que o homem primitivo se compreendia como ser integrante

e imerso no continuum da Natureza, realizando-se material, espiritual e

cosmicamente em (e como) seu movimento simultaneamente aos outros seres

vivos coabitantes da mesma. Homens e animais considerados como entes

igualmente humanos em muitas sociedades – como nas comunidades

indígenas nas quais o grau de parentesco não se desmantelavam,

individualizando-se apenas –, compondo todos a unidade orgânica. Em tais

comunidades a adaptação ao meio ambiente fazia-se mais do que necessária

culturalmente para que a espécie se reproduzisse, originando-se daí o que

poderíamos tomar como universo superestrutural das idéias, com os códigos

e regras armados com vistas a manter o equilíbrio população-coletividade,

quer por meio da anticoncepção, infanticídio, guerra, feitiçaria ou outros

elementos da rede de costumes organicamente relacionados ao estado da

divisão sexual do trabalho (MEGGERS, 1977). Não sendo a natureza

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segregada do sujeito, tampouco a função e o produto do trabalho se lhe

opõem, combinando-se na relação que de tão solidária alude à condição inda

celebrada como Idade do Ouro por ampla gama de intelectuais. Na

reinterpretação da antropologia social o mito deixa já de ser estereotipado

como pensamento banal (inferior-atrasado-primitivo) e como algo aquém ao

que se entendia como pensamento lógico-racional (superior-civilizado-

adiantado), como se fez até a Ilustração no século XVIII15. Do século XVIII

em diante vai-se demonstrando que o pensamento mítico pertence aos

campos do símbolo e da linguagem simbólica, que eles não desaparecem mas

coexistem com o pensamento e a linguagem conceituais; muitas vezes

ocorrendo que a imaginação social transforme em simbólico e mítico aquilo

que o saber científico-filosófico concebera exclusivamente como

conceitual16. Pelo pensamento do antropólogo francês Claude Lévy-Strauss

(1908-?) ficou registrado que “sociedades primitivas” “são tão ‘primitivas’

como as nossas” e que o mito e o rito já não mais são tidos por atrasados,

meras lendas ou fabulações, antes respondendo à forma de organização da

realidade a partir da experiência sensível, efetivada mediante o processo

chamado de bricolage, que produz o novo a partir da reunião não tão rígida

dos pedaços do entendimento anterior, como quebra-cabeça-mutante que vai

agregando novas peças (reunindo experiências e narrativas) até que o mito

geral esteja pronto a expender as origens, formas, funções e finalidades dos

fenômenos, com o atributo divino a Natureza e os seres humanos

permeando17. A alusão a ser feita é que o mito – qual o enunciado pelo

Hesíodo – coloca fim ao caos perceptivo porque equipado das funções

15 Este foi o período no qual o idealismo da filosofia da história do alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e o positivismo teoricista e evolucionista de Comte exerceram bastante peso. 16 Há outra linha de pensamento que correlaciona a predominância do pensar simbólico ou conceitual pela concepção neurológica e pela análise da anatomia e fisiologia do cérebro humano, dividido em dois distintos hemisférios – um dos quais, conforme a história e a tendência individuais do sujeito ou a influência da cultura a que pertença, desenvolve-se mais que o outro –, mas que não vemos como tese primordial senão como influência em segundo grau, e talvez em nível mais individual, dos vetores econômico-sociais centrais que estruturam a sociedade segundo o nível do conhecimento desenvolvido. 17 Ver: VALENTIN, 1962a, 1962b; MAKARIUS, 1968; LLOBERA, 1979a; CHAUÍ, 2000.

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explicativa, organizativa, classificatória e por encadear (sem suficiente

comprovação o que se concebe como) as causas e os efeitos dos fenômenos

na totalidade explicativa18, não mais unicamente contemplativa19;

Na projeção mental particularizada intencionalmente por uns, como posições

teleológicas secundárias içadas ao embuste pelos que ideologicamente

costuram o tecido social do tope do poder, temos como propulsor o complexo

social estruturado em mediações de segunda ordem, voltadas ao trabalho

abstrato (labour) produtor de valores-de-troca e que a toda a sociedade

transmitem a idéia de que se está a avançar do caos perceptivo à totalidade

racional, não se emparedando a realidade sensível tanto à concepção dos

povos primitivos como à racionalidade científica dos teóricos metafísicos.

Mas no fundo, muitas vezes tal totalidade conceitual esconde o fato de estar a

serviço de agentes hegemônicos, como “totalidade fechada” ao “pensamento

único” dos seus interesses, armada, lembra Nicolas Tertulian, como se fora

uma teia de “reificações alienantes”, pela qual a intencionalidade e a

racionalidade instrumental tentam fazer da doxa burguesa epistéme universal

a reproduzir a estrutura de poder e as desigualdades socioeconômicas. Daí

18 Desde a Grécia Antiga esse fenômeno se esboça, com o pensamento cada vez mais laicizado e racionalizante a expor em requintadas amálgamas de efabulações, de que é exemplo o estudo da escola milesiana sobre a phýsis, bem como as que lhe sucedeu, o real materialmente em mutação. Vale recordar que ao homem primitivo tudo o que é desconhecido é enxergado como mítico, sendo religiosa e magicamente julgado como caos e desordem; entrementes, não apenas o primitivo sentia a necessidade de ordenar o caos, fazendo-o de modo sempre ilusório, munido da razão que se confunde com a fantasia, porque o homem moderno também guarda – inda que em menor proporção e sem tão forte dose de mistério – muito da propensão à fusão do racional com o imaginativo e o fantasioso, com “razões” motivantes que se distinguem da racionalidade técnica hegemônica. Decorre daí o fenômeno chamado de prolongamento e distanciamento das posições teleológicas para com a racionalidade que centra o trabalho e que embasa a sociedade; e muito embora se faça complicada a descoberta da ligação imanente e crescentemente ofuscada entre práxis e teleologia, dessa hipótese e pressuposto jamais pode se desfazer o pensar materialista-dialético, e mesmo que as razões se distanciem no tempo, além da materialidade da sociedade. 19 Não custa recordar ademais que o pensamento conceitual igualmente parte do caos perceptivo, rumando contudo à totalidade dialética, não se limitando à realidade sensível comum seja à concepção dos povos primitivos como à racionalidade científica dos teóricos estruturalistas e metafísicos. Daí que, desde os primeiros espaços materiais coletivistas se criaram seres divinais e espaços paradisíacos imaginários que, malgrado o desmembramento cirúrgico do corpo social pelo capital, do espaço material de produção em parcelas do orbe privatizadas, não eliminou aqueles espaços e seres mentalizados a priori. Depreende-se pois, que os processos de entendimento propostos na visão mítica e racional é que são heterogêneos, mas que não se deve conceituar a um como pensar banal, pré ou irracional e o outro como superior, racional e metódico.

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que, por convencimento ideológico, o que é discordado fica sendo rotulado

como caos na ordem natural da história evoluída.

Ambas as formas de pensar encerram limitações. Uma

condizente ao estado técnico-interpretativo de conhecimento-manejo da natureza,

enxergados não sem certa inocência e ingenuidade. Outra potencialmente

portadora da capacidade de melhor explanação mas que, não por limitação

técnico-cognitiva e sim por artimanha político-econômica classista e

obscurantista, mantém-se acorrentada nada inocentemente ao cárcere prático-

teleológico dos que exercem dominância.

Outro não é o motivo ao racha no mirante da sociedade

civilizada, propiciado pelo fato de muitos escolherem outras lentes para ler o real,

que é embaçado e mal iluminado pelo farol/tampão da racionalidade técnico-

instrumental burguesa.

Tomados pelo fetichismo da mercadoria20 e pela inversão dos

fenômenos na consciência, “o pensamento cotidiano forma uma representação

caótica da realidade” (FREDERICO, 1997, p. 33). Uma das conseqüências está

no fato de o senso comum, de sujeitos que creditam relacionar-se com coisas que

significam por si mesmas, enrijecer o “mito trivial da antinomia ‘prática

totalmente material/teoria sem materialidade’” (SROUR, 1978, p. 35).

Confronta-se, de maneira formal e positivista, atividade

concreta/atividade abstrata, fazer/pensar, teoria/prática. Pelas portas do debate

teórico, o senso comum espelha determinado senso “científico” que, na rabeira do

empirismo simplista, serve à engrenagem econômica capitalista com o discurso da

neutralidade axiológica e da banalização e esterilização da teoria. O cientista por

aí faz, segundo a metáfora, o jogo da avestruz: desmerecendo as conseqüências de

suas descobertas, fugindo do compromisso com o espaço que gera ao esconder a

cabeça no subterrâneo do des(re)comprometimento.

20 A palavra fetiche atine a feitiço, feitiçaria, etc. Foi empregada pelos colonizadores lusos para caracterizar o fenômeno pelo qual os objetos inanimados recebiam imaginária animação pelos povos africanos; sendo posteriormente aperfeiçoada por Marx como metáfora a caracterizar o fetichismo da mercadoria. Em síntese, concerne à aparência ideológica das coisas na mente.

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Eis por que o método deve olhar sempre pelo menos em dois

sentidos. Primeiro, ao ventre contextual da coisa no real ao qual quer interpretar:

relação coisa-realidade ou a relação coisa-espacialidade (idéia aproximada das do

sistema de objetos e sistema de ação, tratadas por M. Santos). Segundo: para o

ventre contextual experienciado e do qual são retiradas as leis: relação

pensamento-realidade, ou relação pensamento-espaço (espaço-mental-subjetivo e

espaço-social-objetivo). Relação sujeito-objeto. Que mantenha de tal modo a

correspondência entre o movimento do real e seu movimento interno, se preciso

for com a lustração constante das lentes.

Todo método comporta postura política, quando em busca ou

escamoteamento da verdade, pleiteando a praticidade técnica e aperfeiçoamento

lógico-instrumental ou a profundidade da relação entre forças e seres na realidade.

Disso não se pode livrar. O pensamento conceitual por isso, se se distingue num

primeiro momento do pensamento simbólico e imagético elaborado miticamente

numa determinada estrutura conjuntural, noutra ponta se discerne internamente

num multicolorido visual elaborado de acordo com a margem em que pisa o

indivíduo-pensante na sociedade estratificada. Com isso relativizamos a “verdade”

e o “avanço” do pensamento racional à história e à lógica espacial ao qual têm por

berço e que encorpado põe-se a embalar tecnicamente. Fixada a postura de

comprometimento com a verdade, aceitando-se que a noção que desta se tem não

é imutável21, o melhor que deve fazer o pensamento conceitual é o inter-

relacionar racional dos elementos homogêneos, com o fito de explicar a essência

do ser de modo desenvolto de imagens e simbologias (não só mítico-“primitivas”

mas ideológico-“modernas”), para que se alcance, por via lógico-relacional,

causal, necessária e dialética, a análise e a síntese, da realidade e do pensamento.

O pensamento lógico ou racional (ou o pensamento objetivo) opera de acordo com os princípios de identidade, contradição, terceiro excluído, razão suficiente e causalidade; distingue verdades de fato e verdades de razão; diferencia intuição, dedução, indução e abdução;

21 Deve-se evitar o extremismo comum a duas posturas: o da racionalidade do pensar burguês que infiltra nas ciências a lógica dominante, como também, erro cometido por ideólogos estruturalistas do marxismo, a proposta de se criar a “ciência proletária” contrária à “ciência burguesa”.

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distingue análise e síntese; diferencia reflexão e verificação, teoria e prática, ciência e técnica (CHAUÍ, 2000, p. 164).

Adequadamente utilizado, o método pode ser o fio de Ariadne se

se colocar como condutor entre o ambiente dos corredores de mistérios que

preenchem os labirintos da metafísica com o ambiente da racionalidade

relativamente iluminada pela luz da ciência. Como pode figurar, acaso fragilizado

nas avaliações e conjecturas, como o calcanhar de Aquiles do corpus teórico.

O fato é que “O método decorre do que se objetiva apreender

(e) veste a roupa que lhe dá a teoria” (MOREIRA, 1988b, p. 60); entendendo-se

que “a teoria é um discurso explicativo do real (e) o que constrói a sociedade, o

que constrói o tecido social, é a linguagem”, alerta-nos a socióloga Ana Clara

Torres Ribeiro22. Teoria condiz com uma “rede de conceitos”, disse certa vez

Milton Santos. Conquanto relacionados, há que se saber distinguir entre método e

teoria: o primeiro orienta a teoria conquanto essa, baseada no concreto, o renega,

aperfeiçoa ou absorve elementos parciais a serem ressintetizados “noutro”

referencial metódico. Em determinados casos, pode um ser a forma e o conteúdo

do outro, interdeterminando-se mutuamente.

Como manifesto pelos professores duma instituição de ensino:

É preciso explicitar que método não é conjunto de regras e normas que servem para qualquer situação. Do mesmo modo, não faz parte das poções mágicas que servem para fazer feitiços e encantamentos. O método é uma construção do diálogo entre a teoria e o real que se pretende estudar. Falamos de um caminho construído, de uma travessia da síntese teórica e o mundo vivido. Falamos de uma pluralidade de vertentes e tessituras para o processo de desvelamento da realidade (UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE. Projeto Político Pedagógico do Curso de Graduação em Geografia, 2004).

Se o descrédito continua a resistir, indaguemos: método, por

quê? Simplesmente por ser o procedimento racional elaborado com o objetivo de

fazer caminhar o pensamento do desconhecido ao conhecido, como caminho que

se quer trilhar para atingir um fim: a verdade.

22 Fala proferida em aula de Pós-Graduação da UFF, em 5/6/2004.

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Método como caminho que o caminhante define e redefine ao

caminhar. Deixando de caminhar, de pesquisar, de maneira materialista ou

metafísica, abandona o terreno da dialética e penetra na vala do estruturalismo, a

ante-sala do idealismo.

Aliás, na raiz etimológica da palavra grega, methodos provém da

junção de meta (através de, por meio de) com hodos (caminho, via).

Dos anos que fluem da era grega antiga à Renascentista Europa,

a dialética, como qualquer outro método inquiridor, recebe atenção especial como

lanterna do saber humano crescentemente laicizado e racional, que enseja

encontrar as causas do real junto ao mesmo.

Na atmosfera da Renascença muitos pensadores encheram os

pulmões para falar sobre a necessidade dum método o mais adequado e perfeito

possível, mergulhando a reflexão em sua caça com o fito de resgatar a verdade

sacudida pela queda do exclusivismo filosófico-religioso escorado em Aristóteles,

num contexto em que o europeu teve de passar a aceitar que os seus pares como

os outros que conheciam não eram os únicos no orbe; que outras terras e outros

povos desafiavam as explicações bíblicas; que o poder e as autoridades político-

religiosas instituídas (Igreja e Estado monárquico) não mais seriam as mesmas. A

Reforma veio abalar tais estruturas, injetando a dúvida e a incerteza no espírito

dos céticos que desabrochavam, turbados pelo movente solo econômico. Nem

Contra-Reforma, Inquisições ou assassinatos matariam o movimento.

Nos marcos do mundo novo, inexoravelmente “No alvorecer do

século XVI, uma geografia inteira se agrega ao campo da experiência humana”

(SOUZA, 1999, p. 95). Geografia que lentamente vai-se afigurando desafiante aos

valores reinantes. Instigando aventuras rumo ao conhecimento. Levando-os a

expedições concretas e a novas viagens teóricas. Alterando as nações, as noções e

os espaços reais, da mente e do corpo.

Diante de tantos, de imediato citamos três personagens que se

destacaram com copioso ceticismo, revelador da continuada falência das

concepções medievais: o alemão Agripa de Nettesheim (1487-1535) que

proclamou a incerteza das ciências; o médico português Francisco Sanches (1552-

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1632) que negou as doutrinas aristotélicas e pregou a dúvida como recurso

metodológico, testemunhando que o homem nada pode conhecer com segurança,

nem o mundo e nem a si mesmo; e o francês Michel de Montaigne (1533-1592)

que punha sua fina ironia ao proveito de seu ceticismo para demonstrar como

fatores pessoais, sociais e culturais influenciam idéias de sujeitos que, fazendo-se

portadores de recursos analíticos racionais e verídicos, impõem superstições e

opiniões nada além de fanáticas a expender o que lhe comparecia inextrincável.

Montaigne especialmente, vai mais adiante que Francisco

Sanches, porque ele não disse apenas que o homem nada poderia conhecer com

segurança. Munido da filosofia cética dos anos tardios da Grécia antiga e intrigado

com a diversidade cultural e de pontos de vista que o mundo em Reforma e

Renascimento expressava, asseverou que o homem nada é e que por isso nada

pode saber, sendo-lhe a certeza inatingível, tamanha a descrença em um

conhecimento humano tragado e perdido entre influência diversas.

Por considerar que o saber nada poderia ter de sistemático e que

a tentativa de se ordenar o mundo é vã, o ceticismo de Montaigne teve bastante

repercussão por conta do mundo descrente e duvidoso, no qual certezas e valores

religiosos, filosóficos e científicos tombavam ao chão. O que não significa que

fosse ele envolvido por uma atitude liberal: pois valores políticos tradicionais e

conservadores definiam-lhe a conduta – avessa a alterações radicais nos sistemas

políticos –, além da postura como pensador também ser caracterizada pelo

ceticismo aristocrático inspirado nos gregos da Antiguidade.

No olho do furação, o fideísmo do francês Pierre Charron (1541-

1603) quase nada pôde ao tentar restituir o antigo superpoder da fé, dia a dia

menos inquebrantável.

Todos os pilares caiam. A nova visão de verdade e certeza que

se queria construir deveria arvorar-se do nada, sem utilizar os tijolos de muros

deitados, em busca de certezas científicas universais, permanentes e estáveis23.

23 Poder-se-ia sugerir qualquer proximidade entre o obscurantismo pré-renascentista e o da atualidade? Se naquele período o saber tentava se despir da ideologia teológica dominante, hoje as ciências sociais percebem que seu renascer relaciona-se ao despir da ideologia tecnológica

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A procura pelo método caracterizará o final do século XVI e o

correr de todo o XVII, com pensadores a mais das vezes a se revezar em querer

casar a até então abominada ciência com a cegamente adorada teologia, do que em

divorciar qualquer uma delas. Ensejando colocar o conhecimento humano, do

divino e do homem, num novo patamar, não obstante.

Ascendia o Racionalismo como oposição, imediata ou indireta,

ao poder absolutista, fazendo com que tabus e visões de mágicos e alquimistas

sucumbissem frente à sede de querer saber e querer pensar.

A expansão dos domínios intelectuais, racionais e exploratórios,

tomava o lugar da simbologia subjetivista, tendo por base o cálculo e a

matemática inicialmente vangloriados pelo filósofo, matemático e naturalista

francês René Descartes (1596-1650), quem por primeiro reconheceu a sua

viabilidade, asseverando que a consideração da natureza oculta e insondável não

mais dispunha de assento na sociedade alvorecente, visto que o Deus racional a

torna inteligível mediante um sistema de leis racionais, porque é Deus quem por

primeiro cria as leis necessárias, que são de início voluntárias; e tudo que é

contrário à razão divina a Deus torna-se irracional e desprezível porque a

Descartes a razão não pode acomodar-se à contradição. A ordem natural das

coisas e da natureza é acessível ao espírito perscrutante que em Deus se arraiga.

Tudo, toda criação, ao Descartes detém intencionalidade divinal, a qual o homem

deve obedecer mas não como ignorante, pois a razão é a parceira à convivência e

sapiência das criações com as quais interage.

Não importa as críticas que tenha sofrido, acusado de empenhar-

se na metafísica finalista, refutando a experimentação e a negação demonstrativa

ou achegando-se à dicotomia idealista, pesa o modo inovador do seu raciocínio. O

início da modernidade na filosofia é por ele vincado. O alicerce do edifício do

saber ocidental tem novos tijolos, um novo método como coluna estruturante.

dominante, livrando-se da razão instrumental, imediatista e economicista que as atravessa. A proximidade está no caráter classista desses modos de produção (feudal e capitalista).

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Pela senda em que infiltrou o pensar de Descartes, não o

deixando tão sozinho na ousada empreitada do pensar racionalizante, personagens

vários haviam-lhe precedido24.

Vão deste modo, cristãos e amantes da verdade rompendo

intelectualmente com a tirania obscurantista da Igreja, como fizera o frade e

filósofo italiano Tommaso Campanella (Giovanni Domenico, 1568-1639) e o

Jacob Böhme, entre outros que da religião oficial se afastaram, sendo criticados,

perseguidos ou à morte condenados.

A Itália fora pátria-mãe da Renascença, onde (o conhecimento

sobre) as forças da Natureza e a da Razão (lumen naturale) por primeiro se

opuseram aos poderes da revelação religiosa, ao poder político do cesarismo e ao

poder do dogmatismo mágico na vida, apesar de tão combatidos serem pela

Contra-reforma, pelo absolutismo e aristocratismo dominantes. Forças da re-ação.

A matemática era o bastião de quase tudo. O capital mercantil

estava na base da matemática, refundando-a sobre novos interesses.

Eis por que, alude Veit Valentin, “Com razão chamaram

recentemente o período de 1650 a 1750 o século da matemática” (1962c, p. 188).

A razão quer entender e impor regras à natureza, cujas forças

teimam em escapar-lhe, enviesada que está da desteleologicidade ontológica.

Abrandava-se no novo mundo a onto(teo)logia e a teleologia religiosas. 24 Pode ser incluído nesse rol o pai da astronomia moderna, o polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) que colocou a Terra no devido “lugar” no sistema (geocentrismo ptolomaico que, resistente mas revogável, cede ao heliocentrismo, não sem assassinatos: como o que a Inquisição impôs ao Giordano Bruno em 1600). Outros contemporâneos de Descartes também podem ser listados, como o astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630) que aperfeiçoou o sistema copernicano ao formular a teoria do movimento elíptico dos planetas, e o matemático, físico e astrônomo italiano Galileu Galilei (1564-1642). Extremando a visão de Descartes esteve o filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677), estendendo a matemática aos domínios da ética e da moral, por considerá-la o método mais propício para se ocupar da essência e propriedade das coisas. A Spinoza, portanto, elementos tradicionais (como Bem, Sabedoria, Perfeição e Beleza) são valores antropomórficos provenientes da subjetividade ignorante e repleta de preconceitos, ainda que lhe fosse inescusável a ligação necessária e causal entre natureza e Deus. Assim ele descartava idéias de liberdade ou de contingência, porque tudo o que houve, há e haverá atrela-se à natureza divina de existir e atuar, sendo Deus-processo e a natureza-produto. A ciência, para ele, busca desvendar a necessidade, não o desvelar da teleologia, e um método preocupado com a essência das coisas seria o único capaz de distinguir a causalidade natural e a finalidade antropomórfica das coisas e de suas propriedades (natura naturans e natura naturata). O raciocínio é-lhe o pilar estruturante do verdadeiro conhecimento que a divisão da natureza deve averiguar; e no cerne desse saber que busca a essência e a necessidade das coisas está a promitente matemática.

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A razão científica nega a metafísica pelo fato de a metafísica

querer ter a natureza por causalmente-divinamente determinada.

Experimentos espaciais vão sendo realizados. O que se coloca

em realce é a necessidade de construção da nova geografia e que essa possua

novos elementos edificantes doutra sociabilidade.

Entretanto ter-se lampejado na Itália, foi na Inglaterra que o

racionalismo vigorou. Reputada pátria do racionalismo político, nela inicialmente

se combinou o governo monárquico não mais absolutista com o Parlamento

durante a Revolução de mais de cem anos, que proibiu ainda a sucessão

hereditária no trono e fez priorizar a religião católica. Some-se a isso o aspecto

cultural de a Inglaterra despossuir qualquer visão negativa sobre a Natureza, não

tendo a Igreja adulterado-a como o fizera no continente, sendo o campo visto

como meio de lazer, descanso, práticas de esporte e fonte de estímulo à poesia.

Conta ademais o fato de que socialmente também não havia oposição entre

habitantes do campo e da cidade, com espaços citadinos e campestres de aromas

que cheiravam mais à harmonia que à cizânia.

Tais condições materiais e culturais mostraram-se propícias para

que as ciências naturais se alavancassem.

Outro importante nome é escrito no livro do pensar ocidental: o

do físico, matemático, astrônomo e filósofo inglês Isaac Newton (1642-1727)25.

Ao lançar o famoso capítulo primeiro da física moderna,

Newton substitui a metafísica de Descartes por sua física. Segundo ele, a dedução

cartesiana não mais deveria seguir-se como recurso confirmador de proposições

metafísicas, senão como elemento fundacional do saber semeado no solo do

experimental. A experiência e a observação constituiriam o pedestal do processo

científico.

Parte-se do primado da matéria-homem e não do da imatéria-

Deus. Mas Deus era o gênio da matemática a Newton e todos os mistérios do

25 Entre seus feitos, constam os estudos sobre as cores e a refrangibilidade e decomposição do espectro da luz (mostrando que a luz separada num prisma pode noutro ser ajuntada), além de importantes descobertas matemático-geométricas, inventos (telescópio de reflexão, p.ex.) e elaboração de cálculos ou teoremas considerados revolucionários à vigente e às vindouras épocas.

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“livro da natureza” escritos em linguagem matemática ao homem tornavam-se

inteligíveis. Isso nos faz entender o porquê de:

O século XVIII foi um século inglês porquanto foi o século da origem do racionalismo e porque foi a Inglaterra que com a idéia do racionalismo transmitiu ao continente a idéia da Revolução (VALENTIN, 1962c, p. 191).

Aquele primaveril racionalismo engendrado pelo grego Hesíodo

amadurece sob o racionalismo inglês.

A seu modo estava Newton a conduzir a tocha da racionalidade

adiante, tomando-a das mãos de Bacon, Galileu, Descartes. Dando

prosseguimento à concepção de natureza como algo inteligível pela força da

observação e experimentação atenta e racional do homem.

E se as leis da natureza (basicamente o movimento celeste dos

corpos) se faziam inteligíveis pelo modelo explicativo newtoniano, as que

competiam ao funcionamento da sociedade igualmente passaram a ser

consideradas tão objetivamente atingíveis como aquelas.

No século XVIII, com a revolução epistemológica das ciências

cumulando, da metafísica translada-se à teoria do conhecimento que fará com que,

para o geógrafo Paulo Cesar da Costa Gomes (1996, p. 68), da essência do

conteúdo se quererá a “essência na forma”, nascendo “um movimento de

progressão do saber sem paralelo na História”, que se pôs a abandonar as

“disciplinas ditas literárias”, focadas nas essências do conteúdo.

Por revolução científica se tomou a identidade desse fenômeno

histórico, que teve como central o substituir das disciplinas literárias pelas

“científicas”, com novos métodos e modelos.

São todas transformações teóricas e científicas que, conjugadas,

desembocar-se-ão no fenômeno anunciante da tecnização, seja no mundo da

produção, distribuição, comunicação ou na tecnização da existência em todos os

sentidos, material e imagético, no campo e na cidade, em que a divisão

internacional do trabalho fez com que as comunidades patriarcais deixassem de

ser comunidades de trabalho (VALENTIN, 1992d, p. 233).

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A contribuir com esse feito, aqueles iniciais rompimentos com o

saber secular. Secular não-duvidar (em especial o não-duvidar não contraditório,

conspirativo).

Assim ia o cientista tomando o lugar do personagem sábio. E

duas vertentes metodológicas se demarcam como grandes aberturas dispostas ao

pensamento moderno, nessa nova odisséia pela natureza da verdade da natureza:

uma delas foi a proposta pelo Bacon no suster da tese da necessidade da ciência

que se valesse da observação e da experimentação, através das quais

indutivamente se formulariam as leis sobre a ordem sistemática e geral ao se partir

da consideração dos casos particulares para se chegar às generalizações. Por

propugnar que a história da ciência funcionaria como a pedagogia do método

verdadeiramente científico, a influência baconiana se fez destacada (resvalando

entre outros na filosofia da ciência de Ampère e nas proposições de Comte, que

sobre a distância do observador frente ao objeto argumentava, a partir da venerada

“razão” positiva).

Entre o mundo sensível e o mundo inteligível, o único ponto capaz de separar a percepção personalizada e imediata do conhecimento geral, universal e objetivo é o método científico. A enorme importância atribuída à objetividade, fetiche do discurso científico, vem desta possibilidade de construir um objeto do conhecimento por intermédio do método (GOMES, 1996, p. 69).

O intuito de desmistificar o Oriente fantástico, pragmático e

místico influenciara Bacon a querer desenvolver a ciência experimental (scientia

experimentalis), levando-o a estudar o Secretum secretorum26, e isso por

pretender revisitar o inquestionável saber dominante ancorado no Aristóteles.

Contemporaneamente a ele, fortes rumores de passos teóricos

eram ouvidos doutro homem: o Descartes de que há pouco falávamos.

O racionalismo moderno arraigado ao Descartes punha nas mãos

da razão, modelada exemplarmente nas ciências matemáticas, a tarefa de

recuperar a certeza científica pelo enfrentamento do “gênio maligno” da dúvida,

26 Referente ao compêndio árabe de política, medicina e magia supostamente escrito por Aristóteles para Alexandre, o Grande, com o intento de que dominasse o mundo.

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fazendo da “dúvida metódica”, nas palavras de Durant, “o pré-requisito do

pensamento honesto que acabe com as teias de aranha” (2000, p. 140).

Encarnando a divindade platônica, na ontologia de Descartes Deus é Bom, e como

Bom que é não poderia deixar que o homem se enganasse. A res infinita (Deus)

destarte far-se-ia a fonte para a res cogitans (pensamento) que tenta apreender a

res extensa (coisa externa, entorno, meio circundante e separado do corpo27).

Ainda que não o fosse negado, percebe-se que o Deus agora já

não é o da religião e sim o que fundamenta a ciência. Aqui o bom Dieu substitui o

malin génie que – herança cética herdada de Montaigne – quer atrapalhar o saber

humano. A Deusa-Razão ou o infalível Deus cartesiano ama o saber, não

permitindo que a mente humana se perca em ficções. Maior motivo não haveria

para o venerar de tal Deusa no Iluminismo do século XVIII.

O método procede no aclarar da realidade pelo estabelecimento

de conceitos claros e distintos, atentando cuidadosamente à precipitação e à

prevenção para evitar idéias preconcebidas, mantendo-se acesa a chama da

dúvida.

De mãos dadas mais com a luz da Deusa-Razão do que com as

visões dos outros pensadores, Descartes prossegue propositadamente apartado a

tentar humildemente dissipar as turvações que pairam sobre as mentes humanas.

Respaldado no tradicional postulado do atomismo

individualista28, o método de Descartes considerava as relações humanas reflexas,

reflexos de estímulos captados pela inteligência humana: a substância colocada na

27 Em aula na Pós-Graduação na UFF-Niterói, no dia 15/5/2004, Moreira relatou a proximidade de Descartes para com o pensar platônico, que separa o eu do mundo, negando o corpo. Descartes, pelo mesmo viés, verá o espaço tão-só como extensão e metricidade. Segundo ainda essa proposição, Moreira vai relacionar a atualidade das teorias do eu desencaixado do francês Anthony Giddens aos enunciados de Descartes. Enquanto que Emmanuel Kant (1724-1804), por sua vez, ainda que o tendo por continente (social e natural), penderá do geometrismo ao perpectivismo do espaço, dum sujeito temporalizado e desespacializado, porque a Kant o espaço não é nem absoluto e nem relativo mas o percebido, o existente apenas intuído, onde homem e natureza se distribuem. Após discorrer sobre as concepções que possui o espaço, como o praticado, o percebido e o imaginado (tratado por Lefebvre) ou como condição de manutenção do poder sobre o corpo (do qual versa Foucault), Moreira arremata classificando-o como o estar do ser no mundo, como a tensão entre o uno e o múltiplo, dimensão de relações como elas mesmas. 28 Por vários momentos nesse texto se poderão perceber autores filiados a essa idéia, não importa os séculos a que pertenceram: se o XVII (idéia compartida por Thomas Hobbes, 1588-1697), XVIII (Gottfried Wilhelm Leibniz, 1646-1716) ou qualquer outro.

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glândula epífise por Deus, a diferenciar o homem dos animais inferiores (DORIN,

1980a, p. 218).

Concebe Descartes que o homem detém certas idéias inatas.

Além de os próprios homens possuírem potencialidades intelectuais diferenciadas

lhes atribuídas distintamente por Deus – o que de certa forma aponta à tradição

antiga, que sem grandes esforços identificamos em Virgílio (70-19 a.C.), como

também ulteriormente em Dante e Campanella.

Sabedor contudo que Deus abençoa os homens com

potencialidades intelectivas distintas e certo de que o melhor pensar condiz o

realizado pelo indivíduo solitário, humildemente Descartes não se incluía no rol

dos mais bem dotados pelas forças divinais. Ficando tão-somente a indagar sobre

as idéias e potências inatas: em como seriam as crianças se sua vontade e razão

seguissem sem que reprimendas as cerceassem desde a infância, com tradições e

influências dos predecessores se lhes atravessando (DESCARTES, 1999, p. 26,

44-45).

Problemática da ciência cartesiana, que primava pelo alicerce do

trabalho da inteligência isolada.

Do alto da iluminação divinal manifesta em sonhos, esse ex-

soldado francês alinhou-se em combate às visões deturpantes e embrutecedoras,

em procura da verdade racional e científica por meio do método especado na

álgebra e aritmética, para que a física da natureza se fizesse despida aos demais

humanos (DESCARTES, 1999, p. 36 e 52).

A álgebra, a geometria e em especial a matemática serviam

“tanto para satisfazer os curiosos quanto para facilitar todas as artes e reduzir o

trabalho dos homens”, tendo em vista que os princípios matemáticos são os mais

“seguros e sólidos” (ibid., p. 38 e 40).

Continha a matemática o fio de certeza lógica que resistia aos

ventos das transformações, permitindo que o homem desvelasse a ordem e as

verdades emanadas de Deus, que é quem dá ordem ao caos (ibid., p. 70-71).

Mais: era a tal verdade o que incomparavelmente se

multiplicava no mundo moderno, seja na arquitetura urbanística, nos edifícios e no

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traçado das ruas. E é por isso que a geometria cartesiana tenderá a representar a

física do espaço e do mundo exclusivamente pela extensão, por ser-lhe a Natureza

geométrica. Eis o elemento primordial da matéria e a característica da

corporeidade dos corpos sobrelevada por ele.

O autor institui como garantia da objetividade o entendimento

subjetivo da existência de Deus, como entende sê-lo. Porque Deus existe, também

existirá o mundo exterior, numa conectividade que tem por causa primeira a

existência da res infinita que fundamenta a existência da res cogitans, da qual se

erige a certeza da existência da res extensa.

O Deus (infinito) de Descartes é-lhe intermediário entre duas

coisas (finitas): o eu que pensa (pensamento humano) e o fato de que tenho corpo

(mundo físico). Razão para que a partir de suas concepções:

Toda distinção possível provém da forma, do tamanho e da posição relativa. A natureza é geométrica e, pela primeira vez, aparece claramente uma noção abstrata do espaço; a princípio vazio e isonômico, este se define pela posição, pela forma e pelo movimento dos corpos que o ocupam (GOMES, 1996, p. 73).

Não à toa a noção de espaço abstrato tenazmente entranhar-se na

geografia nos séculos que sobrevém a Descartes, que solitário persegue a verdade

com o a tocha da razão das mãos de Deus recebida. E isso porque a racionalidade,

desprestigiada pela mitologia do mundo antigo e pela filosofia escolástica, galga

suficiente autonomia, até, lentamente, começar a andar por si mesma.

Comedido que era, todavia, guardava sempre o francês o recurso

da dúvida como base do consistente saber, com postura humilde a justificar que,

acaso enganado, “talvez não seja mais do que um pouco de cobre e vidro o que eu

tomo por ouro e diamante”; perfilhando suas limitações e “fraquezas” jamais

pensou dar a fórmula acabada e por isso ser “censurado”, narrando apenas como

“fábula” o que a razão permitia-lhe entrever (DESCARTES, 1999, p. 36-37).

Notamos que inda que imerso o pensador em dúvidas e defensor

do solitário cogitar, o método infundia-se como que necessidade à época, como

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forma de reordenar a mente a partir do mundo estremecido. Todos, duma ou

doutra maneira, pressentiam que:

Era preciso achar a via – o hodos dos gregos – que levasse à meta ambicionada: precisava-se achar o método para a ciência (e) As matemáticas eram as promessas de se ir além de Montaigne (PESSANHA, 1999, p. 9 e 14).

O método corresponde ao interesse pelo organizar e regular

racionalmente o pensamento, em qualquer processo investigativo ou

demonstrativo. Obviamente que varia ao longo do tempo e nos lugares pelo fato

de que a forma como se lê a realidade está imbricada à cultura a que se encrava o

sujeito e ao modo pelo qual se estrutura e se reproduz materialmente a sociedade a

qual se insere, conforme as leis escritas espacialmente29.

Para o desentenebrecer da legalidade, do movimento

autocontido, desteleologizado e contingencial da natureza e a ontologia do

movimento da determinidade social do trabalho que com ela dialeticamente

interage, convém desmistificar a transição havida entre as duas formas têmporo-

espaciais de concreção teleológicas do ser, analisando-se a intencionalidade

material implantada como dínamo-movente das posições teleológicas secundárias.

Para que tenhamos por captada a essência latente da

intencionalidade da logística espacial é necessário que nos apercebamos das

diferencialidades dos caracteres que faz a cada uma dessas configurações

teleológicas uma singular, pois vemos que cada um dos pensadores citados

encontrava-se envolvido em determinadas conjunturas espaço-temporais, com

possibilidades/limitações e interesses/posturas pessoais/sociais.

Provavelmente sem ter consciência plena das conseqüências

reais, a visão matemática e geométrica cartesiana, assim como as concepções de

29 Ao Aristóteles o método se punha como instrumento capaz de poupar tempo com tergiversações inúteis, anódinas e mendazes, para que a essência do real fosse conhecida sem estéreis delongas e distorções, o que o opunha ao Platão que, motivado pela contradição em idéia, ambicionava desvestir a essência imutável e eterna das aparências enganadoras. No seu encalço o Descartes, cuja mente por-se-ia como matéria-prima a decifrar os mistérios da intencionalidade divinal da criação, existência e movimento das coisas e dos seres no plano da espacialidade geométrica.

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inteligência e de homem, ajudará a criar o distanciamento homem-natureza talvez

só inferior ao que se solidificou entre os próprios sujeitos sociais.

Com isso, a muito tradicional dicotomia sociedade/natureza30

tem recobrado seu fôlego nos corolários cartesianos e também newtonianos. E foi

pelo esteio de premissas teóricas de fundo cartesiano-newtoniano-kantiano que o

espaço geográfico burguês fez-se configurado como palco geométrico à exterior

natureza-máquina que se tenta decompor analiticamente com vistas a que na

posterior remontagem se tenham em mãos as leis mecânicas dos movimentos

causal e gravitacional de que “os homens” devem prático-racional-

instrumentalmente tirar proveito.

Assim manejam-se os espaços métricos: fragmentando-os,

medindo-os, coligando-os. Como peças trabalhadoras que são, os indivíduos que

neles se encontram devem sofrer com desterramento, deslocamento, migração,

reterritorialização (quando não, descarte) onde e quando apontar o vento da Força

da Natureza (social dominante) ao adejar das andorinhas humanas.

A cosmização material do espaço do capital seguia a passos tão

ou mais largos que o de sua esfera superestrutural, oxigenando-se das intenções

dos que exercem soberania. Isso pressupõe clareza sobre a problemática do saber,

isto é, mais do que nunca, desse momento em diante da história deve-se

compreender que uma coisa é a realidade como ela é, outra: o conceito que dela se

faz.

Apresentação e re-presentação não são sinônimos, nem enxergar

e ver. Entre o ser e o pensar e o signo e o significante: a distância do observador, a

qualidade dos óculos (método) que o possibilita enxergar e o não menos relevante

interesse social que inicialmente fê-lo querê-la mirar: a) a vaidade (dos gregos ou

dos modernos) para que a discussão seja ganha ou somente que perca sentido de

30 No dito começo do tempo-espaço natural, teria Adão ouvido de lábios divinais: “Vede, entreguei-vos todas as plantas e sementes férteis... e toda árvore na qual o fruto produz sementes; serão o vosso alimento... Crescei e multiplicai-vos, enchei a Terra e a submetei; dominar os peixes do mar, os pássaros do céu e todos os seres vivos que se movem sobre a Terra”.

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ser31; b) a validade (de pragmáticos e técnicos burgueses) ou; c) a verdade dos

que se empenham com o saber útil, para todos.

O que “é” natural não está desprendido da construção social,

seja pelo baixar do olhar do sujeito ao objeto ou pelas razões explícitas ou

esconsas que o subjazem, interferindo a posteriori, mental e materialmente, na

relação do sujeito com a natureza.

Do desconhecimento histórico que é geral, cruza-se como que

num passar de mágica ao terreno das inverdades elaboradas com o fito de

prolongar e aprofundar premeditadamente a ignorância/estupidificação do social.

E a visão hegemônica está na paisagem (landschaft), empírica e simbolicamente,

respondendo silenciosamente ao espaço que brada o ser capitalista.

As posições teleológicas secundárias cá estão. Equivalendo-se à

substância “conceitual” radicada nos séculos XVIII e XIX ao termo ideologia32.

Eis por que o conceito nunca é o real, mas a forma na idéia que

dele se tem, a qual pode tanto proporcionar a necessária aproximação mental,

como a ceguidade, intencional ou não, para com a realidade deparada. Preciso faz-

se a compreensão processual da função estrutural-estruturante da forma.

Ficar preso em conceitos estanques implica manter-se

simpatizante do estruturalismo lingüístico, preservando o pensar na estase da

mente e no aceite das formulações hegemônicas rigidificadas que, se muito, se

movem ciclicamente na raia metafísica do “neutro” saber técnico.

31 Karl Jaspers, sobre a tentativa antifilosófica burguesa de desacreditar a filosofia em nome da sociedade consumista, pragmática e tecnocrática, delatou no século XX que “Quanto mais vaidade se ensine, menos estarão os homens arriscados a se tocar pela luz da filosofia”. 32 Como defendia a postura antiteleológica, antimetafísica e antimonárquica adotada pelo grupo de Destutt Tracy na aurora do século XIX, a ciência das idéias que pelo artifício da razão construiria o universo de idéias (ideologia) ao bem geral e comum segundo o aparecer dos fenômenos da realidade que também porta aparências, por ardil napoleônico impregnou-se o conceito de ideologia de sentido diametralmente oposto, sendo exatamente os seus formuladores tachados por Napoleão de “tenebrosos metafísicos e ignorantes do realismo” em fala ao Conselho de Estado em 1812 (CHAUÍ, 1991, p. 24-25). A ideologia de esse momento em diante representa o projetar de maneira universalizada da visão invertida e particular dos interesses privados duma classe, tal qual Marx e Engels (1996) vieram a tratar. A linguagem e a comunicabilidade ideológica burguesa estendia-se a esse e aos demais conceitos e visões pairantes, como o de Natureza, Trabalho e tudo que se tivesse por interessante de se fazer “saber”, já que em armação prosseguiam as injunções das posições teleológicas da classe que agora tinha o cetro em mãos.

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As posições teleológicas diferenciam-se propositalmente, e a

ideologia como crença verdadeira diante do que se re-apresenta mentalmente, com

vistas a clarificar a realidade a todos, passa a ser veiculada como saber

obscurecedor, na câmara invertida da percepção opaca, como saber deformado,

parcial, fragmentado e mutilado da realidade, refletindo/projetando fatos como

totalidade abstrata, a qual, como sistema fechado em aparente coerência, em

sendo continente de meãs-verdades, intencionalmente deixa os interesses

perversos às sombras da consciência científica e em prejuízo da maioria.

Inexistindo o conceito original de ideologia como salvadora da

humanidade, resta divisá-la do de ciência concreta. Querer separar o joio do trigo

implicaria hoje a distinção da falaciosa e burguesa ciência abstrata daquela que

poderíamos ter por social e coletivamente comprometida ciência concreta?

No atual contexto de hegemonia das posições teleológicas

classistas ao extremo conduzidas, a ideologia não mais posteriormente é

incorporada para sancionar a realidade objetiva; vem-na encravada nas coisas

socialmente produzidas, como modos particulares de re-presentação do mundo

das coisas que se impõem como universalidades ideológicas abstratas aos olhos

dos homens, encurralados assim nos guetos histórico-ideológicos da cosmogonia e

cosmologia dominantes.

Daí que todo o desenvolvimento histórico, calcado na

contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, ocorre como

processo natural33 mas, conforme afirmação de Marx e Engels, isso não quer dizer

que o processo natural se realize sem sujeito histórico, “sem consciência” e idéias,

vez que o sujeito histórico influi contraditoriamente com certo grau de

consciência, não importa se com “ilusões” ideológicas (jurídico-políticas,

pertencentes à superestrutura) e desprovido do conhecimento verdadeiro do

processo.

33 Vários pensadores comparam o desenvolvimento natural de organização da sociedade com o da criança, que evolui da infância à adolescência até – finalizando a pré-história natural da espécie, via revolução – saltar em frente inaugurando a idade da razão, a história consciente, planificada e organizada, com a consciência (ou instinto consciente) a tornar-se conhecimento e razão.

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Mesmo Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo, escritor e

teatrólogo francês, n’O existencialismo é um humanismo (1998), em escrevendo

sobre o caro tema da liberdade, sustentava a relativa responsabilidade que

possuem os sujeitos, apontando para o caráter das escolhas que se lhes interpõem

no percurso da vida34. Sem a mesma filiação teórica, todavia, se muito ousarmos

aferir, com certa similaridade, o renascentista francês La Boétie (1982) assinalava

à relativa culpabilidade que possui o dominado ao permitir que o poder continue a

massacrá-lo. Postulação teórica que respingou, entre outros, em teóricos como

Nietzsche, Freud, Valéry, Claude Lefort e Hannah Arendt (ABENSOUR, 1999).

Postura tácita e servil alimentadora, direta ou desveladamente, da sociedade

tirânica, ressoou Chauí (1999) sobre o enunciado do renascentista francês.

Foucault (1978) também não deixou de mencionar a estatização por que passa a

sociedade ao reproduzir cotidianamente a microfísica do poder. Vê-se que contra

o “estado de pureza” do ideário que tenta confinar o poder na institucionalidade

oficial, está a visão, qual a de Srour (1978, p. 48), de que o poder não está

confinado em organizações estatais repressivas, pois todo aparelho (de

conhecimento ou de Estado) é um sistema no qual forças se enfrentam e colidem,

consubstanciadas em organizações particulares.

Proximamente demonstramos como a sociedade estatizada

capitalista de escravidão assalariada e não-assalariada reproduz, por vias

extraparlamentares e nos mais diferentes dutos de sociabilidade, a cultura

hierarquizante e concorrencial. Realçando não obstante a penosa tarefa de

demarcação entre macrofísica e microfísica do poder, quando começa e quando

finda a autonomia individual e a tendência sócio-cultural perpetradora das

tradições hegemonicamente direcionadas pela sociabilidade capitalística legal e

informal (RIBEIRO, 2001b).

Do universo hegemônico, centrado pelo astro capital, é donde

emana o pensamento único que comanda a órbita (cósmica) da moderna teoria da

34 Para título de comprovação, ver o filme O preço da ambição, em que um dos personagens “foge” da escravidão empresarial moderna tornando-se opressor, em evidente livre-escolha pelo poder a qualquer custo. Na outra ponta, compare-o com Monster, filme baseado numa história real, no qual a protagonista se torna assassina por falta de opção e de liberdade de escolha.

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defesa do caos, volteando em redor da indeterminação e do imponderável, como

de igual modo em amparo às razões extra-social ou divinal, cada qual e todas

juntas acoplando-se sistematicamente ao movimento metódico de compreensão

fatalista da realidade, com arquétipos teóricos (classistas, individualistas,

naturalistas, espiritualistas, desistoricizantes, desespacializantes, caoticizantes)

que querem fazer crer que tudo o que há é a extensão de dimensões naturais e que

nada se pode contra a natureza a que se pertence, porque o espaço social

(imperialista) nada mais seria que palco terrenal torneado pela complementação

inevitável da etnicidade evoluída – como a leitura teórica da evolução hegeliana

pelo viés da cultura nacional – interagida com porções do globo ricamente

abençoadas pelo supra-ser, sobrenatural.

Tenta-se de modo nada inocente, na arena da Geografia, fazer do

espaço fotografia congelada. Resultado da força da natureza evoluída ou da

conjunção terrena de forças exteriores à sociedade. Ou ainda instância em que se

cumprem contradições típicas de sociedades “simplesmente” complexas, e que

por via de conseqüência apenas se “refletiria” o espaço como o dado passivo no

“curso natural (ordenado ou desordenado) das coisas”.

Longe não obstante da abstração como faina metafísico-idealista

do Espírito ou da razão absolutista do Absoluto que se revelaria na consciência do

ser pensante como fator extra-social contatado, como distante igualmente das

filiações teórico-naturalistas que o têm por fator externo e indeterminado pelo

homem, está a postura científica que se identifica com a noção do trabalho como

prática humana a acompanhar/recuar/penetrar/avançar mentalmente na

relacionalidade do concreto espacial, com filiação agora daquele geométrico

espaço cartesiano-newtoniano-kantiano em enunciados teóricos leibnizianos-

einsteinianos-lefebvreanos, de que se ocupa Oliva (2001). Ou quem sabe se possa

ainda filiar a primeira tradição aos pressupostos eleáticos e pitagóricos (ideação de

números nas formas e expressões espaciais), conquanto a outra, ao primado

heraclitiano, fazendo com que haja a transladação da tradição idealista-

quantitativista-pitagórica à preocupação relacional e unificadora, ou materialista-

qualitativa-heraclitiana.

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Em meio a outra postura e munido doutro propósito é que

começam a se cristalizar correntes paralelas do saber científico inconformados

com o pragmatismo fortalecedor da mecanicidade desumanizante e embrutecedora

do ser; feição que mais tardiamente a Geografia será adepta.

O método, que muitas vezes fora assemelhado à metodologia

pela força do pragmatismo burguês, desabrocha agora com outros coloridos.

Trabalhando com outro viés que os assinalados, ao materialismo

a prática é a mãe da ciência e “É na prática que o homem deve demonstrar a

verdade” (MARX; ENGELS, 1996). Assim, se foi a consciência que fez do caos

ordem, no intelecto do homem, fê-la inicialmente através da prática, como

produto do trabalho e não do “espírito”; com o que o “homem instintivo”, que da

natureza não se achava disjunto, foi aumentando o domínio com seu

conhecimento, destacando-se dos demais animais, errando (desperdiçando energia

e recursos) e com os desacertos aprendendo. Os demais animais, possuidores

exclusivamente do entendimento prático-determinante atado à experiência,

mostravam-se incapazes de como o homem pensar dialeticamente, refletir em

nível conceitual e se propor ou negar a agir por meio da razão geograficamente

apreendida (memória), praticada (vivida) e tencionada (projetada).

O trabalho teórico crítico não se divisa do trabalho concreto na

sociedade do capital. Quer libertá-la.

Se o homem que surgiu da natureza como uma sua forma

especial o fez por intermédio da prática e sem dela apartar-se, mais e mais

aprofundando e penetrando-a, com uma tal proeza também se devendo à

consciência que brotada da matéria e com ela retrabalhando, fez evoluir o fator

material de maior relevância ao pensamento: o órgão cerebral, produto superior do

desenvolvimento da natureza. Bem ao oposto do que advogam os metafísicos, o

homem não se separa da natureza, diferencia-se desta, e ela não existe ou se põe

como objeto à consciência humana, mas a consciência humana é que reponta da

natureza com fôlego sempre redobrado em cada novo mergulho em suas

profundezas realizado. Isso porque a natureza não é um produto à consciência, a

consciência é que é o “produto” da evolução têmporo-espacial da relação homem-

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meio atingida, e que teve seu desenvolvimento entrosado à satisfação e criação de

novas necessidades a partir da divisão do trabalho, que tornou-as, a consciência e

a sociedade, sempre mais complexas. Eis por que o homem possui inteligência,

deixando os comportamentos repetitivos e automáticos adquiridos pelo instinto

(inato) e pelo hábito (pensamento prático imediato e momentâneo) e que, ao não

serem readaptados a outras circunstâncias e a outros fins, erguem-se como cercas

ao reino animal do qual se sobrelevou a inteligência prática-instrumental e teórica-

abstrata do homem: plástica, flexível e maleável porque ao homem apresenta-se a

capacidade e a potência de transformar objetos e ambientes, lembrar situações e

lugares, esperar pelo contexto que virá, organizar a situação e os dados presentes

e imaginar novas conjunturas ausentes; tudo junto potencializando ao homem a

representação do mundo e a atuação prática sobre ele, geografizando o espaço que

o apraz, modelando a paisagem que mais justamente lhe acomode (ética) e o

agrade (estética).

Por mais que alguns teóricos renascentistas tivessem enlevado

epistemologicamente a questão do saber a novos patamares, geralmente figurava o

tratamento vertical-metafísico-idealista em tais proposições. Mesmo muitos dos

que defendiam o experimentalismo e o sensualismo como genitores do saber não

o faziam no plano da horizontalidade-físico-concreta da sociedade real.

Paulatina desdivinização. Célere naturalização. Problema: a

prática que evoluiu o saber e o conhecimento que se progrediu com o fazer

geraram não apenas o destacamento do homem para com a natureza, como do

homem para consigo mesmo, alienando-se, desumanizando-se e objetificando-se.

O Homem anteriormente, para certos filósofos, evoluiria, se

desalienaria e se humanizaria caminhando pela vereda das idéias para Deus. O

Homem para os idealistas utópicos deveria caminhar, sonhando, na direção dos

seus pares. E para os materialistas dialéticos, o Homem (sociedade) se reencontra

com prática e teoria concretas, expurgando violentamente os engenhos e os

engenheiros de sua degenerada situação...

Também não podem ser esquecidos os filósofos que

asseguravam a naturalidade da situação concreta como ineliminável, já que além

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da potencialidade humana de antevisão, desvio e reposicionamento ante o curso

casual e caótico do real. Por irônico que se nos pareça, nesse ponto é que muitos

pós-modernos e irracionalistas que tentam fazer ou tomar a ciência por exercício

diletante, se atolam em contradições, pretendendo negar o movimento da natureza

que os fornece a própria capacidade histórica de pensar sobre a espúria inutilidade

de teorizar a coerência do real. Embora isso, o movimento segue a contragosto dos

irracionalistas e desconstrucionistas, que se não podem impedir o movimento do

real tentam desacreditá-lo como significante à descoberta, como tentam-no aferi-

lo como inextrincável à vã tentativa do ser pensante35. (Em verdade, essas

posturas pós-modernas, pós-marxistas ou pós-racionalistas, indiretamente que

seja, desnudam a luta ideológica na ciência, um dos aspectos da luta de classes36)

Filósofos do naipe de Hegel, parafraseado por Lefebvre (1995,

p. 21), muito ao longe dos irracionalistas, advertia-nos que fora justamente a

ciência acumulada ao longo de gerações que esteve a cooperar na formulação de

noções, princípios e verdades que “reduziram o caos empírico”. E é por isso que

a razão hegeliana não é intemporal mas influenciada pelas tradições e por

determinadas “condições materiais”, sendo levada adiante pelo seu idealismo

filosófico perseguidor da verdade e do conhecimento (idem, 1981, p. 98-99),

conferindo o mais rigoroso trabalho de conhecer à potência que acompanha a

humanidade desde o seu iniciar evolutivo.

Combate feroz pois, entre “teorias” antifilosóficas,

antimetódicas e irracionalistas com as filosofias embasadas metódica e

racionalmente.

35 Procedimento parecido a esse dos que tentam raciocinar sobre a irracionalidade da sociedade (e que o fazem em instituições universitárias escolhidas a dedo por financiadores nem um pouco irracionais) é demonstrada pelos prosélitos da teoria do fim do trabalho, que passam noites a fio “trabalhando” (teorizar como trabalho abstrato remunerado e não-produtivo) para negar o trabalho. 36 O momento, segundo o que pretendem os pós-marxistas, parece ser o oposto daquele da Grande Revolução de 1789-1793, que contrariava o travamento do livre pensar científico causado pelo pensamento único da teologia medieva, elegendo o primado da Razão e da Liberdade, ao passo que hoje o que se coloca em defesa é justamente a Des-Razão e a Obscuridade como primado da pós-modernidade totalitária (do não-pensar filosófico ou do pensar único técnico-mercantil). Na raiz da diferença entre os períodos, a “mesma” classe que suplantou o pensar medievo das antigas classes monárquicas e eclesiásticas com a ajuda dos Enciclopedistas, e cujas bandeiras agora querem enterrar: a re-novada burguesia.

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Como “caniço pensante”, como aludia o francês Blaise Pascal

(1632-1662), o homem pensa porque existe e sabe, se ousarmos reformular o dito

cartesiano37. Pensar vem do latim pendere: pender, suspender, pesar, examinar,

ponderar, avaliar, compensar, recompensar e equilibrar, e seu sentido se equivale

ao de outros dois termos: cogitare (colocar diante de si algo a ser avaliado) e

intelligere (da junção de inter: entre e legere: colher, reunir, juntar, escolher e ler

as palavras, ou conhecer e entender).

Todo saber é espacial, mesmo que aparentemente

desespacializado. No principiar do social, nos primeiros bosquejos de existência,

por pouco que o fosse, recorda Lefebvre (1995, p. 34), o Topos já era “o homem”

e era Logos pois foi pela prática concreta (trabalho) do fazer e refazer do lugar

(topos), instância pré-social e pré-espacial até então, que “o homem” fazia e se

refazia cognitivamente (logos). Como noutro momento proclamou o Engels, “foi

na medida que o homem aprendeu a modificar a natureza que seu pensamento

cresceu”. Com igual sentido Géza Szamosi (1988, p. 63) afiança o conceito de

espaço dos primitivos como “experiência espacial”, com mundo real e mundo

simbólico se entremeando, haja vista que os símbolos possuíam o “significado

emocional” do espaço comunal concreto, fosse-o bem ou mal quisto.

Com poucos esforços sabemos que a atual e hegemônica

simbolização abstrata do Espaço, da Natureza, da Filosofia, Ciência e Método está

mais próxima de ideação perversa do que de inocência, com num outrora remoto.

É preciso se estabelecer a “rede de linguagem” (RIBAS et al.,

1999). Evitar a rede dos “jogos de linguagem” da literatura pós-moderna (as

37 Avançando da postura de tudo questionar, concebeu Descartes que: “Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa” daí “esta verdade: eu penso, logo existo”. Crente nas almas que se desterrenam e se sobrelevam às “máquinas móveis” e “autômatos” corpos, tinha no poder do duvidar a comprovação de que deveria irrefutavelmente existir como ser-pensante; e o pensar firma-se como substância do ser, independentemente de lugar e de coisa material porque “a alma, por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo e, também, que é mais fácil de conhecer do que ele e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é” (DESCARTES, 1999, p. 62). A alma, dimensão incorpórea do pensar abençoada por Deus, vai conduzindo o pensador nas veredas das verdades manadas de Deus e impressas na natureza, visto que verdades e pensamento não surgem do nada e do vazio mas do Criador que as fazem raiar a nós, seres imperfeitos que alcançam com Sua ajuda a perfeição de Seus projetos ideais (id., p. 63-66). Ver: SANTIAGO, 2005.

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figuras de linguagem, metáforas e valorização do discurso no mundo das idéias),

que se assemelha ao método idealista dos eleatas.

Linguagem e inteligência são inseparáveis, diria Piaget. (E

talvez por isso as inteligências que jogam com a linguagem queiram universalizar

de modo anistórico e a-espacial a confusão momentânea do aprofundamento da

complexificação societária)

A consciência porta o potencial de simbolizar e prosperar a

capacidade de manejar feições cada vez mais abstratas, desenvolvendo-se pela

vereda da inteligência prática (espacial). Em termos metafóricos, poderíamos

descrever que a linguagem age como se fosse o corpo do conhecimento que se

move e atua no topos, ação que por desdobramento remodela o corpo do saber

acumulado e transmitido, do percebido, memorizado, imaginado e articulado.

Como via de mão dupla, a linguagem permite à inteligência “Comunicação,

informação, memória cultural, transmissão, inovação e ruptura” enquanto essa

oferece à linguagem “Clarificação, organização, ordenamento, análise,

interpretação, compreensão, síntese, articulação” (CHAUÍ, 2000, p. 156).

Linguagem e razão relacionam-se porém conflituosamente

devido à dialetização verificada entre imagem (percebido, visto, apreendido) e

comunicação (falado, dito, cantado, pintado, escrito) no mundo da re-a-

presentação.

Pelo conhecer metódico “A impressão sensível de desordem do

começo dá lugar a uma certeza racional de ordem”, pois da “reflexão intelectual,

por meio do método” podemos retirar as coisas do campo do “indeterminado”

(MOREIRA, Categorias, conceitos..., p. 195). A teoria permite integrar o que

poderia permanecer “como experiências fragmentárias e peças isoladas do

conhecimento” (SMITH, 1988, p. 11).

Ao banir o caos o homem (re)institui o espaço cosmizado.

A determinidade ineliminável do trabalho (mental e prático) que

atravessa e baliza a evolução da sociedade e dos espaços, sem que negue o

indeterminado como descontinuidade, cesuras, conflitos e casuísmos, confirma a

dialeticidade da natureza, as determinidades e acasos (já dizia o grego Epicuro,

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342-271 a.C.) derivados da intervenção da vontade humana, de cuja complexidade

ao invés de se querer barrar a necessidade de explicação teórica deve-se ter como

suposto ao reencontro do homem com a história e com seu espaço, com o seu “eu”

individual e com os “outros” que se somam à espécie, alienada e estranhada em

todos os sentidos imagináveis. O Lukács mesmo, rememora-nos Tertulian, expõe

que a complexidade das ações individuais tende a gerar a totalidade complexa e

caótica, não-orgânica e não-organizada sob o ponto de vista do indivíduo.

Florestan (1995, p. 50) opina sobre a impossibilidade de se

reproduzir toda a realidade, que muito possui de caótica, e somente por isso o

método deve oportunizar ir do concreto ao abstrato para daí retornar à categoria

histórica; e sempre também se demarcando os pontos e os contrapontos entre os

fenômenos na relação concreta, vez que o método de investigação de Marx

consiste em “analisar indo do presente para o passado e vendo como se deu a

transição” (ibid., p. 52, 184). Nomeadamente no que pertence ao estudo da

economia, de acordo com Florestan haveria para Marx dois métodos apropriados:

o analítico e o sintético; entre o que expõe em Crítica da Economia Política, fica

com a segunda postura, realizando a análise exclusivamente para reencontrá-la no

todo sintético: atomizando primeiro a realidade para se chegar a conceitos simples

para na seqüência se operar a viagem de retorno, rumo à totalidade.

A concepção de dialética de Marx implica no conhecimento

sintético e completo da realidade. Com o concreto – eis a noção hegeliana – sendo

reproduzido mentalmente, enquanto concreto, na apreensão do movimento

dialético imanente ao próprio real, às próprias coisas, e nesse momento o método

marxiano aparta-se do (neo)hegelianismo e do kantismo, que aplicavam método e

concepção naturalistas ao reino das ciências sociais.

O fato é que o método marxiano possibilitou ao saber –

geográfico inclusive – o transpassar da totalidade harmônica e da totalidade lógica

para o nível da totalidade histórico-geográfica.

O reconhecimento desse processo deve dar seqüência à seta do

saber, miniaturizando-se os erros para avançar teoricamente negando a

pseudoverdade; concretizando-se a negação da negação para que os mimetismos

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alienantes do espaço se façam eliminados nas e pelas práticas (grafias) espaciais

dos sujeitos. Não se enrijecendo posturas que, ao querer contrariar a racionalidade

estruturalista, economicista, viciada e dogmática do método, pendeu a outro

extremismo: negando-se ou a relevância do método e ou a irracionalidade

estrutural do real a partir já dum estruturalismo irracionalizante.

Resumidamente, entre diversas oscilações, assistiu-se ao trânsito

do primado da causalidade divinal (passível ou não de conhecimento segundo o

autor que se considere) à idéia de causalidade natural (no qual a cadeia explicativa

necessária dos eventos se tornaria decifrável pelo processo racional de construção

do saber) para, com Marx, se encontrar como método dialético-material de

compreensão do concreto. E contra as propostas teórica e metódica marxianas

fazem resgatar a herança irracionalista montaigneana e o arcabouço teórico

oitocentista dos naturalistas38.

Não obstante o naturalismo materialista ter representado avanço

diante da metafísica medieva, sua conseqüência não deixou de ser negativa sob

muitos aspectos à filosofia em geral e à geografia em particular.

Alguns nomes podem ajudar-nos a compreender esse fenômeno.

Se detivermos-nos sobre século o XIX, veremos o francês Jean-Baptiste Pierre

Antoine de Monet Lamarck (1744-1829) defender a evolução dos órgãos e

membros dos seres pelo seu uso continuado em consonância com os imperativos

ambientais, o que responderia pelas alterações genéticas proveitosas à ambiência

vivida. Noutra ponta da mesa de debate, o naturalista inglês Charles Darwin39

(1809-1882) conferia o realce à seleção natural oriunda da luta pela vida, travada

entre os seres como condição determinante ao estágio da evolução das espécies.

Em lugares piores no cenário do debate outras formulações teóricas se faziam 38 Nesse rol incluem-se Kant e Montesquieu, que buscaram estabelecer relações entre culturas e gêneros de civilizações com climas e condições físicas diversificadas da superfície terrestre; questão focada sob os ângulos de “sociedades naturais, leis naturais e leis civis, liberdade individual e necessidade física, poder político e liberdades individuais, igualdade natural (dada por uma razão uniforme e geral) e desigualdade social” (cf. GOMES, 1996, p. 80, 83-84). 39 Sabemos que as teorias de Darwin e Moritz Wagner influenciaram no século XIX o geógrafo Friedrich Ratzel, revitalizando o determinismo que se arrastava da Antiguidade (presente em Aristóteles e Hipocrates) e da Idade Média (com Santo Tomás de Aquino, 1225-1274). Até o geógrafo francês anarquista Jean Jacques Élisée Reclus (1830-1905) fora influenciado pelo pensamento darwiniano e pestalozziano.

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presentes, como as teorias genéticas, enredadas a inquirir sobre a influência das

transformações na substância germinal, com a evolução a processar-se através de

mutações bruscas, segundo proposição de Hugo De Vries (1848-1935); além das

teorias materialistas da evolução que combinam as mutações genéticas com as

variações decorrentes da seleção natural, a perfilhar a formulação dos

neodarwinianos.

Mas qual o poder de influência desse processo na Geografia?

Teriam tais formulações teóricas, filosóficas e metódicas se embrenhado

profundamente em conceitos como os de totalidade, natureza e diversidade?

As respostas não poderiam ser negativas. Desde o Renascimento

precipitavam-se novos questionamentos, novos procedimentos de investigação,

experimentação e interpretação.

A obra Geographia generalis de Varenius, embalada nos

parâmetros empiristas e racionalistas de homens como Francis Bacon, Galileu e

Descartes, é reputada como a primeira tentativa de cunho universalizante a marcar

o pensamento dos séculos XVII e XVIII, inclusive a autores como Newton.

Seriam quem sabe esses os primeiros passos geográficos no

Renascimento com proposta de raciocínio sistematizante, generalizante, abstrato,

a suplantar a tradição das análises particulares que remontavam aos gregos e que

se fortalecera no imaginário da – como comumente se fez cognominada –

Geografia clássica (descritiva e acrítica).

Mas será temporalmente mais adiante que discussões teóricas se

avolumarão até contraporem-se duas grandes escolas.

O determinismo do alemão Friedrich Ratzel (1844-1904) é uma

delas. Surgiu para justificar a necessidade de fortalecimento do Estado alemão

tardiamente reunificado (1870). O Estado-organismo figurava como

engenhosidade teórica conduzida ao plano da expansão econômico-territorial e

imperialista alemã. Os incapacitados de gerirem seu próprio desenvolver deveriam

perecer na ordem natural evolutivo-expansiva da sociedade, na relação do

“espaço vital”. Cumpre advertir entrementes duas observações: a primeira é que

tal perspectiva teórica não era a única na Alemanha e, a outra, mesmo na mente de

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Ratzel podia ora ou outra ter-se delineado outras inclinações, vez que a evolução

do pensamento é contraditória e menos pura do que se costuma imaginar.

Também é útil recordarmos que o determinismo refere-se a uma

macro-tendência cuja nomenclatura veio só posteriormente a ser forjada, e pelos

escritos do seguidor da teoria possibilista vidalina, Lucien Febvre.

Segundo a corrente de pensamento denominada de possibilismo,

haveria relativa liberdade, com uma rede de alternativas na história da existência e

evolução humanas. Visão que se dispunha a querer minar o papel do

determinismo (climático ou cultural) no processo sócio-evolutivo.

No entanto, cabe ressaltar que geralmente a teoria dos estudos

possibilistas inaugurada pelo geógrafo francês Paul Vidal de La Blache (1845-

1918) enaltecia mormente as condições físicas e histórico-sociais do povo, cada

qual portador dum gênero de vida, sendo que, na prática seus próprios estudos

dirigiam-se mais às sociedades primitivas e às características ecologistas do que

os elementos sociais; inclusive porque os estudos da relação homem-meio de

Vidal eram orientados, segundo observação de Sandra Lencioni (2003), pelo

método indutivo, despreocupando-se com leis gerais e achegando-se mais às

investigações dos fenômenos regionais singulares distribuídos na totalidade da

superfície terrestre.

No plano teórico quis Vidal opor-se às concepções fatalistas e

finalistas que secundavam o papel social na evolução. (Sob certo ângulo, algo

parecido com o que Marx concomitantemente propunha com a teoria materialista

da história, produzida socialmente de modo contraditório, através da qual punha a

desenvolver algumas teses atinentes à liberdade preconizada pelo Epicuro)

No palco da prática, menos do que sugeria logrou o Vidal de La

Blache com os estudos sobre os “gêneros de vida”. A aversão às generalizações

positivistas e o apego às particularidades impediu-o de realizar uma compreensão

menos tópica e empirista. Assim, a totalidade a ele seria pouco mais que uma

colcha de retalhos regionais costuradas pelos homens (primitivos) nos vários

quadrantes do ecúmeno.

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Emmanuel De Martonne e Albert Demangeon, entre inúmeros

seguidores vidalinos, engendraram a tradição na Geografia de realização de

monografias regionais reunidas sob o micro-guarda-chuva da Geografia Regional.

Proposição idiográfica claramente carente de atributo científico.

Para além dos arcos avistados e como outras correntes,

encontramos ainda nesse período o historicismo e o positivismo. O primeiro

contrapondo-se ao segundo conjuntamente a seus postulados naturalizantes, por

afirmar o caráter evolutivo da história e da natureza. Aos historicistas, a natureza

não só se produz fisicamente como socialmente, em que pese os estudos da

realidade se rachar em “ciências naturais” e “ciências humanas” ou “ciências do

espírito”. Outro elemento característico ao historicismo coligava-se ao valor do

subjetivo, do imaginativo e intuitivo, elementos não valorados pelo neutro saber

positivista.

De modo mais coetâneo que sucessório, às vezes mais que uma

corrente fazendo-se presente nas formulações dum pensador, as correntes do

positivismo, historicismo, determinismo e possibilismo inspiram-se na filosofia

iluminista, no idealismo alemão e no desenvolvimento do romantismo: pilares da

evolução da Geografia moderna.

Não obstante as diferenças, estão as filosofias da natureza na

origem da disciplina geográfica. Dois dos maiores formuladores a ratifica.

Pondo-se em rescisão com a tradição clássica oriunda da antiga

Grécia, prestada à feitura de mapas e infindáveis e pormenores descrições de

lugares particulares, o alemão Alexander von Humboldt (1769-1859) já se

envergava à idéia da compreensão dos princípios gerais que regem a totalidade

orgânica-coerente-harmônica que representa a Terra e as esferas que estão além

dos domínios da superfície terrestre, seja em termos antropomórficos ou naturais

(a ele inclusive, o homem faria parte da natureza), em caça à causalidade dos

fenômenos orgânicos e inorgânicos das esferas terrenal e cósmica, para assim se

suplantar o âmbito das experimentações e das leis empíricas.

Devido às influências do idealismo alemão de Hegel, Johann

Gottlieb Fichte (1762-1814) e Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854),

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Humboldt concebeu a natureza como unidade viva. Foi também genitor da noção

de meio – embora em seus estudos este comparecesse mais como meio físico.

A visão de todo da “escola alemã” objetivava a relação dos

elementos orgânicos e inorgânicos combinados na realidade (MOREIRA, 1988b).

Do estudo da totalidade identificariam semelhanças e

diversidades, mediante comparações.

Voltado ao desvelar da totalidade e com similaridades aos

pressupostos humboldtianos, figuram os estudos de Karl Ritter (1779-1859) sobre

a relação entre totalidade e diversidades (diversidades unidas pela sua substância

teleologia).

Tocado pelas teorias de liberdade de Jean-Jacques Rousseau

(1712-1778) e pelos enunciados de Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827)40,

como pela afeição mostrada pelas disciplinas Filosofia e História, a trajetória

teórica e narrativa de Ritter orientava-se à teologia cristã, amparado em

enunciados pregadores duma totalidade que representava a idéia de conexão

homem-Deus através da Terra. Conciliando ciência e religião, ao pensador caberia

a busca das conexões Homem-Deus-Terra, que deveriam ser apreendidas de forma

completa e universal mediante o estudo analítico e comparativo das diversidades

regionais do globo terráqueo, pois a visão ritteriana enxergava as regiões-como-

partes do todo-orgânico-terrestre criado por Deus, como se a Terra se

assemelhasse a um palco cuja atuação humana durante a existência permitiria a

aproximação do Criador.

O viés metódico analítico, comparativo, descritivo, enumerativo

(de regiões identificadas mais pelo prisma do físico-natural do que pelos atributos

antropocêntrico e político-administrativo), como o teor imanentemente teológico,

podem ser alguns dos qualificativos menosprezados pelo seu ex-aluno Marx, que

no ano de 1838 com ele esteve na Universidade de Berlim.

40 Pestalozzi criou o método de educação que partia da observação à consciência, para então se alcançar o discurso, sempre se orientando do mais simples ao mais complexo. De acordo com Moreira (1988b), o apreço pelo empírico e pelo viés integrador dos fenômenos em escalas sempre maiores acabou por gerar uma geografia na qual os fenômenos apareciam geralmente como relação entre coisas ou como sistema de coisas, deixando de tratar do homem concreto, que vive e interage em relações sociais classistas contraditórias.

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A Terra seria a totalidade concreta das diversidades regionais, a

unidade ontológica assentada no teológico. Totalidade orgânico-divinal que para

ser compreendida deveria receber atenção do estudioso sobre as questões das

individualidades e diversidades (regionais) ou das subtotalidades (continentes, por

exemplo), como se fossem escalas imprescindíveis de análise, comparação e

sistematização. Com esse pressuposto o autor negava a idéia de totalidade

fechada, haja vista a divisão e multiplicação de subtotalidades passíveis de foco.

Ritter pretendia estudar as relações existentes entre a superfície

terrestre e a atividade humana através do método empírico e do procedimento

inducional e escalonado (indo dos menores para os recortes espaciais maiores).

Perspectiva científica alçada além do mero descrever.

Se os pais oficiais da Geografia moderna41 viam a Terra como

totalidade enviesada pelo divinal, não chegam a se assemelhar em tudo às

conseqüências de suas orientações.

Humboldt virá a ser reconhecido como o proponente da

Geografia Geral. Ao passo que Ritter será identificado como o formulador da

Geografia Regional (ou da Geografia Geral Comparada). O primeiro voltava-se

mais para o geral e sistemático, enquanto que o outro rumava mais ao particular e

regional, sem todavia ter-se verificado exclusão total de tais estudos em incursões

contrárias às hegemônicas que possuíam.

Já a partir da terceira década do século XIX, a Geografia, como

a História, servia à construção (ideológica) da identidade nacional.

Apesar de fundadores da Geografia moderna, foi a tradição da

Geografia clássica (descritiva e acrítica) que persistiu hegemônica. Sendo o

rompimento gradual e demorado.

O pensamento ritteriano não vingou devido ao apego

escolástico. E o humboldtiano exerceu certa influência na Europa (excetuando-se

a França) devido ao viés naturalista, envergado aos estudos regionais.

41 A Geografia encarnava a política e economia dominantes, a caminhar ainda lentamente a formulações teóricas mais ousadas. Talvez seja esta uma das razões da geografia de Reclus – ex-aluno de Ritter, entre 1849-50 – ter sido desprezada tanto pela ciência burguesa quanto por Marx e Engels, que o tomavam por um “vulgar compilador”.

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Simultaneamente, muitos seriam os nomes e as vertentes

teóricas possíveis de menção. Se o descritivismo e a resignação acrítica de boa

parte da oficialidade geográfica ocultavam as postulações universalizantes e

dignificadoras dos princípios gerais, de igual modo o neokantismo veio a se opor

ao positivismo, preponderando sobremodo no período de 1880 a 1930.

As chamas da reflexão crítica sobre os valores universais

inflamaram-se com o neokantismo.

Aquecida pelas brasas teóricas de Kant42, destaca-se na

Geografia o alemão Alfred Hettner (1859-1941), preocupado mais com o estudo

da diferenciação da superfície terrestre do que com a relação homem-meio.

Como das grandes contribuições, a perspicácia hettneriana

estaria na negação da polarização estabelecida pela classificação do alemão

Wilhelm Windelband (1848-1915), de que a Geografia ou seria nomotética

(preocupando-se com estudos gerais ou com a formulação de leis gerais e

categorias abstratas) ou idiográfica (dirigida a estudos de fatos particulares de

determinados territórios). Para Hettner, a Geografia incluiria ambas as coisas.

No arco de seguidores teórico-metódico hettnerianos, o

americano Richard Hartshorne, a quem a Geografia, como ciência da natureza e

da sociedade, prontificar-se-ia a estudar todos os fenômenos possuidores de

dimensão espacial, ou seja, na visão hartshorneana não existiriam fenômenos

particulares à averiguação da ciência geográfica, assim como não haveria objeto

de estudo comum à mesma. O método (e não os objetos) é o que definiria as

ciências em geral e a Geografia em particular. E o cientista também deveria

priorizar a interpretação dos fenômenos, contrariando a prioridade aceita por

muitos da necessidade de formulação de leis gerais, e – seguindo Kant e Hettner –

ainda dizia ser necessário ao geógrafo a perspectiva histórica, desde que não

confundida com a Geografia.

42 Foi Kant quem distinguiu Geografia de História. Para ele, a Geografia deveria versar sobre a inter-relação e conjunção dos fatos no espaço, conquanto à História coubesse a sucessão dos acontecimentos no tempo. Instituiu e lecionou também Geografia Física, embora a compreensão que desta tinha se distanciasse do conteúdo que veste a Geografia Física atual, vez que a proposta kantiana igualmente incluía o estudo da Moral e da Política.

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Pela filiação teórica ao kantismo, isto é, à concepção subjetiva

da realidade, Hartshorne alegava que as regiões nada teriam de auto-evidentes e

que a identificação adviria da observação e da construção mental do pesquisador.

Sem maiores dificuldades se percebe que foram os estudos

regionais que garantiram a unidade e o status científico da Geografia, permitindo

a superação da dualidade do físico/humano, vez que a região espelhava as

especificidades e homogeneidades físicas e sócio-culturais do arranjo espacial.

Verificando-se em cada uma delas a identidade nacional que interatuava e

realimentava a identidade nacional. Agindo o Estado como instrumento garantidor

da harmonia territorial, e comparecendo a Geografia como instrumento da

orquestra sinfônica.

Se para uns a região resultaria de construção mental, para outros

condiria à realidade objetiva. Expressando-se através da paisagem objetiva, com a

qual os homens construiriam exatamente as identidades e consciências regionais.

Dos maiores nomes da Geografia Regional, é Paul Vidal de La

Blache quem arroga o status científico à Geografia na França. E contra a

Antropogeografia ratzeliana formulou a expressão de Geografia Humana.

Também porque opositor às idéias deterministas de Ratzel e

totalmente fiel às possibilidades – como compreendeu Febvre –, suas idéias

viriam a ser batizadas de possibilistas, em 1922.

Porém, cabe assegurar que tanto Vidal quanto Ratzel,

geralmente enquadrados como opositores, compartilhavam a visão unitária da

relação homem-natureza. A Vidal o homem depende da natureza, e por meio da

engenhosidade construída histórico-socialmente subtrai as possibilidades por ela

oferecidas, ao passo que, semelhantemente, Ratzel assevera a dependência do

homem para com a natureza, sendo a qualidade de tal relação determinada pelo

grau do desenvolvimento socialmente atingido.

Não obstante certas similaridades, a “escola francesa”

apresentou concepção bem mais rica que a da “escola alemã”, entrementes a

tendência às generalizações ou inter-relações servisse sobremodo a fortalecer a

geografia que, na ânsia de dialogar com tudo e com todos, entre as ciências do

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homem e as da natureza, não conseguia unificar o discurso ambicionado, com

postura tendente a uma síntese abstrata que rendeu a séria crítica de Lacoste de

quem tenta a tudo explicar e que a nada mais que um fraco economista e medíocre

geólogo conseguia comparecer.

Esse ligeiro quadro serve para ilustrar as forças das correntes em

embates entre si e mesmo com os próprios pensadores. Vê-se ao mesmo tempo a

tentativa de enlaçar os estudos à perspectiva histórica, embora essa ora seja vista

como manifestação causal da vontade do Espírito, ora como materialização

espacialmente diferenciada (regiões) de condicionantes naturais (clima,

geomorfologia, vegetação, etc.). Quando a visão se fazia mais antropocêntrica, a

realidade da relação homem-meio, homem-natureza, Terra-região vez ou outra

titubeava aos determinismos climático-naturais ou do naturalismo sócio-evolutivo

(sociedade moderna + cultura avançada + Estado orgânico desenvolvido =

imperialismo econômico-territorial democraticamente expansionista).

Demorou para que o saber clandestino e o acumulado pela

oficialidade se enfrentassem vigorosamente, pondo no terreno da teoria a dialética

vivida concreta e socialmente, confrontando totalidade concreta e totalidade

abstrata, princípios-gerais-divinais-idealistas com leis-gerais-sociais-materialistas.

O pulo-do-gato no estudo da totalidade deu-se com o método

marxiano que permitiu o transpassar do nível da totalidade harmônica ou da

totalidade lógica para o da totalidade histórica.

Processo cumulativo. Pois, inda que sob multíplices facetas,

vimos que a concepção materialista cotizou com o destronar de posturas

arqueadas ao antigo evolucionismo, cuja concepção finalista proclamava a

evolução gradual e linear e, com isso, a evolução natural passou a ser percebida

como processo continente de regressões, decadências, declínios, recuos, desvios,

mutações e descontinuidades, numa relação espaço-tempo conflituosa de

progressos e declínios de espécies entre si, com outras espécies e com a

particularidade do lugar ocupado.

Haveria já a dialética, imanente tanto ao espaço natural como ao

espaço social, à natureza e à história, à sociedade e ao espaço ordenado.

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A qualidade do movimento muda quando a natureza-social-

humana passa a centralizar crescentemente a natureza-totalidade porque,

germinando da natureza e complexificando-se a ela, o homem foi se destacando

com a mão que, em prol da proteção, defesa, ataque e trabalho, acenou com o

paralelo pensar que se ia ramificando e acumulando, na direção do movimento da

dialética da natureza. Com essa teoria dialético-materialista, Engels (1979) foi

mais além que os pensadores que o precedeu, como o jônico filósofo eclético de

nome Anaxágoras de Clazômenes (500-428 a.C.), cuja percepção e intuição na

Atenas antiga punha-o a discorrer provocativamente sobre as diferenças reinantes

entre os seres, quando ao dizer que o Espírito (Nous: força superior e pura ou

inteligência transcendental organizadora de tudo) estava em tudo, mostrou-se

original em reconhecer a qualidade corpórea que faz com que em uns o Nous mais

se encarne que noutros. Justificando o fato de os seres animados – o homem no

caso – serem inteligentes porque possuem mãos, ou seja, a ele “o homem pensa

porque tem mãos”. Uma idéia não aceita pelo Aristóteles depreciador do trabalho

manual, tributado aos inferiores escravos (PESSANHA, 2000, p. 30).

Evoluções, involuções e revoluções caracterizam o complexo

mix do natural-social, no plano biológico-natural e social, prático e intelectivo.

A dita relação trabalho-topos-logos.

Por que nascido e habitante da face da Terra, pôs-se o homem

cada vez mais a querer melhor viver grupalmente. Do lugar experienciado

avançou sobre outros para tê-los como urdidos e esse conhecimento aprofundado

e expansivo do espaço geográfico exterior alterou e alavancou o desenvolver dos

espaços interiores, numa dialética relacional da objetividade-subjetividade em que

o ser e o estar geográficos passaram a se interdeterminar, combinando-se e

conflitando-se na unidade espacial do diverso produzido43.

43 A dialética, a guisa de exemplo, é verificável no ser protestante abordado por Max Weber (1864-1920), que naquela fase do capitalismo simultâneo à Reforma deveria trabalhar para acumular e acumular para agradar a Deus, voltando-se para o desenvolvimento do mundo espiritual interior, desapegando-se de valores mundanos, numa clara contradição entre a racionalidade da cultura e a racionalidade da economia em expansão (WEBER, 2002). Ou então, outro exemplo, no conflito de racionalidades havido entre o ser índio tradicional com o estar geográfico da racionalidade da espacialidade hegemônica que sobrepôs a cultura do mercado às

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Nas sociedades classistas há uma segunda natureza de ordem

ideológica por trás da natureza teleológico-material propalada socialmente. O

trabalho possui uma segunda natureza (abstrata) por detrás da natureza ontológica

de satisfação humana pela relação metabólica mantida com a natureza.

Ardil ludibriante, causador de desencontros os mais possíveis no

senso comum e no científico, como resultado da adaequatio ao método que parte

da idéia, defendendo o trabalho da razão da Idéia como o fundante do ser, ou – o

que dá no mesmo – cultivando culturalmente a idéia social particular que quer ter-

se por universal.

Objetiva-se que assim siga o homem. Perdido em falsas metas.

Figurante proposital da trama tachada de extra-social ou sócio-natural, a qual deve

formas de expressões culturais autônomas, bem como o formato de seu arranjamento espacial às espacialidades dos índios. Poderíamos ainda citar a dialética que vive o ser operário descontente que manifesta a personalidade punk como válvula de escape ou instrumento político de contestação ao mundo geográfico com o qual não pode deixar de minimamente sintonizar-se pelo estar, no espaço regulador do comportamental. O real vai abarcar esse movimento antitético imanente ao ser dominado-rebelde na relação dialética com o movimento do espaço hegemônico, o qual de modo semelhante, antiteticamente, faz-se posto/contraposto. Ainda que haja determinância em último grau das condições materiais (vez que “não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência”, diriam: MARX; ENGELS, 1996) é inegável que as dimensões superestruturais igualmente atuam como elementos ativos, inda que como dimensões distanciadas e prolongadas do real e este foi o motivo de o Marx ter alegado n’A questão judaica não devermos procurar “o segredo do judeu na sua religião, mas, muito pelo contrário, o segredo desta religião no judeu”, desenvolvendo o materialismo simplista do Ludwig Feuerbach (1804-1872) dos Princípios da filosofia do futuro e das Teses provisórias para a reforma da filosofia, em que constavam os pródomos da inversão do hegelianismo, mencionando serem assim as relações reais entre o pensamento e o ser: “o ser é sujeito e o pensamento atributo (Das Sein ist Subjekt, das Denken Prädikat)... O pensamento vem do ser (ist aus dem Sein), mas não o ser do pensamento... Qualquer especulação sobre o direito, a vontade, a liberdade, a personalidade, tentada sem o Homem, fora ou acima dele, não é mais que uma especulação sem unidade, sem necessidade, sem substância, sem fundamento, sem realidade. O homem é condição de existência da liberdade, da personalidade e do direito” (FEUERBACH, Teses provisórias...). Feuerbach, através de seu individualismo materialista, restituiu ao homem a sensibilidade roubada pelas frias teses mecanicistas que afiançavam só átomos e matéria existirem, descobrindo que o pensamento decorre do ser, e a partir dessa sensibilidade intuitiva, todavia, consistiu seu erro em acreditar que a negação do ser se faria pela crítica filosófica (contra a “alienação religiosa”), pela razão do seu “homem total” encontrar-se domado pela sensibilidade passiva (dum ser mais biológico que social e nesse caso, então tipicamente alemão: burguês, passivo, sentimental, solitário e dotado de sentimentos puros de amor e amizade); cabendo a Marx a tarefa de realizar a crítica materialista, como pensamento e ação, dum homem não mais passivo mas ativo e fazedor de história, contrariando os supostos da economia política liberal (inglesa) já atacada precocemente pelo Engels no Esboço de uma crítica da economia política, publicado nos Anais franco-alemães e referido por Marx como um trabalho “genial”.

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destrinchar para mais próximo da Providência e da Ordem Natural poder-se achar,

resignando-se e o melhor possível adaptando-se.

Entre resignação e ignorância, estranhamento e alienação,

pitadas aqui e acolá de coação e coerção física e psicológica são aplicadas para

que se mantenha curvado o andar do corpo social.

O presente é perfeito e o futuro é a promessa do encontro com o

espírito ou com um seu “eu” que mais e mais sente esvair-se.

Consequentemente e nada despretensiosamente, no

estranhamento uma das categorias-mores do movimento social coevo. Tornando-

se comum a condição do passado privadamente traçado, o presente congelado e o

futuro borrado; momentos diferentes desse movimento sócio-espacial.

A intencionalidade social ocupou (construiu) o espaço da

contingencialidade movente da natureza pré-social.

A nascediça geografia moderna é filha soberba e esconsa da

classe burguesa vigente.

O fazer e o pensar, desde muito estilhaçados em infinitos cacos,

distam-se inda mais no percurso social dessa “intenção estranha”.

Na teoria e na prática, no concreto real e no concreto pensado,

no pensar de racionalidade instrumentalizante e no pensar alternativo

heterogeneizante, várias as transformações porque se é uno o espaço-mundo ao

gerenciamento e acumulação privada dos capitalistas, faz-se pulverizada a

compreensão dos múltiplos espaços vividos pelos indivíduos divididos, que lhes

têm socializados os danos sócio-ecológicos.

E tem marco esse processo de polarização acelerada porque

desde que o capital passou a roubar a cena no princípio da Era Moderna mais se

distancia a bifurcação social armada entre homem-meio, sociedade-espaço

construído, homem-humanidade, fazer-pensar, produzir-distribuir.

As identidades e semelhanças esquadrinhadas pelo capital

descambaram no fechar de olhos às diferenças e dessemelhanças que contestavam

já comedida atenção, pois os idênticos o são apenas na forma pura, na tautologia,

e é por isso que se faz necessária a potencialização da capacidade de apreensão da

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unidade do diverso mediante os aparentes semelhantes, não se desprezando as

formas específicas em que comparecem, enquanto simetria, simultaneidade,

repetição, recorrência, etc., porque há unidade entre identidade e diferença44. E

para penetrar no concreto o pensamento deve transgredir a identidade, o imediato,

as sensações, atravessar as diferenças, as contradições mais essenciais, para

reencontrar-se com a unidade, com o verdadeiro, porque a identidade da verdade

não se alcança com indiferença às diferenças, seja em termo da construção e

transformação do conhecimento (LEFEBVRE, 1995; MOREIRA, 1999) ou sua

aplicação como atuação prático-política (RIBEIRO; THOMAZ JR., 2001).

Hoje, as contradições atingiram um nível paradoxal, o estado

puro; não só na economia como em múltiplas esferas de realização da vida, na

arena do trabalho e além, como na estrutura e superestrutura societárias.

A diferença roga presença e, qual a semelhança, prima destaque.

A dialética que se calcificara na síntese quando da consideração

da diferença, que não esporadicamente fazia-se (anti)tese, transformando-se em

premissa homogeneizante que a tudo se justaporia, defronta-se com um grau de

complexidade que está a exigir mais do que o processo “reflexionante” se tornou

afeito, para que a certa logicização do método dialético de se trabalhar com as

contradições seja enfim suplantado.

Novas práticas delineiam-se nesse interrogar. A mudança

material da espacialidade social acarretou mutações às subjetividades, na teoria e

na ação45.

44 Discussão filosófica antiga essa: Lefebvre (1995) lembra o caráter aparente e efêmero da diferença como discordância a ser agregada à unidade. Moreira (1999) traz a questão para a geografia enfatizando os perigos de eliminação das contradições e diferenças, o que fez fortalecer o formalismos científico antidialético. Sustentado em Regis Debray (1991), Santos (1997), quando tratando de todo, totalização e processo, diz que a tendência do que é único é tornar-se múltiplo e esse, no futuro, a metamorfosear-se em único. Isso para não mencionar a discussão sobre a filosofia e os estudos propendidos à física quântica, a teoria da relatividade, unidade e relacionalidade e a teoria no campo do fractal, reino da aleatoriedade e da indeterminância que atormenta o cérebro dos físicos (STIX, 2004; THOMMSEN, s/d.); embora já existam pistas teóricas interessantes, que conseguem ver leis no caos fenomênico (PRIGOGINE, 2002). O movimento contraditório da natureza constrói/destrói a natureza contraditória do movimento: dialética da relação equilíbrio-desequilíbrio como real-concreto (MOREIRA, 2006, p. 75). 45 Calha de modelo, é ilustrativo nesse sentido o movimento operário revolucionário europeu, anarco-sindicalista e leninista, de cunho antiestatista, antilegalista e antiparlamentarista, antimilitarista e antipatriotista do final do século XIX e início do XX, que teve suas forças minadas

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Afetado o mundo da produção, afetou-se o da reprodução social

(universidade, ciência e método juntos).

Vejamos mais sobre as conseqüências sociais para adiante

apontarmos as relações teóricas invisíveis.

Atualmente, estão as lutas a se darem mais veementemente por

fora da esfera do mundo geográfico do trabalho, transbordando à escala da

reprodução da vida social, no espaço da residência e do consumo, no lazer, seja-o

turístico ou outro, porque as contradições estruturais da lógica da dominação,

alienação e destrutibilidade do capital dão-se fora da esfera do trabalho, vazando e

espraiando-se por todos os poros de organização e concretização da sociabilidade,

em setores mais complexos das camadas sociais que não exclusivamente o

operariado fabril tradicional. Além do mais, como afiançaria o filósofo Lukács, é

próprio às faculdades histórico-culturais humanas definir o que há de viável

economicamente em determinada ocasião, esquivando-se à mera noção anistórica

da esfera econômica, por ser a mutabilidade cultural dado igualmente imanente à

necessidade historicamente produzida, tanto àquela imposta pelo trabalho como

meio garantidor da reprodução como à atinente às faculdades pertencentes à

determinada época. Eis o pretexto de que parece ter-se valido Henry A. Murray na

distinção que fez dos dois tipos gerais de necessidades: as viscerogênicas,

atinentes à própria condição do organismo, e as psicogênicas ou adquiridas, como

a necessidade de consideração, posse e poder, com o que faz irromper

necessidades novas ao lado das histórico-morais, num híbrido entre o que é

necessidade biologicamente herdada e que por meio econômicos se faz realizada e

o que é conquista introjetada culturalmente (ver: DORIN, 1980a, p. 218;

MANDEL, 1976, p. 68-69, 73; FURTADO, 1977, p. 25; LEFEBVRE, 1981, p.

141-142; RIBEIRO, 2004b, p. 47, nota de rodapé nº 20).

O que significa dizer que há uma imbricação tensa, mutável,

direta ou velada, entre os mundos da produção e da não-produção, entre os

espaços produtivo e reprodutivo, espaços da produção e da distribuição, mundos à medida que se estenderam reformas do Welfare-State, sob a ascensão do paradigma fordista-taylorista consolidado no após-guerra, que por essa política adotada abandonou a proposta de gestação e gerenciamento doutra espacialidade a partir da viseira desembaçada dos trabalhadores.

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do trabalho e do não-trabalho (espaço vivido ou espaço do não-trabalho). Isso

porque, ao se transformar as bases material produtiva e reprodutiva da sociedade,

volveu-se a sua dimensão superestrutural, seus elementos culturais, ideológicos e

políticos, num infinito afetamento inter-relacional.

Vários os efeitos que o pensar lógico-gnosiológico, nesse

ínterim, encetou aos intelectuais e aos movimentos sociais de cujas forças e

contrariedades por todos os cantos jorravam sem perspectiva universalizante a

lhes dinamizarem.

A compreensão limitada do real reverberou em ações

fragmentadas e de fácil barragem, por parte dos incomodados que se espremem no

piso térreo da pirâmide, visto que a leitura parcelária do real alentou-os a atos

isolados, fáceis de serem desmontados pela totalidade sistêmica do capital; sem

contar que, a respeito das teses marxianas das crises, não houve preocupações

com sua convergência na tríade do social-econômico-político (LEFEBVRE, 1981,

p. 202; RIBEIRO, 2004a, p. 19).

Na era atual – do dito pós-vanguardismo, em que o fazer

sobrepuja o ter consciência sobre, por motivo da racionalidade instrumental

exagerada, que enleva a estética à ética – várias perguntas vêm à tona, algumas

tendentes a contemplar a questão sobre onde se embrenhará o re-começo e a partir

de qual mediação. Desapegas da esfera do trabalho, na extensão reprodutiva da

sociedade? E caso o seja, serão elas capazes de modificar a base produtiva?

Também longe do dualismo, outra síntese acena que não se

efetuará nem o caráter apocalíptico da Grande Noite insurrecional e nem a

harmonia crida entre trabalho/capital, como pacto duradouro dos contraditórios. O

primeiro azo far-se-ia mito e o segundo, ardileza ludibriante. Explorando a tese: a

alternativa deveria ser construída cotidianamente, por dentro da ordem e a ela

contrária.

Toda lógica e prática sociais teriam de ser aniquiladas e ou

revertidas, pois o que está em processo é o vivificar do que aí está.

Novamente, mudança conservadora. Velho, o novo.

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Atenção válida a demonstrada pelo marxista norte-americano

Fredric Jameson (1997, p. 30-31), pelo distinguir da mudança mercantil,

estandardizante e programada da mudança que substitui um sistema por outro.

As razões teóricas invisíveis à mutação conservadora,

responsáveis pelas conseqüências sociais apontadas, querem implantar agora no

lugar do caos perceptivo a totalidade idealista do espaço abstrato.

O remanejar concreto da sociabilidade em crise de reprodução,

trançando-se em novos métodos de trabalho e gestão da produção, com novas

regras institucionais sendo ativadas para regular o corpo social em transição,

instigam a metamorfose também em nível imagético e interpretativo, como se

hologramas (paisagísticos) fossem acionados pelo campo de força do sistema do

capital, utilizando do aparato do meio técnico-científico-informacional de que

versa M. Santos.

A esse serviço, ideologia e estranhamento realinham-se no novo

agir, comportar, viver, interpretar, teorizar.

O capitalismo, que dessacralizou valores enferrujados para o seu

sistema, santifica novos valores. No espírito evoluído do capitalismo estaria a

redenção do social.

Da metafísica teológica medieval à metafísica econômica atual.

No fundo, as leis do real concreto sendo desviadas do ser social

concreto. Todavia, anteriormente buscava-se explicações no Espírito autônomo ao

qual, em contato, evoluiria o corpo social não mais para frente (irruptiva e

revolucionariamente) e sim interiormente, no sentido do encontro do Homem com

a abstrata Idéia da Razão divina, tendo por dínamo o processo pelo qual a

consciência passa do espírito subjetivo ao objetivo para se alçar ao píncaro do

encontro com o espírito absoluto. Fora isso o que compreendera Hegel: figurando-

lhe a sociedade Democrática do capital como o fim da odisséia histórico-

espiritual, a excelsa supra-evolução aflorada pela humanidade. Isto devido ao fato

de em Hegel unificar-se o princípio idealista da escola eleática da dialética como

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razão46 com a idéia jônica de dialética como processo de razão47. Daí que na

teoria hegeliana, as “forças objetivas” que atuam no mundo foram

metafisicamente interpretadas, dispostas como gradientes de manifestação do

Espírito, seja como indivíduo (consciência espiritual em nível individual, como

razão) ou como família e Estado (formas da razão objetiva revelada por

intermédio das relações interpessoais).

Entendamos melhor a tradição comum a esse tipo de pensar,

nesse autor desenhando-se direta ou implicitamente burguês, e seu encravamento

no seio da sociedade para que, ao serem retomadas as questões pertinentes à

sociedade contemporânea, não permaneça indeterminada a lógica causal que se

disfarça de natural, fatalista e caótica para encobrir a historicidade classista,

socialmente perversa e economicamente imperialista, pois foi no gênio dialético

de Hegel que a história da filosofia fez-se filosofia da história (burguesa).

A teoria hegeliana retoma a centralidade de uma categoria como

princípio ontológico ou instância última do ser: a contradição, adormecida desde

muito junto à tumba do Heráclito, e que depois veio receber ainda os bafejos

metafísicos do Spinoza48.

46 Em Eléia, cidade da Magna Grécia, na Itália meridional, viveram Parmênides e Zenão no século V a.C., pensadores que se caracterizavam pela diferenciação do mundo físico (dos fenômenos reconhecidos pelos sentidos) do mundo inteligível (plano da razão que serve de baluarte à ciência). A característica política comum a essa escola filosófica está na, explícita ou não, preocupação em se legitimar o poder e a ordem estabelecidas, sendo pois, uma filosofia idealista e conservadora. 47 A escola jônica, surgida no século VI a.C. era constituída por Tales de Mileto (640-545 a.C.), Anaximandro (610-547 a.C.) e Anaxímenes (588-524 a.C.), além de Heráclito e Pitágoras (séc. VI a.C.), estudiosos da origem primeira da natureza ou phýsis: água (para Tales); ar (Anaxímenes); fogo: o elemento indeterminado-infinito ou apeíron fundante dos compostos água-ar-terra-fogo (Anaximandro); ou ainda o Hum (de Pitágoras). Por isso, esses filósofos são chamados de Físicos. O período é chamado de Cosmológico. E através dessa um pouco ainda confusa Filosofia materialista empírica, eles negavam a mitologia e a ideologia dominantes, buscando a origem material das coisas sociais e naturais, o princípio primeiro do universo (arque). É preciso dizer que há os que preferem ver Pitágoras como criador de sua própria escola, como a precursora do platonismo e a que estabelecerá o embrião do dualismo ontológico que oporá idealismo e realismo, por querer encontrar a substância ideal e única que origina tudo o existente. Razão de Nunes (1992, p. 24-25) afirmar que o espírito místico pitagórico é contrário ao materialismo dos físicos. 48 Adepto do método cartesiano no prestigiar dos procedimentos matemáticos (a dedução se realizando de intuições intelectuais imediatas e diretas dos elementos, baseando-se em idéias simples e irredutíveis, demonstradas geometricamente), Spinoza, apesar de erguer seu racionalismo em crítica aos dogmas da Igreja, viu Deus como criador de tudo e o homem como mero observador passivo do encadeamento causal dos fenômenos. Por suas idéias, foi considerado o antecipador do liberalismo político forjado pelo John Locke (1632-1704), que – contrariamente a Descartes – desprezava a consideração da existência de idéias inatas ao ser.

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A contradição, como processo e produto de especulação e

conhecimento filosófico, evolui e regride intimamente às contradições materiais

específicas à sociedade em que foi concebida. Chega ao tempo de Hegel, que aos

domínios do conhecimento a resgata. Ironicamente, no entanto, por conta de

volteios idealísticos, aboliu Hegel em seus estudos tão afeitos à dialética

ressurreta, a negatividade, superabilidade e contraditoriedade do movimento

social do concreto real.

A evolução social-racional-ideal cerra-se com a ascensão da

burguesia ao poder. Acompanhou tal advento o ideário de fim da História, como

pôs-nos a recordar o Armando Correia da Silva (1993a). Como se à mercê

estivéssemos da desditosa e irremediável visita do eterno retorno dos que – senão

o Nietzsche49, pensadores que nele e ou noutras correntes se guiaram, como no

platonismo – deitam um pé na antiguidade e outro no mundo contemporâneo, no

encalço dos franceses Gilles Deleuze e Jacques Derrida (1930-).

Mesmo Comte já compartia de tal opinião, de que ideais de

revoluções futuras não passariam de mitos, fantasias ou milagres, e com sua teoria

punha-se a tentar regular o bom funcionar do organismo social nos rumos da

“ordem e progresso” burgueses, com a universalização ideológica de seu

postulado científico objetiva e subjetivamente classista e eurocêntrico, na

taxonomia linear (embora tenha dito não sê-lo) e evolutiva dos povos de cuja 49 Olgária Chaim Ferez explana, em pesquisa consultada por Chauí, que a idéia nietzscheana do eterno retorno surgiu no verão de 1881 quando residira em Haute-Engandine, na aldeia de Silvaplana, enquanto passeava; pouco depois teria Nietzsche publicado a tese de “que o mundo passa indefinidamente pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal”. No entanto, a idéia que ele detinha sobre esse processo não implicava a repetição do mesmo, como volta do mesmo e volta ao mesmo. A afirmação de o mundo como vontade – representada pela figura do deus artista e dos ciclos vitais, o grego Dioniso, símbolo do irresponsável, amoral e superior ao lógico, como da desordem, da exuberância e da música – pressupunha a vontade de potência e, conseqüentemente, a abertura para o futuro, a probabilidade de mudança e dum múltiplo brotar, ou seja, a repetição era-lhe desigual e seletiva. Nietzsche, opositor ao cristianismo e à sua lógica moralista de renúncia, submissão e crença no além-morte, advoga a idéia do eterno retorno não em defesa da idéia de resignação e renúncia como virtudes, pois o “bom” não é o que segue esses preceitos mas o que os nega, tendo em vista que bom – expõe-nos mediante seu crítico método filológico – vem do latim bonus, o “guerreiro”, o que foi sepultado pelo cristianismo. Não haveria outro motivo à realização da genealogia da moral, com vistas a que fosse despida de certas interpretações, por meio das quais os fracos pensam que são fortes a partir de ideologias armadas para conservar a estrutura social, nela consolando-se. O super-homem deveria voar, ultrapassar os valores estabelecidos, evoluindo-se pela contra-ação (CHAUÍ [cons.], 1999). Ver: NIETZSCHE, 1999.

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dinâmica adviria, por meio do método naturalista aos “comtistas” e aos

evolucionistas apropriado, a compreensão das leis gerais do funcionamento da

Sociedade e o desenvolver da Humanidade.

As “insurreições” ou “revoluções tumultuosas” compareciam-

lhe como fruto da “ignorância” sobre a “marcha natural da civilização” em

sentido do progresso, contrariando a “tendência instintiva da espécie humana em

se aperfeiçoar” e é por isso que a “política positiva” deveria fornecer os meios

para que se mantivessem à distância as “revoluções violentas” (COMTE, 2005, p.

63, 66, 67 passim). Para ele: “Ninguém é tão insensato para levantar-se,

conscientemente, em insurreição contra a natureza das coisas” (ibid., p. 66-67) e

isto pelo motivo de que tão logo:

as ações humanas – individuais e sociais – contradisserem as idéias, serão tidas como desordem, caos, anormalidade e perigo para a sociedade global, pois o grande lema do positivismo é: “Ordem e Progresso”. Só há “progresso”, diz Comte, onde houver “ordem”, e só há “ordem” onde a prática estiver subordinada à teoria, isto é, ao conhecimento científico da realidade (CHAUÍ, 1991, p. 28).

Reforçador dos ideais conservadores e metafísicos, esse francês

que se cria portador e instrumento da tocha luminosa do saber positivo, os demais

(teóricos teológicos, deístas, metafísicos ou utópicos subversivos) considerava

pouco dotados de razão.

Especificamente em tratando do que viu como influências

causadas pela retrógrada força do espírito teológico, cada vez mais destituído de

força moral, advogou a tese de que:

Exercido assim, realmente inspirou ou secundou muitas aberrações anti-sociais que o bom-senso, entregue a si mesmo, teria espontaneamente evitado ou rejeitado. As utopias subversivas que vemos ganhar crédito hoje, quer contra a propriedade, quer mesmo acerca da família, etc., não emanaram quase nunca das inteligências plenamente emancipadas nem foram por elas acolhidas, apesar de suas lacunas fundamentais, mas antes por aquelas que perseguem ativamente uma espécie de restauração teológica, fundada sobre um vago e estéril deísmo ou sobre um protestantismo equivalente (COMTE, 2006, p. 67, grifos nossos)

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Sem mais palavras, o que quis esse aderente da idéia metafísico-

positiva dizer é que os outros é que são metafísicos, utópicos, antimoralistas, anti-

sociais, pouco inteligentes e influenciáveis. Menos ele, que talvez sem pretender

se julgava um super-sábio não conservador e que se cria teoricamente

revolucionário e partícipe-gestante da nova era.

Já Marx ocupou-se da sociedade burguesa européia em um

período de tempo determinado, sem negar junção de teoria com prática e sem crer

em idéias de que o povo seria apenas depositário de teorias (de Ordem e

Progresso) lhes transmitidas por filósofos (como concebera Comte, que entendia

que os grandes pensadores deveriam criar as idéias que, transmitidas ao povo e

infundidas nos costumes, remodelariam passivamente os governos e as

instituições). Marx via o povo como agente atuante-pensante, parteiro da nova era.

Aos que utilizam o método naturalista e metafísico por guia, o

método histórico de Marx baliza vários erros, como o da idéia que considera que a

história se repete – como quis Hegel – por supranatural tendência transcendente,

de tragédias que sucedem tragédias; como elucidado n’Os 18 Brumário, repete-se

a história como farsa. Ou, noutros termos, como produção de natureza social

reproduzida na ordem classista, estatal e burguesa. O “acaso” natural ou a

indeterminação do trágico na história repete-se então por obra social de interesses

privados, como “descaso” social50.

O real do tempo de Hegel por ele foi eternizado em sua

metafísica, com vistas a uma presentificação do presente anuladora do dever-ser

da sociedade como movimento radical e irruptivo. Indiretamente que fosse, o

movimento dialético de seu pensamento prescreveu-se à dissolução dialética do

movimento histórico concreto. 50 Segundo Lefebvre (1981, p. 96-98), Hegel, dando continuidade ao alemão Kant, substituiu pelo final do século XVIII a idéia comum de que reinaria “harmonia” entre indivíduo e sociedade, interesse privado e interesse geral, entre razão e sentimento. Por terem vivido numa época revolucionária, esfacelamento dos pequenos Estados feudais e da ordem medieval, ascensão da burguesia e criação de instituições reguladores da “superestrutura” político-jurídico-ideológica, esses filósofos descobriram o movimento contraditório na história e não apenas a repetição, colocando a relação num novo patamar, metafísico ainda, de uma Idéia (Deus) preexistente, pré-cósmica e pré-histórica que criou o mundo, o humano, a história e a matéria como sua “outra coisa”, a Idéia que se aliena e se “exterioriza”, com as quais esse Espírito “inconsciente” estaria em contradição e por meio das quais tomaria consciência de si mesmo, reencontrando-se.

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Contraditória é a teoria hegeliana da contradição. Circular o seu

movimento da não-repetição. Que mais ele fez que pôr-se a querer refrear a

energia que sintetiza o espaço e a história, tendo-os por completados?

Parece nisso denotar-se uma propensão teórica comum a muitos

pensadores no século XIX, severamente criticada por autores que têm a cultura

por amontoado de simples reflexos ampliados e exteriorizados da “natureza

humana” (WHITE, 1978, p. 28). Quando o que ocorre é a complexificação da

cultura conferir-lhe relativa autonomia perante o homem: distanciamento-

prolongamento-desdobramento-aprofundamento-diversificação-complexificação.

Entretanto, se os axiomas hegelianos de leitura filosófica da

história do mundo fabricam uma redoma interpretativa a-histórica ou ultra-

histórica, uma filosofia meramente contemplativa, há que se salientar que de

muito mais que exclusivos enganos se nos oferecem os ditos da sua “filosofia

crítica”. Como ao seu jaez fez o naturalista Aristóteles – que parecido apego

exacerbado pelos universais e pelas abstrações demonstrou com aquilo ao qual

quis ser crítico, como a doutrina platônica –, o Hegel reconheceu a importância do

trabalho à sociedade, especialmente do papel que a teleologia possui enquanto

exercício de pré-ideação antecessor e direcionante da práxis (extrapolando aqui

inclinações irracionalistas), contudo o fez de modo tão sobrevalorizado que a idéia

acabou por assumir centralidade auto-suficiente e descolada da base real, como

concreto pensado desposado do concreto real, transluzindo-se naquilo que o

filósofo tcheco Karel Kosik (1926-) apropriadamente rotulou de

pseudoconcreticidade (KOSIK, 1995).

A bem da verdade, para Hegel é o trabalho da Idéia que

predestina os rumos da sociedade, como uma espécie de espírito pré-material e

existencial que se encarnou no mundo. Prestando-se a filosofia, unicamente, a

possibilitar o encontro do Homem com o conteúdo ontológico-teleológico-

teológico da Razão divina externada no mundo. Com certa dose de materialismo,

como um idealista objetivo, Hegel reitera o valor dos instrumentos do

conhecimento que buscam o alcance da verdade – apreendendo a natureza que

independe das sensações –, embora tal verdade se igualasse à Idéia. Distando-se

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assim dos idealistas subjetivos, para os quais todo o conhecimento não passaria de

artificial construção mental, reduzida à mônada.

Encarando o mundo pelo grau de proximidade dos homens para

com Deus, mostrou-nos Hegel – não obstante a dita influência oriental recebida –

a sua face européia, conservadora, cristã e burguesa ao baixar seus olhos para o

mundo ameríndio, tecnicamente menos desenvolvido e povoado a seu ver por

crianças “privadas de qualquer reflexão e intenção superior” (HEGEL, cit. por

DESCOLA, 1999, p. 112); pondo-se à frente da teoria de “remedio espacial” a

respaldar a extensificação do capitalismo às colônias e periferias do mundo, com

vistas a mitigar as contradições nos países centrais, e que ao mesmo tempo

prestavam-se ao “elevar” (sic!) do nível técnico-social dos povos primitivos por

tais paragens encontradiços (HARVEY, 1999, p. 50, 52 passim). Montado no

móvel do pensamento ahistórico e idealista, jamais poderia aperceber-se de que

logo que finda as oportunidades oferecidas na fase de capitalismo concorrencial a

que presenciava, as contradições ao invés de expurgadas tomariam estatura

mundiais; argúcia que coube aos críticos da dialética filosófica hegeliana

discorrer, os cientistas-revolucionários histórico-dialéticos Marx e Engels.

Hegel partilhava a idéia de que “Deus governa o mundo”. De

modo que se Ele governa e se transluz no mundo, à filosofia caberia a

compreensão do plano divinal:

A filosofia deseja identificar o conteúdo, realidade da Idéia divina, e justificar a realidade menosprezada, pois a razão é a compreensão do trabalho divino (HEGEL, G. W. F. A razão na história. São Paulo: Moraes, 1990, p. 86 apud SILVA JR.; GONZÁLEZ, 2001, p. 48).

A superqualificação da idéia gerou seu destacamento para com o

real. Condutor ao descolamento. Traduzindo-se em idealismo. Te(le)ologia.

Ao Lukács teria esse sido o maior enclave do hegelianismo:

imputar superimportância à teleologia a expensas do trabalho social, fazendo da

primeira o motor da história, descolado da práxis social fundante. Ou poderíamos

dizer que Hegel deu mais atenção àquela dimensão marxiana, repassada por

Lefebvre (1968a, p. 106) da práxis como atividade prático-crítica (ocupada das

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relações sociais, examinando-as e querendo modificá-las), desmerecendo-a como

atividade prático-sensível (que constrói o mundo dos objetos, acrescentando aos

objetos da natureza aqueles que a sociedade cria), e fê-lo, porém, a partir do

prisma idealista da reflexão crítica. Ao invés da prática social, na teoria hegeliana

a razão é o motor da história (incluindo-se a teoria do direito e do Estado).

A teleologia, o pôr teleológico ou o traçar de finalidades

adquiriu exclusividade na realização da história porque Hegel periferizou os

meios históricos que impulsionam e garantem efetivamente o seu manifestar,

secundando o fato de ser o trabalho o elemento mediador de historicização da

idéia em fato. Ao contrário disso, proclamou a história como obra do Espírito

predeterminante do realizar social que com ele, por esse viés, encontrar-se-ia e

mais evoluiria internamente.

Se o teleologizar decorre das próprias imperatividades

imanentes ao ser social, e nesse ponto mostrou-se o Hegel portador de inelutável

argúcia, desconsiderou ele no entanto que o transpor da teleologia à causalidade

efetiva depende essencialmente dos meios materiais, portanto históricos e

geográficos, que avalizam efetivamente o seu concretizar; e não duma divina

Razão a ditar os rumos evolutivos do ser.

O espaço não consta como construção categorial e teórica

primordial em suas elucubrações, se muito como base físico-geológica da

Natureza engravidada de maiores possibilidades sociais pelo Espírito. A história

sim é senhora de maior notoriedade, como obra da Idéia esposada pelo Homem

abstrato – preferencialmente do abstrato e cristão Homem Alemão.

A idealidade abstrata da hegeliana idéia histórica e espacial da

Idéia menoscaba a mediação espacial como ponto em que o trabalho social pode

potencialmente firmar-se como gênese ontológica da liberdade, dispondo ao

animal biológico e instintivo o status e a condição de ser consciente e autogerido,

pela autogovernança da práxis social, que rumaria à universalidade quando por

desvinculado se fizesse das travas históricas e materiais que o agrilhoam.

Em Hegel, presencia-se diametralmente o oposto. Sua dialética

se resolve em-si, como idéia da Idéia à parte do mundo concreto, como idéia

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evoluída do Homem desgeografado e ahistórico, com a espiritualidade se

mesclando à naturalização do histórico-social, da história feita pelo Capital, em

cantos do planeta próprio às modernas nações dos homens culturalmente

adiantados.

O real que já estava de ponta cabeça, põe as cabeças a pensar

somente pelas pontas; pelas formas; pelo avesso. Nesses níveis permanecendo.

Hegel se despede da vida, mas sua filosofia não divide o silêncio

no repouso de seu sepulcro, em outras vivas bocas encontrando voz ao longo dos

séculos.

Chega ela ao presente, quer-se arremessar em direção ao futuro.

Os ideais a isso se fundam nas máximas da presentificação do presente, negação

do movimento irruptivo, parecença do legal e democrático com o divino

providencial, que no real exprime-se; ou em linguagem (pós?)moderna, nos

paralelos pertencidos ao “presente perpétuo”, “saudade do futuro” ou “morte do

sujeito” que fixa o “fim da história” e a desimportância do espaço (Giddens chega

a teorizar sobre a “aniquilação do lugar”), que formam o sistema de simulacros

cujo germe primacial ascende da concepção parmenidiana do ser.

As científicas ideologias hodiernas se descrevem, autodefinindo-

se, inda mais científicas e nada ideológicas, quando o que se verifica é a

tecnologização da ciência e a universalização ideologizante do saber burguês,

emitido como pensamento único que, negando o espaço como referencial de ação

e embates, nada mais faz que congelá-lo com o poder detido sobre seus vetores

estruturantes.

Sendo Deus o capital, a lógica embutida em suas idéias é que

regulam a história e o espaço, capitalizado pela mercantilização do ser-estar. O

conteúdo ontológico da sociabilidade tem aí o nexo fundante, locomotor e

transitivo. Tudo ele disseca e deturpa para seu visor emprestar. Da área da

produção à reprodução, muito de fundacional e pré-direcional junge o social da

esfera reprodutiva ao seu centro nevrálgico, porque em duas vias principais segue

o capital atuando: na reificação das relações sociais e na personalização da

relação reificada.

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As coisas se autonomizam e se fecham em-si, como se fossem

“pessoas”. Contrariamente, as pessoas são objetificadas, tratadas como coisas,

fator produtivo ou peça-marginal-miúda da engrenagem pelo sistema do capital

reprogramada. Enquanto na realidade é o trabalho o que gera o capital – em

ambivalência ao que criam os clássicos economistas quando do desvendamento de

algumas das “leis” da anatomia da economia política, que pecaram pelo não-

descobrimento dos principais caracteres da fisiologia. Não trabalho do Espírito,

anistórico e predestinante; porém trabalho como práxis humana, mais-trabalho

social, estranhado e explorado por outro Homem, outra classe, e já não

unicamente a alemã. Com o espaço não se passa algo muito diferente: apartado do

homem (igualmente dividido), figura como meio de lucro e toda e qualquer

racionalidade dirige-se a essa empresa, tendo o trabalho abstrato por alavanca.

O método, se entra na representação de toda essa trama

ideológico-científica, chega pela porta dos fundos, inda que na aparência

prefigurando-se como obra do encontro com o Espírito, ou agora como fruto do

encontro com a idéia (estranhada) que porta a ilusão de ser a redentora da

sociedade, senão mais Deus, o ideal de ser a Tecnologia, o Trabalho, a Harmonia,

a Pactuação e a Ordem, o Capital, o elo da corrente causal do perturbado presente

com o sempre alardeado e distado futuro promissor.

O porquê de Whitehead, em referindo-se à Filosofia das

Ciências, pelo alvitre seu de busca de relações (ou ausência de relações) entre as

ciências todas, citar as tendências múltiplas contidas em cada sistema fechado,

que como o hegeliano se estruturam, tecendo as considerações que:

O pluralista filosófico é um lógico rigoroso; o hegeliano floresce em meio a contradições com a ajuda de seu absoluto; o sacerdote maometano curva-se diante da vontade criativa de Alá; e o pragmático aceitará o que quer que seja contanto que “funcione” (1994, p. 6).

Aí a ponte filosófica e ideológica de um real objetivo criando e

coligindo as mediações necessárias a esse tipo de pensar intra e intersubjetivo,

impelido por método metafísico-idealista, positivista e pós-Moderno, apegado ao

epifenomênico, ao momento do cotidiano desapego da dialeticidade (marxista) da

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tríade singular-particular-universal, em que a transescalaridade das relações são

mais que métricas, mas sociabilidades imbricadas, abarcantes e histórico-

geograficamente conflituosas, por conta da própria estrutura da realidade social,

cujas propostas científicas pelo Whitehead explanadas sempre esbarram, tendo em

conta as limitações estabelecidas na forma do olhar, que acaba por dirigir a visão

para o que se quer enxergar51.

Este o motivo para Ellen Wood, conforme observação do

sociólogo Ricardo Antunes, considerar o capitalismo vigente portador de grande

maturação e universalização, com alterações na base produtiva, na esfera do

mercado e na dimensão cultural das sociedades, de conteúdo maior do que mero

trânsito da Modernidade à Pós-Modernidade (Modernity, Postmodernist or

Capitalism?, 1997, p. 539-540 apud ANTUNES, 2000, p. 48). Estaria já o

capitalismo plenamente realizado como modo de produção e cultura mercantil

(MOREIRA, 2002a, p. 32).

As novas-velhas justificativas do capital, ventiladas a todas as

direções da sociedade, para ideologicamente tentar tapar as voçorocas materiais

abertas sob os homens, quais rachaduras que não cessam de avançar.

A ampla crise do movimento operário, reverberando para a

questão da consciência de classe, estendida para sindicatos, partidos políticos,

parlamentos e instituições representativas, se expressa política e teoricamente

como novas ideologias Pós-Modernas, presentes na “Morte do Sujeito”, no Fim

das Meta-Narrativas e no Fim das Vanguardas, para ultimar no “Eterno Presente”,

como produtos e efeitos do Máximo Mercado (PELLEGRINI, 2001).

Ideologias, diz F. Florestan (1995, p. 120-121), que anunciam o

“fim do socialismo” e a “morte do marxismo” por serem criadas pelos fariseus

que vivem da moda intelectual produzida e propagandeada nos centros de

produção cultural dos países centrais, agora sob fachada da social-democracia.

51 É sabido que a Escola de Frankfurt, nas figuras de Max Horkheimer (1895-1973), Theodor Adorno (1903-1969), Herbert Marcuse (1898-1979) e Jürgen Habermas (1929-), ao colocar-se a negar o positivismo e o objetivismo puro nas ciências sociais e a afirmar o peso dos valores individuais nos estudos, de igual modo ao que fazia a fenomenologia, punha-se a afirmar o caráter histórico das ciências sociais e a incorporação de questões como o imaginário e a estética aos estudos da realidade.

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Importante a mensagem do Prefácio do livro de Srour (1978, p.

17) feita por Robert Frossaert, na qual, ao versar sobre a cuidadosa e necessária

“dessacralização de Marx”, com as quais a teoria busca a “adequação prática ao

real”, há o desferir de aguda crítica aos “novos filósofos” franceses:

cuja única novidade consiste em enterrar Marx em nome do Gulag, de Nietzsche, de Leibniz, quando não em nome de Deus. Creio que algum dia alguém deveria fazer-lhes saber que Marx está enterrado em Highgate desde 1883, mais isto não vale a pena: as modas parisienses mudam depressa, sejam elas intelectuais ou indumentárias!

A nosso ver, nada mais do que a radicação do Mundo Paralelo,

oficial e fictício, no posto de centralidade da vida hodierna (THOMAZ JR., 1992).

Para além do mundo fragmentado do pensar, o capital atingiu o

mundo do agir, acondicionando-o.

Não é de se deixar notar, amiúde no que toca à problemática das

vanguardas, que o desgosto com o atropelo sofrido pelo movimento operário

revolucionário gerou resistências teórica e prática à formação e aceitação das

mesmas; quando entendemos que a função da vanguarda deva ter por horizonte o

caminhar para o seu fim, formando sujeitos conscientes que adensem o processo

de desalienação. A diferencialidade das potencialidades dos sujeitos não deve ser

desprezada, no entanto direcionada contra o capital. O problema não está na

vanguarda em-si, senão na postura por ela avocada: seu distanciamento,

profissionalização, burocratização ou descolamento da base, pondo-se cooptada

pelos atores dominantes ou pelos que querem isto se tornar. A diferencialidade e o

direito universal à individualidade não devem estar apartados da cooperação do

indivíduo com o projeto coletivo: o indivíduo dando de si “conforme a sua

possibilidade”, sob égide do (e contra o) capitalismo.

Como outras de não menor valor, impõe-se essa como questão

ideologicamente embaralhada pelo pensamento hegemônico que quer-se único,

porque algumas experiências práticas de vanguardas mostraram-se desastrosas

mundo afora, justificando ideologicamente o menoscabo sofrido por estas

tendências, tidas como anacrônicas nos “novos tempos”.

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Nada obstante, se toda teoria ou ideologia tenta pôr-se como

arcano, o seu desbotamento rebenta da própria empiricidade das condições

objetivas, no instante em que o sujeito reconhece a razão que responde pela

brutalização de suas condições objetivas, em seus espaços mentais interiores e na

convivência coletiva que se faz comparativa de experiências, solidarizando-se e

politicamente elevando e consolidando, por meio de práticas populares, o nível de

concreção cognitiva do real.

A consciência da ausência, do que existe e do que despossui,

desdobra a consciência subjetiva do mundo objetivo. Como efeito, ao menos em

tendência avoluma-se e esboça-se, a consciência coletiva e objetiva dos elementos

subjetivos inextrincáveis ao ser. Não onisciência mas parcial e histórica

(cons)ciência do espaço construído e dividido alienadamente.

Os processos de concreção material e espiritual se interagem

enquanto re-apresentação sujeito-objeto e sujeito-sociedade; e das fissuras e da

incapacidade ontológica de manutenção da homogeneidade e perfectibilidade no

corpo da ideologia, que por esse viés acaba por manter a coerência na

incapacidade ontológico-estrutural de revolver os furos em seu tecido

interpretativo, que tenta maquiar e manter invisível os elementos contraditórios

estruturais que conformam o real, fertilizam antiteticamente as possibilidades de

solidificação de ideologias alternativas.

O entrançar do tecido da ideologia contém então desfiadas

linhas. Tanto que à ideologia que informa o que pensar e o que se quer fazer

pensar, da classe dominante (Marx), ou a estrutura psíquica hegemônica espraiada

territorialmente pela psicoesfera (SANTOS, 1994, 1997)52 para se atingir

determinado fim econômico, qual estrutura a pretender represar as águas da

história, de fissura em fissura, mesmo que apostando evitar o desgaste contínuo,

ora ou outra sinaliza de forma mais intensa o peso das forças silenciadas que

esperam o momento por fazer-se jorrar.

52 Ao M. Santos está na unicidade técnica o meio de realização da mais-valia global, não atrapalhando o seu manifestar concentrado e centralizado espacialmente. A tecnoesfera é o que interliga o mundo em rede, enquanto a psicoesfera, em si produto da unicidade técnica, a (re)alimenta, como ideologia dominante e condicionante de comportamentos sociais.

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O capital, mediante processo de desestruturação dos indivíduos

sociais, reestrutura-se nas dimensões materiais e espirituais. A forma de

sociabilidade, em-si contraditória e destrutiva, gera experiências destrutivas entre

os indivíduos e estes, por força maior duma lógica hegemônica e existencial

histórica, naturaliza a destrutibilidade como fenômeno universal comum em

sociedades complexas.

A fatalidade da natureza social já não tem nada de divino e

sobre-humano: o espaço é produto da natureza social que aliena material e

psiquicamente os valores ocorrentes, como excedente produzido pelo mundo do

trabalho ou em última instância como pensamento urdido ao universo social do

não-trabalho, atinente à reprodução no espaço-vivido-do-além-trabalho.

Apesar disso, há que se ressaltar que ainda que muito

racionalizada e predeterminada a existência, o indivíduo é um poço profundo de

indeterminidade, sobretudo aos burgueses transparecendo como ervilha na lata de

ervilha (na expressão de Sartre) ou tijolos homogêneos talhados na forma bruta do

muro (na alegoria de Roger Walters, ex-vocalista do Pink Floyd).

Na irredutibilidade ontológica da imanenticidade do caráter de

indeterminidade estabelecida entre o Eu e o Mundo repousa a potência do novo,

do alternativo, na dialética da confrontabilidade entre legalidade e racionalidade;

pronunciou Lukács que legalidade não é racionalidade, simples relação de causa e

efeito, antes aludindo à irredutibilidade ontológica do ser ao indeterminado53 que

se não é socialmente em tudo central (como pensam os pós-modernos, que no

outro extremo negam a causalidade) é certeiro de avulsa ocorrência.

53 Sobre o indeterminado, as opiniões de dividem: de um lado estão os que defendem a existência do indeterminado no ser e, de outro, os que ponderam se o indeterminado não se constitui apenas como causalidade desconhecida, sendo-o o desconhecido determinado, cujo o vazio teórico deve a ciência colocar-se a preencher. Talvez o acaso e a necessidade (a lei) devam ser concebidos como aspectos igualmente objetivos, como aspectos contraditórios e unidos dialeticamente na natureza – do mesmo modo que o acidental assume papel de destaque na teoria darwiniana –, porque o movimento da determinação não pode ser visto como evento mecânico, contendo também traços de espontaneidade, como movimento que revela o acaso ou o “autodinamismo” da natureza (autocontida), a se imbricar numa totalidade dialética de difícil discernimento. Para essa discussão: CHAUÍ, 1999, 2000; LEFEBVRE, 1968a, 1995; RIBEIRO, 2005b.

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Pensando em termos luckacsianos: sinonimizar legalidade e

racionalidade condiz com o sagrar da gnosiologia lógico-estrutural à ontologia

histórico-dialética do ser social.

Mesmo na Física houve os que, a primazia foi do físico alemão

Albert Einstein (1879-1955), em descobrindo a aleatoriedade da natureza

subatômica, donde as probabilidades querem desbancar as certezas, se ergueram

ao desvendar da teoria da relatividade, ocupando-se com o fio de interligação

entre a relatividade especial e a mecânica quântica – idéia que os físicos pósteros

superestimaram.

Inegável a dialética do real, no universo físico-natural ou social,

independentemente de classes e da formulação de leis político-econômicas para

reger a sociabilidade. A imprevisibilidade, tal a complexificação do ser, coloca

questões inimagináveis aos que buscam dirigir com menores riscos o ser.

Não se pode, todavia, negar que a estatização e capitalização do

ser geram modos-padrões de sociabilidade.

Como totalidade dimensional objetiva – mais do que mera

geometria paisagística de formas e objetos escalares e locacionais –, o espaço

apresenta-se como complexo de relações sociais geografadas, materiais e culturais

(no sentido amplo do termo). O espaço geográfico, se servirmos-nos da tese de

Milton Santos, talvez deva ser considerado em sua totalidade, compreendido

como “universalidade empírica”; o que requer do pensador o partir metódico da

constituição empírica universalizada expressa nos e pelos espaços da

globalização, apreendendo os elementos estruturais e processuais imanentes.

Outro não é o propósito desse geógrafo ao argumentar que:

Em nosso ponto de vista, um caminho seria partir da totalidade concreta como ela se apresenta nesse período de globalização – uma totalidade empírica – para examinar as relações efetivas entre a Totalidade-Mundo e os Lugares. Isso equivale a revisitar o movimento do universal para o particular e vice-versa, reexaminando-o, sob esse ângulo, o papel dos eventos e da divisão do trabalho como uma mediação indispensável (SANTOS, 1997, p. 92).

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E reforça mais adiante, respaldado em Wittgenstein, que: “A

totalidade é a realidade em sua integridade”, como totalidade de coisas e de

homens em relações e em movimento (ibidem, p. 94).

Na opinião do geógrafo Douglas Santos é preciso reconstruir a

relação sujeito-objeto, para que aquele que constrói o discurso não se perca em

enunciados positivistas que tratem de algo predeterminado e desposado do sujeito

concreto que vive espacialmente. A geografia, ou os geógrafos, devem assumir de

forma consciente a reflexão “sobre a espacialidade de forma sistemática”, uma

vez que “A geograficidade existe na cabeça de todos nós, senão não

conseguiríamos reconhecer nem a diferença entre a nossa casa e a do vizinho”

(FRANCO GARCÍA; GONÇALVES, 2003, p. 123). De modo desalienado em

relação ao objeto (espaço), este se torna a versão de verdade atingida pelo sujeito-

pensante-concreto que o teoriza, já que:

aquilo que o sujeito diz sobre o objeto é uma verdade da coisa e não uma verdade da relação. Mas as verdades não estão somente nas coisas, nós é que nos relacionamos com elas. Nós falamos das coisas, elas não falam por si mesmas (FRANCO GARCIA; GONÇALVES, loc. cit.).

Comungando com Thomaz Jr. (2003b, p. 6), defendemos a

necessidade de se:

Apreender esse processo por meio da “leitura” geográfica (que) é, antes de tudo, aprender a raciocinar geograficamente, isto é, aprender a identificar formas, estabelecer parâmetros de localizá-las territorialmente e desvendar o significado dessa ordenação.

Como expõe D. Santos, tradicionalmente destina-se o geógrafo

ao “desvendamento do significado das localizações”, sem deixar de “olhar para

o mundo efetivo” (FRANCO GARCIA; GONÇALVES, 2003, p. 126, 128).

Primordial a apreensão da lógica da distribuição da

(des/re)localização (MOREIRA, 2006, p. 172). O juízo da regulação espacial é

essencial a geógrafos e a quaisquer outros pensadores, pois quem não lê hoje o

mundo espacialmente não o compreende, “por que as categorias explicativas do

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mundo hoje são as categorias espaciais. Pela razão pura e simples de que o

mundo hoje se organiza em termos espaciais” (idem, 2003, p. 59).

Priorizar o tempo, esquecendo o espaço, enleia o idear

metafísico da história. Ao Reclus “a geografia é a história do espaço enquanto a

história é a geografia do tempo” (apud ANDRADE, 1994, p. 23).

Necessário faz-se revisitar a metafísica. Não a idealista. Mas a

que se ampara em pressupostos materialistas, no silogismo do concreto, com uma

perspicácia dedutiva que seja a mais científica e materialista possível, sem

incorrer no erro de querer separar em pensamento o que na realidade encontra-se

concatenado, como o faz a metafísica idealista (LEFEBVRE, 1995, p. 54, 65-71,

254-255 passim). O pensamento geográfico sobre o topos existente ou o

inexistente (u-topia) deve propor-se a distinção entre o que são pensamentos

metafísico-idealista e metafísico-materialista (RIBEIRO, 2001b, p. 79 passim).

Se, conforme Santos, existe a universalidade empírica (1997), esta se manifesta

hoje, segundo Moreira, como o que se cognomina de globalização, a concretizar

enfim o antigo sonho grego de universalização de determinados truísmos

metafísicos (direitos, democracia, justiça social, etc.), só que, diferentemente dos

de algures de outrora, atualmente efetua-se o manifestar em escala global de

elementos da determinidade do capitalismo, que incorporou aqueles conteúdos da

metafísica ao seu discurso e ao seu movimento revolucionário, grandemente

através das categorias de ordem, natureza, tempo, espaço e, especificamente,

mediante os universais metafísicos de mercadoria e valor-trabalho (MOREIRA,

2003, p. 58-60; idem, 2002a, p. 42-43). Por esse mecanismo ideológico, o capital

transforma idéias falsas, invertidas e irreais em fenômenos (pseudo)concretos,

pelo esparzir e renovar do complexo de “universais abstratos” (CHAUÍ, 1991, p.

95), concernentes ao movimento pelo qual as ideologias do capital manifestam-se

objetivamente como práxis, como pensamento praticado-objetivado e fetiche de

práxis estranhada e reentranhada no pensar.

No rastro do pensamento do lugar, que pode ser freio ou motor

ao realizar globalitário dos vetores fundamentais do capital, deve o geógrafo pôr-

se à caça. O ordenar e distribuir locacional porta o conteúdo da lógica espacial.

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O discurso concreto só será construído da melhor forma se

estiver claro que os espaços, como os sujeitos, são construções sociais materiais e

imateriais interdependentes dialeticamente, nem neutras e nem isoladas. O sujeito

que se desvencilha e se isola teoricamente das mediações e resultados do discurso

cria unicamente a noção de espaço abstrato, positivista, elaborado por quem se

quer neutro e anônimo.

O período atual de desenvolvimento econômico-material da

humanidade decreta a forma(ta)ção hegemônica do espaço como totalidade

empírica cuja expressão fenomênica sintetiza a planetarização dos universais

idealísticos do capital. Espaço-mundo como unidade da diversidade de lugares

enredados geograficamente à reprodução da mais-valia global.

Atentar à complexidade dialético-concreta da realidade requer o

relacionar do estar espacial com o ser social. O espaço é extensão corpórea e

concreta da sociabilidade (material e imaterial) porque, na dialética da

interpessoalidade, nas trocas de experiências e idéias cotidianas, perpetua e sofre

redefinições dos espaços interiores (intra-subjetivos), sobremodo se vontades e

inquietações permanecem às sombras por muito tempo, como dimensões

impossibilitadas de emergir, fazendo com os indivíduos venham a se encher da

sensação de vazio e buraco, até não mais agüentar.

Explode o cerne da dialética sócio-espacial: a alternância

dinâmica dos cheios e vazios de Jean Brunhes ou a dialética espacial dos fixos e

fluxos de M. Santos espelham as formas temporais de como as sociedades se

organizam espacialmente (MOREIRA, 2006, p. 172) mas, contraditoriamente,

atualmente o encher ou densificar do espaço abstrato capitalista não

necessariamente preenche o vazio espacial-existencial do homem por

humanidade. Esvazia-o mais. Ganha em espessura o (pré)espaço burguês pelo

rarefazer do social. O ser burguês está na raiz do não-ser ou do deixar-de-ser

alternativo, justapondo regras de seu dever-ser. Convém rememorarmos inclusive

que os “espaços vazios” (sic!) pré-capitalistas do território brasileiro serviram de

pressuposto ideológico ao expandir da sociabilidade e territorialidade burguesas

(RIBEIRO, 2001b).

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O estatuto “ontológico” do ser capitalista, substancialmente

cartesiano, dilacera, pela avalanche de ideologias alienantes, a ponte que une dois

continentes: o espaço subjetivo do ser e o espaço como condição objetiva do estar

(questões corriqueiramente aludidas como sujeito-objeto ou sociedade-natureza);

o divórcio forçado dessa unidade faz com que os conteúdos da essência

universalizada passem a ser vistos como formas de particulares pesos e medidas.

A clivagem do espaço e a compartimentação do social ocorrem de par com o

esfacelamento do ser individual, com a vida pessoal e afetiva sendo retalhada, o

eu desconhecido, o outro incompreendido e temido (contradição intraclasse), a

compreensão multifacetada na miríade de partes aparentemente desconexas que

perfaz o caleidoscópio sentimental, em que nada e ninguém parecem ter sentido,

senão o desconhecido sentido intencionalmente instituído pelo capital.

Cremos que a dialética entre fatores internos e externos é mais

complexa e profunda do que costumeiramente está-se a imaginar e que a síntese

que perfaz a identidade individual (personalidade), além de resultar de escolhas

conscientemente selecionadas e de influências coletivas indiretas e inconscientes

ao sujeito, possui uma não menos importante origem genético-biológica. Ou seja,

se há interação entre espaços internos e externos, a constituir a síntese histórica do

sujeito em termos comportamental e biológico, da mesma forma há,

compreendem certos psicólogos, a transmissão hereditária desses caracteres, por

ser o indivíduo um híbrido social e genético-biológico que contem traços da sua

época e das que passaram: elementos retidos na constituição comportamental-

biológica dos antecessores e às quais herdou geneticamente (distmia,

temperamento, ansiedade, etc.). É óbvio que isso se trata de propensão genético-

comportamental, haja vista que os estímulos do espaço experienciado pelo sujeito

podem transmudar os caracteres recebidos, sendo-lhes sobremaneira influente.

Sobre a questão do temperamento em particular, não são poucos

os psicólogos que creditam que advenha da incapacidade demonstrada pelo

sistema nervoso em adaptar-se ao ambiente em que vive e de suportar seus

estímulos, e que tal inadaptabilidade se faz passível de transmissão hereditária

(DORIN, 1980b). Parece que não é exclusivamente em nível de idéias ou

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ideologias que os mortos continuam a assombrar a mente dos vivos mas, em

menor escala que seja, em nível genético, que se poria como momento sintético e

dialético do binômio comportamento-ambiente registrado biologicamente pelo

ser, que o passaria adiante, aos descendentes, como estrutura físico-psíquica

potencialmente desajustada ou instável. A relação mundos interno e externo,

espaços interno e externo, assinala a simbioses de geografias da subjetividade-

objetividade herdadas, conflitantes e socialmente superáveis, na dialética homem-

mundo, indivíduo-coletivo, simbologias-realidade.

O alheamento do ser a si mesmo (decisão sobre a vida ou

história individual), do seu derredor (espaço de trabalho, do residir, atuar e por

que não, resistir) e do outro (profissional concorrente), salvo às devidas

proporções, confirma a clivagem que nega identidades reais para criar as factícias.

Ideologias todas armadas pelo capital.

O capitalismo embutiu sua identidade egoística no nível

microscópico, do eu. Indica-nos o francês Alan Bihr (1999, p. 69-79) que suas

encarnações expressam-se em várias frentes interagentes, como: a) no fetichismo

do produtivismo: com o desenvolvimento das forças produtivas projetando-se

como porta-bandeira ao engrandecimento material e moral dos sujeitos; b) no

fetichismo jurídico-político: de leis gerais e abstratas mantidas pelos “neutros”

aparelhos de Estado e; c) na fetichização da racionalidade instrumental: enquanto

crença na ciência, como algo em-si e redentora do social, desapega a análise da

finalidade que a norteia (acumulação do capital) e, por fim; d) no fetichismo do eu

hasteado pelo capital: na atomização dos membros da sociedade no pensar e agir.

No mundo da prevalecente “feira de sentidos”, qualquer

indivíduo em particular pode instituir o sentido que entenda corresponder à sua

existência, tanto em nível de identidades, como pertences, valores e modos de

vida (ibid., p. 172), porque estão todos a “convergir” à “individualidade

personalizada”, correspondente à ordem imperante que tranca a todos em

“mundos particulares privados”, desconectando-os psicossocialmente dos demais

e jogando as chaves fora (BIHR, 1999, p. 173).

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Com isso, o capital fragmenta ou debulha as subjetividades, não

de forma homogênea e inconteste entretanto, para impingir a sua identidade: a

idé(olog)ia que o capitalismo criou de si e infligiu ao restante da sociedade, nas

mentalidades individuais entupidas de narcisismo, alienação e consumismo.

Fonte negra da ignorância que tudo mais ensombra, as correntes

da ideologia escoam e se exprimem em arquétipos congelados de pensar.

Esparramando-se pelos dutos de sociabilidade como fios d’água que se derramam

em marolas ilusionistas a ludibriar os seres sociais com miragens de inverdades no

horizonte próximo, para a qual todos unidos devem pôr-se a remar.

A ampliação das tendências destrutivas ganha tonicidade no

pressentimento da insatisfação com algo ou consigo, com a autopunição

intensificando-se na fuga pelas toxicomanias, na caoticidade do trânsito ou

diretamente na morte “autoprovocada” pelo suicídio (RIBEIRO, 2001b). Produtos

da manifestação negativa da pressão-opressão da descarga compulsiva provocada

pela lógica social que sufoca os seres nos campos e nas cidades do globo, muito

lhes exigindo econômica e politicamente e pouco de realmente importante lhes

outorgando, negando-lhes o alimento do pão e do essencialmente belo (BETTO,

s/d), mercantilizando e dividindo os juízos histórico e estético (LUKÁCS, 1997).

A estandardização, como estatização e capitalização do ser, gera

inconformismos, inadaptabilidades porque longe não obstante estão as forças de

padronização de realizar-se por completo.

Esta uma das questões que devem ser avaliadas, porque

fundamentais ao inclinar metódico ao concreto: saber pensar a dialética do ser-no-

mundo/não-ser-no-mundo, o estar-aí/não-estar-aí, a presença/ausência. O homem

guarda muito de altruísmo, despreocupação e generosidade, porquanto a

generosidade a nada mais servir do lado burguês que ao mito da fraternidade

(SARTRE, 1999, p. 136). Essas as limitações do humanismo certa vez declaradas

como alvitre teórico propenso a “desarmar o proletariado” (ALTHUSSER, 1999,

p. 44) e que mal logram disfarçar os fins políticos nada humanistas (LEFEBVRE,

1981, p. 63). Inclusive porque mesmo na suposição de o humanismo desejar a

intervenção pacifista, a ingenuidade e o romantismo que pregam – nos casos em

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que se ausentam ideologias escusas dominantes – contribuem ao imobilismo nos

momentos de choques sociais mais agudos. Até que, no fim, diretamente ou não,

se criva de conservadorismo; idéias abstratas e incondicionais do que desejam que

a sociedade seja se antepõem ao imperativo de criação anterior das condições

materiais propiciadoras de sua concreção54.

Essas formas de se pensar, que vão do senso-comum à lógica

(matematizada) do pensar científico-acadêmico, esboçam-se genericamente em

modelos e métodos científicos com conteúdos formais, fragmentados e

antidialéticos, porque não se poderia esperar nada distinto dum mundo pensado,

feito e vivido de maneira tão segmentada e segregadamente.

O espaço criado pelo “sujeito” capital apresenta-se como prisão

ou gaiola de ferro – para utilizarmos de expressão weberiana. Desse modo sendo-

o reproduzido alienadamente pelo ser.

Como conteúdo e continente do ser alienado, a espacialidade

arquitetada encontra seu respaldo na superestrutura ideológica golfada por todos

os canais da sociedade, porque a estatização e mercantilização do ser amparam-se

em compósitos ideológicos que abraçam e se arremessam desde as pistas das

ciências às formas mais cotidianas de se enxergar o real, porque sempre teve por

fina união o mundo do trabalho (material ou teórico que seja) sustentação com o

mundo do não-trabalho, inda que difícil o divisar da intersecção.

1.2 Um pouco mais sobre (teoria do)

método: a reta e o círculo, o

pontilhado... a espiral

Totalidade aberta e totalidade fechada não de agora ouvimos

falar. Tampouco sobre parte e todo, fragmento e totalidade, estrutura e função,

forma e conteúdo, aparência e essência, fragmento e soma, quantidade e 54 Também é importante assinalarmos que as posições sobre o humanismo não são unânimes, havendo tipos de humanismo que poderíamos tomar por crítico-radical, como os manifestos por Sartre (1998b) e pelo “humanismo socialista” de Lukács (1997).

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qualidade, identidade e diferença, o (neo)positivo e o dialético, continuidade

conservadora e ruptura violenta, criticidade e radicalidade, todo e totalidade55,

totalidade e totalização56, entre várias outras categorias de inquirição e construção

do discurso científicos. Temas que remetem ao método e que não se resumem

puramente a opções fortuitas de observação e postura; conquanto o aleatório

apresentar-se a muitos como o melhor procedimento de coordenação

investigativa: como metodologia do ajuntamento anárquico.

O método é o que tenta transpor a ordem do mundo ao plano do

conhecimento teórico, sistematizando cognitivamente em teoria a processualidade

da totalidade social, com o que se valida o ponto de vista que tem a teoria como

“um todo, um sistema” (LEFEBVRE, 1968a, p. 102) que atua pela análise e

ajuntamento de um conjunto de fatos (id., 1995, p. 56), para uns como “rede de

conceitos” (M. Santos), para outros rede articulada e de conjunto da experiência

(LAING, 1978), ou quem sabe ainda “explicação ou interpretação intelectual de

um conjunto de fenômenos e significações (...) que estabelece a natureza, o valor

e a verdade de tais fenômenos” (CHAUÍ, 2000, p. 157-158).

Mas se a teoria é a rede de conceitos, são eles a forma do

conteúdo (LEFEBVRE, 1968a, p. 104) que expressam a lógica do conteúdo ou a

lógica da qualidade (idem, 1995, p. 141) que a sociedade apresenta em seu

movimento dialético. Por isso é que a forma deve se reobservar continuamente no

confronto com a essência para se saber se inda a espelha ou se a deturpa

ideologicamente. A tríade práxis(meta)teoria como discurso sobre o discurso

(científico) baseado no real (MÉSZÁROS, 1993b; SILVA, 2000) tem por função

desvelar de modo utópico (COELHO, 1980) ou utópico-científico (RIBEIRO,

2001b, 2004c), a partir do futuro engravidado no presente, as crias passíveis de

ganharem vida pelas mãos dos seres conscientes que queiram dar as suas marcas

ao espaço que se encontra privadamente apossado (RIBEIRO, 2004c), mas

55 Silva (1991) distingue esses dois conceitos, negando a posição de Milton Santos (1997, p. 93 et seq.), que toma todo e totalidade por sinônimos, sentido único distinto apenas do de “partes”. 56 Valendo-se especialmente de Sartre e Lefebvre, Santos (id., p. 95-96) lembra-nos que a totalidade é o resultado e a totalização, processo. A primeira é a totalidade produzida (mas sempre incompleta, por re-fazer-se) e a segunda a totalidade em produção. Podendo as duas convergir e conviver em um mesmo momento e lugar.

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obviamente com o justo cuidado para que o discurso sobre o discurso, a

metalinguagem portanto, não se perca em “‘diálogos’ sem fim”, como inútil

“fuga para frente” (LEFEBVRE, 1968a, p. 108), isto é, para que a transcendência

não se faça subterfúgio sofístico, de uma metalinguagem abstrata que queira se

passar por filosofia a ilusoriamente transparecer como “decodificação absoluta” e

“hermenêutica soberana”, buscando atingir verdades absolutas-eternas-puras-

perfeitas-transcendentais ao imperfeito-limitado pensar humano (idem, 1995, p.

32, 90), e que quanto mais longe do presente olha mais suscetível de cegueira

pode estar – como pensara Paul K. Feyerabend. Preferimos ter a metateoria,

pensando materialisticamente, como forma de viagem teórica aos mais profundos

alicerces do espaço concreto.

O método como ponte teórica do conhecimento erigido sobre o

terreno da sociedade, sem largar vistas da prática e não enfiado nas nuvens

filosóficas do idealismo, serve como azimute que se magnetiza e reorienta

segundo as forças materiais-objetivas em cena, não separando julgamentos de

valor de juízos de fato no processo de construção do conhecimento – como

operam os idealistas. Fazendo uso para isso, tanto da abstração (redução do

conteúdo) como da concreção (retorno para o concreto).

Em tese, haveria aqui leve semelhança com a concepção

platoniana de método, que se poria como passaporte ao saber verdadeiro, liberto

do conhecimento sensível (opiniões, crenças) e do seu recheio de aparências e

ilusões. Platão percebia o método como a forma racional que contribuía para que

o conhecimento avançasse pela discussão racional, como discussão de teses

contraditórias que, negando-se constantemente, possibilitaria que se chegasse à

essência da coisa, à idéia universal. Por isso Platão nomeou esse método de

dialética, distinguindo-se do dos atenienses que a tinham como arte da retórica.

Ao Aristóteles a dialética conseguiria indicar dar o ponto final

ao conflito de teses, impossibilitando que se descerrasse a verdade. Endossou

então o método dos silogismos (indução e dedução) como fundamento da teoria

do conhecimento, estando no conjunto das três proposições o meio mais indicado

para que se tocasse a conclusão verdadeira.

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No milênio em que mais prevalece a escolástica o conhecimento

vê clivar-se razão de fé devido às considerações do platoniano Santo Agostinho

(354-430). Os primeiros quinhentos anos viram surgir teorias racionais quase

heréticas que pregavam o livre-arbítrio da investigação racional humana, como a

do irlandês João Escoto (800-877) que afirmava prevalecer a razão (verdade de

Deus) sobre a religião (devoção a Ele). Quase outros quinhentos anos depois

surgem os protetores da fertilidade da união entre razão e fé, o conhecimento da

natureza aumentando a fé no Criador, como pensava o Santo (influenciado pelo

aristotelismo) Thomas de Aquino (1225-1277).

Mas foi a partir do século XVII, durante a modernidade

portanto, que a necessidade do método se expôs mais urgente a um sujeito que

questionava se poderia alcançar ou não a verdade das coisas, desconfiando dos

conhecimentos herdados – como os conhecimentos sensíveis, pressentidos como

crescentemente ineficientes para postular a função de guia no mundo renascido.

Só, esse sujeito esperava contar apenas com o pensamento. E da

solidão e do afã de conhecimentos verdadeiros é que vem acudir o método.

Descartes declarou-o como “regras certas e fáceis, graças às

quais o que as observa exatamente não tomará nunca o falso por verdadeiro e

chegará, sem gastar esforço inutilmente, ao conhecimento verdadeiro de tudo

aquilo que seja capaz” (2005, p. 81). Feito isso, identificou as suas três principais

regras: a) certeza: segurança; b) facilidade: economia de esforços inúteis; c)

auxílio: todo o conhecimento possível pode ser alcançado pelo entendimento.

Bacon proclamou o método como o modo seguro de “aplicar a

razão à experiência”, investindo o conhecimento lógico aos dados oferecidos

pelo conhecimento sensível; enlevando a veracidade mediante o método

experimental que, por seus esforços, representou a versão pioneira do empirismo,

ao prezar que todas as proposições dependem da experiência para ser avaliadas

quanto à veracidade.

Certo de que a razão era a condição habilitadora para o destapar

das leis da natureza e da iminência da necessidade duma nova teoria e

metodologia para o desenvolvimento da humanidade, tendo-se por autonomizadas

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as disciplinas de teologia e filosofia, denotava Bacon que “O conhecimento e o

poder humano são a mesma coisa, pois a única forma de se conquistar a natureza

é obedecendo-a” (cit. in. OLIVER, 1998, p. 67).

Sobressaiam-se no Renascimento: “A observação, a

quantificação, a mensuração, a descrição, o conceito de função e a preocupação

com a elaboração de leis (que) passaram a ser os novos referenciais do

pensamento” (LENCIONI, 2003, p. 55).

Na tal busca pela verdade, a empreitada baconiana recebe

destaque no fato de o saber racional dever esgueirar-se dos quatro “ídolos do

saber”, que de todas as formas quer impedir-lhe de enflorar, sendo-os:

Ídolos da tribo (idola tribi): advindo da tentativa de se querer, por meio das

projeções de desejos e esperanças, assacar à natureza estruturas as quais ela

não detêm, elaborando interpretações errôneas sobre suas leis, comprovando

que o julgamento do homem sobre a Natureza não poderia refletir o mundo

com objetividade;

Ídolos da caverna (idola specus): tendência demonstrada pelo pensador de

deixar que características pessoais específicas, decorrentes de sua formação

social, influenciem no estudo da natureza, tendo como conseqüência o afastar

da verdade já que, entendeu Durant, para a teoria baconiana “A verdade não

tem partido” (2000, p. 139);

Ídolos do foro (idola fori): considerado o grande perigo ao avanço da ciência,

atine à propensão a se usar palavras indefinidas, guiando-se o pensador pela

linguagem mais comum do que pelas explicações científicas, pois a

comunicação estabelecida entre os homens faz com que venham a tomar, em

sua mente, por verdade o que não passam de mendazes suposições57,

querendo ter por verdadeiro nada mais que filosofia teatral provida de

representações cênicas – qual o retratado por Platão, que tomou por real

muito do que sua mente conjeturava; 57 Durant (2000, p. 139) ressalta-o como Ídolo do Mercado, atrelando-o ao aumento do comércio e da associação entre os homens, com uma multidão de palavras sendo formadas inexatamente, causando a obstrução da mente.

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Ídolos do teatro (idola theatri): relaciona-se à disposição demonstrada pelo

pensamento em se aceitar doutrinas, fazendo com que a retórica muitas vezes

ocupe o assento da verdade – o que pode levar os preceitos da tradição a

enganar o homem.

Com os devidos cuidados metódicos com os ídolos, Bacon

apostava na razão como elemento indispensável à construção do saber.

O traço comum a essa charneira renascentista talvez esteja na

avaliação feita por Chauí (2000, p. 159) de que o método “sempre teve o papel de

regulador (...) guia o trabalho intelectual (produção das idéias, dos

experimentos, das teorias) e avalia os resultados obtidos”.

Então, o método regula e auxilia o sujeito na análise e

construção do conhecimento da realidade. Buscando a verdade de modo racional.

A consciência é o passaporte, sugere Cleverson Leite Bastos

Keller58.

Método como espécie de vereda onde percorre a carruagem da

razão. Conforme Keller (1996, p. 84):

Método é um procedimento de investigação e controle que se adota para o desenvolvimento rápido e eficiente de uma atividade qualquer. Não se executa um trabalho sem adoção de algumas técnicas e procedimentos norteadores da ação.

Todavia, como atua ele diante de toda a diversidade que compõe

o real, seja em formas, movimentos, funções, arranjos e contextos?

Antigo e denso é o debate sobre isso.

A Filosofia desde priscas épocas e lugares onde Aristóteles

exercia seu peripatético estilo, julga que ao lado dum método geral devem

marchar métodos particulares, convenientes à análise de determinados objetos. Ao

Aristóteles então, os métodos deviam distinguir-se de acordo com o objeto

58 “A consciência de si é uma volta ao sujeito que conhece sobre si mesmo, tornando-se assim ele mesmo objeto do próprio conhecimento em um desdobramento que é característico do que se chama cons-ciência (ciente duas vezes), ‘sei que sei’ ou ‘saber que sabe’” (1996, p. 82).

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focado: o método da química diferenciar-se-ia do da geometria e esse tanto do da

história como da física, e assim sucessivamente.

Em alguns períodos a Filosofia chegou a apoiar um único

método.

O fundador do método experimental, Galileu, fez isso com o

método matemático, recomendando-o a todos os conhecimentos da Natureza.

Descartes sustentou também a existência dum único método, independentemente

do objeto focado, porque a ele o procedimento de ordenar em nexos contínuos as

idéias deveriam ser universais (mathesis universalis), ou seja, como o meio eficaz

ao conhecimento da ordem necessária das idéias, válido a todas as áreas do saber,

da Filosofia às demais. Outros filósofos do final do século XIX compartiam da

opinião de que apenas um único método seria mais profícuo e, como se achavam

espantados com o desenvolvimento da física, acusaram que o método usado pela

“ciência da Natureza” seria o mais apropriado aos estudos, como o meio elencado

ao descobrimento dos encadeamentos causais do real, fossem eles naturais ou

humanos.

A proposta de um único e comum método para alguns não é

mais válida, principalmente por conta do prestígio que a fenomenologia59 do

filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938) e a corrente do estruturalismo

exerceram entre os campos do saber, asseverando que cada campo do

conhecimento deva ter um método próprio, adequado à natureza de seu objeto, à

forma como o sujeito dele se aproxima e de como a verdade é concebida dentro de

cada um desses campos.

Continuemos a exposição sobre o método no universo da

filosofia e no mundo de cada ciência para posteriormente termos mais referenciais

para subsidiar sua discussão no âmbito da ciência geográfica.

A complexificação social engendrava a compartimentação

científica que respectivamente projetava a divisão nas “técnicas” (metódicas) do

olhar.

59 Termo forjado em 1764 pelo físico alemão Johann H. Lambert (1728-1777).

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Destarte, em relação à classificação dos métodos nos domínios

das ciências, Chauí (2000, p. 159-160) sobreleva:

Método matemático, dedutivo ou axiomático: o ponto de partida é um

conjunto de axiomas; encaixa-se melhor no estudo de objetos que existem

apenas idealmente, como pensamento;

Método experimental, hipotético ou indutivo: demonstra-se proveitoso às

ciências naturais (física, química, biologia, etc.) que observam seus objetos e

realizam os experimentos para formular e verificar as teorias com base em

hipóteses lançadas sobre os objetos; guiando os experimentos e avaliando os

resultados;

Método compreensivo-interpretativo: ajusta-se melhor às ciências humanas

(psicologia, geografia, sociologia, história, antropologia, etc.) que examinam

o sentido de ações, práticas e comportamentos, institucionais ou histórico-

culturais, desenvolvidos por homens que buscam desvendar o sentido do que

produzem, vivem e compartilham.

Já no respeitante aos domínios da Filosofia, quatro traços

destacam-se aos variados métodos empregados:

Reflexivo: inicia-se pelo autoconhecimento ou auto-análise do pensamento;

Crítico: investiga os fundamentos e as possibilidades do conhecimento

verdadeiro;

Descritivo: relata a essência de cada campo do saber e as formas da ação

humana;

Interpretativo: explicita as formas da linguagem e o sentido de objetos, fatos,

instituições e práticas em suas origens e mutações (ibid., p. 160).

Parafraseado por Marx na primeira observação do capítulo II da

Miséria da filosofia (1965), Hegel considerou o método “a força absoluta, única,

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suprema, infinita, à qual nenhum objecto saberia resistir; é a tendência da razão

para se reencontrar, para se reconhecer a si própria em todas as coisas”.

Nessa concepção que o tem como portal racional ao universo do

saber, o método é o amparo do sujeito cognoscitivo ou o “instrumento racional

para adquirir, demonstrar ou verificar conhecimentos” (CHAUÍ, 2000, p. 157).

Não é difícil entretanto de se encontrar na literatura científica

inúmeras indicações de possibilidades de tratamento metódico e, por conta disso,

seria praticamente impossível citá-los todos60. Apresentamos não obstante alguns

exemplares metódicos, quer atinentes ao ramo da filosofia ou doutras ciências,

porque a geografia pode deles se apropriar para, analisando-os e comparando-os,

selecionar elementos que possam servir-lhe em sua odisséia pela elucidação da

verdade, para suplantar a aparência e alcançar a essência do espaço geográfico61.

Como instrumento de que se vale o pensador para avaliar a

realidade, é como podemos rotular o método. Se o faz sem se rever no processo

(relação sujeito-objeto), separando os elementos do real (coisas-fenômenos),

procede metafisicamente, apartando na mente o que de fato são inseparáveis;

60 O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, na Apresentação que fez aos públicos brasileiro e mexicano do livro Amazônia, de autoria da arqueóloga norte-americana Betty J. Meggers (1977), definiu-o como um importante trabalho amparado pelo método comparativo. Lukács, versando sobre o universo cultural do artista (seja-o literato ou outro) nos escritos sobre a arte e a estética, trabalha com a noção de tipicidade (herdada de Marx e Engels) e, ao lado dessa, acresce o método narrativo, com o qual busca contrapor-se ao método descritivo para expressar a realidade na literatura a partir dos tipos marcantes dos personagens que devem ser narrados ao leitor e não somente descritos, por que: “as coisas podem ser descritas, mas os fatos concernentes aos ‘destinos humanos’ precisam ser narrados”, concluiu Frederico (1997, p. 53) em estudo sobre o método do realismo empregado pelo húngaro a partir de 1930. E isso por compreendê-lo “como o único método apropriado para se obter uma representação artística correta (...) na ótica do que julgava ser a teoria marxista do conhecimento” (ibidem, p. 32). Para Lukács o artista ou escritor deve denunciar, tomar partido por intermédio dos personagens, diante de fatores sociais que impedem o desenvolvimento da humanidade, cerceando a liberdade. Através do método do realismo que adotava “como caminho para se chegar à verdade e, também, o critério para se julgar a produção artística”, Lukács opunha-se ferrenhamente ao que julgava serem posturas anti-realistas que quebram a unidade entre essência e aparência, fazendo reproduzir falsamente a realidade, como o expressionismo (que deforma a aparência para realçar a essência) e o naturalismo (prisioneiro da aparência fetichizada) (id., p. 34). 61 Exemplos podem ser tomados dos métodos supracitados. O método comparativo foi utilizado pela geografia (tradicional), podendo ser recombinado às premências do mundo e da ciência geográfica atual, tratando das novas diferencialidades espaciais de forma não contemplativa e isolacionista. Diante do avanço dos jogos de linguagem, das metáforas e do descuidado linguajar das teorias pós-modernas, quem sabe os métodos narrativo e do realismo lukacsiano podem ajudar a geografia a revitalizar sua linguagem, desenvolvendo uma geografia mais próxima do mundo da vida sem que se perca a criteriologia científica.

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ficando-se unicamente na forma dos entes que vicejam aos olhos: como o que se

verifica no idealismo platônico que se projeta do concreto palpável à idéia abstrata

da coisa, a posteriormente querer explicar as coisas reais a partir da idéia da coisa

em si, da essência eterna ou o arquétipo; como uma idéia concreta que ganhando

a perfeição abstrata envereda-se antecipadamente a explicar a matéria.

Procedimentos semelhantes ao do grego tiveram os irmãos Bauer (Bruno, Edgard

e Egdbert), recriminados por Marx e Engels (2003) de cunharem entidades

abstratas a querer encarnar-se no concreto (frutos vulgares e reais), para que o

concreto do abstrato fosse produzido.

Impossibilitada está ontologicamente de desunião a relação

sujeito-objeto, apartando a consciência das coisas – posição diametralmente

oposta a das premissas heideggerianas –, como a separação do homem de seus

pares de vez que o homem só se enriquece verossimilmente quando é objeto (de

luta, amor, desejo e paixão) para outro “homem”, ninguém sendo esquecido na

rede de proteção mútua.

Atuando cônscio da relacionalidade tensa e sistêmica entre os

diversos, o pensador aproxima a mente do objeto, descrevendo-o como ele é e não

como pensa ou quer que o seja. Dessa forma o sujeito apreende a natureza em sua

infinita complexidade; diferentemente do que faz o método cartesiano que

objetiva compreender a natureza com uma análise que ao dissecá-la em naturezas

simples, indo do complexo ao simples, tenta reconstituir o mecanismo geométrico

de uma realidade natural vista como física e fisiológica.

Já sob outro prisma, o do método materialista-dialético de se

raciocinar, evita-se tomar a coisa, fenômeno ou o ser in abstract, por fora da

história e da prática social. Ao Lefebvre (1981, p. 70) o método se põe como:

o alfa e o ómega, o ponto de partida e de chegada do marxismo. Que é um método? No trabalho do pensamento científico, o método desempenha o mesmo papel que o instrumento no trabalho manual.

Na continuidade da conversa sobre o método com os marxistas,

polemiza sobre “O que é esse método? É a consciência da forma, do movimento

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interno do conteúdo” (id., 1995, p. 21). “Materialismo histórico significa:

clarividência”, o que as pessoas dizem, pensam, são, de acordo com o que fazem,

e é por isso que o marxismo pode ser reputado como a “sociologia ‘científica’”

dotada duma “concepção de mundo”, de uma “filosofia (que) não se separa da

ciência, da prática, da acção” (LEFEBVRE, 1981, p. 65, 70).

O marxismo segue a doutrina do movimento, como teoria em

movimento. Movimento combinado entre os domínios do concreto real e concreto

pensado.

A viveza da inovação teórica realizada por Marx fez o sociólogo

norte-americano Albion W. Small considerá-lo ter “nas ciências posição análoga

à de Galileu nas ciências físicas” (cit. por FERNANDES, 1995, p. 75).

Para Louis Althusser:

O materialismo se apóia (...) sobre a distinção entre a matéria e o pensamento, entre o real e seu conhecimento, em outros termos mais precisos, sobre a distinção entre o processo real e o processo de conhecimento; sobre a primazia do processo real sobre o processo de conhecimento; sobre o efeito de conhecimento produzido pelo processo de conhecimento no processo de compatibilização do processo de conhecimento com o processo real (1999, p. 43-44).

A lógica dialética tenta trazer para o terreno do concreto

pensado a lógica que dirige a concretude do real, cuidando para que não se

estabeleça cisão e rigidificação entre o concreto real e o concreto pensado.

Qualidade que o diferencia indubitavelmente das premissas pós-

modernas de “investigação”, que não querem ponte para nada e nem oriente a ter

por destino. Distanciando-se também do mecanicismo cartesiano que parte do

complexo ao simples para se fazer a suposta análise elucidativa da totalidade; à

dialética materialista o caminho a se perscrutar é tanto do simples ao complexo,

como o inverso, da análise (parte) à síntese (todo) voltando-se à análise, já que

uma não existe sem a (por fora ou desligada da) outra.

O francês Frank Lestringant (1999, p. 35, 36) bem ao propósito

nos avisa das similitudes havidas entre o método pós-moderno e a teorização

montaigneana ensaiada nos albores da Europa Renascentista, expondo-a dotada

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dum “atomismo epistemológico”, ao qual a perspicácia de seu compatriota Lévi-

Strauss atinou como indicativo da “esquizofrenia ontológica” a imperar no

cérebro de Montaigne.

Podemos julgar as duas correntes explanadas como racionalista

e irracionalista. Qual a diferença metódica existe entre elas? À primeira o método

transparece como conjunto de parâmetros (dialéticos ou cartesianos) elencados e

escalonados sistemicamente como rede teórico-conceitual armada para se atingir a

verdade dos fatos. À irracionalista tem-se enaltecido a questão da validade dos

fatos, com o seu “método” (senso científico ou opinativo) se lhes propondo mais

acertado ao caráter naturalmente assistemático e descontínuo do real, ou porque o

real mostra-se inextrincável à sondagem da mente humana.

Para muitos pós-modernos o sistema não existe, senão como

todo recheado de subtotalidades. A aleatoriedade e a mente vazia constituem-se

no primum móbile da averiguação científica.

O ecletismo aí ganha realce, quando a lacuna do método

investigativo é “inteirada” por conceitos-respostas de outros métodos e teorias

capturadas a esmo. O que faz com que o ecletismo e o diletantismo sejam

colocados num patamar mais baixo de cientificidade que o ceticismo e o

pluralismo, que ao menos se demonstram preocupados com a razão; aspecto não

presenciado nas duas primeiras posturas.

David Harvey (1996), em censura ao desconstrucionismo, que

comprova asco pelas causalidades do real, fato comum aos pós-modernos,

sentencia trabalhos como o de Giddens como frágil “literatura filosófica”.

Seria o mesmo que afirmar que a natureza concebida por

Leibniz (ou o espaço natural), como produto oriundo do processo essencial,

perderia seu conteúdo metafísico e idealista, apreensível ou não pela mente

humana. Seria o mesmo que dizer que a res extensa de Descartes (ou o espaço

geométrico), como produto oriundo da res infinita, perderia seu caráter metafísico

e racional, apreensível pela mente humana. Em termos de ciência geográfica,

concordar com os pós-modernos seria o mesmo que dizer que a natureza, o espaço

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natural ou o espaço social perderiam a potencialidade de compreensibilidade, pois

não haveriam nexos causais, animados por quaisquer processos que sejam.

Na ótica do pluralista, ao invés de aprimorado e

recontextualizado o método, de modo que acompanhe as transformações do

concreto real antes verdadeiramente de se saber se se encontra ele exaurido, o

cientista vai o (e se) encaixando, porém não sem qualquer critério. Na ótica do

eclético dá-se a absolutização da aleatoriedade, ficando o cientista a pular de

galho em galho nos horizontes estreitos do saber fragmentário, em defesa da

“liberdade” que quer fugir das redomas ortodoxas do erro com o simples desejo de

não se pôr a arriscar, a errar e acertar.

Debate profícuo a esse respeito deu-se entre Lefebvre e

Althusser, quando o primeiro rebateu as declarações do segundo sobre a

existência do vazio e da indeterminância, desferindo-lhe uma saraivada de

críticas; as mais categóricas contra o vazio teórico. Ponderou Lefebvre (1968a, p.

80): “Ora, o vazio teórico, por mais que se confirme, só pode se declarar em

nome de conteúdos ainda mal apreendidos, ignorados ou mal elaborados

conceitualmente”.

Jogar por terra o método se no cientista pode estar o erro e optar

pelo silêncio não resolve a questão. Contra o silêncio da ignorância deve avançar

a ousadia da reflexão científica, para se penetrar na “conspiração dos silêncios”

(ibidem, p. 81). A superação da ignorância dá-se pelo momento de dúvida

(espírito crítico), de crise do pensamento, de ceticismo (que nega verdades

absolutas isentando-se em elevar a razão às verdades relativas), de relativismo,

sem nessas fases se conservar (idem, 1995, p. 97).

Sem respostas absolutas, desgeografadas e ahistóricas, o saber

geográfico atém-se à máxima consciência espacial possível.

É preciso buscar o grão de verdade dos fatos ou o “grão de

verdade do erro relativo” (LEFEBVRE, 1995, p. 182) através do “relativismo

dialético” (ibidem, p. 97-98) porque o verdadeiro e o falso não são simples

opostos (id., p. 8-9) que possam ser pela falseabilidade popperiana discernidos.

“As verdades são provisórias, condição necessária para a produção infinita de

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conhecimentos novos” (SROUR, 1978, p. 51). Ou como retratou Frossaert, é

preciso avançar a “máquina teórica marxiana”, estudando-a “peça por peça”,

observando onde parou, avaliando quais peças elaboradas pelos mais engenhosos

se mostram valiosas e quais devem ser rejeitadas pelo uso que já as comprovaram

defeituosas (ibidem, p. 18. Prefácio de R. Frossaert).

A dialética continua o trabalho de construção do conhecimento

aonde estaciona o ceticismo, que apenas nega a “verdade” conhecida.

Prosseguindo a dialética a negar a verdade teórica negada, para superá-la.

Há então uma problemática posta entre os que acusam a

realidade como objetivamente indeterminada, inapreensível e silenciosa e, noutro

extremo, os que creditam a indeterminidade como subjetividade política adotada

diante do mundo (de modo consciencial ou não), tornando-se necessário o

caminhar em meio ao silêncio socialmente fabricado, desentranhando a

complexidade ensombrecida pelos interesses sub-reptícios, desmascarando as

posições teleológicas hegemônicas que estimam a imanência objetiva da

desteleogicidade a acalentar o real e o social.

Esta uma das grandes querelas entre racionalismo e

irracionalismo. O irracionalismo faz naturalizar o imaginário social construído

pelo ocultismo burguês – que se impôs ao obscurantismo medievo –, vergando-se

a tramar manobras ideológicas para que os seres se curvem subjetivamente à

manifestação fenomênica do real.

Por quererem a materialidade por pecaminosa e infrutífera a

qualquer descoberta, fica-se com a mente solta para vagar convenientemente ao

bel prazer das proposições topadas.

Não que deva haver cativeiros em empedernidas redomas

científicas, só que querer ficar ao vento e relento talvez só alargue o problema.

Temos então posturas variadas, muitas das quais com outras

guardando similaridades e sinteticamente podendo ser classificadas como as que

abaixo são arroladas – nelas não se limitando e sob outros enquadramentos e a

partir de outras visões podendo ser apresentadas –, quais sejam:

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Positivismo: bastante expressivo no século XIX, a ponto de ser considerado

algo mais que uma teoria científica, interpondo-se como doutrina geral a

desenvolver a relação da sociedade-natureza-ciência. Supervalorizando a

teoria em detrimento da prática – marginalizada por irônico que se nos pareça

– não (quiseram?) se apercebeu que essa forma de idear condiz em prima

facie com a organização prático-instrumental do mundo, assente na relação

entre os que mandam e os que obedecem, entre os que positivamente se

encontram evoluídos e os de estado primitivo, como reza a concepção

etapista-evolutiva comteana dos Três Estados (teológico-fictício, metafísico-

abstrato e positivo-científico). Os enunciados centrais do positivismo

glorificam: a) a concepção de mundo como o senso-perceptivelmente

apreendido; b) a separação da filosofia da/na ciência62; c) o tratamento dos

fenômenos como coisas e as suas relações como relações entre coisas

(coisificação de fatos e fenômenos); d) a apreensão do conhecimento somente

por intermédio do método experimental, redundando no triunfo da técnica

sobre o pensar; e) a substituição da metafísica pela ciência, em busca do

saber puramente objetivo-geral-progressivo-afirmativo que, tendo à frente as

ciências sociais, pudesse guiar a organização da sociedade e substituir as

antigas crenças teológicas ou metafísicas, fazendo com que no formalismo

lógico da ciência positiva a contradição fosse quase sempre vista como

absurdidade ou atestado de falseabilidade; f) a concepção, em analogia à

natureza, de que cada membro, indivíduo ou órgão do corpo social possui a

função a que deve se dedicar para o bom funcionar de si e do grupo (nesse

sentido a idéia de sociedade e natureza-máquina dominante no século XVIII,

inspirada no modelo físico newtoniano-cartesiano, fez-se substituída pela de

natureza-orgânica, na qual a dinâmica da sociedade passa a ser associada à

dinâmica biológica do mundo natural orgânico);

Fisiologismo: teoria sociológica parida no último quartel do século XIX e

que deteve predominância até as duas primeiras décadas do século XX. Tinha

62 A ciência é vista como pensamento superior e a sociologia, pendida ao estudo das complexas relações estabelecidas entre o homem e a cultura, se colocaria como plataforma da reforma social.

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como característica essencial tomar a sociedade por organismo vivo ou

biológico, de membros a se unirem organicamente no todo ideal. Assim, o

que outras teorias se lhe apresentassem como fenômenos de contradições

estruturais (classe) a ideologia burguesa funcionalista tomaria por fenômenos

intersubjetivos ou interpessoais (disfunção-tensão-contrariedade momentânea

entre indivíduos-células da sociedade-organismo63). Esse pressuposto teórico

é atrelado muitas vezes aos escritos do inglês Herbert Spencer (1820-1903),

que na opinião de E. E. Evans-Pritchard foi o antropólogo social que, a par de

Émile Durkheim (1858-1917), mais despertou a atenção para a análise da

etnologia filosófica de cunho funcional64, tendo como maiores defensores os

russos Paul Lilienfeld e J. Novicow, o alemão Albert Schäffle e o francês

René Worms. Nos EUA, o funcionalismo se fortalece com a chegada do

inglês Bronislaw Malinowski (1884-1942) em 1926 e de Alfred Reginald

Radcliffe-Brown (1881-1955) no ano de 1931. Entretanto, inversamente à

imaginação do naturalismo funcionalista, a teoria que valida e se revê no

método não pode ser entendida externamente à teia de interesses individual e

social do ser histórico-geográfico dividido. A opinião de Srour (1978, p. 45)

é que, na raiz do processo,

Quando a sociologia funcionalista norte-americana assenta seu método de interpretação da realidade social na procura dos “efeitos socialmente úteis” (função social como perpetuadora da ordem social vigente), mergulhamos no conservadorismo meticuloso da burguesia monopolista.

63 A variante teórica do organicismo na Geografia é representada por Humboldt nos Quadros da natureza, com influência do romantismo e do idealismo da época (BAUAB, 1999, 2001). 64 Leslie A. White (1978, p. 120-122) opina que em Spencer a comparação entre organismos sociais e biológicos é efeito de metáfora e linguagem figurativa de analogias traçadas entre ambos, por estar o pensador implicitamente a versar sobre o sistema, empresa a que o próprio Marx teria se valido n’O Capital com o uso da expressão de organismo social, como o fizeram também Durkheim e Comte. Todavia, cremos ser esta uma comparação inapropriada, pela discrepância teórico-terminológico-praxista dominante entre esses autores. Basta que citemos, também, por exemplo, o funcionalista Talcott Parsons, que entendia que a questão da luta de classes – caso não se constituísse em contrariedade momentânea – não se encerraria com a supressão da sociedade burguesa, entendendo-a como uma dimensão eternitária das classes sociais.

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Neopositivismo: assessorado pelas modernas técnicas estatísticas, análises

fatoriais e por cartogramas mais precisos – que de forma individual ou por

cruzamento fatorial aprecia elementos considerados pelo inquiridor como

dignos de análise, por servir-se de alicerce técnico altamente modernizado –,

essa vertente tem por guia de procedimento análises restritas e

crescentemente atomizadas, que seguem os princípios do formalismo-lógico

(confundido com a lógica formal65), da não-contradição e do terceiro-

excluído, com uma análise dita sistêmica mais mecânica que sociológica

(contraditória). Tal corrente teórica e metódica originou-se do Círculo de

Viena, tendo sido Popper um seu ilustre divulgador;

Estruturalismo: mesmo que tenha permitido às ciências humanas a criação de

métodos próprios em consonância com os objetos, com leis científicas

avessas à relação (causa-efeito) mecanicista e de ter mostrando que os fatos

humanos assumem a forma de estruturas66, a crítica comum tem-no como

meio congelado de se exprimir a “contradição”, que por antítese, faz abolir o

movimento da dialética social ao se desprezar as forças desestruturantes e

corrosivas que agem no mecanismo social67. Outra razão não teria a crítica de

Lefebvre (1981, p. 75) ao apontar que, sob a errônea ótica estruturalista,

“Posso, por exemplo, considerar separadamente o mar e o continente, ou o

65 Notamos que não é a lógica formal que deve ser desprezada: o problema do conhecimento não está na lógica que se ocupa das formas – em sua relação com a lógica dos conteúdos. O formalismo lógico é que deve ser repudiado. 66 A estrutura alude ao sistema organizado por princípios internos cujos elementos desempenham funções específicas na totalidade ou no todo, já que, para Chauí (2000, p. 274), o todo no estruturalismo equipara-se à noção de totalidade: “O todo não é a soma das partes, nem um conjunto de relações causais entre elementos isoláveis, mas é um princípio ordenador, diferenciador e transformador. Uma estrutura é uma totalidade dotada de sentido”. Segundo Lévy-Strauss (1974, p. 57): “Pensamos com efeito que, para merecer o nome de estrutura, os modelos devem satisfazer exclusivamente a quatro condições. Em primeiro lugar uma estrutura tem um caráter de sistema, ela consiste em elementos tais que uma modificação qualquer em um deles encadeia uma modificação em todos os outros. Em segundo lugar, todo modelo diz respeito a um grupo de transformações do qual cada transformação corresponde a um modelo da mesma família e o conjunto de transformações constitui um grupo de modelos. Em terceiro lugar, as propriedades indicadas acima permitem prever de que forma reagirá o modelo, em caso de modificação de um de seus elementos. Enfim, o modelo deve ser construído de tal forma que seu funcionamento possa dar conta de todos os fatos observados” (cit. por GOMES, 1999, p. 90-91). 67 Não à toa acusar-se o estruturalismo de ter um pé no positivismo comteano, basicamente no que respeita à idéia de que o conhecimento só possui proveito se seguir o modelo da ciência, vindo a transformar-se em ciência.

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vale e o rio. Nesse caso, esqueço-me de que apenas existem um pelo outro”.

O que é o mesmo que dizer que as coisas devem ser entendidas nas relações e

contradições. Também elucidativa foi a consideração do mesmo Lefebvre

(1968a, p. 103-104, 107) à metodologia althusseriana que muito se grassou

entre os campos do saber, dizendo que os conceitos aparecem em seu traço

estanque e rijo e que o erro metodológico fundamental de Althusser:

é ficar no interior das formas e das questões formais, procedendo a uma formalização sem ter elucidado a “forma” e sua relação com o “conteúdo”. Êle se mantém assim no quadro de uma teoria em segundo grau do conhecimento, em lugar de refletir sôbre as diligências que hoje permitem adquirir conhecimentos (por exemplo sôbre os problemas urbanos, sôbre a planificação, sôbre a questão agrária, sôbre a questão do Estado e da tecnocracia, etc.) (...) O marxismo está ali diante de nós. Os ossos, despojados de carne por um hábil anatomista, foram desarticulados, desmontados, e depois remontados levando cuidadosamente em conta as articulações.

Como outros fundamentos teórico-metódicos, temos ainda a:

Fenomenologia68, nas muitas propostas que priorizam a parte, o início, o

cotidiano, o indivíduo, o lugar e o subjetivo, indevidamente descambando em

dois tipos básicos de subjetivismos: o da consciência individual

(psicologismo, metafísica do eu e existencialismo, que evocam o

proustianismo essencialista e isolacionista no conceber do sentir) e o da

consciência coletiva (subjetivismo sociológico, de grupo ou classe)69. Mas o

68 Chauí recorda ter sido a fenomenologia, em priorizando a investigação sobre a essência ou o significado particular que possuem realidades (sentido, forma, propriedade, origem) diferenciadas que, após ter mostrado a realidade particular do “homem” para com a “natureza”, fez com que nos domínios da primeira se originasse a multiplicidade de estudos sobre essências diversas (psíquica, histórica, social, cultural, sociológica, geográfica, antropológica, etc.), cada um desses objetos sob incumbência duma ciência específica (2000, p. 273). A idéia precípua defendida pelos partidários desse método é que o marxismo é incapaz de fazê-lo, mas nada de antemão sugere que ele não possa se dispor ao estudo de qualquer questão, pois o materialismo histórico-dialético é um método e não uma gaiola temática, podendo se lançar ao estudo da ética, estética, moral, consciência, subjetividade, generalidade, particularidade, cotidianidade, etc. Basta recordarmos a afirmação do “jovem” Marx (1964), que, num materialismo-dialético já embrionário, alojando os pródomos da “antropologia” marxiana, firmava que o homem moderno devedor de aluguel aproxima-se (ou rebaixa-se) do da época da caverna, que ao menos a sua morada possuía. 69 O subjetivismo também possui peso na economia, sobre a questão teórica do valor (marginalismo) e sobremodo na filosofia, com vários pensadores reiterando que a dialética só

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fato é que, vale sempre lembrar, apesar dos desvios manifestos nesse

conceber fenomenológico, a preocupação central de muitos destes atem-se à

leitura do mundo a partir do lugar em que se vive e percebe, que já não é

mais simples materialidade e sim o “conjunto de significados” em que os

objetos são considerados fenômenos que devem ser analisados por

intermédio da razão, do modo como à consciência aparecem. Parte-se assim

da percepção do espaço vivido e não do concebido (eis o medo com o perigo

do estruturalismo!). As portas da Geografia à fenomenologia foram abertas

por Julian Wolpert, focando a questão da migração com um fundo de

psicologia. Muito daí não se exigiu para que a preocupação com a percepção

do lugar se impusesse, dando margem à Geografia da percepção e do

comportamento, desembocada na Geografia cultural-humanista (HOLZER,

s/d.) dimensionada aos estudos dos símbolos, representações e significados

(negando-se assim o neopositivismo empiricista, matematizante e tecnicista

da Nova Geografia), além da estética e do imaginário, buscando-se elaborar

os mapas mentais, como aspectos que ao marxismo geralmente passavam ao

longe. A fenomenologia nega a imparcialidade científica e a identificação fiel

entre o percebido com o real, estimando ademais a intuição no processo de

construção do saber; distanciando-se por isso em muitas léguas do

empirismo. No que acata à geografia, foca-se a mente para se alcançar o

entendimento do comportamento do homem em relação ao espaço.

Dialética: de absurdidade nas areias positivistas, a contradição

metamorfoseia-se em fecundidade na orla do materialismo porque a

contradição é a lei interna de qualquer transformação, na natureza e na

sociedade. Aqui a parte é o todo e o todo é a parte, ao mesmo tempo em que a

parte se reafirmando, diferenciando-se, se faz parte-diferença e o todo se faz

todo enquanto universalidade de práticas globais, como o lugar que manifesta

o global (espaços da globalização para M. Santos) ou o sujeito localizado que

possui existência na e pela consciência humana e que as contradições, por extensão, só existem dentro e por causa do homem. Alguns extremam tanto essa visão que chegam a afirmar que a realidade é somente expressão da existência da consciência humana, como desejo e representação externada. A dialética nessa via se faz subjetivista, metafísica, idealista.

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se faz cosmopolita sem perder a particularidade da carga experiencial-

perceptiva construída no lugar e filtrada pela dialética do sentimento

localizada e desperta do isolacionismo sentimental-perceptivo (SARTRE,

1999), próximo daquilo que Whitehead (1994) titulou de pensamento

heterogêneo quando a tratar da natureza, ou seja, do mundo externo composto

de entidades ou coisas. O que é o mesmo que dizer que a dialética está no

indivíduo, imerso na globalidade que se extensifica e lugariza ou no lugar

que se globaliza, peneirando e sintetizando aspectos que a definem e, ao

mesmo tempo e contraditoriamente, a eles podendo transcender, ignorando-

os ou afrontando-os diretamente porque a dialética materialista desde o

princípio e durante todo o processo considera todos os elementos do

conhecimento70. O pensar calcado no método dialético evolui pela tensão

entre modos diferentes de pensamento (afirmação x negação, tese x antítese),

dos quais evolui o terceiro termo (negação da negação, síntese). Para isso,

deve o método dialético travar a constante batalha entre aparência e essência,

forma e conteúdo, negando a percepção positiva das coisas tais como elas se

apresentam para que possa ser descoberto o ser oculto da aparência, a

negatividade oculta (valor-trabalho expropriado) na positividade corpórea da

70 Eis o porquê de o pensamento de Marx não poder ser dividido estruturalmente, como continente de rupturas epistemológicas, do tipo exposto por Plekhânov (1989), a caminhar e transcender o idealismo hegeliano (apogeu da filosofia alemã), o materialismo francês do século XVIII, a tradição francesa de pensamento racional, a economia clássica inglesa do século XIX (Petty, David Ricardo [1772-1823] e Adam Smith [1723-1790]), o socialismo utópico francês (Claude Henri de Rouvroy Saint-Simon [1760-1825], François Marie Charles Fourier [1772-1837] e Pierre Joseph Proudhon [1809-1865]) e inglês (Robert Owen) e o materialismo ingênuo feuerbachiano, até chegar ao materialismo dialético. Na “juventude” ou nas primeiras obras as diferenciações já eram significativas, ou seja, embora se perceba influências hegelianas e dos socialistas utópicos franceses e economistas clássicos ingleses, a dialética marxiana sempre foi inovadora em relação a todas elas. Daí não dever haver separação entre um Marx do período do materialismo histórico e outro do período do materialismo dialético. O diferencial é que no “período” da “juventude” seu pensamento se concentrava em questões mais “filosóficas”, com a teoria do conhecimento, metodologia e visão de mundo embrenhadas no estudo da prática, da alienação, da natureza e do “homem total” (em Marx o homem era já mais concreto que o de Feuerbach, e este mais concreto que o de Hegel) a guisa de exemplo, conquanto as obras da “maturidade” serem essencialmente científico-econômicas, mas que não excluem e sim incorporam os estudos precedentes, em níveis mais elevados de análise e crítica (LEFEBVRE, 1981). Aliás, o vício da periodização e da ruptura também foi enxergado na obra de Florestan, consideração essa rebatida pela Eliana Veras (SOARES, 1997). Florestan (1995, p. 48), em se referindo às possíveis inspirações por Marx recebidas, como as atinentes aos economistas ingleses, evita taxá-lo como economista teórico, vendo-o como anti-economista ou teórico da “economia política do proletariado”.

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coisa visível (mercadoria), descobrindo a razão de ser-assim-como-aparece

em seu-ir-sendo.

O fato é que o método não pode ser visto unicamente como a

priori, mas como construção.

Eliseu Savério Sposito, amparado em Chauí (1978), recorda que

o método toma dois elementos fundamentais da matemática71: a ordem e a

medida. A ordem sendo o conhecimento do encadeamento causal, seqüencial,

coerente e necessário que sintetiza os termos “medidos”, para que se passe do

desconhecido ao conhecido, seguindo adiante a “cadeia de razões”72. Dessa

filósofa entrementes, esse geógrafo discorda das modalidades definidoras do

método, já que àquela o método se caracteriza sob duas feições: como dedutivo

(usado pelos racionalistas intelectuais que partem das idéias para as sensações) e

como indutivo (para os racionalistas empiristas parte-se das sensações para as

idéias), enquanto Sposito julga que “indução e dedução são procedimentos da

razão e não métodos diferenciados e com razão própria” (2000, p. 24), o que o

leva a endossar a existência de tão-somente três métodos: hipotético-dedutivo,

dialético e hermenêutico-fenomenológico, todos eles com componentes

específicos (leis, conceitos, teorias, doutrinas e ideologias subjacentes), e que os

mais seguidos corresponderiam ao fenômeno comum ao pós-Renascimento de

multiplicação/fragmentação das ciências, quando cada uma propugnava

arduamente o “método” julgado mais apropriado ao raio de seu saber.

Esquadrinhando as ambigüidades ao redor do método e da

ciência, o mesmo autor arrola um conjunto de cientistas e de correntes que em sua

opinião apropriaram-se inadequadamente de procedimentos científicos diversos,

crendo-os os mais ajustados “métodos” investigativos. Cita por exemplo os que

tomam o método dedutivo73 e o método indutivo como os dois únicos

71 Originariamente, do grego ta mathema: conhecimento completo, perfeito e dominado inteiramente pela inteligência. 72 Expressão tomada de Descartes (Geometria, 1967 apud PESSANHA, 1999, p. 20). 73 Para Szamosi (1988, p. 25), Tales de Mileto foi o primeiro a aplicar o “método dedutivo a um problema abstrato”, intencionando descrever formas espaciais a partir de leis abstratas.

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instrumentais teóricos válidos ao estudo de determinada ciência, como fazem o

economista Paulo Sandroni e o Mario Bunge. Cita noutra ponta os que se inclinam

para um método único, como René Descartes74, Leônidas Hegemberg, Russel

Ackoff, Alfonso Trujillo e Joaquim Antonio Severino.

Em síntese apresentada por Eva Lakatos, Sposito (2000, p. 21)

dá o panorama do método como o: (a) caminho previamente escolhido (de forma

refletida e deliberada) para se atingir determinado resultado (Hegemberg); (b)

como regras de triagens (escolhas são técnicas) para avaliar alternativas à ação

científica (Ackoff) ou; (c) como forma de proceder, como instrumentos básicos

que ordenam inicialmente os pensamentos do cientista, para que ele atinja o

objetivo proposto (Trujillo); (d) além de o método ser considerado o conjunto de

procedimentos através dos quais se propõem os problemas científicos e se

colocam à prova as hipóteses científicas, rebaixando-o a simples procedimento de

dedução e indução (Bunge).

Considerações sobre o significado do método tecidas, clarifica

ainda as características aos quais admite existir no âmbito das ciências, dos três

métodos possíveis de serem trabalhados, coincidindo alguns deles com algumas

das propostas metódicas anteriormente aventadas; são eles:

Hipotético-dedutivo: instituído por Descartes, pretendia estabelecer um

método universal baseado no rigor matemático e na razão, a se valer da (a)

evidência: verdade atingida pela comprovação irrefutável, evitando-se a

pressa na formulação dos juízos; (b) análise: divisão das dificuldades em

partes a se estudar, para que sejam solucionadas; (c) síntese: caminhando-se

ascensionalmente dos mais simples e fáceis aos mais complexos objetos, com

o estabelecimento da ordem no pensamento mesmo entre os objetos que se

não “precedem naturalmente uns aos outros”; (d) enumeração, por meio do

qual se caminha do desmembramento à efetuação de “relações metódicas tão

74 Em defesa dum único método, não circunscrito a um objeto e podendo por todas as ciências ser utilizado, escreveu Descartes que “não o havendo sujeitado a nenhuma matéria em especial, prometia a mim mesmo empregá-lo com a mesma utilidade a respeito das dificuldades das outras ciências como o fizera com as da álgebra” (1999, p. 52).

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completas e revisões gerais tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada

omitir” (DESCARTES, 1999, p. 49-50). Na argumentação escolástica de

Descartes, Deus é a substância da realidade, idéia inata apreendida pela razão

e da qual outras prosperam pelo método. Instituindo a razão, Descarte

desbanca o dogma; seu racionalismo (e por extensão o de Galileu) recupera o

racionalismo grego, embora suas quatro regras metodológicas estejam

emparedadas na lógica formal. O método cartesiano é racionalista porque ele

não parte das evidências sensível e empírica (cujos sentidos confundem e

enganam) mas da razão que percebe intuitivamente os primeiros princípios.

A dedução e a indução, reconhecidas por Descartes como procedimentos do

método, continuaram a ser considerados por outros como sinônimos de

método. No método hipotético-dedutivo há sobrelevação do objeto em

relação ao sujeito, ficando este à montante daquele (sujeito < Objeto), o real

sendo descrito por meio de hipóteses e deduções;

Fenomenológico-hermenêutico: até o século XIX a hermenêutica

representava o esforço, individual e subjetivo, de interpretação de um texto

difícil, fazendo-o reflexo duma cosmovisão (Weltanschauung) que cria que

toda filosofia é uma “filosofia da vida”, como imaginava o alemão Wilhelm

Dilthey (1833-1911). Hoje a hermenêutica é tratada como esforço

compreensivo ou reflexão filosófico-interpretativa de símbolos e mitos em

geral75. Já a fenomenologia, cujo primeiro grande teórico fora o Husserl, foi

sobremaneira trabalhada por outros dois expressivos pensadores: Max

Scheller (1874-1928) e Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Como proposta

cardeal da fenomenologia está a superação da oposição tradicional entre

realismo e idealismo, além de opor-se ao empirismo e ao psicologismo,

valorizando o “eu-pensante” e se colocando como a “filosofia do sujeito”

que busca aprender a essência das coisas voltando-se “às coisas mesmas”.

75 Nunes (1992, p. 88) enxerga a hermenêutica como “uma crítica de toda a tradição especulativa ou idealista. Abandona os pressupostos do psicologismo, refuta o positivismo e o empirismo a um mesmo tempo e se propõe como uma nova metodologia do conhecimento, buscando fugir da antinomia, da objetividade do conhecimento ou subjetivismo gnosiológico. Quer uma apreensão pura das essências e capaz de descrever a experiência total do vivido, do humano”.

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Da riqueza dessa perspectiva muitas outras abrocharam76, vários nomes se

sobressaem. Com sua fenomenologia, Husserl opôs-se ao realismo absoluto

que considera só os objetos e não o sujeito pensante e sua carga de

experiências, ultrapassando tanto o idealismo como o racionalismo77. E

enquanto a Platão e Kant a palavra fenômeno remete à aparência do ser (ou

do “número”), na fenomenologia husserliana essa palavra assume outra

conotação: o fenômeno é uma manifestação plena de sentido passível de ser

revelado pela filosofia. Ao entender que o conhecimento é produto dum

sujeito pensante e transcendental78, Husserl estava realizando a crítica à

psicologia positivista (científico-matemática). A intencionalidade subjetiva

da consciência é elemento-chave no método fenomenológico que tenta

superar o subjetivismo unilateral, pondo-se como a visão antropocêntrica de

mundo que tenta resgatar o humanismo na ciência. Busca descrever o

fenômeno imediato desinteressando-se pelas ciências da natureza e opondo-

se ao empirismo e ao idealismo (que toma a teoria do conhecimento como

fator imediato). Aos fenomenólogos a essência do fenômeno é o objeto

inteligível a ser captado pela visão imediata do sujeito, por meio da intuição

essencial. Na Geografia o espaço vivido coloca-se no âmago da análise, com

o enlevar do conceito de lugar: algo não apenas objetivamente construído

como também construção subjetiva79. Diversamente do método hipotético-

76 O existencialismo surgiu da fenomenologia dispondo-se a combater o essencialismo, cuja postura teórica porta uma definição universal e apriorística do ser humano. Ao passo que o existencialismo considera que a definição do modo de ser do homem possui uma parte que é fixa e outra que é cultivada e transmitida socialmente. 77 O idealismo é ultrapassado na medida em que a consciência visa um objeto transcendente. O racionalismo é superado porque toda significação remete a uma consciência transcendental, doadora de sentido. 78 Esta uma das diferenças entre a fenomenologia de Husserl e a de seu compatriota Martin Heidegger (1889-1976), sobretudo pelo desdém do último aos enunciados apriorísticos embasados no eu, típicos à tradição dos estudos da relação sujeito-objeto. Heidegger foca o ser-no-mundo, o sentido do ser em seu estar-aí, na práxis que antecede a consciência ou que se realiza pela boa circularidade, e é por isso que a ontologia fenomenológica heideggeriana constituiu-se em resposta à de Husserl (STEIN, 2005). 79 Armando Corrêa da Silva pode ser considerado um dos personagens destacados nessa vertente em âmbito geográfico nacional, tendo a fenomenologia como o método mais adequado para abordar o fenômeno imediato, a se manifestar no cotidiano lugarizado.

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dedutivo, na fenomenologia há prevalência do sujeito sobre o objeto (Sujeito

> objeto), e o sujeito apropria-se mentalmente do objeto para explicá-lo;

Crítico-dialético: persegue a verdade negando/aprofundando a aparência

imediata, do senso-comum. As visões sobre esse método condensam-se

contudo num largo espectro: para o Platão a dialética era o processo que

possibilitava à alma elevar-se das aparências sensíveis às realidades

inteligíveis, rumo às formas e idéias eternas, transpassando o mundo sensível

(caverna) em direção ao mundo das idéias; o por que de a dialética ser-lhe

instrumento pró-verdade e base da pedagogia científica do diálogo,

potencializando a percepção das essências a partir do domínio das pulsões

corporais e da descrença nos dados do mundo sensível. Aristóteles, por seu

turno, assim não creu: a dialética não lhe passava de meras deduções

resultantes de processos tão-somente prováveis80; contrariando os sofistas da

época interessou-se por isso menos em convencer o adversário do que fazê-lo

defrontar-se com as incoerências de suas teses. Na essencialidade o que nos

interessa é o fato de a dialética – nos termos histórico-materiais em que hoje

é concebida – portar melhor equilíbrio na relação estabelecida entre o ser

pensante e o objeto (Sujeito ↔ Objeto), pelo motivo de que o homem já não

mais é visto como possuidor de idéias inatas (postura típica do idealismo),

senão da inata faculdade de o homem fazer da razão histórico-espacialmente

desenvolvida o ingrediente ativador da avaliação e classificação das

impressões brotadas dos sentidos, sem tê-las imediatamente por verídicas

(postura típica do empirismo). O método dialético-científico81 orienta-se à

80 Preferindo o método do silogismo, Aristóteles lançou as bases da ciência empírica a partir do uso dos sentidos humanos (que captam as formas na própria natureza) e da razão lógica (na construção do conhecimento). 81 Michael Löwy crê que o método dialético contempla várias outras denominações, como: dialética materialista, materialismo dialético, materialismo histórico, método dialético ou filosofia da práxis, na acepção gramsciana; todos tidos por sinônimos. Idéia discordada pelos que qualificam o “marxismo” como a corrente de pensamento (filosofia), diferenciada de “materialismo dialético”, que seria a visão marxista da concepção do mundo e que, por fim, se divisaria do de “materialismo histórico”, considerado como o estudo científico e racional do marxismo sobre os fenômenos socioeconômicos, com o objetivo de interpretar dialeticamente a História (LENCIONI, 1999, p. 158, nota de rodapé nº 11). Srour enaltece o marxismo por sua fecunda “teoria (ciência + filosofia): é o terreno onde se processa uma distinção não excludente, isto é, onde se processa a recusa de uma mútua redução do ‘caráter prevalecente’ (dominância na

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compreensão das categorias econômicas a partir das relações históricas de

produção, correspondente ao estágio determinado de desenvolvimento da

produção material, tendo por leis basilares: a interação universal, o

movimento universal, a unidade dos contrários, o desenvolvimento em

espiral e a transformação da quantidade em qualidade e vice-versa. Segundo

alguns estudiosos, como Harvey, Marx reunira a dialética de Hegel e os

dualismos de Kant, entretecendo teoria e prática para fundar a prática teórica

com a qual o homem se torna agente-ativo da história82.

Em termos de pesquisa científica as características dos três

métodos mencionados – que alguns crêem nada mais serem que componentes

doutrinárias de correntes filosóficas contemporâneas – referem-se ao:

1) Método empírico-analítico de pesquisa: em que se dá a coleta, análise e

descrição dos dados obtidos por questionários e entrevistas, com o tratamento

do produto quantificado das variáveis por meio de total neutralidade

unidade complexa) do materialismo histórico como ciência e do materialismo dialético como filosofia. Não se trata portanto de justaposição mecânica, nem de dissolução num amálgama informe, mas de interpenetração e de mútua intervenção” (1978, p. 48). 82 Examinando o campo das determinações, notamos que a dialética marxista (marxiana) recebeu várias influências: a) de Heráclito tomou a noção de contradição, oposição e conflito de forças de origens não-independentes (por Marx empregada no entendimento das leis do capitalismo); b) de Sócrates tomou a argumentação dialética como meio de se atingir a verdade (por Marx elevada ao propósito da luta de classes); c) de Platão o marxismo absorve, como características da razão dialética, a flexibilidade conceitual, o esclarecimento e a desmistificação, até a racionalização das práticas materialmente fundadas e condicionadas de emancipação coletiva; d) do romano Plotino (204-270) a Schiller empresta a noção do processo dialético da unidade original, unidade diferenciada e da separação histórica como arcabouço da luta social pelo socialismo; e) de Hegel o marxismo destila a potencialidade de inteligibilidade legada pela dialética (BOTTOMORE, 2001). Meditando sobre as ciências históricas e as ciências naturais, Fernandes (1995, p. 78-79) concluiu haver inevitáveis diferenças entre elas, posto que cada período histórico se reja por leis próprias, e que já na Miséria da Filosofia Marx prenunciara que a concepção naturalista incorre no erro de sacrificar a diferença ao observar somente as permanências (o que lhe garante a unidade), tendo Marx inovado com a não-sacrificação da unidade, apreendendo-a na interpretação dos contrários; por isso que o “materialismo histórico” marxiano absorvera tanto uma dimensão do “método naturalista” (assimilar o que é geral nas coisas) quanto o essencial no “método histórico” (captar as coisas em sua singularidade). Em âmbito geográfico, podemos considerar a opção metódica do materialismo histórico-geográfico como a que visa transpassar a paisagem para chegar à lógica organizativa do espaço geográfico, trabalhando concomitante e dialeticamente com a interescalaridade das relações do local-regional-nacional-global, compreendendo as redes horizontais e verticais de poder político-econômico-territorial.

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axiológica do método científico e imparcialidade do pesquisador

(racionalidade técnico-instrumental), de modo a separar ciência de crítica

com o intuito de apreender, através da experimentação, a causa do fenômeno

estudado. Trata-se duma concepção de ciência baseada na causalidade,

percepção empírica e linguagem matemática. (Como propõe a Geografia

Nova engravidada pela ideologia burguesa)

2) Método crítico-dialético: considera maiormente técnicas não-quantitativas,

analisando-se e incorporando dados contraditórios que desvendem conflitos

de interesses a partir de categorias de análise articuladas com a realidade

estudada, realidade essa considerada historicamente mutante e passível de

transformação social pelo sujeito-pesquisador. A quantificação desponta

como meio de qualificar a análise (e não o inverso, em que a análise é

qualificada segundo o nível de quantificação). Aplicado à pesquisa, esse

método quer apreender a causalidade, vendo-a como inter-relação e não como

sucessão linear de fenômenos; considerando outrossim que a parte focada não

se desmembra do todo (interpenetram-se) e que não se deve desmerecer o

fato de os fenômenos apresentarem dinâmicas internas contraditórias. (Como

propõe a Nova Geografia fecundada pela rebeldia das críticas)

3) Método fenomenológico-hermenêutico: prevalece o uso de técnicas

qualitativas no estudo de histórias de vida (dos outros e de si) e análises

individuais de fenômenos (cujas causalidades são desprezadas para se

privilegiar o fenômeno), que passam pelo filtro do investigador que assume

postura participativa e crítica, elencando as especificidades do objeto e

expressando a sua ótica teórica com o fito de desembaraçar as ideologias,

explicitar discursos e decifrar textos. Parte e totalidade não se separam; o

fenômeno é abordado individualmente após a decomposição das partes

descritas e interpretadas pela capacidade hermenêutica de ressintetização do

investigador. (Como propõe a Geografia Humanista fertilizada pela crítica

fenomenológica)

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São estas as particularidades apresentadas pelos métodos quando

em aplicabilidade científica.

Eis agora sumamente, as especificidades e as acepções que se

nos incutem os subitens adiante alistados.

1.2.1 A Reta e o Círculo

“As idéias estão no chão 

Você tropeça e acha a solução”

(A melhor forma, Titãs)83.

Os significados de reta e círculo avizinham-se porque as

conseqüências finais da problemática posta findam sempre no estacionamento e

engessamento do pensar, preso num imobilismo que imita o velho eleatismo grego

(LEFEBVRE, 1968a e 1995)84. Ou quem sabe o eterno retorno85, em que a

mudança repete o mais do mesmo (MOREIRA, 1999; LEFEBVRE, 1995;

HARVEY, 1996); tendência assumida por vários outros expoentes da cultura que

várias linguagens utilizaram, como o tcheco Milan Kundera (1985) na literatura

ou as (certas) obras do compositor brasileiro Renato Russo (2003). Tem-se a

filosofia avizinhada ao senso-comum, à cultura cotidiana.

83 Sabe-se que o postulado metafísico-idealista, de fundo platoniano e hegeliano, que tenta enxergar as idéias na realidade, fora responsável pela profunda crise intelectual e adoecimento do jovem Marx. Aos idealistas, a Idéia se expõe no mundo na forma de “grandes idéias” (amor, justiça, fraternidade, etc.) que, terrenizando-se e o governando, possibilita que o homem como que nelas tropeçando, apreendendo-as racionalmente, aproxime-se do Espírito que tudo criou, por tal vereda reencontrando-se. Os idealistas crêem que a história avança pela força das idéias e que o real é somente um dado da consciência (fechada em-si), isto é, acreditam que o real seja “idéias ou representações e que o conhecimento da realidade se reduz ao exame dos dados e operações de nossa consciência ou do intelecto como atividade produtiva de idéias que dão sentido ao real e o fazem existir para nós”, na síntese de Chauí (1991, p. 19). 84 Ironicamente, enquanto Zenão desacreditava o movimento como ilusão pelo constructo metafísico de suas aporias, Diógenes apenas caminhava. 85 A doutrina cíclica foi criada na Antiguidade a partir sobretudo dos séculos VII e VI a.C., tendo como adeptos os órficos, pitagóricos, jônios e estóicos.

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Sem o intuito de isolar, tão-só assinalar esses dois momentos,

exponhamos a reta e o círculo em seus percursos principais para em seguida

demonstrarmos como possuem muito de parecido, quando a flecha entorta-se em

círculo ao fim dos rodeios que a idéia executa no pensamento, tendo antes por

conhecido os pressupostos básicos da lógica formal que sustenta esse modo de

pensar que, nascido na Grécia e esposado com a matemática86, teve Hegel por

crítico algoz ao entendê-la incapacitada à apreensão da complexidade das

múltiplas determinidades do real; o que o leva a esforçar-se numa “ciência da

lógica” atenta à “lógica dialética”, combatendo o formalismo e o estruturalismo

em prol dum sistema de leis ontológicas que, não obstante, aproximou-se da

metafísica sem perder a dialeticidade pois apesar da lógica formal ser a lógica

abstrata e a lógica dialética identificar-se com a lógica concreta (praxiologia), a

lógica idealista hegeliana detém densa dialeticidade como concreto em

pensamento, porque sua dialética é a de uma filosofia especulativa que se angaria

na sofística, o que significa dizer que essa dialética supera a tradição imanente às

velhas premissas da identidade (como os princípios da não-contradição, do

terceiro excluído e o princípio experimental-demonstrativo aristotélico).

Para Hegel, o pensar matemático orienta-se a uma logificação

que tenciona um construtivismo irreal enredado em tautologias que, como forma

pura-transparente-neutra-vazia, faz ocultar o real. Todavia, mediante essa

construção teórica resolvida mentalmente, colocou-se Hegel em defesa da

racionalidade filosófica atrelada no e pelo Estado (no qual posteriormente veio a

desenvolver-se o neo-hegelianismo stalinista).

86 Interessante notar como a lógica da superestrutura que regia a estrutura espacial da sociedade fundamentava-se na organização classista do modo de produção escravista grego, que, desprezando o trabalho a que se dedicavam especialmente escravos, enredava esse tipo de pensar científico (lógico formal) em formulações metafísicas esteticamente contemplativas, inclusive no teorizar mítico-religioso, como prazer luxuoso o que se ocupava a aristocracia dos homens livres. A conseqüência foi o estancamento da sociedade pois escravos desestimulados, inferiorizados e a cargo de trabalho embrutecedor não produzem máquinas. Situação que fez prevalecer a concepção negativista de trabalho e de máquinas que apenas no século XIV e XV viria a se reposicionar na Europa, quando as ciências começariam a penetrar nas artes mecânicas e a sociedade se faria tocada por mudanças materiais significativas.

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O método depende do ponto de partida do investigador

(racionalista, empirista, idealista) e de suas bases teóricas e doutrinárias

(empirismo inglês, idealismo alemão, dialética hegeliana, positivismo comteano e

materialismo histórico-geográfico marxista).

Portanto, são diversas as formas de manifestação da reta,

presenciando-se no vasto efeito prismático que perpassa: o evolucionismo87

mecanicista, cartesiano, o sociologismo darwinista, economicismo ricardiano, a

demografia malthusiana, positivismo comteano, os empirismos (grego, inglês88 e

escocês89) entre outros construtos parametrados em relações causa-efeito e

legalidade-racionalidade lógico-gnosiológica ou em que a ontologia se sinonimiza

à metafísica idealista medieval que persistiu na transição ao racionalismo,

87 Um dos problemas maiores dos evolucionistas está na propensão de averiguar o real de forma tão detalhista, com a estreita aproximação do olhar ao objeto, que acaba por desperceber os saltos significantes das qualidades ontológicas. A aproximação do olhar gera contraditoriamente cegueira porque a viseira metódica do observador encontra-se teoricamente empoeirada. 88 O empirismo inglês desenvolveu-se maiormente nos séculos XVII e XVIII com Bacon e Locke. Ao opor-se às doutrinas metafísicas e por deter a paternidade do racionalismo inglês, Locke foi considerado o maior representante dessa escola; seus estudos psicológicos e etnográficos mostram a diversidade de divindades e concepções morais a encher os povos do mundo e que a alma é uma “tábula rasa” que utiliza a faculdade da percepção, mediada por circunstâncias particulares, para tomar consciência de si. Mas além de ser considerado o fundador do empirismo na teoria do conhecimento foi Locke contemplado o instituidor na filosofia política do liberalismo político, chagando a ser cognominado pelo filósofo Bertrand Arthur Wilhelm Russell (1872-1970) o apóstolo da moderada Revolução de 1688 dada à pregação de pacifismo exercida entre as camadas sociais. No que respeita à teoria empirista lockeana, Gomes recorda-nos que se por um lado ela provinha das sensações, isso não queria dizer que o empirismo se lhe assemelhe ao puro sensualismo já que deveras essencial era o papel da reflexão (interna) do sujeito. A Locke “A natureza age com constância e regularidade, e o papel da razão é o de extrair, a partir da impressão imediata, correlações fenomenais e estabelecer uma representação abstrata” (1996, p. 75). Tal qual Newton fora criador da física, há quem avalie Locke o criador da metafísica, não obstante defendesse a experimentação e uso do método empírico como se punha avesso a tratar de noções de infinito, Deus, substância e outras que resvalassem a tergiversações idealistas. 89 O filósofo e historiador David Hume (1711-1776) a muitos sintetiza o auge do Iluminismo na Grã-Bretanha: a razão com ele ganha altitude. Adepto da ciência lógica da matemática e do empirismo, Hume admitia que o sensualismo auxiliava na construção de conhecimentos perceptivos através da constatação de fenômenos mecânicos passados com o objeto de estudo – postura cientifica classificada de “positivista” por Valentin (1962a, p. 195). Estudioso da história e da psicologia, Hume foi o primeiro a considerar que a concepção dos povos a respeito das religiões provém das circunstâncias e interpretações criadas por eles, demonstrando que as religiões originam-se das necessidades psíquicas dos povos e que são produtos do espírito humano. Hume levou ao extremo o empirismo de Bacon e Locke, bem como o idealismo puro do irlandês George Berkeley (1685-1753). Embora sua filosofia redunde no mais completo cepticismo e na destruição da unidade dos sistemas antigos, mostrando a necessidade de novas teorias do universo, no campo da ética foi utilitarista, concentrando as ações humanas no prazer e na dor.

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representando o pensar fechado em círculo (totalidade fechada), ossificado em

forma acabada tencionada a oferecer a “hermenêutica” última do “mundo”.

Empirismo, objetivismo, materialismo ou historicismo vulgar

como teorias unilaterais e incompletas da objetividade que se desdobram em

metateorias abstratas (metafísico-idealistas) que tendencialmente se fecham em

círculo mediante tautologias vazias que se auto-afirmam ou que primam um dado

do ser e do real (apriorismo e inatismo), a ele sempre retornando para se afirmar

tautologicamente, podendo ser um fato, sensação imediata (sensibilidade passiva),

conceito ou lei científica vista como princípio-chave à formulação do saber.

Faz-se indiscernível racionalidade de racionalismo metafísico e

abstrato com a matematização, logicização e o conservadorismo do pensamento.

O motim contra o racionalismo deve por isso ser interpretado como revolta ao

racionalismo abstrato, para que se saiba distinguir legalidade de racionalidade,

evitando o abandono da racionalidade (como fazem irracionalistas,

desconstrucionistas, ecléticos, diletantes e pós-modernos).

Tem-se um embate, com acertos e desacertos em vários desses

construtos. A saber: o empirismo tem razão em partir do real para edificar o saber

mas peca ao no real se ater (CHAUÍ, 1991, p. 19), vez que o mundo não se

restringe ao que apenas dele é sentido e percebido, configurando-se mais

complexo e intrincado, com ilusões de ótica causadas seja pelas limitações físicas

dos aparelhos-perceptivos-individuais seja pelas limitações metafísicas dos

aparelhos-imperceptíveis-sociais (aparato ideológico do Estado burguês). Já o

racionalismo mostra-se correto ao afirmar a necessidade de superação do sensível

mas erra quando as idéias racionalmente formuladas tendem a se des-colar

(meta)fisicamente do real movente, envolvendo-se num pensar lógico-formal no

qual “Decreta-se o percurso, que re-produz o movimento inicial e imita o modelo.

É o dogmatismo filosófico” (LEFEBVRE, 1995, p. 12).

Nada mais que sistema de positivismo retroalimentado por

relação causa-efeito. Relação formal apoiada em premissas gerais e imutáveis que

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definem o início do processo cognoscente, dirigindo o pensar, antecipando o fim.

As formas (auto)firmadas que constroem o real partem amiúde de duas variantes:

a) A experiência sensorial que reflete mecanicamente na mente o fato;

b) A matematização da construção intelectual como processo de logicização da

dialética (que morre no processo), preconcebendo o fim como conclusão

teleologizada.

Resultado: ao invés de ontologia da história ou ontologia do

espaço tem-se a gnosiologia lógico-estrutural da idéia. A relação entre o aparente

e o essencial se resolve (?) na mente e não junto ao real.

A idéia gere a análise mantendo-se intacta às observações

realizadas no (que deveria ser o) processo de descoberta.

O pensamento julga partir do concreto real. Avança

indefinidamente sem a ele retornar, senão como ideologia travestida de ciência.

Vê-se o que se quer enxergar.

A elaboração mental firma-se comumente como que guiada por

método analítico-estruturalista, atuando mediante análise em separado e por

oposição dos termos observados nas relações dos complexos que substanciam o

real, somente posteriormente sendo inseridos na relação; e não o oposto: de serem

apreendidos unicamente pela interação dialética dos contrários existentes.

O que confirma a tese da curvatura imperceptível da reta, que ao

final se reencontra com a proposição latente, atingindo as respostas pré-ideadas.

Fecha-se o círculo.

No círculo, as partes que se escoram e se auto-explicam por

recursos sofísticos fornecem as “respostas” preconcebidas que se encerram em

sistema (totalidade fechada). E mesmo que para isso tenha que prescindir da

diferença e da discordância para parecer “coerente”, entrando em cena os

princípios da não-contradição e do terceiro excluído.

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Tais teorias não chegam nem a ser um retrato do real congelado,

um momento do movimento assumindo formas. Como caricatura incolor e

desbotada do real comparecem.

O sistema é de uma metafísica geralmente idealista em que a

práxis que confronta a idéia é tachada como caos e desordem à ordem ideada pela

teoria abstrata, e pensadores como Comte, Hegel e Fukuyama são-nos mostras

desse estilo analítico que assemelha legalidade e racionalidade.

O sistema idealista faz com que parcos vestígios de

materialismo sejam espreitados e que poucos se sobressaiam neste quesito90.

Destaque para Hegel, que nos escritos sobre dialética, lógica e conceitos

90 Lefebvre (1995) demonstra como os indícios de materialismo de vários pensadores rumaram ao idealismo: cita o exemplo do calculismo da logística de Leibniz, para quem o entendimento provinha dos sentidos e experiências, do mundo e da natureza, conquanto tal entendimento de nada se lhe proviesse, a não ser da consciência “de si” que, qual mônada, se afiguraria descolada da natureza e do mundo exterior, como algo autocontido que independe dos reflexos externos, estando Deus a inspirar sensações e idéias; ou seja, todo o entendimento provém dos sentidos, exceto o próprio entendimento, a mônada inspirada por Deus. A matemática leibniziana prezava que de um conjunto de signos (characteristica universalis), cuja lógica se assemelharia ao cálculo (calculus ratiocinator), se formariam os axiomas que revelariam todas as verdades (ares combinatoria). Nas palavras de Gomes, ao Leibniz “O princípio da natureza é a ordem, mas a razão não está sempre em condições de compreender esta ordem” (1996, p. 76) e isso porque “A mente de Deus é toda a mentalidade que se encontra espalhada pelo espaço e pelo tempo, a difusa consciência que anima o mundo” (SANTAYANA apud DURANT, 2000, p. 176-177). Tudo teria explicação, a menos que Deus quisesse manter segredos aos homens (OLIVER, 1998, p. 80). Imensa a força da teoria leibniziana, a ponto de Kant deixar-se influenciar na sua leitura do conhecimento (oriundo de sensações e experiências), não obstante a “forma” que o sujeito lhe confere no mundo interior (o pensamento era-lhe suma substância consciente, imanente, cuja substancialidade se introjetaria nos objetos), que não apenas transformaria o objeto observado, como faria dele aquilo que nele fosse enxergado, separando o sujeito da natureza (coisas), que ficaria na forma vazia da coisa em si ou a outra coisa (o noumeno kantiano, Deus ou as idéias e verdades inacessíveis ao homem: as antinomias às quais a razão e a experiência não se entranhariam), ao invés de aprofundar na essência oculta do movimento e das coisas. Haveria a Kant uma diferença entre a coisa em si (noumeno) e o objeto possível de ser conhecido-representado (fenômeno), e a ciência da natureza, em sua física pura, depende do a priori das categorias, representações e proposições apodícticas das leis da natureza aventadas e que guiarão o processo do conhecimento (transcendental). Já Berkeley diferentemente é caracterizado como idealista subjetivo, dotado dum idealismo extremado cujo processo de conhecer é rotulado de solipsismo, porque a ele apenas a mônada, a consciência “de si” ou o pensador individual existe, e tudo o que o envolve compõe uma construção artificial, não havendo mundo exterior senão como sensação e idéia. Em Leibniz e Kant o idealismo é portanto mais sutil, como o é em Hegel, considerado um idealista objetivo. Verifica-se então uma maior proximidade entre as preocupações do materialismo e do idealismo objetivo no que se refere à teoria do conhecimento, que entendem o pensamento não como uma “coisa” ou uma “substância” mas como atividade: o “nada” substancial, o vazio ou a potência de compreensão que em “tudo” avança.

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conseguiu expressar marcante dose de materialismo, inclusive por referir-se à

realidade, que entendeu como histórica e com atributo potencial à reflexividade91.

Ainda a guisa de exemplificação está Durkheim e seu conhecido

método de segmentação entre teoria e subjetividade, para não falar da neutralidade

que deveria possuir o sujeito na análise do objeto – o que para Marx soaria como

contraposição entre juízos de valor e juízos de realidade. Ensejava Durkheim

livrar a teoria e a ciência das cargas ideológicas; ironicamente, terminou por

constituir-se em ideologia. Desta feita, a clivagem metódica entre ciências sociais

e ciências naturais, tão bem vista no século XIX, passa a ser crescentemente

interpelada, já que se tinha por aceito que a objetividade das ciências sociais

individualizava-se da das ciências naturais porque as leis descobertas pelas

últimas independeriam da consciência humana, sendo-lhes exterior e libertas de

juízos de valores. Imagem relativizada a cada aurora, haja vista que os resultados

objetivos obtidos nas ciências da natureza não são absolutos e imutáveis, ao

inverso do que se pensava no século retrasado, além do que, o conhecimento

depende dos instrumentos, do método e do avanço já cumulado pelo sábio e da

época a que pertence, porque ainda que a natureza seja objetiva e não-projetiva, há

que se saber que nada impede que o pensar homogeneamente a natureza, a partir

da percepção sensível, possa estar indiretamente envolvido com algum tipo de

pensamento ou (pré)conceito enraizado no ser-pensante, ou seja, se a natureza de

certa forma é autocontida e independe do homem, o seu conhecimento por mais

objetivo que se nos possa afigurar não está entretanto isolado totalmente do

homem, da sociedade, dos instrumentos, valores e da época e espaço em que se

desenvolve. A objetividade da ciência se cruza com a subjetividade do cientista (e

o teórico em geografia é aquele que compreende o espaço construído sem isentar-

se em fixar as suas marcas no espaço vivido, na interação da vivência-prática-

conhecimento). Lévy-Strauss poderia ter certa razão quando escreveu que o que

separa as ciências naturais das ciências sociais não é unicamente o objeto (que é o

mesmo) mas a atitude epistemológica; algo parecido se efetivando com as ciências 91 Não à toa Marx ter incorporado muito da dialética de Hegel, de um pensamento cujo grau de complexidade pecou justamente na forma que elegeu para compreender a complexidade do mundo, concepção à qual Marx fez inverter e pôr os pés no chão.

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humanas que, ainda que possuam objeto próximo ao das ciências sociais, valem-se

como inspiração metodológica das ciências exatas e naturais.

Isso faz crer que o método contribui amplamente para que a

opção tomada no início da odisséia tenha seqüência no trilhar teórico, contudo não

ser incomum e inapropriado que se intercalem elementos parciais que o

contradite, como aconteceu com o Hegel, de cujos axiomas abstratos se colhem

pensamentos concretos sobre a dialética da lógica e dos conceitos, da realidade

contemplada como idealidade do Absoluto abstrato que se concretiza

historicamente.

Os idealistas, em princípio e substância, em acreditando ser o

real representações processadas pelo intelecto, frisam como fator à produção de

idéias científicas a consciência em si. Um exemplo está na concepção hegeliana

de Estado, explicitada na Filosofia do direito como Idéia política par excellence a

retratar a evolução geral do espírito humano, e que surge como das mais altas

sínteses do Espírito objetivo, a harmonizar e supostamente espessar os interesses

da pessoa (proprietário), do sujeito (moral) e do cidadão (sociedade e política).

Analisando a “alienação” de maneira alienada e descolada da

materialidade contraditória da história real, vendo-a como contradição filosófica a

ser ultrapassada racionalmente pelo homem com o auxílio das idéias emanadas do

Espírito, Hegel venerou aquilo que o homem produz e que justamente lhe afronta:

a propriedade privada, o Estado, o capital e a religião; compreendendo-os como

obra espiritual da Idéia Sobre-natural e não como produto histórico da alienação

social comum em sociedades classistas.

O fator móbil da história encontrar-se-ia arrimado na mais

sublime e cordata idéia manifesta pelo Espírito e não nas condições materiais92,

sob contradições histórico-espaciais, pelos homens vivenciadas nas lutas que

travam e das quais resultam as idéias invertidas-alienadas-ideologizadas-

distanciadas-complexificadas.

92 Ao Marx a matéria diferencia-se do empírico, aproximando-se da concepção de concreto (real e pensado, de que tratou Kosik). Marx abordou o fenômeno social concreto, que inclui fluxos, relações, idéias, símbolos e ideologias; abordou a matéria social: os homens (re)produzindo e se organizando como homens sob determinadas condições concretas.

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Ao contrário de manifestação ideal do desenvolvimento, o

Estado concretiza-se como a orquestra de instrumentos e normas escalonadas para

entenebrecer as práticas das lutas imanentes ao ser-antagônico-capitalista, com o

objetivo de seu engessamento e condução circular (geograficamente, o princípio-

fim-circular da lógica identifica-se com a arrumação dos espaços à reprodução

ampliada do capital).

A ilação do exposto permite afirmarmos que às teorias e

ideologias relatadas tem-se a idéia rodopiando em torno de si, nas nuvens, longe

das fissuras do chão social. Olhando de cima e com a cabeça para o lado, até se

voltar e se encontrar com o pré-afirmado93.

Fecha-se dessa maneira o círculo do vôo mental com a imagem

de que o que se vê é a causa da dinâmica do real. Quando o que realmente espelha

não vai além da conseqüência.

Por essa via a metafísica idealista anseia dirigir a prática.

Contrariamente, à distância da mesma, sem se sujar com as histórias e as

geografias sociais. Mantendo-se pura, neutra e desapega de subjetivismos

ideologizantes94.

O resultado é o mesmo na reta e no círculo.

93 Discordamos da acepção de Ernildo Stein (2005) sobre o fato das teorias marxianas também se enquadrarem nesses enunciados, como teorias pré-afirmadas (chamadas de retórica, pelo forte apego argumentativo e emocional) para justificar a práxis transformadora, sem que houvesse consistente teoria do homem para que, sabendo-se da condição do ser, se buscasse pela práxis o dever-ser. Sabemos que as teorias marxiana e marxista apresentam profunda análise do ser histórico-concreto e que a teoria é construída conjuntamente ao seu descobrimento, voltando inclusive para rever-se no processo, não havendo o a priori metafísico relatado. Afinal, a concretude e terrenidade da mundividência marxista não se presenciaria pela concepção de que o homem é aquilo que faz e o saber erige-se da relação prática-teoria? Contra o dogmatismo, Marx não teria se assegurado um não-marxista? A preocupação marxista com o homem e o mundo não teria qualquer ligação com o enunciado (heideggeriano) do cuidado, só que nas vestes teórico-praxiológica da coletividade classista? O ser-no-mundo como ser-jogado e como ser-para-a-morte refletiria ontologicamente apenas a angústia e o cuidado individual? Ao marxismo o homem só se realiza no coletivo, por isso a preocupação com os fundamentos do ser coletivo. Certo é que o marxismo está léguas da neutralidade teórica de determinada concepção filosófica de estar-aí do ser-no-mundo cuja práxis além de servir à estrutura hegemônica quer colocar no mesmo saco (de pedagogos idealistas) aqueles que justamente deram o golpe mortal no idealismo. Os não(anti)marxistas é que indispõem de relação entre teoria e práxis – ou então primam o cuidado como mediador da teoria-prática –, não os adeptos do materialismo histórico-geográfico. 94 É interessante notar que o subjetivismo fortaleceu-se no marxismo a partir da questão da consciência de classe, como necessidade de elaboração da ciência proletária contrária à ciência burguesa. Imbuído disso, o subjetivismo suplantou o caráter científico, a teoria da objetividade.

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O predicado central na reta está na partida do pensar pelo

imediato, por meio de sensações auto-afirmadas e inquestionáveis, empiricistas,

que erguem um edifício de pensamento nas alturas do chão da empiria. Já no

círculo, o pensamento parte de um princípio do real visto como central e que vai

justificar, rodopiando e lançando múltiplas “justificativas”, toda a relação de

causalidade advindas do encadeamento matemático e mecânico de eventos

sucedidos àquele ponto determinado no início. Agiram assim os economistas

clássicos que tomavam o capital como fonte de riqueza em todos os momentos e

regiões da história, quando na verdade é o trabalho que gera a riqueza, o capital

apenas dele se apropriando e o dirigindo à esfera abstrata da produção do

excedente, pela mais-valia do trabalhador extraída e não de investimentos em

maquinários que em-si responderiam infinitamente pelo desenvolvimento social

(quando ao capitalismo concorrencial sucedeu o monopolista).

Outro exemplo de interpretações que seguem esse suposto

fundante está na consideração da proletarização, produção da mercadoria e ou no

fator salário os ingredientes únicos caracterizadores do capitalismo: a parte central

elevada ao todo (confundindo, na prática, todo-soma com totalidade-dialética).

Por simples cartesianismo, vêem a história e a geografia como

partes, formas, esquecendo-se que o capitalismo é a essência do processo: o

movimento de acumulação que acumula, reinventando, meios novos e híbridos

para se reproduzir ampliadamente como unidade tensa de um complexo

organísmico, que se não nega as estratégias espaciais passadas agrega como

elementos de seu metabolismo partes dos complexos aos quais destruiu para se

reproduzir ampliadamente. O capitalismo aprende horizontalmente com a

diversidade espacial e reorienta-se evolutivamente com as experiências da

sucessão temporal.

Nestes procedimentos metódicos (empirismo ou materialismo

vulgar95 e metafísico-idealista) não se discutem premissas na relação do pensar

com o real: estariam elas já dadas e o real a elas deveria se ajustar.

95 Foi postura comum aos estruturalistas, revisionistas ou detratores do marxismo a identificação do materialismo histórico como interpretação econômica (ou sociológica) da história, possível de

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O motor que move as asas (da dialética) do idealismo hegeliano

é o trabalho do Espírito ou da dialética logicizada que alça seu vôo dialético que

se fecha em círculo, negando ao fim a própria dialética. Ao passo que o motor que

move a dialética do materialismo histórico é o trabalho material socialmente

dividido e espacialmente regulado, que em páginas vindouras nos achegaremos.

1.2.2 O Pontilhado...

“Acabou a revolta da vontade. E estou mudo: já não tenho 

mais palavras de ordem para mudar tudo”96. 

---------------------------------------------------

“A única certeza é de que nada se tem certeza” 

“Suspendo meu juízo”97. 

---------------------------------------------------

 “Para o homem, é inútil procurar a solução dos grandes problemas que 

mesmo para não serem entendidos foram apresentados. 

Refiro‐me a Aristóteles, a Platão e a outros mais” 

(ALIGHIERI, 2002, p. 156)98.

---------------------------------------------------

Uma filosofia superficial, que faria deste mundo um palco de milagres, 

exagerou prodigiosamente a influência do acaso, isto é, 

das causas isoladas, nas coisas humanas. 

Esse exagero é manifesto sobretudo nas ciências e nas artes” 

ser captada por disciplinas afins, quando de fato, nos pôs a recordar o historiador marxista Eric. J. Hobsbawm (1975, p. 20-21) em crítica a Joseph A. Schumpeter, a história é mais complexa do que pretende cada disciplina e visão particular. Para além do economicismo, sociologismo e dos geografismos baratos e deterministas, deve lançar-se o método dialético materialista. 96 Verso de Augusto de Campos utilizado por Moriconi (1994, p. 25) para tratar do estado de espírito social dos indivíduos contemporâneos. 97 Frases grafadas por Montaigne na viga de seu escritório. 98 Execra o florentino Dante os feitos dos que, aliados à razão e contrários ao contemplar, ousaram poder adentrar nos mistérios da Divina Providência; assuntos impróprios aos terrenais humanos.

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(COMTE, 2005, p. 61)99.

A perceptividade da pós-modernidade. O que o mercado

fragmenta ou sistemicamente diversifica, arranja e distribui ideológica e

materialmente, a percepção científica descreve como coisa-em-si.

Situação que faz com que o caos da paisagem sirva à

conservação ideológica da estrutura invisível da totalidade do espaço imperialista.

Trata-se do imponderável, indeterminado, descontínuo, o se e o

ser sem vir-a-ser, sem devir, congelado no presente e espaço perpétuos.

A História sem historicidade, a Geografia sem intencionalidade

e a saudade do futuro revelam as nuances do micro. Despreocupa-se teoricamente

de com a totalidade se relacionar porque o lugar é visto em-si, explicado por-si.

O saber é mumificado. Mata-se a vanguarda na ciência e na

práxis, a metateoria materialista.

Os mundos interior e o exterior figurados como mosaicos de

fotografias: caleidoscópio sentimental. Qual espectro insatisfeito e cansado a

vagar aos sopros do que se entende imponderável.

Não se busca a verdade dos fatos. Objetiva-se a validade.

Que se diga entrementes que as ciências não apenas se fizeram

obra da reviravolta objetiva do mundo social. Sofreram elas mutações advindas

das descobertas em segmentos específicos do saber: caso da Física sacudida pelo

campo inclinado à Quântica100, e que como saber parcelário concernente a um

campo específico do universo científico ergueu-se ideologicamente a arquétipo

universal justificador das “leis naturais” do mundo humano.

99 Não obstante a defesa da tese da existência da lei natural a estimular a civilização indubitavelmente a marchar progressivo-linearmente no tempo, nessa passagem em que trata do avanço da ciência, cumulada pelas gerações precedentes, Comte contribui de maneira salutar ao mencionar que o acaso – como o da queda maçã registrada pelo Newton, a dita semente da lei da gravidade universal – não passa de particularidade, de ato singular que perde peso diante das descobertas realizadas pelo encadeamento e sucessão dos saberes que fazem avançar as ciências. 100 O próprio Einstein não logrou conciliar a questão da teoria geral da relatividade com a física das partículas, fundamentalmente quântica, isto é, o enigma que perdura entre a relatividade e o eletromagnetismo, entre o que se relaciona causalmente e as propriedades e realidades sem relações causais da mecânica quântica.

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Os átomos sacudiram o mundo por inteiro: na matéria e na idéia,

quer devido à segunda guerra imperialista ou pela descoberta da caoticidade da

dinâmica de suas partículas internas (subatômicas), interpretada por muitos como

microrreflexo escalar do que se processaria em escala social global.

Tais descobertas fulguravam a posteriori com o fim de

responder à política levada ao extremo (da guerra), com tecnologias de destruição

em massa a servir de argamassa à divisão internacional do trabalho, à hierarquia e

partilha desigual do excedente global (produtos, renda e mais-valia), com a

manutenção da desigualdade das geografias técnico-científico-informacionais.

Na geografia do trabalho internacional, de lutas interclasses e

intraclasses, a geografia do trabalho vivo digladia-se com a geografia do trabalho

morto101. Dualidade aparente por tratar-se de par contraditório de termos inter-

dependentes, coabitantes de uma mesma relação.

Nem tanta acidentalidade nas teorias justificantes da

aleatoriedade.

Uma passagem de Jameson (1997, p. 32-33, grifo nosso) ilustra

o que na pós-modernidade às escondidas se reproduz:

O que começamos a perceber agora, portanto – e o que começa a aparecer como uma constituição mais profunda e mais fundamental da pós-modernidade, ao menos em sua dimensão temporal – é que, doravante, quando tudo se submete à mudança perpétua das imagens da moda e da mídia, nada mais pode mudar. Esse é o sentido daquele renascimento do “fim da História” (...) como uma conquista final da igualdade democrática (e da equivalência de valor entre individual, econômico e jurídico) (...) mas que hoje podemos identificar como a pós-modernidade em si (o jogo livre de máscaras e papéis sem conteúdo ou substância). Em outro sentido, é claro, isto é simplesmente o velho “fim da ideologia” com força total e desempenha um papel cínico no declínio da esperança coletiva num clima de mercado particularmente conservador. Mas o fim da História é também a forma final dos paradoxos temporais que tentamos dramatizar aqui: a saber que uma retórica da mudança absoluta (ou da

101 Se nas sociedades primitivas, escravistas e feudais, o trabalho vivo (manual e intelectual) era o motor da sociedade – se ousarmos empregar conceitos marxistas àquelas –, nas sociedades capitalista e pós-capitalista do século XX destacaram-se principalmente geografias do trabalho morto onde o capital fixo (máquinas, instalações industriais, laboratoriais, etc.) não apenas superou como passou a antagonizar com o trabalho vivo. Isso porque, distintamente das sociedades anteriores (não-classistas ou classistas), o capital e o capitalismo seguem a ordem do lucro, que é a estrutura de seu cosmos e o princípio-negador de todos os demais obstáculos, vistos como caos.

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“revolução permanente” em uma nova acepção colada à moda e totalmente aviltada), é, para o pós-moderno, não mais satisfatória (nem menos) do que a linguagem da identidade absoluta e estandardização imutável, remodelada pelas grandes corporações, cujo conceito de inovação é mais bem ilustrado pelo neologismo e pelo logotipo e seus equivalentes no domínio do espaço construído, dos “estilos de vida”, da cultura corporativa e da programação psíquica.

Segundo o autor, quer-se conservar o modo de produção a partir

de mudanças atreladas à mercantilidade, reproduzindo o velho no novo e

estribando o “Mesmo na Diferença absoluta” que “desacredita a mudança, pois

daqui para a frente a única mudança radical concebível residiria em pôr fim à

própria mudança” (ibidem, p. 33).

Lefebvre (1995, p. 16), demonstrando a pretensão de se acabar

com a contradição e o movimento, sobretudo no pós-II Guerra Mundial, notou que

“Entre os pensadores, a reflexão dialética não tem mais fundamento objetivo,

nem referência teórica, nem base prática, nem referência social”.

O médico e psiquiátrico italiano Mauro Maldonato (2004, p.

34), em defesa do pluralismo teórico que veio a seu ver contrariar o cienticismo

que então se impunha de modo mais danoso que a própria religiosidade,

marcadamente nos últimos cinqüenta anos, argumenta que:

O homem não é, nem nunca será, o deus diante de quem outro homem deve ajoelhar-se. Nenhum homem, portanto, jamais será onisciente. Isso vale, antes de mais nada, para os cientistas. Talvez seja esta a lição mais importante que decorre das descobertas e das controvérsias da epistemologia contemporânea. Basta pensar no falibilismo e racionalismo crítico de Karl Popper, na virada epistemológica pós-positivista nas visões de Thomas Kuhn (a estrutura da revolução científica), de Imre Lakatos (a metodologia dos programas de pesquisa), de Paul Feyerabend (o anarquismo metodológico), de Edgar Morin (a complexidade): teorias divergentes em linhas de pesquisa, mas convergentes ao criarem um clima de pluralismo teórico oposto a todo monismo. Cada uma dessas teorias mostrou, com diferentes ênfases, que a descoberta científica baseia-se numa ignorância consciente, no controle dos limites da razão. Nessa consciência, nesse saber que não sabemos nada de absolutamente certo, é que consiste a sabedoria da tradição que vai de Sócrates a Popper.

O italiano crê o monismo como mais prejudicial que o

pluralismo e que o racionalismo desmedido e prepotente, na via filosófica anti-

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socrática, acaba perturbando o processo do saber. Daí centrar também a utilidade

das metáforas, que preenchem o vazio que rijos conceitos jamais vislumbrariam,

pela aridez e fixidez, considerando a vida farta demais em simbologias para caber

no cienticismo conceitual puro, fazendo do metafórico necessário auxiliar, como

de certa maneira se opera com os pensamentos mais abstratos (id., p. 33, 36).

Essa é a linha dos que se posicionam pró-método, advogando

exclusivamente a importância dum “método científico flexível”, atinado à

pluralidade e à riqueza do mundo da vida (MALDONATO, 2004, p. 37).

Pior são os que se posicionam contrários ao método.

O estruturalismo tanto cresceu e se enganou que não demorou a

aparecerem teorias contrárias ao método, causando grande estardalhaço. Foi o que

se passou com Feyerabend que para criticar o dogmatismo e a ortodoxia

pseudoverdadeiras colocou-se contrário ao processo dedutivo-indutivo,

defendendo o pluralismo teórico amparado no “anarquismo metodológico” ou

“anarquismo teorético”, que nada deveria desprezar de antemão e cujo

relativismo se despiria de preconceitos, prontificando-se a sempre rever os

postulados (GÓMEZ, 2004).

Válida em princípio a preocupação feyerabendiana externada em

Contra o método, datado de 1975. Evidencia-se que o método científico não é

infalível e nem as verdades eternas102. As conseqüências desse tipo de pensar é

que são indignas de seus princípios.

Típicas à corrente dos pós-modernos, algumas das

conseqüências possíveis se identificam com a sobreposição da lógica formal à

dialética. Opta-se pela gnosiologia à ontologia para que no evitar do movediço

solo da dialética concreta se prefira a estabilidade do pensar lógico formal;

quando o essencial é que a lógica dialética centre o pensamento concreto do/no

102 Facilmente se observa que a postura científica de Feyerabend é totalmente avessa a que preservava Popper. Não obstante, o método não precisa ser negado para que se confirme a falibilidade do conhecimento (ou dos pensadores). Observações mais profundas que as de Feyerabend foram feitas por Lefebvre (1995) contra o marxismo vulgar, a metafísica e o estruturalismo, e não para enfraquecer o método mas para que a seta da verdade relativa fosse mais reaproximada do eixo do saber acumulado, para que o método do materialismo dialético se reorientasse à investigação da “objectividade aprofundada” mediante o “relativismo dialético”.

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concreto empírico sem desdenhar entretanto a limitada-fixa-momentânea-inerte-

infecunda-abstrata-insuficiente-mas-necessária lógica formal, a ser reapropriada

no processo cognitivo para o efetivar concomitante da logicização da dialética e

da dialetização da dialética. A lógica destarte não pode ser concebida como

produto metafísico e sim como o relativo integral, presente em todas as relações e

integradora das relações, especificidades e diferenças (LEFEBVRE, 1995, p. 29).

No contexto em que se avigora a praticidade do saber cooptado

pelo mercado (capitalista ou pós-capitalista) somada à repugnância pelas formas

viciadas do pensar ideológico, abrolham os desgostos pela racionalidade e pelo

método. Tudo coligado às descobertas da física; como se ao determinismo natural,

histórico e geográfico, surgisse agora o determinismo atômico-molecular: novo

matiz do naturalismo filosófico103.

Do reino físico, (des)sintonia probabilística que tudo mais

confunde, como de praxe, dá as mãos as mais ciências. Dedicando a esse assunto,

Ilya Prigogine mostrou os avanços recentes da física, relatando como interagem o

indeterminado e a probabilidade – passíveis de serem desnudados pela estatística

– e como a seta do tempo influi nessa relação. Prigogine (2002, p. 8) insiste na

caoticidade como um atributo da natureza que deve ser conhecido à luz das “leis

da natureza”, e que a instabilidade do caos que produz a desordem igualmente se

desenha como fonte de ordem, “mas contanto que generalizemos essa noção para

nela incluirmos as noções de probabilidade e de irreversibilidade”.

O cosmu, o que anima a vida atômica, tem pouco da

concordância e consonância preconcebidas; como se se tratasse de cosmo de

equilíbrio assentado no chaos (lat.).

103 Whitehead classifica a postura da natureza pensada homogeneamente um atributo da ciência natural, pois erigida da percepção sensível que, ainda que se queira livre de qualquer tipo de pensamento – pelo fato de a natureza ser autocontida e indiferente ao pensar humano –, há sempre envolvido no processo de conhecer algum tipo de pensamento. Senão indaguemos: Como é possível saber se no próprio processo de apreensão sensível não estão contidos valores sociais, ou seja, se não há pensamento subjacente à percepção? Isso explica o fato de nem mesmo a ciência natural poder ser considerada neutra, envolvendo algum pensar na relação espacial sujeito-objeto-lugar. Por extensão, o que pensar do método heideggeriano da ontologia fenomenológica fitada na analítica existencial do estar-aí do ser-no-mundo?

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Na etimologia grega o termo Kosmos também significa

“literalmente ‘arranjo, ordem’” (universo organizado) conquanto Káos

simbolizar “‘abismo’ (...) assinala o momento no qual, entre os elementos, impera

a confusão” (PENHA, 2000, p. 12). Outro não é o motivo para que

tradicionalmente na filosofia as imagens-chave prevalecentes sejam as que têm o

mundus por “buraco, caverna, corredor com uma abertura para luz” ao passo

que a de cosmos se assemelhe à “disposição harmoniosa dos corpos e

corpúsculos numa hierarquia iluminada” (LEFEBVRE, 1995, p. 14).

Abismados com o achado da Física, outros filósofos se rendem à

metafísica idealista de fundo religioso, tal o baque e a descrença nas verdades e

nas lógicas consagradas. Conscientes ou não cumprem o jogo do mercado, de vez

que os burgueses não perdem tempo em aproveitar o clima psicossocial para

injetar recursos e micro(cosmo)visões na direção do mirante Capital.

Se se despreza o real como fonte de elaboração-sistematização

do saber, opta-se pelo idealismo como método explicativo, dado que a

representação faz-se produto de elaboração mental fechada em-si, ou seja, a

consciência põe-se como determinante do ser social, tendo a razão papel nuclear

no aproximar do ser social ao Espírito absoluto (Deus).

Idealismo ou determinismo quântico que tenta pôr-se como

procedimento explicativo a aconteceres sociais104.

A aleatoriedade, a contingencialidade, imprevisibilidade e

mormente a neutralidade ganham campo notório. Quando o sentido grupal (social)

aparece, reveste-se como união de fragmentos.

Ao sistema do capital fragmentar é a ordem.

Agora, para além desse raio do saber, contagiando as mais

ciências... As ciências sociais não ficam imunes.

As implicações abundam:

104 Atentar à idéia da função da “nova esquerda mundial” defendida pelo representante dum dos maiores partidos políticos do país, a respeito do assessoramento governamental às lutas da esfera não-governamental (ONG’s), em: GENRO, Folha de São Paulo, 27/2/2001, p. A3.

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a) Nas ciências, se se pensava em inter ou trans-disciplinaridade, vê-se ocorrer o

processo hegemônico de fusionamento assistemático de preceitos; somando-

se partes sem sistematização de método, ou então se assume a soma como

“método” matematizante, caso do ecletismo teórico e do diletantismo que se

desvestem da razão levando o saber aos labirintos dos “jogos de linguagem”,

ao invés de pela rede-de-linguagem conduzir o homem à verdade relativa;

b) Na teoria, nada de ideologia: se houver, mais como orgia ideológica, em que

tudo e ninguém a nada pertencem;

c) Na sociedade concreta não existiriam classes: temos o borrão social;

d) No território continua-se a tentar suprimir a idéia de coação, supostamente

incapaz de existir na “sociedade democrática” na qual impera a

“representatividade política” e na qual a propriedade dos meios geográficos

de produção se faz obra do justo esforço individual. Tudo se arrumando

concretamente como conjunção espacial harmônica no universo das normas

reguladoras da geografia burguesa.

Quiçá, senão o maior, configura-se como dos maiores problemas

dos pós-modernos a confusão em relação aos ingredientes que compõem o real.

São tantos os elementos por eles percebidos – o que em-si não se institui em fator

ruim – que acabam por se perderem ironicamente no meio das mediações: sem se

saber o que fazer com elas, delas partindo-se.

Não há mais início, princípios. Não há objetivos ou projetos,

como finalidades à práxis105.

Os antagonismos cedem lugar às contradições, quando muito.

Ou se esbarram na relação dos vários soltos, quais moléculas errantes.

Eis o aleatório da Quântica Social a “preencher” a vacuidade do

universo espacial.

Há mais contentamento em se formular perguntas. Menos

carência existencial (social) por respostas. 105 Intencionalmente ou não, a pós-modernidade repete os postulados dos revisionistas do marxismo que quando não podiam evitar a insurreição de forças revolucionárias buscavam dimensioná-las ao reformismo, como Bernstein, ao qual o movimento era tudo e o fim nada!

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A estética sobrepuja a ética, notou Harvey em crítica aos

desconstrucionistas (1993, p. 325 et seq.). A metalinguagem, como discurso sobre

o discurso desapego do real, desvanece-se perante a sociedade que entende

possuir a sua principalidade fundante no simulacro, em idéias distorcidas e

reificantes. Jameson (1997, p. 24-25) usa o exemplo da Guerra do Golfo para

ratificar a idéia de como na sociedade pós-moderna a querela subjetivo-objetivo se

desfaz, com as representações subjetivas sendo travestidas de objetividade.

Repetimos: não há busca pela verdade factual. Na validade está

a meta. Motivo para que as performances (anti)científicas pós-modernas,

desconstrucionistas e irracionalistas, talvez nem devam ser rotuladas como

construções metódicas, senão como ideologias classistas prol a-classismo.

A uma distância bem longa, talvez o período atual lembre o

clima psicossocial derrotista da Europa do final do século XIX106. Outros

conseguem ver proximidade com o Renascimento, com uma bifurcação histórica a

se armar.

Talvez o império das reticências no universo do pontilhado...

pelo capital.

1.2.3 A Espiral

“Aquele que à inatividade se entregar deixará de si sobre a terra 

memória igual ao traço que o fumo risca no ar e a espuma traça na onda. 

106 Marx e Engels também se sentiram abatidos pelas distorções psicológicas originadas nas fases das contra-ofensivas burguesas, pela violenta repressão das forças conservadoras às operações revolucionárias dos comunardos contra os poderosos; não deixando fazer de uma batalha o final da guerra, rapidamente declararam de nada servir o lamentar recostado ao sofá ou o agir extremista e infantil, espécies de compensação psicológica. Prosseguiram a batalha no terreno da teoria. Atentar aos estudos de: FERNANDES, 1995; LÊNIN, 1988.

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Vence a fadiga e o torpor, recobra o ânimo, que das vitórias sobre os perigos, 

a primeira é a da vontade sobre o corpo” 

(Palavras proferidas a Dante pelo poeta latino Virgílio,

quando o florentino recostava-se cansado na sétima vala do oitavo Círculo,

nos domínios do Inferno, com o propósito de seu reanimar)

(ALIGHIERI, 2002, p. 101, Canto XXIV)107.

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“Sejamos absolutamente modernos. 

Se o real está em movimento, então que nosso pensamento 

também se ponha em movimento 

e seja pensamento consciente da contradição”

(LEFEBVRE, 1995, p. 174).

------------------------------------------

“As armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica das armas; 

a força material tem de ser deposta por força material, 

mas a teoria também se converte em força material 

uma vez que se apossa dos homens”. 

(MARX, Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel)108.

Movida por premissa totalizante, a dialética materialista pleiteia

que a visão da unidade do diverso do real seja identificada pela mente do sujeito

que com o real relaciona-se pelo ato do (como) pensar não-desvinculado de sua

carga experiencial, com o escopo de, na expressão de Marx, se “descobrir o

núcleo racional sob o invólucro místico”. Razão ao trânsito que o pensar

materialista-dialético mantém entre os pares do abstrato (elaborado pela reflexão)

e do concreto, da matéria e consciência, causa e efeito, teoria e prática, formal

(lógico) e conteudístico (práxis), imediato e mediato, global e parcial, negativo e 107 Ainda que conhecido o repúdio de Dante aos que não se contentavam com o contemplar dos mistérios divinais, expomos a frase para contrariar a versão idealista e anti-racionalizante, de fundo agostiniano, para negar teorias e teóricos que renegam a razão à persecução do saber. 108 Este e outros textos podem ser estudados no site: www.pstu.org.br.

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positivo, analítico e conjuntural, possibilidade e realidade, subjetivo e objetivo, do

eu e o mundo, para-si e em-si, coerente e conflitual, qualitativo e quantitativo,

necessário e contingente, menos e mais complexo, do verdadeiro e falso. Além

dessas relações tratadas habitualmente de maneira dualística ou além desses pares

contraditórios, a dialética opera também mediante tríades, como as do singular-

particular-universal, passado-presente-futuro (espacializado-espacializante-

espacializável), eu-aqui-agora, particular-movimento-relação e do lugarizado-

regionalizado-globalizado, se meditarmos em termos geográficos a dialética

temporal, transfigurando-a no universo espacial.

No que atine à questão temporal, vimos que o método do

materialismo histórico-dialético consiste em ir primeiramente do presente para o

passado, pois a “anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”

(MARX, 1999). A anatomia do homem ilumina a anatomia do macaco, tendo em

vista que as formas inferiores (simples) só podem ser apreendidas quando as

superiores já são conhecidas, desenleando-se o passado no e pelo novelo das

relações presentes, pela crítica das sociedades primevas. Tese que discorda do

postulado comteano que pretende vasculhar o passado mediante o estudo da lógica

evolutiva da marcha natural da civilização para antever o futuro e, somente então,

munido de teoria se transformar o presente pelo reorganizar da sociedade.

Podemos inferir existir uma dialética (multilinear) do presente-

passado-futuro na teoria e método marxianos, ao passo que no comteano

predomina a fórmula do propositivo (linear) passado/futuro/presente.

Hegel havia pouco revolucionara a concepção de História, pois

ao caracterizá-la como algo mais que sucessão de fatos no tempo fez transgredir o

mecanicismo linear do passado-presente-futuro e emergir a idéia de seu

movimento como que dotado de forças internas parteiras de acontecimentos que

não só estão no tempo mas que o são.

Marx foi mais além que Hegel. Se na teoria hegeliana o real não

somente tem ou está mas sobretudo é História, Marx demonstrou-a como

movimento social (inda que alienado), suplantando a tese fundada no mero

manifestar da Cultura ou do Espírito (desejo, vontade, Estado, etc.).

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Os estudos seguintes respeitantes à teoria da sucessão dos

modos de produção terão por finalidade conhecer algumas das estratégias

econômico-territoriais criadas pelas sociedades em espaços e períodos singulares,

com suas específicas correlações sócio-ambientais, tendo por guia metódico a

formulação marxiana recém-apresentada, tirando-se as formulações históricas e

espaciais do campo do Sobre-natural ou do Sobre-social para colocá-la no piso do

universo contraditório Intra-social.

Talvez devamos nos lembrar antecipadamente da observação

que nos chega de Étienne Balibar, manifesta nos Cinq études du matérialisme

historique (apud SROUR, 1978), em que fica desacreditada a possibilidade dum

conhecimento teórico geral dos modos de produção (no sentido forte do termo

teoria), porque se poderia encalhar em escolhos insuperáveis, desembocando-se

numa “teoria ideal da história universal”.

Deparando-se com o manifestar fenomênico, parte-se do falso

concreto para a ele regressar assim que compreendida a totalidade das

determinações imanentes. Razão esta de o fenômeno examinado pelo método de

Marx (1999) partir da população, um grande vazio quando ignorada as classes e as

relações sociais de produção e as forças materiais produtivas.

A dialética materialista é a que casa e acompanha a lógica da

forma com a teoria do conteúdo e até a ocasião da primeira grande guerra

imperialista pouco conhecimento se acumulara a respeito da dialética, a não ser

por parte de alguns seguidores de Descartes, Kant e Henri Bérgson (1859-1941).

Esse quadro será alterado no pós-guerra devido à geração de

formulações “dialéticas” voltadas a estudos do “em si” e “para si”, o “eu” e o

“outro”, o ser e o nada, vida e morte, subjetivo e objetivo, etc., como se a dialética

tivesse se tornado, no depoimento dum filósofo, uma “torta recheada de creme”.

A questão é que não é a temática ou o número de elementos

analisados que definem a qualidade do pensar dialético, nem o anseio de querer

acompanhar o mundo incorporando (desqualificadamente) discursos e temáticas

da “moda”. Assim se prioriza a quantidade e não a qualidade (e talvez tenha sido

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por isso que houve a debandada de teóricos do marxismo para outras correntes,

por crerem que a lacuna era estrutural a esse método).

Por isso da importância de se ter aclarada a inter-relação

existente entre a forma, a estrutura, a função e o conteúdo, explanada

preliminarmente no materialismo histórico-dialético de Marx (1999), e

posteriormente por filósofos (Lefebvre, entre eles) e geógrafos (como M. Santos).

A dialética materialista confronta-se com a dos antigos gregos

que, como recuso sofístico, a norteava à espetacularização do saber, embaralhando

o pensamento ao invés de aclará-lo, contrapondo teses para decompô-las na

armadilha das contradições descompromissadas com o verdadeiro/falso.

À tarefa da verdade incumbe-se o “materialismo histórico-

dialético” criado por Marx e Engels (1996) com a transmutação da dialética

metafísica hegeliana. Método que geógrafos como Hadjimichalis, Bernard Soja

(1993) e Harvey (1993 e 1996), em meio à acalorada discussão sobre o espaço,

rebatizaram de “materialismo histórico-geográfico”. A força e o norte desse

método (RIBEIRO, 2004a, 2005a) devem condizer com a capacidade materialista-

dialética de se des-envolver (re-novar) com o auxílio da compreensão da

“dialética do concreto” (KOSIK, 1995), da “objectividade aprofundada”

(LEFEBVRE, 1981), aproximando-se da proposta marxista da “metafilosofia”

(idem, 1995). Via lógica histórica, na arena da geografia poder-se-ia atingir a

essência do conteúdo do espaço mediante a dialetização da sua relação com a

paisagem, que se poria assim como portal empírico-fenomênico ao desvelar da

lógica territorial-organizativa da sociedade109. Nunca se desprezando, como a

geografia cultural recentemente repôs ao debate, a importância dos saberes

populares e aproveitando, como de certa maneira considerava a tradição marxista

do pensamento, a necessidade e capacidade de participação do povo na leitura e

feitura da história, para que sua importância não fosse varrida para longe pelas

posturas comteanas ou pelos obreiristas e esquerdistas que desmerecem a teoria; é

necessário aquele tipo de cuidado que demonstrou Paulo Freire ao formular o

método educacional embasado na ação dialogal em que todos são educadores-e- 109 MOREIRA, R. Categorias, conceitos e princípios lógicos..., s/d.

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educandos, pois “Um dos pressupostos do método é a idéia de que ninguém educa

ninguém e ninguém se educa sozinho” (BRANDÃO, 2004, p. 21-22).

Dialética vista como fenômeno objetivo inerente à natureza, não

algo recluso unicamente ao entendimento humano particular.

Não há negação ou hierarquização de uma das esferas da relação

sujeito-objeto. Constituem a díade essencial. Como relação, pela relação e na

relação devem ser examinados e assimilados os determinantes do espaço social. O

sujeito não nega o real para nele estribar a idéia e a idéia não se constrói por fora

da relação do ir-e-vir do sujeito têmporo-espacial.

Nessa tarefa, a sensação e a razão servem de pontes entre as

margens da ignorância e da ciência, e não para negar o real e afirmar o eu-

autocontido (mônada, consciência-de-si idealista, noumeno, número, espírito) mas

para que sejam desmistificadas as dissonâncias sensoriais com vistas à apreensão

racional das leis reais do movimento da natureza. Jorra o saber científico da união

dialética entre o imediato (sensações) e o mediato (percepção), que se imbricam e

interagem processualmente, racionalmente: momento em que o nível métrico e

paisagístico (notado pela visão, audição, tato, etc.) é transpassado

qualitativamente, revelando-se a essencialidade das determinâncias espaciais.

Ademais, de grande relevância ao entendimento da relação entre

a sensação, o percebido e o refletido é que as contradições não somente se

expressam na interação desses diversos momentos, como internamente a eles pode

igualmente haver relação de complementaridade, causal, conflitual e tensa.

Aqueles famosos cinco sentidos (visão, audição, tato, olfato e

paladar) considerados auxiliares à observação do mundo externo por Aristóteles e

que foram tão censurados por Agostinho como fonte do prazer-pecado, hoje são

reavaliados por cientistas que ousam arriscar a existência de algo entre dez e trinta

e três sentidos. Outros interpelam se não existiriam em maior número ou então se

não seria somente um o sentido que possuímos, a demudar conforme os caracteres

culturais da sociedade e/ou do organismo físico-biológico individual.

Hasteia-se a nova “ciência dos sentidos”, dimensionada a

vasculhar os dois “mundos”: interior e exterior. Porque mais que os cinco sentidos

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clássicos “existem aqueles que servem para percebermos nós mesmos e a relação

do nosso corpo com o espaço” (AXT, 2005, p. 79).

Dentre o arco de exemplos condizentes aos sentidos interiores,

salientamos a propriocepção que informa-nos sobre o que faz parte de nosso corpo

(pessoas dela desprovidas precisam enxergar partes do corpo para se mexer) e a

cinestesia que informa quando cada parte do corpo se move espacialmente.

No que atine aos sentidos tradicionais, sabemos que o tatear tem

lá sua complexidade, como o sentido diferenciado entre o tocar com pressão e o

tocar gélido. Com a visão não é diferente já que enxergar formas e paisagens é

diferente de enxergar cores (os daltônicos comprovam ser possível ficar cego só

para cores), e entre as próprias cores questiona-se se não poderiam ser apreciados

pelo menos em quatro os sentidos (um para as formas e os outros para os verdes,

vermelhos e azuis). No concernente ao olfato é possível com a fragrância reavivar

pessoas, situações e lugares grafados no espaço da mente; às vezes ainda pode-se

dum perfume evocar a cor e dum som uma imagem diversa (processo chamado de

sinestesia). Tais fatos se dão porque não obstante a sensação ser ordinariamente a

fonte de estímulos a serem decodificados pela percepção, outras vezes pode

ocorrer de a sensação não acontecer e sim a percepção: o que permite que apenas

pela visão sejam sentidas texturas de lugares e de coisas ou que sejam elaboradas

imagens complexas pela mente através do tato e da audição.

É possível enxergar de olhos tapados ou sem a capacidade da

visão: tato e audição podem ser os visores. Possível é tatear, sentir a textura de

coisas e de lugares através de cheiros ou da visão. É possível “olhar” pela língua

ou por outros sentidos, podendo até a memória auxiliar em caso de a visão falhar.

O ver pelos olhos seria apenas o caminho mais habitual, o que

poderia ser comprovado pelo fato de cegos pintarem obras de arte de melhor

qualidade que muitos que detêm visão perfeita. O que reforça as teorias de que a

percepção das coisas ou do espaço não depende necessariamente da senda pela

qual os sentidos nos chegam: o cérebro vê de várias formas.

Os sentidos são flexíveis, adaptáveis. Experimentos científicos

realizados pela vedação dos olhos de algumas pessoas acrescidos a estímulos

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táteis e auditivos desenvolveram maiormente outros sentidos; comprovando que a

limitação de algum promove o estímulo doutros, compensando-se a deficiência.

O cérebro monta a imagem mental a partir dos dados

disponibilizados pelos sentidos. O espaço mental criado é essencialmente o

resultado da interação estabelecida entre a qualidade e os atributos dos aparelhos

sensórios, do nível de estímulos e da percepção que se tem do espaço geográfico,

donde a ordem racional que substitui o caos mental das imagens e paisagens.

Além da multiplicidade de sentidos e da variância encontrada no

que se cria ser um só sentido (caso da visão ou do tato) a percepção vê-se

embaraçada pelo fato de os sentidos momentaneamente agirem em grupo,

permitindo ao cérebro a utilização de todas as percepções para criar o cenário

mental da situação ou fenômeno (processo designado de mãos da mente). A

questão torna-se mais intrincada porque nessa complexão existe a variação entre a

sensação e a percepção, porque a primeira corresponde ao estímulo recebido, ou

seja, a sensação é a parte passiva, enquanto que a percepção assimila-decodifica-

processa os estímulos; sem contar que a potencialidade seletiva da percepção pode

ser desativada em algumas ocasiões (quando se escuta palavras sem nada ouvir),

ao passo que noutros, superestimulada (andando-se na rua deserta fica-se mais

perceptivo a barulhos e sombras, com maior confusão entre a objetividade do

espaço externo e a percepção subjetiva no espaço da mente). A percepção pode

também ser prejudicada na ocorrência de um problema neurológico, como o da

agnosia que impede o reconhecimento de sons, cheiros e imagens (há relatos de

pessoas que não conseguem ter visão integral de coisas e pessoas, confundindo a

cabeça da esposa com um chapéu, embora enxergue com incrível riqueza de

detalhes as partes componentes do objeto).

Na conexão causal e dialética desses momentos (interação não

tão harmônica entre o sentido, o percebido e o refletido) conta também o fato de o

real aparente iludir a sensação e o ritmo da vida humana ser diferente do

movimento natural das coisas. Fazendo com que o mundo prático apareça muitas

vezes imóvel (caso do invisível desgaste em nível da forma-paisagem).

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A compreensão dialética da dialética do espaço social tem de se

dispor a avançar nessas veredas: saber ventilar sensações falsas de aparências e

paisagens ilusórias, tatear empiricamente as rugosidades e as fissuras da forma,

ouvir e decodificar o emaranhado estrutural de sons e discursos, aspirar para além

do perfume exalado a confundir os sentidos. Como indicara Marx, os sentidos são

produtos históricos do desenvolvimento concreto alcançado pela sociedade (Não é

comum que comunidades caçadoras tenham alguns sentidos mais afinados que

outros de comunidades pescadoras ou camponesas?).

Relação sujeito-objeto esteando a teoria do conhecimento. Desse

sustentáculo tem-se animada a visão epistêmica das questões da razão e emoção,

do observado e imaginado.

Foi sentenciado não se dever desprestigiar o sentimento em

nome da racionalidade positiva desapegada de subjetivismos e paixonites agudas,

passando-se por cima da época e do estado do saber alcançado, dos lugares e dos

conjuntos de forças e circunstâncias que os definem, desvalorizando-se de arrastão

os sujeitos, como se se tratassem de seres gerais voltados a captar dum só golpe a

verdade universal, independente de tudo e de todos.

Não foram poucos os que atestaram a necessidade do sentir. Do

“conhecimento da escassez” (Milton Santos) ou do “conhecimento da ausência”

(Boaventura de S. Santos), pela “fome de pão e de beleza” (Betto) ou pelo

princípio freudiano-sartreano da presença do não-ser como plenitude primacial do

ser é donde se manifestam em idéia as contradições da própria empiricidade das

condições sociais, em que a fisicidade do lugar põe-se a desafiar a generalidade

abstrata do discurso ideológico e do fazer hegemônico.

Disse-nos Lukács que:

Somente quando a sociedade se torna bastante diferenciada, de modo que cada homem organize individualmente sua própria vida em um caminho cheio de sentido ou também se deixe levar pela perda de sentido, que esse problema emerge como geral (grifo nosso).

Não-ser. Não-ter. Condições do deixar-de-ser e do deixar-de-

estar como indícios reveladores da ausência de si, do outro, de algo.

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O psicanalista inglês Ronald David Laing esclarece-nos que:

As primeiras insinuações do não-ser talvez tenham sido a ausência do seio ou da mãe. Parece ter sido esta a sugestão de Freud. Winnicott escreve sobre “o buraco”, sobre a criação do nada no devorar do seio. Bion relaciona a origem do pensamento com a experiência da ausência do seio. O ser humano, na expressão de Sartre, não cria o ser, antes injeta o não-ser no mundo, numa plenitude original de ser. O nada, como experiência, surge como ausência de alguém ou de alguma coisa (1978, p. 29).

Vai-se embalando a história entre as causas e os efeitos,

entremeando-se múltiplos espaços de concordâncias e contradições, entre o

mundo insano da produção agilizada e o mundo desigual da distribuição

desproporcional, entre os espaços da produção e reprodução, entre os que mais

podem ser, estar e ter (a partir das “necessidades” literalmente propagandeadas

como vitais) e os que na margem e à distância começam, na inquietação, a ensaiar

comparações e a reconhecer as cercas espaciais das privações.

Do sentimento de falta jorra sentidos às vidas sem-sentido.

A única coisa fixa no movimento, portanto, é a veracidade da

ocorrência. Querer ter por finalizada a história e congelado o espaço supõe

fossilizar, como forma em pensamento, o conteúdo irrefreável do concreto

espacial, substituindo o espaço-objetivo-dialético do concreto real pelo espaço-

mental-letárgico do formalismo lógico.

Jamais dogmatizado e em movimento, o avanço racional e

metódico do pensador pelas veredas da dialética materialista permite que outras

trilhas metódicas sejam avistadas. Não desprovido de criteriosidade, o adepto do

materialismo pode utilizar de teorias aprofundadas por outros métodos, sem que

por essas tenha guiada e ajustada a razão. Pode tomar as partes de que se ocupam

e que importam: suas lentes e objetos, analisando os pontos de vista sem jogar por

terra a estrutura de seu mirante interpretativo, como o que vêm ocorrendo com os

estudos marxistas no campo do feminismo, da subjetividade, cotidianidade, do

racismo e do etnicismo, cumprimentando os universos multifacéticos, sociais e

interiores, abrigados pela capa da opressividade das classes burguesas.

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Importa rever as parcelas desses outros saberes no processo

dialético da concreção intelectiva do mundo, dando ordem ao caos da miríada de

cacos informativos.

Como “expressão suprema da razão” (LEFEBVRE, 1981, p.

229), “Esse método vem ordenar, desobstruir e organizar a consciência do

mundo e do homem” (idem, 1995, p. 44).

A relação ente-ser comparece meritória de análise, remetendo-

nos mais além das que se encerram no ente (MOREIRA, 1999).

O conhecido, semelhante, classificado e aceito abrem espaço ao

desconhecido, diferente e novo, advindo do (ou homiziado no) movimento.

Para que o pensar dialético não se emperre em (pré)conceitos

forma(ta)dos em realidades (meta)físicas singulares, convém atentar-se às

providenciais regras cartesianas que zelam cuidadosamente a precipitação e a

prevenção, evitando-se idéias preconcebidas. Cuidado demonstrado por Marx na

advertência deixada à questão das relações prática-teoria, tese-antítese-síntese,

singular-particular-universal e parte-totalidade.

O problema é que os pós-modernos extremaram o conselho

cartesiano ao aplaudir a mente vazia como fonte da ciência liberta. Afora os

fenomenólogos, que todo o temor guardam às influências tentaculares que idéias

apriorísticas possam exercer no estabelecer dos juízos; fugindo da atmosfera da

metafísica para atolar a cabeça num concreto mais empírico que real.

É como se a todo instante tivéssemos que partir do nada, do

vazio. Quando o que vale é o interesse continuado para que o saber formado não

se engesse, sem que se demande o seu imediato, geral e constante abandono.

Numa metáfora materialista, é como se ousássemos afirmar que

o cientista deve atuar como uma eterna criança: sempre curiosa e incansável por

descobrir, só que sem ter que esquecer necessariamente de tudo o já acumulado,

amadurecido e (re)formulado pela mente.

Com o intuito de elucidar as grandes leis do método dialético

aventadas, listamo-las a seguir:

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Lei da interação universal: tudo está relacionado; advogar o contrário

implica reconhecer a realidade povoada por caos de fenômenos insulares,

descolados uns dos outros, quando formam o conjunto relacional de cadeias

conectivas determinantes e secundárias-periféricas que, avolumadas e inter-

relacionadas, contribuem na afetação do todo. Em termos geográficos, tal

idéia pode ser notada na economia-mundo atual, na rede ao qual implicações

pontuais tendem a desdobrar-se em infinidades de conseqüências na cadeia

do espaço-mundo;

Lei do movimento universal: uma vez considerados como integrados, o

método dialético ocupa-se em descobrir o movimento dos fenômenos em

suas duas dimensões: a que emana internamente a eles e a do movimento

externo que os envolve no devir universal (já que a tendência derivativa está

na relação processual dos fenômenos). Os fundamentos da generalidade do

regime do capital, donde manam os universais reguladores da sociedade e

espaço globais, interatuam com as geografias das particularidades dos povos,

culturas e lugares. Interações que tendem, virtualmente, a promover mutações

em ambos;

Lei da unidade dos contraditórios: a dialética capta a totalidade da coisa na

unidade concreta dos contraditórios, no movimento de

intercomplementaridade, ambivalência, oposição, choque e superação, vez

que o real corresponde ao movimento originado da contradição dos

elementos que interagem tensa e reciprocamente. A sociedade, como o

espaço geográfico, deve ser analisada a partir do desenvolvimento desigual e

combinado, nas relações de contradição/antagonismo oriundas dos vetores

metafísicos do sistema;

Lei da transmutação da quantidade em qualidade ou lei dos saltos: o

cumular espácio-temporal lento e gradual de modificações quantitativas

redundam, pela intensificação das contradições internas, em metamorfoses

bruscas e violentas, com características qualitativamente novas germinando

nas fases de crises. É quando os saltos de qualidade exprimem o

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engravidamento social gerado pela união da ação com o conhecimento,

parindo o novo no instante em que a descontinuidade vence a continuidade;

Lei do desenvolvimento espiralado ou lei da superação: permite a

compreensão da evolução da natureza que avança e se complexifica pelo

salto dialético. Exemplos podem ser citados na agudização das tensões da

geografia do capitalismo que podem, avolumando-se, potencialmente

engendrar as condições da evolução à formação espacial superior da

sociedade. A lei da espiral evolutiva vale-se da eterna luta dos contrários,

mediante a negação e negação da negação, que modelam o novo espacial.

O método do materialismo histórico-geográfico não se soma a

outros, como querem os pluralistas110. Porém, percebe os fatores teóricos tratados

sob outras searas e que devem ser incluídos como categorias e discursos

interpretativos passíveis de problematização, porque por vezes o que se

entendiam, até havia pouco, como mediações acessórias na sociedade podem ser

concebidas como centrais ao discernimento das determinidades ontológicas mais

complexificadas da sociabilidade contemporânea. Inclusive porque vários

dialéticos ainda se encontram em processo de reorientação, tentando libertar-se

dos efeitos nefastos do estruturalismo antidialético stalinista que travou o

pensamento ao divulgar visão oficial e estática dum real ilusório por meio de

meras metalinguagens, contribuindo para aumentar o descaso (essencialmente

pós-moderno) para com o discurso, já que “O conhecimento tornou-se linguagem

(imagem) ou fala” (SILVA, 1993c, p. 1). Os pós-modernos talvez se mostrem

tão-só céticos ante a possibilidade do enlevar do contradiscurso; posição

minimamente cética, senão irracionalista, já que o optar pelo jogo de palavras da

linguagem, por azar no lance, pode jogar o pensador no beco escuro e silencioso

da falta de palavras, como fez Wittgenstein.

O método dialético do materialismo histórico-geográfico, como

discurso interpretativo do real, projeta-se a temáticas teoricamente pinceladas por

110 A. Correia da Silva é responsável pela junção do analítico-ontológico-fenomenológico-estrutural, considerando-o como melhor instrumental teórico.

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outras inclinações metódicas. E problema nenhum há nisso, além de algum

relativo anacronismo criado no pensar estrutural. Não é o tema o que define a

forma do saber mas o método que utiliza temáticas afins no trajeto à verdade dos

fatos, ao interrogar o real para encontrar os elementos fundacionais e

determinantes à produção e reprodução societária, sem que se despreze a potencial

força de tendências ou aspectos latentes e manifestos no desenvolver do real

contraditório.

Para o materialismo marxiano, não é a consciência ou a idéia

que distingue os homens dos animais mas o que e como produzem as condições

materiais e imateriais da existência. A consciência é modificada quando

retracejadas as condições materiais do produzir.

A “voz da consciência”, compartimo-nos nesse ponto da

opinião de Randcliff-Brown e Leslie White111, é o reflexo das sanções sociais no

indivíduo. Torna-se a ordem dum sistema cultural.

Como noção que remonta efetivamente à segunda metade do

século XIX, o comportamento passou a ser entendido como algo extra-individual,

social. O porquê de um dos pioneiros da sociologia norte-americana, Albion W.

Small (1854-1926), ter escrito que “No início era o Grupo” (RIBEIRO, 2004a,

2005c). Rosa Luxemburgo, trazendo a discussão para o plano da materialidade

objetiva, alegava que “no início era o ato” (apud ANDERSON, 2003, p. 80)112.

Vão os espaços se fazendo na relação entre consciência e ato,

teoria e práxis, indivíduo e sociedade.

Da confusão desplanificada caminha a ciência à ordem,

deixando para trás as explicações divinais. Ordem estranhada e alienante, porém.

Quanto mais o capital se fortalece hoje, mais fragmenta os

povos, a sociedade e as classes, mais fraciona as ciências. Ante tamanha

complexificação sócio-espacial e parca capacidade transdisciplinar,

111 Ainda que haja diferenças entre esses autores a respeito de a consciência ser ou não fundante, externa e autônoma ao ser e em que medida tal se processaria, não irrelevante é que a sociologia fora inaugurada por influência da teoria comteana, mesmo que de modo organicista. 112 Anderson (op. cit.) traz excelente discussão sobre a relação dialética existente entre a materialidade estimulante às idéias e como estas, segundo vários pensadores, igualmente podem se pôr como dínamos moventes àquela.

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metadisciplinar, se escasseiam tendencialmente a potencialidade e o interesse pelo

pensar holístico.

O espaço não é diferente. Não se safa da arquitetura do capital:

de geometria traçada para se conhecer o que percorrer para lucrar, de palco

natural e dado que se fixa determinante (passivo) ao sujeito (passivo) que nele se

acha, de espaço de natureza de leis desconhecidas e tecnicamente pouco

coordenado, o espaço tem cientificamente reconhecido hoje o conteúdo

sociodialético que o entranha historicamente de modo alienado e privado.

Se muitas faces o espaço possui, a máscara que o enfeita é a que

lhe empresta os dominantes que o ordenam e que de todo modo escondem a

logística privativa que concentra, embala, plasma, substantiva e coliga as

espacialidades diferenciais.

Veremos que no mundo coevo a maioria dos homens produz e

se reproduz sem consciência efetiva de como, por que e para quem produz:

reflexo do trabalho segmentado, atomizado e/ou polivalente, mecânico, repetitivo,

empobrecedor, desefetivante, dessocializante, mercantilizado e entremeado da

impessoalidade dum espaço sensoriamente concreto mas duma perceptividade real

fugidia. Restam cacos de interpretação hegemônica, a visão míope que não se alça

para além do imediato vivido e fragmentariamente (pré)interpretado.

A espiral que deve o espaço escalar condiz com o ir-e-vir do ser

que, para não se perder, faz de bússola o próprio real (inter)agido e (re)pensado, e

que faz do método a lanterna condutora pelo escuro ideológico.

Também condiz com o avançar sabendo-se que às vezes se deve

retroceder. O voltar-se para se revisitar o trajeto e retraçar o horizonte por meio da

relação prática(meta)teoria: teoria e empiria, micro (cotidiano) e macro-estrutura.

Imperativo entendermos a coessência do que nos é contemporâneo e coespacial,

com o devido cuidado para não cairmos no empirismo ou na metafísica idealista,

em que o ato de transcendência do indivíduo é tal que do real faz se apartar.

Os princípios são captados, afrontados e confrontados

continuamente com o real, podendo ser confirmados ou negados. Ponto da

antítese. Antítese espacial: de espacialidades hierarquizadas que se

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intercomplementam e que se afiguram como espaços-fragmentos tão-só às

sombras da diferença isolacionalista. O espaço global é cenário crescente da

unidade transnacional, do espaço como unidade capitalística de espacialidades

diferenciais (relativamente lugarizadas, regionalizadas), homogeneizadas e/ou

concatenadas contraditoriamente no plano da economia-mundo113.

No materialismo histórico-geográfico a quantidade se faz

qualidade (e vice-versa) e o padrão global toma a autonomia relativamente

aparente do diferente lugarizado. A totalidade se faz parte e essa altera aquela ao

se refazer, afirmando-se ou negando-se. Entre forma e conteúdo está a dialética:

uma muda a outra, alterando-se na e pela relação. Espaços ou lugares formados

pelo capital podem, acaso munidos de conteúdo versátil, flexível e experimental,

trazer novidades para que este se reveja e altere seus universais; reestruturando-se.

(Foi o que ocorreu com as formas-padrões de manifestação do capital ao longo do

tempo, que focalizaremos no trato deste modo de produção adiante)

Totalidade que não é soma ou todo mas síntese de mediações

múltiplas do concreto real. Não é grandeza e medida mas relação processual e

movimento. Complexo de complexos que se arranjam, desarranjam, combinam,

complexificam espacialmente. Unidade de diversidades. Unidade tensionada.

À dialética a diferença tem a mesma importância do que se

repete. O igual e o diferente se interpenetram, interagem, interinfluenciam.

Podendo ou não se afirmar ou negar entre si. Da ordem social “estabilizada” nasce

113 Empregamos a expressão economias-mundo (weltwirtschaft) de Fernand Braudel para demonstrarmos a tendência da unidade (centralidade) imposta pelo capital a despeito da questão das fronteiras nacionais. Incrível que, se por um lado a burguesia norte-americana tenta entravar o processo de expansão do capital que não o reproduzido-ampliado-hospedado em seu país a custa de guerras e dum déficit orçamentário que não cessa em aumentar (MOREIRA, 2003), doutro lado já se verifica entre estrategistas norte-americanos prol globalização preocupações quanto à necessidade duma nova regionalização no mundo que diminua o gap da globalização (abismo entre os países mais e menos integrados economicamente), desfavorecendo consequentemente o terrorismo que o jaz, como propõe o consultor do Pentágono Thomas P. M. Barnett. Ideal que ajudaria a consolidar uma unidade não apenas pela expressão do mercado composto por nações vizinhas (nos moldes da União Européia) mas por países que ofereçam oportunidades, especialmente, ao fortalecimento da economia norte-americana (como o México e países do Oriente Médio: um por conta da participação crescente que terá naquela economia, os outros pelos recursos naturais que dispõem). Talvez, estejamos diante da possibilidade de concretização duma nova noção jurídica de nação (dividida, obviamente) ou o revigorar do imperialismo, com recolonização político-econômica (EXPEDITO FILHO, 2004).

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o múltiplo “desordenador” parido de processos contraditórios que carrega no

ventre, qual big-bang social que se intensifica concomitantemente ao reordenar do

espaço-prisão capitalista.

O método do materialismo histórico-geográfico permite

apreender a desordem produzida pela Ordem. Auxilia no trilhar do caos

perceptivo à totalidade dialética do meio social produzido pelos homens

alienados, descortinando a ordem da dialética social: a lógica teleológico-prático-

destrutiva da relação-capital; lógica social que – se julgada existente – os pós-

modernos e os adeptos do pontilhado vêem como casual e não-causativa, porque

ao invés de tomar o caso como prenhe de dúvida momentânea optam de forma

derradeira pelo descrédito na possibilidade de obtenção de respostas114.

Não se nega que entre o produto da tese, abortada do ventre da

outra (anti)tese, vivencia-se um período de dúvidas. O problema é quando se quer

fazer do passageiro a cultura permanente. Por isso a dialética reclama trafegar pela

realidade relacional do micro com o macro, não desprestigiando o meso: o

singular-local, particular-regional e universal-global.

Não se desmerece a causalidade, como fazem os prosélitos do

irracionalismo, porque “Sem causas e sem causalidade, não há ciência”, como

alegou um pensador francês contemporâneo. Não melhorada é a “ciência” dos

pós-modernos, mais achegada à literatura.

Longe dos desconstrucionistas rasgadores de teorias, distante de

irracionalistas e a léguas dos que remendam caoticamente os farrapos teóricos

encontrados pelo caminho, está o materialismo histórico-geográfico. Para estes o

local, o regional, nacional, internacional e transnacional são o mesmo e o

diferente, padrões e contra-arrestações, forças de homogeneização e tensões por 114 Marx enfrentou, a partir de 1847, líderes de movimentos e agremiações políticas socialistas e comunistas utópicas – como a de Weitling – que se mostravam avessos aos “princípios abstratos” e aos “sábios”. Um dos mais significativos resultados foi a redação de Engels do Manifesto do Partido Comunista em 1848, que fora retrabalhada por Marx e enviada ao Comitê Central com o objetivo de diluir tanto as posturas “obreiristas” como a dos “alquimistas da revolução”, das sociedades secretas, como Willich e Gottschalk: os partidários da “desordem mental” e da coragem e obstinação prática para a tomada do poder da burguesia, crendo que a revolução dependeria mais da vontade que das condições materiais. Não fosse a coragem e o objetivo ideológico classista de esquerda (na verdade “esquerdismo”), assemelhar-se-iam aos desconstrucionistas, irracionalistas e pós-modernos.

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dissensões, formas e reformas, forças de estabilidade e de ruptura, diacronia e

simultaneidade, unidade do diverso e dos contrários, unidade tensa e em

movimento, movimento horizontal e vertical.

São extensificados espacialmente os fenômenos gerais do ser

capitalista pela força centrífuga do capital, mantendo-se não obstante ordenados

por sua centrípeta organicidade imperialista, que longe se estende, tocando os

mundos do trabalho e do não-trabalho, a materialidade e a espiritualidade,

espacialidades outrora primitivas e alhures isoladas.

Não há como a dialética material da espacialidade histórica

igualar-se à ordem hierárquico-estrutural-cartesiana na análise dos fatos têmporo-

espaciais sem que se altere o resultado do “produto”.

O estudo geográfico do espaço, desse campo de forças

associadas e conflitantes, deixa às claras a dialética do movimento do real. Nessa

dialética inter-reativa, de interpenetração e interdeterminação dos fenômenos que

tão-só à mente afiguram-se analiticamente apartados, o próprio evento social já é

espaço, ao passo em que o é tempo e relações sociais a se convergirem e

dissentirem simultaneamente.

Mais que organismo uno de órgãos com funcionalidades

positivas e ao contrário também de simples máquina a precisar de reparo (com

peças e funções novas sendo inventadas para descartar as obsoletas), a sociedade é

síntese contraditória que se reproduz perpetuando sua própria negação uterina.

As perturbações têm berço original no mundo do trabalho, em

que pese as irradiações multicoloridas para dimensões outras do real.

Do extenso curso metafísico-idealista a dialética enfim se

temporaliza e se espacializa ao admitir sua mundanalidade.

O método dispõe-se a averiguar a ontologia do ser mediante o

processo constitucional de sua concretude histórico-geográfica.

O método do materialismo histórico-geográfico deve atinar à

geografia das formas espaciais de reprodução da existência humana no tempo,

pois todas as sociedades deixam suas pegadas no espaço. Atualmente ambiciona

decifrar a totalidade dialética das relações sociais planetarizadas como unidade de

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tensões: o espaço-mundo (des)arranjado pelo capital no transcurso conflitante com

outras sociedades e espaços tocados e atassalhados pela lógica hegemônica de

realização ampliada do valor; desvelando-se os espaços da globalização criados

pela sangria da mais-valia global.

É o que haveremos de investigar nas que sucedem. Haveremos

de ler a realidade das formas de reprodução existencial a partir da sucessão,

interposição e confrontação de lógicas espaciais distintas, esquadrinhando arranjos

territoriais díspares que se combinaram e se acotovelavam disputando forças e

energias ao longo do tempo, numa espiral social evolucional/regressiva cujo

processo nada tem ontologicamente de retilíneo, cíclico e ininteligível.

O timão a essa viagem tem por tripulante principal a lógica

materialista que, por método dialético de bússola, navegará nas turvas ondas da

história humana em que trafegaram e naufragaram povos e sociedades, reparando

nas formas concretas de como trabalhavam e por qual conteúdo se valiam para

reproduzirem-se como identidade social porque, apenas por esse modo, o espaço

que ganhou vida nas mãos do homem metamorfoseado do primata, e que deu alma

social ao ambiente caótico, poderá retornar ao escol concreto do Ser consciente de

o fazer, viver, pensar.

Teoria e práxis se reunirão onde jamais deveriam ter-se

apartado: na concretude real do espaço-tempo.

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– CAPÍTULO 2 –

DA NATUREZA ESPACIAL

DO TRABALHO CONCRETO DE

SOCIEDADES PRÉ-CAPITALISTAS

À NATUREZA ESPACIAL DO TRABALHO

ABSTRATO DE SOCIEDADES

CAPITALISTA E

PÓS-CAPITALISTA

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2.1.1 A plenitude do espaço como

organização temporal das formas de

reprodução do ser social a partir do

trabalho

s homens organizaram o meio ao longo do tempo para que

material e espiritualmente pudessem se reproduzir; a

transformação do caos em espaço cosmizado econômico-

culturalmente foi a mediação.

OO espaço é componente social das mais importantes dimensões e

é por isso que espaços naturais, de povos primitivos, guardam formas de

geografias; qualidade já superior à da condição de prótese do social.

O entorno destarte se transubstancia em expressão corpórea da

sociabilidade constituída pela extensão dos mecanismos estruturais em que se

materializa a relação homem-natureza pelo trabalho. O espaço está no entorno

mas a ele não se limita, concernindo sobremaneira ao conteúdo estruturante da

sociedade (relações político-jurídicas e ideológico-culturais) que à forma

estruturada da paisagem (epidérmica e sensoriamente percebida).

É dimensão social e não só palco, instância, rugosidade, forma e

produto. Estrutura imaterial e invisível, totalidade processual construída e

interagida dialeticamente pela sociedade em seu relacionar-se com o mundo ao

(re)produzir territorialidades/desterritorialidades, arranjos/desarranjos/rearranjos a

partir daquilo que o ser (capitalizado) quer unificar, manter conexão e ignorar,

fragmentar e isolar: o espaço condiz com aquilo que se quer evidenciar como o

melhor do cosmos (justo, bom, democrático, etc.) e aquilo que se rechaça como

caos (terrorismo, antidemocrático, ditatorial, etc.).

Diversamente das sociedades pré-capitalistas em que a produção

material reconhecia-se com a distribuição à reprodução do grupo, impedindo que

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o valor econômico-político-cultural rachasse os valores de unidade e

reciprocidade solidária, o regime do capital valoriza agora tudo o que o possibilita

reproduzir ampliadamente o valor econômico fetichizado e alienado do ser.

Jamais podem ser ilhados ser-estar-pensar. Todo ser é

geográfico: a sociedade não pode ser abstraída de sua geograficidade. Todo estar é

tópico: a seletividade da singularidade-particularidade redefine o cosmopolitismo

e a globalização. Todo pensar é espacial: a abstração e a metafísica introrsa

conectam-se dialeticamente com a concretude da realidade extrorsa.

Sociedade e espaço, nos níveis concreto e pensado, estão

firmemente entrelaçados.

Em determinada ocasião, Santos (1997, p. 96) relatou que “Se o

ser é a existência em potência, segundo Sartre, e a existência é o ser em ato, a

sociedade seria assim o Ser e o espaço a existência”. Fato é que o espaço é

produto/produtor, reflexo/refletor dialético de ações para com o mundo e à

sociedade classista, por isso é mais que passivo e receptáculo, antes se referindo à

essencialidade contraditória das práticas sociais que apenas à empiricidade

paisagística aparente e letárgica (MOREIRA, 1988b; RIBAS et al., 1999;

RIBEIRO, 2001b, 2004b; OLIVA, 2001). O espaço sintetiza tanto a empicidade

como a incorporeidade da dinâmica social a lhe embalar (SANTOS, 1997).

Como corpo do tempo, ratifica as formas espaciais que as

sociedades implantaram em seu arranjar-se com o meio, no dilatar e relacionar-se

histórico dos homens entre si e com o ambiente construído (MOREIRA, 1996).

Em razão das acoplagens havidas entre trabalho e espaço,

Moreira (1988b, p. 85 e 86) afirma ser o espaço a expressão formal do conteúdo

processual do trabalho social:

Espaço e trabalho estão numa relação de aparência e essência: o espaço geográfico é a aparência de que o processo historicamente concreto do trabalho (a relação homem-meio concreta) é a essência (...) O espaço geográfico é a materialidade do processo do trabalho. É a “relação homem-meio” na sua expressão historicamente concreta.

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Por não haver forma sem relação com conteúdo, o espaço pode

ser percebido como a estrutura invisível da sociedade (idem, 2002c). Como a

dimensão socialmente criada, não obstante de maneira alienada.

Em caso de mais generalizante a visão, com uma teoria da

relatividade social mais holística, a tridimensionalidade dialética do espaço

intercalada com o tempo e a quinta dimensão do cotidiano, se transforma numa

pentadimensionalidade de cuja complexidade muito há por explorar.

E se o espaço é produto do trabalho dividido, este também é

condicionado por aquele. Ao passo que o espaço geográfico coloca-se como a

materialidade do processo de trabalho organizado (inclusivamente para além do

mundo do trabalho), o trabalho põe-se como a objetividade processual do agir

acondicionado pelo espaço do capital.

Se “O movimento é o modo de existência da matéria”

(LEFEBVRE, 1995, p. 185) e se a natureza do espaço identifica-se com a

“dimensão em que o movimento assume formas” a partir do trabalho que, como

natureza em movimento, age na natureza envolvente por meio de seu caráter

social dividido e pelo movimento da técnica (D. SANTOS cit. in. RIBAS et al.,

1999, p. 121), o espaço só pode então ser compreendido como “aquilo que a

prática humana dele faz” (HARVEY apud SILVA, 1997).

Ao deixarmos para trás teorias e métodos (positivistas,

evolucionistas, etc.) que vêem o espaço como palco e geometria, segunda natureza

ou natureza produzida “coletiva” e “harmonicamente” pelos homens por sobre a

natureza dada primeiramente (primeira natureza), abandonamos a um só tempo a

idéia que o tem por instância em que se enverga a flecha do tempo, palco em que

se sucederiam episódios. O espaço é o próprio tempo, não é apenas sucessão mas

a própria relação (causal/casual/dialética) dos eventos. É impossível evento social

sem espaço e história sem evento (SOJA, 1993); espaço e tempo são dimensões

gêmeas (SZAMOSI, 1988). Como os próprios eventos singulares, o espaço é o

arranjo que estes tomam na dimensão concreta da relação do homem com a

natureza-mãe ou natureza-totalidade envolvente.

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Por isso ele deve ser compreendido geográfico-concretamente,

sendo ressignificado, reconceituado.

Vale lembrar que o mesmo deve ser feito sobre o conceito de

trabalho, dada à relação parental ineliminável existente entre ambos; o que

implica assegurar que o estancamento teórico de um interfere no desfecho da

leitura da totalidade geográfica.

Como vimos observando, o trabalho (a) não é o processo que

quer com o Espírito se reencontrar (teoria hegeliana), (b) não é mero princípio

legitimador da propriedade privada (teoria lockeana), (c) não é simples elemento

de crítica verbal e “despraxizada” (teoria do socialismo utópico), (d) nem

atividade dividida à geração da riqueza de nações (teoria smithiana), (e) não se

confunde com emprego ou com fator de produção a necessitar de reparo no

capitalismo por intermédio de reestruturação produtiva (teoria da economia

política burguesa); o trabalho (f) é o processo-elemento estruturante da sociedade,

fazedor da história, balizador do espaço e, porque essencial à sociedade, objeto de

desalienação e humanização pela revolução social (teoria marxiana).

Distinguindo-se dos animais, o homem que trabalha sabe que o

faz. Produz o que necessita e é capaz de fazê-lo para que os demais animais

tenham proveito, se assim o desejar. Produz além disso, aquilo que simplesmente

lhe agrada, com o anelo de deleitar-se com o prazer que a obra há de lhe reservar.

Antecipa na mente o fato, seu fim: preconcebendo o trabalho, teleogizando-o. E

no caso de aprazer-lhe, faze-o com a excepcionalidade de seguir o critério do belo,

a arte da estética.

A história do trabalho, a sucessão das formas espaço-temporais

precipitadas à reprodução da vida e manifestas no esforço homem-natureza,

explana as particularidades das funções históricas das formas e das atividades

geográficas de reprodução da existência humana no decorrer do tempo, no

transcursar dos espaços. Que se entenda a sucessão de modos de produção, porém,

não como o transpassar duma evolução cronológica mas muito mais próxima da

concepção marxiana que a tem como sucessão em um sentido mais geral, operada

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igualmente por rupturas (como as que se viu com os sistemas escravista e oriental,

a guisa de exemplo).

Importante dizê-lo, entretanto, que o trabalho se instala como

processo fundante da sociabilidade, como protoforma do ser social e não como

extensão a tudo determinante: no complexificar do ser social ganham corpo

feições distanciadas e prolongadas de realização no âmbito da reprodução social.

A gênese ontológica da liberdade, para Lukács, “se origina a

partir da esfera do trabalho”. Através dele processar-se-á o momento catártico

denominado por Gramsci, o findar dum bloco histórico e o iniciar doutro, no qual

o reino da liberdade tomará o lugar do reino da necessidade para que se alcance

outro bloco histórico. A refundação da substância do trabalho é plataforma

genética à transformação das contra-espacialidades e heterotopias alternativas em

um novo bloco geográfico.

Ainda que a origem ontológica da liberdade ao trabalho não se

limite e tampouco seja fator inicial e exclusivo de reconhecimento da negatividade

da sociabilidade do capital, por sê-lo elemento estrutural-fundante do ser, cremos

que outra sociabilidade para efetivar-se materialmente requererá minimamente ter

por fundamento um novo trabalho, concreto, desfetichizado e emancipado. A

história ou espaço ordenado stalinisticamente pelo trabalho dividido, estranhado,

alienado e produtivista, serve de lição.

O trabalho é a essência ativa do homem real, processo fundante

do universo espacial e balizador do ponto do salto do animal em homem e das

sociedades antropóides em sociedades humanas, do caos e des-ordem físico-

material da dialética natural (determinidade e legalidade da natureza, considerada

caótica porque desconhecida) em energia teleológico-social com dialética de

cunho social a conferir ordenança ao meio a partir da (tão temida por positivistas,

idealistas e escolásticos) prática concreta.

O trabalho está na origem da alienação do homem em relação à

natureza. Ontologicamente nada tem que ver com o processo de alienação na

sociedade civilizada/burguesa. A alienação antropológica do trabalho na relação

homem-natureza discrepa-se de qualquer fulcro ineliminável de alienação

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ontológica do trabalho na relação homem-sociedade, como mostrou-nos Marx

(1964) e alguns de seus seguidores, como G. Markus (Marxism and antropology

cit. por KRADER, ob. cit., p. 264, nota de rodapé nº 2)116.

O trabalho é o processo da natureza que se autodetermina

motivando pari passu a natureza exterior (orgânica e inorgânica), sendo

contraditória e intensamente influenciado por ela. A energia natural não mais flui

essencialmente desgovernada, canalizando-se objetivamente pela

autodeterminação têmporo-espacial da natureza que se torna humano-social. Isso

porque, da cotidiana relação homem-natureza, processada pelo trabalho, no

produzir-se e reproduzir-se biológica e socialmente (respirar, alimentar, amar e

proteger-se) é que evoluiu o homem em passos lentos à generalidade.

O big-bang do universo social tem gradativamente organizada a

energia que mana, como trabalho da potência do humano controlando e

canalizando os outros fenômenos energéticos existentes. De certa forma, o plano

de evolução humana marcha de par com o domínio cumprido sobre as outras

formas de energia, em combinação com o medrar dos equipamentos técnicos.

Podendo-se dizer que o estado da graduação da evolução tecnológica da sociedade

amarra-se ao quantum do fator-energia usado para acionar a parafernália técnica,

determinando igualmente o complexo de idéias e representações (reais ou

invertidas) que estimula/interfere a direção e no movimento da materialidade

geográfica, como dimensão “superestrutural” criada.

Nas fases iniciais da evolução humana foi a energia solar, a ser

descoberta pela domesticação de animais e de plantas (tração animal, alimentação

e vestuário), juntamente com o principesco conhecimento da energia imanente aos

fenômenos naturais e atmosféricos (chuva, água e fogo)117, que deram um salto

qualitativo no manejo ambiental e em seus elementos, contenção do dispêndio de

energia humana gasta (e o conseqüente ganho com o tempo de não-trabalho) e

116 Esses autores, no rastro do enunciado marxiano, se posicionariam avessos à sacralização da premissa burguesa de naturalização (desistoricização-desespacialização) do fenômeno alienação. 117 Sabemos que posteriormente ao manejo da energia solar, vieram o carvão e o petróleo a ocuparem o posto de propulsores do movimento das forças materiais produtivas e do deslocamento dos fluxos. Em seguida, a energia nuclear. Agora, a biomassa (biodiesel em destaque), fonte de energia renovável impulsionada pela biotecnologia; entre outras em pesquisa.

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aceleração da dinâmica de desempenho das forças produtivas, com maiores

resultados materiais impetrados.

A riqueza é urdida nessa relação homem-natureza, entre a

Natureza Social e a Natureza Primária. Noutros termos, entre a história que o

homem faz (Segunda Natureza) e a que independe da prática e ciência humanas

(Primeira Natureza).

Para reproduzir-se o homem trabalha. A qualidade e o patamar

histórico da existência material vinculam-se à gradação da produtividade obtida,

das matrizes técnica, energética e laborativa inventadas, da repartição da riqueza

concebida, do ambiente conhecido e regulado. Enfim, das formas desenvolvidas

pela organização econômica interna dos membros da sociedade com o espaço em

que vivem, já que, registrou Marx (1999), “A estrutura econômica da sociedade é

formada pela totalidade dessas relações de produção”118.

Pobreza e riqueza são fenômenos concretos entrançados à

estrutura organizativa da sociedade, atados à capacidade de produção-distribuição

do produto do trabalho materializado ou não em objetos, e não forma abstrata no

universo descolado da idéia. Daí que a forma em que se estrutura a sociedade,

seja-a primitiva ou civilizada, deve ser vista em seu contexto e sem que haja

embaralhamento de contextos (não se pode entender a sociedade primitiva a partir

da ótica da sociedade de classes e de sua respectiva teia de valores).

Um tipo de cuidado como esse pode servir-nos diante de

concepções teóricas que asseguram que a pobreza e a fome no paleolítico, por

exemplo, se fizeram originadas da obsolescência das técnicas e da envergadura

limitada da capacidade de fabricação, como do desconhecimento da natureza

exterior, colocando-se em vista disso como o elo comunal primitivo básico à

cooperação, solidariedade e irmandade concreta, a ponto inclusive de hoje estar-se

a gerar nostalgia para com aquelas comunidades de bens da Idade do Ouro.

Quando o que ocorre é que, noutro plano argumentativo, em muitas sociedades

sem classes a não-geração do sobreproduto fora opção e não obra de inépcia, por

118 Compreendemos a estrutura a partir da ótica demonstrada pela geógrafa Lenyra Rique da Silva (1991): como o elemento interno e invisível da sociedade.

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inexistir incitamento ao sobretrabalho, à obrigatoriedade (MANDEL, p. 15-16,

58-59, 244-245; SROUR, 1978, p. 313 et seq.) e tampouco estado famígero ou de

miserabilidade, como afiançam ideólogos burgueses, marxistas vulgares ou certos

descuidados.

Para alguns a união e a solidariedade primitivas são produtos

originários da pobreza e rusticidade do ato de trabalho. Outros a viram como

opções conscientes de um modo de vida estruturado por ações individuais

harmoniosas e relações sociais solidárias (inclusive na divisão do produzido).

Posicionamo-nos entre os da segunda vertente, embora nem ela

talvez deva ser generalizada a todos os laços sociais existidos.

Mas talvez o que menos se discuta seja a novidade enxertada

com o progresso das técnicas materiais e do conhecimento das leis da natureza.

Não porém por haver determinismo duma pseudo-Natureza Humana, imutável e

individualista, a se desvendar tão logo a coesão ponha-se afrouxada e a distinção

individual elevada pelo maior desenvolvimento técnico, porque os rumos da

civilização aclaram um dos muitos comportamentos possíveis no des-envolver

organizacional do ser, em seu saltar geográfico à frente.

Como Marx, dissentimos do ideário cultuado por T. Carlyle, a

ver no indivíduo o motor da história119. Emprestando-a indevidamente de Daniel

Defoe, a fabula da personagem Crusoé serve-lhe de inspiração; como também à

cegueira de Ricardo para com o homem primitivo caçador, enxergado como que

119 Evocamos nesse instante a dúplice dimensão que possui o indivíduo humano: a de ser a um só tempo abstrato e concreto. O caráter abstrato está no pertencer à espécie humana e à história natural do homo sapiens, enquanto história biológica do homem. Já a característica da concretude repousa na totalidade da história do gênero humano em toda a sua multiplicidade. A força da história resulta da combinação e cooperação espacial dos indivíduos em sociedade e não da soma dos indivíduos isolados. O indivíduo abstrato não tem história. O indivíduo concreto é o alicerce às forças produtivas, para a consciência e à realidade social. Em que pese o indivíduo ser “o conjunto das relações sociais” (MARX; ENGELS, 1996) e não expressão singular de uma essência humana abstrata, a sociedade exprime o conjunto ou o complexo das relações assimétricas entre indivíduo e sociedade na trama de relações indiretas e abstratas entre indivíduos, por não ser a relação entre indivíduo e sociedade uma simétrica via de mão dupla. Pensar o contrário seria querer substituir a ontologia social por uma ontologia individual, reduzindo problemas e questões que são sociais ao âmbito do indivíduo e da consciência em-si. Apoiando-se estaria um atomismo individualista bastante em voga no século XVII, reforçado que fora pelos ideólogos burgueses dos séculos XVIII e XIX. Mas desde a Antiguidade Epíteto e Aristóteles profetizavam o contrário: o último dizendo que o indivíduo fora da sociedade ou é divindade ou animal e, em ambos os casos, algo inumano (legado oponente aos ensinamentos de Sócrates).

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despojado de vida social. Figuram esses entre os pensadores que só vieram a

eleger argumentos idealistas, camuflados como materialistas, no lugar donde antes

se alocava a Idéia metafísica de Hegel, de ser Deus o movedor da história.

O modo como a sociedade trabalha, se aparelha e se reproduz

prospera no manejar-conhecer e conhecer-manejar do espaço e dos elementos

físicos, naturais e sociais. O trabalho e a propriedade comum tendem à vida social

coletiva e à manutenção da condição comunal de se trabalhar todos e melhor para

menos se empenhar.

O tempo de trabalho finaliza-se na consecução da reprodução da

existência para a manutenção da geografia do tempo do não-trabalho, onde as

dimensões artísticas, religiosas e humanas potencial ou vigorosamente despertam.

Quando vêm à tona classes antagônicas, o trabalho, elo

fundante-estrutural da totalidade da práxis social, faz-se socialmente dividido. A

divisão do trabalho gera a rede combinada de elementos igualmente divididos e a

profundidade e abrangência desse desenvolvimento se expressa geograficamente

de modo diversificado pelos quadrantes do globo.

Veremos adiante essas características de maneira mais

detalhada. A conveniência da antecipação lia-se à condição histórico-geográfica

geratriz da “civilização”, da “história social” e do “espaço social”, sobre a

ribalta do “trabalho social”.

Reforcemos, contudo, que houve sobreposições, sucessões,

interposições e multivariações das formas de organização espacial ao longo do

tempo, inexistindo evolução mecânica. Outro não foi o motivo para que a situação

permanecesse a mesma em muitos cantos e para muitas sociedades, com a

manutenção da relativa diferenciação não-antagônica dos integrantes da

comunidade se reproduzindo. Não houve demolição universal, continuada e

irrefreável nesse processo; aspecto mais que suficiente para a perpetração da

cultura comunalista primitiva, quer na esfera da produção ou da gerência, efetuada

pelas assembléias coletivas gerenciadas pelos mais antigos e hábeis personagens.

Com a finalidade de mencionar a sucessão temporal não-linear a

partir das sociedades de classes – já que muitas se entrecruzaram no tempo ao

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passo que outras “antigas” chegaram a épocas mais recentes –, evidenciamos o

fato que existiram sociedades sem classes e sem Estado (caso dos Guarani,

Nhandevá e Kaiowá) e muitas outras do Brasil pré-colonial e contemporâneo. Os

teóricos de linhagem hegeliana ou os antropólogos estruturalistas, portadores de

visões eurocêntricas e metafísico-idealistas, é que primam esses predicados como

certificadores da maturidade e desenvolvimento da humanidade; com os que a eles

se isentam sendo taxados de serem sociedades sem-Estado, sem-escrita, sem-lei,

sem-rei, sem-moeda, sem-comércio, sem-alma... sem-humanidade, até.

Não obstante que a raiz da sociedade civilizada, das classes e do

Estado se concerte com o fim da comunidade de bens (sociedades regidas pelos

princípios coletivos da “vida arcaica” das gens, clãs, grupos consangüíneos,

linhagens ou comunidades aldeãs primitivas), deve-se ter claro que o retraimento,

isolamento geográfico e a heterogeneidade das formas de reprodução e

desenvolvimento das forças produtivas entre os diversos povos do mundo

propiciaram a perpetração da reprodução de formas coletivistas descontínuas

noutras porções do globo. Isso permite assegurar que o desaguar da evolução

diversificada da história dos modos de produção não são lineares e universais

(como sopesara o próprio Marx120), não suprimindo totalmente histórias

características que quase até recentemente galgaram o presente. Devendo sê-los

concebidos como processos históricos concretos gerais e não universais; a própria

concepção calculista do trabalho como produtor de valor, ou do tempo de trabalho

socialmente necessário ao fabrico das mercadorias, atesta a concreticidade

histórica e espacial específica a alguns povos e regiões do globo, e não a todos,

pondo-se o valor como atributo da sociedade civilizada mercantil burguesa.

120 Marx, sob certos aspectos, deixa transparecer a teoria da sucessão linear dos modos de produção, seguindo um grau sempre superior e mais desenvolvido do estágio subseqüente em relação ao anterior, por ater-se à materialidade do desenvolvimento social: eis por que de ter considerado a Índia uma civilização com desenvolvimento social e comercial inferior ao inglês de seu tempo, ainda que fosse superior aos dos árabes e turcos. Talvez tenha isso a ver com a influência indireta da tipologia classificatória hegeliana aos povos americanos conforme as técnicas de que dispunham. É Descola (1999, p. 112 et seq.; RIBEIRO, 2004, p. 21, nota de rodapé nº 24) que nos mostra a comparação feita por Hegel – e naqueles inspirados nele – entre os povos europeus e os povos da floresta da América, que Hegel enxergava como “crianças desprovidas de qualquer intenção superior”, a habitar regiões com debilidades físicas e faunísticas, como povos de imaturidade psicológica, política, moral, de inferioridade técnica e humana.

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Observemos o caráter do trabalho e das forças produtivas que

subsidiam os espaços nos múltiplos estágios dos modos de produção classistas as

quais pertenceram ao longo dos séculos, por serem eles módulos de espaço-

tempo, as molas a projetar para frente o corpo social; e longe de uma teoria geral,

ideal e acabada, mais próximo dos pródromos duma concepção geográfica

marxista dos períodos de inércias, retrocessos, arranques e avanços demonstrados

pelas sociedades que iam arrumando e desarrumando espacialidades a partir das

forças produtivas e das relações de produção experienciadas.

Faremos isto por entendermos, bem ao contrário do que cria o

Florestan (SOARES, 1997), que o método do materialismo histórico-dialético

pode sim contribuir para o entendimento de sociedades e de períodos históricos

passados, com aceite daqueles indígenas, que indispunham das contradições

encontradiças em sociedades como a nossa, divididas e hierarquizadas por classes

sociais, organizando-se sob formas coletivistas. Cria esse sociólogo ser melhor o

método funcionalista para esse feito, uma vez que a seu ver sociedades

desprovidas de contradição como essas não poderiam ser estudadas pela ótica da

dialética materialista. Dele discordamos, realçando a potencialidade de talvez sê-

lo o mais acertado método, já que se dispõe a analisar a sociedade em sua

concreticidade histórica, em seus múltiplos processos e movimentos, a partir de

um olhar por sobre as formas espaciais, para entranharmos na essência do ser que

se concretiza como estar geográfico localizado e regulado meticulosamente,

racionalmente pela rede de valores, normas e regras dominantes.

Lukács também assegurava que se o materialismo histórico for

considerado como método científico poderá ser aplicado a épocas anteriores ao

capitalismo, apesar de reconhecer franca dificuldade metodológica no marxismo

para discernir as chamadas sociedades primitivas das sociedades de classes.

A possibilidade ou inviabilidade de estudos das diferenças

estruturais entre ambas seria menos incapacidade do materialismo histórico-

geográfico de se enveredar pela antropologia de outrora (ou pela geografia de

alhures), do que ardil ideológico de antropólogos ingleses e norte-americanos

sobretudo, que tentam circunscrever a temática sob o guarda-chuva de sua ciência,

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alegando que a dialética materialista nada tem a oferecer à perquirição das

relações de reciprocidade que espelham as relações de parentescos edificantes das

formações sociais primitivas.

A gosto de alguns, contragosto doutros, o cientista não precisa

pedir licença pra ousar, pensar, refletir.

O marxismo segue rompendo portas e arrebatando novos

campos.

Eis o porquê de, além do declarado apoio do Althusser em

Materialismo histórico y materialismo dialético, ser de igual modo da

consideração do antropólogo marxista Emmanuel Terray (cit. por SROUR, 1978,

p. 53, nota de rodapé no 23, parênteses nossos) que:

A tarefa atual dos investigadores marxistas consiste em expulsar essa ideologia de seu último refúgio, consiste em anexar o domínio reservado da antropologia social ao campo de aplicação do materialismo histórico, consiste em provar a universalidade dos conceitos e métodos elaborados por este, consiste em substituir a antropologia social por um setor particular do materialismo histórico dedicado às formações econômico-sociais nas quais está ausente o modo de produção capitalista, setor este no qual colaborariam historiadores e etnólogos (como geógrafos e outros cientistas sociais).

Como sinalizou Srour, apesar dos empecilhos, houve “respostas

aproximativas”, inda que sob o aspecto de “formas descritivas” para caracterizar

as “formações sociais periféricas”, incluindo-se a brasileira, como a do “tipo país

semicolonial, país semifeudal, capitalismo de Estado, pré-capitalismo, formações

mistas, modo de produção colonial, etc.” (op. cit., p. 24-26).

O leque de questionamento se abre diante da vastidão da

problemática.

Como anteriormente punha-mos a questionar: teria havido

feudalismo no Brasil, na forma de uma “antecipação capitalista” em relação ao

continente europeu? Quando e sob quais nuances se processou a revolução

burguesa no Brasil? Sob quais aspectos se deu a subordinação da burguesia

interna com o momento externo do capitalismo (mercantil e industrial,

concorrencial e monopolista)? Houve revolução de modos de produção ou desde o

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início do “achamento” foi o Brasil arrumado, diferencialmente, por dentro dos

marcos do (e como) regime capitalista, com somente paradigmas produtivos se

sucedendo quase sempre tardiamente em relação aos países centrais do sistema?

Neste caso, não havendo revoluções na formação social, teria havido unicamente

revolução política? O desenvolvimento desigual e combinado se dava entre modos

de produção ou dentro já dum modo de produção?

Do presente, por nós averiguado metodicamente e revelado

neste estudo, exporemos a lógica que presidiu o processo desde outrora. Como

recurso metodológico expositivo isto faremos e não por qualquer outro motivo,

posto que, já fizemos saber o enunciado marxiano, nesta atual forma superior é

que devem ser desveladas as precedentes, e é por isso que haveremos de fazer

uma exposição relativamente evolutiva dos modos de produção, em que pese não

haver linearidade e homogeneidade em seu manifestar mas variegados encontros e

desencontros têmporo-espaciais.

Existiram formas históricas e determinadas de desenvolvimento

avocadas pelas sociedades, que ao se organizarem definiam o norte que possuiria

o trabalho. Ao mesmo tempo em que a ordenação do trabalho, segundo o modo de

produção reinante, redefinia dialeticamente a estrutura organizativa da sociedade,

ou seja, a forma pela qual os indivíduos em combinação (cooperação)

transformaria os materiais naturais pela aplicação direta da atividade laborativa,

alterando-os no interior do processo de produção.

Baliza o espaço essa dialética de relações entre forças espaciais

produtivas e relações sociais de produção. Pela peculiaridade do grau de

intersecção existente entre os diversos padrões de biodiversidade e

sociodiversidade, de certo modo o espaço determina o nível de desenvolvimento

dos mecanismos de reprodução da existência pela territorialização individualizada

dos vetores sociais gerais. As relações sociais são desigual e combinadamente

geo-grafadas, marcadas vertical e horizontalmente, com o conteúdo

hegemonizado paralelamente sofrendo os (des)ajustes aflorados nos lugares.

A história natural, como história de reprodução biológica

(procriação) dos homens, diferencia-se da história social fundada no trabalho.

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Embora cada vez mais o regime do capital esteja lucrando com a produção

biológica de espécimes vegetais, animais... humanas.

Até então essa divisão era mais rígida.

A história natural fora objeto de Darwin, que pesquisou a

tecnologia natural dos homens: o armazenamento, acumulação e transmissão dos

caracteres hereditários pela seleção natural das espécies. Marx ocupou-se da

história social da acumulação, armazenagem e transmissão da tecnologia social,

ou das habilidades dos trabalhadores ampliadas ao longo do tempo.

Hoje, aceleradamente, o labor (laboratório) científico cruza

essas tecnologias tornando dificultosa sua diferenciação por conta da natureza

social do trabalho guiado pelo valor econômico que, em seu favor, suscita

intensos debates éticos e religiosos, como que querendo reestruturar a

superestrutura societária na esfera dos valores morais.

Nesse longo percurso que deságua no presente, bem lá no

princípio notaremos que o espaço não era inativo a esse processo. De natural base

física a prover a vida antropóide que caça, coleta, abriga-se e acolhe os filhos

gerados, transmuta-se pelo trabalho em mundo ordenado, conhecido, marcado,

localizado, diferenciado, pré-planejado e coletivamente refeito, com o

conhecimento gradual e muitas vezes inconsciente (mistificado) de suas leis tendo

contribuído à invenção crescente de objetos materiais pelas mãos dos integrantes

das sociedades primatas.

O neolítico foi o primeiro marco bifurcador da organicidade dos

(des)arranjos. Nele, segundo Gerd Bornheim (1998, p. 21-22), deram-se os

estabelecimentos dos hábitos sedentários nas emergentes povoações, com o trabalho transformador da natureza, com a divisão do trabalho e, expressando isso tudo, com a intervenção da doutrina dos dois mundos, o dos homens e o dos deuses, que consolidaria as bases remotas de toda a questão dos universais.

Formas de trabalhar, co-operar, interagir (entre si e com o meio),

enxergar, refletir e ordenar ambiental e subjetivamente o vivido, fundamentam o

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que vêem, imaginam e fantasiam sobre a origem e o fim que tudo cerca e

entranha.

Demonstrou Marx a análise da história humana estar a

compreender quatro dimensões, quais sejam:

Relação do homem com a natureza;

Processo de produção direta da vida humana;

Relações sociais da vida humana;

Representações mentais ou espirituais decorrentes das anteriores.

Ocupemo-nos nesse momento da história social identificada

com o trabalho: o big-bang instituidor de espacialidades, irromper energético

manejador e instituidor de técnicas e objetos técnicos, quando de seu ser genérico,

estado característico do animal social ou animal de rebanho, o trabalho passa a se

debruçar e se prender em formas de propriedade que, desenvolvendo-se, vão

refletindo o grau de individualização que o homem sofreu em seu processo de

desenvolvimento histórico. Afastando-se assim o homem daquela unidade original

formada pela comunidade (tribal), alterando, por conseguinte, sua relação com a

própria natureza (espaço natural).

Trazendo para o nosso contexto de discussões as contribuições

de Bolívar Echeverría (1995), que destrinçou o mundo moderno principiado com

as descobertas européias, percebemos a substituição dos espaços-tempos e povos

primitivos aos modernos, com a transição das “técnicas mágicas” às “técnicas

racionais”, instalando-se a vida moderna que:

impõe uma civilização que têm sua origem no triunfo aparentemente definitivo da técnica racionalizada sobre a técnica mágica (como se fosse) a morte da primeira metade de Deus (ECHEVERRÍA apud SPOSITO, 2000, p. 129).

Com isso foram o sentimento mágico e o encantamento do

homem com o mundo se esfumaçando; a nova materialidade, as novas regras e

possibilidades causaram modificações na esfera do cultural e da psique. (Ao invés

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das rezas e preparados do pajé se procura hoje, cada vez mais, o médico nos

momentos de agonia, por exemplo)

Em cena, desdivinização, dessacralização e tecnificação

urbanística.

Sabemos que é a organização social do trabalho o que desenha

os meios de produção econômico da sociedade, formatando geograficamente a

sociedade e suas contradições endógenas, suas relações de propriedade e as

relações sociais de produção que interatuam com as forças produtivas.

Pelo trabalho rebenta e revigora a organização social da

produção, em espaço produzido humanamente. O espaço natural fica para trás e o

espaço social complexifica-se na medida precisa da intensificação e extensificação

das relações de produção e reprodução humanas. O gradiente de desenvolvimento

espacial das forças produtivas, das relações de produção e de troca, e as

contradições entre as mesmas forças produtivas e as relações de propriedade,

revelam-se como motor da história dos modos de produção geográficos das

sociedades, de seus estágios espaço-temporais de re-evolução121.

Por ser dialética e conflituosa a lógica estrutural da sociedade,

recheada por lutas internas radicadas em classes opostas, a essência do espaço só

poderia concretizar-se como engenho humano-social igualmente contraditório.

Rodeado, encharcado e afetado por contradições inerentes ao modelo das relações

sociais de produção gerais, o espaço as absorve (in-corpo-ra), confronta-as, re-

alinha-as e re-projeta-as, interferindo inexoravelmente na dinâmica e

funcionalidade das relações sociais, pelo processo dialético imanente às suas

estruturas internas e às relações que se desenrolam entre ambas as dimensões.

Nada de espiritualidade racional pré-humana, “inconsciente” e

ansiosa de reencontrar-se, a “externalizar-se” no mundo, pondo-se como

configuração Espiritual-territorial norteada pelo Estado, a externar a Razão divina

121 Nem todos os autores concordam com essa máxima marxiana. Robert Brenner pretende que o conflito maior nas sociedades pré-capitalistas, que contribuem ao seu enfraquecimento e dissolução, se dá entre as classes sociais, entre os produtores diretos e a classe dos exploradores, ou seja, não seria o desenvolvimento das forças produtivas que prejudicaria e colocaria em xeque a reprodução dos modos de produção pré-capitalistas.

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arraigada como prática social evoluída, como poderiam pensar os que tomam a

Hegel por autor predileto (como o seu compatriota Karl Ritter), porque foi o

Hegel quem por primeiro acusou que o Espírito absoluto atravessa e alenta com

sua inspiração a história, perdendo-se e reencontrando-se através das épocas; e

nesse processo em que o “sujeito” da história é identificado com o Espírito, os

verdadeiros sujeitos históricos ou os filósofos são visualizados como o “objeto”

de encarnação da Idéia, e assim segue o “Homem” idealizado pelo Hegel nesse

processo a caminhar por momentos, etapas negadas, contraditadas (abstratamente,

metafisicamente, pela Idéia pura, que é o motor do drama), que se engrandecem à

medida que se distancia do seu estado primitivo e se aproxima do tipo civilizado,

da infância à maturidade e da sensação à consciência plena (do tipo alemão

burguês!).

A dialética do movimento concreto e contraditório do espaço

nada tem com a dialética do movimento abstrato e contraditório da metafísica

racional da Idéia, que estaria a predizer o arrumamento abstrato e linearmente

progressista do corpo social.

O desenvolvimento desigual e combinado das relações sociais

espelha e confronta-se com essa lógica hegemônica que fita unificar

globalitariamente os espaços (ou as espacialidades sociais, diria Soja). A

afirmação logística do espaço-mundo concretiza-se pela combinação desigual e

negadora de territorialidades, em que uns locais devem perder, se secundarizar e

subordinar, para que outros se sobressaiam e se nuclearizem no mando.

As razões para a manifestação desigual de processos e estágios

de desenvolvimento social e a tonicidade espacial nada têm que ver com a medida

da presença da razão do Espírito, encarnada com mais maturidade em Estado-

territorial. O tensionamento subjacente ao espaço deita raízes na própria forma em

que se encontra estruturada e arbitrada a sociedade, na disposição conflituosa e

hierarquizada dos membros.

O espaço cosmizado, a natureza externa enxergada algumas

vezes como inóspita por primitivos, que lhes rendiam rezas e oferendas para com

ela estar-se em harmonia, vez que nela os deuses se faziam presentes, tinham

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como epicentro ordenador do caos elementos instituídos pelo homem ou

vislumbrados na natureza como elo com as instâncias superiores. Trata-se aqui do

que chamam alguns de axis mundi, o locus em que o ambiente é organizado

socialmente. O núcleo simbólico-material ordenador do caos adquiriria formas

saídas das mãos humanas, para os povos em que o espaço cada vez mais técnico

teria por símbolo objetos de valor socialmente instituídos122.

Isso quer dizer que os espaços naturais dos povos primitivos

também possuíam uma certa organização homem-meio, em que pese a

preponderância da adaptabilidade do homem ser mais requisitada que seu

(insuficiente) potencial e capacidade de interferência ativa (técnica) no mesmo.

Mesmo assim observa-se que ao passo que evolui a complexidade de sua práxis

social, transforma-se qualitativa e quantitativamente o nível do poder de

interferência, e com isso o espaço dominado pelas técnicas mágicas (e que na

verdade espelham certa forma de raciocinar, de refletir) vão sendo substituídos ou

ao menos coadunados com técnicas mais racionais, fazendo com que seja banido

o caos e extensificado o espaço cosmizado, ou o espaço natural essencial à

sobrevivência grupal.

O ambiente físico, pois, vai manifestando, sofrendo e reagindo

aos impulsos sígnicos projetados pelos homens, que imprimem diretrizes às ações

e à coordenação simbólica do grupo. Fortalecendo concomitantemente a coesão

político-econômico-cultural de seus integrantes.

A lógica organizadora do espaço esboça-se e se delineia na

condição da proporção do escólio de conhecimento e informações acumuladas

pelos sujeitos históricos, em determinado quadrante espácio-temporal. A

racionalidade é a percepção e lineamento discursivo que anseia formular respostas

122 Percebemos duas formas espaciais de ordenamento ou cosmização espacial. No primeiro, a simbolização ou (re)sacralização do ambiente processa-se a partir dum ponto no território (árvore, montanha ou qualquer elevação) valorada miticamente para desempenhar o papel de centro ou umbigo do mundo: tratando-se geralmente de um objeto natural. Noutros espaços dá-se a eleição dum artefato para exercer a função cósmico-centrípeta de gerenciamento espacial e execração do caos (cruz, igreja ou qualquer elemento transcendente que faça ligação entre os mundos inferior, terrestre e superior): trata-se já de um objeto social. Cf. ELIADE, s/d; SZAMOSI, 1988; COLI, 1998; GRUZINSKI, 2003; RIBEIRO, 2004b.

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às bolhas de dúvidas emersas pelo relacionar-se do homem com o mundo, com os

seus e os Outros.

Porque acompanham noções e valores históricos, o imo da

lógica é que muda. Daí o fato da explicação mítico-religiosa do real pelos olhos

gregos da Antiguidade, como a visão que os índios entoavam sobre o ambiente e

seus deuses, ser substancialmente outra que a lógica “racional” e científica

moderna, entretanto adotarem a mesma lógica de encadeamento de perguntas e

respostas, como bem percebeu José Porfírio de Carvalho123. O modo de

averiguação ou concepção é que excepcionalmente se transmuda.

O fato de termos já afiançado de que o construto social não

possui o fortuito e o despretensioso como substância central do ser – salvo como o

seu par dialético, nascido da impossibilidade de todos os entrecruzamentos de

complexos fatores se tornarem possíveis de antevisão –, como pretendem aqueles

que imputam às ciências sociais as mesmas leis por eles plausíveis nas da

natureza; ou os que estão inconscientes ou propositadamente a turvarem as razões

sociais classistas para que no umbral da lonjura poupem-se das luzes da

consciência.

O aleatório e o inesperado não têm assento permanente na lógica

da sociedade.

Não que o contingente seja teoricamente ignóbil. O

indeterminado marca presença na sociabilidade, tantos o disseram, Lukács por

várias vezes. A questão fundamental talvez esteja tanto na não-absolutização

desmedida da imponderabilidade de um lado e, de outro, na não-confusão da

indeterminação do real como fenômeno desprovido totalmente de causalidade; e

com respeito ao sentido dessa segunda questão, Chauí (1999) clarifica que o

indeterminado resulta de causalidades originalmente disjuntas que se topam, como

séries causais distintas que por motivos imprevistos se afluem, fazendo com que o

real compareça como complexo de causalidades ora por outra casualmente

entreveradas (como exemplo a calhar, a descoberta da América se lhe ilustra

pertinente a essa ocasião). 123 Consultar: Waimiri-atrori: a história que ainda não foi contada, no site www.estado.com.br.

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A realidade social deixa expressar-se na qualidade de situação

regida por qualquer estatuto ontológico de irracionalidade intrinsecamente natural.

O acaso e o indeterminado devem-se a relações nexais que se encontram, queira

ou não, saiba ou não o sujeito, ou o sujeitado.

Não significa isso que se deva advogar a tese da efetividade

absoluta da racionalidade humana. Mesmo porque não existe a noção imutável do

que isto possa representar, tendo em vista que a própria noção de racionalidade

em determinado contexto pode sê-la irracional naqueloutro, e isto porque

“Racionalizações dos mais variados tipos têm existido em vários setores da vida,

em todas as áreas da cultura” (WEBER, 2002, p. 30).

A realidade espacial é movimento de eventos e de

representações que se concertam e discordam, empedernindo-se e dissolvendo-se

no ar. É impraticável ao homem o prognosticar teórica e teleologicamente de toda

a complexa transa de relações causais do concreto espacial. A dialética da

natureza, da sociedade e do pensamento o impediria, não o deixando ir além da

histórica e espacial máxima consciência possível. Asseverar o contrário seria

apostar na onisciência do homem, abdicando-se conjuntamente do pressuposto

ontológico da dialética da legalidade da natureza.

As partes contêm traços da totalidade. A totalidade não se

propõe cognoscível pela soma interminável de suas enésimas componentes que,

por matemática colagem, mecanicamente se auto-revelaria como que por encanto

lógico-formal. A metateoria tem aqui seus limites. A síntese está na relação causal

e dialética dos determinantes estruturais da sociabilidade com as mediações que

lhes ameaçam a partir do e contra o seu próprio ser colidente.

Não havendo onisciência, tampouco ontológica irracionalidade

ou indeterminidade absoluta na natureza do real social e extra-social existiria.

Há que se saber distinguir entre a feição “racional” que detém

determinada organização societal, de acordo com sua visão de mundo e suas

pretensões histórico-geográficas, de qualquer postura irracionalista que defende a

sociabilidade como amontoado assistemático de atos, valores e vetores. O que não

quer dizer que tudo seja racionalmente encadeante e matematizável numa equação

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de irrefutável resolução. Mas o aleatório e o despretensioso não se colocam como

cernes subjetivos edificantes de qualquer corpo social que almeja manter a

capacidade de reproduzir-se, crescer e complexificar-se social e territorialmente,

com identidade agrupante que co-opera (trabalha coletivamente) em razão da

existência/resistência.

Eis o conteúdo latente do processo proto(des/re)humanizante do

ato do trabalho, e o seu conteúdo têmporo-espacial é uma das pilastras capitais

estruturantes da forma em que se realiza a reprodução da existência, porque

garante a vida e é fundante à socialidade (LESSA, 2002). É-o motor da história

para muitos, porque a emancipação humana não poderia nem sequer cogitar-se

possível desconsiderando-se a necessidade de mudança na sua qualidade;

redirecionando-a em proveito irrestrito e igualitário dos integrantes da sociedade.

A refundação da sociedade implica a reorientação do conteúdo e da função do

trabalho, a garantir que as potencialidades (esfera da liberdade) de hominização,

humanização ou desenvolvimento da omnilateralidade humana se desenvolvam na

seara da reprodução social da existência espacial coletivista e co-gerida, com uma

nova forma de organização societal construída na interatividade harmônica com a

organização do trabalho, no máximo enquanto contradição não-antagônica, de

modo que tenha o trabalho por fundamento a geração de um excedente concreto

(RIBEIRO, 2004b) que, qual renda social garantida em uma sociedade socialista

(BIHR, 1999), sirva ao homem durante toda a sua vida, e não o inverso.

As forças que “congelam” o espaço e que fazem a energia social

do trabalho escorrer na calha classista da opressão e alheamento, teria aí

estilhaçado um dos dutos que aprisionam as águas da história, ressecando

possibilidades de afloramentos de espacialidades humanizantes, com leitos outros

que não o lucro e o verter privado da riqueza abstrata.

Se o salto ontológico de sociabilidades consubstancia-se pelo

trabalho, o motor da história ou a essência (re)fundacional do espaço, considerado

como conjunto interativo das práxis dos indivíduos em sociedade, não deve sê-lo

visto mecânica e simplificadamente em todo o construto social edificado. A

sociabilidade incorpora formas e facetas distanciadas, prolongadas e

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complexificadas de agir e manifestar-se na esfera da reprodução social: na arte,

ética, afetividade, religião, esporte, alimentação, sexo e no direito. No entretanto

de jamais poderem ser, na ótica do materialismo dialético, separadas esfera da

vida e esfera do trabalho ou o sistema que a conecta, pelo trabalho tornado

atividade abstrata ou alienada (entfremdung). Há conexão e distinção,

aproximação e prolongamento, ao contrário do que creu Jürgen Habermas (1929-)

com seu estruturalismo analítico (ANTUNES, 2000; SILVA JR.; GONZÁLEZ,

op. cit; RIBEIRO, 2004a, 2004c, 2005a). Diminuirá sem desaparecer, tanto agora

como na posteridade, do capital ou além capitalista, porque se torna menos vivo e

cada vez mais morto, trabalho morto, em uma sociedade que transita do reino das

necessidades para o da liberdade.

A história universal bifurca-se em história que o homem faz e

história que o homem não faz (geograficamente falando, entre espaços naturais e

espaços sociais). A primeira antecede e extravasa o ser social; entoa à natureza

autocontida, de dinâmica e leis próprias. A história que o homem não faz, por seu

turno, acena àquela inaugurada no instante em que o animal-homem se

autodetermina pelo trabalho e prática social, controlando a si próprio e

embrenhando na natureza ao qual concerne e que somente em idéia (alienada) é-

lhe exterior; com vistas a mais conhecê-la em seu proveito.

Logo, é potencialmente una a história universal, como história

do trabalho, da produção e da ciência humana em relação à natureza. A história

natural subsumindo a história humana; do mesmo modo que essa subsume a

história natural, em um infindo intercâmbio entre ambas as partes. O homem ao

fazer sua história, consciente e inconscientemente, voluntária e involuntariamente,

intervém na história que ele não faz, ao passo que esta última influi de certa forma

na que é feita por ele.

Mas dizemo-la una a potencialidade da história por encontrar-se

humanidade e natureza concreta e reciprocamente separadas hodiernamente, com

o trabalho nucleando-se na origem da cisão (MARX, 1964). Em termos de análise

teórico-científica no entanto, alerta-nos Lefebvre para o fato de que o ser

mergulha a fundo na natureza, ao invés de distar-se ou dela se descasar, e que a

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natureza não existe na ou para a consciência humana, como união

irrevogavelmente tendente unicamente à abstração metafísica; muito pelo

contrário, a consciência humana é que emerge da natureza e pode com ela

reencontrar-se através de método vigilante à objetividade aprofundada.

Chama-nos a atenção o filósofo para a possibilidade de o

Homem reencontrar-se consigo mesmo. Já não é mais o Espírito quem deve se re-

encontrar.

Poucos não são os que compartilham da idéia de o reencontro do

ser social com a natureza, a desalienação dos homens, ainda estar a remeter-se à

questão respeitante aos nexos do mundo do trabalho, na refundação das relações

sociais de produção e reprodução e com o mundo natural. Pondo-se o trabalho no

frontispício da vida emancipada e repleta de sentidos (ANTUNES, 1998, 2000;

MÉSZÁROS, 2002; THOMAZ JR., 2000; RIBEIRO; THOMAZ JR., 2001).

O homem é a natureza metamorfoseada a partir de seus atributos

naturais desenvolvidos pelo trabalho físico e mental (ENGELS, 1979).

Se tudo é história, história da transformação, o mesmo se pode

assegurar sobre o espaço. O espaço é a dimensão em que se arrumam e

desarrumam forças e relações (entre homens e coisas), visíveis e invisíveis.

O movimento existe, seu conteúdo é social. Leis imutáveis e

eternas foram ademais ideais metafísicos que agradavam a reis medas e persas, à

Igreja, aos filósofos especulativos que buscavam as leis do ser social, aos

economistas clássicos e seu pressuposto teórico da natureza humana imutável e a

antropólogos especulativos, que faziam da história uma hipóstase, um sujeito

metafísico, fetiche ou autômato dotado de vontades autônomas.

Por demais conhecidas são as criticas de Marx a E. B. Tylor

nesse assunto. E o culturólogo Leslie White (1978), concomitantemente evidencia

uma nítida orientação evolucionista de autonomização exacerbada dos sistemas

culturais em relação à sociedade, que tão-só refletiria o grau de encadeamentos

relativamente autônomos dos complexos de símbolos; a numerosos outros

pensadores se assemelhando, desde Herbert Spencer (1820-1903), Edward Burnett

Tylor, John Lubbock, L. H. Morgan, J. B. Phear, H. S. Maine, Émile Durkheim e

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a Sidney Webb, neste último com maior transparência; todos eles entrementes

guardando diferenças entre si: como a oposição de Durkheim ao pai do

estruturalismo individualista inglês, A. D. Radcliff-Brown, ou a oposição do

americano evolucionista Morgan à interpretação individualista da história, que

tinha a Teseu não um indivíduo mas um período histórico ou uma série de

eventos.

Em termos gerais, vemos ser antiga a polêmica do

evolucionismo (culturologia) ou dos evolucionistas, sobre-determinadores dos

simbolados, com antropólogos e defensores da centralidade humana no realizar da

cultura e da história, como Franz Boas, Radcliff-Brown, Spiro, Robert S. Lynd,

discordantes da premissa de que deteria a cultura realidade ontológica, como algo

externo e fundante do ser. Há que se saber avaliar a dialética entre símbolos-

símbolos, símbolos-sociedade, materialidade-imaterialidade, racionalidade-

legalidade (RIBEIRO, 2004b). Se o homem é determinado pela história que faz

sem o saber, também a ela é determinante, sendo-o criatura e criador dessa e de

outras histórias e espaços possíveis. Basta-nos a recordação marxiana-engelsiana

de que “as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as

circunstâncias” (MARX; ENGELS, 1996, p. 56)

A história que é feita por nós é história do trabalho e esforço

humanos.

É a história humana (ou história da natureza que se tornou

humana) aceita como objeto da ciência natural, de forma indevida e quase que

generalizada. A olvidar que é a ciência natural da mesma maneira produto da

ciência do homem; condição a pôr em cheque a ilusória neutralidade e imunidade

do saber, que se autoconfere o método positivista e naturalista.

Ao dialeticamente infundir a sua autotransformação pelo

trabalho, a natureza pariu a condição social transformante e fazedora de outra

história: aquela de uma relação da história social e natural como potencialidade

una de uma materialidade historicamente decomposta atualmente na organização

social classista e alienada que, num suceder de idéias, ideologias e práticas

dominantes, resultou nos espaços privilegiados dos superiores sociais.

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Os destituídos dos meios espaciais de produção e de subsistência

transformam-se em trabalhadores imediatos criadores de sobre-trabalho ou sobre-

produto, gerando a riqueza social a partir da especialidade laborativa imposta pela

divisão social do trabalho em sociedades classistas. À divisão social do trabalho

se ajunta a divisão espacial do trabalho, numa dança nem sempre bem coordenada

pelos gestores (que trabalham intelectualmente na administração da relação

contraditória), que sofrem e se contorcem com as reviravoltas dos trabalhadores

que cotidiana e lentamente vão aprendendo a enxergar a distância espacial que

guarda o abismo existente entre o andar de baixo e o de cima da sociedade, em

que se encontram os que não trabalham de fato – pelo contrário, até demonstram

uma espécie de “labor-fobia”, como a que possuíam filósofos e patrícios da

Antiguidade.

As relações de produção que dividem o trabalho para maiores

excedentes pela especialização da funcionalidade produtiva, não conseguem

escapar ao fato de o espaço produzido reagir, reinventar ou reamoldar os vetores

econômicos gerais; inclusive porque a organização e disposição territorialmente

descontínua mas integrada do trabalho manifesta-se territorialmente como

representação e organização classista dos trabalhadores mais ou menos

solidificada em correspondência com a coordenação da espacialidade

singularizada dos meios espaciais de produção e de trabalho pelos trabalhadores,

que deixam de ser simples peças passivas na engrenagem retro-alimentar do

capital.

A legalidade do real, a história que não é feita pelo homem124,

ou a lógica e individualidade da natureza autocontida e independente ao ser social

(WHITEHEAD, 1994, p. 7, 19 esp.; LEFEBVRE, 1981, p. 49) não pode servir de

parâmetro à leitura da processualidade da geografia alicerçada, abnegada,

combalida e refeita pela sociedade, porque são outros os parâmetros (QUAINI,

124 Essa expressão de Vico (Principi di Scienza Nuova, 1744 apud KRADER, 1987, p. 273-274) foi utilizada tanto por Darwin quanto pelo Marx, que diferenciou a história social da história natural. Com essa definição, Marx distanciava-se da concepção comungada, entre outros, por Francis Bacon: de que tudo está a submetido à história, quer a natureza ou o homem (mesmo não havendo separação absoluta entre ambas, por se imbricarem cada vez mais). Essa simplificação das histórias fora também alvo de pensamentos de Buffon, Kant, Laplace e Adelung.

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1991). Insistir nesse disparate, como tantos fazem na atualidade, é ler o espaço a

partir da ótica da (i)lógica certificadora do que entendemos por quântica social

(RIBEIRO, 2004a), que expressaria em escala social ampliada, de forma

naturalista ou evolucionista, uma “razão de ser” natural inextrínseca a todo fator

do real, inclusive à história que é feita pelo homem, que supostamente seria em-si

irracional e que, por isso, no plano teleológico, a ciência não poderia

ontologicamente acompanhá-la.

Sem mais ou menos, os donos do mundo querem agora negar as

ciências, especialmente as críticas, porque as que se lhes prestam à revitalização e

aperfeiçoamentos técnicos têm todo ouvido. Resultado, ditadura do pensamento

único; sem contra-discurso enfraquece-se a contra-ação; morre a história, congela-

se o espaço... Ou pelo menos as lutas, de inexorável existência objetiva em

sociedades de classes, surgiriam desordenadamente (o que as classes dominantes

já consentem, porque fariam parte da “democracia” individualista e anticoletivista

do capital), permitindo um esfacelamento mais rápido. Nada à toa a pregação do

fim da história, do fim das vanguardas, da morte do sujeito, do fim do território e

do fim do espaço (que enterraria na mesma vala o contra-espaço ou controlaria as

heterotopias), da paz social interclasses, ou do próprio fim das classes125, para não

dizer, entre outras falácias, do silêncio sobre a própria expressão capitalismo, que

perderia sentido já que não haveria outro a contrapor-lhe, segundo denuncia o

economista Luiz Gonzaga de Melo Belluzzo (2005a, p. 13). Outra faceta essa da

luta de classes arremessada na arena da ciência, da visão de mundo que credita

“ler” racionalmente o real e que não mais que projetar-se como porta-voz das

classes dominantes consegue.

Com uma nova visão de espaço, de Deus (divino ou social-

capital), de natureza e de trabalho, somente mais requintadas; crêem não ser

125 Não é a primeira vez que o fim das classes é decretado. Ocorreu quando a própria burguesia sodificou-se no poder no século XVIII, como nos advertiu o Armando Correia da Silva. Ocorre que à época a burguesia realmente incorporava preceitos universalistas, de redentora da sociedade, sem que houvesse já ideologicamente um “egoísmo” e uma “mentira de classe”. Já atualmente, a história se repete como tragédia e o fim das classes nada tem de ingênuo e libertário, o sendo expressão dos interesses burgueses de perpetuação da história que lhe convém, do espaço ao qual melhor se acomoda.

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preciso que todos raciocinem mesmo, buscando a razão das coisas, uma vez que

argumentam serem já suficientes os que ditam os rumos da civilização e os que

são cooptados nos estratos societais inferiores em troca de favores, recompensas

ou robustas rendas, para pensar para o restante, que deveria reproduzir o já

conjeturado intelectualmente.

O aleatório não tem existência tão liberal como se diz e por isso,

o espaço então se coloca como a essência do ser social em seu movimento

histórico e geográfico, contínuo e descontínuo, a transparecer na paisagem

fenomenicamente, como imagem epidérmica, congelada e momentânea, quais

hologramas espectrais do movimento da sociabilidade estabelecida e

territorializada pelo ser social. Unidade do diverso metamorfoseante ou complexo

de complexos mutante por meio do qual, e mediante processo holometabólico

recheado por contraditórios interesses internos à socialidade (entre forças

produtivas e relações de produção, base e superestrutura, capital e trabalho, região

e nação), se ostenta tons desbotados e sonoridades distorcidas.

A dedução do que venha a ser a natureza ou o espaço advém das

finalidades classistas dos que pretextam conservar-se no tope do edifício social.

Ludibriando os demais para ideologicamente “apagar-se” as dissimilitudes;

escondendo-as no pântano escuro e sujo que intermedeia as classes.

Importante aliás, é a constatação de Milton Santos, a vaticinar

que a ideologia presentemente vem empiricizada nos objetos. E com igual valor

acentuamos o lembrete de Sérgio Lessa, para quem “o melhor meio de se

proceder é sempre recusar as imposições dadas pela realidade imediata”

(SILVA JR.; GONZÁLEZ, 2001, p. 7. Prefácio de Sérgio Lessa). Muita

mistificação entre o espaço real e o espaço propagandeado; questionar e atravessar

as brumas das formas falseantes é o melhor meio para se chegar à essência da

lógica espacial historicizada pela sociedade. Eis o motivo de o Lefebvre (1981, p.

229), retomando na mesma linha o método de Marx, recomendar-nos à não

aceitação imediata pela empiria e aparência dos fatos dados.

O controle social esteirado na posse dos meios geográficos de

produção, seja do corpo do indivíduo, da instância territorial da sociedade, ou das

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instalações e objetos materiais, instala-se como a substância edificante da

sociabilidade arrumada com vistas a pôr os pobres a trabalhar e sustentar os

dominantes; e não sem violência e repressão.

A natureza histórica do espaço produzido exprime o modo como

se desenrolou o processo de autotransformação da natureza do espaço natural em

espaço com natureza social: mediante reificações. Em princípio como reificações

inocentes. Como reificações alienantes, a seguir. O que era subjetividade autêntica

transmuta-se em subjetividade inaltêntica. Do privilégio como reconhecimento

grupal ao indivíduo týranno (originalmente o excelente) pelo seu bem-fazer em

guerras, representação, segurança ou qualquer outra função, incrusta-se a

segmentação constrangedora: o apartar do týranno por amor motiva a revolta do

amado apartado, socialmente segmentado e espacialmente segregado. O amor

pariu o ódio; o querer bem o levou à distinção; esta ao isolamento e à falta do

amor até então usufruído (LA BOÉTIE, 1982).

Seria essa uma das hipóteses. A abstração entretanto, não pode

desenredar-se do contexto espacial. Poderia sim tê-lo sido o resultado dum

descuido a gerar a opressão e a coerção, mas noutros momentos a situação poderia

ter sido também engenhosamente armada para que o poder fosse roubado,

servindo-se para tal da carapuça da magia, da mediunidade e da descendência

divinal.

A organização social calcada não teria tanto mais de reificações

inocentes. A alienação e a ideologia unem-se para a usurpação dos explorados

divididos. Condições e combinações essas diferenciadas em todos os quadrantes

do mundo. Não havendo uma linearidade evolutiva fatalista, a caminhar

homogeneamente numa só direção.

Daí o erro de Comte que, na busca pelas identidades dos povos,

os quais comunicação política alguma existiu, entendeu que a identidade havida

pelos rumos de desenvolvimento assumido pelos povos comprovava a

infalibilidade da lei progressiva que possui a marcha natural da civilização,

determinada e invariável, não importando o lugar em que se achassem os povos, e

o autor cita o exemplo dos malaios que a seu ver possuíam muito do feudalismo

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europeu do século XI, além dos costumes e da cultura da Grécia dos tempos de

Homero prevalecentes na Europa de então e, surpreendentemente, entre algumas

“nações selvagens da América setentrional” (sic!) (COMTE, 2005, p. 60).

O arranjamento ambiental evidencia o potencial do nível de

compreensão e manipulação das leis e materiais do meio. As forças produtivas

motorizam e apregoam o estádio do avanço conseguido pelo homem. Por força da

complexidade e do nível de incremento da capacidade produtiva e geração de

sobre-produto conseguida nesse processo, a sociabilidade faz nascer organizações

políticas e jurídicas a emoldurarem os sujeitos com nova regulação espacial a

tomar corpo, alçadas pelas classes sociais dominantes que imprimem a sua

logística nos derredores habitáveis, explorados e interconectados socialmente.

Cada modo de produção corresponde a específico coeficiente de

organização societal abrangido pelas formações sociais no decurso da história, em

variados quadrantes do globo (SROUR, 1978; HOBSBAWM, 1975; MARX,

1975, 1999; ENGELS, 1979). Corresponde ele à forma como a sociedade se

organiza economicamente, conforme o estágio atingido pelo desenvolvimento das

forças produtivas, não compreendendo a totalidade das relações concernentes à

formação social126 concreta mas mantendo-se ligada à superestrutura da

sociedade.

126 A noção bastante corrente de a formação social dum país possuir variados modos de produção, amontoados e fusionados pela esfera da circulação, não possui veracidade teórica, histórica e geográfica, na atualidade. O contexto da economia mundial monopolista, para nos adiantarmos na questão, parece demonstrar exatamente o oposto daquele julgamento: um único modo de produção econômico planetarizado, como espaço-mundo ou espaço-mercado, a conviver com dezenas de formações sociais nacionais amalgamadas pelas esferas político-econômico-ideológico-cultural, na relação fincada na produção-circulação-distribuição-troca-consumo. Como Azevedo (1999, p. 312), entendemos o modo de produção como “a maneira e a forma como são produzidos os bens materiais, ou seja, o conjunto que constitui as forças produtivas e as relações de produção (...) A substituição de um modo de produção por outro pode ser efetuada através de processo evolutivo, ou através de ruptura brusca, geralmente revolucionária. Por outro lado, o modo de produção condiciona também o modo de vida da formação social onde é atuante”. Atentando às observações de Pitirim Sorokin, Fernandes (1995, p. 86) argumenta que em Marx o modo de produção não deve ser compreendido pela acepção restrita, como o sentido positivista de “produção”, típico a dos clássicos Adam Smith e Ricardo, posto que: “Ao contrário, na terminologia marxista ‘modo de produção’ implica todo um complexo sócio-cultural, extremamente típico e variável; compreende as noções de forma social e de conceito material em sua correspondência efetiva”. Logo, deve ele ser ilustrado como conceito sintético, contrapondo-se àquele primitivo conceito analítico. Outro não foi o sentido da crítica de Mazzeo (1989) aos marxistas vulgares, que na Internacional Socialista do princípio do século XX ressuscitaram dos

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Indubitavelmente estava entre os principais conceitos tratados

por Marx. Conforme se referiu n’O capital que “O modo em que se efetua esta

combinação (entre os meios de produção e os trabalhadores) distingue as diversas

épocas econômicas da estrutura social”.

Mas há aqueles que negam essa expressão, preferindo considerar

as etapas evolutivas da sociedade a partir de determinadas medidas econômicas

(produção per capta, taxa de poupança, etc.) e que mesmo o capitalismo

contemporâneo teria como característico a industrialização (W.W. Rostow); como

há aqueles que negam o próprio termo capitalismo.

Deixando para traz essas posições e com base na concepção

marxiana, a história das formações sociais da humanidade pode ter o “conteúdo”

de seu “progresso” expresso nas seguintes leis gerais e abstratas127:

a) Quando em vigor uma relação de estabilidade entre as forças sociais

produtivas e as relações sociais de produção, caracteriza-se um determinado

estágio de desenvolvimento da formação econômico-social;

clássicos esse ponto de vista; consideração essa que pende à interpretação analítica, estruturalista e cartesiana sobre modo de produção (RIBEIRO, 2004c). Marx (1999) se debruça sobre a “produção em geral”, caracterizada por produções concretas distinguíveis entre si. Há que se saber que as forças produtivas, ou as forças naturais e os instrumentos de produção, como máquinas, técnicas, invenções, etc., constituem apenas a base material do modo de produção e não a sua totalidade, que se compõe ainda do sistema das relações sociais e do padrão de comportamento e disciplinamento social (FERNANDES, 1995, p. 86-87). O modo de produção deve ser entendido como totalidade em processo e não como forma inerte, como estágio estático, modelo puro a ser demonstrado e afrontado a todas as épocas e conformações espaciais; igualmente relevante, é que a dimensão cultural não seja sempre concebida o reflexo mecânico da econômica, que nesse viés seria transcrita como valor absoluto. Informa-nos Chauí (1991, p. 63) também que o modo de produção “não é um dado, mas uma forma social criada pelas condições econômicas e políticas dos agentes sociais (independentemente de sua vontade e de sua consciência). É o sistema das relações de produção e de suas representações por meio de categorias jurídicas, políticas, culturais, etc.”. Gorender (1994, p. 46) considera a categoria de modo de produção “como a base material da sociedade sob a forma de conjugação de forças produtivas e relações de produção”. Aproximamos, por fim, o conceito de modo (geográfico) de produção da sociedade ao conceito de formação espacial, em suas múltiplas dimensões (política, cultural, econômica, ideológica, etc.). 127 O abstrato aqui não se resume às meras tautologias vazias, dado à profundidade do pensamento de Marx que, ainda que vivendo em época em que os estudos ou era ainda precários ou pouco difundidos/traduzidos, esboça as leis da evolução como possibilidades latentes bastante plausíveis. O pensamento de Marx opera, quando necessário, pelo uso do silogismo concreto.

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b) Já quando se estabelecem conflitos, ao longo do tempo, entre as forças

produtivas e as relações sociais de produção, instala-se uma fase transitiva,

que lança o corpo social à frente, até que se tenham implantados...

c) Os períodos de revolução social, em que as relações sociais tendem a se

readequar às forças produtivas, em um novo estágio de desenvolvimento

econômico e de realização civilizatória.

O decurso evolutivo dos modos de produção da humanidade faz-

se como escorço mais possível e relevante destes marcos, sem que se esteja a

negar muitas outras combinações ou estágios intermediários, em vários cantos do

mundo, pois tais estudos dependeriam de um acúmulo de dados históricos e

antropológicos aos quais Marx e seu amigo Engels indispunham ao seu tempo,

por isso que nem mesmo eles se mostravam satisfeitos com o quadro evolutivo

esboçado. Ademais, os autores objetivavam conhecer sobretudo o modo de

produção comunista primitivo e o capitalista, para demonstrar o descompasso

entre eles e as disparidades que a humanidade deveria conhecer para reorientar-se

no curso evolutivo vindouro.

Como seis, entendemos comparecer a categorização marxiana

mais habitualmente utilizada para exprimir as estruturas sociais de produção, além

de transições e formações econômico-sociais relevadas por Marx como

exemplificação ilustrativa do processo evolutivo e contraditório das sociedades,

ao longo do tempo e dos lugares, e isso por que ele focava a sucessão dos modos

de produção e não a existência de modos específicos de produção (embora tivesse

Marx conhecimento sobre o modo de produção eslavo, e sobretudo se detivesse

sobre o modo de produção germânico128, tendo-o como fase intermediária entre o

128 O modo de produção germânico (ou da Idade Média) tem como unidades básicas os lares, que se põem com um todo econômico e auto-suficiente em termos agrícola e manufatureiro (trabalho doméstico e subsidiário das mulheres); lares estes distribuídos de forma individualizada e isolada, não vivendo o indivíduo nem em aldeias e nem em cidades e só se reunindo esporadicamente para a guerra, religião, litígios legais e outras questões que o mereçam, decididas nas assembléias dos chefes familiares que reúnem as tribos por uma espécie de pacto tribal entre semelhantes. A propriedade nesse sistema é comum (territórios de caça, pastagens, etc.) mas o uso é individual, como posse individual consentida na e pela relação cooperativa com os demais lares e, por isso, o sistema germânico de frouxa relação comunal e potencialidade de individualização econômica

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comunismo primitivo – ou a comunidade camponesa primitiva – e o feudalismo),

e sem também que houvesse uma ordem predeterminada para tal sucessão

(contudo, fosse-lhe bastante provável que determinadas fases de desenvolvimento

não pudessem pular etapas e alcançar outras, ou seja, o capitalismo não poderia

surgir do comunalismo primitivo e nem do escravismo, por exemplo, devendo

haver determinadas condições materiais produtivas para que da contradição com

as relações de produção brotasse o novo).

Afirmamos também que o estudo poderia sim se pautar no

estudo da evolução das técnicas, como sugeriu Marx – sendo seguido nessa

vereda inclusive por geógrafos –, mas optamos pelo estudo dos modos de

produção pelo fato de que se toda modificação desse provém originariamente

duma evolução técnica, por outro lado, nem toda revolução técnica acarreta a

modificação do modo de produção. Para longe de dualismos, porque se

relacionam ambos, o modo de produção se firma como a estrutura nexal que

organiza e orienta a parafernália técnica.

Vejamos agora quais os períodos de desenvolvimento que mais

são destacados na literatura científica:

Modo de produção comunalista primitivo;

Modo de produção “asiático” que, de jeito apodíctico, mais correspondeu ao

modo de produção reinante nos Impérios do Oriente e Ásia menor, podendo

igualmente referir-se aos existentes na América pré-colonial e em partes de

África;

Modo de produção escravista clássico-antigo129;

Modo de produção servil ou feudal; põe-se entre a cadeia evolutiva que se dirige ao capitalismo, de acordo com Marx, tendo antes por etapa o feudalismo. Por isso, tal sistema foi um dos maiores alvos do pensamento marxiano, por crê-lo uma das subvariedades do comunismo primitivo e uma fase de transição ao capitalismo, pelo tipo de individualização a ele imanente. Muito provavelmente – Marx não o elucida – tenha o sistema germânico perecido pelas diferenciações interna e externa havidas no período, com lideranças militares surgindo e se sobrelevando nos momentos de disputas e de guerras. 129 Lembramos não haver unanimidade entre os autores sobre o modo de produção escravista porque houvera múltiplas formas de manifestação do escravismo ao longo do tempo e dos espaços, como o que se deu no Mundo Antigo e o que se processou no Novo Mundo, entre os espaços coloniais.

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Modo de produção capitalista ou burguês, em seus estágios: mercantil, fabril-

industrial e financeiro;

Modo de produção de capital pós-capitalista130.

A seguir as formas adotadas pelo ser social conforme o

progresso do modo de produção alcançado.

2.1.3 Teorias (e métodos) sobre a

evolução humana

 

“Só o espírito positivo, em virtude de sua natureza eminentemente relativa, 

pode representar de modo conveniente todas as grandes épocas históricas 

como tantas fases determinadas de uma única evolução fundamental, 

onde cada uma resulta da precedente e prepara a seguinte segundo 

leis invariáveis que fixam sua participação especial na progressão comum, 

de maneira a permitir sempre, sem inconseqüência nem parcialidade, 

render uma exata justiça filosófica a todas e quaisquer cooperações” 

(COMTE, 2006, p. 63).

------------------------------------------------------- 

 “A teoria geral do materialismo histórico requer apenas a existência de 

uma sucessão de modos de produção, e não a existência de modos específicos, 

nem que haja uma ordem pré‐determinada para esta sucessão”  130 Essa classificação altera a sucessão teórica preconcebida pelos marxistas, não sem certo veio estruturalista, a despeito da evolução da sociedade, inscrevendo a sociedade estatizada de capital pós-capitalista na seqüência da sociedade estatizada capitalista. Contudo, isso não altera o fato de o comunismo ainda continuar sendo considerado como a última etapa da história humana, como o melhor espaço possível e cientificamente previsível de ser conjeturado, de acordo com a máxima consciência histórica que dispomos: “Verossimilmente, não será senão uma forma momentânea da evolução humana” (LEFEBVRE, 1981, p. 188). Deixaremos de tratar, como já deve ter ficado explícito, o que viriam a ser o modo de produção socialista e o modo de produção comunista – lembrando que há os que apenas consideram alvo de teorização o modo de produção comunista, tendo o socialismo apenas como uma fase transitiva, que não poderia ser considerada como modo de produção.

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(HOBSBAWM, 1975, p. 22).

Vários autores se enfileiraram para explicar a pulsação e a

marcha das sociedades no suceder dos tempos e dos espaços. O diferencial da

explicação está no método e nas fontes teórico-ideológicas assumidas que, de

forma sucinta e não sem perigoso engano, podem ser resumidas em três macro-

grupos – um pouco, é verdade, distinto da concepção comteana.

À frente desses grupos e varrida para longe do ambiente das

ciências estão as teorias filosófico-teológicas (onto-teo-logia presente em eras

primitiva, medieval, moderna e contemporânea) que ruíram como torre de babel, e

que explicavam a complexidade ou o avançar dos povos e culturas a partir da

espiritualidade evoluída pelos homens, na relação de proximidade estabelecida

com Deus. Também nesse grupo podemos considerar as teorias míticas de povos

primitivos e modernos, como a de agrupamentos religiosos contemporâneos.

Sequencialmente a essas idéias, as contrariando e se

posicionando mais ao centro desses grandes blocos teóricos estavam os que,

arrogando-se possuidores de teorias científicas e neutras (na política, religião ou

quaisquer outras esferas), elaboraram quase que basicamente teorias do desejo

privadas de veracidade e profundidade teórica, sendo mais ufanismo nacionalista e

ideologia classista do que teoria concreta do percurso evolutivo por quererem que

o concreto real fosse somente aquilo que idealisticamente cimentaram em suas

mentes (isso quando tais teorias não se faziam criadas nos gabinetes de grandes

corporações econômicas ou nos amplos e silenciosos salões dos governos das

maiores potências).

No outro extremo estão os que buscam na materialidade

concreta edificada pelos homens os pressupostos elementares da formação

cultural, e aí quase sempre tomam a técnica e os modos de produção como

instrumentos teóricos de análise das formas de evolução e aprestamento

econômico-material das sociedades. Como teorias crítico-científicas podemos

enquadrá-las.

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Essa classificação não esconde os riscos da generalização, quem

sabe um pouco estruturalista vez que dentro desses grupos se encontram posturas

as mais variadas: quando perdido em especulações e deduções embasadas no

silogismo formal, o mesmo autor científico pode ora ou outra trafegar no outro

domínio.

Uma proposta teórica que pode ser ligada ao primeiro grupo

(teorias filosófico-teológicas) é o hegelianismo, dada à teologia e à metafísica

imanentes ao conteúdo explicativo. Como exemplo do segundo grupo (teorias

científicas e neutras) elegemos as teorias comteanas131 que, em que pese tenha

contribuído para ventilar para longe as teses teológico-metafísicas e de ter

elaborado certas regras de cientificidade, quis fazer da ciência religião intocável

ao entrar na vala da metafísica que se levantava a combater. A corrente do

materialismo pode, por fim, ser delegada ao terceiro grupo ao negar como guia e

motor ao homem as forças extra ou sobre-humanas (típicas ao primeiro grupo),

repudiando a tese de ciência como acúmulo acabado de teorias forjadas no plano

do concreto mental (típicas ao segundo grupo) e por entender a evolução humana

como produto das contradições e das lutas de classes, enxergando seus reflexos na

luta teórico-ideológica, nunca acabada, universal, imparcial, perfeita ou acrítica.

Se o hegelianismo no fundo acreditava a qualidade do estádio de

evolução humana derivada de uma consciência ligada ao Espírito, em marcha

linear apoiada pela família e pelo Estado, a teoria comteana sobre a evolução

humana também não deixa de ser linear pois, apesar de todos os esforços de seu

criador para rotulá-la de científica, o seu fundamento advoga o impulso e o

instinto humanos como motores do avanço dos povos – e aí a religião oficial foi

substituída pela fé na ciência acrítica, por acreditar-se ápice possível do

pensamento humano universal que haveria de harmonizar e unir os povos.

131 Embora não se definisse como neutra, a teoria stalinista da evolução também pode ser enquadrada nesse grupo. Como ficou estabelecido pela Conferência de Leningrado realizada em 1931, apoiada por Stálin, elegeu-se como verdadeira a idéia mecanicista e linear da evolução humana através de estágios de desenvolvimento (Comunismo Primitivo Escravismo Feudalismo Capitalismo Socialismo) que só viriam a perder força a partir da década de 1960, com o fim do stalinismo.

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Os pertencentes ao primeiro grupo crêem que a transformação

do real dependerá da manifestação, revelação ou atuação conjunta do homem com

o ser sobrenatural. Os integrantes da segunda unidade entendem a transformação

como resultado do ser natural humano, como estágio frutificado da conjunção da

razão humana (neutra, aclassista) potencialmente universal com o propósito de

elevação da civilização. O terceiro grupo medita sobre a natureza socialmente

contraditória do ser fundado histórico-geograficamente, apontando os agentes

responsáveis pela transformação teórica e prática, sobretudo.

Não mais a ação extra-social harmonizará a sociedade

(misticismo e onto-teo-logia). Não mais a educação dos grandes teóricos

iluminados e neutros a renovará pelo educar dos povos e dos governos

(platonismo, comtismo). Ao materialismo histórico-dialético ganha realce a práxis

como ação dialógico-reflexionante e social-prática.

A percepção de que, havia muito, estava em pauta na mesa de

debate das sociedades a reflexão sobre a marcha e o destino da civilização talvez

seja o mais importante.

Comte isto notou a respeito do que entendia ser a irrevocável

macha da civilização rumo ao progresso contínuo do espírito humano e por isso –

em que pese a visão metafísica que tentou tornar científico-positiva – fez questão

de registrar que várias sociedades, desde as mais primitivas, procuravam

apreender o mundo imaginando-o como o seria, o que se consubstanciava

entrementes mediante artimanhas intelectuais pendentes à teologia e à metafísica,

com a imaginação sobrepondo-se à observação nas fases primitiva e medieval,

respectivamente.

O destoante é que na política teológica primitiva a imaginação

exercia-se sobre seres sobrenaturais, conquanto na política metafísica medieva

realizar-se sobre abstrações personificadas.

O mergulho mais a fundo na teoria evolucionista comteana nos

permite notar que a panacéia da ciência positiva ou da política científica deveria

educar os povos no caminho do inevitável progresso da civilização, com

preponderância da observação sobre a imaginação e com o trabalho dos grandes

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gênios existentes. O desenvolvimento da civilização era-lhe resultado direto da

“tendência instintiva da espécie humana em se aperfeiçoar” (COMTE, 2005, p.

63).

Conjeturava o mecanismo comteano o que todos os povos

anteriores se propuseram: tentar explicar o real para melhor viver, de acordo com

os conhecimentos (físicos e metafísicos) reunidos. Pensando criar a ciência

perfeita e última, auge da civilização madura sustentada na indústria e no domínio

“sobre” a natureza e arrogando-se mais científico e veraz por ter seus argumentos

fundados na observação e não na imaginação, caiu na arapuca de seu próprio

cogitar, imaginado como último e como princípio verdadeiro das leis imutáveis

teorias metafísicas que seriam algumas das muitas possibilidades de

conhecimento a serem elaborados a partir da estruturação física da época.

Do fetiche teológico transitou-se ao fetiche metafísico, até se

alcançar o plano teórico do fetiche científico com Comte. A idéia comteana mais

obstinada, a que pregava que a era da imaginação e dos pensamentos imaturos e

metafísicos estava abolida, findou contraditada pela própria ciência positiva.

Pelas penas de Comte a sociedade do princípio do século XIX

foi assemelhada ao mais ingênuo dos sistemas primitivos que tanto se opunha: em

ambas as épocas o projeto de teorização com vistas à cosmização do entorno

detinha as marcas histórico-geográficas que a teoria metafisicamente se dizia

querer livrar por meio de elucubrações tidas por verdadeiras e perfeitas.

Comte levou adiante o corpus do pensamento teórico com sua

sociologia metafísica, superando de certa forma a filosofia metafísica de Hegel,

mas foi Marx que pela acidez de sua crítica os superou ao revolver toda a teoria

acumulada mediante a aproximação dos estudos da sociedade com o plano

concreto da contradição e da luta, retirando-os do plano idealista da perficiente

harmonia sócio-natural.

Com base no materialismo histórico-geográfico trataremos da

evolução das sociedades a partir dos modos como produziam e se reproduziam

socialmente.

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2.1.3.1 O modo de produção comunista

primitivo132

“Ditosa a idade e afortunados séculos aqueles a que os antigos puseram o nome de 

dourados, não porque nesses tempos o ouro, que nesta idade do ferro tanto se 

estima, se alcançasse sem fadiga alguma, mas sim porque então se ignoravam as 

palavras ‘teu’ e ‘meu’! Tudo era comum naquela santa idade; a ninguém era 

necessário, para alcançar o seu ordinário sustento, mais trabalho que levantar a 

mão e apanhá‐lo das robustas azinheiras, que liberalmente estavam oferecendo o 

seu doce e sazonado fruto. As claras nascentes e correntes rios ofereciam a todos, 

com magnífica abundância, as saborosas e transparentes águas. Nas abertas das 

penhas e no côncavo dos troncos formavam as suas repúblicas as solícitas e 

discretas abelhas, oferecendo a qualquer, sem interesse algum, a abundosa colheita 

do seu dulcíssimo trabalho. Os valentes sombreiros despegavam de si, sem mais 

artifícios que a sua natural cortesia, as suas amplas e leves cortiças, com que se 

começaram a cobrir casas sobre rústicas estacas, sustentadas só para reparo contra 

as inclemências do céu. Tudo então era paz, tudo amizade, tudo concórdia. Ainda 

132 Marx e Engels edificaram essa teoria a partir basicamente dos textos de Maurer e Lewin Morgan (Anciety society, de 1877). Tanto que Engels escreve O marco (1882) amparado em Maurer e A origem da família, da propriedade privada e do Estado balizado em Morgan. Marx elogiou bastante a Morgan por entender que suas opiniões com as dele se cruzavam, tendo contribuído pesadamente com as formulações marxianas sobre o socialismo. Outro autor influente ao pensamento marxiano nessa seara foi o russo M. M. Kovalevsky. Cabe a ressalva de que ao tempo em que as Formen foram escritas, Marx não dispunha de profunda investigação sobre as sociedades tribais primitivas e nem sobre as civilizações pré-colombianas das Américas, visto que, até a década de 1850, detinha conhecimento apenas do comunalismo primitivo do período inicial da Europa medieval e do que restava à época, nas quatro modalidades: oriental (ou indiana), greco-romana, germânica e eslava. O fato é que quando da elaboração das Formen, os conhecimentos históricos não eram tão profundos sobre a pré-história, as sociedades comunais primitivas e América Pré-colombiana, como de igual modo eram quase nulos no concernente à África.

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se não tinha atrevido a pesada relha do curvo arado a abrir e visitar as entranhas 

piedosas da nossa primeira mãe, que ela, sem a obrigarem, oferecia por todas as 

partes do seu fértil e espaçoso seio o que pudesse fartar, sustentar, e deleitar, aos 

filhos que então a possuíam. Então, sim, que andavam as símplices e formosas 

pastorinhas de vale em vale, e de outeiro em outeiro, com singelas tranças ou em 

cabelo, sem mais vestidos que os necessários para encobrirem honestamente o que 

a honestidade quer, e quis sempre que se encubra. Não eram seus adornos, como os 

que ao presente se usam, exagerados com a púrpura de Tiro, e com a por tantos 

modos martirizada seda; eram folhagens de verde bardana e hera entretecidas; com 

o que talvez andavam tão garridas e enfeitadas como agora andam as nossas 

damas de corte com as raras e peregrinas invenções que a indústria ociosa lhes tem 

ensinado. Então expressavam‐se os conceitos amorosos da alma simples, tão 

singelamente como ela os dava, sem se procurarem artificiosos rodeios de fraseado 

para os encarecer. Com a verdade e lhaneza não se tinham ainda misturado a 

fraude, o engano, e a malícia. A justiça continha‐se nos seus limites próprios, sem 

que ousassem turbá‐la nem ofendê‐la o favor e interesse, que tanto hoje a 

enxovalham, perturbam e perseguem. Ainda se não tinha metido em cabeça a juiz 

julgar por arbítrio, porque ainda não havia nem julgadores, nem pessoas para 

serem julgadas. As donzelas e a honestidade andavam, como já disse, por toda a 

parte desguardadas e seguras, sem medo de que a alheia desenvoltura e 

atrevimentos lascivos as desacatassem; se se perdiam era por seu gosto e própria 

vontade...” 

(Da ocasião em que o valoroso cavaleiro cervantino, o fidalgo Dom Quixote de la

Mancha, idealisticamente dá a discorrer, na presença de seu bom escudeiro Sancho Pança

e dos cabreiros que com eles dividem sobejos, sobre tão díspares valores e tempos que

correm entre a clássica idade do ouro e a era do ferro de cujos desagravos se lhe

antepunham como desafios a serem enfrentados)

(SAAVEDRA, 2002, p. 72-73).

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Várias as adjetivações. Era dos modos de produção primitivo e

gentílico133, períodos de perpetuação dos espaços naturais do comunismo

primitivo, clânico, tribal, das comunidades aldeãs primitivas, das hordas

(comunidade de sangue, língua e costumes), do patriarcalismo, da Idade do

Ouro134 ou ainda das muitas outras expressões assomadas pelos dizeres no tempo.

Tiveram todas por comum um conteúdo histórico comprovado verídico, que tinha

na centralidade da reprodução comunal a preocupação ao perpetuar da vida pela

cooperação simples e interdependência solidária, concretizada através de caças

aquática e terrestre, de coleta e duma incipiente agricultura comunitária e iniciante

domesticação de animais.

Erroneamente sopesada pela ausência de situações-entidades,

pelos marxistas vulgares ou teóricos burgueses, ordinariamente se confere o

característico de tais formações àquilo de que indispõem e que se distingue das

formações sociais ulteriores, que pelo seu visor etnocêntrico as subvaloriza como

retardatárias na estrada linear do tempo. Tendo-as como: as sem-escrita, sem-

133 O modo de produção primitivo e o modo de produção gentílico não são sinônimos, embora tenham muito em comum. O primeiro concerne às sociedades paleolíticas formadas por bandos, cuja única hierarquização estável aludia ao sexo e à idade. O modo de produção gentílico, atinente aos espaços neolíticos tecnicamente revolucionados pelas práticas agrícolas e do pastoreio, é já regido pelos grupos parentais com hierarquias estáveis. A distinção político-social entre as mesmas implica no fato de que na primeira ocorriam relações de afiliação resultante das hierarquias mais instáveis, conquanto nas segundas se instalassem relações de parentesco, com hierarquizações estáveis, entretanto de poder limitado. 134 A memória nostálgica da Idade do Ouro vem desde tempos remotos. Fez-se presente em Virgílio e foi retomada na idéia político-aristocrática do socialismo de Platão. Marcou também os pensamentos de São Cipriano. Mas foi na idade moderna que o saudosismo para com a idade do ouro, a fartura natural cantada em memória de outrora, recebeu realce com a descoberta do Outro no Novo Mundo, e que foi não apenas objeto de especulação de Tomas Moro e Campanella, como base das teorias dos socialistas utópicos dos séculos XVIII e XIX (Saint-Simon, Fourier e Proudhon) e de teóricos não-socialistas que sentenciavam “reformas” (como o não-revolucionário Proudhon) ou negavam com a radicalidade onto(teo)lógica dum ideal moral e estético (caso de Weitling) a sociedade em que desiludidos viviam, perspectivando outras estruturas sociais e espaciais com maiores farturas e menores injustiças no orbe terrestre ou além, alcançável por intervenção de um agente divinal a se revelar aos homens (fio-antena e fio-terra do processo) com o escopo de reanimá-los no caminho do Bem ou por meio de um agir coletivo e solidário, dentro do capitalismo ou por fora dele, como que o esvaziando em organizações trabalhistas solidárias e entidades assistenciais e filantrópicas. Para maior aprofundamento, ver: MORO, s/d; CAMPANELLA, 2004; MARX; ENGELS, 1996; COELHO, 1980; RIBEIRO, 2001b.

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dinamismo e de história cerrada, sem-propriedade-privada, sem-Estado e sem-

História... consideradas que são como pertencentes ao Reino da Natureza.

Como se a História apenas se principiasse com o Estado e como

se todas as sociedades devessem pertencer e se subordinar a ele que, justamente,

como aparelhagem político-institucional mantenedora da dominação classista,

deve ser aniquilado, simultânea (anarquismo) ou posteriormente (marxismo) à

tomada do poder pela classe dominada fundamental.

Por essa ótica, foram mais sábias as sociedades primitivas que

nem consentiu que o fosse arquitetado.

A história não começa com o Estado, exceto a história da

dominação regulada politicamente de maneira classista. A história é o fluxo da

prática social espacializante. Como seria possível se pensar tais sociedades como

aistóricas e aespaciais?

Inda que pedras lascadas e polidas, respectivamente inventados

no paleolítico e neolítico, entre inúmeros outros instrumentos criados, parcas

alterações efetivaram nesses primevos espaços cuja reprodução dos homens

dependia mais dos produtos da natureza do que dos advindos dos itens por eles

fabricados; condição que levou Ernest Mandel (1976, p. 23) a dizer que a

humanidade de então vivia como se fosse “parasita da natureza”.

Ao inverso também do que julga a moral burguesa atual, não são

sociedades promíscuas sexualmente. Tampouco detêm desprezível

desenvolvimento de forças produtivas, ficando a vegetar e se acovardar diante

duma suposta e terrífica natureza externa.

O que não raras vezes se desqualifica a seu respeito figura como

seus mais altos valores: despossuir Estado; propriedade privada; trabalho abstrato

(exatamente o que julgamos “livre”); desdenhar o acúmulo de riqueza; ojerizar a

produção desenfreada de sobretrabalho e sua desigual distribuição; ignorar

cidades e classes economicamente poderosas que sejam vistas como as mais

notáveis hóspedes, como se passam com os espaços citadinos ordenados pela

burguesia; desmerecimento de qualquer saber ou técnica que se ponha em

desacordo com o que a experiência lhes consentira outorgar como bem-comum,

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inclusive porque o sistema de valores não se fazia autonomizado e contraditório

substancialmente ao coletivo (conquanto na sociedade moderna se prestigie com

status e montanhas de moedas a ciência tecnificada).

A sociedade primitiva ou a “formação primária” da sociedade

humana, como julgou Marx nas Formen135, imbuía-se em traçar as relações

internas que, de forma nada aleatória porém combinada e coordenada

administrativamente pelos reverenciados como os mais sábios (velhos), lhe

permitisse avançar na sua “ruptura” com a natureza e ingressar na “história dos

homens” mediante a apropriação comunitária do mundo.

Assim sendo, em comum acordo com a idéia apregoada de se

estruturarem como sociedades possuidoras de contradições não-antagônicas ou

sociedades sem classes sociais136, quaisquer diferenciações internas havidas,

como os prestígios e direitos garantidos por quantidades maiores de mulheres,

advinham do reconhecimento do esforço e da dedicação em prol dos interesses

comuns, em tarefas por poucos levadas a cabo por serem mais danosas e penosas.

Outras diferenciações internas correspondiam às questões das

confrarias secretas masculinas, do sexo, idade, troca de signos e de mulheres, das

relações de parentesco, do prestígio social, permuta de bens raros ou de

subsistência, como igualmente nas disposições sobre direitos de se atravessar

determinados espaços ou de se utilizar determinado veio aqüífero, dentre outras

distinções insuficientes à quebra dos laços comunalistas, tendo-se em conta que os

135 Nesta obra, Marx propôs-se a traçar o conteúdo e o progresso da história humana na sua forma mais geral, revelando essencialmente o fato de que (a) as relações sociais de produção correspondem ao estágio do desenvolvimento das forças produtivas, (b) o que acaba gerando o constante conflito entre forças produtivas e relações de produção, podendo-se então ocorrer (c) os períodos de revolução social, que são exatamente aqueles em que as relações de produção entram em choque com as forças produtivas. Ao contrário de Hegel e não obstante as lacunas, Marx apresenta um modelo teórico com possibilidades lógicas latentes erguidas à luz dum materialismo em franca progressão, não se perdendo em tautologias vazias por estar munido dum raciocínio amparado no silogismo da compreensão. Procedimento que leva Hobsbawm (1975, p. 22) a desautorizar opiniões que queiram fazer das Formen simples obra de dedução, defendendo-a como resultado de intensa observação. 136 Srour classifica os modos de produção não-classistas como: modos de produção primitivo e gentílico; modos de produção segmentários; modos de produção comunal e comunalista; modos de produção participacionista e gestionário; modos de produção patriarcal e solidarista; modos de produção socialista e comunista. Não empregaremos a rigor todas as distinções por ele explanadas e, mais adiante, citaremos nosso ponto de discórdia para com a teoria adotada por esse autor.

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valores culturais não se distavam e nem se distorciam perante os valores

materiais.

Não importa o nível das tensões endógenas, conflitos sexuais ou

discordâncias momentâneas havidas, se oportuno fosse, tudo se resolvia

internamente com mediação dos mais sábios, o que praticamente dispensava a

coerção como fator de resolução de contendas.

Inexistiam nessas estruturas sociais situações privilegiadas de

propriedade (proprietário), poder (potentado) ou mistificação (reitor).

Os “maiores” ou os chefes poderiam até possuir alguns direitos

a mais. Todavia estes decorriam dos deveres maiores prestados, de tarefas não tão

impossíveis de serem executados por outros candidatos à titularidade, o que

tornava as proficiências e a hierarquia137 bem mais instável nessas sociedades

não-capitalistas138. A cisão intragrupal é evitada porque mesmo os mais fortes,

ágeis, belos, resistentes e portadores de melhores proficiências sensoriais

(auditiva, visual, etc.) dependiam numa ou outra situação dos cuidados do bando,

quando da ocasião de doenças ou acidentes.

As pilastras essenciais pelas quais se faziam estruturadas tais

sociedades foram por Engels identificadas a partir das características da (a)

apropriação comum dos solos e dos (b) laços de parentesco, com os quais a malha

social fazia-se organizada e dinamizada pela primeira divisão do trabalho

137 Devemos saber discernir historicamente o fenômeno social da hierarquia, pois a não-generalização abstrata da hierarquia como sempre fenômeno maléfico tem respaldo na própria história dos povos ameríndios de antes da colonização, de quando se estruturavam em segmentos sociais interdependentes e diferenciados de maneira não-coercitiva. A hierarquia em-si talvez não deva ser em tudo e a todas as latitudes, espaços e sociedades, ponderada por fenômeno unicamente lesivo (e talvez esse seja um dos equívocos dos movimentos sociais e dos políticos pós-modernos que defendem a tese da rede de relações horizontais como mais condizente ao cenário político do mundo pós-Stálin). O que traz-nos à mente o conselho de Engels (1981) à não aversão a toda e qualquer forma de poder social, de que eram partidários os anarquistas. Conforme crítica de Marx a Morgan, a simples existência da hierarquia não fora responsável, aliás, pela oposição entre os chefes das gens e os membros comuns das gentes: as classes sociais tiveram origem no conflito de interesses entre os chefes das gentes (que se apropriaram de casas, gados e terras sob a fórmula social das famílias monogâmicas) com os membros comuns das gentes. 138 Na classe dos modos de produção não-capitalistas há autores que incluem não apenas os modos de produção pré-capitalistas como os modos de produção pós-capitalistas coetâneos ao capitalismo, como as diversas formas de socialismo consolidadas no século XX (socialismo real, de Estado ou monopolista). Porém, as características instáveis de hierarquia e de poder entre os primeiros mudam totalmente de feição com os últimos.

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conhecida: a sexual (ENGELS, 2005). Opinião diversa da que costumeiramente é

acatada, de tê-la sido a familial a primeira divisão do trabalho havida.

As dessemelhanças internas não liquidavam a solidariedade

orgânica, o formato social combinado coletivamente.

Não é preciso que para se asseverar a coesão se tenha que se

acreditar na opressão latente. Ou então advogar tese avessa: como a idéia da

horda-protoplasma-social aludida pelo Durkheim, em cujo reino da amorfia

inexistiria qualquer divisão de atividades, nem mesmo pelo sexo, com a total

partilha das maneiras de agir, pensar e sentir se manifestando.

Outro equívoco usualmente cometido consta na imputação da

divisão do trabalho a partir do parâmetro biológico, que faria subalternizar e

inferiorizar o sexo feminino ante o masculino por conta dos atributos físico-

corpóreos, porquanto sabermos terem sido comuns casos de mulheres a

desempenhar atividades pesadas e essenciais em algumas primitivas sociedades,

camponesas ou índias.

Tais teses são empregadas para (re)embaralhar a teoria,

recolocando a questão da hierarquização e do domínio sob a chancela do sexo ou

de algo imutável à Natureza Humana, no entrepor dos espaços e no entrecruzar

dos tempos.

Rebatemos tal tese, embora reconheçamos a inevitabilidade do

destino de tarefas específicas às mulheres, como: dar à luz, amamentar e cuidar

dos filhos em suas primeiras fases. No entanto, a qualidade das tarefas e a

destinação sócio-sexual variam conforme a sociedade e as condições técnico-

materiais alcançadas.

Desempenhar atividades mais ou menos prestigiadas não

representava obrigatoriamente a minoração social de seu valor e do papel do sexo

no coletivo.

Lembremos que sobre as mulheres recaia a função da

reprodução natural dos membros. Obrigação que não apenas as valorizava como

lhes concedia destacado valor no corpo social, mesmo que efetivamente não

participassem do grupo de comando, regularmente presidido por homens. Há

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casos históricos relatados de mulheres que para atingir seu objetivo, sabedoras da

importância social que dispunham, se retiravam da comunidade até que suas

reivindicações fossem acatadas. A mulher era um bem social de suma importância

nesse determinado ponto do desenvolvimento dos meios de produção. Dela

dependia a geração da força de trabalho que garantiria a perpetuidade coletiva,

haja vista que os meios de produção eram quase sempre simples e extensão da

mão humana, dependendo a reprodução social mais dos meios de produção

oferecidos pela natureza do que os meios de produção que fossem produtos do

engenho do homem. Com técnicas e instrumentos não tão avançados, a força de

trabalho (o que hoje se costuma denominar de trabalho vivo) é que era o

substancial.

A relativa superioridade masculina fundeava-se na lide da caça e

nas situações igualmente arriscadas das guerras e a proibição do incesto e a troca

de mulher eram realizadas quando o seu valor de uso excedesse as necessidades

comunitárias; situações que reforçavam o controle sexual, as relações

intercomunitárias, prestativas e associacionistas instituídas pelos homens.

O intercambiar das mulheres destarte deve ser contextualizado à

realidade histórico-geográfica do desenvolvimento das forças produtivas e do

nível de organização social, vez que o próprio robustecer da comunidade

acoplava-se à prática da exogamia (Compreensão distinta das representações do

atributo ideológico da “moralidade” burguesa que tenta ver nisso alguma

protomercantilidade, obscenidade ou promiscuidade social-sexual inata). O

realizar da troca correspondia à estrutura produtiva, com o tabu do incesto

podendo ser qualificado como uma das coberturas de valores da superestrutura.

Noutras palavras, para o bem comum de homens, mulheres, crianças, jovens e

idosos, eram sancionadas as regras para gerenciar a vida comunal e as relações

intercomunais consumadas nas práticas do parentesco.

Tal procedimento põe em transparência que a condição do grau

de desenvolvimento das forças produtivas opera e se mensura pela organização

das relações de trabalho que, com os meios de produção, indicam o formato que

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assume a divisão do trabalho socialmente combinado, e que, ao ser estimulada e

recomposta, fecunda e vivifica a produtividade.

O reposicionar das relações de trabalho implica em

diferenciações e discriminações jamais impostas coerciva e alienadamente porque

nessas sociedades o trabalho não se descola do coletivo.

O relativo consenso existente entre os antropólogos sociais

quanto à subordinação política do agregado feminino ao masculino deve-se à

constatação do modo comunitário de produzir e gerir.

Primeiramente, está no cuidar da prole uma das imposições às

mulheres à necessidade do sedentarismo sob guarda do homem, liberando a

maioria deles à aventura cinegética coletiva.

Estribado nas necessidades-possibilidades materiais, como

segunda condição, a cisão das atividades econômicas (homens a caçar de forma

coletiva e mulheres a coletar de modo individual) repercute nas relações entre os

sexos no âmbito político-cultural. Opera-se então um maior estreitamento e

institucionalização das relações masculinas, enquanto as femininas tornam-se

mais frouxas e episódicas por conta do sedentarismo e da tarefa produtiva que as

deixam mais isoladas espacialmente em relação aos fazeres do sexo oposto; mas,

apesar de relativamente isolados e espacialmente apartados, a distribuição dos

sujeitos se dá mirando sempre a cooperação, para que se garanta o propósito da

reprodução da vida grupal.

Essa a geografia do trabalho desse modo de produção. A relação

sexual bilateral associa-se à divisão funcional entre espaço de trabalho e espaço

do além-trabalho, que dirigia práticas e afazeres tanto no que se dimensionava à

produção direta (segmentação combinada das práticas homem-mulher) como à

organização política (fixação de diretrizes, códigos e regras sociais e

estabelecimento de relações intercomunitárias), religiosa (preparativos com a

ritualização, oferendas, etc.) e cultural de forma geral (espaço-tempo ritualísticos,

comemorativos, etc.).

Nem a muita distância a divisão dos sexos então havida

equivaleria às vindouras classistas. As sociedades primitivas são regidas pela

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complementaridade de sexos que produzem conjugadamente ao bem comum, com

base no que se consegue histórico-geograficamente examinar e cotejar como o

mais orgânico. A subalternidade está relegada ao plano do parentesco, ainda que

as atividades produtivas masculinas gerem habilidades e códigos distintos:

fenômenos que acabam por respingar no comportamento interno à comunidade,

sem deformá-la na substancialidade do conteúdo societal.

O mundo social feminino é mais disperso que o masculino por

que os espaços econômicos de produção se distinguem escalarmente, detendo os

homens conhecimentos mais amplos sobre outros locais, sobre territórios hostis,

animais, plantas, paisagens, entre outros elementos.

O pensar (simbolizar, representar, significar) e atuar sobre

espaços às mulheres desconhecidos outorgava-lhes a primazia de ocupar espaços

de decisão política e organizacional peculiares. O traçar do rumo que o corpo

social deveria seguir era ditado pelos homens, mas de forma não descolada do

comunal, pois eles não eram Maiores ou Proprietários de tudo: “proprietários” dos

meios de troca, da administração, da regulação, da indagação ou da cognição.

Desposado de usurpação dos trabalhadores diretos pelos

Maiores, nesse modo de produção ficava ausente a troca dos bens de subsistência

ou bens matrimoniais pela influência dum poder superior e desconexo. Inexistia

injusta distribuição de mulheres porque os jovens, como força guerreira

desiludida, poderiam se retirar para outra comunidade que os acolhessem melhor.

Da força que gozavam as mulheres, dispunham igualmente os jovens e os demais

segmentos sociais internos, imprescindíveis cada qual ao bem comum.

Disputas, contradições e competições internas não punham sob

risco os bens de subsistência. A desigualdade é mantida à distância porque tudo

que se crê serve à maximização da satisfação humana e não a apodrecer sem

proveito à comunidade. Quando havia, a competição dava-se sobremodo na esfera

da circulação (prestígios e bens raros) e não como intento de concentração de

meios de produção e muito menos para fortalecer hierarquias (como o que se

verifica nas sociedades classistas).

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Dadas às dissimilitudes, é provável existirem níveis psíquicos e

comportamentais diferenciados entre os sexos: o homem tido como caçador,

nômade, explorador e agressivo e a mulher como terna, coletora, sedentária,

rotineira e pacífica139.

As mulheres, por essa e outra série de questões, conciliam-se a

uma situação social na qual não chegavam a serem subvaloradas,

significativamente minoradas. Nas sociedades patriarcais em que a autoridade se

fazia exercitada pelo chefe em sintonia com o conselho administrativo dos

anciãos, as mulheres se tornavam bens raros a saciar a poliginia dos chefes tribais

devido às necessidades de relações de parentesco e por motivo do reconhecimento

coletivo das funções que desempenhava a chefatura. Além dessas considerações,

era por meio dessa estrutura social que se fazia controlado o erotismo, a libido ou

o orgasmo feminino, que poderiam pôr em xeque a fraternidade viril dos homens

caçadores e guerreiros que necessitavam de coesão grupal, coibindo-se

concomitantemente a possibilidade das funções femininas serem desviadas de

seus deveres na divisão técnico-sexual do trabalho.

Havia uma subjetividade que se combinava com a materialidade

das condições objetivas vivenciadas. O espaço-subjetivo-individual dos membros

das comunidades primitivas em muito se desdobrava do espaço-objetivo-social

esteado pelas condições materiais de produção e organização social.

Realizava-se a união harmônica indivíduo-coletividade. Sem

querer com isso afiançar a inexistência de diferenças ou de certos níveis de

contradições ou oposições embrionárias nas comunidades naturais, cujas

organizações não-classistas se embasavam no que Lefebvre alcunhou de

“desigualdades individuais” (1981, p. 58). De modo algum tais distinções se

punham como coercitivas e tão menos como discriminação pseudocoletiva: as

diferencialidades não se encontravam armadas antagonicamente, ameaçando a

coletividade. Antes, tratava-se duma forma específica encontrada pela sociedade

para tentar resolver a questão da sobrevivência e reprodução comunal. 139 Essa não pode ser vista como regra absoluta, já que mulheres comprovadamente desempenhavam atividades e atitudes mais agressivas em variadas sociedades primitivas – e por muito tempo lendas de mulheres guerreiras, como as das amazonas, se fizeram perpetuadas.

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A variabilidade das funcionalidades individuais casava-se com a

irmandade orgânica do coletivo. O que oportuniza que essa fase seja tipificada

pelas organizações fraternais, igualitárias e de comum liberdade, com que se

deleitavam os componentes dos povos antigos.

Em compasso com o estágio de desenvolvimento da base

material produtiva, regulador do padrão populacional e dos níveis técnicos, todos

os que constituíam as comunidades primitivas tinham função específica

estabelecida pelo fator sexo e idade, no qual o bem de cada um e o do grupo se

reconheciam e se solidarizavam. A subordinação e antagonismo não existiam pela

óbvia razão de que organizando internamente as atividades do grupo, com maiores

chances, menor esforço e maior agilidade, cumpririam todos com as obrigações da

reprodução comunal.

Inexistindo classes, vigorava a divisão organizativa e não-

antagônica da comunidade pelo concretizar dum ordenar espacial em que os

valores do indivíduo e o do grupo se reconheciam com o ambiente ocupado;

ambiência que, mais que pelo atributo técnico, participava da vida cósmico-

espiritual da tribo pelo nível de simbolismos presentes.

O espaço é construto desse modo de produzir, viver e

reproduzir, fazer e pensar manifesto na cotidianidade única da temporalidade-

espacialidade por eles forjada. Espaço desconhecedor de cesuras entre público e

privado (como comprovam o habitar coletivo dos índios e a noção de família que

possuíam, em que a única substancial diferenciação havida condizia com a

qualificação do que eram espaços sagrados e de culto e os que, porque

desconhecidos, se faziam espaços ocultos, temidos, rechaçados e reconhecidos

como caos – visão da caoticidade imanente ao ignorar do grupo, de seu nível

técnico-instrumental de apropriação material e cognitiva do entorno, por outros

povos podendo ser interpretado inversamente).

O trabalhar transparece como atividade vital coletiva e

cooperada a partir da divisão social do trabalho, com cada um individualmente, e

todos simultaneamente, desenvolvendo atividades consideradas adequadas ao bem

viver grupal, nas várias esferas do social.

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A manifestação de qualquer excedente não causa abalo na

estrutura econômica do grupo, da comunidade não se apartando ou sobrelevando-

se porque além de acidental ou esporádico punha-se imediata e irrefutavelmente

ao consumo de todos como excedente concreto, fruto do trabalho livre e

autodeterminado produtor de valores-de-uso, em um espaço natural calcado na

economia natural cujo espontâneo desenvolvimento natural (naturwüchsig)

fincava-se na propriedade comunal da caça e da coleta ou na eventual produção

agrícola, com o plantio no laboratório natural (terra) ocorrendo sem distinção

entre meios de trabalho (Arbeitsmittel) e objetos de trabalho, donde qualquer

produção a mais se punha ao salto quantitativo e qualitativo do padrão coletivo do

modo de vida.

A relação produção-distribuição unia a relação comunidade-

natureza em razão da sabedoria de quem pretendia com a “natureza” estar sempre

interatuando e usufruindo, até porque ampla gama dessas sociedades (como as

americanas pré-capitalistas) concebia os elementos animais vivos da natureza

como humanidade de parentesco cósmico.

Intuitivamente, os povos primitivos comprovam profundo

conhecimento e sabedoria sobre o fato de a natureza humana depender da natureza

envolvente. Miticamente, os primitivos se vêem como entes criados por um Ser

divino que os dotou de qualidades diferenciadas para melhor viver sem que se

recorresse a abusos e disparates. Enlevava-se destarte sobre o alicerce da

economia comunalista primitiva o cipoal cultural-representativo encorpado em

reificações interpretativas que, de forma espontânea, inocente e sincera,

decorrentes do nível de compreensão histórica por todos partilhada, amparava-se

na relação equilibrada entre trabalho, recursos, tecnologia, população e

conhecimentos adquiridos.

Anseio e angústia não havia à geração de excedentes e como a

prolongação do tempo de lazer era o objetivo social central e a produção ao uso

social se dimensionava, com a “troca” o mesmo se efetuava, situando-se como

meio de realização da vida.

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O sobreproduto é eventual. Não havia noção de trabalho

abstrato, de excedente abstrato. O trabalho, quando excedia a necessidade,

incorria de modo a ela urdido, repartindo-se o excedente com os vizinhos e

parentes nos consumos realizados nas cerimônias, festas, convites, visitas

estrangeiras, entre outras ocasiões comemorativas, e também por que se a

experiência demonstrou-lhes certa vantagem com a produção a mais o fora como

o minimamente suficiente para cobrir os flagelos naturais, as intempéries

climáticas ou as pragas que danificavam a colheita agrícola e os meios necessários

à reprodução comunal (com a produção a mais sendo convolada a posteriori ao

uso).

A riqueza nas trocas primitivas correspondia à totalidade de

necessidades, capacidades, prazeres e forças produtivas, que desenvolviam o

domínio sobre a sua natureza e com as forças naturais com as quais atuava, com o

propósito do incremento do desenvolvimento e engrandecimento humanos

efetuados por meio da partilha, pois da doação recíproca e da troca se garantiria a

condição de reprodução comunal e intercomunitária, que, nos casos de invasões

deflagradas por grupos estranhos, agiria como bloco parental e orgânico duma

força única.

A partilha econômica e a paridade política constituíam o caudal

que regava a unidade através da forte parceria. Pela partilha se garantiria a coesão,

do oferecer se firmava o receber quando requisitado fosse, dando-se com a certeza

de que mais adiante se receberia, aumentando a confiabilidade e o respeito

mútuos140.

Frugalmente alterado pelas técnicas dos homens, contra a

delgadeza dos espaços primitivos e às limitações ambientais é que se assentavam

as relações de repartição, como co-auxílio generalizado para resolver os 140 Vários antropólogos fornecem provas sobre a cultura coletivista e solidarista das sociedades primitivas: Margaret Mead comprovou que os papua dos Arapech realizavam grandes festas para todos, para que a colheita fosse coletivamente consumida e a concentração da riqueza evitada. Asch, ao estudar os Hopi do sul dos EUA, mostrou que eles praticavam esportes sem vangloriar o “vencedor”, condenando moralmente a competição entre os indivíduos. Outros estudiosos, por sua vez, fornecem provas de que o uso da terra para a agricultura geralmente efetuou-se entre os povos primitivos por via de distribuição rotativa, para que não houvesse exclusivismo e instituição da propriedade privada (MANDEL, 1976, p. 15-16).

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problemas de reprodução natural e demográfico; se não suficiente, recorria-se ao

infanticídio como uma das soluções.

Havia por isso uma redistribuição simples, na expressão de

Barry Hindess e Paul Q. Hirst. Ou uma reciprocidade generalizada, para Marshall

D. Sahlins.

Conforme importantes observações de Claude Lefort no texto A

troca e a luta dos homens, trocavam-se não só “bens, riquezas móveis ou imóveis,

coisas úteis economicamente” mas notadamente “gentilezas, banquetes, ritos,

serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas” e ainda que existisse a

imanenticidade da obrigatoriedade na troca, o seu fundamento social excedia o

econômico por estar em xeque o crédito do homem no homem pela troca;

ademais, possuía a troca um valor mágico ligado a acontecimentos do existir

social considerados essenciais, como: as grandes expedições, o casamento,

nascimento, circuncisão, puberdade, doenças, ritos funerais, etc.

A troca tem sobretudo um valor moral, no sentido de que os homens buscam nela a razão de sua concordância e de seu prestígio pessoal. Aquele que não se dá, que recusa tomar ou retribuir é logo tido como inimigo ou como escravo. De resto, muitas vezes a troca não se traduz por nenhum benefício para as respectivas partes (In: ESCOBAR, C. H. [org.]. O método estruturalista. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 66-67 apud SROUR, ob. cit., p. 328, nota de rodapé no 18).

No que concerne à paridade política, vemos que nas sociedades

primitivas operavam-se relações de afinidade de modo bastante instáveis,

baseadas no sexo e na idade, e apesar disso com uma autoridade bastante limitada;

conquanto nas sociedades gentílicas ocorressem relações de parentesco com uma

hierarquização já mais rígida, que destacava os chefes e “maiores” dos demais

devido aos atos em prol do bem-comum, em atividades produtoras de bens raros e

de subsistências com um labor mais penoso. O ponto de encontro entre ambas as

sociedades está na não-segregação total dos “maiores” e prestigiados dos demais,

sem exploração de uma minoria sobre a maioria e nem incidência de autoridades

com poderes ilimitados e alienados da sociedade.

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Razão pela qual Marx retratou o homem primitivo nas Formen

como ser genérico, o animal de rebanho que não se individualizava (vereinzelt)

mediante o processo histórico. O homem reconhecia-se com o grupo e com a

natureza a qual pertencia, como se compusessem uma unidade. Será a troca que

individualizará o homem, prendendo-o ao mecanismo desumanizante altamente

danoso a si e ao coletivo, emparedando-o numa individualização unilateralizante,

cerceadora da generalidade ontológica da potencialidade hominizante.

À unidade social alia-se a unidade espacial, proporcionada pela

ausência de cercas e de propriedade privada, pois a terra é coletiva e inexistem

clivagens territoriais do tipo espaços público/privado.

Não havendo segregações sociais e espaciais, igualmente falta o

trabalho abstrato. O trabalho é meio de reprodução da vida, mantenedor das

atividades vitais e da comunhão com as forças da natureza. Longe está de espúria

disputa por apropriação formal, por domação e submissão141. Toda a extração dos

frutos que o ambiente proporcionava era acompanhada de exaltação da

prodigalidade havida, com o cuidado devido para que o equilíbrio comunal-

natural se conservasse; por isso que sobreprodutos oriundo do trabalho excedente,

conseqüência da benção destinada aos deuses, se faziam divididos intra e

intercomunalmente com todos os que eram mantidas relações sócio-sexuais

através das grandes festas regadas pela abundância da dadivosa natureza;

inclusive por conta da inexistência de pavor ante as calamidades naturais e porque

a reposição e expansão dos meios de produção eram irrisórias, não havendo

igualmente uma avançada divisão social do trabalho (com educadores, religiosos,

agentes de saúde, administradores, etc.) e nem gastos específicos que precisassem

satisfazer trabalhos desligados da produção direta (como o que se passa com o

modo de produção capitalista).

141 Recordemos a observação de Pierre Castres em La société contre l‘État (1974), sinalizada por Srour, de que vários povos, dentre outros os tupi-guarani e os nômades do deserto de Kalahari, por meio da divisão do tempo de trabalho equivalente em termos sexuais, trabalhavam dois meses em quatro anos e que, por meio do tempo médio estimado, ocupavam menos de quatro horas diárias com as obrigações produtivas, o restante destinando-se ao ócio.

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O tempo é tido por lento e o espaço por fechado ou mais

propriamente por delgado, trançado à exclusiva reprodução orgânico-material do

grupo e sem que houvesse intenção do progredir material que trouxesse o

interesse por mais elementos materiais e de subsistência que não os que já se tinha

por costume (cultura) de cultivar. O que não significa crer que fosse prescindível a

dinamicidade da relação têmporo-espacial, nem que a história e a geografia desses

povos não pudessem ser refeitas: a curiosidade leva à descoberta e esta a novas

noções e necessidades culturais (saber vem do sabor, do experimentar).

Não havendo razão para o mais abstrato se perseguir e nem

motivo que valesse o desgaste persuasivo a mover os agentes, prestava-se o

trabalho a reconhecer-se como meio de reprodução biológica do gênero humano e

alicerce de humanização do ser nessa fase em que se encontra o modo de produzir

organizado. Dimensão concreta de produção de bens socialmente necessários à

reprodução comunal é como se apresenta.

Se certa relação de propriedade em algumas dessas sociedades

se instalou, não o foi em seu sentido individualista, como propriedade privada.

Havendo, no mais, a relação de propriedade que o indivíduo possui para com as

suas condições objetivas de trabalho.

A propriedade comunal está a espelhar a forma como se

arranjava a divisão econômica do trabalho, numa funcionalidade comunal

fundada no desenvolvimento igualitário-combinado. (Privando-se de hierarquias

compostas por indivíduos não-trabalhadores que vivem do excedente social

alheio, como ocorrem com as sociedades classistas)

Então, com a função de ao homem servir, a forma concreta do

trabalho com ele identifica-se sem fetichismos e alienações ideologizantes.

(Privando-se da estrutura propositadamente armada por camadas hierárquicas que

roubam a cena, noutras formações sociais, com vistas à circularmente domar o

processo sócio-metabólico dos homens entre si e com a natureza, já exteriorizada,

subordinável e rivalizante)

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Ao se perder a lógica e o conteúdo desse tipo de sociabilidade

passa-se às outras fases (não propriamente subseqüentes) da evolução do homem,

reputadas por Marx como etapas da pré-história humana.

Das formações primitivas e gentílicas fundeadas nas relações de

parentesco e na propriedade comum e temporária do solo (formação primária)

transita-se às sociedades de classes enlaçadas à propriedade privada (formação

secundária).

Mudando-se a base material da produção altera-se a

imaterialidade superestrutural reguladora das sociedades. Modificam-se as

espacialidades, noutras palavras.

Passemos então a tratar das sociedades relativas ao...

2.1.3.2 O modo de produção “asiático” ou

oriental

Divulga-se que Marx não se deteve inicialmente sobre esse

modo de produção, vindo somente a fazê-lo a partir de 1853 quando se dispôs ao

estudo dos modos de produção material de sociedades não-classistas para além do

solo europeu com o objetivo de que compreendesse as especificidades

características à transição societal que apenas em Europa se operou e que

brevemente se arrumava sob o crivo do feudalismo. Superando o que estudou em

Hegel, na fase em que se achava exilado na Inglaterra Marx pôde aprofundar

estudos sobre a China e a Índia, desenvolvendo profundo conhecimento sobre as

sociedades asiáticas.

Apercebeu-se Marx que o modo de produzir capitalista

encontrou no feudalismo europeu a condição uterina e nutriz essencial ao seu

exibir, contrariamente às peculiaridades letárgicas imperantes nas “sociedades

asiáticas” (ausência de classes, de propriedade privada, de mercado livre, de

estruturas de corporações, etc.).

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Notando haverem disparidades substanciais entre os modos de

produção oriental e o feudal europeu, Marx relevou a existência da estagnação

econômico-social dos orientais como frutos da ausência da propriedade privada,

pela ocorrência da propriedade estatal do solo (cabendo ao Estado gerenciar a

agricultura e a organização pública) e por existir a qualidade da imutabilidade

política, resistente às lutas dinásticas e guerras militares.

Intrigava a Marx as disparidades havidas entre esses dois modos

de produção: as razões que justificavam um Estado superdesenvolvido e uma

“sociedade civil” subdesenvolvida nas sociedades orientais, em contraponto à

“sociedade civil” mais desenvolvida que o Estado na realidade servil ocidental.

O rótulo de “sociedade asiática” é bastante enigmático e talvez a

generalização precoce de alguns elementos tenha gerado mais problemas que

elucidações.

Imenso guarda-chuva. O modo de produção asiático comporta:

(a) desde as primeiras formações humanas havidas em várias partes do globo a

distintas épocas, (b) que de modo independentes já caminhavam à constituição da

ampla sociedade civilizada, (c) tendo como características centrais a segmentação

entre as esferas pública e privada, (d) a divisão entre trabalho comum e trabalho

social, (e) a existência de monarquia absoluta gerindo as comunidades aldeãs

dispersas e (f) o fato de existirem populações que nem na alcunha de camponeses

livres ou de escravos se enquadram (segundo o molde greco-romano antigo).

O modo de produção asiático foi por Marx avaliado como não

confinado ao Oriente e em África e América pré-coloniais outrossim se

concretizando.

A proposição marxiana de que os elementos constitutivos do

modo de produção asiático são as comunidades aldeãs isoladas e auto-suficientes,

que vivem do uso comunal da terra, acenderam variadas controvérsias. Como nas

sociedades asiáticas é o Estado despótico e centralizado quem comanda a

sociedade e organiza o espaço, edificando obras e distribuindo a água que irriga as

culturas, fica-se indiretamente com a impressão de que o despotismo do Estado

abrolha da carência que possuíam tais sociedades em dispor de técnicas e em obter

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resultados por meio da produção. As perguntas: o que ou quem aí é o Estado?

Como surgiu? A quem servia? O Estado não consta como aparelho de opressão de

uma classe por outra, reproduzindo a sociedade e a si próprio a partir da captura,

distribuição desigual e concentração do mais-trabalho alheio? O Estado pode ser

explicado, como sugere esse modo de produção, unicamente pelas benesses da

proteção e da conquista ou como provedor de obras de engenharia pública? Teria

a noção de Estado ou de dominância aí que ver com o princípio do mal, da

cegueira e do costume social a que aludem La Boétie?

Arquitetado e gerido despoticamente, o mais certo é que a

conformação que recebia o espaço das castas dominantes (prelúdio das classes

sociais) não chegava a ser seriamente ameaçada pelos subordinados e dependentes

das garantias de segurança estatal: segurança econômica com a irrigação e

segurança social com a proteção militar, em essência.

Socialmente não totalmente livre e de certa forma coagido nas

sociedades orientais, presta-se o trabalho à manutenção dos estratos

predominantes em:

Impérios do Oriente: aos soberanos e seus asseclas;

América pré-colonial: aos chefes políticos dos impérios índios, como o da

região mesoamericana do México ou na porção ocidental do continente sul-

americano, particularmente.

Antes que ocorresse de o modo de produção asiático ser

debulhado pelo sistema capitalista que ao Oriente foi arremessado pelos punhos

do império inglês, duas basais características destacaram-se no trabalho das

comunidades aldeãs do modo de produção oriental:

Caráter de vínculo por hábitos e sentimentos internos às comunidades aldeãs;

Atitude de obrigação, pelo qual se realizava a captura da mais-valia pelos

aparelhos de Estado, para a execução do provimento dos estratos superiores e

realização das grandes obras hidráulicas – não à toa alguns autores terem

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designado sociedades como a da Rússia czarista, a China dos Sung, o Egito

dos mamelucos, a Espanha islâmica, a Pérsia e o Havaí, por exemplo, como

“sociedades hidráulicas”.

Não obstante a riqueza ser apropriada socialmente pelo Estado

despótico, o trabalho é coagido e o pagamento de tributos ato forçado nas

estruturas das cidades-Estados antigas. A obrigatoriedade tinha contudo a

contrapartida social por todos conhecida, relativas a atos de engenharia, ações

belicosas, religiosas e cerimoniais de vários tipos que contribuíam à manutenção

da identidade comunal e reprodução econômico-social de determinado povo

diante dos demais.

Trata-se dum sistema que indispõe de propriedade privada de

terras. Como no sistema oriental (e de forma modificada no eslavo), a propriedade

das terras é comunal, tribal e direta, como se fossem espécies de unidades

agrícolas e manufatureiras auto-suficientes garantidoras da reprodução dos

indivíduos na aldeia com o pagamento de tributos ou produtos excedentes ao

governo para que se cuidasse da defesa/ataque, de serviços religiosos e de

questões de importância estratégica à economia e ao espaço (irrigação,

comunicação, etc.).

A estrutura econômica dessas unidades comunais possuía

natureza “fechada”, encravada no meio rural, porque tão-só em menor plano

surgiam cidades de cuja localização se utilizava os týrannos para comerciar com o

exterior ou realizar trocas de produto excedente por trabalho com os sátrapas

(governantes de províncias), excedente que na expressão de Marx figurava como

fundo de trabalho.

Hobsbawm assevera que o sistema asiático não equivale ao de

uma sociedade de classes, no máximo corresponderia à “forma mais primitiva” e

não ao sistema de classes “plenamente constituído” (1975, p. 36, 38).

Orientado à criação e apropriação de excedente social, nota-se

haver um avanço no nível da cooperação das relações sociais desde a época das

sociedades sem classes.

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Se se produzia nas sociedades sem classes com vistas à

reprodução da vida por meio de caça e agricultura comunitárias baseadas na

cooperação simples e à comunidade adstrita, nas sociedades que poderíamos

talvez ter por protoclassistas, mais apropriadamente as concernentes ao modo de

produção asiático, a cooperação atinge um nível maior de complexidade e de

escala, como o verificado entre a soberania asiática, do antigo Egito e com os

etruscos. Não importa se secundariamente, o trabalho que garante a subsistência

de todos é forçado à produção de mercadorias (valor-de-troca) a serem cambiadas

com outras comunidades; para não mencionar a prestação de serviços e geração de

excedente (renda-da-terra e tributos) devida aos integrantes da camada superior do

Estado. Ainda que inexistisse classe social hegemônica que se utilizasse do Estado

e tampouco se observasse tendência descontrolada por geração de sobretrabalho,

como costumeiramente se nota em sociedades de classe, os privilégios dos

superiores já mais descolados da base social humana e o despotismo no trato do

corpo social anunciavam diferenciações implicitamente divisórias à evolução

experienciada por esses cantos.

A dificuldade entretanto para caracterizar a sociedade asiática

comprova não apenas porque Marx demorara a iniciar o seu trato como o fato de a

maioria dos marxistas preferir abandoná-la, quando não rotulavam as sociedades

que viam pela frente como escravistas ou feudais (como se fez com as sociedades

africanas e americanas).

Nesse ínterim, aboliu-se não só o modo de produção asiático

como os que, por ventura, pudessem vir à tona pelo prosseguimento dos estudos

nessa senda. Comprova-se com isso que o stalinismo e certas correntes ou autores

do marxismo encontravam-se embebidos pela visão unilinear, para aquém da

teoria marxiana142, a ponto de as atenções neopositivistas popperianas, dentre

outras, se porem no dever de criticar.

142 Rememoremos não apenas a reflexão de Marx sobre a discussão existente sobre o modo de produção que repousava sobre a Rússia (se feudal, capitalista ou asiático) mas sobremodo a sua reflexão sobre a viabilidade de a revolução vir a ser implantada nessa sociedade, naquelas comunidades mais isoladas que não se achavam suficientemente impregnadas pelas relações capitalistas de produção, ou, por outro lado, se a especificidade do modo de produção “semi-asiático” imperante na Rússia serviria mais como freio ao desenvolvimento político conducente ao

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Podemos pensar sinteticamente que, num primeiro momento, a

formação espacial da sociedade asiática parametrou-se em trabalho e organização

sociais cujas forças produtivas teriam por função engendrar sobreproduto via

trabalho manual coagido e alienado (indiretamente obrigatório) a partir da forma

da armadura social modelada na propriedade privada dos meios de produção

(terras e instrumentos) e na efusão da aceitação ideológica do status quo. Como se

ao lado dos Estados dinásticos houvessem classes política e juridicamente

enraizadas para movimentar a engrenagem que compunham grosso modo a

estrutura da arquitetura societal, no qual o processo de reprodução far-se-ia, num

primeiro olhar, contraditoriamente enlaçado entre possuidores e dominados em

regimes disfarçados e legitimados por forças “militares” e mítico-religiosas.

Um olhar mais acurado revela no entanto que o que foi muitas

vezes considerado como o estado de “escravidão generalizada” torna-se

insuficiente para caracterizar as sociedades asiáticas como que estruturadas em

classes sociais. Tom Bottomore, polemizando o enunciado marxiano-engelsiano

que atesta que o sistema de castas das sociedades asiáticas se constituiria no

pródromo ao surgimento das classes sociais, lembra que as especificidades

existentes na China, Pérsia e Turquia fogem a essa regra.

Em meio a toda a problemática surge uma esquematização

tentando observar esse modo de produção em dois momentos, distintos porém

conectados.

Sob esta visão, duas fases principais poderiam ser enumeradas

nesse modo de produção, dadas às peculiaridades internamente constatadas em

cada uma delas.

Na primeira fase da geografia da organização social asiática,

tem-se:

Trabalho comum;

socialismo, como aludiram Marx e Engels em 1853. O método marxiano e marxista não suprime a idéia de desenvolvimentos multilineares.

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Propriedade da terra coletiva: seu uso combinando abundante mão-de-obra

com agricultura de irrigação;

Coabitação e co-gerência de toda a espacialidade produzida: consumada na

autarquia política e na auto-suficiência econômica das comunidades isoladas;

Não-divisão entre imposto e renda, quer nos centros urbanos da antiga China,

Índia, México ou no mundo mediterrâneo, por excelência centros político-

religiosos voltados a questões cerimoniais;

Sutil distinção entre cidade e campo: fenômeno derivado de motivos

econômicos, até porque no campo se praticava da mesma forma atividades

não-agrícolas (manufatureiras), ficando as cidades com a função secundária

de servir mais de “acampamentos principescos” ou de sede à camada política

do que como ambientes de produção.

No segundo período do modo geográfico de produção “asiático”

se têm por características:

Trabalho social: entranhado na divisão vivificada pela separação entre

unidades de produção e de consumo, cujo o seu formato especa a

interdependência de comunidades aldeãs estabelecidas em conjunção com a

expansão das trocas de mercadorias e pela modificação na forma da mais-

valia;

Propriedade da terra centralizada: o controle ficando com a camada dirigente

do Estado monárquico, agente que financiava obras hidráulicas de grande

dimensão e escala espacial de abrangência para captação de água e irrigação

de comunidades aldeãs territorialmente isoladas, em ambientes do globo com

peculiaridades edáfico-climáticas bastante inóspitas;

Fixação da divisão jurídico-social do espaço em esferas pública e privada;

Divisão entre renda e imposto: dá-se a privatização da primeira e a

socialização do segundo, resultado da nova forma de mais-valia instituída;

Oposição entre meios urbano e rural: fenômeno derivado da modificação

processada na esfera da produção, com o aumento quantitativo e qualitativo

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de manufaturas e do comércio no meio urbano, conseqüência do

desenvolvimento, especialização e separação das funções produtivas.

Tratemos mais desse segundo momento, pois a partir dele temos

a divisão econômica do trabalho sendo suplantada pela divisão social do

trabalho. São estabelecidas as funções internas ao grupo sobre quem produz e

quem gerencia e controla o sobre-trabalho. O trabalho distingue-se entre manual e

intelectual, com os produtores imediatos distando-se social e geograficamente dos

religiosos, dos administradores e dos protetores (MANDEL, 1976, p. 25-26, 34,

47-48 passim).

Classes antagônicas soerguem das fendas exibidas no solo

espacial de lenta rachadura. O surgimento da propriedade, da posse do produto e

do elemento de produção faz surgir o espaço dividido da sociabilidade alienada.

Uma dialética de interdependência opositora corporifica-se entre

o indivíduo abstrato e o valor abstrato a ser por ele produzido. O espaço atomiza-

se em público e privado.

Chegam ao fim ou dele aproxima-se a fraternidade e a igualdade

nas sociedades barbáricas ou primitivas e nas “asiáticas” em muitos dos cantos do

mundo, calcadas que eram nos sistemas de parentesco endogenamente

hierarquizadas-organizadas em formas não-antagônicas, em que todos e cada um

de si trabalhavam para o outro, trabalhando ao mesmo tempo para si mesmos e o

coletivo.

A vida começa a organizar-se em princípios aristocráticos que se

vão resguardando mais e mais em espessos cipoais jurídico-legais, tendo em conta

que alguns já trabalham para outros que nada mais investem que à expropriação

do excedente.

O “trabalho comunitário” cede lugar ao “trabalho social” em

hierarquizadas estruturas classistas (KRADER, 1987, p. 299).

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Muda o trabalho. Substitui-se o metabolismo natural pelo

metabolismo social143.

Às sociedades que vivenciam atomizações internas

individualizantes e antagônicas o trabalho passa a ser obrigatório, imposto não só

pelas necessidades biológicas do homem comum e da natureza exterior carecida

de ser controlada mas como instrumento de tributação impelida socialmente pelos

dominantes à maioria desafortunada; gerando riqueza a mais, alheada e apropriada

privativamente na sua mais volumosa fração pela divisão superior. Contudo, por

ser a maior parcela do trabalho voltada ao consumo coletivo básico, ou seja, a

riqueza curvada à satisfação das carências dos homens para que entre eles se aloje

a felicidade, indispõe o trabalho do caráter essencialmente direcionado à formação

do que se convencionou chamar de riqueza abstrata. A instalação dessa situação

resvala nesse segundo momento do modo de produção asiático, quando a riqueza

perde o caráter ético ao transformar-se em finalidade em-si, com a típica função

crematística.

A organização na sociedade civil e classista corporifica-se em

espaços segregados, vez que na pré-história das famílias das sociedades sem

classes inexistiu diferenciação entre esferas pública e privada.

O desenvolvimento da individualidade é reforçado nessa

segmentação entre as esferas pública e privada144. Abrocham aí os conflitos de

143 Conforme Moreira, aos espaços naturais da relação homem-meio, ou os gêneros de vida de que trata La Blache, superpõe-se os espaços sociais, relação já sociedade-espaço, que se ocuparam Brunhes, Sorre, P. George e M. Santos (MOREIRA, 2002c), porque das sociedades naturais passa-se às sociedades históricas, o que faz com que aquela unidade orgânica se despedace em entes estranhados, de uma organicidade alienada, tal qual abordou Quaini (1991). Se nas primeiras sociedades (naturais) a organização comunal ou o controle social passava pela terra, na sociedade do capital entremeia-se com a alienação do trabalho (MOREIRA, 1988b, p. 78). 144 Nessa como nas sociedades classistas subseqüentes, não deve ser absolutizada a clivagem entre público e privado. Em termos da sociedade capitalista, a título exemplo, foi noticiado no Brasil pelos jornais televisivos a pendenga jurídico-ideológica entre uma família de norte-americanos que tiveram sua propriedade privada rasgada por redes de transmissão de energia à revelia de seu consentimento; exemplo serve de ilustração para o fato de que mesmo a propaganda ideológica da inalienabilidade da propriedade e da individualidade dessa sociedade capitalista possui limites, cabendo ao Estado (e à camada social dominante ao qual representa) transgredir ou reformular tais parâmetros sempre que a acumulação e a reprodução ampliada do capital estiverem em foco. No fundo, a máxima marxiana da lei do mais forte se fazendo presente (seja o forte politicamente – como os tiranos antigos ou os pós-capitalistas stalinistas – seja o forte economicamente – como determinado setor capitalista).

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interesses entre os produtores imediatos da comunidade e os seus chefes

soberanos. O Estado abrolha da intensificação da individualidade entre as classes

opostas, em função dos interesses econômicos que anima o seu fragmento

dominante.

A individualidade e o sentido de pertencimento à comunidade se

entrechocam. O indivíduo conserva o sentido de comunidade, não obstante sê-lo

agora integrante de uma classe social específica cuja realidade concreta afronta a

abstração genérica, disseminada ideologicamente.

O modo de produção fechado e emperrado aprisiona a sociedade

num mais moderno estado de desenvolvimento das forças produtivas.

A quantidade e a qualidade de aprimoramento produtivo-

gerencial da base material produtiva e administrativa representa o índice da

diversificação abraçada pela sociedade. E o estágio de desenvolvimento do

Estado, como organização político-jurídica a arbitrar a sociedade sob o feitio de

neutralidade, anuncia a medida da maturação conseguida pelas forças produtivas

em sociedades internamente clivadas por classes.

Um modo de produção que, nem tanto como o que largamente

se diz, não era tão estagnante e, como formação social de incipiente diferenciação

classista, continha em seu cerne forças em conflito com os germes de sua

dissolução. Ocorreu porém de o capitalismo se lho interpor em seu decurso,

destruindo-o com a colonização havida Oriente adentro, quando tomou a frente no

jogo das crescentes forças contraditórias esse modo de produção histórico-

espacial baseados em classes sociais145.

O imperialismo britânico avançava com exército e sistema de

comunicação modernos, além de imprensa livre, ferrovias e técnicas que

revolucionavam o território e a materialidade das forças produtivas por possuir a

geograficidade cravada pelo gládio político-estatal, quem realmente ordenava

145 Além desse modo de produção classista, Srour enuncia, como estruturas sócio-produtivas fundeadas em classes sociais, os seguintes modos de produção: modo de produção adstritivo; forma asiática de produção; forma escravista, colonato e parceria adscrita; modo de produção patrimonial; modo de produção feudal; modo de produção capitalista; modo de produção corporativista; modo de produção cooperativista.

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economicamente a malha espacial a partir do locus citadino, sede da camada

política de então.

Mas conta o fato de que além destes, outros modos de produção

existiram de maneira coetânea ou com certas variações temporais e em recantos

do mundo também diversos.

Vejamos mais alguns deles.

2.1.3.3 O modo de produção escravista

clássico146

O arco semântico sobre esse modo de produção é bastante

extenso, muito embora pela sucessão dos períodos de desenvolvimento histórico

ser quase consenso internamente ao marxismo considerá-lo como atinente às

sociedades antigas, evitando-se o erro habitual de confundi-lo como pertencente

ao mundo antigo.

O grau de precisão também deriva da variância do cristalizar,

porque além de perdurar por mais de dois mil anos apresentou-se geograficamente

sempre de modo disperso, diverso, complexo.

Alguns autores rebatizam o escravismo pelo seu suposto

renascer em espaços coloniais do Novo Mundo, como modo de produção provido

de relações de produção e de trabalho peculiares se comparados aos de Europa.

Outros asseveram que o escravismo moderno não pode ser

considerado modo de produção, nem (sub)sistema social conectado ao modo de

produção do capital no plano internacional e pela esfera da circulação. Comprado

como forma de capital-fixo prontificado a gerar mais-valor, o escravo era já

propriedade voltada à geração de mercadorias que vendidas trariam lucro aos

proprietários, mais portanto do que o aprisionamento à subsistência comum aos

espaços da antiguidade.

146 Sabe-se que Marx e Engels dispunham de extenso conhecimento sobre a antiguidade clássica (greco-romana), ainda que nesse período fossem poucos os materiais e os conhecimentos acumulados sobre o Egito e o Oriente Médio.

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Desta feita, por essa ótica a sociedade burguesa moderna

européia, controlada pela nova classe econômica soberana, se engrandecia nos

ombros das sociedades modernas escravistas alojadas no Novo Mundo, não se

circunscrevendo a escravidão nem às “sociedades antigas” e muito menos ao

“mundo antigo”.

Diante de tamanha inquietação e de tão pouca precisão, autores

criaram formulações outras para caracterizar as formas histórico-geográficas

concretas da humanidade; feito que não logrou entretanto ganhar destaque

científico entre os marxistas, como o modo de produção de linhagem, o modo de

produção colonial e modo de produção andino, por exemplo.

Aos poucos iremos fornecendo elementos que esclareçam e

subsidiem as similitudes e incongruências do ser escravo ao longo do tempo e dos

lugares.

Por ora, voltando-nos à parte em que o consensual da teoria está

já mais assentado, temos na “pessoa” do escravo, quanto à organização espacial

centrada nesse de que agora tratamos, o elemento precípuo ao trabalho alheado e

criador de sobreproduto social a alimentar todo o corpo social, prioritariamente as

classes dominantes das antigas sociedades greco-romanas, que em seus pilares

detinham a centralidade privada da propriedade sob controle social fortemente

militarizado.

Raros não são os autores entrementes que mencionam a

complexidade e heterogeneidade do binômio estabelecido entre as forças

produtivas e as relações de produção, sobremodo internamente ao Império

Romano, no qual a territorialidade escravista se evidenciava mais na parte Norte e

Ocidental do que na parte Oriental, povoada por outras formas de organização

político-econômicas.

A unidade do antigo império greco-romano teve o auge da

expansão territorial no segundo século da era cristã, compreendendo cerra de 60

milhões de habitantes espalhados por algo próximo a 4 milhões de km2: extensão

que ia da África do Norte (Egito ao Marrocos) passando pela Ásia Ocidental até

tomar quase toda a Europa (Grã-Bretanha inclusa).

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Um vasto tecido territorial cuja area core punha-se a sugar o

sangue de tributos e taxas pelas artérias da geografia da circulação, em que todos

os caminhos levavam a Roma, não ficando nenhuma comunidade isenta de

encargos e muito menos de eventuais saques em períodos de guerra; ficando de

fora apenas os espaços marginais, as regiões mais fronteiriças.

A “totalidade histórica e social” dessa formação social

possuiria, na opinião de P. Anderson, uma essência (mesmo que frágil)

proveniente mais da unidade cultural do que da homogeneidade econômico-

produtiva coroada por um único modo de produção (escravista). Haveria uma

combinação de modos de produção hegemonizada pelo modo de produção

escravista: mesmo na Itália romana podia ser notada a presença de camponeses

livres e donos de terras juntamente à forte presença de escravos na Sicília.

Unindo-se a essa interpretação, poucos não são os que fazem questão de ressaltar

a complexidade, diversidade e pluralidade de modos de produção existentes nessa

época, nas partes do mundo comandadas pela escravocracia de Roma.

A estratégia espacial romana consistia em se tolerar que nas

províncias se mantivessem indivíduos pertencentes à elite local na administração,

devido aos oportunos conhecimentos do ambiente e da sociedade. Outorgava-se

por essa aliança política de cúpula que fossem conservados os regimes de

propriedade e as relações sociais de produção, além de permitir a preservação da

essência cultural dos diferentes povos. Agindo desse modo o império romano

impedia que se chegasse a um estado de dependência generalizada para com o

governo central, mantendo a unidade do poder político a partir das diversidades

político-econômicas regionais (Fenômeno inverso ao que se verifica no

imperialismo moderno, em que a cultura foi quase que absolutamente

mercantilizada pelo epicentro econômico hegemônico)

Pelo comando político-espacial central de Roma se definiam

táticas e estratégias de produção e circulação de riquezas nos espaços secundários,

como quaisquer planos de defesa e expansão territorial.

Prova disso foi a dominação de o Grande Alexandre sobre o

império persa, ao conjugar o modo de produção antigo e escravista greco-romano

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ao modo de produção predominante em Ásia (modo de produção asiático), cujas

peculiaridades condiziam com a monarquia absoluta (ao invés das cidades-

Estado) e com populações que não eram formadas nem por camponeses livres e

nem por escravos (segundo a forma greco-romana antiga).

A Grécia clássica não deve se furtar ao debate, pois uma

pluralidade de mundos do trabalho nela igualmente se verifica: enquanto na

Atenas dos séculos V e IV a.C. vigorava o modo de produção escravista, noutras

cidades-Estado mais fronteiriças (como Esparta, Tessália, Etólia, Ilíria e

Macedônia) não ele era ele o predominador.

Nas regiões econômicas da Grécia onde prevalecia a

escravatura, esse modo de produção foi caracterizado pela propriedade privada da

terra, pela supremacia gerencial das cidades-Estado, pela comunidade de cidadãos

e por certa produção de mercadorias.

Já que o escravismo corresponde à segunda forma geográfica de

propriedade manifesta na evolução da civilização, substituindo a antiga

propriedade comunal direta (oriental e eslava), podemos caracterizar essa forma

de propriedade comunal como sistema contraditório e de classes.

O cerne do poder está na cidade. A partir dela se organiza o todo

econômico envolvente e os territórios circundantes (landmark), como a

propriedade comum e os territórios de caça e pastagens da sociedade romana,

utilizados apenas pelos representantes da nação (commonwealth). Baseada

somenos na agricultura e na propriedade rural, o que se tinha não passava de

processo de ruralização da cidade.

A sociedade escravista é expansionista, dinâmica e mutante.

(Difere da sociedade oriental “fechada”)

O núcleo do social identifica-se com a escravidão. Propriedade

adquirida por fatores de hereditariedade, captura, aprisionamento em guerras,

mercantilização, venda dos genitores, abandono de recém-nascidos, rapto,

pirataria ou quitação de dívidas, por meio dela o homem era convertido num bem

ou numa propriedade privada móvel.

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A cidade de Roma serve de reto exemplo: surgida de nada mais

que da unidade de camponeses reunidos e organizados às tarefas de guerra,

religião e para guarnecer de excedentes a comuna, com o tempo se viu que seus

membros iam quantitativamente crescendo e qualitativamente enraizando e se

enraizando numa estrutura não-igualitária e agregando ingredientes outros que

cooperaram sobremaneira para a expansão da cidade. A transformação do

conteúdo societal romano e o engrandecimento de seu universo urbano condiz

com (a) as diferenciações internas conseqüentes das conquistas e conquistados

que, ainda que recebessem terras agrícolas, encaixavam-se como inferiores na

estrutura social (b) e com o estratagema que permitia a formação de grupos de

parentesco a partir de casamentos intertribais (chamados de casamientos mutuos

pelos espanhóis e de intermarriages pelo Jack Cohen).

A guerra é a mola que impulsiona essa sociedade, quer para

destruir antecipadamente as forças inimigas que se lhe ameaça quer para que

novas terras se fizessem anexadas aos domínios do povo que não parava de

aumentar.

A hegemonia da centralidade da forma de trabalho existente é

que caracteriza tal sociedade como escravista. (O que não significa dizer que a

escravidão não tenha marginalmente se manifestado noutras formações sociais, no

Oriente ou Ocidente, pois o trabalho escravo pode ser observado em variados

cantos e épocas da história humana, como a instituída aos braços indígenas pelas

camadas dominantes autóctones da América pré-espanhola – sobretudo em

México e Peru – ou a existente na Idade Média européia antes que se sobrepusesse

a servidão feudal147)

147 Há que se ressaltar que o trabalho escravo também foi corrente no modo de produção capitalista. A querela sobre a questão é antiga e profunda, estando num extremo os que argüiram que a colonização do Novo Mundo empregadora de trabalho forçado não poderia ser assemelhada àquela clássica, tendo em conta que o trabalho escravo se punha como produtor de mercadorias e voltado à geração de sobreproduto que redundasse pela venda em mais-valia aos mercadores (constituindo-se pois como formas não-assalariadas de trabalho em formações econômicas periféricas capitalistas), ao passo que outros, por seu turno, afiançam que o capitalismo existente em países europeus tão-só se utilizava de formas de trabalho não-salariadas ou escravas para a produção de mercadorias, em formações sociais coloniais pré-capitalistas, como meio de acumulação primitiva à ulterior industrialização.

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Mãe das sociedades classistas, a contradição do modo de

produção escravista dominantemente permeado pela escravidão também vê ao seu

lado erigir outra relação no mundo do trabalho: trata-se do trabalho assalariado,

excepcionalidade do modo de produção pré-capitalista que se corporifica

especialmente nos mistharnes em Grécia e nos mercenarius em Roma.

A impulsão a esse modo de produção veio com a transição da

economia de subsistência à economia de produção, que possibilitou a realização

de excedentes vendáveis.

Na Grécia antiga a escravidão foi patriarcal durante a idade

homérica. Sequencialmente a esse período deu-se a transição à fase das Guerras

Greco-Pérsicas, quando já se configura a finalidade empresarial orientada ao

laborar dos setores agrícolas, mineralógicos, artesanais, navais e comerciais;

contexto de rentabilidade no qual aparece a classe social dedicada ao aluguel do

escravo, por tempo ou empreitada.

Cativos pertencentes à administração ou aos templos eram cada

vez mais aproveitados em serviços públicos, além de paralelamente serem

empregados como espécie de capital-fixo dimensionado ao fabrico de

mercadorias.

Prova do desprestígio do trabalho manual escravo está na

equiparação feita por Aristóteles à sua condição natural, enquanto não-natural

concebia-o se salariado.

O escravo na polis ateniense desfrutava de certas garantias não

obstante. Há os que advogam que a “pessoa” do escravo também representava

lucro, sendo por isso permitido o casamento, o acúmulo de bens, a compra da

liberdade, a formação de organizações voltadas ao culto religioso, a possibilidade

de introdução na família do proprietário mediante solene cerimonial, a regalia do

convívio e da amizade do proprietário, entre outros meandros marginais ao

remodelar da sociabilidade e do status gozado. A jurisprudência permitia-lhe

tratamento adequado e contrário à crueldade e o direito de defesa mesmo nos

casos em que fosse considerado culpado.

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Já em Roma a escravidão propaga-se por conta da expansão

política efetivada pelas Guerras Púnicas, ocupando-se majoritariamente com os

afazeres nos setores agrícolas.

A forma de trabalho escravo concorreu para que na Roma antiga

houvesse a desagregação do sistema de produção agrícola pelas pequenas glebas,

levando à miséria os proprietários que não podiam suportar a concorrência com a

produção escrava. Conseqüência: proletarização de pequenos proprietários

considerados cidadãos e que nada mais produziam, vivendo à custa do Estado.

(Ao inverso da maioria dos trabalhadores e cidadãos livres de hoje)

Quando lesivas aos que se achavam livres, a divisão do trabalho

e as transformações espaciais do modo de produção escravocrata impunham aos

escravos a responsabilidade do sustento parasitário, com o Direito validando e

protegendo a hierarquia que regia o período.

Direito romano que ainda classificava os escravos em dois tipos,

quais sejam:

servi publici: utilizados na administração pela magistratura e;

servi privati: atuantes em serviços de particulares.

Porque trabalho não-livre, coagido e obrigatório, aos escravos a

incumbência de abastecerem funcionários e servidores do Estado, classes

soberanas e donos de escravos (patronus). Não deixando de serem salientadas

também as outras formas de trabalho coexistentes, como as de clientela ou as de

cultivo em terras de proprietários fundiários privados.

Constando como força de trabalho fundamental e mantenedora

do funcionamento da engrenagem, o trabalho escravo dos particulares possuía

inúmeras ramificações sócio-espaciais:

No meio rural: a variante escrava do servi privati tinha à sua frente a forma

da família rústica, devendo cuidar da criadagem rural; destaque para o

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villicus, que eram os escravo-intendentes que na agricultura e na pecuária

superintendiam os demais escravos rurais.

No meio urbano: era a família urbana escrava que se ocupava das atividades

domésticas.

Distintamente do universo grego, o mundo da jurisprudência

romana mostrava-se bastante severo ao escravo, assacando penas rigorosas e

conferindo ao proprietário, pelos direitos sobre o cativo, o poder até sobre a

morte. O direito ao matrimônio também era recusado e as ligações por coabitação

(conturbernium) a qualquer instante poderia ser desatada por vontade do senhor.

O testemunhar do escravo despossuía valor em juízo: a menos

que obtido sob tortura, sua consideração em julgamento apenas se reduzia a casos

de acusação do amo de alta traição, adultério, incesto ou impiedade.

Ao Direito de alforria ou manumissão, dois tipos se

sublinhavam: a manumissio justa e a manumissio minus justa.

Sob quatro moldes organizava-se a manumissio justa:

Adoção como filho: infreqüente;

Adoção por census: raramente;

Liberdade por via testamental: o proprietário o isenta do cativeiro;

Vindicta: o senhor alforria o escravo ao enunciar as palavras liber esto,

tocando sua cabeça com uma vara empunhada na presença do lictor ou do

pretor.

No que concerne a manumissio minus justa: trata-se ao escravo

da ocasião mais propícia à consecução da alforria ou da melhora de status pela

alteração do complexo de obrigações devidos à família do amo, dependendo da

simples vontade do proprietário a sua consumação. A concretização do ato se

operava costumeiramente com a colocação do escravo sobre o píleo, lugar-

símbolo de liberdade, de anunciação da mudança pela alforria ou de delegação do

escravo a funções de confiança (como a tutela dos filhos do senhor); acaso faltasse

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por desventura às obrigações lhe outorgadas perdia o escravo a condição de

liberto e o nome do senhor que desde então carregava, descumprindo com o

confiado respeito (obsequium) e a devida cooperação (officium).

O modo de produção é sobremaneira adstrito ao consumo. O

trabalho visa ter por efeito o levantar do excedente convolado à reprodução da

existência humana de classes abastadas e parasitárias que supervisionam os meios

geográficos de produção e distribuição do sobreproduto, seja a propriedade

privada móvel seja a propriedade imóvel privada, conjuntamente fato e fator

espaciais de produção.

Então, a forma de reprodução da existência obedece a

circunstância de existir a posse do corpo do indivíduo e dos meios de produção

sociais, sob pena de coerção física severa e direta aos que se posicionassem

avessos às regras do processo segregacionista de reprodução social, dirigido pelos

estratos superiores. A função do trabalho e do produzir identifica-se com a meta

de riqueza ou (sobre)produto que garanta a reprodução desigual do corpo social

em seu expandir quantitativo.

A estrutura social é classista e expansionista. Estipula-se que na

polis ateniense da época a que pertencera Aristóteles, existia para cada trabalhador

livre dois ou três outros escravos, segundo cálculos de V. Ehrenberg, apresentados

por Krader (1987, p. 299).

O escravo era mais naturalmente comercializado se se

demonstrasse desvinculado da terra.

A formatação da sociabilidade empareda-se na laboração do

excedente atrelado às necessidades de reprodução existencial da sociedade,

mesmo que com certa margem de riqueza supérflua a ser fisgada, como jóias e

outros “pertences”: mulheres, objetos e adornos que garantiam invejado status148.

148 Assim como o processo de produção e de trabalho são diferentes nas sociedades primitivas, escravista e burguesa, por exemplo, temos que saber igualmente qualificar o excedente produzido nessas sociedades: se havia um excedente concreto atado ao consumo de todos nas sociedades comunalistas primitivas, por outro lado nas sociedades escravista e burguesa o excedente é capturado grandemente pelos estratos sociais superiores e, além disso, na sociedade burguesa o excedente é abstrato por ser um fim-em-si, voltado à acumulação ampliada e descolado das próprias necessidades de reprodução social dos dominantes (e o que dirá dos dominados!).

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Pois é comum que, em havendo classes divididas e hierarquizadas, haja busca pela

diferenciação de seus membros, seja por objetos materiais que certifiquem

posição social ou por situações culturais, posturas, comportamentos e trejeitos que

enalteçam a desigualdade; a etiqueta por essa razão tem por “finalidade e função

regular o comportamento dos indivíduos de maneira a mantê-los em suas devidas

classes” (WHITE, 1978, p. 48); ordena-se o espaço a partir do controle da estética

(e ética) comportamental.

Mas há que se dizer que a riqueza em-si não é o fundamento

geral desse estágio evolutivo, condizendo mais aos regalos, limitados, de um

pequeno estrato social. Ficando a maioria do corpo social preocupada com

questões atinentes à criação do melhor cidadão. A riqueza como um fim-em-si é

preocupação de uma minoria do mundo antigo que detém o monopólio do

comércio. (Ou mesmo na sociedade medieval, como os judeus)

A forma em que a sociedade se organiza gesta o complexo de

comportamentos normatizados que miram exclusivamente a reprodução em

termos micro-sociais da lógica que preside o corpo social, colocando classes e

membros em seus devidos lugares, como um dos nexos entre o modo de vida da

sociedade e a sua base produtiva imprecando e punindo os que às regras

simbólicas se acham desconformes, sendo a negação considerada indício do que

mais adiante pode manifestar-se concretamente como séria ameaça. (Ficou

comprovado o tom desafiador que um simples sorriso representava aos religiosos

medievos)

As relações sociais de produção com o tempo entram em

rebuliço com as forças produtivas em metamorfose porque a própria criação da

propriedade privada móvel e da propriedade imóvel privada fazia com que a

ordem social entrasse em decadência, crescendo no interior da sociedade

escravista a divisão do trabalho e a complexificação social que faziam com que os

“cidadãos livres” perdessem status. Abria-se com isso um cenário geográfico que

tinha por marcas:

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Divisão cidade-campo: intenso discernimento entre o trabalho comercial e

industrial do trabalho agrícola;

Divisão urbana-urbana: distinção entre atividades voltadas às indústrias e

atividades orientadas ao comércio exterior no plano urbano;

Divisão rural-rural: segmentação social e econômica entre homens livres e

escravos;

Empacamento do meio condutor: ao lado da complexificação social pesou do

mesmo modo à dissolvência da sociedade escravista a mordaça que se tinha

por colar, amarrada a sociedade que estava a uma postura guerreira e

expansionista que sobrelevou as atividades belicosas à qualidade produtiva

da relação agrícola-camponesa, criando-se paradoxos entre necessidade de

subsistência/concentração de terras/crescimento das trocas/economia

monetária/conquistas territoriais e agregações populacionais maiores.

A insustentabilidade da relação esgota a reprodução desse

período. A sociedade escravista já se encontra em seu gérmen entravada por

priorizar a conquista e não a sustentação econômica (produtividade) e

organizacional (política) dos espaços geográficos conquistados. A diferenciação

social uterina e o desenvolvimento econômico que se vai realizando em seus

interstícios são os canais que a vai minando149. Mesmo que se tenha valido de

certos subterfúgios ideológicos (como a crença de que o comerciar com

estrangeiros consistia em tarefa perigosa e impródiga e que deveria por isso ficar

em mãos de libertos, clientes ou estrangeiros o lidar com as manufaturas), havia

no máximo a suavização do problema: a escravidão e a obrigatoriedade da

produção continuavam justamente sob poder dos conquistados.

Portanto, a escravidão ou servidão contém os embriões da

propriedade baseada no tribalismo e o auto-esfacelamento da escravidão fortalece-

149 Há autores que afirmam que a decadência do império romano não se deveu unicamente a questões internas referentes à reprodução político-econômica (aumento da corrupção e da crise econômica de reprodução) mas especialmente ao avanço e desenvolvimento guerreiro e bélico de povos que tiveram que se aperfeiçoar para rivalizarem à altura.

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se com o avanço do processo de hierarquização que opõe proprietários e não-

cidadãos e escravos.

Outro período é inaugurado.

2.1.3.4 O modo de produção servil ou

feudal150

 

“...E agora, nestes nossos detestáveis séculos, nenhuma está segura, 

ainda que a encerre e esconda outro labirinto de Creta, 

porque lá mesmo, pelas fendas ou pelo ar, 

com o zelo do maldito cuidado lhes entra o amoroso contágio, 

e as faz dar com todo o seu recato à costa. 

Para segurança delas, com o andar dos tempos, e crescendo mais a malícia, 

se instituiu a ordem dos cavaleiros andantes, defensora das donzelas, 

amparadora das viúvas, e socorredora dos órfãos e necessitados” 

(Da seqüência discursiva na qual o cavaleiro cervantino, tecidas as

comparações entre o outrora e seu agora, divulgava sua missão

histórica na Idade Média a que pertencera: de livrar da dor e

opressão todos os necessitados, filhos bastardos da desigualdade)

(SAAVEDRA, 2002, p. 73).

---------------------------------------------------

“Não posso exprimir‐lhe quanto desprezo têm por nós, 

150 Até as Formen, a história agrária e a agricultura da sociedade feudal despertavam pouco interesse em Marx e Engels, ocorrendo se muito menções isoladas à servidão da Europa Oriental (Rumânia, especialmente). Após ser publicado o vol. I d’O Capital é que Marx, juntamente com Engels, passou a dedicar-se mais à temática, estudando profundamente a Georg von Maurer; a ponto de, mais ao fim de sua vida, interessar-se bem mais com a história da evolução da servidão, segundo Hobsbawm (1975, p. 26). Percebe-se que mesmo no vol. III d’O Capital, que trata da renda-da-terra, não há referência à agricultura feudal do Ocidente, por haver Marx se circunscrito aos estudos das origens medievais da burguesia e sobre o comércio e finanças feudais (sistema bancário, preços e moedas). Engels demonstrou maior interesse que Marx em estudar a Idade Média Ocidental, disposição insuficiente entretanto para que sua atenção (como a de Marx) fosse desviada da comunidade camponesa primitiva para o desenvolvimento do regime senhorial.

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por chamarmos de ignóbeis os artífices e de nobres os que, 

não sabendo fazer coisa alguma, vivem no ócio e sacrificam tantos homens que, 

chamados servos, são instrumentos da preguiça e da luxúria” 

(CAMPANELLA, 2004, p. 27).

Com nível mais avançado de cooperação apresenta-se o modo

de produção feudal, em comparação feita àqueloutros anteriormente arrolados,

manifestando-se esporadicamente e em grande escala na Antiguidade européia e

na Idade Média.

Há quem certifique o nascimento do feudalismo à época dos

carolíngios, os descendentes de Carlos Martel, que pelas bênçãos da Igreja

tornaram-se reis ou suseranos-mores; destaque para Carlos Magno (742-814).

Instituída estava a vassalagem em França, expandindo tais

descendentes o seu poderio militar e o feitio concentrado da administração feudo-

territorial através dos enviados especiais (missi dominici) que para todo o

território eram nomeados a percorrer. Merecedor de menção também foi o

controle social por parte dos decretos: os conhecidos capitulares, que do plano da

justiça aos serviços militar e da educação se estendiam.

O falecimento de Carlos Magno veio pôr termo a isso: o império

esfacelou-se entre os descendentes nas partes oriental e ocidental, o que

ulteriormente veio dar origem à França e Alemanha. Foi desse modo que a

dinastia carolíngia se extinguiu em 987 d.C., favorecendo a fundação do Sacro

Império Romano e da Nação Germânica.

Ao sepultamento do império territorial carolíngio e

fracionamento dum dos primeiros e mais consolidados Estados medievais, outros

se juntaram, como o otoniano e os reinos inglês e anglo-normando.

Esmaece o Estado central, alçado na relação suserano-vassalo.

Robustece-se a “sociedade civil”.

As dificuldades às comunicações e a singularidade da geografia

local da economia, cingida à subsistência, contribuíram para que o domínio

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efetivo do suserano se confinasse a pequenas dimensões territoriais, não tão

distantes das porteiras do ducado, condado ou da área sob governança do castelão.

Trabalho árduo a toda categorização, por sobre a sociedade

feudal inúmeros obstáculos afloram ao reconhecimento da periodização e

geograficidade do novo fenômeno insurrecto.

Bottomore (2001, p. 353) recomenda que não se deve:

de modo algum dizer que o feudo fosse universal no que chamamos de “sociedade feudal”. Desenvolveu-se principalmente na área compreendida entre os rios Loire e Reno e na Inglaterra normanda, e muitos senhores feudais, particularmente ao sul e a leste dessas áreas, conservavam suas terras de maneira alodial, isto é, como propriedade absoluta. Não obstante, o conceito foi suficientemente forte, como observou Engels, para chegar à sua “expressão clássica da ordem feudal” nas Assizes do efêmero Reino de Jerusalém dos cruzados.

Com o cuidado que se deve ter com as generalizações, no

delinear das genealogias e desenvolvimentos temporais e espaciais desse

fenômeno, observamos que fora na Europa Ocidental, a que Marx mais se reteve,

que a conhecida propriedade feudal ou por estamentos teria se originado a partir

da mistura de instituições dos romanos derrotados com as tribos germânicas

conquistadoras. Sua base identifica-se com a estrutura agrícola que organiza a

vida social rural da população camponesa de rendeiros (tenants) composta de

mão-de-obra familiar espalhada por extensas regiões geográficas.

(Semelhantemente ao que passava com o comunalismo primitivo)

Outro elemento essencial aludia às propriedades manufatureiras

artesanais e independentes, pelas quais os indivíduos seus detentores asseguravam

igualmente os meios de subsistência, organizando-se socialmente em corporações

de guildas, cujas manufaturas detinham maior envergadura que aquelas existentes

no sistema antigo.

Ao ordenamento da geografia do feudo subjazia todo um poder

de controle político identificado na jurisdição erigida sob a forma de tribunais e

cortes senhoriais, com as quais se dirimiam disputas, puniam-se infrações de leis,

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preservavam-se costumes, impunham-se tributos e recrutavam-se contingentes

militares.

As altercações jurisdicionais se passavam sobremaneira entre os

senhores e o campesinato, não se excluindo determinadas polêmicas entre os

próprios vassalos do reino que compunham a aristocracia militar. Conflitos entre

as duas camadas básicas da sociedade feudal não eram incomuns e disputas na

própria classe dos senhores feudais detinha lá certa freqüência, apesar de os

vassalos militares serem considerados homens livres e de seus direitos de

administração e especialmente de linhagem disporem de relativa autonomia

jurídica (excetuando-se questões de inviolabilidade jurídica). O vassalo poderia

até refazer sua teia de alianças (allégiance) para com outro senhor sem se importar

que sobre seus ombros pesassem acusações verbais de traição, a possibilidade de

novas geopolíticas ou de outra geograficidade vir a se estabelecer era-lhe

razoavelmente assegurada. Isso para o estrato superior.

No concernente à jurisdição dos senhores sobre os camponeses,

sabe-se que a relativa liberdade pessoal que alguns deles gozavam não se traduzia

em direitos de mobilidade e de propriedade da terra – embora a propriedade

jurídica dos senhores sobre as glebas de terras não se aproxime de modo algum ao

sentido jurídico moderno. Pior era a situação dos camponeses não-livres que eram

obrigados a trabalhar na fazenda senhorial (demesne), ofertando tempo de trabalho

não-pago seja com os tributos disponibilizados sob a forma de produtos in natura,

seja os pagos em dinheiro oriundo da exploração familiar, ou pelo cumprimento

das tarefas que lhes fossem estipuladas.

Conquanto não houvesse evolução temporal linear e isotropia

espacial total, foi no século XII maiormente que a geografia da exploração servil

conheceu das suas faces mais opressivas.

Fora sobremodo desse século em diante que a descentralização

feudal deitou nas mãos de cada senhor – inclusive os que os domínios não

excediam a territorialidade da aldeia – poder para multiplicar a tributação

jurisdicional a todos os habitantes, rendeiros ou não. Com o (meso)poder

densificado no plano feudo-territorial, decaiu ainda mais o nível das taxas

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recebidas pelos camponeses nos trabalhos obrigatórios a eles endereçados pelos

senhor, quer no moer do trigo, quer no prensar das vinhas no seu lagar ou no cozer

do pão em seu forno. Não obstante tudo isso, em caso de condenações por

delinqüência comprovadas na corte, tinham os camponeses de sujeitar-se a pagar

multas aos senhores; sem mencionar as taxas que tinham de arcar para que

pudessem ver suas filhas casadas e, em caso de falecimento dum membro familiar

seu, dos cuidados para estar em dia com o dispendioso imposto mortuário.

O universo rural, alicerçado pelo espaço do trabalho e pelo

espaço vivido, nalguns mais que noutros momentos e regiões, recebia os laços

asfixiosos do poder daqueles senhores mais tirânicos. E era mediante multíplices

formas de extração de renda que se sustentava o corpo espacial do ser feudal,

nutrindo fundamentalmente as cabeças senhoriais protegidas pelos braços

militares; chefia de cabeças geralmente insanas que conduziam o corpo social

vendado e acompanhado pela camada clerical, que aos ouvidos plebeus sussurrava

total subserviência.

Como variadas foram as formas de absorção da renda, discute-se

se a renda-da-terra fora a central e a renda-de-trabalho periférica no âmbito dessa

sociedade, por ter havido combinações e desconcertos nos mecanismos de

captação de trabalho não-pago, revezando-se no tempo e nas distintas

espacialidades feudais o tipo de renda mais característica.

Alguns estudos nesse sentido apontam que o característico ao

feudalismo do Ocidente perdurado aos séculos XVI e XVIII tenha sido a renda

extraída pelo senhor do trabalho não-pago do camponês na demesne; renda de

trabalho que, com a dissolução do modo espacial de produção feudal ocidental,

viu-se crescentemente enfraquecida, sendo logo substituída pela renda paga como

produto ou dinheiro. Todavia, contrariando o que se passava no Ocidente e para

mais dificultar têmporo-espacialmente o precisar do fenômeno da renda, à época

em que se despedaçavam aqueles espaços feudais dos séculos citados, encimados

na demesnes e no trabalho servil, no Oriente eles ostentavam o seu maior vigor.

A variância no manifestar e obstância no classificar da renda

desdobra-se do fato de que o sangue do trabalhador rural que ela representava era

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sugado com intensidades e por mecanismos desiguais, o que fazia pulsar

distintamente as partes espaciais corpóreas do “ser feudal” europeu: eis por que,

enquanto fora possante a demesne baseada na renda em trabalho na França

carolíngia do século IX, na Inglaterra do século XIII e Polônia do XVII, tornara-

se decaída em França do século XI, Inglaterra dos séculos XII e XIV e na Europa

Oriental dos XIII e XIV.

Isso significa que além da renda em trabalho ser hegemônica em

espaços de temporalidades distintas (diferenciando-se nos territórios/países

conforme o século considerado), corporificava-se temporalmente com

espacialidades desiguais (diferenciações entre territórios/países de um mesmo

século ou entre os espaços do Ocidente e do Oriente). Poderia haver

heterogeneidade socioeconômica em espaços temporalmente simultâneos e

homogeneidade socioeconômica em espaços temporalmente diacrônicos.

O primaz nesse caso não se remete à questão de saber se era

variegada ou homogênea a forma essencial de renda na Europa Ocidental ou

Oriental. Raiz principal da problemática está em classes definirem-se

fundamentalmente entre possuidores e despossuídos do meio agrário elementar à

produção, numa estrutura em que se opunham servos camponeses de um lado e

senhores feudais e nobreza clerical, doutro. Relembremos que em determinado

momento do medievo a Igreja chegou a deter metade das terras do continente e

que bispos e abades eram grandes senhores feudais, demonstrando ser ela mais

que esfera ideológica direcionadora dos espíritos individuais por firmar-se como

instituidora de cercanias e cerceamentos materiais e imateriais à sociedade.

O trabalho é não-livre na forma e na substância. Servidão de

gleba é o nome que carrega por estar a coação do trabalho atrelada à terra: o

chamado vínculo predial. O camponês feudatário tinha resguardado o direito ao

uso da terra a partir da relação de obrigações firmadas para com o feudo; situação

insuficiente, porém, para que gozasse do direito de propriedade sobre a mesma.

O excedente engendrado pelos camponeses tinha por finalidade

principal suster a família e abastecer a corte, por meio de pagamentos feitos por

dinheiro ou produto.

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A existência do dinheiro pressupunha o mercado e este se

enredava a uma relação extrafeudal, sinalizando a territorialidades urdidas pela

produção-circulação de mercadorias.

A subsistência dos camponeses quase que os impossibilitava de

vender a produção ao mercado. Do lado dos senhores, a maior parte da produção

nas demesnes encontrava-se voltada ao comércio, além do necessário ao sustento

dos abastados (senhores e clero) e provimento dos cerimoniais luxuosos. A

divisão social do trabalho havia-se ossificado de longa data como espinha dorsal

do corpo geográfico do ser feudal armada para atender a estrutura hierárquica,

abastecendo os que se dedicavam à oração e à guerra.

A estrutura geográfica e social enformada na ruptura dos

membros-trabalhadores da sociedade dos meios espaciais de produção, bem como

o relativo estado de paz atingido por volta do século XI, contribuiu para que o

feudalismo se alavancasse, com os camponeses a produzir expressiva margem de

excedentes, a população aumentando numericamente e um relativo estado de

progresso tecnológico se processando.

Assim, de mãos dadas à expansão de excedentes em terras

senhoriais ou cuidadas pelos campesinos e paralelamente à manutenção dos

hábitos de consumo da alta hierarquia (arcebispos, bispos e abades), que os

herdara do Império Romano como formas de ostentação e poder, iam-se alargando

as trocas para além da geografia das aldeias, crescendo em dimensões os

mercados locais e regionais. Dilatava-se inter-regionalmente a geografia da

circulação que unia pontos esparsos de produção, alcançando o Oriente Médio e o

Extremo Oriente das cobiçadas sedas, especiarias, frutos e vinhos de alta

qualidade, despertando desejos de prazer e sonhos de consumo na nobreza

européia, que os conseguia com o dinheiro tomado por tributos e cobranças,

dentro dos marcos jurídicos da coação feudal não-econômica.

Para atender à demanda aristocrática brotam cidades

estrategicamente localizadas dentro dos feixes comerciais, como os conhecidos

centros mercantis de Veneza, Colônia, Bruges e Londres. A malha do comércio

contemplava as novas cidades que salpicavam o solo europeu, do mesmo modo

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que a camada aristocrática concentrada nos feudos, sedes das grandes abadias e

bispados, capitais monárquicas e regionais.

Entremeando o comércio internacional ascendente verificou-se o

aparecimento de manufaturas em chãos de Europa, favorecendo que outras regiões

presenciassem novo surto de urbanização e produção manufatureira, como o que

se passou na Itália central e nos Países Baixos particularmente, que

acompanharam a comercialização dos gêneros internacionais com produtos têxteis

de lã de alta qualidade, óleo, vinho, cereais e madeira.

O tripé comercialização-manufatura-urbanização era o

responsável pelo povoamento de cidades com artesãos, mercadores urbanos e

varejistas. Cenário em que os mascates levantavam lojas ou barracas de mercado

para comerciar.

Por incrível que se nos pareça a estrutura social das cidades de

então reproduzia ainda aquela do campo: a oficina do artesão, unidade básica de

produção citadina, assemelhava-se a do meio rural trabalhada pelo camponês

médio. Intensificando-se, as transformações vão colocando no lugar mais alto em

que estavam as aristocracias feudais os novos empreendedores capitalistas,

substituindo as relações do mundo do trabalho dos senhores feudais-camponeses

pela do mundo do trabalho dos capitalistas/trabalhadores: andaimes da nova

formação espacial.

O processo de transição não foi homogêneo em termos espaciais

em virtude das dinâmicas das transformações contarem com intensidades

desiguais: (a) muitas unidades de produção possuíam limitações operacionais e

número reduzido de trabalhadores; (b) situação parecida a das unidades de

comercialização, não sendo volumoso nem o pessoal ocupado no comércio

varejista (que absorvia duas ou três pessoas por unidade comercial) e nem o

alojado no comércio de atacado (os armazéns dos ricos contavam somente com

algumas dezenas de homens); (c) num período em que as cidades possuíam

grande número de desterritorializados e marginalizados que não chegavam,

contudo, a se constituir de imediato em proletariado.

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O fato é que as cidades medievais pelos idos dos séculos XII e

XIII ainda não representavam substancial antagonismo ao meio rural e nem às

camadas lá residentes, haja vista que o expansivo comércio não se anunciava vilão

a esse modo de produção ou aos seus estamentos. A ordem medieva instituída

pela aristocracia feudal não se sentia ameaçada pela elite burguesa, que nas

cidades que controlavam gozavam de considerável nível de autonomia política e

de privilégios jurisdicionais.

As cidades italianas mais evoluídas mercantilmente à época e

que hegemonizavam o poder em âmbito local, acima da pequena aristocracia

rural, ratificavam a situação de equilíbrio imperante entre esses agentes que social

e territorialmente se encontravam segmentados.

Graves disputas não havia e nem animosidade entre capitalistas

e senhores do mundo agrário. Senhores cada qual de seus espaços,

complementavam-se antes os seus interesses: era comum aos mercadores-

banqueiros-usurários das grandes cidades italianas – à moda do que

experienciavam os pequenos comerciantes das cidades setentrionais –

abastecerem ou emprestarem dinheiro aos governantes feudais e à aristocracia

rural, preferencialmente para que se banqueteassem com a prática das guerras.

O reembolso dos empréstimos pelos que com essa atividade se

ocupavam não era ato de todo acerto, no entanto. Quantias expressivas auferidas

por governantes deixaram de ser restituídas aos seus credores. De sua parte,

alguns dos credores concediam empréstimos à nobreza feudal, já na fase nascente

do capitalismo mercantil, como forma de adiantamento às mercadorias que lhes

seriam oferecidas ao consumo, donde alguma parte do capital far-se-ia recobrada.

Dessa reciprocidade redundaram, inclusive, as expedições

exploratórias e as descobertas-achamentos-reconhecimentos do Novo Mundo.

Pois então, se antagonismos não ocorriam entre senhores feudais

e capitalistas, entre senhores feudais e camponeses o mesmo não poderia se dizer.

Inicial e geralmente expressavam-se os antagonismos de modo latente, noutros

momentos se declaravam abertamente, como o que se presenciou com as revoltas

camponesas do fim da Idade Média, nos conflitos que fizeram reduzir os tributos

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pagos à classe dominante e ao Estado, aumentando a crise feudal e a autonomia

político-espacial dos camponeses que economicamente já desfrutavam de

autonomia. O poder que se destacava na ordem feudal era o jurídico e mesmo

esse, nas fases de revolta em que os dirigentes usam por costume recuar nas

posições para não perderem totalmente o espaço da batalha, decrescia ante a força

da “sociedade civil”.

Nos períodos em que as contradições sócio-espaciais ainda

podiam ser camufladas era o juramento de fidelidade um importante laço na

relação entre essas camadas sociais. Como ethos da classe dominante feudal, do

qual não se sabe ao certo se reminiscência da cultura de guerreiros germânicos e

de seus chefiados ou da relação entre os magnatas romanos e os seus clientes, fato

é que foi a fidelidade jurada uma espécie de anel cultural a casar deveres e

obrigações.

Os direitos dos camponeses muitas vezes representavam direito

de dever e não de receber, e isso porque a organização social arrumava-se pelo

rural, onde os braços feudais eram mais fortes (cavaleiros, escudeiros, arqueiros,

etc.). A propriedade agrária do feudo (feodum, feudum), propriedade coletiva do

senhor feudal, compunha a base sócio-territorial-militar que organizava essa fase

de desenvolvimento social, e em cada feudo lá estava a prestar os seus serviços ao

estamento explorado dos feudatários, conforme a hierarquia montada pela nobreza

e vigiada pelos seus dependentes armados.

Em se tratando de propriedade, marco jurídico que representava

e regulava a ordem espacial, as formas cardeais se delineavam como:

Propriedade territorial rural: trabalhada pelos servos rendeiros em proveito

dos que se achavam no tope da hierarquia estamental feudal, para a qual

deveria dirigir-se a renda-da-terra reclamada pela coerção não-econômica

(não-mercantil) praticada pelo suserano;

Propriedade artesanal urbana: a cabo de mestres, oficiais, aprendizes e

jornaleiros, eventualmente.

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Para regular a amplidão da estrutura territorial e a dispersão

populacional valiam-se as camadas superiores de unidades políticas relativamente

grandes, chamadas de monarquias feudais.

Porém, dada a complexidade e heterogeneidade do modo de

produção feudal, duas geograficidades podem ser assinaladas para melhor se

tentar explaná-lo:

Primeira espacialidade do modo de produção feudal: prevalece o elo do

trabalhador com o solo, não sendo facultado o seu transacionar sem a terra

(diferentemente do que sucedia com o escravo do modo de produção

clássico), cujo uso concretizava a exploração do trabalho camponês mediante

a subtração de produtos ou diretamente através dos serviços a que deveria

cumprir se requisitado fosse pela classe dominante; circunstância que não

impedia a possibilidade de o servo acumular certo lucro já que as obrigações

para com o senhor possuíam regularidade e o sobretrabalho suscitado por ele

poderia ser ajuntado através das manufaturas domésticas rurais;

Segunda espacialidade do modo de produção feudal: o trabalho deixa de ser

coagido pela terra e de a ela estar agrilhoado; surge um novo formato de

controle do trabalho nessa fase principesca do capitalismo mercantil: o que

perpassa a coação normativa e contratual de longo prazo que liga a

aprendizagem e os serviços exclusivamente às companhias, guildas e

corporações fechadas.

As formas geográficas de manifestação do ser medievo ilustram

a privação que impele o servo a prestar seus esforços em prol dos possuidores das

terras por “graça e direito divinos”, seja na plantação e colheita para o pagamento

em espécie, seja para o pagamento em tributo monetário ou com dias de trabalho

na semana, quando reparos em estradas e outros quefazeres eram pelos senhores

estipulados; ou ainda, em meio às forças solventes dos espaços de produção

feudais, transitando ao espaço da cidade, espaço da burguesia por excelência,

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espaço do comércio e duma produção expansiva, espaço do capital mercantil da

geografia nova que começa a ser contornada.

A estrutura é estamental e a organização política personifica-se

diretamente no senhor feudal e em suas assembléias, quer dizer, no Estado

monárquico coligado à Igreja católica romana, prontificados à manutenção do

mecanismo cíclico de regulação e reprodução espacial das economias fechadas,

nas quais a produção se voltava ao consumo ou ao parcimonioso comércio,

igualmente amoldado ao consumo da nobreza.

A função da ordem semelha-se com o comprometimento de

parte da sociedade ter de trabalhar para outra, a exploração se findando na

satisfação (desigual) das necessidades sociais (os superiores espirituais e os de

sangue azul desfrutavam do direito inalienável de regalias). Esporadicamente a

desigualdade se encrava na posse momentânea dos corpos dos feudatários: caso

do “prima-noctis”, quando o senhor feudal apossava-se de noiva alheia nas

núpcias para tê-la nos umbrais da noite, cobertor da desdita.

Há pois, um processo social hierárquico de controle e punição

direta e irrevogável. Domínio efetuado, não obstante e em regra, por meio do

monopólio territorial dos meios de produção social e não diretamente sobre o

subalterno. (Como se executava com o processo de trabalho concernente ao

esclavagismo clássico)

Em termos gerais podemos afirmar que a sociedade feudal,

lastreada pelo modo de produção feudal cuja superestrutura político-jurídica

detinha grande peso, sustentou-se sob duas características especiais: (1) em sua

fase inicial teria o feudalismo se arquitetado espacialmente por meio da garantia

da obrigatoriedade do dever político dos camponeses em ofertar fielmente

excedentes aos senhores feudais, que utilizavam dum ardil extorsivo de conteúdo

mais político que econômico; (2) posteriormente, devido à complexificação

geográfica da sociedade feudal e o crescimento das disputas territoriais, verificou-

se juridicamente a extensão do dever camponês à obrigatoriedade do cumprimento

fiel com as tributações, mormente as de guerra.

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Ao que respeita ao universo da superestrutura reguladora do

arranjo feudal, sabe-se que realizavam periodicamente assembléias, do

Parlamento e Estados Gerais, para se conciliar da melhor forma possível os

interesses dos senhores de terras e os da elite burguesa ascendente, evitando-se

desavenças que pudessem rachar a cúpula do poder estruturante da sociabilidade e

dos espaços seus de regência socioeconômica.

A propósito, em França e Espanha as assembléias ocorriam

baseadas na divisão-combinação orgânico-tripartida do corpo social sancionada

originalmente pelo clero no século IX como representativa da vontade divina.

Visando representar sócio-espacialmente as forças divinais que rezavam, as forças

militares que lutavam e as forças braçais que trabalhavam, as assembléias eram

constituídas respectivamente pelo clero, nobreza e cidades (“terceiro estado”),

devendo incumbir-se não apenas de emitir sentenças e resoluções como de acusar

de pecado essencial aqueles que as recusassem.

O poder político-religioso dessa doutrina foi tão marcante que só

veio começar a abalar-se por volta do século XVII, quando o ordenamento

progressivo da nova estrutura societária pôs-se em grave desacordo com a

superestrutura político-jurídica arraigada.

Outros agentes vingaram com a urbanização, exigindo sua

acomodação espacial, porém, uma vez rompida a ordem feudal, foi nas sombras

das mesmas bandeiras de harmonia e imutabilidade sociais de outrora que a

burguesia programou o ajuste social.

Mudam-se os ordenadores e o ordenamento político, econômico

e espacial. Mantém-se a obrigatoriedade hierarquicamente estática da ordem.

Da contradição estabelecida entre a geografia das forças

produtivas e o ser das relações sociais de produção originou-se a metamorfose da

espacialidade européia, com a nova formação econômico-social nascendo de seu

ventre, como período histórico de desenvolvimento posterior à fase feudal.

O qualitativo berçário que representou o feudalismo a um modo

de produção subseqüente constituiu-se, na opinião de inúmeros pensadores, uma

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das suas especialidades distintivas, não encontradiças nos modos de produção

previamente conhecidos.

O sismo geográfico da formação social européia adveio da

colisão da placa espacial do mundo rural com a placa espacial mundo urbano, que

movia e crescia sem cessar.

As cidades de locus do trabalho privado enveredam-se a um

processo de transformação que – imitando os feudos quanto à necessidade de

defesa, competição e influência na estrutura social – muito contribuiu ao despertar

de guildas de mestres artesãos ou comerciantes que, com o tempo, foram se

conflitando com os aprendizes e oficiais por motivo do expandir econômico e

territorial de forças produtivas que se avolumavam, alterando todo o complexo do

ser social medievo e da espacialidade com a qual se alentava.

Quase que adormecida desde o mundo antigo, a cidade acorda

com força suficiente para ajudar a enterrar o feudalismo mais adiante.

Alicerce geográfico do mundo moderno, plataforma industrial e

de maquinarias e base concentradora de populações esparsas, descampesinando

populações e realocando força de trabalho, a cidade far-se-á aos poucos a base

geográfica da nova forma de produzir.

Se no modo de produção grego antigo as cidades representavam

o substrato do poder político (cidades-Estado) de uma espacialidade

genuinamente marcada pela cidadania e trocas de certas mercadorias; assumindo

no modo de produção asiático das sociedades orientais nada mais que a função de

políticos “acampamentos principescos” e criaturas do Estado; no feudalismo

colocar-se-ão como instâncias da seminal divisão espacial engendrada pelo rural-

urbano como unidades independentes politicamente.

A partir das cidades medievais, senão totalmente rasgado no

início, costurou-se o tecido multicolorido do desrespeito e ousadia de artesãos e

mercadores que nelas selavam morada.

Transformou-se ao longo do tempo o conteúdo das cidades

tendo em vista a alteração da lógica organizadora do espaço, e transmutou-se a

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lógica ordenadora do espaço porque se mexeu no equilíbrio da relação entre

forças produtivas e relações de produção no âmbito do rural-urbano.

O capitalismo fortalecido pela cidade e seu incentivador

deliberado pela primeira vez na história aprofundou significativamente a

incipiente divisão espacial cidade-campo, alimentando uma tensão que não cerrou

em majorar porque as formas e funções existentes se queriam outras que não as de

outrora.

Dimana-se a partir da cidade não apenas a política, como a

economia e a geopolítica nela planeada.

O novo espaço-mundo tem berço nas cidades feudais que vão se

revolucionando em seu transitar para o capitalismo. Instalam-se como sede da

nova camada economicamente dominante (burguesia), como plataforma das

revoluções industriais e palco privilegiado à realização dos valores-de-troca.

Do interior do modo de produção feudal eleva-se a contradição

entre o desenvolvimento das forças materiais de produção e as relações sociais

enrijecidas. O agigantar da produção e o esparramar das trocas colocam-se em

choque com a tradicional expressão jurídica, isto é, com as relações de

propriedade feudais (organizações agrícola e manufatureira auto-suficientes).

Exaurindo o feudalismo, o modo de produção capitalista emerge

das mãos e mentes dos novos atores sociais, que gradualmente vão traçando a

nova geografia socioeconômica que querem por mundial151.

Os laços de cordialidade havida entre agentes feudais e agentes

econômicos vão se tornando mais frouxos152.

151 Ao Marx era ponto resoluto o fato de o capitalismo ter surgido como etapa necessária e sucessória ao feudalismo: absorvendo ou empregando nas manufaturas os egressos do campo que afluíam às cidades; enquanto que os modos de produção escravista, oriental, germânico (não limitado a um povo), eslavo (similar a oriental) e feudal se lhe compareciam mais como fases alternativas à sociedade comunal primitiva. 152 Como entidade periódica de desenvolvimento da formação econômica da sociedade medieva agarrada à servilidade, o modo de produção feudal topou com forças produtivas em notável solavanco; impossível seria o trono social burguês em modelagem dividir em longo prazo a coroa social com cabeças feudais. Apenas em momentos de crises, guerras ou revoluções se torna possível a existência duma formação econômica da sociedade contar com mais que um modo de produção (KRADER, 1987; DOBB, 1963). Superada a fase transitória, tende o modo de produção mais dinâmico a aniquilar os seus antecessores, podendo ou não adir formas particulares e passadas de relações econômicas ao seu metabolismo.

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Diferindo-se do meio rural em que se operava a propriedade

comunal da terra e outrossim distinguindo-se do meio urbano medievo gerido

pelas guildas que tornavam o trabalhador proprietário dos meios de produção, a

cidade moderna transforma-se em palco da separação entre o trabalhador e as

condições objetivas de produção, peculiaridade que faculta ao capitalismo

espraiar-se mais velozmente não somente na condição situacional da propriedade

da terra (com a proletarização dos camponeses) como por fora dessa (pela divisão

do trabalho no meio urbano).

O capital não advém genesicamente das entranhas da cidade, já

existindo em sociedades anteriores. O modo de produção do capital irrompeu do

ventre da sociedade medieva contudo, como força suprema centrada no trabalho

excedente produtor de valor-de-troca que prima a persecução da riqueza em-si,

ilimitada, desapega do consumo e da satisfação real dos “homens”; algo

absolutamente distinto do feudalismo, que focava valores-de-uso (e talvez

valores-de-abuso).

Ao dissolver das formas de subsunção do trabalho camponês ou

da propriedade feudal (pequenos camponeses, fazendeiros ou arrendatários)

caminha a tendência de formação do contingente de força de trabalho

potencialmente livre e que afluem às cidades que já hospedam ofícios

independentes e não-agrícolas, estruturados em agremiações produtoras de

mercadorias que demonstram hábil capacidade laborativa e organizativa aos

trabalhadores-livres; estes, de sua parte, vêem o seu trabalho ser separado dos

demais elementos de produção sincronicamente ao processo em que os valores-

de-uso são subsumidos aos de troca.

Tudo isso em compasso com o farejar aguçado da riqueza

monetária ainda não constituída em capital e que, acumulada pelo comércio e pela

usura, espera o momento de tomar as rédeas da sociedade, colocando o espaço

citadino, rural, nacional e internacional sob os traços de sua régua e esquadro...

Fê-lo!

2.1.3.5 O modo de produção capitalista

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“Que se faça o sacrifício. E cresçam logo as crianças” 

(Aloha, Legião Urbana).

----------------------------------------------

“Para que uns floresçam, outros crescem atrofiadamente” 

(Florestan Fernandes).

--------------------------------------------

“Nós somos o terceiro mundo digital” 

(Terceiro Mundo Digital, Capital Inicial).

A denominação capitalismo origina-se tardiamente, se

pensarmos na evolução do pensamento marxiano exposto nas primeiras obras.

Nem no Manifesto ou no livro primeiro de O Capital ela se manifesta; o que não

se verifica com os termos: capitalista e capitalistas, habitualmente empregados.

Somente em 1877, nos escritos enviados a seguidores russos é que esse

substantivo é trazido à luz por Marx.

Não mais que para clarificar a complicação que tolda a

classificação sobre os modos de produção, cremos que a compreensão do

capitalismo detém destacável importância não só pela complexificação e pelo

dinamismo societários inerentes ao seu movimento, como também pelo fato de os

teóricos da economia política burguesa preferirem não só dispensá-lo como negar

as idéias básicas marxianas, robustecendo a luta de classes no terreno teórico-

conceitual e ensombrecendo a ciência da história com fabulas e estórias.

Conheçamos o processo histórico-geográfico da concreção

capitalista para cotejá-lo ao que dele se figura, porque não raramente insurgem

proposições teóricas a quererem situá-lo em épocas longínquas e distanciadas

pelos milênios, confundindo-se capital e capitalismo153.

153 Nas reflexões realizadas (RIBEIRO, 2001b, p. 173 et seq.; idem, 2004c) contrapomos as idéias generalizantes de Weber sobre o capitalismo às teorias marxistas que cuidam de distinguir o capital (existente há mais de três mil anos na história) do capitalismo, que se faz hegemônico como modo de produção ou, diria Harvey, como modo de vida sob a expansão da forma mercantil.

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O problema maior dos teóricos está na identificação dos

elementos e leis essenciais a essa formação social, que ora acusamos como: (a) o

salariamento por tempo ou tarefa; (b) o trabalho não-pago realizado pela classe

desposada dos meios geográficos de produção; (c) a produção de mercadorias; (d)

o mercado; (e) as relações contratuais da teia político-jurisdicional montada pelo

Estado; (f) a existência do equivalente universal de trocas e unidade a pesos e

medidas, proclamada ordinariamente sob forma monetária, flexível e de maior

liquidez: o dinheiro; e, acima de tudo, (g) a intenção de reprodução ampliada

como meta nuclear do ser capitalista, qual unidade do diverso metamorfoseante

cegado pelo brilho do excedente dilatado e a todo custo perseguido.

Temos que o princípio e o bastião do capitalismo é a produção

de mercadoria, entretanto, não devemos esquecer que, não deixando de

permanecer condição necessária e suficiente, não é a mercadoria a finalidade do

capital mas a sua reprodução ampliada, como expansão permanente, geração e

acumulação de riqueza abstrata (MOREIRA, 1988b, p. 73; RIBEIRO, 2005b, p.

12; BELLUZZO, 2005a, p. 13). Cogente o calvário da produção material de

mercadorias e da exploração da força de trabalho entrementes não inevitável,

como notaram o revolucionário Marx e o burguês inglês John Maynard Keynes

(1883-1946), que perceberam que a acumulação pode operar desvairadamente

pelo realizar da abstração de suas próprias formas particulares (capital-produtivo,

capital-mercadoria, capital-monetário154), aperfeiçoando sua natureza absurda.

Feitas as interpretações de cunho abstrato, percebamos o seu

desdobrar na concretude do histórico-geográfico, na formação do espaço

dominado pela plutocracia econômica.

Surgido no Norte de Itália, Inglaterra, Países Baixos, Catalunha

e regiões limítrofes, o modo capitalista de produção expandiu-se pelo mundo com

dimensão territorial igualada ao modo escravista clássico de produção, porquanto

o feudal e o “asiático” cingirem-se a certas áreas de Europa e Ásia.

154 Entenda como sinônimo de capital-monetário o capital a juros, por centrar-se no valor-rentista sugado contemporaneamente por via fictício-especulativa e meta-salarial, pela superexploração da força de trabalho.

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Distintamente das demais, na formação econômica da sociedade

capitalista percebe-se existir níveis mais amplos, complexos, sistemáticos e

estruturais (não-esporádicos) de cooperação humana, dimensionados à produção

de mercadorias comerciadas entre regiões longínquas.

Todavia, se a produção de mercadorias teve apogeu nessa

quadra da história, nela não se originou. O fabrico de mercadorias data de 10 a 12

mil anos no Oriente Médio: fase em que se deu a primeira divisão do trabalho e a

formação das primevas cidades.

Hoje é patente que algumas formas de relações econômicas da

era moderna ou contemporânea já existiam em espaços da antiguidade, não

obstante de modo marginal, como: lucro, salário, mercadoria e capital. Fenômeno

insuficiente para atribuir veridicidade às teses que tentam impetrar o capitalismo

em épocas deveras antigas, tendo em vista que o modo de produção dominante

tem por característica central um elemento que arruma a economia espacial e o

modo de vida sem impedir que coexistam substâncias econômicas de outros

sistemas. Basta notarmos que do mesmo modo que existia salariamento no regime

escravista antigo existe escravidão não-salariada no capitalista coevo, por isso da

importância do entendimento das partes-fenômenos (escravidão, salário, capital,

etc.) na relação com as distintas e determinantes totalidades-sociais.

A propriedade burguesa moderna tem a cidade como base

principal de produção de mercadorias. Aprofundando a já existente separação

cidade-campo, a cidade ampliou ao mesmo tempo a divisão do trabalho entre

produção e comércio no nível cidade-cidade na Idade Média; situação que

propiciou, sincronicamente à divisão interna da força de trabalho, a especialização

produtiva na rede funcional da divisão sócio-territorial do trabalho no plano

produtivo intra, inter e extracitadino.

O comércio abraça grandes distâncias e, do impulso mirado de

com a Índia estar-se a comerciar, novas rotas e novos continentes são descobertos

para gerar riqueza e dar fim ao bloqueio interposto pelo monopolismo árabe à

geografia da circulação existente, que geralmente por navegação de cabotagem ou

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por travessias continentais se trilhava (objetivo esse almejado significativamente

pelo Portugal da dinastia Avis, no século XIII).

Aos anseios econômicos do capitalismo mercantil contribuíram

o estado de desenvolvimento técnico já alcançado na arte do vogar com a

qualificação de esquadras navais e de tripulantes (destaque para a lusitana Escola

de Sagres), o aprimoramento dos instrumentos de navegação e orientação (o

astrolábio a indicar a longitude, a bússola a assinalar o norte magnético e as naus a

proporcionar maior capacidade de transporte e de velocidade de deslocamento do

que as caravelas), o próspero intercâmbio de informações, o acréscimo

populacional e o refloramento de lendas antigas, como por exemplo o antigo mito

grego das mulheres guerreiras, recuperadas no romper da Idade Moderna e

transplantadas ao Novo Mundo por Francisco de Orellana, que afirmou tê-las

avistado em paradeiros amazonenses, ou a tradição mítica do Eldorado que no

interior de territórios desconhecidos cintilavam, nos picos de serras ou em

profundezas lacustres, fazendo com que muitos, cegos pela força do imaginativo,

intentassem encontrá-la, como ocorrera com caçador de esmeraldas Francisco

Dias Paes, que distâncias vastas percorreu na busca pela serra metálica de

Sabarabuçu e de Vapabuçu, a esmeraldina pousada lacustre; também havia outras

lendas, como a do reino de Prestes João, a da fonte da juventude, do paraíso

terrestre, etc.

A riqueza econômica sobrepôs-se à riqueza cultural. O Outro e o

Novo Mundo foram vistos pelo míope olhar lusocêntrico, hispanocêntrico,

italocêntrico, germanocêntrico... eurocêntrico enfim. Deu-se assim a

modernização conservadora em nível cultural155.

155 As teorias medievais casadas ao processo material em curso ergueram-se como barreira à aceitação da sociodiversidade. Em termo cultural, as desavenças já grandes entre os europeus tornam-se maiores para com o Outro. O método metafísico-idealista pode ser percebido no silogismo formal da teoria dos Três Filhos de Noé=Três Continentes, na tese de que seriam os decaídos do Paraíso ou na afirmação de que o ameríndio seria desalmado (pinçando a tese aristotélica de que escravos são desalmados e que podem ser explorados, até que formalmente a bula papal do III Paulo, de 1537, negasse essa condição). Os juízos de valor respondiam aos imperativos econômicos da burguesia, aliada então dos soberanos e por ideólogos monásticos assessorada. Embora a colisão cultural tenha sido mais degenerativa ao mundo dos ameríndios que tiveram seu modo de produção, ou seu sistema de objetos (se emprestarmos a terminologia de M. Santos), substituído pelo do sistema de técnicas e idéias alienígenas (sistema de idéias), do lado

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Casava-se a fé pela busca de mercancias que temperaria a

ganância da européia burguesia comercial alvorescente com a ânsia por riqueza e

fama dos que capitaneavam frotas por mares que despistavam a vista.

Os aparelhos ideológicos europeus, do serviço exercido a

territórios feudais fracionados orientando-se aos Estado-territoriais consolidados,

prestados pelas confrarias religiosas da Santa Família Católica, coligadas no

momento ao poder monárquico, foram encarregadas de domesticar os nativos com

a finalidade de colonizar terras e imaginários e para melhor reger os espaços

objetivos e mentais (GRUZINSKI, 2003). Foi tal a maestria a esse feito, que

algumas instituições, como a Sociedade de Jesus, dadas as vantagens de crédito,

liquidez, administração especializada e poder financeiro global capacitado a

resistir a perdas de empreendimentos isolados, chegam a ser comparadas a uma

europeu também houve transformações. As inquietações persistem ainda hoje, transcursados já mais de quinhentos anos do oficial “achamento”. As discórdias podem ser percebidas no que atine à própria gênese desses povos: havia pouco era desacreditada a hipótese da origem autóctone dos povos ameríndios (acaso verdadeiro, para muitos tal princípio confirmaria a sua não-humanidade, por não procederem hereditariamente do Adão bíblico). A sentença da não-nascença dos índios na América ademais, tão-somente presentemente fez-se maculada por peritos antropólogos, e tal por que o mundo continua a mover-se, o “passado” inclusive, por meio das mentes dos que interpelam as versões clássicas das paisagens conceituais rigidificadas, entrechocando informações novas que vão surgindo no presente com aquelas tradicionais. Niéde Guidon aqui se destaca por seus estudos realizados no Nordeste do Brasil, trazendo à luz (no Programa Roda Viva, TV Cultura, 2003) datações que comprovam a presença humana a algo próximo há 50 mil anos, especialmente no Piauí, na região conhecida como Pedra Furada; hipótese sustentada pelo encontro de indícios de fogueiras acendidas intencionalmente com tais datações antigas. Teorias como a do povoamento por migração, pelo Estreito de Bering ou pela Terra do Fogo via Polinésia, dividem terreno com a asserção da arqueóloga de que o movimento populacional poderia ter-se dado de maneira inversa, como quando especula a pensadora sobre a origem do “ameríndio” na América do Sul, a dirigir-se e povoar, na seqüência, os continentes americanos setentrionais. Outra problemática significativa circunda a questão de se as populações habitantes da região amazônica constituíram-se em grandes civilizações e se teriam sido elas portadoras de efetivo desenvolvimento técnico, como ocorreram com as civilizações andinas sul-americanas dos incas e a meso-americana dos maias no que atualmente é território mexicano. Meggers (1977) sempre endossou juízo contrário à idéia da existência de grandes civilizações nessa porção do continente, de que não haveria nem grandes aglomerados populacionais e menos ainda substantivo desenvolvimento técnico na região por tanto tempo considerada como paraíso. Pesquisas recentes na região amazônica, divulgada por Marion Lloyd no The Boston Globe, de 5/1/2005, sinalizam o contrário, com a descoberta de técnicas de enriquecimento dos solos para a prática agrícola, entre outros indicativos que aumentam a força dos que arrogam a veracidade de terem se tratado de sociedades complexas e não tão simples como se costumou crer. Para maiores informações, ver a manchete de Lloyd, intitulada: Amazônia teve nação pré-colombiana, diz estudo. Apenas uma sociedade complexa poderia tornar fértil o solo tropical, no site: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/boston/2005/01/05/ult583u217.jhtm. Sobre as correntes migratórias de povoamento americano, ver: Novos dados lançam dúvida sobre homem americano, disponível em http://www.comciencia.br/reportagens/arqueologia/arq02.shtml. Ou para ler Luzia e a saga dos primeiros americanos, acessar o site: http://www.sciam.com.br

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empresa multinacional, até porque os jesuítas se recusavam constantemente a

pagar dízimo e taxas alfandegárias, gerando forte ressentimento entre os

colonizadores (MAXWELL, Folha de São Paulo, 8/6/2003, p. 15).

No que respeita ao mundo do trabalho, já se atém à produção de

valores-de-troca, permutado pelo dinheiro que esconde a relação de assalto de

mais-valia e que se presta a cobrir a subsistência do trabalhador no mundo das

mercadorias, vez que apartado definitivamente da terra. Então, o diferencial é que

a propriedade burguesa não mais se apropria de homens (escravos e servos) mas

de mais-trabalho (mais-valia, mais-valor, valor-trabalho, sobre-trabalho,

excedente social abstrato) a partir de camponeses e outros tornados diaristas

“livres”, ocupados em fiações e tecelagens do meio urbano e à margem do

controle de guildas ou corporações de ofício.

Paralelamente ao movimento material, o turbilhão cultural.

Imperativa a transição do pensamento: (a) a natureza não mais deveria ser temida

e o entorno desprestigiado (campo e não-urbano vistos como caos, como era

comum ao continente europeu)156, (b) o corpo não deveria ser envilecido e

unicamente a interioridade aventada, (c) nem o trabalho odiado e aos inferiores

claramente assacado para o glorificar do ócio157. (Como se passava,

respectivamente, com os escravos gregos e os servos das Idades Antiga e Média).

O capitalismo é um modo de produção sistêmico, totalidade e

processo de totalização social de tamanha complexidade e ardileza porque se

156 A visão de natureza e seu conceito vão rápido se modificando: a explicação teológica cede lugar à de objeto a ser naturalmente enlaçado e domado, em um espaço crescentemente desdivinizado, até que, mais adiante, em movimento inverso ao dos fisiocratas do século XVIII que tinham a natureza e o trabalho agrícola como fontes diretas do valor, os economistas clássicos e ideólogos do liberalismo do século XIX (período que se estende de D. Ricardo, T. R. Malthus [1766-1834] até John Stuart Mill [1806-1873]) secundam o papel da natureza na teoria econômica, vendo-a como estorvo ao desenvolvimento econômico e motivo essencial de crises. No fim das contas, teve pouco efeito prático a tentativa de reproduzir na Europa as cidades-jardins para o regozijo com a natureza socialmente produzida em meio à urbe, como se fosse válvula de escape, acalento e retorno a tempos idos para se suportar as agruras sufocantes dos cotidianos residencial e fabril. Processo sem volta, a natureza vai aproximando-se do ápice da desdivinização, até que a dessacralização se completa no século XX, como efeito mais maduro da II Revolução Industrial, quando definitivamente se transita da fase agrário-mercantil à urbano-industrial. 157 Nota-se nesse mix de mutações que o trabalho agora porta o conteúdo que diferencia o homem dos demais animais viventes.

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utiliza do ensombrecimento cultural para alastrar sua mundividência ideológica

expressa nas dualidades, fragmentos e cacos de turvas interpretações.

Desde a gênese o capital recria dualidades, como a que alude à

terra e ao céu: noções de natureza excludentes traçadas para contestar os valores

seculares e a espiritualidade da natureza com o escopo de afirmar os valores

(valor-trabalho) e a praticidade do novo homem (homo oeconomico).

Homem (corpo) e mundo (natureza) se re-apresentam no olhar

(burguês) conforme ordenança da forma que assume o fazer (acumular).

O dínamo social corporifica-se na camada societal que, imersa e

desenvolvida nos feudos, paulatinamente pôs-se a se defender de senhores feudais

até que, à medida que avançava a divisão do trabalho e a especialização produtiva,

com as demais facções possuidoras veio a se constituir na classe burguesa. Essa

nova classe, distintamente do proletariado despossuído, passou a controlar as

formas geográficas de propriedade que se iam convertendo em capital comercial e

industrial.

Os efeitos do remonte da espacialidade do corpo social pelo

capitalismo são variados, citamos quatro, concernentes ao:

Homem: com os sujeitos divididos sendo ulteriormente unificados na

contradição antagônica que recheia o ser capitalista (divisão social homem x

homem);

Trabalho: técnica e socialmente cada vez mais atomizado (divisão técnica,

social e territorial do trabalho), sendo material e intelectualmente acionado

como o conjunto de atividade humana que, em busca de maior produtividade

na relação com a natureza, fez complexificar o número de necessidades e de

relações sociais, impulsionando a consciência também ao (não obstante

alienado) maior desenvolvimento;

Território: suplantação dos espaços auto-ordenados e co-geridos pela

espacialidade hegemônica expandida e infundida socialmente mediante a

segregação entre detentores e desposados dos meios geográficos de produção,

e que, fundeados em modernas tecnologias, de pontos do espaço distintos-

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distantes-coligados ordenam a espacialidade com base em vetores

hegemônicos universalizados (capital e Estado), na interescalaridade

traduzida na operação da ocupação-produção-gerenciamento do espaço

global (divisão, compartimentação ou fragmentação do espaço, para Milton

Santos; compressão do espaço para o anglo-americano David Harvey;

diversificação e densificação do espaço, para Ruy Moreira);

Natureza: rotulada como o não-humano, o orgânico e inorgânico do mundo

exterior, a servir de propulsor ao Progresso Social pelo ofertamento de

recursos naturais e energéticos que – pela gênese divinal-natural – não mais

que a isso prestaria (divisão divindade x humanidade, paraíso x terrenalidade,

homem x meio, homem x natureza).

Superada a fase do capitalismo concorrencial dos séculos XVI e

XVII em que predominavam os mecanismos de produção simples (artesanal) de

mercadorias, o capitalismo imperialista, sobretudo a partir da segunda metade do

século XVIII, passa a querer formatar mais decididamente a sociedade no molde

espacial fabril e industrial de reprodução ampliada (máquinas-ferramentas) de

mercadorias, rasgando a realidade dos fenômenos e das coisas que a compõem e,

assim, as classes soberanas recosturam a Natureza no trançado da linha do capital,

na colcha de retalhos que ainda ganha a tintura das cada vez mais poderosas

posições teleológicas secundárias.

Com as espacialidades geografadas com o aparecimento da

civilização, das sociedades de classes; com a alienação e complexificação dual-

polarizante do tecido social; com o espaço e a natureza galvanizando-se como

objetos a segmentar os homens para que riquezas fossem obtidas a custo da

maioria, arquitetaram-se outras tramas teleológico-pragmáticas, agora mistificadas

não mais espontaneamente, mas fetichizadas intencionalmente porque, por sobre a

visão de mundo que deitava no homem o destaque natural divinamente

preconizado ou que a própria evolução material da natureza cuidou de engendrar,

desenvolve-se a concepção que tenta ajustá-lo ao novo acordo na relação homem

x natureza x sociedade, ao se cristalizar o trabalho (concreto x abstrato) como

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dividido e alienado, dum árduo transpirar que passa a ser ideologicamente

sacralizado, independentemente de ser ou não a natureza ou outro homem (classe

x classe) o que cria as dificuldades para que a satisfação se alcance com

exploração e hierarquização, porque o Julgamento Final a tais questões ao

Homem não caberia (juízo de valor x juízo de fato, espacialidade comunalmente

gerida x espacialidade superestrutural burguesa).

Aquele continuum homem-natureza pré-capitalista ou

extracapitalista quebra-se na descontinuidade dos fragmentos soltos. Do primitivo

espaço concreto fantasiosamente interpretado dirige-se à pseudoconcreticidade do

espaço moderno, falaciosamente interpretado. Neste a volição pela diferenciação a

tudo decompõe, a natureza e tudo o mais, concomitantemente aos reajustes

institucionais que se estabelecem entre os novos atores econômicos emergentes.

Porém, necessário dizer, o desenvolvimento e universalização

do capitalismo só se realizam quando são cultivadas as condições materiais para

tais. Não havia como ter desenvolvimento tecnológico vinculado a cidades que

comerciassem tão-só em âmbito regional e, para que esse prodígio de maior

escalaridade ocorresse, perigos de guerras e de invasões deveriam ser afastados;

além disso, a economia florescente carecia de cânones que contraditassem a de

certo modo ainda territorialmente anarquizada superestrutura vigente, e os foram

moldando paulatinamente: aqui criação de moeda única, acolá unificação

territorial a tornar miríada de insulares feudos em Estados-nacionais, depois

guarnição de fronteiras por exército real permanente, tudo respaldado pela

regulação espacial encimada no aumento do funcionalismo e da burocracia.

Inventividades sucedendo inventividades na nova era luzente.

Nas cidades a divisão do trabalho gera a autonomia das

manufaturas para com as corporações que na Inglaterra e França restringiam-se ao

mercado interno e na Itália e Flandres avançam na conquista do mercado externo,

e os condicionantes disso estavam tanto na densidade populacional que aumentava

nas cidades como no incremento da concentração do capital dentro e fora das

corporações, sobretudo no setor manufatureiro da tecelagem que absorvia os

camponeses feudais, serviçais ou ex-integrantes de exércitos de senhores feudais –

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lembremos que as guildas os rejeitavam – que migravam às cidades após sofrerem

com as mudanças na estrutura agrária, em especial com os progressos da

agricultura e as transformações de plantações em pastagens.

Enquanto isso, internamente às manufaturas se compunha a

relação entre capitalistas e trabalhadores. Da relação competitiva entre

manufaturas (guerras comerciais, tarifárias e proibições) processou-se o

ordenamento político do mercantilismo em ternos nacionais, entre nações que

passaram a competir entre si. A essa expansão comercial converge a descoberta da

América158 e a da rota que leva à Índia, com a importação de produtos do além-

mar (especialmente ouro) que vão causar duro impacto na propriedade territorial

feudal e nas relações de classes ossificadas.

Esses fatores somados caracterizarão a nova fase do

desenvolvimento histórico que tem a cidade por pólo arrumador dos territórios,

dada às forças produtivas industriais que soterram o corporativismo estreito das

relações de produção das guildas para enfim transbordar geograficamente pelo

mundo, instituindo uma espacialidade desigualmente combinada na sociedade das

mercadorias que se grassa engendrando o processo de urbanização do rural.

Marx e Engels (1996) caracterizaram como dois os períodos

cruciais da indústria: (1) o que vai à metade do século XVII e (2) o que vai do

século XVII ao fim do século XVIII.

A Grã-Bretanha faz-se destacada como potência industrial por

ter-se aproveitado da concentração econômico-espacial do comércio e das

158 Indícios de conhecimento de certas partes do mundo ocidental não se limitam a remos europeus. Pesquisadores ingleses e americanos conjeturam sobre a possibilidade de a China da dinastia Ming, chefiada por Zhu Di e apoiada pelo almirante Zheng He (1371-1433) ter viajado por mais de 37 países no mundo no início do século XV a fim de confirmar a qualidade de uma das potências da época mediante pagamento de tributos das terras longínquas, tendo alcançado a Europa (Portugal, Holanda e França, entre alguns), África (ilhas Pate, nas costas do Quênia) e América (há meio século antes de Colombo, Zheng He teria visitado os atuais México, Caribe, Flórida e Califórnia), contornando o temido Cabo Horn e realizando viagem ao redor do globo aproximadamente 100 anos antes de Fernão de Magalhães (RODRIGUES [ed.], 2005, p. 18-20). Andrade (2000; RIBEIRO, 2001b, p. 31, nota de rodapé no 9) sinalizou para essa mesma questão, afirmando visitas anteriores a essa parte do mundo. Do mesmo modo, Lencioni (2003, p. 50-51) reporta-se a povos como os vikings e os islandeses, sendo que os últimos no ano 1000, quando em dirigindo e por uma tenebrosa tempestade da rota da Groelândia se desviando, teriam acidentalmente atingido o que se convencionou denominar de Novo Mundo, as terras da América do Norte.

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manufaturas no século XVII, o que lhe permitiu o controle do mercado mundial.

Ademais, a demanda havida por produtos manufaturados que necessitavam de

novas forças industriais produtivas corroborou grandemente ao êxito inglês.

Como os demais modos de produção, o período de

desenvolvimento do capitalismo não se reproduz imunemente às relações sociais

(contraditórias) que desperta porque o capitalismo é múltiplo em movimentos que

interagem contradizendo-se reciprocamente (geografias centrais x geografias

periféricas, relação capital x trabalho, capital x capital), com uma revolução

econômica muitas vezes não se reverberando no padrão político-ideológico

característico, ou seja, sem que a revolução política se efetue em perfeita sintonia.

(Caso do Brasil, que desde o fim do século retrasado é conhecedor principiante do

capitalismo de tipo industrial mas que apenas no último quinto do século XX

passou a reexperienciar gradualmente a plena, ou quase, democracia burguesa)

Confunde ainda a classificação o fato de o capitalismo

retroalimentar-se do desenvolvimento desigual e combinado de relações

econômicas e de espaços distintos e satelizados ao centro de gravidade da

economia nascente européia.

Inicia-se daí uma profunda discussão, entre os que afiançam que

a empresa do Brasil colônia compunha um modo de produção colonial (sistema

colonial) jungido ao modo de produção central e hegemônico europeu (sistema

capitalista em sua fase mercantil de acumulação simples e primitiva), enquanto

outros declaram que o desenvolvimento desigual à época não se processou por

essa combinação de modos de produzir diferentes e hierarquizados, chefiados pelo

regime do capital, crendo que o desenvolvimento desigual processou-se por

dentro do capitalismo, que já nas economias coloniais ou marginais se expressava,

combinando espacialidades desiguais: sejam as centradas na manufatura,

maquinofatura e atividade credora européia dum lado, ou nos espaços produtores

de matérias-primas e produtos de gêneros alimentícios nas economias agro-

exportacionistas assentadas no binômio escravidão-latifúndio, de outro.

Outros ainda conseguiam enxergar atitudes feudais por essas

paragens, basicamente em conta das territorialmente vastas e socialmente

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concentradas propriedades agrárias, em mãos dos que político-economicamente

detinham o poder em nível local e regional, nos espaços moleculares regidos pelas

unidades autônomas de produção e auto-sustento. (Partidários dessa teoria

costumam alegar inclusive que são os resquícios feudais que deveriam até bem

recentemente ser eliminados por meio de transição efetivamente capitalista no

meio agrário, porque tal estrutura estaria a atravancar o desenvolvimento do

capitalismo no campo)

Alguns dos termos mais incandescentes neste debate aludem ao

caráter do lucro existente no Brasil-empresa, atributo suficientemente sólido para

tê-lo como forma particularizada de manifestação do capitalismo reinante.

Conquanto outros se defenderem argüindo inexistir o elementar característico ao

capitalismo: o fator salário. Na continuidade do debate, as justificativas de o

escravo ter sido o elemento-capital ou o capital-fixo imperante.

Aparenta no fundo que a discussão gira em redor dos que

advogam um caráter já internacionalista dos vetores essenciais do capitalismo

(lucro e propriedades privadas, humana e territorial, dimensionadas uno-

diversificadamente à produção de valores-de-troca) contra os que anunciam um

capitalismo de certas nações européias restrito territorialmente e imaturo

economicamente para expandir-se como sistema universal e hegemônico, senão

pelo meandro mercantil da esfera circulacionista, por meio do qual coligava os

subsistemas semeados pelo planeta.

O turbilhão teórico-interpretativo das formações sociais

européias e mundiais e os estudos por elas entusiasmados, que por sua vez aflui na

hermenêutica dos estudos comparativos voltados à realidade brasileira, está na

dita base da série de considerações sobre a origem, a criação e o caráter do

desenvolvimento da formação social brasileira, entre os que crêem que muitas das

sociedades comunalistas pré-cabralinas foram açoitadas e mescladas a uma

economia feudal, outros tendo a formação sócio-espacial brasileira por um

(sub)sistema escravista, e outros ainda concebendo-a como economia de mercado

que sistemicamente-mundialmente (o sistema-mundo já se confeccionando

internacionalmente, interterritorialmente) punha-se organizada pela essência do

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capital a partir já de formas secundarizadas-periferizadas de manifestação da

relação-social-capital, que não seria única e homogênea mas hegemônica e

secundariamente heterogeneizada desde então.

Poderia não apenas essa época dominada pela esfera da

circulação ser tachada como propícia à heterogeneidade estrutural das formas de

realização do capital (então mercantil) ou, mais que isso, até a fase atual,

novamente chefiada pela esfera da circulação (agora pela financeirização da

economia), ressuscitaria a proeminência de um trabalho mais polissêmico, como

multicoloridas as formas de sua realização e de captação do excedente social? O

caráter mimético do capitalismo camaleônico e satelizado brasileiro poderia ser

ajustado conceitualmente como forma de entender as distintas colorações básicas:

o amarelo-ouro dos burgueses e o vermelho-sangue dos explorados, salarialmente

ou não nos confins do capitalismo, onde suas formas de regressividades são mais

agudas? Ou haveria uma idéia-molde ao que seria o capital (mais abstrata que

empiricamente), desmerecendo o fato de antes de tudo ser o capitalismo a relação

social-geográfica-histórica que se desenvolve e reenvolve de forma desigual e

combinada e não uniformemente, com todas as demais a imitá-la, purificando-se?

Há fortes indicativos de que nas fases de centralização da

economia pela esfera produtiva dá-se a maior difusão de formas-padrão mais

homogeneizadas de relação social e de trabalho, ao passo que nas centradas pela

esfera da circulação (como ocorrera com o capitalismo mercantil e a que volta a se

repetir com o capitalismo financeiro) torna-se possível a maior heterogeneidade

das normas e formas de realização do capital, como que se a realização de

experimentos fosse até salutar para que, vez inventado um mecanismo novo

otimizador de mais-valia, posteriormente o fosse reproduzido ampliadamente,

sobressaindo-se como nova forma-padrão.

Desacreditamos a idéia de estarmos a atravessar qualquer

transição de modo de produção, em que misturas e heterogeneidades são mais

comuns. Também não entendemos que fatores como a abusiva superexploração da

força de trabalho – que levam juristas e teóricos das mais variadas matizes a se

descabelar na discussão sobre a forma conceitual das relações de “trabalho

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análogas à escravidão”, ou seja lá as outras denominações atribuídas – sejam

meros fatores culturais entrecruzados à crise conjuntural, aprofundando

negativamente a particularidade histórica de países como o Brasil, expressão

duma história escravista ainda longe de se cicatrizar.

Reforcemos os por quês.

A condição de escravidão que vem do mundo antigo, donde

igualmente provém o capital, a mercadoria e o salário, não deixa de ser processo

combinado e capitalizado de geração de excedente e mais-valia no mundo

colonial, inda que assinalasse o acúmulo gerado preponderantemente no momento

da circulação e não no da produção, enquanto acumulação primitiva, dum

capitalismo mercantil. Só que, se no mundo antigo era a escravidão generalizada e

o assalariamento mecanismo valido de menor assiduidade, a ordem se inverte no

capitalismo atual: o salariamento consta como padrão hegemônico de geração de

valor que, todavia, não desmerece engenhos passados de geração de sobreproduto,

sendo-os englobados na estrutura metabólica de países sobremaneira periféricos

em que são mais amplas e profundas as heterogeneidades das formas de

reprodução mimetizadas do capitalismo, em seu desenvolvimento desigual e

combinado, principalmente nos momentos em que a economia se faz centrada

pela esfera da circulação.

Muitos criam que a formação social de um país, ou a formação

sócio-espacial, far-se-ia continente de variados modos de produção, sem se

aperceberem que a unidade capitalista se reproduz mediante a heterogeneidade

estrutural das formas e relações sociais.

Em acordo com o sociólogo marxista Florestan Fernandes

(1920-1995), entendemos que não dá para continuar alimentando aquele:

ideal simplista de cientificação (que) levou sociólogos, historiadores (geógrafos) e economistas a suporem que as sociedades nacionais são totalidades autônomas e autodeterminadas, que contêm dentro de si mesmas as forças de sua organização, expansão e evolução (1995, p. 42, parênteses nossos).

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Ou o Brasil teria relativa autonomia e inventividade nessas fases

primevas (colonial e imperial) de organização sócio-territorial para registrar as

suas marcas no mundo da produção e do trabalho, desde que não oponentes aos

interesses europeus? Brasil, extensão passiva e país-empresa fabricado a priori

pelo capitalismo europeu? Comporia ele região econômico-produtiva integrada a

posteriori no modo especificamente capitalista de produzir?

Perguntas que não querem calar.

Dum lado, os autores a teorizar sobre a extensibilidade passiva

do capitalismo na periferia do sistema, a atestar que a história econômica

brasileira fez-se como capítulo da expansão mercantil européia, como pensaram

Caio Prado Júnior e Celso Furtado, por exemplo. Outros, como A. B. Castro,

sinalizaram às leis próprias e autônomas do desenvolvimento do país para com os

determinantes mundiais. Em meio a essa discussão os que, como Moreira (2002a,

p. 43-44), creditam relativa autonomia e correspondência dialética entre o espaço-

tempo mundo e o espaço-tempo Brasil, a explicar o desenvolvimento promovido

internamente pelas elites nacionais em meio a um quadro internacional de crise.

Ainda assim, cremos que nada esteja a obstar a formulação

duma correspondência dialética, gérmen do desenvolvimento desigual-combinado

do espaço-tempo mundo e do espaço-tempo Brasil, desenvolvimento esse

endógena e exogenamente dinamizado pela luta capital x capital inter x nacional,

não se pondo a anular deste modo a tese do metabolismo do capital como mais

polissêmico, complexificado, mimetizado e heterogeneizado nas quadras

dominadas pela esfera da circulação, com uma possível diferença apenas:

condizente ao perfil novo da forma-valor-rentista capturada na atualidade,

enquanto em estruturas pré-capitalistas estaria a renda a reproduzir-se sob molde

não-capitalista. Outra questão de digno destaque atine aos moldes em que se

executam a correspondência dialética do espaço-tempo mundo e do espaço-tempo

Brasil desde sua fundação: se ocorridas por dentro dos marcos do capitalismo ou

pela combinação desigual desse como formações não-capitalistas; e essa é a

discussão fundamental aqui: saber se o capitalismo mercantil, de predominância

da esfera da circulação, já não era um complexo total metabólico metamorfoseado

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epidermicamente nas colônias como “não-capitalistas”, “sistemas coloniais”,

etc.

A discussão sobre a formação sócio-espacial brasileira ser ou

não capitalista desdobra-se a outra.

Se o salariamento for visto como condição-central e não como

condição-exclusiva do capital; se a reprodução ampliada do valor for vista como

condição-central do capital e não como condição-exclusiva (e ao invés de ser

relacionada à produção de mercadorias); se a guarnição e regulação dos direitos

sociais e trabalhistas pelo Estado-de-direito for visto como a condição-central e

não como condição-exclusiva do capitalismo; se a separação entre espaços

públicos e espaços privados for vista como condição-central e não como condição

exclusiva do capitalismo; se então essas ponderações forem consideradas, teremos

o capitalismo como unidade diversificada, substancialmente estabilizada, mas

epidérmica, secundária e momentaneamente deformada de realização e isto

porque é absolutamente impossível ele se apresentar homogeneamente, e mesmo

nos períodos em que o modo de produção encontra-se centrado pela esfera da

produção, pois será ele relativa ou extremamente desigual seja no que concerne à

manifestação espacial (entre regiões-cidades-campos, cidades/campos,

países/continentes) seja a que se refere à expressão social (como relação capital-

capital, burguesia-burguesia, setores e ramos produtivos/setores e ramos

produtivos, ramos produtivos e ramos improdutivos, camponês/burguesia,

camponês e operário, proletário e proletário, assalariado e dessalariado, escravo

assalariado e escravo dessalariado, produtores e distribuidores,

produtores/consumidores, etc.).

O capitalismo é essencialmente a afirmação dum modo de

produção que, como unidade, reproduz-se pela contradição de seus elementos,

tentando regular o impressionante jogo de forças colidentes. Como unidade

contraditória, unidade de negações, o trabalhador é menos “livre” do quer a

representação ideológica do salariamento. Mas se os gregos se autoproclamavam

pertencentes a uma “democracia” por que os capitalistas perderiam essa chance,

deixando de universalizar a sua particular e abstrata noção de “liberdade”?!

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O “ser escravo” e o “ser livre” são movimentos têmporo-

espaciais de formas e de funções sociais159.

Chega por isso, a escravidão do trabalho ao presente, mas

contrariamente a dos espaços coloniais não mais coisificada socialmente e

também não mais como regime de trabalho dominante como o fora na Colônia

mas como estratagema subsidiário à escravidão assalariada da força de trabalho.

Impregnando a existência com seus dissabores. Embora não poucos historiadores,

advogando tais teses da escravidão como anacrônicas e simplificações veiculadas

pelos instrumentos midiáticos, alegarem se tratar tão-somente de relações de

trabalho análogos à escravidão ou trabalho compulsório, superexplorado,

escravidão por dívida e não a escravidão propriamente dita160.

159 Num já citado momento problematizamos com a Profa Ana Clara Torres Ribeiro se não deveríamos demonizar, ao contrário de sacramentar, os conceitos burgueses de “liberdade” e “democracia”, tachando-os de “escravidão do salário” ou “escravidão capitalista” (cf. RIBEIRO, 2001b) o que costumeiramente tomamos por normais. Provocativamente disse-nos ela que caberá a movimentos sociais tal julgamento. Resposta interessante, já que habitualmente essas questões não mais saem que do âmbito da academia (e é sabido que a maioria absoluta dos historiadores abomina essa perspectiva), num círculo de pensadores explícita ou indiretamente conservadores, quando os verdadeiros interessados e, segundo a teoria marxista, os mais aptos de julgá-los são exatamente a classe parteira doutra história; os acadêmicos exercem o papel de ideólogos do sistema, investindo na pactuação da ordem burguesa (excetuando-se os raros entendimentos de Lênin e Lukács a esse respeito). Com esse sentido, de distanciamento do atrelamento direto à economia ou política oficial, o diretor dinamarquês Lars von Trier, em seu filme Dogville ilustra as formas de poder e sujeição, um tema mais adiante retomado como crítica à escravidão moderna que pode, como ele aventou, originar-se do sentimento, como a “escravidão emocional” que novamente veio a retratar em seu segundo filme da trilogia América, chamado Dogma 95 (PAOLA, 2005). No filme Círculo de Fogo, referente à invasão alemã na Rússia, uma discussão inicia-se sobre a questão do novo homem entre os dois protagonistas principais, quando um deles, decepcionado pela perda da mulher amada para o amigo – o que o leva a traí-lo –, argumenta que o socialismo é em vão, porque sempre existirão ricos e pobres: “ricos no amor” e “pobres no amor”. Entendemos não obstante, que esta contradição se identifica como não-antagônica, incapaz unicamente de pôr sob perigo toda a estrutura social. 160 Como menu conceitual, temos que: “escravidão por dívida ou compulsório”, de acordo o art. 1o da Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, relacionar-se-ia com o “estado ou condição resultante do fato de que um devedor tenha se comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou de alguém que ele tenha autoridade, se o valor desses serviços não for equitativamente avaliado no ato da liquidação da dívida ou se a duração desses serviços não for limitada, nem sua natureza definida”; “servidão”, conforme também a Convenção Suplementar, atine à “condição ou estado de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por um acordo a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa pessoa, contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços sem poder mudar sua condição”; ao passo que sobre o “trabalho forçado” as Nações Unidas assim pondera: “o termo ‘trabalho forçado’ não é sinônimo de escravidão, mas refere-se a um trabalho que funcionários governamentais obrigam os cidadãos a realizar, sob ameaça de punição se houver recusa. A

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Se o anacronismo deve ser evitado, o estruturalismo lingüístico

também. Os conceitos são movimentos e, nesse caso, movimentos de realidades

menos dessemelhantes do que se crê, e que devem ser lidas com algo mais que os

óculos da oficialidade da jurisprudência.

Poderia a fase da geografia dos espaços coloniais brasileiros ser

a extensão do capitalismo mercantil de Europa, entretanto sem deter os traços de

seu paradigma produtivo e trabalhista, ainda não universalizado, fazendo com que

na empresa colonial brasileira a escravidão não-assalariada fosse a regra, ao

contrário do que estava a se consolidar naquele outro continente? Poderia apenas

o capitalismo ter mudado de epiderme e, ao invés de transformação de sistema

econômico, ter apenas havido a modificação do paradigma econômico, que na

República especialmente caminhava rumo ao salariamento, pela universalização

dos vetores político-econômicos europeus (salariamento na economia e

“liberdade” e individualidade de direitos na política) a todos os quadrantes do

mundo?

Entendemos que a atual escravidão não-salariada capitalista

(impressa a índios, nordestinos e outros mais) convive com multifacéticas formas

de realização do trabalho no capitalismo: formal e informal, salariado,

dessalariado ou não-salariado, produtivo e improdutivo, por exemplo.

No espaço exprimem-se os troços e os destroços reveladores

dessas mutações e permanências. Orgânica e dialeticamente indissociável das

relações sociais é a outra face do ser social.

Já foi dito ser o tempo tríbio, coexistindo passado, presente e

futuro. Percepção similar sobre o espaço foi-nos apresentada por não-geógrafos,

como Florestan Fernandes, que ressaltou que pelo deslocamento no espaço do país

se é possível atravessar estágios históricos diferenciados, de idades histórico-

sociais distintas que se confundem e se entrecruzam temporalmente161. Não

Convenção sobre Escravidão de 1926 afirma que o Estado tem o direito de obrigar as pessoas a realizar trabalho de certos tipos em algumas circunstância especiais” (ANTI-SLAVEY INTERNATIONAL, 1999, p. 50 e 51). 161 FERNANDES, F. Relaciones de raza en Brasil: realidad y mito. In. Brasil Hoy, México: Siglo XXI, 1968, p. 123 apud FERNANDES, 1995, p. 9 (Introdução de Osvaldo Coggiola). Consta que

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obstante as díspares idades históricas das formas não atrapalharem a unicidade

espacial, posto a heterogeneidade das formas e das paisagens técnicas disporem

duma única funcionalidade social a lhes penetrar e coligar economicamente.

Ao promover a empiricização do tempo no espaço, o

capitalismo contemporâneo conta com o conjunto grandioso dos objetos técnicos

de idades diferenciadas (SANTOS, 1996b, 2000; MOREIRA, 1996).

A unicidade espacial aí está: ao proveito econômico dos

poderosos.

Que arquitetura está ela a se expressar nestes tempos-espaços

que correm?

2.1.3.5.1 Indicativos da nova economia

política espacial do capital: as

transformações no mundo do trabalho e no

espaço vivido

A centralidade até havia pouco exercida pela produção perde

espaço à da circulação. Difere essa atual na igualdade àquela de outrora, haja vista

que a economia agora se faz caracterizada mais pela financeirização,

securitização, pelos fundos de pensão, pelos fundos mútuos, pelos hedges162,

pelas bolhas das finanças que na mais suave turbulência estouram, explodindo

economias inteiras pelo efeito dominó, predominantemente as mais fragilizadas e

com alto “risco-país”.

a observação surge inicialmente na edição francesa publicada em 1967: Les Temps Modernes (FERNANDES, 1995, loc. cit.). 162 Os hedges correspondem geralmente às praças fortes dos países centrais por onde trafegam grandes somas de capital-fictício. O mecanismo concerne à atuação de agentes que, operando nas diversas praças financeiras internacionais, usam crédito bancário para especular e acumular ativos denominados nas diversas moedas nacionais, como o que ocorreu com as mega-valorizações auferidas com a aquisição de empresas estatais de países emergentes; empresas que, privatizadas, engordaram os balanços de muitas matrizes transnacionais e asseguraram ganhos de capital nas bolsas de valores; como fenômeno montanha-russa, foram tais valorizações por sua vez que ajudaram a repercutir no aumento das bolhas financeiras e nas fusões de empresas pertencentes aos setores produtivos.

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Nada obstante, novos suspiros de industrialização e controle da

circulação se ensaiam com a “economia de mercado” que se cristaliza no Oriente,

controlando-se o câmbio (a China se nega a desvalorizar sua moeda) e a

movimentação do capital de modo nada neoliberal. Parece que a centralidade da

geografia econômica do Ocidente deslocar-se-á ao Oriente, com Japão, Índia e

China, particularmente, em seu posto de comando; até por que a hegemonia norte-

americana há tempos se sustenta à base de alto endividamento interno e

diminuição dos níveis orçamentários destinados aos investimentos produtivos e

sociais.

Não se trata de mudança apenas na forma de realização do valor

mas na ordem da hierarquia, gerando-se a nova economia política e espacial do

capital. Uma nova geografia de forças, uma nova cartografia de fluxos.

Natural é ao capitalismo que de sua base material seja criada a

superestrutura política que sustenta o fosco Estado Democrático. Momentos em

que leis veneradas (como a que preza o salário como base da estrutura material) se

esmaecem (permitindo que formas de trabalho não-salariadas se espalhem)

revelam que em seu movimento o capitalismo debela as próprias “leis” instituídas:

recriando, burlando ou adiando-as. Lembremo-nos que se está na natureza do

capitalismo a rapina da mais-valia mediante apropriação de trabalho não-pago sua

natureza mais profunda espelha a viva contradição de negar-se a si próprio.

De tão forte, o velho antagonismo entre forças produtivas e

relações sociais163 culminou na política do neoliberalismo, com a contradição

sendo levada ao nível político(ideológico)jurídico de regulação da propriedade

privada transnacional, enlevando-se mecanismos: de combate à pirataria, de

proteção da propriedade intelectual (lei de patentes, copyright, etc.), forte

163 Para alguns, a responsabilidade da evolução das contradições entre forças-produtivas e relações-de-produção causam disputas entre facções pela dominância social. Já outros, como Pirenne, entendem que as contradições responsáveis pela evolução social emanam de disputas pela hegemonia entre facções da classe dominante, sendo que a vitória de uma delas imprime à sociedade um padrão de regulação espacial e de crescimento econômico ao incitar o desenvolvimento das forças produtivas. Para um aprofundamento: DOBB, 1963.

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desestatização de setores econômicos e desregulação das economias nacionais164,

entre outros.

Na reestruturação aposta o capital.

Incapazes nesse ínterim de conter o inflamar das contradições no

palco:

Político: crise de governabilidade, região x Estado, Estado x Estado

(município/Estado federativo/União) e região x região, com os líderes

nacionais ou bancadas políticas tendo de acertar periodicamente acertos

(“acordões”) re-definidores da trajetória a se perseguir;

Econômico: capital x capital e capital x trabalho165, com todos na sociedade

se relacionando como se estivessem no fio tenso, já que é impossível a

satisfação total (individual, grupal e coletiva) no sistema, ademais no estágio

paroxístico chegado e inclusive porque ninguém sabe o que realmente ela

representa (alienação na base das crises existenciais, do “eu” confuso que

vaga na geografia estreita e opaca da história burguesa);

Societário: trabalho x trabalho, com os trabalhadores se devorando no

canibalismo competitivo por vagas de empregos e aumentos salariais devido

à crise econômica e à “falta de oportunidades”, dado o individualismo

incrustado desde cedo pelos bancos escolares, pelas instituições religiosas e

pelos demais aparelhos ideológicos que pregam a “salvação” atomizada; e

também porque há dessintonia entre a demanda empregatícia dos novos

setores produtivos e as instituições formadoras de mão-de-obra;

164 No período pós-1960, os defensores da desregulação da economia são quase todos premiados pelo Nobel de Economia, endossando de modo unânime a necessidade de o capitalismo se livrar dos resquícios keynesianos; dentre eles destacam-se: o austríaco Friedrich Hayek, o monetarismo do norte-americano Milton Friedman, a escola das expectativas racionais da economia política de Marcur Olson, a teoria da escolha pública de James Buchanan, além do também norte-americano Robert Lucas. Como prioridades defendidas estão a abertura do mercado ao capital estrangeiro, diminuição de impostos aos investidores, privatização e retirada do Estado de setores produtivos e de serviços e liberação das importações (BELLUZZO, 2005b; BARROS, 2005, p. 9). 165 A despeito da ideologia burguesa que propaga a extinção das classes pela capacidade demonstrada de a classe trabalhadora ter desenvolvido poder econômico suficiente para realizar poupança, investimento em pequenos negócios e a participar do mercado de ações, estudos comprovam o caráter irrisório do fenômeno, incapaz de apagar ou borrar as diferenças de classes.

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Territorial: país x país166 e região x região ou município x município, as duas

últimas polarizações como lutas por atração de empresas mediante guerras

fiscais, oposição a legislações liberativas ou proibitivas a algo específico167.

Os maiores embates ensejam protrair ou dissolver. Cada vez que

o intentam, tende potencialmente a engrandecer os agentes e reagentes para o

novo. E isso ocorre, dentre outros fatores, porque a exacerbação da dominação e

da riqueza, que empregam maior contingente de trabalhadores, noutro extremo –

distintamente dos modos de produção pré-capitalistas – potencia o poder de

gestação da consciência de classe orgânica e sistematizada por parte dos

oprimidos, quer em termos de qualidade (força e confiabilidade) ou quantidade

(número de trabalhadores, de dominados e inconformados). Aí a cooperação

abstrata dos iguais da sociedade capitalista perde virtualmente168 espaço à

confecção da cooperação classista dos expropriados contrariados com a coerção.

O capitalismo fez o que nenhum modo de produção pretérito

fora capaz sequer de imaginar. Planetarizou e colocou sob sua chancela o domínio

da sociedade, do trabalho social combinado e total e privatizou a superfície

terrestre. Dialeticamente, no entanto, tende a sofrer com a magnitude das forças

que move em seu proveito e que ora ou outra podem se lhe configurar adversárias.

166 Recrudescem no mundo os movimentos xenófobos e neonazistas contra os migrantes “ladrões de empregos”. Extrema contradição, já que o próprio capital por vezes investe no tráfico de pessoas. Confira no site da Folhaonline a matéria: “ONGs lançam no Rio campanha contra tráfico de pessoas”; segundo a reportagem de 8/6/2005, o Brasil responde por dez por cento de todo o tráfico de pessoas no mundo, o que em números condiz com setenta mil pessoas aliciadas para servirem de mão-de-obra escrava ou à exploração sexual no exterior. Ironicamente, após criarem os problemas pela extorsão da riqueza via pagamento de dívidas, implantação de multinacionais, etc., estabelecem uma geografia segregacionista, quase feudal, ao fechar suas fronteiras aos migrantes não-convidados, como fazem os europeus ou os norte-americanos que cogitam erguer um muro na fronteira com a América Latina. 167 Exemplo disso envolveu recentemente a questão da soja transgênica que opôs o governo representante dos plantadores sul-rio-grandenses ao governo dos sojicultores paranaenses, com a instituição de uma Medida Provisória (MP) para mitigar o conflito. 168 O ciberespaço é bastante emblemático nesse sentido: de um lado governistas conservadores tentando criar meios para monitorar os suspeitos sociais ao sistema, doutro os que se utilizam o espaço virtual da rede informatizada para transmitir saberes paralelos ou alternativos (copy-left substituindo o copy-right, popularização do acesso e da constituição de enciclopédias, etc.). A hegemonia também é mantida pela informação, e as forças contra-hegemônicas não podem dispensá-la.

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A história da evolução da consciência de classe pela cooperação

humana (opressiva e injusta) não poderia permanecer neutra frente ao

engrandecimento das contradições sociais propaladas na evolução das forças

materiais produtivas/destrutivas. Inclusive por que a unidade que o capital confere

ao espaço contém potencialmente os meandros de sua revelação e oposição. O que

foi manifestação prematura, incipiente e esporádica da consciência de classe dos

produtores imediatos nos antigos Estados e Impérios da Ásia, África, Europa e

Novo Mundo, tende a tornar-se, qualitativa e quantitativamente, algo de

proporções e propensões sistemáticas na sociedade capitalista moderna, a rumar à

re-evolução das formas de trabalho e co-operação humana.

A função da economia política espacial do capital é fazer com

que muitos trabalhem para poucos, para os alienadores de trabalho e riqueza. O

homem não mais trabalha para viver, segundo o sentido da sociedade primitiva.

Sob o capital, a vida humana visa à produção e a produção espreita a riqueza

abstrata. Porque abstrata, a produção é descolada do homem concreto que, tornado

também abstrato (mera força de trabalho destituída dos meios de produção), tem

somente na troca o momento de sua realização: quando a mercadoria que medeia a

troca de todas as demais mercadorias entra em cena como princípio-fim da

sociedade, como ponto do nascer e destino dos indivíduos, como ligadura entre a

reta e o círculo espacial em que vagueia o atomizado e flagelado corpo social.

A troca não visa igualização de ações e produtos humanos. (Não

calha aos moldes das sociedades comunalistas primitivas e nem mais se isola das

ditas sociedades pré-capitalistas brasileiras, de comunidades indígenas,

pescadoras, ribeirinhas, camponesas, ou qualquer outra, como crê certa linhagem

teórica169)

169 O capitalismo anexou o mecanismo pré-capitalista da renda ao seu momento áureo, de hegemonia imperialista econômico-financeira atual. O excedente que era pago ao proprietário pelo “aluguel” ou arrendamento dos meios de produção (terra e instrumentos) agora é pago por toda a sociedade, pela centralidade alcançada pela financeirização da economia, a creditização do território e a securitização da economia. Formas pré-capitalistas de realização econômica, como a renda e o não-salariamento de trabalhadores, firmam-se como as suas expressões mais “modernas” de desenvolvimento desigual e contraditório, da natureza metabólica e mutante de realização de riqueza abstrata. Outras formas de extração de riqueza “ressuscitadas” pelo poder do capital são a cobrança de impostos pelo tráfego de pessoas nas rodovias privatizadas (similar à imposta pelos

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A troca coloca-se como processo fetichizado de realização

última e da mais alta arquitetura alienante efetuada no momento da produção,

entre proprietários e despossuídos, e figura como fim e início da troca desigual

entre o salário recebido e o trabalho a mais roubado, entre o financiamento

recebido e o crédito a mais pago, entre a renda social gerada e os inúmeros gastos

econômicos tendo de ser arcados, etc.

O diferencial do sistema do capital está já na função da

produção. Não mais balizada no consumo, ganha asas e torna-se um fim-em-si. A

riqueza ou excedente abstrato é infinito, de um processo sem fim que ambiciona

primeiramente o lucro, o mais-trabalho incorporado no tempo socialmente

necessário de produção dos objetos-mercadorias.

As formas espaciais de reprodução da existência humana

diferenciam-se. A organização social estatal é impessoal, tecnocrática, legalizada

e, quase sempre, apenas indiretamente governada – não condizendo ao que

costumeiramente se atina. O comando mantém-se na posse dos meios de produção

e reprodução da existência que disfarçadamente impele os desposados a se

sujeitarem à subserviência (em princípio com o constrangimento físico, pelas leis

contra a “vagabundagem”170).

senhores feudais) e o mecanismo ocorrido recentemente em Estados da região Centro-Oeste brasileira em que produtores de soja, ao invés de realizarem o pagamento de salários pelos serviços prestados por seus funcionários, resolveram pagar-lhes com sacas da mercadoria produzida (espécie de pagamento em produto que igualmente lembra o regime feudal, no entanto nesse período eram os trabalhadores quem transferiam a renda em produto aos senhores). Para não mencionarmos as relações de trabalho da escravidão por dívida que acorrentam milhares de trabalhadores no interior do país, com a particularidade de que, movido talvez pelo ideal de compromisso, honra e memória, muitos dos filhos deixam-se empregar de modo não-remunerado para pagar as dívidas deixadas pelos falecidos pais para com os antigos empregadores (BRETON, 2002; MARTINHO, 2005); condição que lembra a hereditariedade da escravidão das sociedades antigas, todavia pesar atualmente o elemento de escravidão subjetiva criado pela ideologia dominante não existente em tempos idos, quando a coisificação era mais objetiva que subjetiva. 170 Esse fenômeno se manifesta pela violência e constrangimento físico e moral. Basta recordarmos que a história do proletariado tem início no trabalho forçado assacado aos nômades e vagabundos errantes do final da Idade Média arruinados pela crise econômica e social da época, quando foram recrutados à força pelo Henrique VIII e pelo “bom rei” Henrique IV às oficinas de trabalho forçado (Workhouses) – tendo o primeiro mandado enforcar mais de 70 mil “proletários”. O constrangimento moral pode preceder ou suceder o físico (Muito da história e do momento atual dos indígenas do país confirmam isso, quando a ideologia da preguiça ou a da superioridade se fazem usadas. Para não dizer da moralmente humilhante política assistencialista norte-americana, empregada como forma indireta de mostrar os “fracassados” que não sabem aproveitar “a terra das oportunidades” e de fazer minorar os gastos previdenciários). O fato é que a situação de trabalho

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No capitalismo predomina o trabalho assalariado

(crescentemente subsalariado). O trabalho é formalmente livre, sem que

indiretamente deixe de ser coagido, cabendo ao trabalhador, se assim achar

melhor, a troca de patrão ou de país. (Diferencia-se dos modos de produção pré-

capitalistas nos quais era não-livre na forma e na substância)

A estrutura é de classes não apenas opostas. Reina a contradição

antagônica. O capitalista constrói e concentra riqueza a partir do trabalho alienado

do dominado. O grau do acúmulo depende do nível técnico alcançado, priorizando

a mais-valia relativa pela modificação da composição orgânica espacial do capital

e, em nível empresarial individual, da crueza estabelecida no processo de

trabalho, na duração e intensidade da jornada171, além do nível de destinação do

quantum da fração da soma total ao trabalhador (mais-valia absoluta). A estrutura

de produção guarda de forma homóloga outras contradições: como à referente ao

modo de produção-relações de produção, produção-distribuição, concentração de

riqueza/socialização de fome e de danos ecológicos, engendramento e profusão de

necessidades/frustração de subjetividades172, fatores de urbanização e consciência

espaciais/relações sociais de produção, etc.

Efeitos do processo contraditório. O capitalista não existe sem o

trabalhador, mormente, mas não exclusivamente, do assalariado. Salvo quando

forçado tende a formar “objetivamente” a consciência de classe entre eles e, posteriormente, a “consciência de si” (como foi o caso do proletariado das oficinas medievais, por exemplo). 171 Malaguti (2000) traz estudos comprovando que no toyotismo as pequenas empresas tendem a explorar bem mais a classe trabalhadora que aquelas verticalizadas e de maior porte, pois para que possam crescer no mercado, mantendo-se em níveis de concorrência, elas abdicam dos direitos trabalhistas resguardados pela lei e optam por contratos temporários de emprego. Outras táticas de exploração da força de trabalho empregadas pela sociedade atual podem ser analisadas a partir da bibliografia, como exemplos: TEIXEIRA, 1994; ANTUNES, 2000; RIBEIRO, 2004c. 172 As necessidades humanas podem ser agrupadas em dois tipos gerais, como viscirogêrica ou psicogênica, conforme conceituação de Henry A. Murray: a primeira especifica o caráter biológico-natural do organismo humano e a segunda corresponde a necessidades socialmente adquiridas, como posse, poder e consideração (DORIN, 1980a, p. 218). Na concepção de Marx, recapitulada por Mandel, teríamos a emersão de necessidades “histórico-morais” ou “necessidades novas”, adquiridas pelo sujeito ao longo da vivência e sendo incorporadas às que atendem ao “mínimo vital normal”, às necessidades mínimas de reprodução da existência (MANDEL, 1976, p. 68-69, 73; RIBEIRO, 2004b, p. 15, nota de rodapé nº 21). Ao sistema é comum a criação de formas espectrais no processo humano-genérico em que se desenrola a globalização, para em seguida impor-se a frustração, instalando-se formas regressivas, diria Giovanni Alves (RIBEIRO, 2001b, p. 178). Isso por vivermos imersos no mundo da fábula, arremataria M. Santos (SANTOS, 2000; CARVALHO et al., 2000).

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intervém o Estado, no entanto, para secretariar as ações da classe dominante para

que ela não se autodestrua, está a classe dominante corriqueiramente a pôr em

perigo o nível mínimo vital de reprodução da classe trabalhadora. O que faz a

gosto, se a contento enfileirar-lhe o exército de braços de trabalhadores reserva.

Como sugere a epígrafe deste item, a contradição é a pedra

angular de todo o edifico do capital. Perpassa classes e também nações, mais

propriamente o gap dos espaços na era da globalização.

Este o maior problema: a contradição como cria do capital e

proeminente adversário.

Por conta disso opiniões se alinham e se opõem a respeito do

abismo econômico crescente entre as nações. Dum lado está o que o apologista do

imperialismo norte-americano, o estrategista Barnett, avalia como o “núcleo

funcional da globalização”, isto é, o núcleo duro e mais globalizado da economia

internacional que abrange dois terços da população global, com a América do

Norte, Europa, Rússia, China, Brasil, Chile, Índia, Japão, Coréia do Sul, Austrália,

Nova Zelândia e África do Sul à frente, e cujo perigo de guerra, no sentido

tradicional, é bastante remoto. Noutro extremo estariam as regiões que

concentram a maior parte dos conflitos desde o fim da Guerra Fria e que

convivem sob forte influência do tráfico de drogas, de grupos terroristas (o que se

entende e se quer fazer entender disso), incidência de estupros em massa, limpeza

étnica e genocídios, guerras civis e crianças desde cedo estimuladas ao guerrear,

cujo mapa geográfico englobaria grande parte do Caribe, a porção andina da

América do Sul, boa parte da África, os Bálcãs, Ásia central, Cáucaso, Oriente

Médio e muito do Sudeste Asiático.

A reprodução da hegemonia norte-americana (por Barnett

negada) na nova geopolítica mundial passa pela pregação ideológica da missão de

pressão massiva dos países do núcleo para melhorar a situação dos do fosso,

contra os “governos do mal”. Exemplo típico à América do Sul é o dos países do

fosso com os quais o Brasil divisa e que portam perigo de guerra ou intervenção,

situados na região da floresta amazônica.

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Em relação ao campo internacional extra-americano, para

Barnett o perigo maior aos EUA estaria no Oriente Médio, locus de atuação de

“terroristas transnacionais”, e no governo da Coréia do Norte que deverá sofrer

pressão dos norte-americanos e chineses, além da possibilidade de a pressão

interna e das forças locais se agigantarem a ponto de conseguir depor Kim Jong II.

Acredita piamente o estrategista que, inversamente à maior parte

dos países do mundo, o que funda os E.U.A e que os garantem identidade não é o

território e sim uma idéia173 e, por isso, certo da remoção dos obstáculos

existentes hoje no plano político-econômico internacional, vislumbra o profeta do

imperialismo que até 2.050 doze países virarão Estados americanos: além do

México que economicamente já faz parte dos E.U.A (e que poderá ser ajuntado a

uma “América” maior), enumera outros, sobremodo os do Oriente Médio, pois

para ele o que está em jogo “Não é apenas uma questão de alguém desaparecer,

mas de se juntar a algo maior que todos vejam como benefício” (EXPEDITO

FILHO, 2004, p. 41). Quem sabe a boa intuição do Estado Imperial formulada por

Belluzzo (2005a, p. 17; idem, 2005b, p. 8) venha bem a calhar a esse cenário.

Se realmente é em uma idéia que se funda os E.U.A, é ela a

idéia do excedente ilimitado.

O capital não tem pátria, conforme teoria marxiana. As

burguesias nacionais e hegemônicas remodelam a noção de pátria, por enquanto.

Impérios transnacionais ou regionais, descontínuos territorialmente e conectados

na rede econômico-política parece sinalizar-se como estação ao trânsito.

O capitalismo é a unidade do diverso (Marx), complexo de

complexos (Lukács). São estruturalmente mais heterogêneos os mecanismos de

acumulação engendrados em economias periféricas. O que torna o seu

metabolismo um complexo fenomênico de alto mimetismo, típico ao caráter

camaleônico ou franksteiniano da fase atual, centrada novamente pela esfera da

circulação (RIBEIRO, 2001b, 2004c). Parece-se com um ornitorrinco

173 A nosso ver não fica bastante clara qual idéia é essa. Provavelmente seja a idéia de democracia ou do modo de vida americano, a esconder a idéia de superioridade, do lucro a custo de guerras ou seja lá quais forem os custos materiais que garantam a ideada unidade norte-americana.

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(OLIVEIRA, 2003), a uma hidra aparentemente invencível (REVISTA

PRINCÍPIOS, 2005).

A fuga horizontal planetarizou o capital como modo de

produção hegemônico na função e heterogeneamente nas formas, no Ocidente e

Oriente. Sem segregação entre os ramos produtivos e improdutivos, nuns cantos

mais que outros a correlação de forças pende mais a um lado: seja ao produtivo

seja à especulação e financeirização extrapolada, como se uma espécie de

regionalidade econômico-espacial se fizesse desde então regulada pelas instâncias

transnacionais, espécies de agentes ou governos globais (FMI, BIRD e, por que

não, o Banco Central dos E.U.A, por exemplo).

Guiada pelo que alguns chamam de “globalização americana”,

a nova geografia socioeconômica do capital traz à luz o novo mapa da

regionalização econômica: nele se percebe que as transformações financeiras

afetaram a base produtiva e a divisão internacional do trabalho, determinando a

direção e o mapa dos investimentos estrangeiros e os rumos do progresso técnico

vis-à-vis ao fenômeno de redirecionamento dos fluxos do comércio, pois se já

existia comércio intrafirmas nos anos do pós-guerra, ganha ele a companhia do

global sourcing, com a des(re)localização ulterior dos investimentos

produtivos174.

Efeito da “globalização americana”, o mapa da regionalização

atual indica que: (a) mais nitidamente dum lado, temos economias nacionais ou

regiões que se inserem num quadro de perspectivas de comércio e investimento

externo direto na produção (b) e, mais a outro estremo, se agrupam as que se

inserem na economia internacional mediante a abertura de conta de capitais.

Os países presos ao ardil de manutenção do saldo da balança

comercial e da acumulação de reservas teriam, na nova regionalidade, a função de

financiar o déficit em conta corrente dos E.U.A, seja os atinentes aos gastos com

guerras ou para financiar o ônus de políticas populistas175.

174 Caso do setor manufatureiro, que na década de 1990 chegou com magnitude e para ficar nas economias asiáticas, China preferencialmente. 175 Ver: BANCO SAFRA, O Imparcial, 26/1/2003 e, para notar que os E.U.A não são assim tão iguais a “nós”, BETTING, 1985; ANTUNES, 2000.

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Se a asfixia da economia perdura, impedindo que novos surtos

econômicos se encetem em grande parte do mundo civilizado em períodos de

tempos mais demorados, diminuem-se gradativa e silenciosamente as conquistas

do Welfare-State, de modo a não promover grandes descontentos e turbulências

sociais. Os proletários dos países centrais, se num primeiro momento os seus

Estados de tudo improvisavam para que permanecessem imunes a essa

conjuntura, passam a sofrer com o “escasseamento” do “desenvolvimento” social,

tendo de acumular mais empregos e menos renda que outrora.

Em tal conjuntura, até os que parecem economicamente mais

sólidos não estão isentos de crises.

A China, beneficiada economicamente pelas relações comerciais

com os norte-americanos, a guisa de exemplo, vê crescer cotidianamente os

problemas com as economias da região:

A rápida industrialização da China e dos países do Sudeste Asiático está deslocando uma fração importante da demanda global para os produtores de matéria primas e alimentos. Como é de conhecimento geral, a China sustenta um saldo positivo muito elevado (mais de U$ 162 bilhões em 2004) com os Estados Unidos. Mas seu déficit é crescente com o resto da Ásia e com os demais parceiros comerciais. O bloco industrializado da Ásia, sobretudo a China, funciona como uma engrenagem de transmissão entre a demanda gerada nos Estados Unidos e a oferta das economias “exportadoras de recursos naturais” (BELLUZZO, 2005a, p. 16-17).

Obviamente que a situação experienciada por esse país o coloca

em situação de destaque, na região prioritariamente elencada aos investimentos

produtivos e captação de divisas no planeta; o que permite que mantenha seu

acelerado crescimento sem desvalorizar sua moeda na medida do que desejam os

E.U.A, como fizemos notar antes.

O mapa da regionalidade dos fluxos econômicos internacionais

torna o espaço tão flexível como o arranjo que lhe dá a economia e a sociedade.

O paradigma toyotista que irrompe nas economias centrais e que

muitas vezes se miscigena e se torna caboclo em países periféricos como o Brasil,

denota a reestruturação em curso que tenta superar a fixidez dos processos

produtivos fordista-taylorista (tempo-padrão de produção-em-massa pelo

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operário-massa para ser consumido pela sociedade-de-massa dominada cultura-

de-massa). A idéia basilar é a de um produtivismo instantâneo flexível e atado a

uma demanda esteticamente mais seletiva (pseudo-personalização maior dos

produtos pela variabilidade das formas e das cores).

Por isso que no estádio atual do paradigma do produtivismo

comumente designado por sociólogos e economistas de just-in-time, vai cada vez

mais o espaço se metamorfoseando simultânea e ligeiramente na dimensão

relacional prontificada à instantaneidade e fluidez, para que a seletividade e

individualidade toyotista que se verifica na produção e no consumo tenham

melhor arquitetado seu processo como produtividade just-in-place, na acepção de

M. Santos.

Os megaconglomerados inclusive diversificam suas áreas de

atuação, na seara produtiva e especulativa.

Não há ramo salvo de riscos, como se pensava inicialmente

sobre a high-tec negociada em bolsas especificamente criadas a ela.

Foram as inovações estonteantes do universo da tecnologia que

levaram apressados teóricos a ratificarem que a centralidade da geração de riqueza

transitava do mundo do trabalho para o mundo da tecnologia e da produção

automatizada. Tentando-se via idealismo subjetivo, ao eliminar a importância da

qualidade absoluta do trabalho (capital variável), findar juntamente com o próprio

trabalho (valor-trabalho) na teoria econômica.

Menospreza-se a centralidade do trabalho apenas no plano do

bombardeio ideológico porque no nível concreto da economia a necessidade de

filtragem e seletividade aos investimentos econômicos cada vez mais cresce como

racionalidade técnico-instrumental de uso dos espaços.

Aprofundemos na questão, pela essencialidade que possuí ao

entendimento da nova economia política espacial hodierna. Pode o trabalho perder

centralidade hoje, em países pós-capitalistas e maiormente em países capitalistas?

Cremos que não, e que as teses que negam a centralidade do

trabalho na presente sociedade podem ser inferidas como tombadas na barreira do

erro da conceituação atomística e cartesiana.

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Expliquemos pois a lógica causal e silogística de tais visões.

Saltam de imediato à vista análises que se desvirtuam da teoria

do valor, por enxergarem a sociedade (pós)moderna como regida e reflexo do

terceiro setor (serviços e finanças destacadamente), tendo nas máquinas e na

intelectualização-especialização do trabalho o seu novo motor, como fazem André

Gorz (1987) e o Grupo Krisis (1999)176. Esquecem-se, pois, que a coluna da

sociedade produtora de mercadorias, inclinada totalmente à reprodução ampliada

do capital, continua a coligar-se ao valor-trabalho, não obstante o distanciamento

(e não desligamento) da forma clássica de acumulação à especulação extrapolada,

dirigida pela forma-valor-rentista e pelas múltiplas manifestações do trabalho-

social-total na economia do espaço-mundo, diferentemente combinado na

atualidade. Crêem que o valor-trabalho perde centralidade paralelamente à

extinção gradual do trabalho (que tomam como sinônimo de emprego, do

proletariado e da classe trabalhadora177), quando na verdade ocorre, se muito, sua

diminuição apenas na esfera formal da economia (supressão de postos de

emprego); e mesmo assim não homogeneamente em termos têmporo-espaciais,

em virtude da maior transferência de setores de parques produtivos, de massas de

mão-de-obra e ou de empresas e finanças em várias regiões do mundo.

176 Os pesquisadores coligados a essa visão, por tendência mais terminológica que teórica, negam a teoria do trabalho, marxista e não-marxista, como central à sociedade. Ao identificarem, por via de estruturalismo lingüístico (teórico-conceito), o trabalho como exploração, defendem que o trabalho deve ser eliminado, quando na teoria marxiana a revolução social visa transformar o trabalho abstrato em concreto, dada à sua centralidade não somente à economia burguesa (capitalista ou pós-capitalista) como à existência humana. 177 Gorz argumenta que a classe trabalhadora não deixou de existir objetivamente porque em seu entender não teria ela nunca existido mais do que como mito e ideologia. Para ele a “revolução informática” abolirá as possibilidades de revoluções sociais e, agarrado na errônea idéia do fim do trabalho, não apenas critica a possibilidade da democracia num Estado socialista como esgota antecipadamente qualquer projeto histórico socialista. Teóricos como Gorz – permitimo-nos a analogia – se parecem com os personagens narrados por Robert A. Johnson (1987), que tanto programaram a viagem, nos mínimos detalhes e com exaustiva riqueza, que esgotaram a própria vontade de viajar no ato do sonho, sem pôr em prática as idéias pensadas, isto é, após elaborar utópico-idealisticamente o projeto descartam a realidade como se necessária e inequivocamente se correspondessem a priori. Por incrível que pareça, a Gorz (1987, p. 101-102) a liberação das pessoas do exercício do trabalho, por adentramo-nos na era do não-trabalho, possibilitará que caminhemos ao “socialismo pós-industrial”, em que todos terão tempo livre para desenvolver a subjetividade. Já vimos – e mais adiante outros exemplos serão listados – os efeitos de pensamentos que apostam na evolução gradual e passiva da sociedade, embasados numa economia política metafísica que realiza seus prognósticos pelo em-si e pelo isolacionismo, seja via metafísica da tecnologia ou por qualquer outro elemento.

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A centralidade do trabalho não tomba pois com a classe que

historicamente o realiza nesse regime social.

Ao tornar-se mais complexificada a forma-valor e polissêmico o

trabalho, inevitavelmente configura-se mais ampla e abrangente a classe

trabalhadora.

A classe que dominantemente vive-da-venda-de-sua-força-de-

trabalho ou que vive-da-exploração-não-assalariada-da-sua-força-de-trabalho está

mais complexificada, heterogeneizada, diversificada, hierarquizada e abrangente.

A economia política espacial do capital lucra com o jungir do mais arcaico com o

ultramoderno, englobando os que produzem ou participam do processo de

valorização do capital mediante a manifestação do valor-renda extraído pelas

diversas formas do trabalho social total, seja o produtivo, reprodutivo ou

improdutivo (serviços e lazer; finanças; prostituição e pedofilia; trabalho de

gestão, planejamento, educação, marketing, pesquisa, designer, projeção de

softwares, etc.), masculinizado, feminilizado, infantilizado178, concretamente

assalariado ou tão-somente incorporado pela ideologia da imaterialidade do

salariamento (MALAGUTI, 2000), como os trabalhadores formais e informais, os

precariamente remunerados (GONÇALVES, 2004) ou os não-salariados,

escravizados nacionalmente179 (RIBEIRO, 2001b) e internacionalmente180.

178 Ler a manchete Infância roubada, datada de 25/9/2005 em www.reporterbrasil.com.br/reportagens/freihenri/iframe.php. Ver igualmente: Justiça condena fazendeiros a pagar indenização de R$ 1 milhão, no site: www.folhaonline.com.br, de 27/7/2005, que também denuncia casos de menores aliciados à escravidão. 179 Para informações mais recentes, ver entrevista em que o Coordenador da CPT explica violência no Sul do Pará no site anteriormente citado; nela fica evidente que a polícia no sul deste Estado é privatizada, muitos policiais trabalhando para fazendeiros, sem contar delegados e juízes que não ousam contrariá-los (alguns até participando de máfia e esquemas de tráfico de drogas na região de Tucumã); inclusive porque algumas dessas são grandes empresas nacionais e internacionais, dos setores produtivos e bancários. Para não dizer das milícias armadas, torturas, assassinatos, cárcere e reclusão em fazendas, contratação de menores de idade, situação de péssima alimentação, abusiva cobrança pelos instrumentos de trabalho ou de alimentação “consumida”, exposição à vigilância armada, pressão psicológica, etc. Dissemina-se pelo país a escravidão por dívida, quando anteriormente se fazia mais comum nas regiões Norte e Centro-Oeste, como em Goiás (Justiça condena ex-prefeito por submeter pessoas a trabalho degradante, por Mariana Campos, de 6/8/2005 no Folhaonline) e Mato Grosso (Fiscalização do trabalho liberta 1.200 pessoas de destilaria no MT, referente a 17/6/2005) por exemplo, e agora se multiplicam casos no Paraná (Reflorestadora é acusada de trabalho escravo no Paraná, matéria de Mari Tortato, exposta no Folhaonline, em 24/5/2005), Maranhão (Preso pecuarista acusado de submeter funcionários a trabalho escravo, dia 24/6/2005, no Folhaonline) e Bahia (Justiça

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A lógica do pensamento pós-marxista que há pouco tratávamos

parece igualar-se no fundo a dos pensadores da economia política clássica, que

fixavam os ganhos distribuídos aos partícipes segundo a justa contribuição e

esforço prestados pelas partes no acordo, findando o conflito pela igualdade da

troca dos iguais. A diferença é que a contradição erguia-se para aqueles por sobre

a questão salarial e por dentro do mundo do trabalho, que deveria ser regulado

pelo mercado, enquanto para os teóricos atuais a querela não se centra e nem se

resolverá por dentro dos marcos do trabalho mas pelo do não-trabalho, e isso

talvez por saberem que na essência o mundo do trabalho não mais comporta

ideologias dos tipos do “pleno emprego” e da “troca dos iguais”.

Época em que até os socialistas utópicos são raros, os

apologistas mais ardorosos do sistema, seguros com a “vitória” do capitalismo e

com a infertilidade de florescimento doutros modos de produção sociais, chegam

a bradar aos quatro ventos a ineliminabilidade da desigualdade das trocas entre os

partícipes geradores de riqueza, e que os que nem míseras remunerações

detiverem que se silenciem e aceitem passivamente para não sofrerem as

conseqüências181.

A igualdade para os utópicos e economistas burgueses derivaria

da esfera da “justa” circulação, na distribuição da riqueza cumulada no mundo da

produção (e da abstinência burguesa).

A igualdade e a liberdade para os pós-modernos e pós-marxistas

agora são radicadas ao mundo do não-trabalho (o trabalho para Gorz é contingente

condena fazendeiros a pagar indenização de R$ 1 milhão, matéria do dia 27/7/2005, também no site anterior). Também ver: ARANHA, 2004. 180 Exemplo da maioria dos bolivianos recentemente introduzidos irregularmente no país para serem superexplorados em 15 horas/diárias por coreanos nas tecelagens paulistas (Polícia localiza bolivianos em condições análogas à escravidão em SP, matéria de 5/9/2005 acessada em 18/9/2005, no site www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u112745.shtml. 181 Postura revelada pelo então presidente do Banco Central, Armínio Fraga, num programa de TV. Simbolicamente, foi como se a direita brasileira (monetarista e entreguista) desse o seu recado de resignação aos movimentos socialmente organizados, rejeitando ao mesmo tempo a ideologia desenvolvimentista pregada recentemente pelas burguesias brasileira e mundial, que vendia a idéia de desenvolvimento-industrialização-empregabilidade-redistribuição de renda para, com isso, generalizar a lógica conformista às classes (aproximando a sua religião ideológico-econômica da religião de castas indianas). Com a conjuntura de crescimento econômico internacional atual, alguns países em tese com governos desenvolvimentistas, como o Brasil, tentam investir em programas desenvolvimentistas-industrializantes para geração e distribuição de renda.

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e exterior). Claramente processa-se o embaralhamento da matriz do pensamento

de Marx, que validava o princípio do não-trabalho como termômetro de medição

da verdadeira riqueza gerada no marco histórico socialista e liberto das travas do

complexo social capitalista, quando o homem tiver se libertado do reino das

necessidades; estado que estamos longe de vivenciar, vez que prevalece o reino

das necessidades individuais/individualistas ligadas sobremodo à

macronecessidade do capital: acumular à custa do trabalho não-pago por inexistir

mecanismo concreto de geração de valor que se dê à margem e desconexo do

mundo do trabalho.

Os que asseguram a “marginalização do trabalho socialmente

necessário” através da informatização e tecnificação do mundo da produção,

como Gorz (1987, p. 93) – a supostamente engendrar desemprego e ineliminável

alienação-passivização-indisposição às revoluções – se esquecem que máquinas,

se produzem, não consomem nem realimentam a estrutura do sistema e que a

força de trabalho não pode em absoluto ser desprezada, portanto.

Tal perspectiva não dá conta de discernir que o trabalho é que

move as forças produtivas, inclusive as novas forças produtivas (novas

tecnologias ou a dita “revolução informática”) que não podem realizar-se sem o

trabalho. Nesse sentido, esses teóricos acabam retrocedendo teoricamente ante a

teoria burguesa keynesiana.

Postulados como o Jürgen Habermas, arqueados ao descolar e

sobrevalorizar da tecnologia e da ciência em relação ao trabalho, concebido em

vias de abolição ou marginalização, não dão conta, como temos dito, de aperceber

a centralidade do trabalho e da substância do valor-trabalho no mundo que alguns

têm chamado de pós-moderno, outros titulado de alta-modernidade; temo-lo como

ultramoderno, correspondente ao neo-capitalismo substantivado por Lefebvre.

Imaginar, como fazem Claus Offe e Johannes Berger, que

vivenciamos a sociedade de serviços e pós-industrial sugere o apelo do mesmo

modo ao dualismo.

Inda que refluída ou adormecida em termos de consciência, a

concretude da classe sobrevive; potencialmente de forma até mais forte dada à

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difusão das contradições inelimináveis e cumulativas do capital para além do

mundo geográfico do trabalho.

A classe não fora ela eliminada, como querem entre outros, além

de Gorz e Offe, Jan Pakulski e Malcolm Waters.

Não podendo ser abolida por dentro do capitalismo e sim

conjuntamente a ele, a lei do valor foi apenas alterada na economia política

hodierna. Permanece no entanto a determinidade ontológica do valor abstrato ou

do trabalho não-pago na regência da sociedade capitalista, sendo até mesmo

elevado ficticiamente ao na forma da bolha do valor-rentista.

A crise do mundo do trabalho que sugere a morte da classe

proletária que trabalha e o enterro de seu papel social estratégico, na verdade

espelha superficialmente a crise do trabalho abstrato ou dos empregos; sem afetar

absolutamente sua centralidade.

A centralidade do trabalho pode ter-se deslocado espacialmente:

transitando hegemonicamente do mundo geográfico do trabalho concreto-fabril

internacional ao mundo geográfico do trabalho abstrato-financeiro e de serviços

transnacional. Da esfera da produção à da circulação, da esfera fixa da produção à

esfera fluida da circulação em rede.

O “fim do trabalho” não condiz com a tese do fim do

proletariado ou fim da classe trabalhadora e de sua ideologia, como querem

Dominique Meda ou Jeremy Rifkin (1995).

Precárias são de igual modo as idéias que abalizam o fim da

necessidade da emancipação humana também pelo trabalho, pois como

observamos o trabalho é condição fundante-estrutural a essa e a outras sociedades.

Imprescindíveis os cuidados com o analítico e a ressintetização

do teórico no plano do concreto dialético, para que juízos de valor acrítico não se

transfigurem em ostracismo e conservantismo do corpo social.

Flexibilização no entanto é a palavra de ordem. Flexibilizam-se

as relações de trabalho (priorizam-se os sistemas políticos tripartites, os sindicatos

de empresa, guiados pela participação e cooperação – partnership). Flexibilizam-

se os processos de trabalho (automação, combinação homem-várias máquinas,

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multifuncionalidade, polivalência182). Flexibilizam-se as regras contratuais e os

direitos trabalhistas (perdas salariais e de direitos conquistados, contratos

reduzidos a curtos períodos pelo desejo burguês de subcontratar e subsalariar).

Flexibilizam-se processos de produção (desverticalização empresarial, economias

de escala primando a horizontalização coligada a pequenos fornecedores

autônomos e terceirizados para que lugares selecionados pela triagem da

lucratividade possam ser descartáveis com a perda das expectativas).

Flexibiliza-se, como resultado, a subjetividade do ser com a

substituição de relações estáveis por instáveis no mundo do trabalho e do além

trabalho, deturpando caracteres ao torná-los mais plásticos e flexíveis (SENNET,

2001).

Interligando pressurosamente as localidades na sincronicidade

do espaço-tempo do capital globalizado, os fluxos de informação vencem as

distâncias geométricas para o capital. Tenderá a pagar contudo por aumentar o

abismo socioeconômico dessas distâncias geográficas.

A pulverização dos espaços regionais, o acondicionamento ou

substituição pelo espaço econômico organizado em rede (MOREIRA, 2006),

significou algo parecido à desregionalização ou desidentificação sociocultural dos

grupos socioeconômicos e parlamentares com as convenções político-territoriais

anteriores, devido à nova arquitetura universal engendrada pelo capital.

A reestruturação do capital é mais veloz e eficaz em curto prazo

do que a reestruturação social da consciência de classes183, quase que com a

consciência nacional ele rompeu. Assim, temos que as histórias e os espaços dos

sujeitos no capitalismo estão cada vez mais convoladas numa sociedade em crise

(reestruturação transnacionalmente desigual). Os danos de ambos passam a ser

identificados ideologicamente como tragédia (farsa) a todo o custo a ser evitada.

182 Alguns autores defendem que em lugar da polivalência deve a sociedade, emancipando-se, buscar a politecnia do trabalho. 183 Não bastasse a identidade que se quer impor entre as classes capitalista e a trabalhadora, que deixariam de possuir identidades de classes para vestir a camisa identitária da empresa, o capital suga a subjetividade do trabalhador com as premiações pagas àqueles que fizerem descobertas úteis à ampliação da produtividade fabril. Podemos imaginar o quão preso está esse funcionário à lógica mercantil, quantas noites de insônia não passa no espaço vivido para melhor remuneração alcançar no espaço do trabalho; descoberta a qual crê poder melhorar a vida no além-trabalho...

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Como a transição se dá entre paradigmas e não entre modos de

produção, o que podemos aferir desse panorama são as praças preferenciais do

capital e as que guarda mais reservas, pelo medo de perturbações.

Num extremo, a temida tendência de inflação nos ativos, com o

conseqüente enchimento/estouro das bolhas dos mercados de bônus, imóveis,

commodities e moedas. Noutro extremo, o medo de deflação nos preços, serviços

e bens de consumo durável e não-durável, dado o excesso de capacidade

produzida em âmbito internacional. Juntamente a isso e numa posição não menos

extrema está a tendência crescente da demanda chinesa e do nível atual das baixas

taxas de juros poderem favorecer posições especulativas altistas nos mercados de

commodities.

A ideologia que hoje se despeja sobre a necessidade de

“neutralidade” dos Bancos Centrais passa por aí – tese que rendeu o Prêmio Nobel

a um economista.

Tentam-se livrar os bancos das amarras político-estatais para

que consigam enxergar os acenos da Mão Invisível do mercado, antecipando-se às

quatro bolhas e ao risco de aceleração inflacionária/deflacionária: gangorra

capitalista que tira os sonos dos economistas burgueses.

Daí os esforços não medidos para exaurir a regulação estatal de

países satélites sobre o capital nas questões cruciais à economia global; fenômeno

que encobre, para Belluzzo, o direito da “exceção permanente” e do “Estado

Imperial”, de quem é mais forte na economia, na política e nas armas, sobre as

outras territorialidades nacionais.

O entrelaçamento entre os setores produtivo e especulativo torna

o mercado bastante sensível aos riscos associados à flutuação dos preços dos

ativos e à contração da liquidez que resultariam em dramáticos crash’s não fosse a

interferência praticada pelos bancos centrais hegemônicos. Os bancos centrais

devem (pré)ocupar-se atualmente tanto com as valorizações como com as

desvalorizações descomunais dos estoques de riqueza, com o

valorizar/desvalorizar das moedas. Acontecimentos que descontrolados poderiam

tornar-se catastróficos à economia burguesa.

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O domínio da lógica financeira pende na corda bamba da

economia entre a euforia contida e o pânico disfarçado, promovendo em países

pouco estruturados como o Brasil – pelo menos é como entende a camada política

governante – a subsunção da política fiscal à política monetária, limitando na

prática o poder de gasto/investimento do Estado, não importa se sob o painel de

relativo equilíbrio orçamentário.

Até o momento, o Mercado de Riqueza e as taxas de

crescimento da economia global têm-se sustentado com base nas políticas

monetárias e nos arranjos cambiais. O capitalismo coevo tem-se balizado desse

modo pela financeirização, pelo parasitismo, pelo alto montante de depósitos

bancários e pela concentração de riqueza econômica e poder184, além de

compra/venda de títulos de dívidas pública e privada que juntos somaram U$ 118

trilhões em 2003, mais de três vezes o PIB mundial, numa bolha instável a

qualquer possante ventania política.

Para entendermos o fenômeno da financeirização

contemporânea compreendamos primeiramente as formas preliminares animadas

entre o final do século XIX e o primórdio do XX a partir das indicações de

Belluzzo (2005a).

Segundo ele, os principais fundamentos à época correspondiam:

(a) ao fato de os financiamentos e pagamentos internacionais passarem a ser

concretizados sob égide dum padrão monetário global, (b) operando-se também a

metamorfose no sistema de crédito, com os bancos modelando suas funções e

formas de operações a partir das indústrias, que comandavam a economia, (c)

verificando-se do mesmo modo a cristalização da nova divisão social do trabalho,

edificada na crescente separação técnico-econômica entre departamento de meios

de consumo e departamento de meios de produção – o que veio a impulsionar o

desenvolvimento das forças produtivas, com o consumo das massas se

desprendendo dos condicionantes “naturais”, subordinando-se o trabalhador de

184 Para se ter uma idéia dessa era atual do capitalismo monopolista, basta citarmos que no ano de 1780 a diferença de riqueza entre os países ricos e pobres era de 3 por 1 e que hoje é de 70 por 1, e que das 500 maiores empresas multinacionais existentes no mundo, 227 (45%) são norte-americanas. Cf.: “80 anos sem Lênin. Lênin e o imperialismo”, no site: www.pstu.org.br

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modo real à condição de simples apêndice da máquina, (d) num período no qual

estava a hegemonia inglesa a produzir, via internacionalização da economia, a

industrialização dos E.U.A e da Europa numa ponta e enquadramento duma

periferia produtora de matérias-primas e gêneros alimentícios, noutra. No que se

referia à órbita monetário-financeira, o sistema de crédito subordinava-se à lógica

da acumulação produtiva, propiciando, além disso, a expansão autônoma do

capital vagabundo, que estará na origem dos arroubos especulativos e das crises

de crédito dos períodos mais recentes.

Já no bojo da crise financeira dos anos 70 do século recém-findo

é que se lastreia efetivamente o terreno à dominância financeira, reflexo da

globalização financeira e da nova configuração adotada pela dinâmica sistêmica

recente do capital liderada pela plutocracia dos Estados centrais e possibilitada

pelo aparato técnico-científico-informacional. Elementos que levam A. Sérgio

Barroso (2005) a diferençar o “padrão de gestão institucional” da riqueza

financeirizada atual da fase do imperialismo do início do século XX, desvelado

com maestria tanto pelo Lênin em 1916, no seu Imperialismo, fase superior do

capitalismo, como também pelo J. Hobson e R. Hilferding.

Hoje, novos circuitos de valorização do valor se interpõem

àquele originariamente produzido no chão da fábrica do final do século retrasado

e começo do dobrado.

Condição insuficiente, para Barroso (2005, p. 7), para crermos

na tese da recente “configuração particular do capitalismo” (como quer François

Chesnais), pois tal julgamento implicaria, a seu ver, na crença da irreversibilidade

da “globalização financeira” e no esquecimento de que a financeirização decorre

de medidas programáticas enredada pelo império norte-americano ligadas ao fim

do padrão euro-dólar em 1971, à flutuação das taxas de câmbio em 1973 e à

elevação das taxas de juros pelos Estados Unidos em 1979 e 1981.

O novo padrão sistêmico de geração de riqueza financeira

primordialmente estimulado nos E.U.A decorre, dentre inúmeros fatores: (a) da

alteração do sistema monetário-financeiro, que com o declínio da moeda e dos

depósitos bancários como bases de financiamento foi substituído por ativos que

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geravam lucro; (b) do processo de securitização da economia (modalidade flexível

de emissão e negociação de títulos) que cada vez mais interconectava os mercados

creditício185 e de capitais; (c) da constituição de grandes conglomerados de

serviços financeiros; (d) do aprofundamento e alargamento da concorrência

financeira; (e) do aumento da conjunção das operações financeiras com as

produtivas; (f) do mais constante fenômeno de transnacionalização de bancos e

empresas; (g) da variância interdependente das taxas de lucro; (h) do déficit

público financeiro tornado endógeno; (i) do dimensionamento e conformidade

crescente do Banco Central em relação ao mercado; (j) e da retificação do dólar

como moeda estratégica global.

Protagonistas da nova economia espacial do capital, voltam-se

os grandes bancos, fundos mútuos e de pensão e tesouraria de empresas a

expandirem a riqueza em seu portfólio (carteira de títulos).

Percebemos pelo exposto, o divisor histórico ao capitalismo

afixado pela geopolítica dos países centrais.

Num primeiro momento tem-se o boom do pós-II Guerra

Mundial, dos trinta anos gloriosos, dos anos dourados ou belle èpoque dos países

centrais agarrado firmemente aos setores produtivos, na era da culminância do

Estado Intervencionista e do Bem-Estar que buscava suprir as necessidades

sociais e incluir a maioria da sociedade no mercado de consumo, guiando-se a

partir da aplicação política de critérios diretamente sociais186. Nessa fase a cega

185 O sistema de crédito engloba a circulação monetária, a administração de meios de pagamento e o gerenciamento da riqueza, e as conseqüências advindas do comando despótico que sobre ele verte se desdobram nas decisões sobre gastos e sobre produção, determinando os níveis de emprego e renda dos despossuídos. Vale saber que “Em sua forma mais simples, o credito é uma aposta, sujeita a perdas, no acréscimo de valor a ser criado no processo de produção – entendido como a utilização da força de trabalho assalariada e dos elementos do capital fixo e circulante na transformação de bens – com o propósito de gerar mais dinheiro na venda das mercadorias produzidas” (BELLUZZO, 2005a, p. 14). 186 Poucos não foram os pensadores que eternizaram metafisicamente a fase de desenvolvimento do capitalismo, como se não mais tivesse fim, como notamos anteriormente (RIBEIRO, 2004a, 2004c). Lucien Goldmann (1968) foi um dos: acreditando que o problema da sociedade seria a mais a geração de alienados e de pobreza cultural do que de miseráveis. Outro foi Celso Furtado (1920-2004), que discordava das teses marxianas da tendência decrescente da taxa de mais-valia, da ampliação do desemprego e da manutenção de capitais ociosos (FURTADO, 1977). Outro autor é Francisco de Oliveira, que na opinião de Jacob Gorender equivocadamente expressou (no artigo A economia política da social-democracia – publicado no no 17 da Revista USP –, bem como no

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ratio do capital fazia-se contornada mediante dois fatores básicos: (a)

predominância dos créditos bancários sobre securities (b) e “repressão

financeira”, vez que a superestrutura político-econômico separava bancos

comerciais de outros agentes financeiros, controlando a oferta de crédito, impondo

tetos-limites às taxas de juros e restrições aos movimentos de capitais, o que, por

fim, permitia aos Bancos Centrais melhores chances de intervenções e menores

crises de liquidez; razão de terem surtido efeito as políticas anticíclicas da era

keynesiana voltadas à contenção dos fenômenos de “desvalorização do capital”.

Num segundo momento, ainda segundo Barroso, posteriormente

ao auge do Welfare-State e da política econômica keynesiana de intervenção-

investimento-regulação econômica entornada à manutenção do efetivo de

demanda187, o sistema depara-se com o fenômeno da superacumulação de capital

(especialmente no setor manufatureiro) e vê decair acintosamente as taxas de

lucro e de crescimento econômico. Inicia-se a era da cegueira crescente pela

perseguição do valor-rentista, no qual a ratio do capital aparenta mais e mais a tal

da “exuberância irracional” (não tão irracional assim, se compreendemos a

microcosmovisão do capital).

concurso de admissão para o cargo de professor titular da USP) a opinião de que os países desenvolvidos portam um modo de produção social-democrata, com certas características socialistas já presentes, e que essa seria a fase transitiva ao modo de produção dominantemente socialista. Isso creu por entender que a natureza do capitalismo far-se-ia regulada pela atuação de um “Estado social-democrata” possuidor de autonomia fiscal, sobretudo na segunda metade do século XX e que, ao investir no circuito do antivalor, desviaria supostamente da esfera privada à pública as reservas do fundo público, retirando a regulação da economia do crivo da lei do valor; teses que Gorender vigorosamente rebate, demonstrando inexistir a tal desmercantilização e desnecessidade da forma mercadoria da força de trabalho, tampouco autonomia total do Estado na questão dos investimentos, dado o embate de forças sociais e parlamentar existente; sem contar ser infundada para Gorender a tese de que o fundo público sai da esfera privada dividindo-se entre as esferas privada e pública (na última como antivalor), pois o valor continua a reger a sociedade pelo investimento feito na melhora dos níveis de consumo, no bem-estar e no valor da mercadoria força de trabalho (GORENDER, 1994). Como as demais, a tese de Oliveira rui com a crise inflacionária do final dos anos 1970, demonstrando que o Welfare-State correspondeu a uma agenda político-econômica específica à fase em que se conseguiu conciliar vertiginoso crescimento econômico de empresas transnacionais com relativa distribuição de renda, inclusive com o objetivo de ventilar os espectros vermelhos e revolucionários para longe das economias ocidentais dominantes. 187 A política reguladora e anticíclica keynesiana preconiza o cuidado com as oscilações no volume de inversões, quando a exacerbação do processo de formação de poupança interferiria no emprego e na demanda. Furtado (1977, p. 55) lembra, entretanto, que: “A análise dos fatores que induzem o empresário a inverter é, certamente, a parte mais pobre da obra de Keynes”.

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A periodização acena a espacialidades inconfundíveis: de um

mundo do trabalho aprisionado mais ao valor-trabalho centrado no capital-

produtivo da fábrica transita-se ao mundo do trabalho atado ao valor-rentista

nucleado pelo capital-monetário das finanças.

O nó espacial mais importante da rede econômica do capital

deixa de ser as indústrias e passa a ser os bancos e as bolsas de valores.

Desindustrializam-se (grandes) cidades, desverticalizam-se

(grandes) indústrias, reposicionam-se os fatores produtivos, especulativos e

reprodutivos sem que o capital consiga eliminar o trabalho produtivo-assalariado

encarnado na manada de mercadorias que estoura em cada estação. O capital se

descentra da indústria, não se desliga dela e talvez por isso seja um erro considerar

a sociedade atual como pós-industrial, ainda que se esteja a vivenciar a hegemonia

dos bancos.

Há um laço material e um imaginário econômico reais

entrelaçando o espaço do capital produtivo e o espaço do capital fictício.

O crescimento aí está, em que pese não possuir nem o caráter

mais alongado que o demonstrado em períodos anteriores e nem a consistência de

outrora. A bolha financeira aí está, por demais sensível às menores oscilações e

imprevisibilidades do mercado. Eis por que, sem embargo, no pós-1970 interpôs-

se momentos de recuperação econômica a vários países centrais, sobretudo no pós

1981-83 e em especial nos E.U.A e Japão. Contudo, como lembrou R. Brenner,

tratando d’O boom e a bolha, o crescimento verificado nos E.U.A entre os anos

70 e meados dos 90 deveu-se às freqüentes desvalorizações do dólar diante do

marco alemão e do iene japonês, ao arrocho salarial e revitalização da indústria

manufatureira; fenômenos que para Barroso, ao inverso do que pensa substancial

parte dos teóricos marxistas, corrobora com dois aspectos da teoria marxista,

quais sejam: (a) a recuperação econômica estrutural-sistemática nos períodos

posteriores às crises e (b) a expectativa de diminuição da potencialidade de

sustentação dos níveis precedentes de produção industrial, com paralela

dificuldade de perpetração dos níveis empregatícios nas regiões urbanas e notável

minoração das taxas de investimentos.

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Outro aspecto essencial das crises atuais e que as individualizam

das precedentes liga-se à instabilidade macroeconômica (monetária, cambial e

fiscal), hoje redundante da esfera financeira que destroça aquela produtiva188.

Tais choques econômicos não se materializam, entretanto, a

expensas da atuação de agentes e soma de esforços que tentam sempre regular as

vicissitudes da economia, com um escalão de profissionais prontificados a avaliar

o padrão de qualidade dos títulos de dívida e de propriedade, cuidando da criação

e administração da liquidez, entre outras especialidades; prontos para entenderem

e se antecipar às leis de movimento do mercado. O que comprova que a

financeirização não corresponde a uma deformação mas ao aprimoramento do

capitalismo: “aperfeiçoamento” que não desfaz, antes exaspera, as contradições da

sociedade, desvalorizando a força de trabalho, expandindo o capital fixo espacial

para além dos níveis que as relações de produção tendem a suportar.

Universaliza-se o trabalho abstrato pela planetarização da forma

da subsunção real.

E criado por cabeças que têm a função na divisão social do

trabalho de elaborar imagens e fantasias antes mesmo que produtos, como

mercadorias imateriais pré-objetivadas (pesquisas de opinião, designer,

marketing) em universidades, empresas e instituições que atuam como fábricas de

ideologias, o trabalho abstrato assume na grade do trabalho polivalente, total e

combinado, produzido por homens-fragmentos, função tão crucial como o

trabalho manual. Porque potência e ato metabólico (físico e mental) do homem na

relação com seus pares e com a natureza, o trabalho é imprescindível à produção e

à reprodução da sociedade, operando na era burguesa, já que estranhado e

alienado, como fator de pesquisa e efusão de valores mercadológicos,

direcionadores de mentalidades, controladores de cultura e de subjetividades.

188 O nível de especulação é tão alto que pode ser percebido no mercado de ações norte-americano: o setor de alta tecnologia (telecomunicações, fibras óticas, internet, mídia, etc.) se valorizou de U$ 1,5 trilhão para U$ 19,5 trilhões entre 1980 e 1999, ao passo que de março de 2000 a março de 2003 sofreu forte desvalorização, caindo para U$ 11,4 trilhões; já no final de 2004 ascendera vertiginosamente para U$ 15,8 trilhões. Esse processo de des(re)valorização afeta, qual efeito dominó, vários países do mundo, como o que se deram com os E.U.A em 1987, o Japão em 1989-90, E.U.A e Reino Unido entre 1991-92, México em 1994, Ásia, Turquia, Rússia, Venezuela e Brasil em 1997-98, Brasil novamente em 1999 e E.U.A, Europa e Japão em 2001-2002.

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Nem Adam Smith (1723-1790) poderia imaginar, na Inglaterra revolucionada pelo

industrialismo, tão grande divisão social e técnica do trabalho, a ponto de as

funções se subdividirem exponencialmente entre homens que fazem e homens que

pensam, chegando agora a serem estendidas às máquinas que fazem e às máquinas

que pensam.

Com isso, o trabalho abstrato transborda dos espaços subjetivos

da mente técnica, reconfigurando o conteúdo espacial e a forma paisagística na

intrincada interação entre os espaços mentais do operário, sugados pelo capital (e

chamado capital intelectual) e os espaços geográficos externos. Associados pelo

capital, o mundo do trabalho e o espaço vivido, o espaço mental subjetivo e

individual e o espaço social objetivo e coletivo.

Eis porque apenas epidermicamente apresentam-se tais

dimensões sócio-espaciais segregadas, com o mundo da morada e da reprodução a

se descolar do da produção (RIBEIRO, 2004a, 2005a). Na raiz do processo: o

regime do capital a fragmentar a totalidade ontológica do ser social, tatuando

traumas na subjetividade do trabalho (THOMAZ JR., 2003a, p. 8).

No encalço da trilha da manutenção das taxas de lucro – e

paradoxalmente, causando o encurtamento da mesma, pela tendência histórico-

ontológica à queda de suas taxas médias, pelo investir no capital constante que

vem alterar a composição orgânica espacial do capital – o mundo da automação

tende a adensar o fenômeno do desemprego e este, por seu turno, imediata ou

indiretamente, pressiona subjetivamente o trabalhador a ser mais circunspeto,

assisado, dedicado, produtivo e passivo (DIAS, 1999).

Tudo (valores econômicos e político-culturais) arrastado pelo

espectro econômico adjetivado por “globalização” (de afazeres e idéias), que ao

gosto dos mais poderosos grupos e nações tomou o posto do de mundialização no

encalço da teleinformática (telemática e satélites), avançando pela estratégia de

liberalização e desregulamentação econômico-financeira, sussurradas primeiro por

lábios americanos, depois japoneses (CHESNAIS, 1996) e, por certo período de

tempo, dando a idéia de quase absoluta planetarização.

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Por esse sobe e desce fica demonstrado que o maior atributo do

capitalismo está nessa capacidade de “multiplicar-se” a partir da autonomização

de suas formas histórico-geográficas particulares (capital-produtivo, capital-

mercadoria, capital-monetário), com dinâmicas que se contraditam no

metabolismo capitalista de acumulação de riqueza abstrata, donde se vê

hodiernamente sobrelevar-se o capital-monetário ao capital-produtivo.

O presente cenário é de recuperação à economia mundial – ou

aos países que a estão sabendo tirar proveito –, não obstante as eminentes ameaças

de crises.

Grosso modo, podemos dizer que presenciamos a modificação

da balança comercial e dos índices de crescimento econômico entre as duas

bandas do mundo, Oriental e Ocidental, o que contradita a tese da tendência

inexorável à estagnação do capitalismo na era dos monopólios, como creram

apressados teóricos marxistas norte-americanos que proclamaram o fim dos ciclos

econômicos a partir da realidade de seu país, num desenrolar que demonstrava, na

opinião de Sérgio Barroso (2005, p. 10), a:

superpotência em decadência histórica, com desequilíbrios estruturais, dívidas e déficits cada vez maiores, “oficialmente” com 36 milhões de pobres, mais de 20% de suas crianças abaixo da linha de pobreza, com seus 2,5% de presidiários, a grande maioria em idade produtiva.

Na banda oriental, é bem mais visível o desenvolvimento da

China189, da Índia (com taxas de crescimento de 9% e 7%, respectivamente) e do

grupo ASEAN-4, composto por Indonésia, Malásia, Filipinas e Tailândia (com

média de 5% a 6% de crescimento anual); destoa de tal conjuntura por enquanto o

Japão, por não estar demonstrando capacidade de reação significativa em meio à

redivisão econômico-comercial global, com a nova divisão internacional e

189 Contra o entusiasmo que toma conta do mundo e que na defesa de uma multipolarização do mundo projeta a China como maior superpotência dentro de poucas décadas, a lei marxista que afirma que os períodos de crescimento tendem a ser cada vez mais curtos. Ou seja: haverá tempo para isso? Romperá essa formação social pós-capitalista, ao contrário do que fizeram as soviéticas, com o capital? Como ficará a questão da concentração de renda, pois se a classe média lá cresce – fenômeno que não é a regra no mundo – efetua-se contudo, segundo Rodrigues (2005, p. 32) dentro de um quadro social no qual 1% da população detém 40% da riqueza nacional?

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interindustrial do trabalho aliada ao novo arranjo do mapa espacial dos fluxos e de

curta hospedagem do capital-fictício.

Aos que não se desenvolvem ou os que não crescem

economicamente, ou que crescem em pequena e insuficiente escala, situando-se

de modo mais passivo e subserviente na economia globalizada que orbita agora o

que se tem chamado de Terceira Revolução Industrial190, nota-se o avolumar do

desemprego estrutural, qual deformação ontológica ao qual não conseguem burlar;

e não apenas nos países periferizados e satelizados, posto que nem sempre o

crescimento econômico se encontra acompanhado pelo acrescentamento dos

postos de emprego, ainda que seja inegável que nações controladas pela

“lupemburguesia” (como tachou André Gunder Frank), por envolver atores

econômicos nacionais que se auto-elegem sócio-menores das multinacionais, são

os que sofrem os maiores danos com os tremores vindos do epicentro da

economia política espacial do capital. 190 Como características das três revoluções industriais, temos: 1) a I Revolução Industrial (1780-1830) ocorreu inicialmente na Inglaterra, sendo marcada pelo paradigma manchesteriano, além de estar centrada economicamente no ramo têxtil do algodão (ramo que concentra a maior parte da classe operária, formada sobremodo por mulheres e crianças) e de ter como principais modais de transporte e comunicação a ferrovia e a navegação marítima; como fonte energética tem-se o carvão. No Brasil tal revolução chega apenas no fim do século XIX, em municípios como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Em termos políticos, percebe-se uma tendência à ausência do Estado (políticas salariais e outras formas de regulação da política econômica), o que possibilitou caracterizar esse período de liberal; 2) a II Revolução Industrial começou em fins do século XIX, só principiando a ter traços mais definidos no início do século XX (1870-1950), destacadamente nos Estados Unidos; tendo a I e a II Guerra Mundial por mola propulsora. No pós-1950, os elementos e indústrias da I Revolução Industrial migram dos países centrais para os países agrários da América Latina, Ásia e África (uma vez que começa a esboçar-se a III Revolução Industrial nas nações hegemônicas). É assim que, por volta de 1950, a II Revolução Industrial chega ao Brasil. O aço agora é o material básico e o setor automobilístico nucleariza a indústria. O sistema técnico e de trabalho predominante são conhecidos como paradigmas fordista e taylorista. Os meios de transporte típicos são a rodovia e navegação aérea e o petróleo é a fonte energética principal da qual desenvolve-se a petroquímica – além de outras formas de eletricidade. O Estado atua fortemente no investimento e organização da economia, o que faz distinguir esse período do anterior, dada à força que a política do keynesianismo exerceu, defendendo-se a participação, regulação e intervenção do Estado; 3) a III Revolução Industrial (1950-) é cria do século XX e surge nos Estados Unidos, com o desenvolvimento da tecnologia básica do computador; todavia, essa revolução só vem a desenvolver-se efetivamente no Japão, e com forte apego à informática. O paradigma econômico é denominado toyotismo por originar-se na fábrica da Toyota a partir da perspicácia do engenheiro Taichii Ono. Na política, percebe-se o alastrar-se dos países centrais da ideologia neoliberal que prima ausência do Estado, o que possibilitou cognominá-lo de período do neoliberalismo (mais ideologia que sugestão de superação da crise, visto que nem os países centrais seguem os postulados teóricos que ditam aos quatro ventos); no plano energético, a energia atômica e a baseada na biomassa parecem destacar-se, além de alguns outros em processo de estudos laboratoriais ou experimentais. Maiores detalhes: MOREIRA, 1998; ANTUNES, 2000.

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Seqüelas estruturais inequívocas do processo de

desenvolvimento desigual e combinado estão no fato de que quase metade da

população mundial vive com menos de U$ 2 por dia nesse início de milênio; 6,5%

da população economicamente ativa encontram-se desempregada, segundo dados

de 2002 (e a perspectiva é de que os números não parem de crescer); 730 milhões

de pessoas estavam subempregadas conforme a Organização Internacional do

Trabalho (OIT); além de os países da OCDE gastarem mais em pesquisa do que o

PIB gerado pelos 80 países mais pobres do mundo, que vêem suas dívidas

externas subirem rápido aos céus.

2.1.3.6 O modo de produção de capital

pós-capitalista

“Para nós, não se trata de reformar a propriedade privada, 

mas de aboli‐la; não se trata de atenuar os antagonismos de classes, 

mas de abolir as classes; não se trata de melhorar a sociedade existente, 

mas de estabelecer uma nova” 

(A visão de Marx e Engels não foi capaz de notar estações outras

entre o capitalismo e o comunismo, além do socialismo).

Contrário às relações sociais de produção capitalistas, as

formações sociais que no século XX pipocaram essencialmente em chãos de

Europa, Ásia e América não conseguiram superar completamente o seu sistema

metabólico. Uns as têm como continentes do sistema de produção de capital pós-

capitalista191. Havia não obstante, em meados do século XX, aqueles que apenas

191 Caso do filósofo húngaro marxista István Mészáros e daqueles que no Brasil se filiam a sua tese, como o sociólogo R. Antunes.

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se negavam a tachar economias como a soviética de comunista, tendo-a como uma

particular manifestação socialista192; assim o socialismo soviético comporia a

realização prática e concreta das múltiplas teorias acumuladas no campo teórico

da esquerda193. Também houve os que o chamaram de socialismo de caserna ou

capitalismo de Estado194, de capitalismo monopolista de Estado195; conquanto

outros afirmassem o capitalismo de Estado como a degeneração do socialismo196.

Autores como Gorender preferiram utilizar o termo socialismo

de Estado, negando a tese de que tais países teriam sido nada mais que

protagonistas dum capitalismo de Estado, haja vista ter ocorrido a expropriação de

capitalistas e de grandes proprietários de terra com a revolução russa, além do fato

desses não serem regidos pelas leis da economia mercantil capitalista, pois, apesar

de existirem categorias como dinheiro, preço, lucro e salários, o comportamento

dessas seguiam os parâmetros ditados pela economia de comando administrativo,

pelo planejamento central burocrático197. Isso não somente fez com que a lei do

valor ficasse impedida de se manifestar – evitando-se simultaneamente a

concorrência, a diminuição do valor por produto e a lentidão do progresso

tecnológico – como demonstrou o fracasso desses países não apenas na arena da

produção de valores, mas sobretudo de valores-de-uso, uma vez que se

empregavam excessivos trabalhos e recursos na geração de produtos de baixa

192 Como a considerou Lefebvre, que endossava que no comunismo não deverá haver Estado. 193 Cf. Moreira, Do socialismo utópico ao socialismo real, s/d. 194 Termos empregados por Robert Kurz. Como fez notar Gorender (1994), Kurz, na obra sobre O colapso da modernização, chegou a incluir o bloco de países integrantes da ex-União Soviética e os do Leste europeu como pertencentes ao sistema capitalista, taxando-o como “capitalismo de Estado”. Como conseqüência da lógica de seu raciocínio, o autor diz que a crise veio a se manifestar primeiro nas nações do Terceiro Mundo, posteriormente nas do Segundo Mundo (que pertenceriam os países “capitalistas” estatistas) para então galgar os do Primeiro Mundo. Nesse ponto Gorender se junta aos críticos de Kurz, como José Arthur Giannotti, Bresser Pereira, Francisco de Oliveira e Fernando Haddad, negando o presumido caráter capitalista destas nações. 195 Terminologia foi cunhada por Lênin para caracterizar a fase transitória do capitalismo ao socialismo, em que a propriedade de alguns setores deveria estar sob controle do Estado para fazer frente ao capitalismo ainda controlador da economia. 196 Tese defendida por Léon Trotsky (1879-1940). 197 Apoiado em Harry Magdoff, Mészáros (2003) afirma que, enquanto a economia capitalista é planificada com vistas à produção para o lucro, a produção na economia soviética era planificada para a própria produção (o desperdício e o descuido eram aceitos pelos trabalhadores como pré-requisitos certificadores do dinamismo produtivista, para que se atingissem – a qualquer custo – as metas estabelecidas pelo governo central), substituindo o que deveria ser a produção para o uso.

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qualidade, produtos esses tanto mais precários quanto mais próximos do

consumidor (como notara Trotsky).

Em favor da tese sobre o conteúdo não-capitalista das formações

sociais sacudidas pelas revoluções da primeira metade do século XX, conta

igualmente a nova geograficidade criada pela e na economia da URSS, com o

impedimento de empresas transnacionais investirem e operarem no bloco que

substituíra a propriedade jurídico-política burguesa pela estatal.

No que concerne à China, o rótulo de sistema híbrido, a tentar

superar a burocracia e lentidão do socialismo politicamente centralizado com a

desigualdade inerente às forças econômicas capitalistas na criação e distribuição

de empregos e renda, foi cunhado para tentar caracterizar esse país, segundo

divulgação do governo de Hu Jintao. Tenta-se com isso, readequar uma economia

socialista de mercado que, na opinião do Premiê Wen Jiabao, busca atualmente

substituir o centralismo e os pacotes governamentais por um maior liberalismo e

por leis de mercado, conferindo maior liberdade a bancos e a investidores

privados na geografia da infra-estrutura de produção e circulação; mas embora

atue ainda sobre questões macro-estruturais de financiamentos e nas decisões

sobre quais regiões geográficas devem se desenvolver, as ações ou iniciativas

estão mais soltas que outrora198.

Seja como for, o jogo geopolítico estatal ou privado, nacional ou

transnacional nas configurações das geografias desigual-combinadas da

produção/circulação dos espaços pós-capitalistas não foram suficientes para que o

ideal de socialismo morresse com os experimentos iniciais concretizados.

Houve oxigenação das teorias com as práticas, como vela o bom

e velho método dialético materialista. Inclusive porque, diz o rifão, na prática a

teoria é outra, particularmente se forem as revoluções antecipadas a conjunturas

menos propícias a significativos avanços.

198 Cf. RODRIGUES (ed.), 2005, p. 30 et seq. Em entrevista concedida a Wolffenbüttel (2005) são tecidas por Paulo Cunha considerações e comparações entre os modelos brasileiro e chinês, especialmente, em que fica nítida a crítica aos gastos governamentais da máquina falida e ineficaz brasileira, que consome cerca de 40% do PIB.

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Como conseqüência, direta ou indiretamente, o complexo do

capital, no porão da economia marginal ou em um mercado regulamentado e

planificado, conseguiu sobreviver às forças que intentavam primeiramente

destruí-lo.

Por que não conseguiram?

Várias as respostas possíveis. Destacamos as que se entornam às

problemáticas da(o):

Produção: não se conseguiu desvencilhar dum trabalho abstrato, produtivista

(molde fordista-taylorista), alienado, parcelário, passivo, manual e executor

porque, segundo alguns, houve nos territórios sob mandarinato soviético a

necessidade de se priorizar a implantação de indústrias pesadas que no médio

e longo prazo subsidiariam o desenvolvimento econômico mais duradouro,

com maior geração de riqueza e melhora dos níveis de vida dos

trabalhadores, por cujo preparo patriótico e teórico deveriam aceitar o

sacrifício199. Houve com isso um natural desgaste com a falta de alimentos e

de bens de consumo básicos, quando simultaneamente se inchava o paiol

atômico e se navegava no espaço sideral, com grandes e desproporcionais

somas de excedentes sendo derramados no ralo nada socialista dos gastos

governamentais da (cada vez menos fidedigna) “ditadura do proletariado”;

Estado: ao invés de perecer após a ditadura do proletariado, que ocuparia o

vazio da ditadura burguesa, não o fazendo e nem se preocupando com a

preparação da transição, fortaleceu-se como força supra-social controlada por

estratos da sociedade que reproduziam a desigualdade, os privilégios e o

status em ampla escala. Assim, a vanguarda que deveria dirigir certo(s)

estratos(s) social(is) (operariado e ou campesinato, a depender da sociedade)

e que em nome de toda a sociedade comandaria a revolução para, depois de

concretizada, negar-se a si pela educação das massas que se embrenharia

199 O ex-líder soviético Mikhail Sergeevich Gorbachev (1987) voltou a lembrar no momento da transição da perestroika e da glasnost que somente na fase do comunismo valeria a tese que afirma: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”, e que até que isso fosse possível o povo deveria aceitar em muito contribuir e o possível usufruir.

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numa nova cultura geral, desviou-se desse propósito, consolidando-se como

camada dirigente substancialmente autônoma e segmentada autocraticamente

do restante da sociedade: efeito direto disso foi a utilização dos sindicatos

como simples “correias de transmissão”, na expressão de Stálin, dos

ideários definidos pelo alto escalão do governo. A velha cultura autocrática

da política czarista acabou, por essa via, impedindo que, superando-se o

inverno do capital, raiasse a nova estação da primavera social (como se

tentou fazer na Tchecoslováquia de 1968-69);

Segmentação e segregação social: a distinção social e imposição das normas

geraram crescente desidentidade, enfraquecimento dos referenciais

socialistas, dos coletivos operários (soviets) que deveriam gerir a sociedade e

as unidades fabris, com guerras interétnicas e interculturais (intransigência

religiosa) rachando o solo social que se queria cultivar, pulverizando um

pouco mais internamente o espaço do bloco socialista já à força implantado

nos países vizinhos. Quis-se negar a sociodiversidade cultural por decretos e

fechamentos de templos religiosos (nos moldes talvez de um combate

feuerbachiano da religião), aumentando o inútil estado de animosidade da

heterogênea sociedade civil, em simultaneidade à exportação territorial da

revolução pela ocupação militar dos Estados vizinhos, como o que ocorreu

em especial com os países libertos da ameaça nazista no pós-II Guerra

Mundial, porque se vivia sob a influência de duas grandes argumentações: a

que primava a internacionalização do socialismo e a que fechava com a idéia

do socialismo num só país;

Luta ideológica: contra a fortíssima propaganda ocidental consumista e

narcisista (como a que se dava na Alemanha dividida) que, satisfazendo

(fantasiosamente) melhor a subjetividade de um ser igualmente faminto por

beleza, colaborava para que se fendesse e erodisse o espaço da sociedade

socialista que se queria semear. O que comprova que o capitalismo sempre

encontra brechas para se esgueirar em meio à sociedade e não haveria

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“cortina de ferro” na “guerra fria”200 que poderia lhe conter

significativamente se tais sociedades não dispusessem de meios de

comunicação e informação próprios, mas ajustados aos interesses da classe

trabalhadora (aparelhos de Estado pós-capitalistas);

Apressamento do movimento e desvio de rota: parece ter-se esquecido que a

destruição do complexo do capitalismo só pode ser operada através da tripeça

fundante: trabalho abstrato-capital-Estado, pois a ordem do capital e a

desigualdade (mais política que econômica, inicialmente) se restituem mais

facilmente no persistir de qualquer um dos vetores;

Fechamento de horizontes: com o desvio de rota realizado pela estatocracia

pós-capitalista, a dialética foi ossificada na cartilha do “marxismo”

estruturalista (stalinismo): as massas foram conservadas à distância e numa

situação de ostracismo social, a intelectualidade foi menospreza e os líberes

opositores refugiados tornaram-se alvos caçados pelo mundo. A sociedade

“socialista” soviética ou o seu sistema de capital pós-capitalista, nesse

ínterim, derrubou alguns dos muros antigos para se erguer novos, tapando-se

os olhos para o fato de que o capitalismo só pode ser destruído em sua

totalidade histórica e geográfica universalizada através duma revolução

permanente e continuada, planetariamente, que mine suas forças, ocupando

todos os espaços geográficos em que possa recobrar fôlego à retomada do seu

processo geral e desumanizante. É por esse motivo, como consideram alguns

marxistas, que as revoluções socialistas – contudo louváveis tenham sido

alguns dos êxitos obtidos nas sociedades agrárias que a protagonizaram – não

se desenvolveram nos períodos mais propícios a elas, quando específicas

condições de crise econômica (questionamento da sociedade burguesa), crise

social (transparecer da concentração da riqueza e ampliação generalizada da

pobreza) e de crise política (afrontamento e derrubada do poder burguês) se

confluem com grande força; consideração que afiança que a revolução não

depende apenas da vontade subjetiva, como esperam os alquimistas da

revolução. 200 Expressões forjadas pelo ex-primeiro-ministro inglês Winston Churchill.

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Talvez o fenômeno da “aceleração contemporânea”, a que se

reportava costumeiramente M. Santos, tenha também surtido seus (de)efeitos nas

sociedades pós-capitalistas que tinham Stálin à dianteira. Sabe-se afinal que nelas

foram priorizadas mais a “corrida militar”, a “corrida espacial”, a “corrida por

medalhas”201 do que a corrida teórica e intelectual para que o movimento não se

fizesse travado e engarrafado por várias vezes ao cientificismo tecnológico e

pragmático.

A reta estrutural ou o círculo do movimento antidialético do

método stalinista desviou a práxis concreta e teórica da história e dos espaços

“socialistas” para o rumo do des-envolvimento em-si, distando-se enormemente

das teses clássicas envolvidas com o comunismo, e essa uma das justificativas do

afastamento posterior da China “socialista” ou pós-capitalista do bloco espacial

regido pelo Nikita Kruschev, que se aproximava do governo norte-americano.

Não se conseguiu perceber de fato que:

O socialismo não vem para ficar, ele vem para se extinguir, porque realmente o objetivo não é criar uma sociedade socialista, mas chegar ao socialismo (...). É a revolução dentro da revolução, no seu pico mais alto (FERNANDES, 1995, p. 69).

A revolução, para Florestan, foi produzida de “cima para

baixo” pela União Soviética aos países do Leste, criando partidos únicos nos

mesmos que, de socialistas ou anarquistas, só tinham o nome (ibidem, p. 207-

208), quando verdadeiramente, a revolução não pode ser imposta militarmente

“de fora para dentro” e “de cima para baixo” ao menos que com aprovação

popular que a veja como libertação, isto por que: “Se ela não atinge as cabeças e

os corações dos seres humanos, ela oscila e se aniquila” (ibidem, p. 207, 208).

201 Recentemente revelou-se que equipes olímpicas da então URSS incitavam suas atletas ao procedimento da gravidez seguido de aborto, como forma de aumentar seus rendimentos nas competições.

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Apesar dos relativos ganhos sociais e econômicos, a invasão militarizada ao invés

de politização criava barreiras psicossociais e aversão ao regime, muitos

ingressando o movimento revolucionário.

O valor tem papel essencial, dá cara ao trabalho que engrena a

sociedade em determinado rumo, traçando e combinando o tipo de espacialidade

social a ser adotada. Por isso que ao desenvolvimento material da sociedade torna-

se fundamental a preocupação com o desenvolvimento “espiritual” da mesma,

porque o capital não é apenas um fator mas uma relação social revestida de um

colorido camaleônico que se entranha e se envereda pelos dutos da sociabilidade

até viciá-la e entorpecê-la novamente com seu veneno. Eis o porquê da acalorada

polêmica havida entre o Ernesto “Che” Guevara e o francês Charles Bettelheim

sobre os rumos das economias socialistas no século XX, em torno de discussões

sobre como deveriam as empresas se estruturar202, como igualmente os

referenciais de estímulos a serem lançados à sociedade203.

Polêmicas à parte, sabe-se que a política soviética desaprovava

experimentos sócio-econômicos do bloco, que distassem de suas consagradas

máximas.

Quem sabe, talvez no fundo da questão retomada pelo Che

estivesse a fórmula mais correta de se coligar o indivíduo com a coletividade sob

moldes totalmente novos e desapegos da cultura individualista fortemente

enraizada no capitalismo, em que comparece quase que como objetividade

natural.

Um debate como este que se arrastava havia séculos,

contrapondo marxistas, ideólogos burgueses e ou teorias filosóficas direta e

202 Che era da tese de que se deveria promover a transferência de recursos de uma para outra empresa, tanto para se evitar estagnação em alguns setores como para controlar a superacumulação doutros setores, para que outras esferas econômicas se aquecessem de modo interdependente. Che pretendia que o desenvolvimento duma nova cultura, do trabalho e mais geral, promoveria o desenvolvimento das relações de produção e estas, numa relação dialética, acionaria e dinamizaria o desenvolvimento da economia cubana de forma planificada. Bettelheim era de opinião avessa, acreditando ser necessário que todos os esforços se direcionassem primariamente ao desenvolvimento das forças produtivas. Outros detalhes: GUEVARA, 1991. 203 A esse respeito Che apostava que as recompensas sociais aos trabalhadores deveriam possui um conteúdo mais simbólico do que material, para que os valores e os princípios não se desvirtuassem do novo homem que se objetivava criar.

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politicamente não assumidas como conservadoras. De um lado aqueles que, tal

qual La Rochefoucauld, Bauer e Stirner, equipados dum individualismo idealista,

criam que os sentimentos humanos tenderiam para o individualismo e para

interesses privados, sendo o homem fundamentalmente “mal”, lobo de si mesmo

(Thomas Hobbes), como reforçava o cristianismo e reitera o pessimismo

moderno204. De outro lado os que aspiravam, por intermédio de construções

idealísticas, congregar interesses particulares com interesses coletivos no

capitalismo, como o filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832), que creu que

os interesses coletivos deveriam estar em harmonia com os particulares (situação

impossível no capitalismo, tendo em conta que o interesse geral e coletivo é

impossível a todos em igualdade e reciprocidade). O fato – e os teóricos burgueses

não se vergam em aceitá-lo – é que o indivíduo isolado e de interesses privados é

criatura burguesa e do século XVIII, do período em que mais desenvolvidas e

complexas tornaram-se as relações sociais, porque até esse momento da história o

indivíduo se via mais facilmente como pertencente a um todo, à família, tribo ou à

comunidade natural; na teia de fetiches e segregações capitalísticas, o indivíduo

não poderia se manifestar em sua forma plena. O homem não é naturalmente

“bom” (Rousseau, Montaigne, Rabelais) ou “mal” (Maquiavel, Hobbes, Voltaire),

já que não é sua consciência que determina o seu ser. Ao marxismo, o homem

apresenta-se como a mistura histórica de possibilidades confusas entre o “bom” e

o “mau” (excetuando-se os que eventualmente sofressem de anormalidades e

psicopatologias), que a vida social vem depois orientar (MARX; ENGELS, 1996;

MARX, 1999; MANDEL, 1976; LEFEBVRE, 1981; DURANT, 2000; RIBEIRO,

2001b, 2004a, 2005c).

Uma problematização com essa, proposta pelo revolucionário

argentino, serve de ilustração para a relação dialética ao qual se deve ter atenção,

entre a esfera das forças produtivas e a esfera das relações sociais de produção,

integrando paralelamente a essa planificação a preocupação com o

desenvolvimento psíquico-cultural do ser social, nos termos da individualidade- 204 Quem sabe haja nesse ponto uma filiação com os postulados de Aristóteles, que sagravam a diferenciação e a hierarquização entre os sujeitos na escravatura, em prol da aristocracia e em combate ao comunismo idealista de Platão.

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coletividade e no melhoramento material-espiritual (espiritual-material)

correspondente.

Outras questões poderiam ser ainda aventadas. Uma delas atine

aos danos ambientais que sustentaram um tal surto desenvolvimentista, que deixa

ainda marcas nas populações das ex-nações soviéticas localizadas próximos aos

maiores conglomerados industriais e mineradores. Poluição e doenças causadas

numa corrida mais ideológica com a maior nação capitalista do mundo (EUA) do

que como conseqüência de um necessário estágio de “esforço” e “sacrifício”

social para que os frutos fossem mais à frente colhidos por todos. Afinal, formas

alternativas de geração de energia não deveriam ser justamente buscadas por uma

sociedade que auto-nomeada socialista deveria primeiramente cuidar para o

progresso sócio-ecológico, da sociodiversidade e da biodiversidade, do homem e

de sua morada, o planeta?

Marx sabidamente não fora e nem poderia ser capaz de

pressentir esse estágio da evolução humana, tal qual se apresentara, de um modo

de produção de capital não-capitalista que ainda resiste no Oriente, mormente na

China, além do reduto americano cubano, que outros vêem como um tipo

particular de socialismo (uma das possíveis etapas ao comunismo) ou como uma

sociedade estatocrata parecida com o stalinismo.

Numa concepção marxiana, antes de destruído deveria o

capitalismo ser levado ao ápice possível de sua maturação, para que miséria e

escassez não correspondessem às únicas coisas passíveis de socialização. O

problema é que se quis que o desenvolvimento e a socialização do sobreproduto

social se fizesse por dentro dos marcos da sociedade pós-capitalista, sem

conseguir romper com o capital e, a mais grave implicação disso, sem se refletir

sobre a questão de que se é o capitalismo uma totalidade, obviamente que tal

totalidade não pode ser destruída desestruturando-se unicamente uma ou algumas

de suas partes.

O capital mantém-se vitorioso, imiscuindo-se nessas grandes

reservas de mão-de-obra e de mercado de consumo que se abrem, seja como

economia planificada de capital pós-capitalista, seja como meio classicamente

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tipo por certa ala da esquerda mundial como a forma da transição mais adequada

para o socialismo, em que do próprio capital se angaria as forças para o necessário

desenvolvimento das forças produtivas que haverão de negá-lo, superando-o.

Outros asseveram a existência de formas embrionárias de

manifestação do socialismo possível ou socialismo real, estágio de aprendizado e

desenvolvimento coetâneo a certas formas de manifestação do capital. O exemplo

chinês é emblemático nesse sentido, tendo recebido do governo brasileiro, seu

aliado na luta pela multipolarização político-econômica global, a menção de

reconhecimento de “economia de mercado”205. Pelas contradições inelimináveis

da economia de mercado, sofre as conseqüências da concorrência por parte da

China e já lhe impõe restrições em alguns setores (brinquedos e tecelagem,

maiormente); e aí de fato, pouco tem feito de prático esse país, economicamente,

para desviar-se do modelo político-econômico imperialista dos EUA.

A China, com uma estratégica política internacional pacífica de

desenvolvimento apresentada até o momento206, ganhando aos poucos mercado e

posição de destaque ante a economia norte-americana e mundial, apóia e patrocina

partidos e governos de esquerda e ou centro-esquerda pelo mundo, ao passo em

que estreita laços políticos com nações consideradas socialistas no cenário

internacional, como Vietnã, Cuba e Rússia – a última nos aspectos científico e

militar, sobretudo com o objetivo de conquistar o respeito/temor ocidental

capitaneado pelos norte-americanos. Internamente, realiza encontros e promove

discussões, como forma de gerar o aprendizado que diminua as chances de erros

na geoestratégia e nos rumos do desenvolvimento da economia e do socialismo

vindouro. 205 Grande parte dos economistas nega e repudia essa posição. Para eles a sociedade e a economia chinesas não se fazem deliberadamente governadas pela lei do valor e nem cumprem com as regras do receituário (neoliberal) da cartilha econômica global. 206 A tensão regional afigura-se momentaneamente assim por ainda não terem sido tomadas por parte do governo chinês ações mais incisivas contra Taiwan, embora em termos de discurso as ameaças sejam periódicas. A instabilidade política entre esses países decorre do fato de Taiwan ter sido ocupada pelos mais de dois milhões de integrantes e adeptos do movimento nacionalista de direita MKT que, após confrontar o PCC de Mao, foi exilado no pós-II Guerra naquele território hoje reivindicado. Tal situação reacende o medo nipônico e, por conseguinte, a atenção norte-americana de um confronto de maior monta, por haver, segundo alguns analistas, outras áreas oceânicas muito além da costa chinesa que estariam a fazer parte dos planos expansionistas daquele governo.

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Segundo Theuret (2005, p. 54), “A China atual se considera

apenas na primeira etapa da construção do socialismo, que deve durar uns 100

anos!”.

Como externou o jornal do Exército Popular de Libertação

chinês, enfatizando o que a eles compareceria como legado de sua milenar

paciência (e que, talvez diferentemente dos ex-soviéticos, fugiria da cobiça

política de manutenção do poder hierárquico):

a realização do comunismo é um processo histórico que se desenvolve de maneira não-linear. O desenvolvimento da sociedade humana sempre avançou por espirais e ondas. Nós devemos forjar um ideal de uma luta de longo fôlego e realizar uma boa luta ideológica para enfrentar todas as formas de dificuldades e de fracassos. Se a causa comunista internacional continuar sofrendo fracassos, devemos nos manter prudentes nos momentos de perigo e sempre manter a convicção de que o socialismo triunfará e que o comunismo, com certeza, prevalecerá (apud THEURET, 2005, p. 59).

Senão suficiente para se crer que a multipolarização a ocorrer

quiçá ainda nessa primeira metade de século XXI conterá como tônica a redivisão

geográfica do mapa político internacional (socialismo x capitalismo), o

movimento anuncia entretanto uma tendência no mínimo de deslocamento do eixo

econômico do Ocidente para o Oriente, pelo peso que os chineses, japoneses e

indianos exercerão, mexendo na balança do poder político e econômico, tanto

capitalista como socialista ou pós-capitalista.

Preferem crer ou indiretamente “avisar” por seus escritos, como

o fez o homem do Pentágono, Barnett, que a China e os EUA terão boas relações

econômicas, por estar ela movida pelo capitalismo, tornando-se enormemente

dependente de recursos naturais, e é com base nisso que ele não vê razões para se

acreditar em “uma nova guerra fria. Apenas alguns idiotas em altas esferas que

ainda sonham com esse nonsense” (EXPEDITO FILHO, 2004, p. 41).

Há que se saber entretanto, que existem fortes indícios de que o

socialismo não apenas não figurará no mapa com o que atualmente se descreve no

plano das forças existentes como será substancialmente diverso das lutas

socialistas reinantes na primeira metade do século XX, tendo em vista que ao

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contrário daquelas, o novo avanço socialista engendrar-se-á objetivamente da

expansão, crise e paradoxos do sistema capitalista atual, quando já não mais tiver

capacidade de reestruturar-se por meio de seu avançar horizontal207.

O espaço, a história ou o real contudo, não são só desejo e

representação de alguns, como creram não poucos filósofos e pragmáticos, é

movimento racionalmente governado e potência possível de concretização.

Contarão os espaços do século XXI com formações sócio-

espaciais distintas de manifestação do novo homem, a disputarem corpos e

mentes da classe dos dominados fundamentais? Ou será ele palco de formas

territoriais distintas de manifestação do velho capital, e de lutas interimperialistas

entre impérios do Oriente e do Ocidente, sem romper por completo com os

marcos do capital?

A economia política espacial do capital só poderá ser suplantada

por uma economia política espacial da classe trabalhadora.

O aprofundamento no espaço histórico recente e no que se

arranja talvez possa ajudar-nos a aguçar as vistas para antever melhor o terreno.

207 A teoria do “remedio espacial”, compreendido por Hegel como o estender econômico e territorial do capitalismo com vistas ao alcance do estado de equilíbrio, qual fuga horizontal, foi e será incapaz, entrementes, de negar a contraditoriedade uterina de sua estrutura vertical (HARVEY, 1999, p. 50, 52 passim; RIBEIRO, 2001, p. 256; idem, 2004a, p. 5).

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3. Palavras Finais

A forma como a sociedade se geo-grafou ao longo do tempo foi

diferenciada. Em termos gerais, multíplices igualmente foram os mecanismos de

análise: da visão cosmo-teo-lógica (ordem divina) transitou-se a um naturalismo

cosmo-lógico (ordem externa, da natureza-totalidade), superadas mais

recentemente por uma cosmo-logia dialética (ordem/desordem espácio-temporal

de natureza social). Nos dois últimos trajetos percebe-se um trilhar teórico da

metafísica para a física.

O eu e a subjetividade entorpeceram tanto o saber que muitos

teóricos assumiram como recurso metodológico o primado do irracionalismo da

ciência e do real; outros se excursionam pelo pluralismo e ecletismo metódico;

outros ainda se somam ao princípio da práxis do ser concreto, do “como” está-aí,

descarregado de apriorismos. Contudo, é possível ou mesmo necessária a cisão

metódica entre teoria-prática ou prática-teoria, se são e estão uma na outra, sendo

ambas movimento interpenetrante e ininterrupto?

Na ribanceira de tudo, a espacialidade altiva do imperialismo.

Grosso modo, respostas vindas de cima para os movimentos sociais e sobretudo

aos cientistas que dizem não procurar respostas (pós-modernos), aos que se

agarram às formas (positivismo), a movimentos “livres” e desgovernados

(irracionalismo), a relações de causa-efeito mecânicas (pluralismo) ou aos que

despolitizados tecem associações assistemáticas, defensistas e limitadas entre os

eventos e os entes do real (ecletismo), entre inúmeras outras seqüelas que mantém

dentro a todos e tudo na pista cíclica em que se move e morre a sociedade

motorizada pelo capital.

Vai-e-vem de teorias cosmoteológicas e cosmonaturalistas: na

primeira corrente a dominância de cosmometafísicas e, na segunda,

predominância do cosmo-empirismo (com certa dose de metafísica).

Compreendido o cosmo como ordem e disciplina, nada mais propomos que uma

cosmogeografia que se ponha como busca pelo entendimento do conteúdo da

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organização da territorialidade grafada como formas espaciais, desviando-se das

divagações idealistas, metafísicas e suprafísicas.

Não se trata entrementes de inventariar o passado. Tais correntes

teóricas, seus conceitos e métodos flutuam e se fixam no mundo hodierno,

possuem seus seguidores.

Grafias espaciais rabiscadas em distantes outroras persistem

inda hoje. As de hoje prenunciam a geografia do amanhã.

As teorias e os métodos, exemplarmente o método do

materialismo histórico-geográfico, podem ser a luz científica a clarear a relação

do caminho-teórico com a práxis-do-caminhar. Reinventando-se os dois.

Dos referenciais ôntico e ontológico se conhece o ser. Das

paisagens das formas e dos conteúdos processuais e funcionais estruturados

socialmente de modo alienado é donde se revela ser-no-mundo (ou o ser, o

mundo, o mundo-do-ser e o mundo-no-ser).

A relação-social-capitalismo está nas formas empíricas das

paisagens e, hegemonicamente, nas formas imateriais da linguagem. Lê-lo é

fundamental, não para reescrevê-lo mas para apagá-lo espacialmente.

Que a teoria e os métodos aqui citados e as tensas

processualidade e materialidade do mundo por nós enxergado possam ajudar a

sabermos quem somos e o que queremos.

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http://www.comciencia.br/reportagens/arqueologia/arq02.shtml

http://www.sciam.com.br

Cd’s

ENHENHEIROS DO HAVAII. Engenheiros do Havaii AcústicoMTV.

RUSSO, Renato. RenatoPresenteRusso, EMI, 2003.

TITÃS. Titãs AcústicoMTV, Warner Music, 1997.

PINK FLOYD, The wall, Columbia.

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Filmes208

CÍRCULO DE FOGO. EUA: Paramount Pictures, 2001.

DOGVILLE, França: Zentropa Enterteinment, 2003.

GERAÇÕES ROUBADAS, EUA-AUSTRÁLIA: Miramax Films e Australlian

Film Finance Corporation Limited, 2002.

GRAND CANYON, EUA: Twentieth Century Fox Film Corporation, 1991.

MERA COINCIDÊNCIA, EUA: New Line Cinema, A Time Warner Company,

1997.

MONSTER, EUA: Califórnia Filmes, 2004.

O PONTO DE MUTAÇÃO, s/d.209

O PREÇO DA AMBIÇÃO, s/d.

208 Os títulos dos filmes, assim como os anos referendados, não correspondem aos do local da produção, e sim aos que receberam quando da disponibilização à locação no Brasil. 209 Filme de Bernt Capra, baseado no livro O ponto de mutação, do irmão Fritjof Capra.

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