A garantia dos bens de consumo adquiridos no Exterior

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SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Globali- zação e acesso a diversos mercados de consumo; 3. Vulnerabilidade dos consumidores no âmbito internacio- nal; 4 Garantia dos bens de consumo adquiridos no exterior e possibilida- des no Judiciário brasileiro – 4.1 De- limitação do problema pelo Direito Internacional Privado e Processual – 4.2 Utilização da garantia contra- tual – 4.3 Legitimidade passiva – 4.4 Análise da questão pelos tribunais; 5 Considerações finais; Referências. RESUMO: O presente artigo analisa o problema da garantia dos bens de consumo adquiridos no exterior, visto ser política da maioria dos fornecedores destas marcas no Brasil negar responsabilização pelos vícios destes produtos. Analisa-se a vulnerabilidade a que estão subme- tidos os consumidores, bem como as normas de Direito Internacional Processual e Privado relativos à resolução judicial do problema, limitando-se à possibilidade de ações cujas execuções ocorreriam no Brasil. Ao fim, com base na proteção da confiança, boa-fé, e na teoria da aparência, conclui-se pela legiti- midade passiva da pessoa jurídica brasileira em ação de responsabili- dade civil, para fazer cumprir tanto a garantia legal quanto a contratual, sendo utilizável o próprio Código de Defesa do Consumidor (salvo se a lei estrangeira for mais benéfica) e tendo o consumidor a possibilidade de demandar no próprio domicílio. Entende-se, ainda, que nem a falta de comercialização do produto no Brasil é capaz de afastar a responsa- bilidade do representante brasileiro do fornecedor estrangeiro. Palavras-chave: Garantia contratual e legal; legitimidade passiva; teoria da confiança; teoria da aparência. 1. INTRODUÇÃO O Código de Defesa do Consu- midor brasileiro possui diversos dispositivos que tutelam o direito a um produto ou serviço sem vícios. Como medida de efetividade deste direito, existe o instituto da garantia dos bens de consumo, que pode ser legal ou contratual. Tal instituto mostra-se de grande valor ao con- ferir maior segurança jurídica ao adquirente do produto ou serviço, estabelecendo que, em não haven- do a qualidade que dele se espera, poderá o consumidor exigir, dentre outras medidas, novo produto, a re- execução do serviço ou a restituição imediata da quantia paga. Malgrado tenha o CDC discipli- nado de forma louvável a garantia legal e a contratual – com vistas a sanar, principalmente, os problemas decorrentes de vícios de qualidade por inadequação – os consumidores que adquirem produtos no (ou do) exterior têm dificuldade em utili- Capítulo XIII A garana dos bens de consumo adquiridos no Exterior Igor Silveira Santana Santos* (*) Aluno do curso de Graduação em Direi- to da Universidade Federal da Bahia.

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SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Globali-zação e acesso a diversos mercados de consumo; 3. Vulnerabilidade dos consumidores no âmbito internacio-nal; 4 Garantia dos bens de consumo adquiridos no exterior e possibilida-des no Judiciário brasileiro – 4.1 De-limitação do problema pelo Direito Internacional Privado e Processual – 4.2 Utilização da garantia contra-tual – 4.3 Legitimidade passiva – 4.4 Análise da questão pelos tribunais; 5 Considerações finais; Referências.

RESUMO: O presente artigo analisa o problema da garantia dos bens de consumo adquiridos no exterior, visto ser política da maioria dos fornecedores destas marcas no Brasil negar responsabilização pelos vícios destes produtos. Analisa-se a vulnerabilidade a que estão subme-tidos os consumidores, bem como as normas de Direito Internacional Processual e Privado relativos à resolução judicial do problema, limitando-se à possibilidade de ações cujas execuções ocorreriam no Brasil. Ao fim, com base na proteção da confiança, boa-fé, e na teoria da aparência, conclui-se pela legiti-midade passiva da pessoa jurídica brasileira em ação de responsabili-dade civil, para fazer cumprir tanto a garantia legal quanto a contratual, sendo utilizável o próprio Código de Defesa do Consumidor (salvo se a lei estrangeira for mais benéfica) e tendo o consumidor a possibilidade de demandar no próprio domicílio.

Entende-se, ainda, que nem a falta de comercialização do produto no Brasil é capaz de afastar a responsa-bilidade do representante brasileiro do fornecedor estrangeiro.

Palavras-chave: Garantia contratual e legal; legitimidade passiva; teoria da confiança; teoria da aparência.

1. INTRODUÇÃO

O Código de Defesa do Consu-midor brasileiro possui diversos dispositivos que tutelam o direito a um produto ou serviço sem vícios. Como medida de efetividade deste direito, existe o instituto da garantia dos bens de consumo, que pode ser legal ou contratual. Tal instituto mostra-se de grande valor ao con-ferir maior segurança jurídica ao adquirente do produto ou serviço, estabelecendo que, em não haven-do a qualidade que dele se espera, poderá o consumidor exigir, dentre outras medidas, novo produto, a re-execução do serviço ou a restituição imediata da quantia paga.

Malgrado tenha o CDC discipli-nado de forma louvável a garantia legal e a contratual – com vistas a sanar, principalmente, os problemas decorrentes de vícios de qualidade por inadequação – os consumidores que adquirem produtos no (ou do) exterior têm dificuldade em utili-

Capítulo XIII

A garantia dos bens de consumo adquiridos no Exterior

IgorSilveiraSantanaSantos*

(*) Aluno do curso de Graduação em Direi-to da Universidade Federal da Bahia.

zar qualquer dos tipos de garantia quando estes não mais se encon-tram no país de aquisição.

Embora a proteção legal ou con-tratual costume funcionar de forma semelhante nas legislações estran-geiras, os fornecedores do Brasil, ainda que pertencentes ao mesmo grupo econômico e mesma marca, alegam que nada podem fazer visto que a compra se deu em outro país. Assim, normalmente se estabelece no termo de garantia a necessidade de se procurar a própria loja que fez a venda, ou alguma assistência autorizada naquele país, ocasio-nando a inviabilidade da utilização da garantia contratual fornecida no país de aquisição, devido à distância territorial.

Esta situação é cada vez mais presente e, a despeito da impor-tância e magnitude, não tem sido dada a devida atenção por parte da doutrina nacional. Este trabalho, portanto, tem como objetivo propor alternativas viáveis para a solução do referido problema.

2. GLOBALIZAÇÃO E ACESSO A DIVERSOS MERCADOS DE CONSUMOO ritmo acelerado dos avanços

tecnológicos, o aperfeiçoamento das telecomunicações e, principalmen-te, o aumento do poder de compra nos países em desenvolvimento dos últimos anos tem acarretado uma mudança na lógica de consumo a nível mundial. O paradigma anterior, vigente até os últimos anos da déca-da passada, era marcado pelo atraso

tecnológico dos bens de consumo dos países em desenvolvimento em relação aos desenvolvidos.

Um produto lançado no Japão ou nos Estados Unidos, por exemplo, passava muitos meses sem ser co-nhecido pelo consumidor brasileiro, que precisaria aguardar um período ainda maior para obter o produto, isto para aqueles poucos dispostos a arcar com os altos custos das no-vidades tecnológicas.

Atualmente, o lapso temporal do lançamento do produto até o conhecimento do consumidor bra-sileiro é reduzido ou mesmo ine-xistente – nos casos de nova versão de bens de consumo já conhecidos no mercado. Contudo, não obstante a propagação das notícias sobre os produtos de última geração se dê de forma intensa e acelerada, dificil-mente a comercialização destes nos países em desenvolvimento ocorre no mesmo ritmo.

Fato reiterado em revistas es-pecializadas em tecnologia é a análise técnica de produtos ainda não lançados no Brasil,1 disponíveis apenas por meio de sítios de comér-cio eletrônico,2 onde, em boa parte

1. A edição de Agosto de 2011 da revis-ta Info Exame, ao analisar o Eee Pad Transformer da Asus, com cerca de 400 mil unidades já vendidas no mundo à época, informa que: “A dock chegará ao país em setembro, um mês depois do ta-blet e até o final de julho não tinha preço definido” (LOPES, 2011, p. 116).

2. A exemplo, as edições de dezembro de 2009 (LOPES, p. 88) e julho de 2010 (BARRETO, p. 31) da supracitada re-vista, trazem, respectivamente, o smar-

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dos casos, o consumidor tem que fazer a compra diretamente de um fornecedor estrangeiro. Salienta-se, ainda, que, embora a maior parte dos problemas de garantia dos bens adquiridos no exterior esteja rela-cionada aos eletrônicos, a questão não fica reduzida a estes, atingindo também itens de vestuário, calça-dos, cosméticos, perfumaria etc.

Conforme exposto, atualmente, o consumo de bens adquiridos no exterior possui ampla dimensão, tanto pela obtenção via comércio eletrônico, quanto pela compra dos produtos em viagens ao exterior. Tem sido reiteradamente apresen-tado nos veículos de comunicação o fato de que, não apenas os brasi-leiros têm viajado mais ao exterior, como os gastos realizados nestes países tem sido maior, segundo dados do Banco Central.3 A mesma tendência de crescimento se aplica aos valores relativos a compras pela internet, que, entre 2006 e 2010, no Brasil, aumentou cerca de 236%.4

tphone HTC Hero e smartphone Nexus One, disponíveis apenas por meio de importação através do sítio Mercado Livre.

3. MARTELLO, Alexandro. Gastos de brasi-leiros no exterior batem recorde no 1º bimestre, diz BC. G1, Brasília, 23 mar. 2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/noticia/2012/03/gas-tos-de-brasileiros-no-exterior-batem--recorde-no-1-bimestre-diz-bc.html> Acesso em: 08 abr. 2012.

4. AGOSTINI, Renata; MEYER, Carolina. Em Guerra com o consumidor. Exame, São Paulo: Editora Abril, n. 991, 04 mai. 2011, p.39.

Desta forma, com a facilitação do consumo de bens adquiridos diretamente do (ou no) exterior, pode-se perceber que a proble -mática aqui discutida não apenas é atual e já de grandes proporç- ões, como também tende a manter--se progressiva, pelo que uma análise do tema e sugestão para resolução do problema faz-se im-prescindível.

Reportagem publicada no jor-nal Folha de São Paulo5 mostra que algumas transnacionais possuem política de garantia contratual mundial, a exemplo da Apple, onde a apresentação da nota fiscal é pres-cindível e da Hewlett-Packard (HP), que exige a nota fiscal e compro-vante de declaração feito à Receita Federal.

Acrescenta, ainda, a reportagem que outras transnacionais, frente a produtos adquiridos no exterior, limitam a garantia a alguns modelos, desde que estes sejam comercializa-dos no Brasil, a exemplo da Panaso-nic e Samsung. Há ainda empresas, como a Dell e a Sony, que não reco-nheceriam a garantia do produto advindo do estrangeiro, prestando, apenas, os serviços de assistência técnica, à custa do consumidor.

5. SCIARRETTA, Toni. Produtos trazidos do exterior ficam sem garantia no Brasil. Folha de São Paulo. São Paulo, 23 fev. 2011. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/879745--produtos-trazidos-do-exterior-ficam--sem-garantia-no-brasil.shtml> Acesso em 10 jun. 2012.

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3. VULNERABILIDADE DOS CONSUMIDORES NO ÂM-BITO INTERNACIONAL

Sobre a aquisição de produtos advindos do exterior, fundamental se faz abordar a questão também a partir da análise da vulnerabilidade. É cediço que este princípio, que constitui presunção absoluta inserta no CDC, é a justificação e a funda-mentação da existência das regras especiais aplicáveis no âmbito con-sumerista, existentes para proteger a parte mais fraca da relação.6

Inclusive, atualmente, há um consenso universal acerca da vul-nerabilidade do consumidor, não sendo mais questionável esse ponto. A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas já se pronun-ciou neste sentido, na Resolução n. 39/248, publicada em 1985.7

Enquanto faces da vulnerabi-lidade experimentada pelo consu-midor internacional, Geovana Geib destaca: a utilização de marketing agressivo a nível mundial; a falta de continuidade do consumo inter-nacional (limitando-se a situações breves ou pontuais); alto custo para sustentar um litígio no exte-rior; dificuldades linguísticas; falta de informação adequada; falta de garantia pós-venda, entre outras.8

6 MIRAGEM, Bruno. Direito do Consu-midor. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 2008, p.62.

7 ALMEIDA, João Batista de. A Proteção Jurídica do Consumidor. 5. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 25.

8. GEIB, Geovana. A necessidade de regras

É possível afirmar que a agres-sividade do marketing somada à falta ou atraso na comercialização de alguns produtos no Brasil, revela mais um aspecto da vulnerabilida-de, compelindo os consumidores a adquirir o produto no estrangeiro, mesmo com todas as dificuldades potenciais.

Salienta-se, ainda, como atri-buto de algo que seria uma espécie de vulnerabilidade geográfica, o chamado “Lucro Brasil”. Tem sido di-vulgado reiteradamente na impren-sa que a diferença de preço por um mesmo produto vendido no Brasil e no exterior supera demasiadamente qualquer justificativa referente à carga tributária ou encargos sociais. Ou seja, não se trata de “Custo Bra-sil”, mas sim de “Lucro Brasil”, no sentido de inserir uma margem de lucro muito maior quando o produto é vendido no país, especialmente em se tratando de carros, eletrônicos e marcas de luxo. A diferença de preço, neste produtos, pode chegar ultrapassar 100% (cem por cento).9

Este é mais um atributo que deve ser levado em consideração na

específicas de direito internacional pri-vado no contrato de consumo interna-cional eletrônico: principais aspectos quanto ao foro competente e à lei apli-cável. Revista de Direito do Consumi-dor. n. 82. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, abr.-jun.,2012, p.185-188.

9. Constata-se, por exemplo, que um mes-mo tênis no Brasil custa R$ 550,00, ao passo que, nos Estados Unidos, o pre-ço equivale a R$ 250,00. Ou ainda o tablet que tem valor de R$ 2599,00 e R$1350,00, respectivamente (VILELLA, 2011).

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análise da vulnerabilidade do con-sumidor que adquire bens advindos do exterior. Além de ser comum o atraso no lançamento de alguns produtos no Brasil, especialmente os eletrônicos, o consumidor ainda se depara com um preço despropor-cionalmente mais elevado, o que o compele a adquirir o mesmo fora do país.

4. GARANTIA DOS BENS DE CONSUMO ADQUIRIDOS NO EXTERIOR E POSSIBILIDADES NO JUDICIÁRIO BRASILEIRO

A garantia de um produto ofer-tado no mercado, seja esta legal ou contratual, existe como forma de melhorar a sistemática dos vícios redibitórios que, como doutrina An-tonio Herman, se mostra deficiente no regramento do fenômeno do consumo em massa, não podendo o consumidor ser adequadamente tutelado no âmbito do Código Civil.10 Ensina ainda que, pela teoria da qua-lidade, a existência da garantia rela-ciona-se tanto com o cumprimento da finalidade do produto quanto de sua durabilidade. Ou seja, o bem deverá, de logo, ser completamente útil para o que dele legitimamente se espera e não perder tal caracte-rística de forma prematura. Em não

10. BENJAMIN, Antonio Herman de Vascon-cellos e. Teoria da Qualidade. In: BENJA-MIN, Antonio Herman de Vasconcellos e; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Le-onardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.106-108.

sendo, utilizar-se-á do instituto da garantia para sanar o problema, normalmente vícios de qualidade por inadequação.

Entretanto, como já referido, por melhor que seja a proteção da legislação, brasileira ou alieníge-na, a utilização da garantia de um produto adquirido no exterior – ou diretamente do fornecedor estran-geiro via comércio eletrônico – que somente apresente vício quando o consumidor já se encontra em território brasileiro (ou caso o con-sumidor não permaneça no país de aquisição tempo suficiente para sanar o problema), é dificultada pelo fornecedor, estabelecendo que a troca ou reparação deve acontecer na própria loja que efetuou a venda, ou em alguma autorizada do país de aquisição.

Identifica-se aqui, então, duas situações possíveis: a) quando o produto adquirido é de fornecedor estrangeiro que não tem atuação no Brasil; b) quando há atuação no Brasil (seja através de filial ou de outra pessoa jurídica) ou se trate de empresa brasileira com atuação no exterior. Estas hipóteses podem ser verificadas sob duas óticas: a) da utilização da garantia contratual; b) da utilização da garantia legal.

Expostas estas perspectivas, entende-se fundamental não apenas a análise do direito material, mas também, processual, visto que a única forma de garantir efetividade ao disposto na garantia (legal ou contratual) é que, em sendo aciona-do judicialmente, o fornecedor seria

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obrigado a cumprir com o disposto. As transnacionais que, atuando no Brasil, não reconhecem a garantia de produto adquirido no exterior apenas serão forçadas a mudar este entendimento se o Judiciário brasileiro assim passar a decidir reiteradamente.

Salienta-se ainda que, neste tra-balho, se tem por escopo delimitar as possibilidades do consumidor brasileiro obter a satisfação relativa à garantia oferecida no país estran-geiro utilizando-se exclusivamente da jurisdição nacional. Desta forma, abordagens que dependam de juris-dição estrangeira, ainda que apenas para execução, não serão realizadas.

Sobre o tema, Ulrich Wehner salienta que, sendo competente tri-bunal estrangeiro deve-se observar as regras processuais deste Estado. Demandar, então, no próprio país só faz sentido se a sentença favorável puder ser executada no estran-geiro. Para haver exequibilidade, é necessária a homologação pelo Estado onde ocorrerá a execução. O consumidor passa a enfrentar, assim, a incerteza de um processo no estrangeiro, configurando um “salto no escuro”.11

De fato, só tem sentido, haver processo se houver a certeza de que a decisão poderá ser executada. É o chamado princípio da efetividade,

11. WEHNER, Ulrich. Contratos Internacio-nais: proteção processual do consumi-dor, integração econômica e internet. Revista de Direito do Consumidor. n. 38. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr.-jun., 2001, p. 147-148.

sob o qual o Estado deve se abster de julgar se a sentença não pode ser reconhecida onde deva exclusiva-mente produzir efeitos.12

Portanto, esta delimitação tem duas motivações principais. A pri-meira é que seria necessário analisar as regras de Direito Internacional Privado de cada país estrangeiro, para entender as possibilidades do consumidor. A segunda é que o valor da esmagadora maioria dos produtos na situação analisada por este artigo não justificam os custos com a con-tratação de advocacia especializada e custas processuais no exterior. Assim, mesmo que só para executar, no estrangeiro, a sentença brasileira em favor de consumidor brasileiro, tem-se gastos e trabalho que acabam por inviabilizar esta via.13

Desta forma, como referido, o presente artigo só tratará dos casos em que a garantia é de fornecedor que tem atuação no Brasil, seja por filial ou por constituição de nova pessoa jurídica, visto que uma eventual execução dependeria, tão somente, do Poder Judiciário brasileiro.

12. DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil e processo de conheci-mento. v. 1. 13. ed. Salvador: Juspodivm, 2011, p. 140.

13. GEIB, Geovana. A necessidade de regras específicas de direito internacional pri-vado no contrato de consumo interna-cional eletrônico: principais aspectos quanto ao foro competente e à lei apli-cável. Revista de Direito do Consumi-dor. n. 82. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, abr.-jun., 2012, p.196.

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4.1. Delimitação do problema pelo direito internacional privado e processual

Tendo sido explicitado o recorte feito no presente artigo salienta-se que haverá sempre, ao menos, dois ordenamentos jurídicos possivel-mente utilizáveis: o brasileiro e o do país estrangeiro. Cabe, então, às regras do Direito Internacional Processual determinar qual o foro competente e a legislação aplicável ao caso.14

Acerca do foro competente, destaca-se que há situações nas quais existe uma pluralidade de fo-ros concorrentes.15 No caso de bens de consumo adquiridos no exterior, cujo fornecedor tem atuação tam-bém no Brasil, é possível destacar sempre, ao menos, dois foros con-correntes para o conhecimento e julgamento da demanda: o do local de onde adveio o produto e algum foro brasileiro.

A competência internacional concorrente de autoridade judiciá-ria brasileira está disposta no art. 88 do Código de Processo Civil, estando presente sempre que o réu, de qual-quer nacionalidade, tenha domicílio

14. WEHNER, Ulrich. Contratos Internacio-nais: proteção processual do consumi-dor, integração econômica e internet. Revista de Direito do Consumidor. n. 38. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr.-jun., 2001, p.146.

15. DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil e processo de conheci-mento. v. 1. 13. ed. Salvador: Juspodivm, 2011, p. 136.

no Brasil. Tendo o presente trabalho limitado seu objeto aos fornecedo-res que tenham atuação no Brasil, pode-se concluir que sempre haverá competência do Judiciário brasilei-ro, mesmo em relação às pessoas jurídicas estrangeiras que atuem através de filial, sucursal ou agên-cia.16 A competência internacional fixada pelo CPC é fundada em razões ligadas à soberania nacional e à ne-cessidade de se prestar uma tutela jurisdicional efetiva e adequada,17 tendo o STJ decidido reiteradamente que nem mesmo a vontade das par-tes tem o condão de excluir a com-petência internacional concorrente da jurisdição brasileira.18

Nos casos de competência con-corrente ocorre o que se denomina forum shopping, cabendo ao consu-midor escolher onde quer deman-dar. Como já se delimitou que a análise neste trabalho ficará restrita à possibilidade de atuação exclusiva do Judiciário brasileiro, descarta-se a opção de ação no estrangeiro.

16. Assim dispõe o CPC: “Art. 88. É compe-tente a autoridade judiciária brasileira quando: I - o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil; (...) Parágrafo único. Para o fim do disposto no no I, reputa-se do-miciliada no Brasil a pessoa jurídica es-trangeira que aqui tiver agência, filial ou sucursal.”

17. MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIE-RO, Daniel. Código de Processo Civil: comentado artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.89

18. A exemplo: REsp 251.438/RJ. 4ª Tur-ma. Rel. Min. Barros Monteiro. DJ 02.10.2000, p. 173.

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Restando definido o julgamento pela autoridade judiciária brasileira, questiona-se qual seria o critério in-terno de competência para conhecer da causa. Neste particular, não pa-rece haver maiores dúvidas de que o consumidor goza da prerrogativa de escolha do foro: onde este for domiciliado ou no domicílio do réu. Ou, ainda, no foro eleito no contrato, desde que, como dito, a autoria da ação seja do consumidor.19

Tem-se a lição:(...) em razão do Princípio do Maior Interesse (...) os tribunais nacionais aplicam o art. 101, I, do CDC para fixar a compe-tência do foro do domicílio do consumidor para os litígios in-ternacionais. Isto ocorre porque todas as disposições do Código de Defesa do Consumidor são consideradas de ordem pública. Portanto, são utilizadas regras de competência interna para suprir lacunas nas regras de competência internacional, com o intuito de garantir a proteção do consumidor residente no Brasil.20

19. No Conflito de Competência 107.441/SP, julgado em 22.06.2011, decidiu a Segunda Sessão do STJ, à unanimida-de, que “se a autoria do feito pertence ao consumidor, contudo, permite-se a escolha do foro de eleição contratual, considerando que a norma protetiva, erigida em seu benefício, não o obriga quando puder deduzir sem prejuízo a defesa dos seus interesses fora do seu domicílio”.

20. GEIB, Geovana. A necessidade de regras específicas de direito internacional pri-vado no contrato de consumo interna-cional eletrônico: principais aspectos

O anteprojeto do novo Código de Processo Civil,21 em seu art. 22, II, dispõe expressamente neste sentido, estabelecendo a compe-tência internacional para as ações decorrentes de relação de consumo quando o consumidor tiver domicí-lio ou residência no Brasil.

Resumindo o que foi explana-do até agora, pode-se dizer que as regras de Direito Internacional Processual determinam a jurisdição de um Estado para decidir acerca de uma relação jurídica com conexão internacional. Feita esta análise, a jurisdição deste Estado determinará qual o direito material a ser aplica-do, conforme o seu próprio Direito Internacional Privado.22

Neste sentido, o Decreto-Lei n. 4657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB)23, dispõe, em seu art. 9º que “para qualificar e reger as obriga-ções, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”. Desta forma, a interpretação imediata leva à con-clusão de que, nestes casos, aplicar--se-ia a lei do local onde realizada a aquisição do produto.

quanto ao foro competente e à lei apli-cável. Revista de Direito do Consumi-dor. n. 82. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, abr.-jun., 2012, p.206.

21. Anteprojeto atualizado até 14.09.2011 (BRASIL, 2011).

22. WEHNER, Ulrich. Contratos Internacio-nais: proteção processual do consumi-dor, integração econômica e internet. Revista de Direito do Consumidor. n. 38. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr.-jun., 2001, p.147.

23. Até 30.12.2010 denominada Lei de In-trodução ao Código Civil.

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Existem, contudo, dois argu-mentos aptos a modificar este en-tendimento. O primeiro é de análise constitucional. Sendo a proteção do consumidor brasileiro direito fundamental, previsto nos arts. 5º, XXXII e 170 da Constituição Fede-ral, a aplicação do direito protetivo brasileiro nos litígios internacionais seria de ordem imperativa.24

O segundo argumento, de aná-lise infraconstitucional, e mais pragmático, consubstancia-se no fato de que a própria LINDB esta-belece, em seu art. 17,25 que as leis de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil quando ofenderem a ordem pública. Nesta senda, o CDC, em seu art. 1º,26 estabelece que as normas nele contidas possuem o caráter de ordem pública.

Ou seja, se as disposições da legislação estrangeira, bem como as

24. GEIB, Geovana. A necessidade de regras específicas de direito internacional pri-vado no contrato de consumo interna-cional eletrônico: principais aspectos quanto ao foro competente e à lei apli-cável. Revista de Direito do Consumi-dor. n. 82. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, abr.-jun., 2012, p. 203.

25. In verbis: Art. 17. As leis, atos e sen-tenças de outro país, bem como quais-quer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.

26. In verbis: Art. 1° O presente código es-tabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e inte-resse social, nos termos dos arts. 5°, in-ciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias.

manifestações de vontade, contra-riam as normas protetivas insertas no CDC, estas não devem ser utili-zadas na lide em questão. Havendo a proibição do non liquet no direito brasileiro,27 e não sendo aplicável a legislação estrangeira, deve o juiz decidir com base na própria lei brasileira,28 ou seja, no CDC.

Salienta-se que se a aplicação da lei alienígena se mostrar mais bené-fica para o consumidor, certamente esta não ofenderá a ordem pública, muito menos o direito fundamental correlato, devendo ela incidir para o deslinde da questão.29

Desta forma, deve-se sempre reconhecer, ao menos, a incidência da garantia legal ao produto advindo do exterior. Se a legislação estran-geira for mais favorável, utiliza-se esta; se não, aplica-se a brasileira. Frise-se que, diferentemente da garantia contratual, a legal não está

27. Assim dispõe o CPC: Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á apli-car as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.

28. Julgado do STJ que reconhece a aplica-ção da lei brasileira caso não seja possí-vel aplicar a estrangeira: REsp 254544/MG. Terceira Turma. Rel. Min. Eduardo Ribeiro. DJ 14.08.2000 p. 170.

29. Acerca este aspecto, a Proposta de Con-venção Interamericana de Direito Inter-nacional Privado (Cipid VII) sobre a lei aplicável a alguns contratos e relações de consumo, proposta por Cláudia Lima Marques, traz previsão similar, adotan-do a lei do domicílio do consumidor, salvo quando a estrangeira for mais benéfica, sendo possível optar por esta (GEIB, 2012, p. 208).

A garantia dos bens de consumo adquiridos no Exterior 219

adstrita a ser utilizada em deter-minada cidade, estado ou país. Não existe cláusula que limite a validade territorial da garantia legal.

4.2. Utilização da garantia contratual

Examina-se, então, a possi-bilidade de vedação territorial à utilização da garantia contratual. O parágrafo único do art. 50 do CDC estabelece que cabe ao for-necedor determinar a forma, o prazo e o lugar para exercitá-la. Da primeira análise, pode-se concluir que é valida a limitação territorial pelo fornecedor (salvo se a lei es-trangeira não o permitir, quando, por ser mais benéfica, esta seria a utilizada).

Deve-se perceber, contudo, que a garantia contratual, mais das vezes, refere-se à reparação ou substituição do produto. Logo, esta limitação territorial só deve ser ob-servada à medida que o fornecedor não atue naquela localidade. De fato, deve ser entendida não como uma limitação, mas como uma in-formação dos possíveis locais que prestam a assistência técnica para aquele fornecedor. Assim, com base na vedação às cláusulas abusivas, entende-se violação à boa-fé o ato de, havendo em dada localidade assistência técnica daquele forne-cedor, não se proceder à efetivi - dade da garantia contratual sim-plesmente porque aquele local não constava expressamente no termo. O lugar para exercício enten-de-se como meramente informati-

vo, devendo ser possível efetivá-lo onde quer que haja um represen-tante do fornecedor incumbido para tal fim.

Suponha-se que um consumidor comprou um produto na Flórida, EUA, de uma empresa transnacio-nal com atuação no Brasil, vindo a apresentar vício a sua aquisição. Este, domiciliado em Guanambi--BA, lá demanda contra a empresa, pautado pelo seu termo contratual, que limita a utilização àquele estado americano. Em Salvador-BA existe uma assistência técnica daquele fornecedor. O que o consumidor não pode exigir é que o exercício da ga-rantia se dê em seu domicílio, visto que lá não há qualquer represen-tante do fornecedor incumbido para tal mister. Entretanto, em havendo em Salvador, ainda que não conste no termo, deve o juiz reconhecer a possibilidade de exercitá-lo nesta capital.

Pode-se concluir, então, que tanto a garantia contratual quanto a legal atuam de forma semelhante, no que concerne à limitação territo-rial e em se tratando de reparação ou substituição do produto, visto que a legal, embora não seja limitada geograficamente, também só poderá ser exercida onde houver repre-sentante do fornecedor habilitado para tal finalidade. Se a utilização do termo (legal ou contratual) se referir à restituição da quantia paga ou abatimento proporcional do preço, estes poderão ser exercitados em qualquer localidade, desde que competente para a causa.

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4.3. Legitimidade passiva

Uma das questões mais impor-tantes na resolução dos problemas relativos à garantia de bens advin-dos do exterior refere-se à legiti-midade passiva. Afinal, se for cons-tatado que o consumidor só pode demandar a pessoa jurídica estran-geira, pouco adiantaria acioná-lo no Brasil, utilizando os tribunais daqui a lei brasileira. Assim, este fato seria um grande empecilho na satisfação da pretensão do consumidor de ser ressarcido, ter o produto trocado, ou receber o abatimento proporcional do preço.

Se a pessoa jurídica estrangeira atua no Brasil por meio de agência, filial ou sucursal, entende-se não haver maiores problemas, visto que será a mesma pessoa jurídica, devendo ser, inegavelmente, reco-nhecida a legitimidade passiva.

A legitimidade para figurar como acionado refere-se ao elemen-to subjetivo passivo da demanda; é necessário que este esteja em situ-ação jurídica que autorize a partici-pação no processo em que se discuta dada relação de direito material.30 Pode-se afirmar, portanto, que toda legitimidade baseia-se em regras de direito material. Ou seja, se o direito material reconhece a pertinência subjetiva daquele fornecedor na

30. DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil e processo de conheci-mento. v. 1. 13. ed. Salvador: Juspodivm, 2011, p. 210.

demanda, reputa-se verificada a legitimidade passiva.

A dificuldade para o consu-midor, e que configura a ampla maioria dos casos, aparece quando o fornecedor estrangeiro constitui uma pessoa jurídica brasileira para desenvolver o negócio no país. Neste caso, a preliminar básica a ser levantada pela parte ré seria de ilegitimidade passiva.

Esta tese, no entanto, não deve prosperar, pelos motivos que serão expostos. É fato que a atuação do fornecedor estrangeiro no Brasil, embora se faça por outra pessoa jurídica, forma um todo indissoci-ável, especialmente pela ótica do consumidor. Destaca-se, então, a proteção da confiança e da boa-fé.

A proteção da confiança está relacionada ao resguardo das expec-tativas legítimas que nascem no con-tratante, que confia nas obrigações assumidas pela outra parte. Busca--se atingir a justiça no interior do negócio celebrado entre as partes.31 No direito do consumidor, a confian-ça tem sido preterida pelo contrato de massa, que se transforma em um “campo de batalha de formas e cláusulas”.32 Atua a proteção da con-

31. D’AZEVEDO, Ana Rispoli. Os novos de-veres dos contratantes na perspectiva do Código Civil de 2002 e do Código de Defesa do Consumidor. In: MARQUES, Cláudia Lima (Coord.). A nova crise do contrato: estudos sobre a Nova Teoria Contratual. São Paulo: Revista dos Tri-bunais, 2007, p. 293-294.

32. MARQUES, Cláudia Lima. A chamada nova crise do contrato e o modelo de direito privado brasileiro: crise de con-

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fiança produzindo deveres jurídicos “tendo em vista a necessidade de satisfação de legítimas expectativas criadas por uma conduta”.33

É inegável o entendimento de que o consumidor, ao adquirir o pro-duto de um fornecedor de atuação internacional, deposita a confiança neste, pouco perquirindo acerca das relações societárias entre a pessoa jurídica que atua no Brasil e a do es-trangeiro. Guarda expectativa tanto sob o aspecto da qualidade do pro-duto, quanto em relação à garantia pelos possíveis vícios. O fornecedor que se furta de cumprir esta legítima expectativa em nada contribui para a proteção da confiança. Ao contrá-rio, a devassa.

Como corolário da boa-fé con-tratual – cláusula-geral esta ine-rente a todas as relações cíveis, independente do estado nacional –, Rizzatto Nunes aponta o dever de cooperação, que “nada mais é do que sempre colaborar para que o contrato atinja o fim para o qual foi firmado”. Viola este dever, e, portanto, a boa-fé objetiva, ações de uma das partes que inviabili-zem a atuação da outra,34 impondo

fiança ou de crescimento do contrato? In: MARQUES, Cláudia Lima (Coord.). A nova crise do contrato: estudos sobre a Nova Teoria Contratual. São Paulo: Re-vista dos Tribunais, 2007, p. 31-32.

33. BAGGIO, Andreza Cristina. O direito do Consumidor e a Teoria da Confiança. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 87.

34. NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 612.

dificuldades desarrazoadas para exercício do direito.

É de se concluir como desar-razoada a busca covarde do forne-cedor por refúgio em um aspecto técnico (a existência de pessoas jurídicas distintas), para se furtar a exercitar a legítima expectativa do consumidor quanto à qualidade do produto.

Aborda-se, também, a teoria da aparência, já consagrada nos tribu-nais pátrios e fundada no art. 34 do CDC.35 A citada teoria, no direito do consumidor, é utilizada como forma de preservar a segurança jurídica e resguardar a boa-fé, consubstan-ciada na confiança depositada na aparência de quem parece ser o fornecedor.

Neste sentido, se uma pessoa jurídica, à observação do consumi-dor, acaba por se confundindo com outra pessoa jurídica, induzindo o consumidor a pensar tratar-se de uma só, opera a teoria da aparência, devendo aquela responder pelos atos desta e vice-versa.

Julgados do STJ reconhecem pa-cificamente a legitimidade passiva de empresas que respondem por atos de outras pessoas jurídicas, com base na teoria da aparência.36

35. Art. 34. O fornecedor do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou repre-sentantes autônomos.

36. A exemplo, os seguintes julgados: REsp 879113/DF. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJe 11.09.2009 p. 214.; REsp 1077911/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJe 14.10.2011; e REsp 369971/MG. Terceira Turma. Rel.

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Com destaque, o caso em que a em-presa de sítios virtuais Yahoo! Inc. (pessoa jurídica americana) prati-cou um ato lesivo a uma consumi-dora e se reconheceu a legitimidade passiva da Yahoo Brasil (pessoa jurídica brasileira):

RECURSO ESPECIAL. RESPON-SABILIDADE CIVIL. ANTECIPA-ÇÃO DE TUTELA. RETIRADA DE PÁGINA DA REDE MUNDIAL DE COMPUTADORES. CONTE-ÚDO OFENSIVO À HONRA E À IMAGEM. ALEGADA RESPON-SABILIDADE DA SOCIEDADE CONTROLADORA, DE ORIGEM ESTRANGEIRA. POSSIBILIDA-DE DA ORDEM SER CUMPRIDA PELA EMPRESA NACIONAL.

1. A matéria relativa a não apli-cação do Código de Defesa do Consumidor à espécie não foi objeto de decisão pelo aresto recorrido, ressentindo-se o re-curso especial, no particular, do necessário prequestionamento. Incidência da súmula 211/STJ.

2. Se empresa brasileira aufere diversos benefícios quando se apresenta ao mercado de forma tão semelhante a sua controla-dora americana, deve também, responder pelos riscos de tal conduta.

3. Recurso especial não conhe-cido.

(REsp 1021987/RN. Quarta Turma. Rel. Min. Fernando Gon-çalves. DJe 09/02/2009 p. 331).

Min. Castro Filho. DJ 10/02/2004 p. 247

Com efeito, leciona Arruda Al-vim que a responsabilização desta outra pessoa jurídica, aplicando-se a teoria da aparência, se justifica pela “apropriação” que é realizada ao apor seu nome, marca ou signo distintivo e aparecer como o mesmo fornecedor frente ao consumidor.37

Assim, ainda que pelo caminho da proteção da confiança contratual não se pudesse concluir pela legiti-midade passiva da pessoa jurídica brasileira em relação a produto adquirido no exterior, este ponto torna-se inquestionável – e já paci-ficado pelo STJ – quando analisado sob a ótica da teoria da aparência.

Pode-se perceber, portanto, que o direito material brasileiro, ao consagrar a boa-fé e demais insti-tutos correlatos, especialmente a teoria da aparência, coloca a pessoa jurídica brasileira como legitimada passiva para ser responsabilizada no lugar da pessoa jurídica estran-geira, reconhecendo se tratar de um só fornecedor.

4.4. Análise da questão pelos tribunais

Como apanhado de tudo quanto exposto até o momento, apresenta--se um julgado paradigma, verdadei-ro leading case quando o assunto é a incidência de normas consumeris-tas a produtos advindos do exterior. Trata-se do “Caso Panasonic”:

37. ALVIM, Arruda et al. Código do Con-sumidor Comentado. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 97-98.

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DIREITO DO CONSUMIDOR. FILMADORA ADQUIRIDA NO EXTERIOR. DEFEITO DA MER-CADORIA. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA NACIONAL DA MESMA MARCA ("PANASONIC"). ECONOMIA GLOBALIZADA. PROPAGANDA. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR. PECULIARIDA-DES DA ESPÉCIE. SITUAÇÕES A PONDERAR NOS CASOS CON-CRETOS. NULIDADE DO ACÓR-DÃO ESTADUAL REJEITADA, PORQUE SUFICIENTEMENTE FUNDAMENTADO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO NO MÉRITO, POR MAIORIA.

I – Se a economia globalizada não mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre con-corrência, imprescindível que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca do equilí-brio que deve reger as relações jurídicas, dimensionando-se, inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do comér-cio e dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas, multina-cionais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico da informática e no forte mercado consumidor que representa o nosso País.

II – O mercado consumidor, não há como negar, vê-se hoje "bom-bardeado" diuturnamente por intensa e hábil propaganda, a induzir a aquisição de produtos, notadamente os sofisticados de procedência estrangeira, levan-do em linha de conta diversos

fatores, dentre os quais, e com relevo, a respeitabilidade da marca.

III – Se empresas nacionais se beneficiam de marcas mundial-mente conhecidas, incumbe--lhes responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as consequências negativas dos negócios envol-vendo objetos defeituosos.

IV – Impõe-se, no entanto, nos casos concretos, ponderar as situações existentes.

V – Rejeita-se a nulidade arguida quando sem lastro na lei ou nos autos.

(REsp 63981 / SP. Rel. para o acórdão Min. Sálvio de Figueire-do Teixeira. DJ 20.11.2000, p.296

Embora não se tenha feito re-missão direta à teoria da aparência, se reconheceu que, considerando que as pessoas jurídicas nacionais se beneficiam do prestígio inter-nacional da marca, devem também arcar com os ônus da atuação a nível mundial. Este entendimento tem sido seguido pelos tribunais do país, reconhecendo a legitimidade passiva da pessoa jurídica brasileira que ostenta o nome e a marca do fornecedor estrangeiro e aplicando o Código de Defesa do Consumidor.38

38. Confira-se: Agravo de instrumento n. 0161445-81.2010.8.26.0000. TJ/SP. 23ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Rizzatto Nunes. Data do julgamento: 05.05.2010; Recurso Cível Nº 710031 45455. TJ/RS. Primeira Turma Recursal

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A tese é também compartilhada por órgãos de proteção do consumidor, a exemplo da Fundação Procon de São Paulo e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC.39

Salienta-se, ainda, que é des-necessário que o consumidor prove que declarou o produto à autoridade fazendária, pois, conforme decisão no “caso Pa-nasonic”, “as relações com o fisco não se confundem com a relação de consumo”. Também se torna irrelevante o fato do produto não ser comercializado no Brasil. Reconhecendo-se a legitimidade passiva e a aplicação do CDC (ou da lei estrangeira mais benéfica), passa-se a adotar a responsabili-dade objetiva pelo vício. O caso deve ser tratado pelo § 1º do art. 18º do CDC,40 e, em último caso, pelo § 4º do referido artigo.41

Cível. Relator: Ricardo Torres Hermann, Data do julgamento: 15/09/2011; e Apelação Cível n. 1104062008. TJ/SP. 35ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Hamid Charaf Bdine Júnior. Data do jul-gamento: 07. 04.2008.

39. Conferir: <http://www.procon.sp.gov. br/texto.asp?id=3354> e <http://www.idec.org.br/consultas/dicas-e-direitos/garantia-de-produtos-importados> Acesso em 25 jul. 2012.

40. Assim dispõe: “§ 1° Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alter-nativamente e à sua escolha: I – a subs-tituição do produto por outro da mes-ma espécie, em perfeitas condições de uso; II – a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atuali-zada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III – o abatimento proporcio-nal do preço.”

41. Prescreve-se: “§ 4° Tendo o consumidor optado pela alternativa do inciso I do

Acrescenta-se, também, que o mesmo raciocínio vale para o caso de uma empresa brasileira, que possui atuação internacional, tenha produto seu adquirido por consumi-dor brasileiro no exterior, embora esta seja uma hipótese difícil de se verificar na prática.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em face do que foi exposto, pode-se afirmar que a intensifica-ção do fenômeno da globalização, bem como a evolução tecnológica, levou a sociedade a um patamar de consumo a nível mundial. Nesta senda, a vulnerabilidade do con-sumidor brasileiro é evidenciada sob vários ângulos, especialmente como alvo de marketing agressivo combinado com a falta ou atraso na comercialização de alguns pro-dutos no Brasil.

Embora o mercado globalizado seja um fato, as legislações ainda demonstram atraso na tutela efetiva do consumidor. Empresas trans-nacionais que atuam no Brasil se esquivam de assumir a responsabi-lidade por vícios de seus produtos se, sendo advindos do exterior, o consumidor busca no próprio país o seu direito à reparação pelos vícios que se manifestem.

§ 1° deste artigo, e não sendo possível a substituição do bem, poderá haver substituição por outro de espécie, mar-ca ou modelo diversos, mediante com-plementação ou restituição de eventual diferença de preço, sem prejuízo do dis-posto nos incisos II e III do § 1° deste artigo.”

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Analisando as regras do Direito Internacional Processual e Privado, tem-se que, quando o fornecedor estrangeiro tem atuação neste país, haverá, sempre, competência inter-nacional concorrente, podendo o consumidor acionar, em seu próprio domicílio, o representante brasilei-ro daquele fornecedor, de forma a obter a qualidade que se espera do produto.

O direito material a ser utilizado na solução do caso é, conforme uma interpretação conjunta da LINDB com o CDC, aquele que for mais vantajoso para o consumidor. Existe sempre, portanto, garantia legal a proteger a parte vulnerável. De igual forma, é executável a garantia con-tratual fornecida no estrangeiro, em qualquer lugar que haja assistência técnica do fornecedor.

A legitimidade passiva das pessoas jurídicas brasileiras em ações de responsabilidade civil relativas a produtos adquiridos no exterior mostra-se evidente. Não apenas pela aplicação da teoria da confiança, mas, principalmente, pela incidência da teoria da aparência. Se a pessoa jurídica brasileira se utiliza do nome, do prestígio, da marca da pessoa estrangeira, deve responder pelos atos desta. Neste sentido, há leading case do STJ, que tem sido seguido pelos tribunais estaduais.

Reconhece-se, por fim, que é irrelevante para a solução da ques-tão ter o consumidor declarado o produto à autoridade fazendária, ou, ainda, o fato do fornecedor não comercializar aquele produto no Brasil.

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