A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica · em um jogo que não diz respeito...

176

Transcript of A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica · em um jogo que não diz respeito...

A FUNDAÇÃO DA NORMA

para além da racionalidade histórica

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Chanceler: Dom Dadeus Grings

Reitor:

Joaquim Clotet

Vice-Reitor: Evilázio Teixeira

Conselho Editorial:

Antônio Carlos Hohlfeldt Elaine Turk Faria

Gilberto Keller de Andrade Helenita Rosa Franco

Jaderson Costa da Costa Jane Rita Caetano da Silveira Jerônimo Carlos Santos Braga

Jorge Campos da Costa Jorge Luis Nicolas Audy (Presidente)

José Antônio Poli de Figueiredo Jussara Maria Rosa Mendes

Lauro Kopper Filho Maria Eunice Moreira

Maria Lúcia Tiellet Nunes Marília Costa Morosini

Ney Laert Vilar Calazans René Ernaini Gertz

Ricardo Timm de Souza Ruth Maria Chittó Gauer

EDIPUCRS: Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor Jorge Campos da Costa – Editor-chefe

Ruth M. Chittó Gauer

A FUNDAÇÃO DA NORMA

para além da racionalidade histórica

Porto Alegre 2009

© EDIPUCRS, 2009

Capa: Vinícius de Almeida Xavier

Ilustração da capa: Universidade de Coimbra. Arquivo. Diploma da Fundação da

Universidade, 1290.

Diagramação: Stephanie Schmidt Skuratowski

Revisão linguística: do autor

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS

Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 33 Caixa Postal 1429

90619-900 Porto Alegre, RS - BRASIL Fone/Fax: (51) 3320-3711 E-mail: [email protected] http://www.edipucrs.com.br

G267f Gauer, Ruth Maria Chittó

A fundação da norma : para além da racionalidade histórica [recurso eletrônico] / Ruth M. Chittó Gauer. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2009.

175 p. ISBN: 978-85-7430-926-2 (On-line) Publicação Eletrônica Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de Acesso: <http://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs/>

1. Direito. 2. Filosofia do Direito. 3. Normas Jurídicas.

4. Lévi-Strauss, Claude – Crítica e Interpretação. I. Título.

CDD 340.1

Ruth M. Chittó Gauer

[email protected]

Doutora em História Moderna e Contemporânea pela Universidade de Coimbra, Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL BRASIL.

Para meus filhos Gabriel, Alexandre e Rosane e para Viviane e Vanessa, minhas netas.

AGRADECIMENTOS

A ajuda recebida para a escrita deste livro aconteceu de forma casual ela

chegou por meio de muitas pessoas em momentos diversos, de encontros e

debates, assim como de atividades acadêmicas desenvolvidas por conta de

disciplinas que ministrei em Programas de Pós-Graduação da PUCRS, nos quais

a contribuição dos alunos foi inestimável. Quero aqui mencionar, com ênfase, a

importância de meus colegas do Programa de Pós-Graduação em Ciências

Criminais por terem fornecido um terreno exemplar e generoso, o qual ajudou

enormemente o diálogo com o direito, a psiquiatria e a filosofia. O registro de

gratidão certamente não dimensiona a importância que esse grupo de

pesquisadores e amigos representa para minha vida acadêmica. A todos devo o

entendimento de que a ansiedade da incompletude acompanha a vontade de

compreender a complexidade do ato de escrever.

O projeto deste livro surgiu de reflexões iniciadas nos finais dos anos

oitenta, início dos noventa, durante o período em que escrevi minha tese, no

Instituto de História e Teoria das Ideias da Universidade de Coimbra, meu “lar”

acadêmico em Portugal. Tenho a satisfação particular em reconhecer a influência

crucial de ideias vindas de longas conversas e debates acadêmicos na outra

margem do Atlântico, especialmente com os Professores Doutores Fernando

Catroga e Rui Cunha Vide Martins. O mais relevante, no entanto, fruto de uma

longa convivência, foi o de terem-me proporcionado a condição para perceber que

a erudição deve receber o tempero do estilo.

SUMÁRIO

I A norma totalizadora frente à diferença ..................................................... 9 II A fundação da norma: a metáfora sexual e a condição humana ............ 16 III A sedução da norma: fato social total ...................................................... 28 IV Os deslocamentos da norma: reinvenção de termos .............................. 36 V A impessoalidade funda a categoria do indivíduo e redimensiona a norma ................................................................................................................... 42 VI A crise do racionalismo e o retorno ao mito: cumplicidade com a psicanálise ........................................................................................................... 51 VII Crítica à razão totalizadora: um exemplo de época ................................. 60 VIII A racionalidade moderna frente à diferença: os pioneiros da etnopsiquiatra do Brasil ..................................................................................... 65 IX Da diferença perigosa ao perigo da igualdade totalizadora .................... 84 X A fixidez da norma frente ao fluxo contemporâneo ................................. 99 XI O fundamento do sistema de comunicação: a crença como norma .... 114 XII A sedução da objetividade: natureza & cultura ..................................... 129 XIII A Ilusão Totalizadora e a Violência da Fragmentação ........................... 138 XIV Norma, ciência e autenticidade ............................................................... 148 XV Juridicidade, violência, mito e memória ................................................. 154 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 169

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 9

I A norma totalizadora frente à diferença

Lévi-Strauss articulou várias técnicas oriundas da ciência moderna para

demarcar o limite entre natureza e cultura como fundamento de suas

investigações sobre as relações sociais. Buscou compreender o obscuro, o não

aparente na aparência de uma “realidade” que se manifesta como significante de

toda ordem social. A interpretação decorrente desse esforço pode ser

denominada como uma espécie de jogo abstrato que se relaciona com a

“realidade”, pois se articula com oposições binárias ligadas a estruturas mentais

que revelam os processos cerebrais inerentes à lógica racional. Essa lógica é

percebida não apenas quando se manifesta por meio da racionalidade científica,

mas também quando analisamos os mitos e os ritos.

O estruturalismo inaugurado pela escola sociológica francesa tem como

representante mais conhecido Lévi-Strauss e propõe recuperar os processos que

estavam latentes entre corpo e espírito: reconciliar o paradoxo significou afastar-

se de Descartes e de seu dualismo, sem negar a racionalidade e a posição que o

autor tomou ao tratar o fato social como coisa. Não se pode desenvolver uma

análise satisfatória do estruturalismo sem levar em consideração que não apenas

a atividade intelectual é importante para uma interpretação da sociedade, mas

também a prática como um plano da percepção do sensível. Desse modo, Lévi-

Strauss pôs fim ao divórcio entre inteligibilidade e sensibilidade, conciliando, de

forma harmônica, a interminável busca de sentido do homem e o mundo

construído por ele: um mundo configurado por formas, cores, sabores, texturas,

odores, sentidos, sendo continuamente reinterpretado. A negação da natureza

pode ser pensada como a inesgotável significação que torna sua presença uma

totalidade material representificada na linguagem e demarcada, em certo sentido,

em um jogo que não diz respeito ao confronto com o passado, como tradição

histórica, mas a um desafio crítico relacionado ao campo da história e das

ciências sociais.

10 Ruth M. Chittó Gauer

Aceitando, com Merleau-Ponty,1

Na análise das estruturas elementares de parentesco, Lévi-Strauss abre a

possibilidade de se pensar a fundação da norma quando busca não mais o

universal de sobrevôo de um método estritamente objetivo, mas um universal

lateral, cuja aquisição é possível por meio da experiência etnológica, incessante

prova de si pelo outro e do outro por si. Essa experiência alargada referida pelo

autor

que, em antropologia, a experiência

equivale a nossa inserção como sujeitos sociais em um todo cuja síntese já está

feita e é laboriosamente procurada por nossa inteligência, pois vivemos na

unidade de uma só vida, é necessário, então, reconhecer-se que a diferença que

configura esse pensamento é circunscrita pela comprovação da ausência de

totalidade da racionalidade. Poder-se-ia dizer que há muitas lições a se tirar desta

posição do autor; no entanto, a síntese à que ele se refere somos nós, o aparelho

de nosso ser social, que pode ser desfeito e refeito da mesma forma que

podemos aprender a falar outras línguas.

2

1 MERLEAU-PONTY, Maurice. De Mauss à Claude Lévi-Strauss, Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1975, p. 383-396.

é construída por um sistema de referência que inclui todas as diferenças.

Tais diferenças não se constituem necessariamente em outros, trata-se de

aprender a ver o que é nosso como se fôssemos estrangeiros, e como se fosse

nosso o que é estrangeiro. Sob esse aspecto é possível marcar a distância entre

Merleau-Ponty e Foucault. Para o primeiro, a etnologia levava ao alargamento da

racionalidade porque desembocava na ontologia. Com efeito, superando a

2 MERLEAU-PONTY, op. cit., p. 363-365. A metafísica (e a metafísica nas ciências humanas) emerge quando se põe o problema da alteridade. No entanto, ao contrário do pensamento francês contemporâneo, que é herdeiro de uma problemática nitidamente merleaupontyana, a questão do Outro e do Mesmo, da diferença e da identidade, levam a uma interrogação radical da racionalidade estreita apresentada pelo saber ocidental. Para Merleau-Ponty, a antropologia, tomando a alteridade como objeto, fornece à filosofia um instrumento para o alargamento da razão, para a convivência dos incompatíveis, para um universal constituído por relações de complementaridade. Sabemos que, contrariamente a essa tentativa, o pensamento francês contemporâneo exacerbou a alteridade, rumou para as diferenças absolutas, cortes e rupturas que dominam as práticas e teorias humanas, reagindo contra um certo hegelianismo presente em Merleau-Ponty, e usando como arma o elogio da esquizofrenia derivada do mundo esquizofrênico. No ensaio Em toda e em nenhuma parte, Merleau-Ponty se refere à China vista em uma fotografia e à China vivida pelos Chineses – a primeira é exótica, pitoresca, distante, porque diferente; a segunda é uma outra maneira de alcançar uma relação com o ser, um projeto social e político que também nos diz respeito e por intermédio do qual nos comunicamos com o que é diferente de nós e que, conosco, forma a unidade de uma “universalidade oblíqua”. A abertura de Les Mots e les Choses mantém a China vista em sua distância fotográfica: a enciclopédia borgiana, rompendo o que é familiar ao nosso pensamento, determina a impossibilidade definitiva de alcançar o outro.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 11

dicotomia sujeito-objeto, a estrutura revelada pelo etnólogo e generalizada pelas

outras ciências deixava claro que não há dados nem essências (pontos fixos e

completos a serem marcados e explicitados), mas que o real (vínculo sujeito-

objeto) se configura em um processo contínuo de reestruturação, contendo em si

a possibilidade de transformação e um devir apenas sentido, isto é, uma história.

Na busca pela compreensão da verdade, os modernos3 tentaram impor a

violência da visão totalitária construída com a precisão da ciência. Nesta visão

surge a lei, no sentido dado pelo direito natural moderno, que englobou a norma

e, para além desta, o fato e o valor. Fato, valor e a norma passam a ser

compreendidos como lei no pensamento iluminista. No entanto, na nova visão de

mundo que os ocidentais ajudaram a consolidar como força dominante4 e que,

conforme Bergson, “desta forma possibilitou que o pensamento moderno se

firmasse em larga medida, como diferença”, ainda, segundo ele, “deve então

reconhecer-se que a diferença que configura esse pensamento está circunscrita

pela comprovação de uma “nova verdade”,5

3 BAUMER, Franklin L Baumer, O Pensamento Europeu Moderno, v. I, Vila Nova de Gaia, Edições 70, 1990, p. 39.

precisamente a que é ditada pela

4 BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno, v. I, Vila Nova de Gaia, Edições 70, 1990, p. 39; Maurice Merleau-Ponty, Elogio da Filosofia, p. 38. O pensamento ocidental tem-se caracterizado por desvalorizar ontologicamente a imagem e psicologicamente a função da imaginação. Em muitos momentos a imaginação é vista como responsável por erros e falsidades. Bergson, ao abrir novas dimensões para um continuun da consciência, ensaia uma ruptura, mas esta, segundo Gilbert Durand (As Estruturas Antropológicas do Imaginário, São Paulo, Martins Fontes, 1997), não se estabelece, pois ele ainda reduz a imagem à memória, uma espécie de contador da existência, que funciona mal no abandono do sonho, mas que volta a organizar-se pela atenção perceptiva da vida. Tanto a tendência de miniaturização da imagem quanto a recordação dela comentem o erro de “coisificar” a imagem e seu dinamismo, alienando a sua função principal que é conhecer, mais do que ser. Durand acredita que, em Bergson, a imagem sempre aparece como sombra do objeto, ou ainda como um objeto fantasma, sem consequências. Sendo assim, os objetos imaginários sempre foram tomados como duvidosos, como fomentadores do erro. A desvalorização da imagem não corresponde, de modo algum, ao papel que ela desempenha no campo das motivações culturais. As teorias que falam sobre a imagem, para Durand, destroem-na, pois são uma teoria da imaginação sem imagens. 5 BERGSON, Henri, Matéria e Memória, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 290. No entanto, é preciso lembrar que Bergson postulou a existência de uma misteriosa intuição e assim permitiu transferir o espírito ao coração das coisas a fim de fundar a sua unidade. Para Arthur Miller, Bergson convidou todo mundo a transpor o objetivismo e o tédio do reino enigmático, o ‘balanço vital’. Eis o motivo que levou Miller a afirmar que o autor foi o filósofo dos artistas do início do século XX. No entanto, a gênese traçada pelas obras de Bergson revela que “é a nossa própria história que contamos a nós mesmos, um mito (grifo nosso), natural através do qual exprimimos o nosso acordo com todas as formas de ser. Não somos a pedra mas ela entra na nossa vida, se mexe, desenvolve seu íntimo, se revela a si própria através de nós. O que julgamos ser coincidência é coexistência” (Intuitions de Génie: images et crétivité dans les sciences et les arts, Paris, Flammarion, 1996, pp. 369-370).

12 Ruth M. Chittó Gauer

ciência. Isso que significa que os cientistas dessa época, ao tentarem

compreender os fenômenos cósmicos desvinculando-os da crença religiosa, não

impediram que se sacralizasse uma nova crença, justamente a crença na

“verdade” científica. Compõe a verdade científica o conjunto de leis elaborado

pelos modernos e contemporâneos, com a função primordial de normatizar as

sociedades. Há nesta racionalização a pretensão de eliminar a fé, o mito e as

crenças em todos os eventos que não pudessem ser explicados pela

racionalidade científica.

No campo das humanidades, a problemática da comprovação científica se

fez presente a partir do século XIX, criando muitos espaços de debate. O mundo

acadêmico caracterizou de diversas formas as diferenças entre o que se

convencionou chamar de humanidades e de ciências humanas. Partimos da

premissa, ainda que para fins de melhor compreensão, de que a diferença entre

humanidades e ciências humanas é complexa. O enfoque da diferença é,

portanto, apenas visto como uma questão de especificidade. Ao corpus antigo,

que circunscreve as humanidades desde os gregos e que foi revigorado na

Renascença, corresponde, grosso modo, o que denomino humanidades. O papel

pedagógico dessa concepção estruturou a formação cultural no Ocidente,

juntamente com uma visão fundamentalista. Acreditava-se que o conhecimento

produzido pelos clássicos construiria um “novo” homem.

As ciências humanas datam do século XIX. Mesmo no período iluminista,

não se descolaram do conhecimento antigo, no entanto nascem com forte vínculo

com a “realidade”, que permite a sua “evolução”. É fundamental lembrar que os

critérios epistemológicos das ciências humanas variam muito. A ideia de que as

humanidades trariam lições de vida, tal como pensam muitos historiadores e

pedagogos, pode se constituir em um problema. Há que se pensar em incluir

tanto as disciplinas voltadas ao conhecimento quanto as artes, a literatura e

outras. A ideia de que nessas disciplinas se modifica o sujeito, no ato de

conhecer, constitui-se como o traço mais visível nas humanidades, e também se

constata nas ciências humanas. As dicotomias criadas tanto pelos adeptos do

empirismo como pelos da metafísica não salvaram o homem de ser mutilado,

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 13

dando margem ao inumano. Para Merleau-Ponty6

a) Durkheim, quando tratou os fenômenos sociais como coisa;

, a metafísica nas ciências

humanas emerge quando se coloca o problema da alteridade. A antropologia,

tomando a alteridade como objeto, fornece à filosofia um instrumento para o

alargamento da razão, para a convivência dos incompatíveis, para um universal

constituído por relações de complementaridade. A divisão tradicional entre as

ciências humanas, empírico-formais e exatas, passou a sofrer vários abalos. A

teoria da relatividade e a física, desde os finais do século XIX, alteraram tanto a

posição do observado quanto a do observador, diminuindo, assim, a distância

entre as ciências humanas e algumas outras ciências. Podemos citar quatro

autores que consideramos exemplos emblemáticos e contundentes desse fato:

b) Freud, ao tentar chegar às condições físico-químicas da psique;

c) Lévi-Strauss, formalizando as relações sociais mediante o uso da teoria

dos conjuntos;

d) Foucault, deslocando a análise do macro para o micro; logo, deslocando

simultaneamente o lugar do observador e do objeto a ser observado.

Essas experiências se constituíram em grande sucesso. Certamente os

resultados das interpretações dos autores acima citados revelaram-se mais

importantes do que a quebra de normas científicas que permitiu a ampliação da

análise. O esforço em preservar as fronteiras do conhecimento é um dos grandes

problemas enfrentados pelas Universidades quando buscam a inovação. A base

do pensamento das pesquisas conhecidas como “de ponta” reside no fato de que

a linguagem técnica de uma área permite a ampliação de outra área. Esse

exemplo pode ser constatado historicamente. Para tanto, basta pensarmos no

século XVII, no qual se construiu a matriz das atuais ciências denominadas

“exatas” ou “duras”. A geometria alcançou o papel de fornecedor de paradigmas

para todo o conhecimento que se pretendesse científico. Nos finais do século XIX,

a biologia passou a explicar, para alguns darwinistas, como Tylor, Spencer e

Webb, que a sociedade evoluía em fases sucessivas, ou seja, a história das

sociedades também estava sujeita às leis da natureza, tendendo a seguir linhas

6 MERLEAU-PONTY, Maurice. De Mauss à Claude Lévi-Strauss. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975. P. 368

14 Ruth M. Chittó Gauer

de desenvolvimento semelhantes, independentemente da localização espaço-

temporal. Logo, necessariamente, a sociedade passaria da selvageria à barbárie,

e, enfim, à civilização. Há, no entanto, que se ter presente que as linguagens –

palavras, conceitos – não têm transparência suficiente para expressar o próprio

ato criativo; portanto, a arte é imprescindível.

No século XX, os linguistas, no apogeu do estruturalismo, incluíram o rigor

das demais ciências. A importância do estruturalismo reside na nova possibilidade

que oferece: a linguagem de uma área permite revolucionar outras áreas. Ao lado

desse enfoque a antropologia, ao transmitir a preocupação com as significações e

com a maneira como poderiam ser vistas pelos diferentes agentes sociais, abriu a

possibilidade de revolucionar a percepção das relações humanas. Os exemplos

nos levam a pensar que a possibilidade de inovação está associada à abertura de

espaços experimentais para que se testem linguagens fora de seus lugares de

origem, buscando, desse modo, o afrouxamento do método e, assim, a ampliação

das perspectivas de surgimento de novas hipóteses – o ato criativo.

Um dos exemplos mais significativos da utilização de conceitos de

diferentes campos de saber aplicados a um saber específico pode ser encontrado

na obra de Marcel Mauss. Na visão de Mauss7, o fato social não é uma

regularidade compacta, mas um sistema eficaz de signos ou uma rede de valores

simbólicos que se insere no individual mais profundo. Contudo, a regulação

pensada como norma que circunscreve o indivíduo não o suprime. O “verdadeiro”,

escreve o autor, não é a prece nem o direito, mas o homem como cimento afetivo.

Esse homem pode ser “apreendido” pela palavra – a norma, a negação, o Não, é

expresso pela palavra. A análise de Merleau-Ponty8

7 MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, v. I, São Paulo, E.P.U./EDUSP, 1974.

é fundamental quando

lembra, em A linguagem indireta e as vozes do silêncio, que “por mais que a

palavra, como explica Saussure, receba de outros seu sentido, no momento,

porém, de produzir-se, o que há de exprimir não é mais diferido, contraído de

suas relações; imprimi-se e atinamos com alguma coisa”. Há ainda que lembrar

que o próprio Merleau-Ponty afirma, logo em seguida, que “devemos, pois, dizer

da linguagem em sua relação com o sentido o que Simone Beauvoir diz do corpo

8 MAUSS, Marcel, op. cit., p. 363-365.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 15

em sua relação com o espírito: que não é primeiro nem segundo”. Nessa

perspectiva as estruturas sociais representadas pelas diferentes normas

instituídas devem ser analisadas de forma que se abandone a ideia de que

tenham surgido “naturalmente”, tal como acreditavam alguns pensadores do

século XIX.

16 Ruth M. Chittó Gauer

II A fundação da norma: a metáfora sexual e a condição humana

Na tradição ocidental contemporânea, o casamento é assumido como um

ato individual, uma escolha psicológica, marcada pela liberdade de escolha, que

revela preferências, interesses, sentimentos, entre outros fatores. Sob essa

estrutura, marcada pelo individualismo criado pelo direito natural moderno,

encontramos o sistema de parentesco atual, que, além de ser marcado pela

ausência de laços de consanguinidade – pais, irmãos, tios, entre outros –,

constitui a estrutura no sistema da família nuclear. Toda e qualquer escolha dá-

se, portanto, com base na exclusão do outro consanguíneo. A ser assim, a

liberdade de escolha não excluiu o átomo inicial fundante da sociedade, a

proibição do incesto, norma estrutural do vínculo familiar. O poder da norma vista

pela interpretação de Lévi-Strauss é um fator estrutural sem o qual não se

compreende a lógica e o sentido da sociedade.

Otávio Paz9

A afirmativa de que a sociedade constitui-se em um sistema total de

relações, que engloba tanto os aspectos materiais quanto o jurídico, o religioso e

o artístico, está baseada no “fato social total”, desenvolvido por Mauss. O tema

central dos trabalhos de Lévi-Strauss centra-se na busca do entendimento sobre

defende a tese de que os escritos de Lévi-Strauss são

importantes em dimensões como a antropológica, por exemplo, ao analisarem a

estrutura de parentesco, os mitos, o pensamento selvagem e a filosófica, uma vez

que a concepção antropológica como parte de uma futura semiologia e suas

reflexões sobre o pensamento (selvagem e civilizado) revelam, de certo modo,

uma desconfiança em relação à filosofia. Toda a obra de Lévi-Strauss, porém,

dialoga com o pensamento filosófico, em especial com a fenomenologia e se

inspira, em grande parte, nos autores clássicos; podemos notar, contudo, uma

predileção por Bergson, Proust, Mauss, Saussure e Breton, presentes de forma

significativa no conjunto da obra. As influências de tais pensadores são

especialmente perceptíveis quando Lévi-Strauss apresenta seu diálogo contínuo

entre o concreto e o abstrato.

9 PAZ, Otávio. Claude Lévi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo, São Paulo, Perspectiva, 1977, p. 8.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 17

a passagem da natureza para a cultura, passagem que ocorre com a fundação da

norma. Podemos pensar o sistema de relações instituído pela norma. Segundo

alguns de seus intérpretes, a fundação da norma se dá como um processo de

violência. O autor busca compreender o lugar do homem no sistema da natureza.

No campo da estética, particularmente, estudos sobre a arte indo-americana e as

ideias indígenas sobre a música, a pintura, a poesia e o mito, refutam o

pensamento sobre barbárie ou selvageria utilizado pela civilização ocidental para

denominar as diferenças.

A contribuição de Lévi-Strauss, em uma obra que pretende ser apenas

antropológica, é ainda extremamente significativa em vários campos de saber

cujas bases se encontram na premissa da unidade do pensamento (da filosofia),

embora se trate de uma filosofia antifilosófica. Poderíamos, metaforicamente,

aproximar o pensamento de Lévi-Strauss daquele do geólogo que busca a

explicação dos conteúdos aparentes no que está encoberto. Os exemplos mais

significativos disso são a linguagem e a paisagem, esta última vista pelo autor

como sendo diacrônica e sincrônica ao mesmo tempo. A história condensada nas

idades geológicas da terra é também um entrelaçado de relações. Um corte

vertical, que revela o oculto, as capas invisíveis, é uma estrutura que determina e

dá sentido às aparências superficiais. Lévi-Strauss busca inspiração no marxismo

e em Freud para compreender as estruturas não aparentes da sociedade e da

psique humana. A compreensão do visível é dada pelo oculto, isto é, pela busca

da relação entre o sensível e o racional, (um monismo) em si mesma uma busca

da racionalidade do inconsciente, um super-racionalismo.

Podemos identificar, na obra de Lévi-Strauss, além de Marcel Mauss,10 a

presença marcante de Saussure,11 no qual busca a compreensão sobre a

linguística. A obra de Lévi-Strauss revela ainda coincidências e discrepâncias com

relação à posição culturalista de Franz Boas e ao funcionalismo de Malinowski12 e

Radcliffe-Brown.13

10 MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, v. I, São Paulo, E.P.U./EDUSP, 1974.

Os primeiros trabalhos de Lévi-Strauss foram concebidos

11 SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral, Lisboa, Dom Quixote, 1995. 12 MALINOWSKI, Bronislaw. Journal d’ethnographe, Paris, Ëditions Du Seuil, 1985. 13 RADCLIFFE-BROWN, Alfred. El método de la antropologia social, Barcelona, Anagrama, 1975.

18 Ruth M. Chittó Gauer

conforme a antropologia anglo-americana. Foram as ideias de Mauss, no entanto,

que o prepararam para saltar do funcionalismo ao estruturalismo.

Lévi-Strauss concebe a sociedade como um conjunto de signos, como uma

estrutura. Passa da ideia de sociedade como uma totalidade de funções à de um

sistema de comunicações, sistema sempre normatizado. As posições de Lévi-

Strauss confrontam o funcionalismo, o historicismo e a fenomenologia.

Compreende a estrutura não só como um fenômeno resultante da associação dos

homens, mas como um sistema marcado por coesão interna. Cada sistema

(parentesco, mitologias, classificação, entre outros) é como uma linguagem que

pode ser traduzida à linguagem de outro sistema. Lévi-Strauss, dito de outro

modo, pensa a estrutura como um sistema, e cada sistema é regido por um

código que permite (caso decifrado) sua tradução a outro sistema. Para ele as

categorias inconscientes não são irracionais ou funcionais, mas apresentam uma

racionalidade imanente.

A linguagem é um sistema de relações, seus elementos (oração, palavra,

fonema) são valorizados ao serem considerados em relação com os outros. O

signo tem um caráter dual: significante (som), significado (sentido), o significante

que precede e excede o significado. O fonema não tem significado próprio, mas

participa da significação; sua função significativa consiste na designação de uma

relação de alteridade ou oposição em relação aos outros fonemas. Sua relação e

sua posição junto aos outros fonemas no interior do vocábulo tornam possível a

significação. O fonema é um campo de relações, uma estrutura. Lévi-Strauss se

propôs aplicar a linguística à antropologia. Assim como os fonemas, as relações

de parentesco são elementos de significação, logo, apenas adquirem significação

participando de um sistema. Tanto os fonemas quanto as relações de parentesco

são elaborações do espírito no nível do pensamento inconsciente.

No que se refere à fundação da norma, Lévi-Strauss a associa à estrutura

de parentesco e afirma que é atemporal, portanto, ahistórica; desse modo, a

repetição das formas das regras de matrimônio em todas as sociedades faz

pensar, como no caso da fonologia, que os fenômenos visíveis são o produto do

jogo de leis gerais, ainda que tais leis estejam ocultas.

O método utilizado pelo autor se funda mais em analogia do que em

identidade. Se a linguagem (e a sociedade inteira: ritos, arte, economia, leis,

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 19

religião) é um sistema de signos, o que significam os signos? Um símbolo nos

remete a outro símbolo. Esta concepção da linguagem termina em uma disjuntiva:

se apenas a linguagem tem sentido, o universo não-linguístico carece de sentido

e de realidade, ou então tudo é linguagem (dos átomos até os astros).

Essa crítica, de acordo Otavio Paz, não se aplica inteiramente a Lévi-

Strauss, cujo tema central é o das relações entre o universo do discurso e a

realidade não-verbal, o pensamento e as coisas, a significação e a não-

significação.14

É possível fazer muitas analogias: por exemplo, a universalidade da

proibição em suas várias modalidades é análoga à universalidade da linguagem

(diferente de idiomas). A proibição também não aparece entre os animais, não

tendo, portanto, uma origem biológica ou instintiva. Trata-se de uma complexa

estrutura inconsciente, como a linguagem. Apesar das inúmeras interpretações

míticas, religiosas e filosóficas não temos uma teoria racional que explique a

origem e a vigência da proibição. Lévi-Strauss rechaça todas as teorias que

pretendem explicar o enigma do tabu do incesto, desde as finalistas e

eugenéticas até a de Freud.

Ao contrário de seus predecessores, Lévi-Strauss, em seus

estudos sobre o parentesco, não pretende explicar a proibição do incesto a partir

das regras matrimoniais, mas serve-se da primeira para tornar inteligíveis as

segundas.

A proibição do desejo pela mãe e o assassinato do pai – poder e punição –

não correspondem a nenhuma realidade histórica ou antropológica, são um sonho

simbólico, não origem, mas consequência da proibição. A metamorfose do som

bruto em fonema se reproduz na metamorfose da sexualidade animal em sistema

de matrimônio. Em ambas, a regra, binária (isto sim, aquilo não), seleciona e

combina (signos verbais e mulheres). As normas do matrimônio e os sistemas de

parentesco constituem-se em uma espécie de linguagem, um conjunto de

operações que transmitem mensagens. Para Lévi-Strauss, as mulheres (como as

palavras) são signos (e não só valor), elementos desse sistema de significações

que é o sistema de parentesco. Partindo da premissa de que todas as sociedades

conhecem e praticam a norma, carregada de interpretações filosóficas, jurídicas,

14 PAZ, Otávio. op. cit., p. 17.

20 Ruth M. Chittó Gauer

religiosas e míticas, por outro lado não temos uma teoria racional que dê conta de

sua vigência. A questão fundamental relacionada à norma é a tentativa de

compreensão da norma primordial, a norma proibitiva, inflexível, considerada a

fonte de todas as normas sociais, de toda moral e de toda punição. Há que se ter

presente a posição de Lévi-Strauss: para o autor, a fundação da norma se deu

com a negação.

A proibição do incesto, uma norma inflexível, fonte de todo limite, portanto,

de todas as leis, segundo o autor,15

Esse Não contém um Sim: a proibição não apenas separa a sexualidade

animal da sexualidade social, mas, como na linguagem, este Sim funda o homem,

constitui a sociedade. Para Lévi-Strauss, estamos diante de uma operação

inconsciente do espírito humano que, em si mesma, carece de sentido ou de

fundamento, mas não de utilidade: graças a ela, à linguagem, ao trabalho e ao

mito os homens são homens.

foi o primeiro Não que o homem opôs à

natureza. Esse tabu, embora pareça não ter justificação biológica, nem razão de

ser, é a raiz de toda proibição, constitui-se ao mesmo tempo na norma, no fato e

no valor.

A pergunta sobre o fundamento do tabu do incesto se resolve na pergunta

sobre a significação do homem, e esta, na significação do espírito, que não se

defronta consigo mesmo. Faz-se necessário compreender, agora, símbolos,

metáfora, equações, a posição, o significante e o significado, o espírito: algo que

é nada.

Frente à análise sobre a fundação da norma, Lévi-Strauss busca responder

a negação da natureza. Neste aspecto se percebe o fundamento mais importante

de suas reflexões, ou seja, alcançar uma generalidade universal. Se for possível

encontrar essa generalização, é na própria diferença que a encontramos. Neste

aspecto faz-se necessário admitir que as diferenças não constituem dado natural,

mas uma organização sistemática que se compreende por meio de uma análise

estrutural. Logo, deve-se formular a seguinte pergunta: é possível elaborar uma

estrutura geral das estruturas? Se há um sistema de diferenças, pode-se dizer

que não há uma oposição, pelo menos lógica, entre a ordem natural e a ordem

15 PAZ, Otávio, op. cit., p. 19

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 21

cultural. Esta oposição entre natureza e cultura pode ser negada. Faz-se

necessário ressaltar, ainda, que esta é a oposição entre lei e universalidade,

obrigação e necessidade. Se a explicação dos fenômenos sociais deve ser

procurada em leis universais que regem as atividades do inconsciente, corre-se o

risco de perder a compreensão do individual. Para Lévi-Strauss, o inconsciente

seria o mediador entre o eu e o outro. Em ambos os casos, o mesmo problema se

apresenta, o da comunicação procurada, algumas vezes entre um eu subjetivo e

um eu objetivante, outras vezes entre um eu objetivo e um outro subjetivizado.

Nos dois casos também a procura positiva dos itinerários inconscientes deste

encontro, traçado na estrutura inata do espírito humano, na história das diferentes

sociedades e na irreversibilidade dos indivíduos, é a sua condição para o êxito.

Lévi-Strauss16

Retomemos o tema da norma primordial sob outro ângulo: seguindo a

preocupação da busca das estruturas de parentesco por meio da lógica dos

sistemas científicos, Lévi-Strauss, em Estruturas Elementares de Parentesco

(1949), enfrentando o mesmo enigma que Freud se propusera resolver em 1913,

em Totem e Tabu, afirma a existência de um evento originário, fundador da

sociedade humana. Tal evento originário, para Lévi-Strauss, seria o da proibição

define o êxito da seguinte forma: “se, como o cremos, a

atividade inconsciente do espírito consiste em impor formas que são

fundamentalmente as mesmas para todos os espíritos, antigos e modernos,

‘primitivos’ e ‘civilizados’, é necessário e suficiente atingir a estrutura inconsciente,

subjacente a cada instituição e outros costumes, sob a condição, naturalmente,

de levar a análise bastante longe”. O objetivo do autor parece ligado à busca de

um inventário de possibilidades inconscientes de cada relação, no qual a

compatibilidade e a incompatibilidade que cada uma dessas relações mantêm

com todas as outras fornecem uma arquitetura lógica para desenvolvimentos

históricos que podem ser imprevisíveis, sem nunca se caracterizarem como

arbitrários. O paradoxo apresentado pelo autor é querer reconciliar a etnologia e a

história, no próprio momento em que a concepção que ele possui da primeira leva

à desvalorização da segunda. O fato de querer conciliar uma tal situação

demonstra a sua consciência sobre o limite de tal proposta.

16 LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história, Lisboa, Presença, 1952, p. 133.

22 Ruth M. Chittó Gauer

do incesto, com a consequente regulamentação da troca de mulheres, necessária

e imposta pela exogamia, adotada com vistas ao estabelecimento de alianças

entre os grupos humanos. Essa troca constitui-se, para o autor, além de uma

estrutura subjacente a todo sistema de parentesco e a todo sistema social

primitivo, o momento da passagem da natureza à cultura. Ao nível das estruturas

elementares, de resto, esse universal, que sintetiza a proibição do incesto e a

exogamia, representa o lugar onde se articula o modelo sincrônico, estrutural, de

caráter trans-eventual. E é a partir daqui que se organizam as proposições

teóricas que servem como suporte para o método de análise estrutural em

antropologia. Para Lévi-Strauss, o tabu do incesto constitui o vínculo originário

que une a esfera biológica à social, estando situado entre ambas, sem pertencer

integralmente a uma ou outra. Ponto de encontro e articulação, portanto, entre

natureza e cultura, ponto no qual se assenta a ordem social construída pelo

homem.

Assim, essa proibição “não é de origem puramente cultural, nem de origem

puramente natural, nem tampouco é uma combinação de elementos compósitos:

constitui, ao contrário, o passo fundamental graças ao qual – e, sobretudo no qual

– realiza-se a passagem natureza-cultura. Tudo o que é universal no homem

pertence à ordem da natureza e é caracterizado pela espontaneidade (...). Tudo o

que está submetido a uma norma pertence à cultura e apresenta os atributos do

relativo e do particular”.17 Por meio dos mecanismos de trocas, que obedecem a

uma rigorosa e complexa lógica instituída em nível inconsciente (aqui é

conceituado de modo radicalmente diverso do freudiano), e nos quais as

mulheres constituem o objeto de troca por excelência, todo o sistema social

funda-se em um complexo sistema de comunicação cuja estrutura, dada desde o

inconsciente, ocorre em pelo menos três níveis: comunicação através das

mulheres, comunicação através dos bens e dos serviços, comunicação por meio

das mensagens.18

17 LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco (1949), Petrópolis, Vozes, 1982, pp. 70-71.

Na verdade, todo sistema cultural seria um sistema de

comunicação, comunicação normatizada, que deve ser decodificado para a

compreensão de seus elementos básicos e estruturantes. Embora Lévi-Strauss

18 MICELA, Rosaria. Antropologia e Psicanálise, São Paulo, Brasiliense, 1984.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 23

tenha afirmado, em suas conclusões sobre identidade, que esta "é uma entidade

abstrata sem existência real, muito embora seja indispensável como ponto de

referência",19

A norma, pensada como estrutura, seguindo a reflexão do autor, encontra-se

fora de nós, nos sistemas naturais e sociais, e em nós como função simbólica. As

observações realizadas por Lévi-Strauss permitiram que fossem decodificados os

sistemas contemporâneos de parentesco. Nestes sistemas a determinação do

cônjuge fica a cargo de condicionamentos diversos e complexos a exemplo da

demografia, da economia, ou, ainda, de posturas psicológicas. A passagem às

estruturas complexas do parentesco, ou seja, àquelas de onde provêm, em

particular, nossos sistemas de parentesco, deve ser definida em perspectivas com

variantes complexas que envolvem as trocas e as normas. Frente a essa

complexidade Lévi-Strauss encaminha uma abordagem histórica das instituições da

Idade Média e das instituições indo-européias e semíticas: a análise histórica

imporá a distinção entre uma cultura que proíbe absolutamente o incesto, sendo a

negação simples, direta ou imediata da natureza, e uma cultura – aquela que está

não é exagero dizer que, para a maior parte dos homens, a

humanidade, como ponto de referência coletivo, é um espaço em branco no mapa

das emoções. Este aspecto leva a considerar, necessariamente, o fato de que o

planejamento de organizações, que contemple apenas a racionalidade e os

elementos racionais, pode-se revelar altamente inoperante. Há, no entanto, uma

variável a levar em conta: assim como as transformações de relações

profissionais são substituíveis nas sociedades complexas, é possível enquadrar

nesse modelo, ao menos “idealmente”, a permuta da própria nacionalidade. Mas,

para isso, é fundamental que se trate de sociedades na quais o indivíduo é, pelos

mais variados fatores, muito atomizado. Nesses casos, sua singularidade,

elevada a um plano de destaque, faz com que a decisão sobre suas relações se

encontre ao nível do eu. Tal atomização criou situações sociais nas quais se

detecta a revolta dos fatos contra os códigos e um sistema de justiça que não

satisfaz. A atomização das decisões quebra a lógica da reciprocidade, pois o nível

de “harmonia” estruturante na conduta fundada pelo Não foi deslocado para a

impessoalidade totalizadora em que a reciprocidade não encontra espaço.

19 LÉVI-STRAUSS, Claude. (Org.), La Identidad, Paris, Grasset, 1977, pp. 11-39.

24 Ruth M. Chittó Gauer

na origem dos sistemas de parentesco contemporâneos – que joga ardilosamente

com a natureza e algumas vezes rodeiam a proibição do incesto. Segundo

Merleau-Ponty,20 “precisamente este tipo de cultura mostrou-se capaz de enfrentar

um corpo a corpo com a natureza e criar a ciência, a dominação técnica e a história

acumulativa”. Podemos complementar lembrando que tal cultura passou a

normatizar essas relações com a mesma complexidade com que as trocas

continuam a se realizar. Considerando que, com o surgimento do indivíduo

moderno, a normatização sofreu alterações significativas, não se pode negar a

grande contribuição que essa “nova” categoria social trouxe à sociedade moderna,

que se caracteriza pelo rompimento de “amarras que o prendiam à sociedade

tradicional”.21

20 MERLEAU-PONTY Maurice. De Mauss à Claude Lévi-Strauss, op. cit. p. 365-366.

Essa contribuição se refere aos princípios de organização, aos

valores, ao surgimento do direito natural, ao direito subjetivo, vinculado à qualidade

única do ser humano, agora separado do ser social e político. O indivíduo passa a

aparecer no plano das representações filosóficas como sujeito autônomo, em todas

as instâncias da vida. Caracteriza-se pelo surgimento de uma intimidade, que irá se

diferenciar nas diversas formas de habitar, nas escolhas de vida, bem como em

novos hábitos determinados por atitudes individuais, tais como a leitura silenciosa

(textos de edificação moral, sonhos românticos), nas relações sociais, na

autonomia apontada pelo anonimato das multidões, na libertação representada

pelo acesso ao mercado através das trocas econômicas. A autonomia constitui

uma marca da modernidade, caracterizada pela emancipação do indivíduo. Logo, a

autonomia aparece para o indivíduo livre. Se, com Descartes, há a apresentação

da figura do sujeito cognoscente, consciente de si mesmo, que coloca a natureza

perante si, como objeto de conhecimento, com Hobbes e Rousseau se reconstitui a

realidade social partindo-se da ideia de que todos os indivíduos são livres e se

associam de forma voluntária mediante contratos sociais que paulatinamente

estabelecem, mesmo que não estejam convencidos das circunstâncias. Esta ideia

demarca as instituições, principalmente o direito, na medida em que percebe o todo

social como produto da associação voluntária e livre dos indivíduos.

21 MERLEAU-PONTY Maurice. De Mauss à Claude Lévi-Strauss, op cit.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 25

Do ponto de vista sócio-histórico, a figura do indivíduo é formada a partir de

uma progressiva interiorização de várias normas de conduta, de capacidades de

autocontrole e de auto-restrição. As análises de Norbert Elias22

Outro fator reside no surgimento da consciência de uma interioridade, que

foi se configurando em nossas evidências fundamentais. Portanto, a categoria

indivíduo se caracteriza por uma reivindicação tanto da independência individual,

como do amor conjugal, contrapondo-se a uma lógica guiada pela posição

hierárquica e pela razão econômica, anteriormente determinantes.

apresentam como,

a partir dos séculos XV e XVI, vão se constituindo, no conjunto da sociedade, as

maneiras de educação, modos de agir, que poderão representar não apenas a

“fachada” dos indivíduos, mas também máscaras de proteção.

O modo de vida urbano abriu espaço para o anonimato e, com ele, para o

afrouxamento do controle social tradicional. Foi nos centros urbanos modernos

que o indivíduo desvinculou-se dos laços de dependência, das hierarquias tanto

sociais quanto familiares, características das sociedades tradicionais. Se nas

comunidades tradicionais cada pessoa se situava em um lugar determinado pela

hierarquia estruturante, no mundo urbano individualizado, ao contrário, o lugar fixo

abre espaço para a mobilidade, que se apresenta como base para a liberdade.

Este desenvolvimento urbano não ocorreu sem a perspectiva econômica

fundada no desenvolvimento do mercado, este por si só constitui espaço para a

liberdade, na medida em que as trocas não se dão por posição social, não

obedecem a uma lógica exterior, mas antes de tudo respondem a acordos entre

indivíduos. Os acordos no mundo contemporâneo foram regulamentados pelo

direito o qual normatiza todas as relações sociais inseridas institucionalmente.

Para além desta regulamentação o direito regulamenta as mais íntimas das ações

sociais no mundo atual.

22 ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos, Rio de Janeiro, Zahar, 1997, pp. 13-79.

26 Ruth M. Chittó Gauer

Historiadores e sociólogos como Tocqueville,23 Simmel24 e a sua

posteridade da Escola de Chicago, Norbert Elias25 e Louis Dumont,26 buscaram

descrever esta lógica de individualização, apontando os diversos processos que

simultaneamente a provocam, a conformam e dela decorrem. Em diferentes graus

todos são sensíveis à ambivalência apontada pela modernidade, que se, por um

lado, produz o indivíduo em sua autonomia, por outro o expõe. Quanto maior for a

liberdade, mais necessária será a interiorização de um determinado número de

obrigações, e mais essa necessidade surgirá, paradoxalmente, como encargo

muito difícil de ser cumprido. O paradoxo da liberdade impõe um preço: quanto

maior a liberdade, maior seu custo, quanto maior o individualismo, maior a

socialização. Não por acaso Norbert Ellias coloca o indivíduo em relação com a

sociedade em sua totalidade. Essa individualização crescente configura uma

sociedade crescente, na medida em que, quanto mais nos individualizamos, mais

nos socializamos, isso sob o prisma da norma social. Segundo Foucault27

Há na liberdade individual uma crença de verdade que Foucault considera

ser um dos grandes temas privilegiados pelos relatos legitimadores do presente.

Foucault assinala que não são as condições políticas e econômicas da existência

que constituem, em si mesmas, os obstáculos a desmontar e a decodificar em

prol da busca da verdade, mas sim certos domínios de saber, domínios nos quais,

para o autor, se formam o sujeito e as relações com a verdade. Neste sentido,

afirma que “só se desembaraçando desses grandes temas do sujeito, do

conhecimento, ao mesmo tempo originário e absoluto, utilizando eventualmente o

modelo nietzscheano, se poderá fazer uma história da verdade”.

, a

nossa sociedade funciona por normas, com as quais cada um deve se conformar;

assim, não por acaso, dizemos que a liberdade tem seu custo. Ao mesmo tempo

em que a norma social limita a ação dos indivíduos, ela, paradoxalmente, também

é desejada.

28

23 TOCQUEVILLE, Aléxis de. O Antigo Regime e a Revolução, Brasília, UNB, 1979.

Com a atual

24 SOUZA, Jessé; OËLZE, Berthold. (Orgs.), Simmel e a Modernidade, Brasília, Editora da UNB, 1998. 25 ELIAS, Norbert, op. cit. 26 DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, Rio de Janeiro, Rocco, 1985. 27 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, Rio de Janeiro, Ed. Nau, 1999. 28 FOUCAULT, Michel, op. cit., p. 27; 142.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 27

mutação no que diz respeito ao lugar da experiência, hoje “acelerada” de modo

irreversível, é possível falar da incerteza da liberdade, mesmo das vinculadas às

leis científicas.

O que podemos constatar é que, durante o século XX, mais

especificamente no pós-guerra, a vida em sociedade passou a se caracterizar por

um significativo aumento de normas. A ampliação da normalização

contemporânea pode ser verificada em diferentes aspectos que vão desde o

planejamento urbano às normas de higiene, aspectos do modo de vida e a forma

como são construídas as habitações, considerado o aspecto mais significativo. A

emancipação foi pensada pelos reformadores sociais como um ideal de

emancipação das populações. Esta forma de autonomia está posta na sociedade

salarial, na medida em que tal norma origina comportamentos racionalizados que

englobam as atividades em geral. A racionalização rompeu com as formas de

solidariedade das sociedades tradicionais.

O indivíduo se atomiza. O único laço que permanece é o de natureza

institucional, a partir da emergência das necessidades de leis e de regulamentos.

Isso aponta para o fato de que quanto mais livres somos, mais necessitamos de

regulamentações; esta socialidade, portanto, é produto da própria liberdade. O

indivíduo frente ao outro é um ser igual em direitos, e isso não se apresenta pura

e simplesmente como proclamação teórica e jurídica, mas constitui experiência de

todos os dias. A igualdade, deste modo, não é somente um valor, mas uma

prática cotidiana que exige um aumento contínuo da liberdade e de sua limitação.

28 Ruth M. Chittó Gauer

III A sedução da norma: fato social total

Pensar a norma como fato social total implica compreendermos a lógica, a

linguagem do direito, da arte e da religião como constituintes de projeções do

social, tal como referido por Lévi-Strauss:29 “Não seria conveniente esperar que

as ciências particulares tivessem aprofundado, para cada um desses códigos, seu

modo de organização e sua função diferencial, permitindo, desta maneira,

compreender a natureza das relações que eles mantêm uns com os outros”. Sob

o risco de sermos acusados de paradoxais, parece que, na teoria do fato social

total, a noção de totalidade é menos importante do que a maneira bem particular

como Mauss a concebe: “folheada, poder-se-ia dizer, e formada de uma multidão

de planos distintos e justaposto”30. Ao invés de aparecer como um postulado, a

totalidade social se manifesta na experiência, instância privilegiada que pode ser

apreendida no nível da observação, em ocasiões bem determinadas: “por

exemplo quando se agita a totalidade da sociedade e de suas instituições”.31

Entendemos que essa totalidade não suprime o caráter específico dos

fenômenos, eles permanecem ao mesmo tempo jurídicos, religiosos, econômicos,

estéticos, morfológicos ou outros. Nesse sentido é que Mauss influenciou Lévi-

Strauss. Para o primeiro “a totalidade consiste, em suma, na rede de inter-

relações funcionais em todos os planos”.32

Se o essencial se constitui no “movimento como um todo”, o aspecto vivo,

o instante fugidio em que a sociedade e os homens tomam consciência de si

Se, como diz Mauss, os fatos sociais

não são fragmentos esparsos e isolados, o direito como outro conhecimento

especializado pode ser visto como fato social total. Ao contrário da análise

sociológica que embasava as interpretações sobre os eventos sociais publicadas

anteriormente, segundo a teoria proposta por Mauss corpo, alma, sociedade, tudo

está inter-relacionado, ligado, tudo se mistura, por princípio e por fim, a percepção

deve ser do grupo por inteiro e o seu comportamento é, também, integral.

29 LEVI-STRAUSS, Claude, Antropologia estrutural dois, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1976, p. 14. 30 LEVI-STRAUSS, Claude, op. cit., pp. 14-15. 31 LEVI-STRAUSS, Claude, op. cit., pp. 14-15. 32 LEVI-STRAUSS, Claude, op. cit., pp. 14-15.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 29

mesmos e de sua situação perante outros deve ser a única garantia de que a

análise preliminar, levada até as categorias do inconsciente, nada deixou escapar.

Mesmo assim Lévi-Strauss33

Há, no entanto, uma segunda dificuldade no que se refere à condição de

pensar a norma como fato social total: a extensão do caráter de signo a todos os

fenômenos sociais. O exemplo citado por Lévi-Strauss

afirma que “a prova permanecerá bem ilusória: não

saberemos jamais se o outro, com o qual não podemos, apesar de tudo,

confundir-nos opera, a partir dos elementos de sua existência social, uma síntese

que coincide exatamente com a que elaboramos”. O autor reconhece, entretanto,

que alguns dos fatos sociais totais pertencem às ciências em particular:

economia, direito, ciência política, história. Todavia, estas disciplinas consideram

principalmente os fatos que estão mais próximos de nós, oferecendo-nos,

portanto, um interesse privilegiado. Por outro lado se faz necessário compreender

que estas ciências não poderão construir perspectivas gerais se não levarem em

conta os inventários empíricos da antropologia.

34

Sabemos que o domínio da norma está impregnado de significação; desse

modo, nos diz respeito de forma total. Não podemos estudar os deuses e ignorar

suas imagens, nem estudar os ritos sem analisar os objetos e as substâncias que

o oficiante utiliza e manipula, ou ainda estudar as normas sociais,

independentemente das coisas que lhes correspondem, assim como não

podemos, também, estudar a norma desvinculada da especificidade social em

propõe uma questão:

“quando consideramos um sistema de crenças – digamos o totemismo –

poderíamos acrescentar o direito, a justiça, a liberdade – uma forma de

organização social, a pergunta que nos fazemos é: o que tudo isso significa?”

Para respondê-la, esforçamo-nos por traduzir em nossa linguagem regras

primitivamente dada em uma linguagem diferente. Neste caso, é essencial

perceber que Lévi-Strauss propõe interpretar signos e não, como muitos pensam,

objetos. O signo, em sua visão, é o definido como aquilo que substitui alguma

coisa para alguém. Podemos fazer uma analogia perguntando: o que substitui a

norma, pensada como tradição, e para quem ela é substituível?

33LEVI-STRAUSS, Claude, op. cit., pp. 16-17. 34 LEVI-STRAUSS Claude, op. cit., pp. 17, 18, 19.

30 Ruth M. Chittó Gauer

que se insere. Esta especificidade deve levar em conta não apenas o espaço,

mas fundamentalmente o tempo traduzido pelo ritmo social imprimido. Quando se

comunicam os homens conversam, escrevem, gesticulam, criam regras e normas

para que essa comunicação se efetive: quem se comunica com quem? Quando?

Onde? Em que condições e em que tempo? As respostas a essas questões

devem ser buscadas, segundo as premissas que apresentamos, junto ao

significante. Tudo são símbolos e signos que se colocam como intermediários

entre indivíduos e sociedades. A certeza passada por Lévi-Strauss sobre a

necessidade, ao menos provisoriamente, do isolamento dos fenômenos sociais

dos demais campos do saber, a exemplo da antropologia filosófica e da biologia,

se deve ao fato de que, segundo ele, “sabemos que de fato e até mesmo de

direito, a emergência da cultura permanecerá um mistério para o homem

enquanto ele não conseguir determinar, no nível biológico, as modificações de

estrutura e de funcionamento do cérebro. Destas transformações, a cultura

representa simultaneamente o resultado e o modo social de apreensão – criando,

ao mesmo tempo, o meio intersubjetivo indispensável para que elas prossigam.

Se bem que anatômicas e fisiológicas essas modificações não podem ser

definidas nem estudadas apenas em relação ao indivíduo”.35

As pesquisas realizadas por outros antropólogos após a segunda metade

do século XX trouxeram várias outras contribuições para o campo da

interpretação. No campo da antropologia a mitologia, segundo Geertz,

É importante

salientar que tal reflexão foi apresentada pelo autor na primeira metade do século

XX.

36

35 LEVI-STRAUSS Claude, op. cit., p. 22.

tornou-se

dispensável após o aumento do volume de comunicação e da integração entre os

seres humanos. Esse aumento da comunicação em nível mundial não

necessariamente tornou a vida mais fácil. Para o antropólogo norte-americano um

dos principais deveres dos antropólogos (e dos cientistas sociais, de maneira

geral) neste início de século é tentar fazer com que as diversas sociedades (que

são cada vez mais complexas e envolvem cada vez mais pessoas) sejam

capazes de atingir algum entendimento entre si. Essa é uma das mais relevantes

36 GEERTZ, Clifford, Entrevista de Victor Aiello Tsu com Clifford Geertz originalmente publicada na Folha de São Paulo de 18 de fevereiro de 2001.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 31

lições de Geertz.37 Depois de Claude Lévi-Strauss, Geertz é, provavelmente, o

antropólogo cujas ideias causaram maior impacto após a segunda metade do

século XX, não apenas para a própria teoria e prática antropológicas, mas

também fora de sua área, em disciplinas como a psicologia, a história e a teoria

literária. Criador da chamada antropologia hermenêutica ou interpretativa, Geertz

conduziu extensas pesquisas de campo que deram origem a livros escritos

essencialmente sob a forma de ensaio. Suas pesquisas ocorreram na Indonésia e

no Marrocos. Seu primeiro estudo tinha por objetivo entender a religião em Java.

No final, foi incapaz de se restringir a apenas um aspecto daquela sociedade.

Geertz entendeu que os estudos dessas sociedades específicas não poderiam

ser extirpados e analisados separadamente da sociedade em geral,

desconsiderando, entre outras coisas, a própria passagem do tempo. A

antropologia de matriz norte-americana é, de acordo com ele, um estudo que

pretende entender "quem as pessoas de determinada formação cultural acham

que são, o que elas fazem e por que razões elas crêem que fazem o que

fazem?".38

Na opinião de Geertz, o estudo de sociedades complexas e muito grandes,

a exemplo do Brasil e da Índia, torna a análise muito problemática. Explica que,

em primeiro lugar, o antropólogo lida com uma gama maior de sociedades, não

apenas as chamadas sociedades simples. Em segundo lugar, o mundo é agora

muito mais integrado e desenvolvido, logo, tudo é conectado a tudo o mais de

forma bastante complicada. A antropologia não pode mais ser uma ciência

Uma de suas metáforas preferidas para definir o que faz a antropologia

interpretativa é a da leitura das sociedades como textos ou como análogas a

textos. A interpretação se dá em todos os momentos do estudo, da leitura do

"texto" cheio de significados que é a sociedade à escritura do texto/ensaio do

antropólogo, interpretado por sua vez por aqueles que não passaram pelas

experiências do autor do texto escrito. Na entrevista, Geertz fala do panorama da

antropologia atual, daquilo que vê como o dever do antropólogo tanto hoje quanto

no futuro, dos limites da interpretação e de como a onda de globalização estaria

afetando as diversas culturas.

37 GEERTZ Clifford, Nova Luz sobre a Antropologia, São Paulo, Jorge Zahar, 2001. 38 GEERTZ Clifford, Entrevista de Victor Aiello Tsu com Clifford Geertz originalmente publicada na Folha de São Paulo de 18 de fevereiro de 2001.

32 Ruth M. Chittó Gauer

completamente geral, que estuda tudo, que diz estudar o "Homem". Ela tem que

perceber qual é, em um lugar como a Índia ou a Indonésia, o Marrocos ou o

Brasil, o seu papel particular na interpretação do que ocorre. E isso deve ser

realizado ao lado de outras disciplinas, como economia, direito, política, história,

literatura. Todas essas questões devem ser levadas em consideração, e a

antropologia deve encontrar seu lugar e sua contribuição em meio a esses outros

campos. O niilismo não faz parte das crenças de Geertz: afirma ele que se fosse

niilista, nem começaria a interpretar, não tentaria ao menos começar a entender

os outros. Geertz diz: “acho que há uma diferença entre o niilismo e uma simples

ausência de certeza. É verdade que quase todas as interpretações antropológicas

tenham por fim um resíduo de incerteza, de vagueza, indeterminação,

contingência. Mas isso não é niilismo, isso é o modo como se vê o mundo quando

se é realmente um niilista. Neste caso o niilista não se importará com nada, não

tentará buscar compreender nada, não interpretará nada.

A análise interpretativa da qual fala Geertz, possui sua matriz de

pensamento na hermenêutica. A interpretação utilizada pelo autor vem

acompanhada do aspecto dialógico na medida em que pensa a cultura como

movimento. A experiência de compreender outras culturas assemelha-se mais a

entender um provérbio ou ler um poema do que alcançar uma comunhão. Um dos

objetos mais apropriados para interpretar as sociedades complexas é, sem

dúvida, a análise de suas normas, regras, hábitos e leis sociais; elas fazem parte

do repertório da antropologia, porém o direito permite a utilização de modelos

lógicos nem sempre encontrados em outras áreas. A hermenêutica utilizada por

antropólogos vem, historicamente, se esforçando para explicar as diferenças em

geral, assim como as diferenças existentes no campo relativo às formas de

normatização das relações sociais. Há muitas regras e costumes no interior de

todas as sociedades que não são leis, mesmo assim são respeitadas, da mesma

forma que certos hábitos que têm efeito social na estrutura das sociedades são

respeitados, ainda que não estejam escritos em códigos de direito. Esse fato não

significa que os indivíduos obedeçam às regras intuitivamente ou mesmo sem

questionar. Muitos juristas, a exemplo de Hans Kelsen,39

39 KELSEN Hans, In: SHIRLEY, Robert W. Antropologia jurídica, São Paulo, Saraiva, 1987, p. 10.

demonstraram que a

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 33

natureza fundamental do direito é o poder que tem a sociedade de aplicar

sanções ou punir uma conduta disruptiva ou “ilegal”. O autor refere que “em

qualquer sociedade há regras primárias, isto é, sobre o comportamento do

indivíduo, e regras secundárias, normas da sociedade referentes às primárias, ou

seja, fórmulas sociais para aplicar sanções àquelas que não obedecem às regras

primárias”.40

O domínio tradicional do estudo da diferença no mundo ocidental ocupou

um ponto central na reflexão de Heidegger desde Ser e Tempo, obra em que,

como crítico da metafísica (ou do humanismo, se preferido for), questiona a noção

de ser (apenas como simples presença) própria da objetividade. Em especial,

Segundo Shirley o antropólogo Paul Bohannan propôs uma visão

semelhante quando escreveu que a maioria das sociedades tem “dupla

institucionalização”, isto é, instituições sobre conduta e instituição para punir

condutas extravagantes. Podemos pensar em instituições que fazem as leis e

instituições que aplicam a lei. As primeiras representam o conjunto das forças

sociais e as segundas, forças políticas estruturadas pelas instituições. Em que

pese as diferenças entre sociedades simples e sociedades complexas, esses dois

planos compõem as estruturas sociais. Se a questão da diferença pautou as

pesquisas da escola idealista de antropologia legal, a qual insiste em que as

sociedades sem estado possuem regras amplas sobre como os comportamentos

sociais devem ser pautados, por outro lado, é também correto afirmar que essas

regras por vezes são manipuladas, subjugadas e ignoradas. A ausência de

controle interno em qualquer sociedade exige o desenvolvimento de outras

formas de controle social. Na constatação de diferenças entre sociedade simples

e sociedade complexa há que se levar em conta que nas primeiras as sanções,

exílio, ostracismo ou morte, são evocados para frustrar o que o criminoso poderia

vir a fazer e não como simples ato punitivo, como no caso das sociedades

modernas. Há no campo da antropologia um campo de pesquisa muito

desenvolvido que é a do direito comparado. Comparar os diferentes tipos de

instituições jurídicas que não as das sociedades modernas ocidentais leva ao

conhecimento de estruturas normativas com formas diferenciadas que se

equivalem às estruturas das instituições modernas.

40 SHIRLEY, Robert W. Antropologia jurídica, São Paulo, Saraiva, 1987, p. 10

34 Ruth M. Chittó Gauer

Heidegger problematizou as reais possibilidades de tal noção

descrever/compreender a existência e a história do homem. O ser da metafísica é

o ser mutilado, que está escondido no ente-presença (esquecido na presença) e

condicionado como fundamento, fato estável e uno (Sujeito ideal da ciência,

esquecido da subjetividade). O pensamento da diferença, para Heidegger,

reabilita o ser estabelecendo suas conexões (diferenciantes) como ente,

rememora o ser e o ente para além da presença, colocando em comunicação

objetividade e subjetividade. Heidegger anunciou a não coincidência do horizonte

da presença e do ente-presente, ou seja, nega o ser como fundamento, plenitude

da presença e estabilidade una, considerando-o com um “evento” (um

acontecimento temporal) de um horizonte histórico sem repetição, sem estruturas,

igual e eventual. O estar-aí (o ser-no-mundo) é o ser-para-a-morte que vive

continuamente a possibilidade de não existir mais.

De acordo com Vattimo, Heidegger não considera Nietzsche um pensador

da diferença porque julga que este último não problematizou (“o porquê da

instituição”) a diferença, apenas a rememorou, desconsiderando seu caráter de

eventualidade factualizada no horizonte histórico. Para Heidegger, quando

Nietzsche escreveu que “do próprio ser já não há mais nada” e falou da

“metafísica como história do ser", transformou o ser homem-sujeito-consciência

em envio e transmissão histórico-destinal (a história com história da humanidade,

fundada e consagrada no gênero humano) submetida à tirania do significante

sobre o significado, da objetividade sobre a subjetividade41 e, sob essas

premissas, a tirania dos modelos modernos não deixou de se situar no contexto

da Estupidez.42

Ao contrário de Geertz, para Ortega y Gasset

Há, no entanto, que salientar a concepção de devir na ótica dos

modernos. 43 o mundo contemporâneo

significa o niilismo, enquanto a temporalidade, afirma o autor,44

41 VATTIMO, Gianni, op. cit., p. 71-92.

significa “o querer

criador de um novo âmbito de realidade”, que “mostra também um momento

42 GAUER, Ruth M. Chittó. O reino da estupidez e o reino da razão.Rio de Janeiro: Lúmen & Júris, 2006. 43 GASSET, José Ortega y, Meditações do Quixote, São Paulo, Livro Ibero-Americano, 1977, p. 162. Ver ainda La rebelión de las massas (1930), Obras, v. VI, Madrid, Alianza Editorial, 1946. 44 GASSET, Ortega y, op. cit.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 35

‘escandalosamente temporário’, não sujeito a mudanças, mas também sem

normas ou raízes”. O século XX, conforme apresentado por Ortega y Gasset na

obra A Rebelião das Massas, era o primeiro período da história que não

encontrava qualquer padrão no passado. Rompera até com a cultura moderna, ou

pelo menos recusava-se a considerá-la definitiva, como fizera o século XIX. Com

esta análise em mente, podemos pensar na desmoralização da cultura europeia.

No final do século XIX, o devir era uma das categorias principais do

pensamento, no sentido tanto decadente quanto criativo, e Nietzsche não estava

só quando sentia o advento de uma nova era, caracterizada por uma

reapreciação de valores e por uma nova, mas perigosa, abertura do pensamento

e da cultura. A morte do homem retratada pela robótica é um exemplo significativo

da coisificação da humanidade, já há muito diagnosticada por Simmel45

45 SOUZA, Jessé; OËLZE, Berthold. (Orgs.), Simmel e a Modernidade, Brasília, Editora da UNB, 1998, p. 10.

quando

analisou o papel do dinheiro na sociedade e a separação entre as culturas

subjetiva e objetiva – fenômeno geral e característico da modernidade ocidental,

sendo que, segundo o autor, a economia monetária e a mediação das relações

humanas por meio do dinheiro é fundamento das duas. A influência que Simmel

recebeu de Nietzsche, Max Weber e Karl Marx revelam sua visão acerca da

coisificação do ser humano, resultado do domínio das coisas sobre o homem. O

caráter fetichista da produção de mercadorias no capitalismo, revelado por Marx,

é um exemplo deste fenômeno. O destino trágico, na significação que nos

interessa, aponta para o fato peculiar de que as forças destruidoras mobilizadas

contra um ser foram produzidas pelas tendências mais profundas deste mesmo

ser, cujo movimento na sociedade, afinal, se dá com base na liberdade e é uma

forma de lidar com os constrangimentos e obrigações impostos pela moral, pela

ética e pelo direito.

36 Ruth M. Chittó Gauer

IV Os deslocamentos da norma: reinvenção de termos

Para Mauss o direito é o modo de organizar as expectativas coletivas, fazer

com que os indivíduos sejam respeitados. Os fenômenos jurídicos são os

fenômenos morais organizados. A consciência moral introduz a consciência na

concepção jurídica46. Há consciência e conhecimento latente em todo o direito,

pois nem tudo pode ser formulado. Para o autor os direitos costumeiros são, de

alguma forma, uma mistura de direito público e direito privado, de direito não

formulado e direito formulado. Segundo a análise, o autor refere que às funções,

às honras, aos cargos, aos direitos acrescenta-se a pessoa moral47. Assim como

na passagem natureza-cultura, o Não, negativa que contém um Sim afirmativo, o

qual permitiu a circulação de mulheres e criou a instituição familiar, a história do

direito antigo permitiu a compreensão das transformações da moral, da família,

entre outras, e, com elas, de toda a sociedade. Esta forma de instituição, a

família, ainda permanece com suas especificidades nas diferentes sociedades

contemporâneas, forneceu a transição para a moral e para o próprio direito. A

moral e a prática das trocas utilizadas pelas sociedades que precederam as

nossas guardam traços importantes de seu princípio fundador. Na opinião de

Mauss,48 ”vivemos em sociedades que distinguem fortemente (a oposição é agora

criticada por alguns juristas) os direitos reais e os direitos pessoais, as pessoas e

as coisas”. Esta separação é fundamental: ela constitui a condição mesma de

uma parte de nosso sistema de propriedade, de alienação e de troca. Do mesmo

modo, nossas antigas civilizações, como a semítica, a grega e a romana,

distinguem claramente entre a obrigação e a prestação não gratuita, por um lado,

e a dádiva por outro. Mas não seriam tais distinções muito recentes nos direitos

das grandes civilizações? “A pergunta feita pelo autor é respondida após

minucioso exame sobre a sobrevivência dos princípios do direito indo-europeu,

romano, hindu e germânico, muito antigo”.49

46 MAUSS, Marcel, Sociologia e Antropologia, v. I, São Paulo, EPU/EDUSP, 1974, p. 234.

Dentro da tradição indo-européia

encontramos o culto aos antepassados nas sociedades latina e helênica, culto

47 MAUSS, Marcel, Sociologia e Antropologia, v. I, op cit. p. 234. 48 MAUSS, Marcel, Sociologia e Antropologia, v. II, São Paulo, EPU/EDUSP, 1974, p. 131-132. 49 MAUSS, Marcel, op. cit.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 37

cujo objetivo era o de reafirmar os papéis sociais (pai, mãe), assim como a

importância das coisas, propriedade, herança, autoridade, traços que se

mantiveram na época clássica. O direito de propriedade e de sucessão nasceu

enraizado nos costumes, não foi obra de legisladores, estruturou-se nos mitos, a

exemplo do poder que se liga à ideia de pai em geral e não apenas de

paternidade biológica. O pátrio poder é uma das peças fundamentais para se

entender a antiga concepção da família, da propriedade, da herança, da

autoridade e da punição. Encontramos no vocabulário das sociedades indo-

européias50

50 BENVENISTE, Èmile, Le vocabulaire dês instituitions indo-européennes, v. I, Paris, Éd. Minuit, 1969, pp. 207-212.

a “Patria Potestas” que se constitui no poder que se liga à ideia de pai

em geral, assim como o termo “Paternus” é o adjetivo derivado de “Pater” que

exprime o pai físico e pessoal. Encontramos um terceiro adjetivo vinculado a

“Pater”, “Patricius”, o descendente de pais livres. Esses diferentes significados

estão relacionados à natureza sagrada dos papéis sociais oriundos da família: se

a natureza concede ao filho a maioridade, esta só lhe é conferida, de fato, quando

os rituais sagrados legitimarem tal situação. Considerando a origem etimológica

do termo latino “Pater”, a forma mais genuína é o nome de “Pai”, “Pater”, do

sânscrito “Pitar”. O termo “Pater” é a qualificação permanente do Deus Supremo

dos indo-europeus, figura do nome divino de Júpiter. A forma latina se originou de

inovação: “Dyen Pater”, que é lido como “Pai Celeste”, do mesmo modo que o

vocativo grego “Zeû Páter”, em sua origem, exclui a relação de paternidade física,

pois estamos longe do parentesco estritamente físico e “Pater” não designa o pai

no sentido pessoal. “Atta” educa a criança, daí a diferença entre “Atta”e “Pater”. A

“Pátria Potestas” é o poder que se liga à ideia de pai em geral. “Patrius” se refere

ao pai não físico, liga-se à relação de parentesco. “Paternus” é o adjetivo derivado

de “Pater”; “Patricius”, o que, como já vimos, descende de pais livres, exprimindo

uma hierarquia pessoal. As origens etimológicas permitem que interpretemos a

ligação da religião doméstica com a natureza: o pai seria o chefe do culto e o

filho, seu auxiliar nas funções sagradas. A hierarquia estabelecida vincula-se

apenas a determinado tempo, a maioridade biológica, portanto natural; a morte do

pai, contudo, não separa os filhos, que se mantinham unidos ao lar paterno e que

38 Ruth M. Chittó Gauer

se submetiam à sua autoridade. Essa presença ausente do pai morto cria o culto

doméstico. Sob este aspecto, é mais viável pensarmos em “pátrio poder” do que

em “poder paterno”. A religião, ao contrário da natureza, não concede a

maioridade aos filhos.

Entre os direitos analisados, o exemplo do contrato mais antigo do direito

romano é, segundo Mauss, o nexum, que já se destacava do fundo de contratos

coletivos e também das antigas dádivas. Seguindo a análise, deparamo-nos com

a seguinte afirmativa:51 “há um vínculo nas coisas, além dos vínculos mágicos e

religiosos, das palavras e dos gestos do formalismo jurídico”. Este vínculo é

marcado por alguns termos antigos do direito dos latinos e dos povos itálicos. As

coisas não são os seres inertes que o direito de Justiniano e nossos direitos

entendem: “Antes de tudo, elas fazem parte da família: a família romana

compreende as res e não somente as pessoas”.52

Outros termos de direito, além de família e res, prestam-se para este

estudo. Quase todos os termos do contrato e da obrigação, bem como um certo

número de formas desses contratos, parecem associar-se a esse sistema de

“vínculos” espirituais criados pelo fato bruto, o nexum, o “vínculo” de direito, que

parte tanto das coisas como dos homens.

Ainda que tenha sua definição

no Digesto, segundo Mauss, é bastante notável que, quanto mais remontamos à

antiguidade, mais o sentido da palavra família denote as res que dela fazem

parte, a ponto de designar mesmo os viveres e os meios de subsistência familiar.

A melhor etimologia de família é, sem dúvida, a que aproxima do sânscrito

dhaman, casa.

53 O contratante é primeiramente reus; é

antes de tudo o homem que recebeu a res de outro, e que se torna, a esse título,

seu réus, isto é, o indivíduo que está a ele ligado pela própria coisa, ou seja, por

seu espírito. A etimologia já fora proposta antes, embora tenha sido eliminada, a

pretexto de não fazer sentido algum; no entanto, para uma análise atenta ela

oferece um sentido muito claro. Como observa Mauss,54

51 MAUSS, Marcel, op. cit., pp. 135-136.

“reus é originariamente

um genitivo em os de res e substitui rei-jetos. É o homem que é possuído pela

52 MAUSS, Marcel, op. cit., pp. 135-136. 53 MAUSS, Marcel, op. cit., pp. 133-138. 54 MAUSS, MarceL, op. cit., p. 139.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 39

coisa”. Há autores que traduzem res por “processo”, e rei-jetos por “implicado no

processo”. Mas essa tradução é arbitrária, supondo que o termo res é, sobretudo,

um termo processual. Para Mauss, “ao contrário, se nossa derivação semântica é

aceita, visto que toda a res e toda traditio de res é objeto de um ‘negócio’, de um

‘processo’ público, compreende-se que o sentido de implicado no ‘processo’ é

antes uma acepção secundária”. Como se pode observar, o sentido de culpado,

com mais forte razão para reus, é ainda mais derivado da genealogia dos

sentidos e da maneira inversa da que é seguida de ordinário por Mauss, que

apresenta o seguinte:55

“1°, o indivíduo possuído pela coisa;

2°, o indivíduo implicado no negócio causado pela traditio da coisa;

3°, enfim, o culpado e o responsável”.

Desse ponto de vista, todas as teorias do “quase-delito”, segundo o autor,

“a origem do contrato, do nexum e da actio, ficam um pouco mais esclarecidas. O

mero fato de ter a coisa coloca o accipiens em um estado incerto de ‘quase-

culpabilidade’, (..) de inferioridade espiritual, de desigualdade moral face ao

entregador (trandens)”. A genealogia dos conceitos apresentados no ensaio que

examinamos permite a constatação de que a diacronia se manifesta na sincronia,

revelando a lógica interna dos termos que chegaram à nossa civilização tanto por

meio do direito natural moderno como dos grandes códigos e dos códigos penais

dele oriundos. A imagem, crescida à sombra do racionalismo, que olhava com

desdém para a possibilidade de ver o culpado de qualquer ato ilícito como um

indivíduo inferior espiritualmente, desigual moralmente no que diz respeito à

capacidade racional de inquirir, investigar e decifrar os mistérios da natureza,

acabou por ter um efeito perverso. Ao ficar à margem da reflexão crítica sobre seu

papel gnosiológico, ela dominou uma linguagem que foi rapidamente incorporada

por interesses comerciais e de persuasão política.

Movimentos como a Reforma e o Protestantismo libertaram a consciência

individual das instituições religiosas e da igreja e colocaram o indivíduo

diretamente sob os olhos de Deus. O Humanismo colocou o homem no centro do

universo e as revoluções científicas fizeram do indivíduo um decifrador dos

55 MAUSS, Marcel, op. cit., p. 140.

40 Ruth M. Chittó Gauer

mistérios da natureza. O Iluminismo, por sua vez, conferiu ao homem um

racionalismo desvinculado do subjetivismo; esse indivíduo racional liberto do

dogma e da intolerância tinha diante de si a totalidade da história humana para

ser dominada. Ao lado destes aspectos fundantes da modernidade, um dos

princípios que, segundo Dumont,56

Tanto a norma instituída pelo tabu do incesto quanto a dádiva e as suas

derivações semânticas de res e toda a traditio de res como objeto de um

“negócio”, de um “processo” público, foram deslocados. O sentido implicado no

“processo”, antes uma acepção secundária, passa a ter uma acepção difusa, já

que deixa de haver um princípio organizador único. A exemplo do direito, como

forma reguladora das normas que deferiram as relações sociais, foi fragmentado,

ou seja, especializou-se e, ao fazê-lo, passou a regulamentar de forma

especializada, dicotomizando tanto coisas como homens. A criação do paradigma

da modernidade, cuja base se encontra na obra de Descartes,

se constituiu como um dos valores cardeais de

nossa sociedade de tipo moderno “foi o igualitarismo surgido a partir do

individualismo”. Para Dumont, o “primado das relações do homem com as coisas

deu origem à categoria do econômico como atividade distinta”. A autonomia do

indivíduo acarretou as várias autonomias, religiosa, econômica, política, jurídica,

deslocando, assim, o sentido da palavra família, que antes denotava uma

totalidade de pessoas e coisas, isto é, as res que dela faziam parte. A base tutelar

da família foi fragmenta, com isso ocorre um deslocamento em sua estrutura

inicial. Tal deslocamento operou uma transformação em escala indefinida, uma

vez que o centro, res, não foi substituído por outro, mas por uma pluralidade de

outros, isto é, por uma pluralidade de centros de poder.

57 permitiu o

surgimento do dualismo, corpo-espírito, pessoas e coisas, lícito e ilícito,

objetividade e subjetividade, razão e emoção. Desta forma estruturou-se todo o

pensamento moderno, que criou a crença na possibilidade de se buscar a

perfeição. Essa busca, no entanto, esbarrou na própria concepção de apreensão

da razão. Descartes58

56 DUMONT, Louis, O individualismo. Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, Rio de Janeiro, Rocco, 1985, pp. 12-16.

faz uma longa argumentação sobre o método em todo o

57 DESCARTES, René, Discurso do método, Lisboa, Edições 70, 1993, pp. 117-118. 58 DESCARTES, René, op. cit., pp. 80-85.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 41

seu famoso Discurso, mas afirma, em determinado ponto, que “Os cegos vêem

com as mãos”, isto é, o modelo de visão do autor é o tato, é este o limite em que

a própria concepção de razão criada pelo autor se desenvolveu. Não por acaso

criou-se a ideia de que o homem seria capaz, por meio da experiência, da

observação, da investigação, de decifrar a natureza em geral e a sua própria.

Esse conhecimento, no entanto, embora não tivesse por premissa eliminar a

religião, buscou substituir várias autoridades, totêmica, mítica e religiosa, por uma

autoridade laica estruturada no direito natural moderno.

42 Ruth M. Chittó Gauer

V A impessoalidade funda a categoria do indivíduo e redimensiona a norma

Os fenômenos jurídicos, da mesma forma que os da língua, são os

mesmos que representam o que é de mais característico de uma sociedade. Essa

opinião do autor59

A visão do poder instituída pela norma de parentesco, seja ela de cunho

matrilinear ou patrilinear, está estruturada em uma concepção “natural”, a

consanguinidade. A separação natureza-cultura, instituída segundo a premissa de

Lévi-Strauss, permanece como sistema fundamental na retórica jurídica. Essa

permanência constitui-se precisamente no caminho para se conhecer a função

social da norma jurídica e da dogmática.

nos leva a pensar sobre determinadas formas de organização

das sociedades, pelo menos desde os gregos e romanos onde o pensamento

jurídico regulamentava as relações sociais. As transformações das instituições

jurídicas, consideradas incertas em face das mudanças ocorridas nas sociedades

ocidentais, não alteraram a sua relação a uma tendência de unificação, de

uniformização, não por estarem superadas em face das transformações

econômicas, estéticas e políticas das sociedades, mas, pela necessidade de se

harmonizar a moral e o direito às transformações sociais. A unificação dos

códigos no mundo ocidental pode ser detectada pela ordem jurídica, política dos

países do ocidente de tal forma que a ordem moral e mental assim como a ordem

política e jurídica se estruturam em constituições de forma muito semelhante. Esta

“unidade” jurídica nasce no seio da própria ordem moral, da tradição e de

instituições que a precederam. A unidade anterior deu lugar à separação e à

especialização, a exemplo do exercício do poder.

Vários antropólogos procuraram unir o conceito de cultura à ideia de um

código, uma espécie de “linguagem” pela qual falamos uns com os outros,

trocamos mensagens, respeitamos regras, nos submetemos a normas e

utilizamos símbolos. A criação dos símbolos modernos, com base na crença da

ciência, que possui o indivíduo como melhor exemplo, reorganizou-se a partir de

um “novo” remapeamento social, definindo um conjunto de regras que dispõem

59 MAUSS, Marcel, Sociedad y ciências sociales. Obras III. Barcelona: Barral Editores, 1970, p. 320, 321.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 43

sobre o pensamento e a ação. A cultura ocidental moderna pode ser vista como

essencialmente semiótica, tal como defendida por Max Weber e referida por

Geertz, pois, segundo este último, “o homem é um animal amarrado a teias de

significado que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a

sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas

como uma ciência interpretativa, à procura do significado”.60

A racionalidade moderna colocou o indivíduo no mundo e com ele

descentrou a estrutura da norma fundante, porém não conseguiu eliminá-la,

apenas releu a forma. O nascimento do indivíduo “soberano” foi uma construção

que se efetivou entre o período renascentista do século XVI e o iluminismo do

século XVIII. Neste último período se postulou o indivíduo como entidade maior,

“sujeito-da-razão”. Tal postulação inspirou-se, em parte, nos princípios

ontológicos contidos no monadismo de Leibniz.

A atuação dos

indivíduos na sociedade contemporânea se dá por meio de mensagens

codificadas por normas sociais tradicionais ao lado de uma normatização escrita,

denominada legislação em sentido amplo. Essa legislação é entendida como um

sistema de comunicação que dá sentido à nossa vida, um conjunto de “verdades”

relativas aos atores sociais que nela aprendem como existir. São “versões” da

vida em sociedade, teias, imposições, escolhas, proibições, que não conseguiram

eliminar a regra geral, não escrita: o direito a possuir um par desde que escolhido

fora da consanguinidade. O crime e o castigo seguem convenções legais, escritas

que trazem dentro de si algum tipo de informação sobre quem somos, o que

fazemos, e como devemos realizar nossas ações em sociedade. Este conjunto

normativo é logicamente entrelaçado e compõe os códigos modernos. Todo esse

sistema de comunicação racionalizado, além de não eliminar a norma fundante,

como já referido, não dá conta de interpretar o fluxo do discurso social, de

conhecer as diferentes “realidades”, criadas em sociedade, e as existências

alternativas por meio das quais ocorre o movimento social.

61 A partir daí, outras categorias

foram derivadas, como, por exemplo, as categorias coletivas. Descartes62

60 GEERTZ, Clifford, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978, p. 15.

contribuiu para a construção dessa nova categoria, o indivíduo moderno, quando

61 LEIBNIZ, Gottfried W. Os Pensadores XIX, São Paulo, Abril Cultural, 1974, pp. 63-73. 62 DESCARTES, René, Os Pensadores XV, São Paulo, Abril Cultural, 1973, pp. 81-153.

44 Ruth M. Chittó Gauer

estabeleceu a separação (chórismos) entre substância espacial (res extensa) e

substância pensante (res cogitans), vistas como ontologicamente diferenciadas.

Ao refocalizar o velho (e original, no sentido heideggeriano), tema metafísico do

dualismo entre mente e matéria, Descartes interpretou a dualidade por meio dos

elementos essenciais configurados em sua teoria, elementos esses que seriam, a

partir de sua análise, irredutíveis. No centro da mente ele colocou o sujeito

individual, com capacidade de raciocinar e pensar, determinado pelo “cogito ergo

sum”, o “eu penso”. A partir dessa posição de Descartes, a categoria do “sujeito

cartesiano” ficou conhecida como elemento básico constituinte do pensamento

filosófico ocidental. O pensamento acerca da nova compreensão humana foi, sem

dúvida, reelaborado também pela visão de Locke,63

Para muitos autores, os teóricos do direito natural moderno formaram uma

escola. É, no entanto, importante lembrar que o nome de “escola do direito

natural” esconde autores e correntes diversas: filósofos como os acima citados,

além de outros como Hobbes e Kant, que se ocuparam de problemas jurídicos e

políticos, elaborando a composição de orientações diversas. Por outro lado,

enquanto para os juristas filósofos (ou filósofos juristas) a matéria do direito

natural compreende tanto o direito privado como o público, para os três grandes

fundadores dos princípios filosóficos do direito natural moderno, Hobbes, Locke e

Rousseau, o tema de suas obras centrou-se quase exclusivamente no Direito

público. Tentou-se, assim, uma análise que desvelasse os fundamentos da

natureza do Estado. Embora haja uma divisão entre os variados sistemas

concernentes aos autores mencionados, é preciso evitar considerar que eles

em seu Ensaio acerca do

entendimento humano. Sua definição de “mesmidade (sameness) de um ser

racional” possibilitou a criação do modelo de identidade igualitária e contínua para

o indivíduo. O “indivíduo soberano”, sujeito da modernidade, em Locke, está

inscrito no processo e nas práticas sociais da modernidade. Ele era o “sujeito” da

modernidade em dois sentidos: a origem ou o “sujeito” da razão, do conhecimento

e da prática; e aquele que sofria as consequências dessas práticas – aquele que

estava submetido a elas. As contribuições dos autores acima citados embasaram

a compreensão do direito natural moderno.

63 LOCKE, John, Os Pensadores XVII, São Paulo, Abril Cultural, 1973, pp. 139-348.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 45

estejam separados por uma fronteira intransponível. Não há dúvidas de que uns

pertencem à história das doutrinas jurídicas, enquanto outros pertencem à história

das doutrinas políticas. Contudo, apesar da dualidade de objeto e dos variados

matizes teóricos, todos pertencem à mesma “escola”, o que é sinônimo de

pertencer aos mesmos “ismos”, em um sentido “epocal” de alicerçamento

filosófico, jurídico e político.

Pela primeira vez na história da reflexão sobre a conduta humana se

permitiu subordinar tal conduta a um tratamento científico. Todas as correntes

concordam, no entanto, que se pode falar em uma escola do direito natural

enquanto esta não constituiu uma unidade metafísica ou ideológica, mas sim uma

unidade metodológica. Na verdade, não existe divergência entre os jusnaturalistas

quanto a objetivos tais como, por exemplo, a distinção estabelecida entre

empiristas como Hobbes, que pretende uma análise psicológica da natureza

humana, e os formalistas como Kant e Fichte, que deduzem o direito a partir de

uma ideia transcendente de homem. Não há dispersão, e sim manutenção dos

mesmos objetivos. Tanto é assim que, no final do século XIX, os tratadistas não

sabiam dizer se teria sido por influência de Hegel o dar-se a possibilidade de

reservar a Kant o uso do termo direito racional. Outra prova é que, após as

críticas da escola histórica, convencionou-se chamar de direito racional o direito

natural.64

Essas questões, no entanto, não eliminam o intento comum, ainda que

esse tenha sido realizado de modo diverso. Nesse sentido devemos considerar

que o que caracterizou o movimento em seu conjunto não foi o objeto em si

(natureza), mas o modo de abordá-lo (a razão), não foi um princípio ontológico

que pressupõe uma metafísica comum, mas um princípio metodológico. O

objetivo comum de construir uma Ética racional separada definitivamente da

teologia e capaz por si mesma, precisamente porque fundada, finalmente, em

uma análise e em uma crítica racional dos fundamentos, garantiria a

universalidade dos princípios da conduta humana. Essa universalidade fundou o

64 Sobre a abordagem da Filosofia em Hobbes, Kant e Fichte consultar Louis Dumont, O Individualismo: Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, Rio de Janeiro, Rocco, 1985.

46 Ruth M. Chittó Gauer

paradoxo da modernidade. A igualdade moderna “unificou” o pensamento

ocidental, e “eliminou” todas as diferenças.

O que caracteriza, portanto, o movimento em seu conjunto não é tanto o

objeto, mas o método. Se há um fio condutor único que mantêm unidos os

jusnaturalistas e permite captar certa unidade é a ideia de que é possível construir

uma ciência verdadeira, uma “ciência moral” à qual se poderia aplicar o método

matemático. A base seria não uma lógica do provável, mas uma lógica que

analisaria e prescreveria as regras dos raciocínios.

A ciência moderna ligou a investigação das forças da natureza à utilidade

das mesmas para beneficiar a humanidade. O campo científico passou a ser

pensado como possibilidade de progresso e por meio dele (do progresso), ideou-se

a emancipação definitiva e total da humanidade, ainda submersa no platônico

mundo das sombras. A civilização das luzes estendeu-se por todos os continentes;

da Europa chegou o progresso, progrediram as ciências na Inglaterra, Alemanha e

outros países. A visão de Georges Gusdorf65

É de fundamental importância a reflexão acerca da organização do Estado-

nação para se poder pensar o ponto de referência global de muitos processos

sociais isolados, como modelos estáticos. Não se pode tratar essa questão sem

ter presente a dinâmica da vida social. Nesse sentido, o indivíduo passou a ser

visto como o localizador, o referencial filosófico-social básico, e foi definido, no

interior dessa grande estrutura, o Estado-nação, sustentáculo da sociedade

auxilia a interpretar o paradigma da

ciência moderna. No século XVIII, o espírito precursor desta é ampliado e

aprofundado e o fenômeno intelectual daí resultante, a redenção do Siècle des

Lumières, sepultura da medieval fé em Deus, criou condições para a emergência

das ciências sociais no século XIX. As teorias clássicas liberais de governo,

baseadas nos direitos individuais e na ciência moderna, precisaram dar conta das

estruturas do Estado-nação e das grandes massas que compõem as democracias

modernas. Há, no entanto, que lembrar que na medida em que as sociedades

modernas se tornaram mais complexas, elas passaram para uma forma mais

coletiva e social.

65 GUSDORF, George, Les Sciences Humaines et la Pensée Occidentale. Les principes de La Pensée ao Siècle des Lumières, v. IV, Paris, Payot, 1967, p. 183.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 47

moderna. Os indivíduos soberanos, com suas vontades, necessidades e

interesses, permaneceram como figura central tanto nos discursos da economia

quanto nos das leis modernas. Nesse contexto, o indivíduo passou a ser

explicado por meio do modo como são formadas suas subjetividades (a

interioridade de si próprio) nas participações mais amplas. E, inversamente, o

modo como os processos e as estruturas sociais são sustentados pelos papéis

que os indivíduos neles desempenham. O cidadão individual constituiu-se no

elemento funcional do estado burocrático moderno, nesse sentido, passou a ser

visto como localizado no interior da estrutura formadora da sociedade moderna, o

estado.

As descrições sociológicas a respeito do indivíduo moderno encontram um

modelo significativo na obra dos interacionistas simbólicos e, entre eles,

Goffman.66

66 GOFFMAN, Erving, Estigma, Rio de Janeiro, Zahar, 1982. Além dessa obra todos os títulos publicados pelo autor são importantes para o entendimento dos diferentes papéis sociais do indivíduo moderno em uma perspectiva interacionista.

O modelo interativo elaborou uma minuciosa anatomia do processo de

reciprocidade que se dá entre o “interior” e o “exterior”, entre o sujeito e seu

entorno, constitui-se em um produto intelectual próprio da primeira metade do

século atual. A individualidade foi colocada em termos de identidades culturais, e

estas, por outro lado, frequentemente situaram-se sob a forma de identidades

nacionais. Basta recordar, para isto, os numerosos estudos sobre caráter

nacional. Uma das formas possíveis (e simultâneas) de autodefinição dos

indivíduos será como sendo brasileiros, argentinos, ingleses, etc. Essas

identidades não estão, certamente, impressas em nossos genes. Obviamente ao

nos definirmos como tais, estamos usando de uma metáfora plena de múltiplos

significados. Ao mesmo tempo, a ideia de homem sem identidade nacional parece

criar uma tensão, um sentimento de indefinição em virtude da ausência de um

referencial básico. No entanto, nós todos sabemos que ser identificado com a sua

nação remete à compreensão de um sistema de representações culturais que

identificam uma nação, a qual é, primordialmente, uma comunidade simbólica, ou

seja, gestada ao nível da razão simbólica. As culturas nacionais, criadas por meio

de tetos políticos, “englobaram” todas as diferenças, gerando, assim, o processo

maciço “integracional” e abrangente próprio da “sociedade de massas”, fenômeno

48 Ruth M. Chittó Gauer

este de índole essencialmente contemporânea, e para o qual pensadores como

Heidegger e Ortega y Gasset já chamaram, há décadas atrás, a atenção.

As identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas

são formadas e transformadas por representações que só puderam ser

construídas após o surgimento do indivíduo. O modelo interativo, com sua

reciprocidade estável entre “interior” e “exterior”, embasou-se nos debates

ocorridos na primeira metade do século XX. No início do século XIX, o debate se

articulou em torno das teorias clássicas liberais de governo, baseadas nos direitos

e consentimentos individuais, tendo que dar conta das estruturas do estado-

nação. Os indivíduos soberanos, com suas vontades, necessidades e interesses,

tornaram-se a figura central dos discursos políticos, já no início do século XIX. A

lealdade e a identificação foram localizadas, desde os finais do século XVIII, nas

sociedades ocidentais, junto ao estado-nação e, posteriormente, à cultura

nacional. No caso brasileiro, esse tema aparece pela primeira vez nos discursos

dos deputados constituintes de 1823.

Os parlamentares brasileiros tiveram dificuldades ao definir quem eram os

indivíduos que formariam os cidadãos brasileiros, dificuldade que se relacionou à

complexidade das relações estabelecidas desde o início da colonização

portuguesa. As diferenças regionais, étnicas, religiosas, políticas, entre outras,

deveriam ser unificadas por uma “unidade política” que nascia com a

independência. Podemos observar que as questões sobre a escravidão, os índios

e a população de baixa renda foram questões muito complexas resolvidas de

forma a procurar soluções que não alterassem a proposta da Constituição, cujo

princípio liberal não conseguiria conciliar uma solução que não fosse contraditória.

Dar solução a essas questões sem abolir a escravidão, resolver a situação dos

índios e estender à população de baixa renda os direitos políticos constituiu-se

um problema aos parlamentares liderados pelos Egressos de Coimbra, que

tiveram forte oposição dos defensores da permanência das instituições coloniais.

Como definir nacionalidade implicava manifestações das relações sociais

que expressavam poder e, consequentemente, dominação e hierarquia, a esfera

jurídica que acompanhou a formação das instituições e das hierarquias sociais

não permitiu delinear a nacionalidade sem ferir a igualdade pretendida pela

construção jurídica. O tema da nacionalidade, que exprime as formas originais de

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 49

relações sociais, conduziu o debate no sentido de buscar rumos alternativos para

que se pudesse desenhar a identidade nacional. As idiossincrasias sociais, a

negação da ordem escravocrata, a situação do índio e da população de baixa

renda compunham uma realidade que não possibilitava eliminar os vínculos

patrimonialistas das relações sociais nacionais. A proposta apresentada por

Maciel da Costa de conceder o direito de liberdade, de segurança e o direito de

propriedade para todos e de excluir os direitos políticos a alguns foi uma das

tentativas de dar solução ao problema.

Em se tratando de sociedade moderna, a questão do direito ultrapassou a

questão da lei, já que para se pensar em lei faz-se necessário incluir o fato, o

valor e a norma, que, por outro lado, como já afirmamos, passam a ser

compreendidos como sendo a lei no pensamento iluminista. Os indivíduos

soberanos, com suas vontades, necessidades e interesses, tornaram-se a figura

central da lei, não há lei sem a impessoalidade, assim como não há indivíduo,

pois a lei representa ao mesmo tempo um valor, um fato e uma norma. A própria

concepção de indivíduo implica uma ampla liberdade de escolha. Alguns valores

em vez de emanarem da sociedade, são determinados pelo indivíduo para o seu

próprio uso. O indivíduo como valor social exige que a sociedade lhe delegue uma

parte de sua capacidade de fixar os valores. A liberdade de consciência é um

exemplo emblemático. O valor está imbricado na própria configuração das ideias,

não havendo, em muitos casos, liberdade de escolha. Como refere Dumont,67

67 DUMONT, Louis, O individualismo, Rio de Janeiro, Rocco, 1985, pp. 269- 270.

“o

valor está imbricado, é prescrito, e por assim dizer, pelo próprio sistema de

representações, ou o valor se vincula ao indivíduo, o que tem por separar a ideia

de valor. Essa antítese exprime-se na linguagem de Tönnies: vontade espontânea

e vontade arbitrária, sendo o fulcro da questão da liberdade de escolha”. A

racionalidade moderna possibilitou a dissolução do poder da norma. No entanto,

há que se salientar a importância da norma. Embora essa dissolução tenha

ocorrido, as estruturas normativas que convencionam as relações de parentesco,

as quais configuram a estrutura social, permanecem: esse é o fato que possibilita

pensar, neste caso, que a norma não seria um efeito da sociedade, mas a própria

sociedade em ato. A ser assim poder-se-ia pensar que o fundamental e o

50 Ruth M. Chittó Gauer

acessível para a sociedade seria o paradoxo das palavras e da relação com o

outro – análogo ao “fonema Zero” de que falam os linguistas – ela, a norma, nada

articula. No entanto, abre toda a significação, o fundamento primeiro do fato

social. Fato esse que pode ser expressão de conflitos sociais e do modo como

esses conflitos são institucionalmente resolvidos.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 51

VI A crise do racionalismo e o retorno ao mito: cumplicidade com a psicanálise

Acompanhando Bachelard,68 quando examina as grandes conquistas da

ciência a partir do século XIX e, sobretudo, no decorrer do século XX, é possível

pontuar o foco da crise epistemológica. Bachelard assinala: “nos campos da

matemática, da física e da química não apenas um avanço, mas a instauração de

um ‘novo espírito científico’, que parte de novos pressupostos epistemológicos e

exercitá-los tornam-se uma atividade que, mais do que uma simples descoberta, é

antes criação”. Na física, reconhece que “com a ciência einsteniana começa uma

sistemática revolução das noções de base: a ciência experimenta então aquilo

que Nietzsche chama de ‘tremor de conceitos’, como se a terra, o mundo, as

coisas adquirissem uma outra estrutura desde que se coloca a explicação sobre

novas bases”. Após o relativismo do racional e do empírico, uma das teses

centrais da epistemologia de Bachelard é a de que a abordagem do objeto

científico deve ser feita por meio do uso sucessivo de diversos métodos. Um

segundo fundamento, versando sobre a descontinuidade, propôs uma noção de

duração não bergsoniana, que se fundamenta na “ritmanálise que Bachelard

declara ter encontrado em ‘du Philosophe brésilien’,69 de Lúcio Alberto Pinheiro

dos Santos”70

Ligada à questão das ricas contribuições obtidas na colaboração entre

história das ideias, antropologia e psicanálise, cabe a seguinte observação: na

atualidade é possível falar sobre a existência de uma crise das ciências humanas.

. A obra de Bachelard tornou-se fundamental, pois permite repensar

a crise da ciência moderna, passível de ser compreendida em todos os campos

do saber na medida em que a teoria da relatividade e a física alteraram a posição

do observador. Detectou-se a partir desta nova posição a diminuição da distância

entre as ciências humanas, e entre vários filósofos, de Bergson a Bachelard,

incluindo-se posteriormente Merleau-Ponty, a constatação da crise conduziu à

experiência interdisciplinar.

68 BACHELARD, Gaston, Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, pp. 756-758. 69 BACHELARD, Gaston, op. cit., p. 757. 70 BACHELARD, Gaston, Os Pensadores, op. cit. pp. 756-758.

52 Ruth M. Chittó Gauer

Do final do século XIX até nossos dias nasceu uma série de novos campos de

conhecimento, desde a psicanálise até a cibernética. Hoje esses novos saberes

tentam aperfeiçoar um diálogo, como uma via de várias ramificações que permita

falar em interdisciplinaridade. A tentativa de um diálogo entre as diferentes

ciências, ou campos de conhecimento, recebe críticas em função dos postulados

e dos métodos que cada campo de saber adota. Seguidamente observamos

manifestações reveladoras de um sentimento crítico acerca da união desses

postulados. Esses métodos ocasionariam uma desordem incompatível com os

pressupostos de cada disciplina. Embora haja toda uma resistência a essa

aproximação, sabemos que é perfeitamente possível tratar de temas que possam

receber uma abordagem interdisciplinar, apesar da dificuldade criada pela

ausência de uma terminologia comum e pelo caráter vago de alguns conceitos.

Isso pode ser percebido com relativa facilidade na atividade interdisciplinar que

envolve campos de saber como, por exemplo, a história das Ideias, a

antropologia, a psiquiatria e psicanálise, cujos exemplos encontram-se presentes

na literatura contemporânea.

Todavia, em meio a um contexto dominado pelo racionalismo, formaram-se

alguns enclaves que deram ao papel do imaginário seu merecido valor.71 Para

Durand,72 as análises de Freud sobre o papel do inconsciente,73 do “pensamento

selvagem”, do mito e do “pensamento obscuro”, divulgados pela antropologia de

Claude Lévi-Strauss,74 Roger Caillois75 e Roger Bastide,76

71 Segundo DURAND: “Os bastiões de resistência dos valores do imaginário no seio do reino triunfante do cientificismo racionalista foram o Romantismo, o Simbolismo e o Surrealismo. E foi no cerne desses movimentos que uma reavaliação positiva do sonho, do onírico, até mesmo da alucinação – e dos alucinógenos – estabeleceu-se progressivamente, cujo resultado, segundo o belo título de Henri Ellenberger, foi a ‘descoberta do inconsciente’”. Gilbert Durand, Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem, Rio de Janeiro, Difel, 2001, p. 35.

são exemplos destas

análises. Esses enclaves foram mais importantes como movimento e menos

como respostas sobre as questões perenes – o homem, a natureza, Deus, a

história e as normas sociais.

72 Gilbert Durand, op. cit. 73 Sigmund FREUD, A Interpretação dos Sonhos, São Paulo, Imago, 2000. 74 LÉVI-STRAUSS, Claude, O Pensamento Selvagem, 3ª ed., São Paulo, Papirus, 2002. 75 CAILLOIS, Roger, O Mito e o Homem, Lisboa, Edições 70, 1986. 76 BASTIDE, Roger, Sociologia e Psicanálise, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1974.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 53

Gilbert Durand afirma que a psicanálise de Freud teve como grande papel

dar o primeiro passo na direção da crítica da esfera consciente, a razão,

mostrando o papel crucial desempenhado pelo inconsciente, a função do sonho,

entre outras contribuições. Para Durand, “Os estudos clínicos de Freud e a

repetição das experiências terapêuticas – o famoso divã – comprovaram o papel

decisivo das imagens como mensagens que afloram do fundo do inconsciente do

psiquismo recalcado para o consciente. Qualquer manifestação da imagem

representa uma espécie de intermediário entre um inconsciente não manifesto e

uma tomada de consciência ativa. Daí ela possuir o status de um símbolo e

constituir o modelo de um pensamento indireto no qual um significante ativo

remete a um significado obscuro”.77

Confrontando técnicas e simbolismos xamanísticos de natureza curativa

com a teoria e prática psicanalítica, conclui que, em qualquer modalidade de

construção de um universo simbólico, o importante é a existência de significados

que, mesmo sendo arbitrários, como de fato o são, adquirem eficácia curativa na

medida em que se submetem a uma lógica do inconsciente capaz de dar sentido

àquilo que o paciente (tanto no caso do xamã como do psicanalista) experimenta

como sofrimento psíquico. Assim não há, em princípio, uma maior eficácia

terapêutica das técnicas psicanalíticas sobre as xamanísticas. Isto pode ser

comparado com o coeficiente de eficácia entre as diversas teorias que inspiram,

em termos de interpretação, as orientações psicoterapêuticas, já de matiz

clássica, baseadas na obra de Jung, Freud, Melanie Klein, Bion, Alexander,

Hartmann e tantos outros, pois tal comparação confirma, de certo modo, as

assertivas de Lévi-Strauss, na medida em que não se estabelece a partir dela a

primazia prática de qualquer teoria e sua superação empírica por outras. Portanto,

Ao lado das análises sobre a fundação da

norma, Lévi-Strauss se concentrou no terreno da mitologia. A maior parte de suas

investigações nessa área está contida na série Mitológica, uma vasta compilação

e análise, extremamente minuciosa e complexa, de milhares de mitos oriundos

das chamadas sociedades primitivas. Seguindo essa linha de investigação, o

autor estabelece interessantes estudos comparativos a respeito do que ele

denomina eficácia simbólica.

77 DURAND, Gilbert, op. cit., p. 36.

54 Ruth M. Chittó Gauer

não será a partir de resultados concretos (ao contrário do que ocorre nas ciências

naturais) que se poderá verificar o maior ou menor acerto, veracidade e exatidão

de uma teoria. No entanto, o importante na análise de Lévi-Strauss não se refere

exatamente à eficácia terapêutica (ou eficácia simbólica), mas sim ao fato de que

tanto o pensamento do xamã como o do psicanalista compartilham dos mesmos

supostos mitológicos básicos. Ou seja, para Lévi-Strauss, a psicanálise é mais

uma elaboração mitológica (e, portanto, qualitativamente diferente do pensamento

científico), semelhante a tantas outras, que pode ser coletada e que, como estas,

resulta na construção de uma ordem e sentido que situa o homem, a partir de um

modelo explicativo, frente à sua realidade existencial e concreta. Cabe, como

comentário correlato, mencionar a posição de Georges Devereux.78

De qualquer modo, deve-se salientar a diferença entre a psicanálise como

terapia e como modo de conhecimento da psique, e o mesmo deve ser aplicado

ao xamanismo. Neste, a arte curativa é apenas um componente da totalidade

maior correspondente à organização simbólica do universo tal como é proposta

em um determinado sistema cultural. Cabe mencionar as palavras com as quais

Lévi-Strauss encerra seus escritos sobre a eficácia simbólica: “a forma mítica tem

precedência sobre o conteúdo da narrativa (...) sabe-se bem que todo mito é uma

procura do tempo perdido. Esta forma moderna da técnica xamanística, que é a

psicanálise, tira, pois, seus caracteres particulares do fato de que na civilização

mecânica, não há mais lugar para o tempo mítico, senão no próprio homem.

Desta constatação, a psicanálise pode recolher uma confirmação de sua validade,

ao mesmo tempo em que a esperança de aprofundar suas bases teóricas e de

melhor compreender o mecanismo de sua eficácia, por uma confrontação de seus

Para este

etnopsiquiatra existe uma diferença fundamental entre a teoria psicanalítica e as

teorias xamanísticas em geral, pois a primeira promoveria uma verdadeira

melhora ou cura, por atingir as causas reais da perturbação, o que não se daria

com as últimas. Portanto, Devereux entende que a realidade psíquica pode ser

atingida e compreendida de um modo “científico”, que se opõe, por sua natureza

científica, ao arbitrário cultural contido nas construções mitológicas.

78 DEVEREUX, Georges, Etnopsicoanálisis Complementarista, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1975.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 55

métodos e de suas finalidades com os de seus grandes predecessores: os xamãs

e os feiticeiros.”79

Nesse contexto, Lévi-Strauss contesta as posições teóricas freudianas,

comentando que Freud viveu em um impasse não explicitado e não resolvido

entre o modelo junguiano e o seu próprio. Na verdade, tal análise é simplista, na

medida em que aborda apenas um aspecto imobilizado do complexo e

constantemente renovado pensamento freudiano. Tal discussão inscreve-se no

quadro maior dos debates a respeito da respectiva importância que deve ser

atribuída às estruturas lógicas do inconsciente e aos conteúdos da psique. A

discussão recai sobre a ênfase (indevida, conforme Lévi-Strauss) dada aos

conteúdos do inconsciente durante o processo de interpretação deste. E, por sua

vez, encontramos nesse terreno de discussão uma variante da questão maior,

qual seja a dos modos de construção da identidade nos diferentes sistemas

culturais. No caso específico de Freud, assinale-se o impacto que sua teoria

assestou sobre a auto-concepção, ou formulação de uma identidade, no homem

ocidental. O papel primordial atribuído à razão, e ao homem como ente

qualitativamente diferenciado pelo predomínio da razão sobre as outras

faculdades psíquicas, foi seriamente abalado com o desvelamento de um mundo

interior, soturno e traiçoeiro, no qual habitavam os mais obscuros instintos e as

mais condenáveis facetas da psique humana. Freud, sem fugir aos parâmetros do

racionalismo da mais recente tradição cartesiana, racionalismo que sempre guiou

sua tarefa, com o fim de libertar o homem da “servidão humana, ou seja, da força

das emoções”, como já havia dito Spinoza, elaborou, na passagem para o século

XX, um novo modelo de identidade que permitiu ao homem ocidental viver a si

mesmo em termos de uma auto-imagem que, ainda nos tempos atuais, está

Veja-se, portanto, que para Lévi-Strauss a validade da

psicanálise é sancionada pela respeitável tradição mitológica que, com a

linguagem dos símbolos, permite a via de acesso ao inconsciente. Assim, para o

citado autor, a psicanálise obtém reconhecimento não pelo que ela pretende ser

(uma tentativa de abordagem científica da psique humana), mas pelo que é: um

discurso mitológico do homem ocidental sobre si mesmo.

79 LÉVI-STRAUSS, Claude, Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1970, p. 224.

56 Ruth M. Chittó Gauer

profundamente radicada nos modos contemporâneos de pensar e sentir, não só

em áreas específicas, como a psiquiatria (que na fase pré-freudiana, na qual se

destaca E. Kraepelin, não deu atenção à dinâmica psicológica), a psicologia, a

sociologia e a antropologia, mas como elemento difuso no contexto cultural mais

amplo. Isso deve ser levado em conta para tornar o século XX mais

compreensível. Correspondendo ao espírito da época Darwin, em outra área de

pesquisas, mas, do mesmo modo que Freud, impregnado de concepções que

fundamentavam a visão evolucionista da humanidade como evolução alavancada

na e pela evolução biológica, que traz consigo o desenvolvimento da razão, não

deixou de lançar uma luz sobre obscuros mecanismos da natureza, sentido pelos

mores de seu tempo como negadores de uma transcendência que vinculava o

homem aos ídolos erigidos pela civilização. E isto Darwin o fez mostrando que,

em última instância, os sacralizados princípios da cultura e da civilização

empastavam-se no visgo da materialidade biológica. Acertaram, tanto Darwin

como Freud, um duro golpe ao narcisismo humano.

Quando Freud buscou a subjetividade e, com ela, a descoberta do

inconsciente, encontrou, nessa busca, as obscuras forças ameaçadoras da

integridade racional. Para Freud, nossas identidades, nossa sexualidade e a

estrutura de nossos desejos são formadas com base em processos psíquicos e

simbólicos do inconsciente, que funciona de acordo com uma “lógica” muito

diferente daquela da Razão. Com essa posição, o autor arrasa o sujeito

cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada – o sujeito

cartesiano do “penso, logo existo”. Esse aspecto da teoria freudiana teve um

profundo impacto sobre o pensamento moderno, e contribuiu para o

descentramento do sujeito construído com base no racionalismo, o que

correspondeu, de certa maneira, ao “descentramento cosmológico” produzido

pela revolução copernicana. Ao contrário, Lévi-Strauss procurou confirmar a

universalidade do sistema simbólico, tentando, dessa forma, recriar os modelos

universais, tal como a ciência moderna havia proposto. A contribuição de

Ferdinand de Saussure, linguista estrutural que muito influenciou Lévi-Strauss,

também contribuiu para essa crise do conhecimento. Afirmou Saussure que nós

não somos, em nenhum sentido, os autores das afirmações que fazemos ou dos

significados que expressamos na língua. Embora possamos utilizar a língua para

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 57

nos comunicarmos, não podemos utilizá-la para produzir significados, apenas nos

posicionamos no interior das regras da língua e dos sistemas de significados de

nossa cultura. A língua é, nesse sentido, um sistema social e não individual. Ela

pré-existe a nós. O significado das palavras não é fixo, em uma relação um-a-um,

com os objetos ou eventos no mundo existente fora da língua. O significado surge

nas relações de similaridade e diferença que as palavras têm com outras palavras

no interior do código da língua (como por exemplo, o par de termos opostos noite-

dia).

No campo da etnopsicanálise, onde as áreas da etnologia e a psicologia se

diluem, há uma vastidão temática que é passível de ser analisada por meio de

uma lógica própria. Mas não apenas uma lógica como também uma sensibilidade

acurada do pesquisador para os fenômenos psicossociais. No entanto, durante

muito tempo foram questionados conceitos que devem ser considerados básicos

como, por exemplo, os de normalidade e anormalidade. Atualmente, com o

desenvolvimento do pensamento na área de etnopsicanálise, tal questão está em

grande parte superada. Porém, para fins de análise histórica, é interessante

reportarmo-nos às vicissitudes do desenvolvimento dessa disciplina. Lembremos

que, em virtude de considerações de ordem variada, de natureza teórica ou não,

os antropólogos herdeiros do relativismo cultural foram conduzidos a considerar

como “normais” (com todas as ambiguidades contidas nesse termo) certas

atitudes prevalecentes como comportamento modal em certas culturas, ao passo

que critérios de normalidade estabelecidos desde uma perspectiva transcultural

não coincidiam com essa perspectiva. Essa foi, por exemplo, a opinião de

Georges Devereux, que durante décadas se dedicou a estudos etnopsicanalíticos.

Este autor optou por uma definição de normalidade que, superando as

contingências do relativismo, tornou básica para a análise dos fenômenos

psicodinâmicos nas mais variadas culturas. Devem ser consideradas também, e

este fato mantém uma conotação de atualidade, as complexas relações entre a

teoria do pesquisador e as pressões políticas de alguns grupos tradicionalmente

tidos por psiquicamente desajustados na sociedade ocidental (como os

homossexuais, por exemplo). Por outro lado, foi comum que pesquisadores

voltados para a área da etnopsicanálise considerassem de modo inexato os

processos de cura xamanística e o mundo místico, tanto primitivo como o que

58 Ruth M. Chittó Gauer

pode ser encontrado ainda hoje em contextos urbanos ocidentais. Isso derivou do

uso que se fez da noção de pensamento pré-lógico, lançada por Lévi-Bruhl. A

atribuição de uma mentalidade pré-lógica ao primitivo se constituiu em uma ficção

(desmascarada e interpretada por Lévi-Strauss no conjunto de sua obra) por

muito tempo aceita, na medida em que etnocentricamente lançou a mentalidade

primitiva no terreno da infantilidade e da doença mental, sem conseguir vislumbrar

a complexa lógica orientada para o princípio da realidade, que anima a mente

primitiva, dando sentido e ordem ao universo e que é, basicamente, um aspecto

estrutural de todo pensamento humano, mesmo no chamado mundo civilizado,

sem que se torne necessário recorrer a modos arcaicos de funcionamento da

psique, que antecedem uma maturidade mais plena, da qual um grande número

de culturas seria excluído. Mesmo assim, a noção de participação mística é

extremamente útil e esclarecedora, embora o próprio Lévi-Bruhl não a tenha

captado na totalidade de seu sentido e de sua abrangência, que possui uma

conotação de natureza mais universal. Mas discutir as posições de Lévi-Bruhl é,

em certa medida, discutir a questão da alteridade, e para isso é indispensável o

apelo à etnopsicanálise. Mas a concepção da existência de uma suposta

psicopatologia como elemento constituinte e essencial da mente primitiva tem

raízes que se encontram nos trabalhos, nesse ponto já superado, de Freud, ao

menos nos aspectos que permanecem atrelados ao evolucionismo do século XIX.

A fábula narrada em Totem e Tabu contribuiu, por muito tempo, para lançar em

descrédito a psicanálise, pelo menos aos olhos dos antropólogos que adotaram

uma visão mais superficial dessa teoria. Todavia, em meio a um contexto

dominado pelo racionalismo, formaram-se alguns enclaves que deram ao papel

do imaginário seu merecido valor, como as já mencionadas abordagens de Lévi-

Strauss, Caillois e Bastide, sem dúvida importantes, mas nelas algumas questões

precisam ser revistas.

Para Durand, o enfoque dado por Freud sobre o modelo de pensamento

difere do sistema de parentesco – norma constitutiva – proposto por Lévi-Strauss. A fundação da norma estrutura um significado não apenas obscuro. Na

concepção de Durand, quando interpreta que um significante ativo remete a um

significado obscuro, comprova-se o papel decisivo das imagens como mensagens

que afloram do fundo do inconsciente do psiquismo recalcado para o consciente.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 59

O Não constituinte da norma circunscreve a psicanálise, sem deixar de ser uma

tentativa de fuga do racionalismo. Porém, faz-se necessário lembrar: as primeiras

denúncias sobre a violência totalizadora da racionalidade moderna são anteriores

às reflexões ocorridas no âmbito do pensamento antropológico ou psicanalítico.

60 Ruth M. Chittó Gauer

VII Crítica à razão totalizadora: um exemplo de época

Se a norma fundante estrutura todo e qualquer ordenamento social,

concepção defendida pelos estruturalistas, Giambattista Vico80

Esse papel de vanguarda cultural foi sendo comprometido pela decadência

econômica das cidades italianas e pelo avanço da Contra-Reforma. A partir de

meados do século XVI e, notadamente, nos século XVII e XVIII, a Itália

mergulharia no ostracismo cultural. Os novos centros do pensamento deslocaram-

se para áreas reformadas, como França e Inglaterra. O pensamento de

Giambattista Vico (1668-1744) insere-se dentro desse contexto histórico.

Evidentemente, a posição marcadamente anticartesiana, assumida por Vico

desde o início de sua frustrada carreira acadêmica, estava relacionada à condição

periférica ocupada pela península italiana no desenvolvimento do pensamento

europeu.

estava com razão

quando afirmava que “A mente humana naturalmente se inclina a deleitar-se com

o uniforme”. O autor foi um dos principais representantes do hegemônico

pensamento Italiano dos séculos XV e XVI, que se difundiu por toda a Europa. O

humanismo renascentista, e sua vasta produção em diversos campos do

conhecimento, estabeleceram um padrão imitado no restante do continente

europeu.

O posterior esquecimento a que foi relegado seu pensamento relacionava-

se à sua posição anticartesiana e contrária ao Iluminismo. Sua crítica à pretensão

iluminista de compreender a experiência humana à luz das ciências naturais e a

valorização da mitologia e da poesia como fontes de conhecimento tornaram Vico

um opositor do racionalismo corrente de pensamento, que se tornaria hegemônico

nos séculos seguintes.

As ideias de Vico estavam ao mesmo tempo marcadas por uma muito

discreta reflexão materialista e pelo anticartesianismo. Para Vico a filosofia

deveria buscar compreender os produtos culturais humanos, evitando isolar-se

em abstrações excessivas. A pretensão racionalista de submeter o conhecimento

80 VICO, Giambattista, Os Pensadores, seleção, trad. e notas de Antonio Lázaro de Almeida Prado, São Paulo, Abril Cultural, 1974.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 61

ao método matemático era, em sua opinião, desprovida de sentido, pois existiriam

produtos humanos fundamentais, como a poesia e a história, que careceriam de

demonstração lógica, pois repousam no verossímil. Um aspecto essencial dessa

posição é o caráter problemático assumido pela ideia de verdade, ou seja, a

perda de seu atributo de certeza.

Dessa forma, Vico resgata a história do limbo a que fora lançado pelo

cartesianismo. A crença na existência de ideias inatas e a proposta de unidade

metodológica, a partir do modelo matemático, formulada por Descartes, colocava,

segundo o autor, “a história no exílio, aproximando-a das fábulas e narrativas

literárias que não produzem nenhum resultado”.81

Ao mesmo tempo, a diversidade aparece perante o modelo cartesiano

como um incômodo a ser removido. Conforme afirmara: “a verdade é que,

enquanto me preocupava em considerar os costumes de outros homens, pouco

encontrava que me convencesse, pois percebia neles quase tanta diversidade

quanto a que notara antes entre as opiniões dos filósofos”.

82 Dessa forma, o

racionalismo teleológico cartesiano buscava obsessivamente uma unidade

metodológica à qual a história não se adaptava. Esse ideal da unidade era

repetidamente referido por Descartes: “Assim vê-se que os edifícios projetados e

concluídos por um único arquiteto são habitualmente mais belos e harmônicos do

que aqueles que muitos procuraram reformar, aproveitando velhas paredes

construídas para outros fins”.83

81 VICO, Giambattista.. op cit.

Vico condenava o cartesianismo em seus três

elementos fundamentais: o apelo à autoconsciência, contida no cogito, ergo sum;

a crença de que a existência de Deus pode ser provada e, por fim, o princípio de

que ideias claras e distintas constituem o fundamento da verdade. Para Vico a

verdade e o fato ou o verdadeiro e o feito se equivalem, isto é, a condição de ser

capaz verdadeiramente de conhecer qualquer coisa, de compreendê-la como

oposta à sua simples percepção, é que o próprio criador a tenha criado. O cogito

é apenas a consciência do ser e não sua ciência. Assim o homem não conhece a

causa do seu próprio ser, pois ele não se cria a si mesmo. Por outro lado, a ideia

82 DESCARTES, René, Discurso do Método, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 36. 83 Ibid., p. 38.

62 Ruth M. Chittó Gauer

de que as proposições matemáticas, enquanto autoevidência de ideias claras e

distintas, são fundamento da certeza é inadmissível para Vico, uma vez que as

verdades matemáticas fazem parte de um sistema produzido pelo próprio homem.

Como diria Collingwood,84

À razão cartesiana Vico oferece o engenho, faculdade de descobrir o

verossímil e o novo; à crítica fundada na razão, o filósofo napolitano oferece a

tópica, arte que disciplina e dirige os procedimentos inventivos do engenho. O

verossímil pode ser compreendido como uma verdade problemática, colocada

entre o falso e o verdadeiro, mas desprovido de qualquer garantia infalível de

verdade. O autor separou a história das ciências da natureza, pois a ordem das

ideias deve proceder conforme a ordem das coisas. Ao condenar a aplicação do

método matemático às ciências humanas, o filósofo afirmou a possibilidade

humana de conhecer a história, justamente por ser o homem produto desta. A

reflexão do filósofo napolitano considerava, ainda, a história como processo

dentro do qual o homem se expressa na criação de instituições, leis, governos,

etc., sem o sentido tautológico do alcançar o progresso na acepção iluminista. O

passado como passado interessa enquanto continuidade do desenvolvimento

geral das sociedades humanas.

“a noção de ideias claras e distintas é completamente

subjetiva, prova apenas a crença na verdade de quem as formulou”.

O passado não pode ser visto com os olhos do presente, pois, segundo

Vico, é essencial compreender os fenômenos humanos à luz de suas dimensões

históricas, libertando-se de sistemas racionalistas e abstratos na busca dos

aspectos mais concretos da história. Nessa perspectiva, Vico critica o modelo

contratualista hobbesiano, abrindo caminho para a confecção de uma teoria da

história situada em novo patamar, libertando-a da dependência das fontes

escritas. Ao desprezo cartesiano pelas ciências humanas, Vico ofereceu um

modelo teórico-metodológico ao mesmo tempo crítico e construtivo. Nos axiomas

contidos na obra Princípios de (Uma) Ciência Nova,85

84 COLLIGGWOOD, R. G. A Ideia de História, Lisboa, Editorial Presença, s/d, p. 88.

uma “outra propriedade da

mente humana é que os homens sempre que das coisas remotas e

desconhecidas não podem fazer nenhuma ideia, avaliam-nas a partir das coisas

85 VICO, Giambattista, Os Pensadores, seleção, trad. e notas de Antonio Lázaro de Almeida Prado, São Paulo, Abril Cultural, 1974.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 63

deles conhecidas e antevistas”. Os homens que não sabem a verdade das coisas

procuram ater-se ao certo, a fim de que, não podendo satisfazer ao intelecto com

a ciência, ao menos a vontade repouse sobre a consciência.

A concepção de dignidade definida por Vico entende como filólogos todos

os gramáticos, historiógrafos e críticos, que se ocuparam do conhecimento das

línguas e das empresas dos povos, tanto em seu território, tais como os costumes

e as leis, quanto fora dele, como as guerras, os tratados de paz, as alianças, as

viagens e os intercâmbios comerciais. Esta mesma dignidade comprova haverem

falhado pela metade tanto os filósofos que não aferiram as suas razões pela

autoridade dos filólogos, quanto os filólogos que não se deram ao cuidado de

verificar as suas autoridades pela razão dos filósofos. Se uns e outros tivessem

feito isso, teriam sido mais úteis às repúblicas e nos teriam antecedido no meditar

esta ciência. Segundo Vico, “O humano arbítrio, incertíssimo por sua própria

natureza, consolida-se e se determina pelo senso comum dos homens no que

tange às necessidades e utilidades humanas, que são as duas fontes do direito

natural das gentes”. As tradições populares devem ter motivos públicos de

verdade, por isso nasceram e se conservaram por longos espaços de tempo para

massas de povos em suas totalidades. Ao focar as necessidades e as utilidades

como base do direito natural, vinculando esse direito às tradições, Vico permite

recuperar questões que a racionalidade moderna havia desprezado. Nesse

sentido contribuiu para o entendimento de que os homens que não sabem a

verdade das coisas procuram ater-se ao certo, a fim de que, não podendo

satisfazer ao intelecto com a ciência, ao menos se disponham a enfrentar os

limites das verdades científicas.

Os limites do direito natural moderno estão representados na

impossibilidade de dar conta das demandas sociais voltadas para a estruturação

da conduta de vida que é preenchida pelo direito, de um lado, e de outro pela

incompletude do direito frente à complexidade das condutas sociais. A estrutura

jurídica e seu sistema de normas não atendem os reclamos sociais em sua

complexidade. A passagem de uma estrutura comunitária para uma estrutura

individualista não se operou em uma condição favorecida pela preexistência de

um conceito de sujeito responsável, dotado de vontade, existente desde o século

64 Ruth M. Chittó Gauer

XVII, que conferiu ao conceito do direito subjetivo uma plausibilidade e uma

legitimidade impessoal e, portanto, generalizável como totalidade.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 65

VIII A racionalidade moderna frente à diferença: os pioneiros da etnopsiquiatra do Brasil86

Para os Antropólogos do século XIX, a razão prática,

87 paradigma da

igualdade, explicava as diferenças entre “civilizados” e “selvagens”. A razão

prática,88

86 Agradeço a contribuição do Professor Doutor Luiz Ricardo Michaelsen Centurião com quem escrevi o capítulo ora apresentado o qual originalmente foi publicado na forma de artigo.

ou teoria da utilidade, parte do pressuposto de que a cultura é uma

realização instrumental de necessidades biológicas constituídas a partir da ação

prática e do interesse. O referencial se constitui na utilidade prática como uma

reação orgânica (o costume se origina na prática). Nesse sentido, a cultura é vista

como um instrumento ou um conjunto de meios à disposição do sujeito. O

evolucionismo, como teoria explicativa da diferença, apareceu como ideia básica

para toda uma grande fase da teoria antropológica. A noção de evolução estava

ligada ao desenvolvimento orgânico e já se encontrava presente nos debates dos

iluministas do século XVIII. O evolucionismo biológico uniu-se ao evolucionismo

social nesse período. Sahlins se propôs fazer uma crítica à ideia de que as

culturas eram formuladas a partir da atividade prática, de interesse utilitário.

Propõe a razão simbólica ou significativa como oposição à razão prática ou teoria

da utilidade. A razão simbólica toma como qualidade distintiva do homem não o

fato de que se deve viver em um mundo material, circunstância que compartilha

com todos os organismos, mas o fato de fazê-lo de acordo com um esquema de

significados, criado de acordo com as circunstâncias de cada sociedade,

independendo da questão temporal ou geográfica. Neste sentido retira da pauta a

visão evolucionista da qualidade das culturas calcada em uma visão linear de

tempo. A questão do significado se constitui na realidade que diferencia o homem

indepentendemente do tempo e do espaço. Neste sentido a questão da norma

fundante passa a ser pensada como uma questão descolada da diacronia: lida

por meio da sincronia ela se reatualiza continuamente. No entanto, a visão

evolucionista impediu que essa análise se colocasse como viável e o cientificismo

87 SAHLINS, Marshall, Cultura e Razão Prática, Rio de Janeiro, Zahar, 1979. 88 Sobre Razão Prática e Razão Simbólica, consultar: Marshall Sahlins, op. cit., e Clifford Geertz, El antropólogo como autor, Barcelona, Paidos, 1989.

66 Ruth M. Chittó Gauer

ocupou grande parte dos escritos dos finais do século XIX aos meados do século

XX.

Os antropólogos evolucionistas mais conhecidos do século XIX foram Sir

James George Frazer e Sir Edward Tylor (ingleses), e Lewis Morgan (americano).

No trabalho desses antropólogos observa-se a preocupação com as

transformações das sociedades. A explicação de que todas as formações sociais

tinham origens remotas e caminhavam no mesmo sentido, para o progresso,

levou a antropologia do século XIX, e em muitos casos até boa parte do século

XX, a defender a tese de que os “selvagens” haviam parado no tempo, em um

estágio primitivo, mas que mais cedo ou mais tarde chegariam a tornar-se

“civilizados”. Nesse sentido, Lewis Morgan, ao estudar as instituições, as

invenções e descobertas de certas sociedades, procurou ordenar seus estágios

evolutivos. A definição dos três estágios – selvageria, barbárie e civilização –

tornou-se conhecida do mundo acadêmico. Essa classificação levou à

interpretação de que a história era única para toda a humanidade. O exemplo de

Morgan povoou os escritos históricos que tentaram explicar as diferenças por

meio dessa visão unificadora e reducionista.

A questão da diferença também foi o núcleo básico do paradigma da razão

prática. Malinowski e Radcliffe-Brown são nomes que se destacam na

antropologia funcionalista. Radcliffe-Brown discorda dessa visão unificadora da

história, defendendo a ideia de que o presente (sincronia) não precisava ser

explicado pelo passado (diacronia). Com essa posição dá um passo adiante na

análise antropológica. Em que pese permanecer vinculado ao paradigma da razão

prática, sua proposta caminhou para uma análise funcionalista das sociedades.

Radcliffe-Brown propôs sair da abordagem historicista da cultura para uma

abordagem funcionalista e, dessa forma, desamarrou a análise antropológica da

análise histórica. Ao analisar o “funcionamento” da sociedade, o estudo direcionou

a pesquisa no sentido de valorizar a sociedade em si, desatrelada do tempo

histórico e, portanto, da hierarquia entre evoluído e atrasado. Nesse sentido a

diferença não mais se encontrava na sociedade do eu, e a comparação dos

diferentes se faz por meio da análise de processo, estrutura e função. A abertura

para uma análise sincrônica criou o método para a antropologia. O antropólogo

passou a ter necessidade de “conhecer” o “outro”, conhecer a diferença. Um dos

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 67

antropólogos que mais contribuiu para o conhecimento do “outro” e que seguiu a

análise funcionalista foi Malinowski. Os seus trabalhos de campo são de enorme

importância. Foi no contato com a diferença que o autor publicou o importante

clássico da antropologia: Os Argonautas do Pacifico Ocidental, cujos relatos do

arquipélago formado pelas ilhas Trobriand e das sociedades que o habitavam

demonstram a contribuição desse campo científico para o estudo da diferença. Os

seus estudos sobre o “sistema de trocas”, Kula, revelam que os objetos valem

não pelos seus aspectos utilitários ou comerciais, mas pela sua posse pura e

simples. Não menos importante que os autores citados, temos a contribuição de

Durkheim, quando cria a ruptura entre o social e o individual. A partir dessa

ruptura o social não pode ser mais explicado pelo individual. Para além dessa

contribuição, Durkheim demonstrou que os fenômenos psíquicos não se explicam

pelos biológicos, o complexo pelo simples, o superior pelo inferior, o todo pelas

partes. Essas interpretações são importantes para as ciências sociais; a maior

contribuição de Durkheim, no entanto, encontra-se em seu livro As Regras do

Método Sociológico, em cujo primeiro capítulo trata do Fato Social e o define

como sendo coercitivo, extenso e externo, e com isso cria o objeto sociológico.

Com esses autores, a ideia de cultura se desprende da história e a sincronia

possibilita o estudo da diferença. No plano teórico, a noção de fato social

consagra a autonomia do objeto das ciências sociais.89

Ainda dentro do paradigma dominante, surge no campo de conhecimento

da antropologia a concepção da razão ligada ao simbólico, o paradigma da razão

simbólica, ou teoria da cultura. Esse paradigma encaminha a explicação sobre a

diferença embasado na compreensão de que a realidade é uma construção

simbólica. Essa teoria parte do princípio de que o homem vive em um mundo

material criado por ele de acordo com o esquema de significados que ele próprio

estabelece (arbitrário cultural). A criação do significado é uma realidade que

distingue e constitui os homens. As relações sociais são compostas e

organizadas pelo significado, portanto, a experiência é organizada como uma

situação simbólica. As culturas, para os seguidores dessa teoria, são ordens de

89 GEERTZ, Clifford, El Antropólogo Como Autor, Barcelona, Paidos, 1989. Ainda do mesmo autor, ver A Interpretação das Cultura, Rio de Janeiro, Zahar, 1978.

68 Ruth M. Chittó Gauer

significados de pessoas e coisas. A tarefa do antropólogo seria a de buscar o

arbitrário cultural que define toda e qualquer sociedade. O paradigma da razão

simbólica influenciou enormemente os historiadores adeptos da história

construída pela difusão nos contatos humanos, assim como os historiadores da

história das mentalidades.

É esse paradigma que alimenta duas escolas teóricas que fundam o

pensamento da antropologia contemporânea. A primeira delas é a escola

americana, conhecida como difusionista ou escola culturalista, que teve como

representante mais ilustre Franz Boas, o qual, no início desse século, influenciou

toda uma geração de antropólogos, entre eles Gilberto Freyre. Boas relativizou as

noções evolucionistas e as ideias de cultura e história. Foi com ele que se iniciou

o estudo das culturas humanas em suas particularidades. Para o autor a diferença

de cada sociedade se constituía a partir das condições históricas, climáticas,

linguísticas, entre outras especificidades. Nesse sentido, cada cultura seria única.

O relativismo cultural de Boas tornou-se uma ruptura na tradição evolucionista, na

medida em que destruiu a absolutização da visão eurocêntrica criada pelo

paradigma da igualdade. Com o relativismo tornaram-se possíveis as pesquisas

sobre lingúistica, folclore, geografia, migrações, organizações sociais e, assim, foi

aberta importante área de pesquisa sobre a diferença, em que pese o autor não

haver organizado uma teoria geral da cultura.

A segunda grande escola alimentada pelo paradigma da razão simbólica foi

o estruturalismo francês, que tem como maior representante Lévi-Strauss.

Há uma grande influência da interpretação do Brasil dada por Lévi-

Strauss.90

90 A obra de Lévi-Strauss é fundamental para a compreensão de inúmeros trabalhos de antropólogos brasileiros. Seu trabalho mais importante sobre o Brasil é Tristes Trópicos, Lisboa, Edições 70 Ltda., 1986. Sobre a questão das raças, citamos o livro Raça e História, publicado pela UNESCO em 1952.

O autor influenciou toda uma geração de brasileiros quando foi

Professor na Universidade de São Paulo (USP) na década de 30. Foi aceito como

Professor em 1934. Após longo período no Brasil voltou à França, retomando,

alguns anos depois, a sua primeira estada para pesquisas sobre tribos indígenas

no Brasil, junto aos índios Caduveo, Bororó, Nanbikwara e Tupi. Antes de realizar

essa pesquisa com os grupos indicados, o autor manteve contatos com os índios

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 69

Kaingang do Paraná, como uma forma de ensaio para a pesquisa posterior.

Dessas pesquisas resultou uma homenagem à diferença por meio dos índios dos

trópicos em Tristes Trópicos. Sua grande contribuição, como estruturalista, foi a

busca de invariantes. Na procura dessas invariantes, o autor realiza uma das

mais belas etnografias deste século. Além do contato com os índios, faz uma

análise muito completa sobre a sociedade brasileira; no capítulo IX e no capítulo

XI, faz uma descrição de São Paulo e do Rio de Janeiro. O autor definiu a

América como sendo uma terra que passou da barbárie à decadência sem

conhecer a civilização. Usou a cidade brasileira como um bom objeto para pensar

sobre essas questões. Ao analisar o interior do Brasil, principalmente Goiânia, o

autor descreve o país como os viajantes do século XVIII e do século XIX. Nesse

sentido, utiliza o meio e a raça para a sua descrição, como os intelectuais do

século XIX e do início deste século. Lévi-Strauss afirma:91

O conjunto conceitual utilizado pelos estruturalistas e pela chamada escola

sociológica francesa, mais especificamente a escola estruturalista, da qual Lévi-

Strauss é o melhor representante, assim como Boas o é da escola culturalista,

assenta a sua análise na razão simbólica, conceito que permite a compreensão

do significante como algo que precede e excede o significado, isto é, como

anterior, da origem, e posterior, pois o extrapola. A absoluta igualdade do ser

humano constitui-se na exteriorização do significante que se expressa na

“Fui ao Brasil porque

queria ser etnólogo”. A descrição densa usada pelo autor (etnografia) constituiu-

se em um material muito vasto, principalmente sobre os Bororós, que mais tarde é

publicado em uma análise do sistema de parentesco em Antropologia Estrutural 1,

tomando-se um clássico da Antropologia. Nesta obra Lévi-Strauss analisa as

estruturas de certas tribos do Brasil central e as considera muito primitivas pelo

baixo nível de cultura material. Por outro lado, afirma que elas se caracterizaram

por uma estrutura social de grande complexidade, abrangendo diversos sistemas

de metades que se entrecortam e que são dotados de funções específicas, clãs,

classes de idade, associações esportivas ou cerimoniais e outras formas de

agrupamento.

91 ERIBOM, Didier e LÉVI-STRAUSS, Claude, De Perto e de Longe, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990, pp. 31-33.

70 Ruth M. Chittó Gauer

diferença. Essas duas escolas possibilitaram uma interpretação diferenciada para

o Brasil. Os seus seguidores criaram linhas de pesquisa dentro de muitas

universidades brasileiras. Após as influências dessas escolas, as produções

científicas brasileiras foram muito significativas. Um número expressivo de

historiadores, antropólogos e sociólogos se debruçou sobre elas buscando um

suporte epistemológico que se adequasse à nossa diversidade.

No Brasil a influência da Antropologia chegou já no século XIX por meio do

evolucionismo. Muitos autores tentaram explicar as diferenças que constituíam a

população brasileira por meio de uma análise racial-evolucionista. Autores como

Nina Rodrigues, Juliano Moreira, Arthur Ramos, entre outros, debruçaram-se

sobre a diversidade étnico-cultural e social do Brasil, objetivando uma explicação

que possibilitasse a compreensão da unidade nacional. Esses autores estão

circunscritos ao pensamento de sua época, no entanto aparecem em nível de

senso comum até nossos dias. Um exemplo significativo dessa presença

encontra-se em muitos livros "didáticos" e em vários programas "culturais".

Conforme Ana Maria Oda,92

92 ODA, Ana Maria Galdini Raimundo, “A teoria da degenerescência na fundação da psiquiatria brasileira: contraposição entre Raimundo Nina Rodrigues e Juliano Moreira”, Psychiatry On Line Brazil, v. 6, n. 12, dez. 2001. Disponível em: http://www.polbr.med.br/arquivo/wal1201.htm. Acesso em: 03 jan. 2002.

“na segunda metade do século XIX, no que se

refere às teorias etiológicas sobre as doenças mentais, dominaram as

concepções organicistas. Então, a neuropsiquiatria localizacionista tentou

fornecer subsídios para a formulação de teorias explicativas causais sobre a

doença mental, tendo a sífilis como modelo.” A estas concepções organicistas,

agregou-se a teoria da degeneração. O princípio desta teoria afirma que poderia

haver, sob circunstâncias apropriadas, um processo progressivo de degeneração

mental em qualquer população humana. O Brasil reunia todas as condições para

que esta degeneração ocorresse. Este fato se agravaria pelas características da

população brasileira, formada de índios, negros e mestiços de pouco valor no

avanço do processo civilizatório, no qual, pela visão de seus teóricos, o Brasil

deveria se engajar. Para tanto, era necessário encontrar uma solução que

resolvesse o incômodo problema da população urbana e rural pobre e mestiça,

portadora de estigmas físicos, intelectuais e comportamentais. Este “estigma de

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 71

origem” acompanhou o pensamento de todos os intelectuais brasileiros que, no

início do século XX, estavam imbuídos do sentimento, e alguns da certeza, de

existir alguma espécie de maldição tropical que arrastaria o Brasil para fora do

processo histórico e o colocaria à margem da evolução experimentada pela

humanidade na Europa e nos Estados Unidos. Neste aspecto, os intelectuais

brasileiros assemelharam-se aos mexicanos, que erroneamente pensaram que,

introduzindo formas de governo e estruturas políticas e econômicas ocidentais,

acabariam por ocidentalizar-se. No Brasil, a suposta maldição tropical continuou a

revelar-se com uma exuberância e virulência que parecia aumentar cada vez

mais, na medida em que os pensadores brasileiros mais elegiam a Europa como

parâmetro. Nesse caminho, acabaram por caracterizar o povo brasileiro (e alguns,

a si próprios) como uma ofensa ao senso estético e à dignidade humana.

Como antecipação ao que hoje é chamado de Psiquiatria Cultural ou

Etnopsiquiatria, houve um interesse, no início do século XX, em comparar os

quadros psicopatológicos descritos pelos psiquiatras europeus, com a finalidade

de verificar-se qual sua utilidade e aplicabilidade no Brasil. Aventava-se a

hipótese de que haveria enfermidades mentais próprias dos trópicos. Levantou-se

a hipótese de uma essência invariante, característica de toda doença mental, à

qual se acrescentariam os fatores culturais diversificados que dariam fundamento

para as variações sintomáticas. Neste ponto, os psiquiatras de inícios do século

XX não foram diferentes de muitos psicoanalistas contemporâneos, empenhados

em encontrar uma “enfermidade básica” oculta detrás da doença aparente e sua

sintomatologia. Apesar de tudo, enriqueceu-se o conhecimento psiquiátrico na

medida em que os psicopatologistas brasileiros daquele tempo tentaram ligar a

enfermidade a fatores tais como o clima e os grupos culturais dos quais seus

pacientes eram originários. Sendo assim, não se deve restringir a contribuição de

um Arthur Ramos, por exemplo, apenas ao terreno da patologia mental. Devem

ser levadas em conta suas pesquisas sobre folclore e manifestações culturais

populares em geral. Isto se aplica também a seu mestre, o maranhense Nina

Rodrigues, com seus estudos de “coletividades anormais”, e a Juliano Moreira,

entre vários outros.

Cabe destacar a grande importância de Nina Rodrigues e sua intenção de

avaliar e explicar cientificamente o comportamento das camadas pobres da

72 Ruth M. Chittó Gauer

população brasileira e de, “em conseqüência, ditar as regras para a avaliação de

indivíduos cujas atitudes fossem consideradas mórbidas, decidir quanto à sua

imputabilidade penal e principalmente, sugerir meios preventivos para evitar a

loucura e o crime”.93

Na obra de Nina Rodrigues aparecem estereótipos e preconceitos que

ainda hoje estão presentes: a indolência tropical, a atávica inferioridade psíquica e

moral do mestiço, do negro e do índio, e várias outras considerações, como, por

exemplo, a incapacidade dos grupos miscigenados ou das “raças inferiores”

assimilarem códigos morais que, na verdade, só poderiam ser compreendidos,

assimilados e aplicados pela raça branca. Com ligeiras variantes, esta

interpretação da sociedade brasileira está presente em trabalhos médicos como

os de Arthur Ramos, Juliano Moreira, e vários outros que, naqueles tempos,

lançaram os fundamentos da etnopsiquiatria no Brasil.

Apoiado na teoria da degeneração, e vendo, como muitos

outros, uma grande possibilidade de aceleração de um processo degenerativo já

existente na população brasileira, em virtude de suas características raciais

inferiores, cria Raimundo Nina Rodrigues uma antropologia criminal que deveria

ser aplicada como elemento purificador e preventivo dos processos de

degeneração que, para ele, se encontravam ativos na população do Brasil. Esta

antropologia criminal deveria levar em conta os mais diversos fatores, desde o

clima à composição racial do homem brasileiro.

A pesquisa antropológica, sempre preocupada com os temas da

relatividade e universalidade, o que por si só mostra uma situação de crise e de

auto-identificação na sociedade contemporânea, buscou aprofundar as

discussões a respeito do que é normal e anormal nas mais diferentes sociedades.

É preciso ter em conta que esta busca é sintônica às dúvidas que o homem

ocidental tem, atualmente, sobre si próprio. De qualquer modo, tornou-se

problemático ver o comportamento humano apenas em função das categorias da

cultura ocidental. Esta postura, reversa à do etnocentrismo, também exemplifica a

crise cultural do Ocidente, pois dificilmente um grupo cultural que não esteja

mergulhado em algum tipo de crise irá buscar orientações de vida em outras

culturas. No entanto, assim se deu na área da psicologia social voltada para o

93 ODA, Ana Maria Raimundo, op.. cit.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 73

estudo de culturas não ocidentais, na medida em que os antropólogos ampliaram

e diversificaram progressivamente suas perspectivas teóricas. Nesse processo,

as áreas de consenso tornaram-se cada vez mais restritas e ao mesmo tempo

genéricas, e disso resultou um grande avanço qualitativo na compreensão das

sociedades humanas em seus aspectos psicossociais. É no cerne desses

debates que se colocam questões como as levantadas, por exemplo, por Ruth

Benedict, Abraham Kardiner, Margaret Mead e outros que tiveram a tendência a

enfatizar os aspectos psicológicos e psiquiátricos dos sistemas culturais. Ruth

Benedict, quando se refere à polarização normal/anormal, a partir de um amplo

material etnográfico propõe como ponto de partida que se observem as seguintes

questões: 1) investigação do comportamento considerado anormal em nossa

cultura, mas normal em outras configurações sociais; 2) dos tipos de

anormalidades não encontradas na civilização ocidental; 3) do comportamento

considerado normal em nossa sociedade, mas anormal em outras.94

A etnopsiquiatria pode ser considerada como um ramo interdisciplinar

originado nas primeiras décadas do século XX, em decorrência das pesquisas

efetuadas pelos antropólogos que, de uma maneira ou outra, se filiaram à

chamada escola de cultura e personalidade. Uma das características das

pesquisas por eles realizadas consiste na investigação profunda das culturas não

ocidentais e da relação dos processos culturais com a psique individual. Algumas

circunstâncias estimularam essa linha de investigação. Por exemplo, a existência,

nos Estados Unidos, de comunidades indígenas confinadas em reservas, e em

intenso processo de desagregação psicossocial, proporcionou farto material para

investigações no terreno das psicopatologias. Simultaneamente à desagregação

O problema

subjacente é o da definição de normalidade sem cair na armadilha do relativismo.

94 WEGROCKI, Henry, “Crítica dos Conceitos Culturais e Estatísticos de Anormalidade”, Kluckhohn e Murray, Personalidade na Natureza, na Sociedade e na Cultura, Belo Horizonte, Itatiaia, 1965, p. 425. Como coloca Wegrocki: “Alguns tipos de personalidade deixam de encontrar realização numa cultura, embora haja alguma razão para supor que poderiam ter florescido noutra. Algumas culturas dão margem a uma variedade de ajustamentos pessoais; noutras, o indivíduo que não se conforma ao modelo único é castigado de forma tão cruel que se torna neurótico ou, talvez, no caso de ter predisposição constitucional, psicótico. O comportamento tido como anormal numa cultura é socialmente aceitável noutra. Não faz muitos anos, os padrões de normalidade pareciam prestes a desaparecer, em face de um total relativismo. Hoje, porém, concorda-se que certos tipos de reação mental podem ser considerados anormais em qualquer sociedade”, op. cit., p. 423.

74 Ruth M. Chittó Gauer

de um modo de vida tradicional, os indivíduos pertencentes a essas culturas

perderam sua orientação de vida e sentiram-se vivendo em um mundo que, de

certa maneira, já havia decretado sua morte. Nos campos de concentração

denominados “reservas”, verificou-se uma alta taxa de alcoolismo, homicídio,

suicídio, incesto e abandono de modelos tradicionais sem que se encontrasse um

substitutivo compensador. Estes fatos demonstram o nível de anomia ao qual

chegaram as populações indígenas. Tais ocorrências sociais, assim como várias

outras em diversas partes do mundo, constituíram-se em um elemento de

aproximação entre a antropologia e a psiquiatria.

Situações de anomia sempre estimulam os investigadores que atuam tanto

na área psicológica como na sociológica. Os processos de degradação mental

correm paralelos aos de degradação social, e a interação entre ambos revela-se

como fato evidente, pois ambos operam como uma unidade sintética. A partir

disto pode-se conjeturar que o interesse etnopsiquiátrico por populações que

sofreram em maior ou menor grau com a colonização teve por motivação, além da

penosa situação enfrentada pelas minorias, também as amplas reformulações

pelas quais passou o ocidente no século XX. É inegável que o século passado,

marcado por duas guerras mundiais que até hoje deixam suas sequelas, pela

reestruturação política e social do mundo, assim como pelo reposicionamento das

minorias e muitos outros fatores, produziu crises de âmbito generalizado ou

restrito. Como as ciências sociais e a psicologia estavam constituídas dentro do

discurso positivista, entendendo-se por isso a crença no poder da razão e da

racionalidade, elas pretenderam construir-se como modelo de análise, neutro e

objetivo, do quadro social então presente na sociedade ocidental. No entanto, o

fantasma do relativismo cultural abalou os alicerces da neutralidade e

objetividade, uma vez que nenhuma afirmação poderia arrogar-se o direito de ter

validade absoluta. Nesse contexto, a antropologia, vista como autodotada de uma

racionalidade enriquecida pela compreensão das culturas não ocidentais, também

passou a ser aplicada na interpretação do mundo ocidental e, nesse rumo,

associou-se à psiquiatria que, do mesmo modo, era oriunda do mesmo discurso

racional e positivista. Como a certeza em princípios transcendentais é uma

exigência lógica e psicológica da mente humana, apesar das dúvidas

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 75

“relativizantes”, apostou-se na racionalidade como elemento de validação da

realidade objetiva.

A partir desses fatos, consolida-se a etnopsiquiatria, ao menos de maneira

mais sistemática e organizada. Esta, tendo à sua frente um grande campo de

estudos e aplicações, começa a considerar os sistemas de classificação não

ocidentais e não científicos referentes à normalidade-anormalidade e saúde-

doença que se mantêm nas sociedades primitivas (das quais os antropólogos

inicialmente extraíram a maior parte do material para investigação), assim como

ao nível das culturas camponesas, ou mesmo ao nível policultural e cosmopolita

das grandes metrópoles. Observe-se que as culturas humanas em geral

possuem, em seu sistema classificatório e ordenamento simbólico, noções bem

definidas de normalidade/anormalidade, de saúde e enfermidade, além de

práticas terapêuticas prescritas e bem ordenadas na relação doença-terapia. Os

antropólogos nunca consideraram irrelevantes esses dados culturais, como

atestam as numerosas monografias escritas a respeito desses assuntos.

Nos primórdios da velha escola antropológica de cultura e personalidade,

constituiu-se um cerne de pensamento freudiano. Este pensamento como que

matizou, impregnou as categorias analíticas dos antropólogos, e quando se

tratava de analisar a vida mental dos povos sem escrita, ou mesmo de

comunidades ocidentais urbanas, com seus quadros de anomia psicossocial, o

recurso à psicanálise e à psiquiatria era imediato. Portanto, temos aqui dois

fatores. Por um lado, a metapsicologia conduzia quase que naturalmente a

considerar as práticas terapêuticas não ocidentais, assim como as instituições

culturais em geral, como resultado de processos psíquicos coletivos cuja dinâmica

e estrutura era necessário analisar. Por exemplo, os sistemas religiosos passam a

ser redefinidos a partir de sua função como sistemas projetivos. Os estados de

transe e possessão tão comuns nas práticas médicas, mágicas e religiosas

primitivas passam a ser caracterizados como processos de despersonalização,

desrealização e, em síntese, como processos dissociativos, sintomáticos de uma

patologia mental. Detecta-se, então, uma patologia. Onde ela está? No indivíduo

e no sistema cultural que a produz e aceita.

Como se vê, utilizaram-se categorias psiquiátricas para melhor

compreender os sistemas de crença, comportamento, os rituais e mitologia de

76 Ruth M. Chittó Gauer

qualquer agrupamento social. Este processo exige que se considerem as teorias

e categorias nativas95

Nesse caso, temos o uso da etnopsiquiatria no sentido em que esta é vista

como transcendente às determinações e constrangimentos culturais, propondo,

assim, critérios transculturais de análise, observação e tratamento. Seriam,

portanto, padrões de validez universal que escapam às limitações impostas pelo

relativismo cultural. Esta é a posição de Gezà Roheim e Georges Devereux

quando dão importância à orientação autoplástica combinada com o princípio de

realidade e capacidade de sublimação adequados. Mesmo assim, é possível

pensar até que ponto a psiquiatria pode ser utilizada como um referencial de

validez universal escapando, dessa maneira, a qualquer distorção e limitação

imposta pelo princípio do relativismo cultural. O critério de eficácia é, em princípio,

discutível. Não se pode afirmar, por exemplo, que as terapias e teorias médicas

“selvagens” sejam despidas de qualquer eficácia ou, até, que sejam menos

eficazes nos casos de transtornos psiquiátricos. O que se pode colocar é o fato de

que deve haver um ponto comum, um ponto de encontro, entre o psiquiatra e o

xamã. A partir disso, convém lembrar, mesmo que superficialmente, a observação

feita por Lévi-Strauss, quando se refere ao tratamento de uma enfermidade

psicossomática entre os índios Cuna do Panamá: “A cura consistiria, pois, em

tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis

(nativas em seu sentido mais amplo, incluindo culturas

urbanas, por exemplo) como elementos sociais que devem ser postos sob o

prisma analítico. Ou seja, aquilo que o índio vê como um estado de transe místico

e possessão que o leva a uma profunda experiência de cunho religioso – por

exemplo, sentindo esse estado iniciático de ingresso ao mundo do sagrado como

um privilégio concedido, desde que dado no suporte da razão simbólica de sua

cultura, a qual legitima tal fenômeno. A experiência vivida pelo índio pode ser

vista pela psiquiatria como um fenômeno dissociativo que se dá em um quadro de

patologia mental controlada pelos mecanismos culturais.

95 De modo semelhante, pode-se afirmar que o sistema de classificação elaborado no DSM – IV corresponde a uma categorização etnocêntrica que não deixa de ser, ao nível do arbitrário, uma representação que o homem ocidental faz de si mesmo. Não haveria uma “exterioridade” que garantisse o caráter científico de tal classificação. Esta seria apenas fruto do arbitrário cultural, oriundo de certas necessidades básicas do homem ocidental, e sua eficácia seria do tipo “eficácia simbólica”.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 77

para o espírito as dores que o corpo se recusa a tolerar. Que a mitologia do

xaman não corresponda a uma realidade objetiva, não tem importância: a doente

acredita nela, e ela é membro de uma sociedade que acredita. (...). Em face da

crença desvinculada da realidade objetiva verifica-se que “o xaman oferece à sua

doente uma linguagem, na qual se podem exprimir imediatamente estados não

formulados, de outro modo informuláveis. E é a passagem a esta expressão

verbal (que permite, ao mesmo tempo, viver sob uma forma ordenada e inteligível

uma experiência real, mas, sem isto, anárquica e inefável) que provoca o

desbloqueio do processo fisiológico, isto é, a reorganização, num sentido

favorável, da sequência cujo desenvolvimento a doente sofreu. (...) 96

No ponto de vista de Lévi-Strauss, observamos que o tratamento

psiquiátrico-psicanalítico não pode ser visto como fato substantivamente

diferenciado do xamanismo, uma vez que a psicanálise (assim como, em linhas

gerais, qualquer outra terapia mental “pela palavra”) se une, a partir de um

modelo estrutural comum, à prática e ao simbolismo xamanístico. Portanto, a

validade universal não está na especificidade da psiquiatria, mas sim naquilo que

ela possui em comum com outras práticas médicas e terapêuticas, aparentemente

tão afastadas,

97

96 “Neste sentido, a cura xamanística se situa a meio caminho entre nossa medicina orgânica e terapêuticas psicológicas como a psicanálise. Sua originalidade provém de que ela aplica a uma perturbação orgânica um método bem próximo dessas últimas. (...) os conflitos e as resistências se dissolvem não por causa do conhecimento, real ou suposto, que a doente adquire deles progressivamente, mas porque este conhecimento torna possível uma experiência específica, no curso da qual os conflitos se realizam numa ordem e num plano que permitem seu livre desenvolvimento e conduzem ao seu desenlace. Esta experiência vivida recebe na psicanálise o nome de abreação”.LÉVI-STRAUSS, Claude, Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1970, pp. 204-224.

como é o caso daquelas nas quais o discurso mágico e religioso

não se diferencia do discurso médico, dando-se os dois simultaneamente durante

o processo de cura.

97 Como coloca DEVEREUX, “(...) los primitivos disponen de dos importantes herramientas de la investigación psiquiátricas: un inconsciente capaz de comunicarse con empatía con los neuróticos y psicóticos, y facultades lógicas capazes de organizar en un sistema teórico las intuiciones obtenidas de ese modo. Por esta razón jamás podemos saber con certeza si los datos de los ‘psiquiatras’ primitivos representan intuiciones científicas auténticas o si son simples fantasías, derivadas de un modelo de pensamiento cultural. Empero, es preferible apartar el problema de la validez intrínseca de los materiales psiquiátricos primitivos y tratar de demostrar únicamente que están organizados en un conjunto teórico coerente, estructurado conforme a modelos culturales del pensamiento.” Georges Devereux, Etnopsicoanálisis Complementarista, Buenos Aires, Amorrortu, 1975, p. 255.

78 Ruth M. Chittó Gauer

O processo transdisciplinar que uniu psiquiatria e antropologia ocorreu a

partir de antropólogos que se propuseram sair dos entraves conceituais de sua

disciplina para, assim, melhor transitar no terreno da psiquiatria. A grande

contribuição se deu no esclarecimento obtido a respeito das relações e

interpenetrações do indivíduo com a sociedade que o rodeia, atribuindo-se grande

importância ao processo de socialização primária. Na verdade, a comprovação

deste fato não trouxe, em si, nada de inédito, uma vez que a própria psiquiatria

vinha considerando a relação entre patologia mental e entorno social. O que

houve de diferente foi a sistematização e o aprofundamento analítico desta

relação. É neste aspecto que deve ser considerada a grande importância de

Margaret Mead, Gregory Bateson, Ruth Benedict e outros, sem esquecer a

produção dos grandes teóricos da sociologia norte-americana, como Robert

Merton, por exemplo. Este autor dedicou-se a uma temática psicossocial de largo

alcance, principalmente no momento em que se propõe à análise dos tipos de

conduta desviante e comportamento convencional existentes na sociedade, no

caso, a sociedade urbana norte americana.

Afirmam os etnopsiquiatras que, na medida em que se considerar com

maior atenção o sistema cultural do paciente, poderão reformular, com grande

benefício, sua prática terapêutica, utilizando, se for considerado conveniente, os

recursos terapêuticos que a comunidade cultural oferece ao paciente,

principalmente no processo de tradução, combinação e interpenetração do

discurso médico no discurso cultural do qual o paciente é oriundo. Este fato, que

hoje em dia é tido como trivial na psiquiatria, levou várias décadas para

concretizar-se. Em um primeiro momento, não é importante que a classificação e

interpretação da enfermidade, feita de acordo com as categorias “nativas” da

cultura do paciente, correspondam ou não à realidade. Mas é importante que elas

possuam um “fundo de sentido”. Sempre é necessário lembrar o fenômeno da

“eficácia simbólica”, tal como foi entendida por Lévi-Strauss. Também é fato

sabido que, em termos de enfermidade psíquica, o comportamento não é o único

elemento a ser considerado. Como se sabe, um indivíduo pode viver uma

experiência culturalmente sancionada (um ritual, por exemplo) como delirante,

enquanto outro vive a mesma experiência apenas como ritual, sem que isso o

afete mais profundamente. Cultos de transe e possessão são muito

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 79

esclarecedores a esse respeito, principalmente se for recordado que os próprios

adeptos do culto distinguem entre uma possessão normal, por assim dizer, e uma

possessão patológica. Ou seja, há uma diferença entre comportamento

observado e experiência subjetiva, e uma tênue e imprecisa linha que separa

razão e loucura. Malinowski mostra como os habitantes da aldeia de Kiriwina se

comportavam com indiferença e aborrecimento quando se viam na obrigação de

participar de cultos religiosos. Isso não impede que alguns indivíduos possam

participar dos mesmos cultos e executar a mesma coreografia ritual, tomados de

um terror místico.98

É preciso lembrar também a possibilidade de uma determinada cultura ser

“patogênica”. Esta é uma possibilidade que pode mostrar-se de modo evidente

em casos de desintegração cultural e social.

Neste caso, por exemplo, um dos interesses básicos para a

etnopsiquiatria reside no fenômeno subjetivo que revela as diferenças, muitas

vezes encobertas, entre crença e prática religiosa e delírio religioso e atuação. E

também é necessário levantar a questão de até que ponto o delírio religioso,

dentro dos paramentos de controle social, não apenas é aceito (pelos “nativos”)

como fato normal, constituindo-se em um elemento ego-sintônico, como também

é adequado a uma integração sadia e funcional da mente e, de certa forma, da

cultura.

99

98 Observe-se que a noção de terror místico, indistintamente aplicada, no século passado, às populações primitivas, ocorreu justamente no período em que o discurso oficial do Ocidente sobre si mesmo estava passando por um forte processo de laicização. Parece que, a partir disso, as culturas não ocidentais foram alvo de uma maciça projeção, que tem na atribuição a elas do terror místico uma de suas características.

No entanto, os fatores patogênicos

podem ocorrer também como fato cristalizado, ou seja, produzidos pelas próprias

estruturas sociais do grupo e, de certa maneira, atemporais. A literatura

antropológica é rica na descrição de culturas que poderiam ser encaradas como

claramente “doentes”, ao menos pelos critérios da psiquiatria ocidental, e que, no

entanto, se mantêm assim, idênticas a si mesmas, no transcurso de gerações,

como seria o caso da “cultura da pobreza”. Não há, nesses contextos, um fator

que aponte para a possibilidade de desorganização social. Seu caráter

patogênico é o elemento que mantém essas culturas como sólidas e integradas

99 Assim, por exemplo, o processo de desintegração psicossocial que pode acompanhar certos fenômenos migratórios, pode levar os migrantes a conceberem sua cultura tradicional, agora ameaçada, como objeto transacional.

80 Ruth M. Chittó Gauer

em seus diversos aspectos. No entanto, a integração do indivíduo a esse tipo de

cultura pode significar que, em termos mais amplos, é preciso estar doente para

se ajustar a uma cultura doente, assim como o ajustamento a uma cultura normal

atesta, em princípio, a normalidade psicológica do indivíduo. Também deve ser

lembrado que a adjetivação de “normal” ou “doente” é um critério absolutista, que

impede de pensar o sistema cultural como uma realidade dotada de “áreas de

conflito” e “áreas livres de conflito”. E, em qualquer caso, a simulação que se

torna possível no desempenho de papéis sociais pode acobertar formas de

desajustamento. Deve-se considerar, no entanto, sempre a marca de um

“etnocentrismo inconsciente” que pode pairar sobre os conceitos de normal e

anormal. Para escapar a esta relatividade, é possível apelar para a argumentação

desenvolvida por Devereux. Afirma este psiquiatra que existem "três postulados

empiricamente verificables:

1) La unidad psíquica de la humanidad, unidad que incluye uma capacidad

de variabilidad extrema;

2) El principio de las posibilidades limitadas;

3) El hecho de que um ítem que en una sociedad dada existe de modo

manifiesto, y aún se encuentra actualizado culturalmente, en otra suele estar

reprimido.

De los tres postulados que acabo de enunciar, extraeré una conclusión

incontrastable:

Si todos los psicoanalistas preparasen una lista completa de todas las

pulsiones y de todos los deseos y fantasías revelados en el medio clínico, esa

lista correspondería punto por punto a una lista, establecida por los etnólogos, de

todas las creencias y de todos los procedimientos culturales conocidos”.100

Pode-se estabelecer que a etnopsiquiatria desenvolveu os estudos da

influência dos fatores culturais na formação tanto da mente normal como dos

fenômenos de natureza patológica, mantendo-se a crença na existência de

critérios universais desde os quais seria possível uma melhor compreensão da

doença psiquiátrica e da normalidade nos mais variados contextos culturais. Tal

procedimento significa enfatizar os fatores culturais, situando-os em uma posição

100 DEVEREUX, Georges, op. cit., pp. 76-77.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 81

que permita ao pensamento etnopsiquiátrico a compreensão das características

que enlaçam o inconsciente cultural com o inconsciente individual. Estabelece-se,

também, uma correlação entre fenômeno cultural individual e fenômeno

psicológico individual. Ambos aparecem para constituir a especificidade de cada

um, e o que poderia ser chamado de endofenômeno (o psíquico) e exofenômeno

(o cultural) se resolve em uma síntese unificadora que, se for levada às últimas

consequências lógicas, elimina a tradicional distinção, acentuada desde

Durkheim, entre indivíduo e sociedade. Haveria uma área transicional, de limites

imprecisos, como uma névoa, onde se apagam as nebulosas distinções entre

indivíduo e entorno.101

Coloca Devereux que, embora existam padrões, em uma sociedade, que

são considerados como normais e ajustados à cultura, o ajustamento a esses

padrões “normais” não implica, necessariamente, normalidade mental.

Novamente surgem aqui os problemas criados pela polarização normal/anormal,

que se situa dentro de um contexto de relatividade. Devereux se protege da

armadilha do relativismo postulando a unidade psíquica da humanidade, unidade

esta que permitiria criar conceitos absolutos que transcenderiam os

constrangimentos conceituais de qualquer cultura em particular. Por outro lado,

este autor dá evidência aos processos de ajustamento ou desajustamento que

atuam por detrás dos desempenhos de papéis sociais, que se constituiriam como

um “uniforme normativo” vestido pelos integrantes de uma cultura, mas a partir

dos quais não se pode desvelar a subjetividade que se encontra por detrás da

máscara social. Retornando ao exemplo acima, de um indivíduo ajustar-se aos

papéis, valores e padrões em geral de uma cultura, tendo por assentado que esta

cultura é normal, devemos lembrar as personalidades psicopáticas que atuam

Assim, a polarização eu-entorno passa a ser despojada da

substantividade que historicamente lhe é atribuída.

101 Uma interpretação diferente é dada por Devereux: “ 1) El comportamiento del indivíduo, considerado como tal y no en función de su pertenencia a la sociedad humana, solo es comprensible dentro de un marco de referencia específicamente psicológico y en los términos de leyes psicológicas (...) 2) El comportamiento de un grupo, considerado como grupo y no principalmente como agregado de indivíduos discretos, solo es comprensible en los términos de un marco de referencia especificamente sociologista y de leyes culturales (...) Entre estos dos extremos se sitúa una serie de fenômenos “fronterizos” o transicionales cuyo “lugar geométrico” habitual es el pequeño grupo”. Georges Devereux, ob. cit., p. 115.

82 Ruth M. Chittó Gauer

dessa maneira, o que não significa, de forma alguma, que elas tenham um

razoável padrão de normalidade.

Outro aspecto ressaltado por Devereux, e que poderia indicar um nível

adequado de saúde mental, refere-se à capacidade para enfrentar

transformações, tanto ao nível do indivíduo como também ao nível dos grandes

processos culturais e sociais. No que se refere ao indivíduo, entende-se que este

passará por diversas experiências e mudanças no transcurso de sua existência,

seja ele um habitante das selvas equatoriais da Nova Guiné ou de um grande

centro urbano. Mas podemos observar que o “selvagem” passa por

transformações “imóveis”, por assim dizer. Mesmo que uma criança arapesh se

aterrorize com as reais ou imaginadas torturas pelas quais passará em seu ritual

de iniciação para a vida adulta, de qualquer modo seu grupo tribal lhe oferece

uma “base de segurança” pelo próprio fato de que o conceito de mudança, de

transformação, não é um conceito “forte” nesse tipo de sociedade, no que se

refere a situações abrangentes de grande transformação social, uma vez que a

cultura e a natureza são regidas pelo princípio de permanência.

Por outro lado, na sociedade urbana, a transformação sócio-cultural é

vivida como uma constante. Este fato pode produzir diversos resultados. Um

determinado indivíduo, por exemplo, passará tanto por mudanças no papel

particular que ele ocupa, como por mudanças de nível “macro”, que envolvem o

todo do contexto social, como se deslizasse por elas, como se não pudessem

atingir seu si próprio que estaria, assim, protegido e infragmentável, apesar da

velocidade social característica da sociedade urbana, produtora de “identidades

fluidas”. Ou seja, ele fará uma adaptação superficial e se manterá em um

encapsulamento auto-protetor. Será um ajustamento dado ao modo de não

ajustamento.

Mas quanto à posição de Devereux, que estabelece um quantum de

normalidade utilizando como critério a capacidade de ajustamento, cabe indagar

até que ponto este etnopsiquiatra não se deixou levar por uma imposição cultural e

de sobrevivência derivada do estilo de vida que o século XX impôs. Como se sabe,

a sociedade contemporânea, de caráter urbano, exige e impõe a mudança pessoal

e cultural e retira o lastro de solidez dado pela permanência. Diante disso, caberia

questionar o status mental daquele que não se ajusta à mudança, recusando-a em

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 83

nome de um senso que o mantém atrelado à sua realidade imóvel. O

desenvolvimento de uma patologia mental nesse tipo de pessoa dependerá de

vários fatores, difíceis de discernir. A recusa à mudança não é um fato que

necessariamente revelará uma patologia mental. Ela pode ser um fenômeno salutar

e, de qualquer modo, caberia perguntar se o sucesso na sobrevivência pessoal, na

cultura urbana, é um indicador de normalidade. Mas por outro lado, essa recusa à

mudança pode mostrar uma defesa, tendo em vista a manutenção de um ego

desvalido e desvalorizado. E, ao mesmo tempo, deve-se considerar o fato de

culturas que são tão refratárias à transformação, sentida fortemente como ego-

distônica ou sócio-distônica, que deixam pouca margem de dúvida a respeito de

seu caráter patológico.

84 Ruth M. Chittó Gauer

IX Da diferença perigosa ao perigo da igualdade totalizadora

Mary Douglas é uma destas autoras que, quando com elas nos deparamos

na estante de livros, ficamos tentados a reler. Há alguns dias, isso ocorreu.

Deparei-me com Pureza e Perigo,102

A obsessão pela limpeza é configurada pela disciplina. Nada mais

importante para essa obsessão do que a busca desesperada pelo modelo que

retrate limpeza, normalmente associada ao belo. A beleza está vinculada à

aparência de limpeza do corpo, que deve estar livre de impurezas, isto é, com

ausência de resíduo, mesmo os mais microscópicos, como se isso fosse possível.

A estética, nomeadamente no século XX, colou-se de tal modo à limpeza que a

transformou em uma obsessão. Desde a era vitoriana podemos observar esse

comportamento obsessivo, principalmente por meio das tarefas femininas.

Embora as casas e mesmo as ruas das cidades exalassem odores não muito

agradáveis, as mulheres tinham uma jornada diária de trabalho que hoje não

podemos sequer imaginar, ligada às tarefas da casa. O tempo de limpar, lavar,

passar, desinfetar, etc., ocupava mais de doze horas diárias de trabalho pesado e

estafante. Esse fato não iniciou no século XIX. Muito antes as questões de

livro com o qual trabalhei na década de 70.

Relendo algumas passagens do livro, que destaquei há tanto tempo, verifiquei o

enfoque dado pela autora sobre as questões da pureza, do perigo, da impureza,

da sujeira. A ênfase no exame destas questões está vinculada à outra

problemática, não menos importante, que a autora trabalha, qual seja: a questão

da ordem. Pensei como a ordem fundamenta todo um padrão de comportamento,

que nem sempre costumamos relacionar à impureza e ao perigo. No entanto,

nada mais apropriado do que pensar na ordem para compreender a desordem,

assim como todo o tipo de discriminação. A sujeira é um fato que nos repugna,

temos horror a certos tipos de sujeira, passamos pensando o quanto é importante

a limpeza, a pureza e a ausência de qualquer perigo. Tudo o que nos cerca deve

estar imune à contaminação e à impureza, mesmo as mais microscópicas. A

ordem está colada à organização: todas as coisas em seus lugares e todos os

lugares com suas coisas igualmente ordenadas e purificadas.

102 DOUGLAS, Mary, Pureza e Perigo, São Paulo, Perspectiva, 1976, p. 56.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 85

pureza, higiene e sujeira estabeleciam a ordem da casa (espaço privado), assim

como a ordem do espaço público. Se a limpeza dos espaços públicos foi e é

realizada pelas instituições vinculadas à esfera da administração e das políticas

públicas (a casa, exemplo de espaço privado, também foi submetida à disciplina

da higiene). Desde a antiguidade o isolamento foi uma prática utilizada para evitar

a contaminação. O exemplo histórico de exclusão mais conhecido é o dos

leprosos. Na modernidade essa prática continuou, passou-se a isolar casas,

hospitais, até quarteirões inteiros de cidades como forma de proteção dos

espaços não contaminados. Esses locais, vistos como perigosos, deveriam estar

bloqueados como forma de imunidade dos locais limpos. O isolamento, como

medida de exceção, constituía-se na única forma de proteção. A reflexão sobre a

sujeira envolve pensar a relação entre a ordem e a desordem. Nada mais eficaz

do que a disciplina moderna para garantir a ordem. As técnicas disciplinares

preocupam-se não apenas com a sujeira e a doença, elas trataram e tratam de

organizar meios para disciplinar todas as formas de expressão e de

comportamento, do modo como sentamos à mesa até a mais cotidiana

comunicação, buscando os ideais de ordem. A civilização perseguiu

freneticamente o controle e o domínio de toda e qualquer forma de perigo. O

respeito com as convenções e a higiene se constitui em duas ferramentas

eficazes de controle social. A representação sobre a limpeza e a pureza pretende

eliminar a entrada do grotesco, do monstruoso, do feio, do disforme, do violento,

em resumo, de todos os modelos perigosos para as convenções estabelecidas

pela civilização. Talvez possamos afirmar que o modelo de igualdade, tal como foi

criado nos tempos modernos, tenha estruturado todas as ações sociais e políticas

desde seu início com o objetivo de eliminar diferenças contaminadoras e,

portanto, perigosas.

A modernidade disciplinou não apenas os homens, mas todas as coisas

que pudessem estar fora do lugar. Mary Douglas103

103 DOUGLAS, Mary, op. cit., p. 18

refere que o reconhecimento

de qualquer coisa fora do lugar constitui-se em ameaça, e assim as consideramos

desagradáveis e as varremos vigorosamente, pois são perigos em potência.

Neste processo de limpeza os perigos são semi-identitários. A modernidade criou

86 Ruth M. Chittó Gauer

essa compulsão, esse desejo irresistível de ordem e de segurança. O mundo

perfeito, utopia dos iluministas, seria totalmente limpo e idêntico a si mesmo,

transparente e livre de contaminações. A racionalidade expressa pelas

convenções e pelas leis tinha como fim imunizar a sociedade contra a violência, a

corrupção, a sedução das crenças e demais impurezas. Os modernos

esqueceram, no entanto que não haveria imunidade para o egoísmo, o niilismo e

para a exploração de um número enorme de seres humanos.

Quais os procedimentos políticos, jurídicos, administrativos, e quais os

dispositivos que permitiriam a busca da construção e manutenção de uma

sociedade higienizada e imunizada? A compulsão pela ordem esteve, e está,

presente nas sociedades ocidentais, seja nos regimes políticos das democracias

liberais, seja nos regimes totalitários. Há que se salientar, porém, que a violência

depuradora sempre esteve mais presente nos ambientes onde a exceção se

constitui a regra. A eliminação dos adversários políticos é vista como uma forma

de limpeza e atinge os opositores, a todos os que podem se constituir em perigo.

Os exemplos históricos mais recentes, como o nazismo, fascismo, comunismo,

assim como as formas mais diferenciadas de ditaduras na contemporaneidade

comprovam, sem muito esforço, a utilização de práticas de saneamento dos

sistemas políticos. Nos estados de exceção, os perigosos, todos os que são

identificados como potencialmente contaminadores, devem ser purificados ou

eliminados. Quando os estados passaram a estabelecer políticas públicas para

cuidar do corpo da população, purificando a sociedade e assim “protegendo” e

ordenando a vida pública e privada, abriu-se a possibilidade para a inclusão de

alguns e logicamente a exclusão de outros.

A manutenção do modelo igualitário ganha espaço na mesma proporção

em que os regimes totalitários e de exceção se aprofundam. Quanto maior a

exceção, maior a igualdade, por mais paradoxal que possa parecer. Dumont104

104 DUMONT, Louis, O individualismo. Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, Rio de Janeiro, Rocco, 1985, pp. 270-274.

sugere que o nacional socialismo tenha revelado a essência – mesmo que essa

opinião possa causar algum, mas não suficientemente incômodo mal-estar – da

sociedade contemporânea. A atomização do indivíduo fez com que prevalecesse

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 87

uma tensão contraditória. Por um lado, a emancipação gerou o individualismo

arrebatado, por outro, uma coletivização ao extremo, isto é, o nivelamento de

todas as diferenças conduziu à pior das tiranias. Esse fato eliminou o caráter

carismático do vínculo social e abriu a possibilidade de eliminar os laços de

solidariedade que uniam as comunidades e estruturavam a sociedade. A ausência

de laços de solidariedade implica na abertura da exclusão em nome da ordem

igualitária totalizadora. Os perigos precisam ser eliminados, limpos, depurados,

para que a totalidade se faça no conjunto da sociedade. Contemporaneamente a

sociedade de massa revela a impossibilidade de pensar na forma, na essência e

no modelo. Esse aspecto traz problemas para a democracia.

Partindo da premissa de que a democracia tem por base uma igualdade,

estruturada na naturalização do indivíduo, constituída pelo direito, o que

pressupõe a exclusão do desigual (diferente) em nome da ordem, cabe aqui

lembrar que, nesse caso, a força política se sustenta na medida em que se

purifica, colocando distância entre a ordem e a desordem, entre a pureza e o

perigo, com a tentativa de eliminação do estranho, do desigual, impedindo que ele

se torne um perigo ameaçador da homogeneidade. Se representação e

identidade constituem, nas palavras de Franco de Sá,105 a força de uma

democracia, não é possível falar de democracia que prescinda da identidade. É

Jaques Derrida quem tenta pensar “a democracia por vir” por meio do apelo de

uma outra fraternidade. Para ele a desnaturalização estava em obra na própria

formação da fraternidade. A presença de qualquer grau de homogeneização e de

exclusão daquele que não é homogêneo implica na configuração de uma

totalidade. Na contemporaneidade a soberania do estado passou a ser a

soberania do direito. Hans Kelsen106

105 SÁ, Alexandre Franco de, Metamorfoses do poder, Coimbra, Ariadne Editora, 2004, pp. 34, 51-52. (Coleção Sophia 002)

defendeu a identidade entre o Estado e a

própria ordem legal. A teoria pura do direito é vista pelo autor como forma

acabada da universalidade da ordem jurídica em termos de racionalidade. A partir

desta constatação, o exercício da soberania, nos regimes democráticos,

apresenta-se como a soberania da ausência de soberania. Para o autor, a teoria

106 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, Trad. João Baptista Machado, 4 ed., Coimbra, Armênio Amado, 1979.

88 Ruth M. Chittó Gauer

pura do direito está para a soberania como a verdade está para a evidência. É

seguindo essa reflexão que podemos encontrar, nas teses de Schmitt,107

Fica evidente que a política da igualdade potencializa a violência de várias

formas: eliminando todo e qualquer outro, o diferente, o sujo, o impuro, o anormal,

o doente, enfim, tudo o que causa estranheza, perigo, que lembra sujeira e

desordem. O tecido social precisou ser impermeabilizado a tal ponto que a sua

proteção torna difícil pensar em rupturas que permitam a contaminação. As

práticas políticas adotadas na modernidade, em nome da igualdade, que visava à

eliminação das hierarquias medievais, estavam pautadas pela prescrição de

condições de controle dos comportamentos individuais e coletivos. Essa

pretensão de controle social nada mais é do que a submissão da ação pelo

comportamento: a ação enquanto possibilidade de criação e o comportamento

pautado pela previsibilidade. A perspectiva da previsibilidade encontra-se

vinculada à lógica binária e dual típica do pensamento moderno. Reafirma o

paradigma do “ou isto ou aquilo”, do sujo e do limpo, do modelo e do antimodelo.

No entanto, o pensamento moderno estruturou uma forma de exclusão que

obscureceu a possibilidade de preferência. Poderíamos preferir a inclusão e não a

exclusão, ou seja: isto, aquilo, além de outros.

a

questão da exceção. O autor explora profundamente a relação entre o ocaso da

soberania política e a emergência do conceito de guerra humanitária enquanto

guerra discriminante ou criminalizante, isto é, guerra total, exemplo de regime de

exceção. A própria soberania, na atualidade, sofre evidências devastadoras. A

busca de novos fundamentos não será suficiente para imunizá-la da correção que

é uma forma de evidência devoradora. A soberania da igualdade, que nasceu

naturalizada, ficou profundamente contaminada pelos vários eventos do século

XX – entre os exemplos mais emblemáticos citamos os regimes de exceção,

como os nazismo-fascismos.

A lógica da exclusão foi a base para a construção de termos como “classe”,

“raça”, “gênero”, entre outros, que serviam à identificação dos sujeitos. Hoje esses

termos dissolvem-se. As dimensões de territorialidade que circunscreviam os

espaços sociais romperam-se e a ordem das coisas, tal como pensada na

107 SCHMIT, apud Alexandre Franco de Sá, op. cit.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 89

modernidade, embasada na premissa da inclusão e da exclusão, deixou de ser a

norma. Por intermédio de alguns fenômenos contemporâneos, dá-se um processo

de “despurificação” das identidades sociais. A retenção de uma essência

identitária – esforço nostálgico de afirmação – é cada vez menos viável. Podemos

observar que todas as práticas culturais estão sob o contato contínuo entre o local

e o global, fato esse que impede a simples questão que pautou a

inclusão/exclusão, ao mesmo tempo em que impossibilita pensar uma igualdade

tal como defendida pelos direitos humanos. Alguns exemplos mais marcantes

podem ser apontados: o caso da mulher paquistanesa condenada à morte por

crime de honra, que foi cometido pelo seu irmão; as famílias dos homens-bomba,

que são punidas pelo crime cometido por eles quando suas casas são destruídas;

noventa e cinco por cento dos casos julgados no Paquistão são realizados pelos

conselheiros locais, que julgam segundo os princípios específicos de sua cultura,

desconhecendo a questão dos direitos humanos. Esses fatos suscitam questões

que focalizam aqueles processos que são produzidos na articulação de diferenças

culturais. Há uma intensa negociação nesses “entre-lugares”, lugares de

negociação em andamento, locus do “aqui e agora”. A soma das partes

envolvidas e suas demandas não implica um único resultado, mas implementa

múltiplas negociações e sobredeterminações que conduzem a compreensão de

formas de organizações complexas, nem sempre descritíveis em sua totalidade.

O dispositivo irrefreável de Foucault pode ser um exemplo emblemático.

O “embate cultural” – que caracteriza as crises sociais da atualidade – não

envolve, necessariamente, o duelo entre tradição e modernidade. O advento dos

fundamentalismos (tentativa lograda de resgate) é apenas um lado do

caleidoscópio social no qual as questões da ordem, do perigo, da inclusão e,

sobretudo, da exclusão constituem-se como locus das políticas atuais. As

reflexões sobre os temas acima abordados são fundamentais para a

compreensão da crise epistemológica que vivemos. A premente necessidade de

relativizar a verdade e vincular a análise a um pensamento heterotópico, não

consensual, permitiria uma maior visibilidade da crise na qual estamos todos

envolvidos. Esses temas não se encontram necessariamente juntos. Eles podem

aparecer no desespero epistemológico, no relativismo, entre outros lugares. O

certo é que a sociedade já não consegue ser explicada pelo positivismo e pelo

90 Ruth M. Chittó Gauer

determinismo racionalista. Não há preparação para lidar com o erro, com as

impurezas, só podemos pensar neles como possibilidade de nos imunizarmos. O

caos dá visibilidade a uma instabilidade que é apenas aparente. Qual o lugar da

realidade única? Em tempos polifônicos é impossível pensar na Babel.

Vivemos uma época em que a própria temporalidade deixou de ser vista de

forma totalitária. Com a superação do eterno retorno, o tempo cíclico foi

substituído pelo tempo linear projetivo que estruturou a visão de que o tempo se

transformou em história. A base dessa visão estruturada na totalidade linear e no

determinismo racionalista foi fragmentada. Essa visão foi quebrada pela

simultaneidade. O presente se torna imprescindível. Ao lado da simultaneidade

temos a invisibilidade, os desvios sociais, a ausência do estado nos bolsões de

miséria, gerando a violência. Qual o papel do estado frente à invisibilidade?

Frente à pergunta, a sedução poderia ser dispensada? No entanto, identificar o

discurso em nível de senso comum torna-se fundamental para visualizar como o

discurso da purificação se faz presente inconscientemente. Somos seduzidos por

outros mecanismos que dão maior visibilidade, uma vez que as palavras não

possuem a transparência necessária.

A impossibilidade de uma verdade única, de uma identificação totalizante,

associada a uma velocidade que, segundo Virilio, é a velhice do mundo, matam o

discurso político. Nesse quadro, o consensual fica sendo os totalitarismos, os

fundamentalismos, enfim, todos os determinismos totalitários próprios de tempos

de descrença e de desconstrução de verdades limpas, ordenadas, protegidas dos

perigos, enquadradas na limpeza purificadora que ordena o social, com a

possibilidade de termos a ditadura do modelo revelador da ordem dos Estados

nacionais, tais como pensados desde o século XVIII. Outra pergunta se faz

necessária, o consensual passaria a ser o totalitarismo? Todos os determinismos

são totalitários? Pode-se propor um pensamento heterotópico, não consensual,

estruturante, sem levar em conta que as teorias do consenso existem para tornar

invisíveis as manifestações políticas partidárias? Onde estão os requisitos dos

totalitarismos? Em todos os níveis sociais as suas manifestações ocorrem

quotidianamente. A questão não envolve a justaposição da diferença, ao lado do consenso

cultural, não se trata apenas de inclusão e reconhecimento das “minorias”, nesse

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 91

caso, o ideal essencializador (ou identitário) seria reforçado. Concordamos com

Bhabha108

Para Bhabha,

sobre a possibilidade de afirmar o deslocamento do lugar onde as

relações sociais se concretizam. O autor menciona que os “entre-lugares”, as

fímbrias, os interstícios, enfim, correspondem ao locus no qual se exercitam as

relações sociais. As diferenças culturais são exercitadas, engendrando novos

espaços e temporalidades, o que implica um deslocamento constante, anulando

as categorias de “centro” e “periferia”. 109

O autor refere ainda que o presente torna-se “obeso”, alargado, expandido

pelas experiências nascidas do hibridismo cultural. O presente “não tem lugar”,

ele é ex-cêntrico, o que equivale ao fim da hierarquia centro-periferia e sua

correspondente temporalidade: o presente não é o meio do caminho entre

passado e futuro, mas, paradoxalmente, contém ambos (porque os re-significa) e

nenhum, ao mesmo tempo, na medida em que essa re-significação subverte a

fixidez de suas características.

“essa passagem intersticial entre identificações fixas abre

possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem hierarquia

suposta ou imposta”. O presente “é o tempo de agora”, capaz de se autogerar,

distante do historicismo teleológico das “causas”. Nem ruptura, nem projeção,

abandona-se a sequencialidade.

A ideia da homogeneidade vista como pureza das culturas nacionais, ou

mesmo das raças, a exemplo do nazismo, fica comprometida, passando a ser

questionada. É o ocaso do etnocentrismo. A interferência das minorias ocupa o

território da cultura, mas não produz a multiplicação da prosa austera dos

refugiados políticos e econômicos. É nesse sentido que a fronteira se torna o

lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não

dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente, do além. Como decorrência,

o exotismo minoritário não é um mix de diversidades, mas uma transformação

qualitativa: o nascimento de novas conexões que extrapolam as dualidades

minoria x maioria, capital x trabalho, estado x sociedade, metrópole x colônia,

pureza x perigo e assim por diante. O que é impressionante no novo

108 BHABHA, Homi K., O Local da Cultura, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001, pp. 20-46. 109 BHABHA Homi K. op. cit.

92 Ruth M. Chittó Gauer

internacionalismo é que o movimento do específico ao geral, do material ao

metafórico, não é uma passagem suave de transição e transcendência.110

Ao lado dessa reflexão, de releitura da contemporaneidade, há também um

movimento político. Na visão do autor, “na medida em que esse espaço do além

torna-se um espaço de intervenção no aqui e no agora”. Trata-se de um

movimento de “renovação” do passado, reconfigurando-o como “entre-lugar”

contingente, que inova e irrompe a atuação do presente. Segundo Bhabha, na

linguagem bejaminiana, é quando o presente explode para fora do contínuo da

história. Ao invés do continuum cristalizado, no sucessivo de passado-presente, o

diálogo cultural engendra uma espécie de “novo conceito de novo”, caracterizado

pela emergência constante da “tradução cultural”. Isto é, a modernidade tropical

pós-colonial não é a Mesma do “Velho Mundo” – autenticada –, tão pouco é

completamente diferente desta. Igualdade na Diferença. O desejo de

reconhecimento (como o “Eu não pareço com você”, da música do Rappa)

introduz a negação ao contingente, pois impõe uma transcendência

(reconhecimento além do tempo). A minoria não quer ser “incluída”, higienizada,

tornada semelhante, mas sim reconhecida. Ainda segundo Bhabha,

A meia

passagem da cultura contemporânea, como no caso da própria escravidão, é um

processo de deslocamento e disjunção que não totaliza a experiência.

111

110 BHABHA, Homi, op cit., pp. 25-26.

reconhecer

implica deslocar o fundo fixo da identidade, superando a diacronia da história. A

tradição ocidental, que buscou sempre a exegese da diferença, embora nunca

tenha conseguido superar o arco hermenêutico para além do outro (como o

próprio em si), dá seus últimos passos. O Outro perde o poder de significar, de

negar, de iniciar seu desejo histórico, de estabelecer seu próprio discurso

institucional, do puro e do impuro. A experiência social da “teoria crítica ocidental”

perfaz um caminho que vai da consideração do “bom selvagem” de Rousseau ao

“bom” e dócil corpo da diferença nos discursos contemporâneos do

multiculturalismo. Essa concepção permite a compreensão de experiências como

sendo, ela mesma, a marca da impossibilidade de se localizar tanto uma origem,

quanto uma pureza cultural. Produz um problema insolúvel de diferença cultural

111 BHABHA, Homi, op cit., pp. 29, 59.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 93

para a própria interpelação da autoridade cultural colonial. Como exemplo,

Bhabha lembra que na relação entre hinduísmo e cristianismo, sob a égide do

discurso colonialista, e para sua própria “eficácia”, foi preciso encontrar

catequistas nativos, que traziam consigo suas próprias ambivalências e

contradições culturais e políticas. As noções liberais de multiculturalismo, de

intercâmbio de culturas e de cultura da humanidade constituem uma retórica que

considera as culturas como portadoras de conteúdos totalizáveis, de memórias

míticas e de identidade coletiva única, o arcabouço da tradição.

A luta se dá frequentemente entre o tempo e as narrativas historicistas,

teleológicas ou míticas, do tradicionalismo – de direita ou de esquerda – e o

campo deslizante, estrategicamente deslocado, da articulação de uma política de

negociação. Para Bhabha,112

Uma cultura não pode ser auto-suficiente por causa da différance da

escrita, quer dizer, no processo de manifestação simbólica da linguagem, porque

existe, de acordo com Bhabha, uma diferença manifesta no próprio lugar do

enunciado. Isso se justifica porque “o pacto da interpretação nunca é

simplesmente um ato de comunicação entre o Eu e o Você designados no

enunciado. A produção de sentido requer que esses dois lugares sejam

mobilizados na passagem para um Terceiro Espaço, que representa tanto as

condições gerais da linguagem quanto a implicação específica do enunciado em

uma estratégia performativa e institucional da qual ela não pode, em si, ter

consciência. O que essa relação inconsciente introduz é uma ambivalência no ato

da interpretação”.

“o tempo de libertação é (...) um tempo de incerteza

cultural, e, mais crucialmente, de indecidibilidade significatória ou

representacional”.

113

112 BHABHA, Homi, op. cit., pp. 65-68.

113 Para uma análise da complexidade do processo de enunciação, bem como da relação entre emissor, mensagem e receptor, e suas interconexões com a teoria hermenêutica, sugere-se o capítulo “Hermenêutica e Ciências Humanas”, no qual Luiz Eduardo Soares afirma que a linguagem “antecede o sujeito, instaura com este uma dialética, na qual representa o universal, aquilo que, oferecendo-se ao sujeito, o precede e sucede, o inclui — tornando-o possível — e o exclui, prescindindo de sua intervenção para configurar-se em sua essencialidade universal, mas que, simultânea e paradoxalmente, depende dele para existir, assumindo concretude nas particularizações que ele realiza”. Luiz Eduardo Soares, O rigor da indisciplina, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994, p. 45.

94 Ruth M. Chittó Gauer

O que o autor pretende é desafiar “a noção de identidade histórica da

cultura como força homogeneizante, unificadora, totalizante, autenticada pelo

passado originário mantido vivo na tradição nacional de um Povo”. Sua

perspectiva desloca a narrativa da nação ocidental de modo a tornar manifesto

que o discurso sobre a "pureza" inerente às culturas (ou a pureza racial) é

insustentável, mesmo antes de recorrermos a instâncias históricas empíricas que

demonstram seu hibridismo. Para este fim deveríamos lembrar que é o “inter” – fio

cortante da tradução e da negociação, o entre-lugar – que carrega o fardo do

significado da cultura. E, ao explorar esse Terceiro Espaço, temos a possibilidade

de evitar a política da polaridade e emergir como os outros de nós mesmos. Esse

fim nos levaria ao abandono da inclusão-exclusão.

Importante lembrar ainda outra expressão de Bhabha, influenciada pelo

pensamento de Walter Benjamim, quando cita a seguinte passagem do texto

bejaminiano: “o estado de emergência em que vivemos não é a exceção, mas a

regra. Temos de nos ater a um conceito de história que corresponda a essa

visão”.114 A luta contra a discriminação, a opressão, o perigo da impureza racial,

entendido como sujeira, não apenas muda a direção da história ocidental, mas

também contesta sua ideia historicista de tempo como um todo progressivo e

ordenado. A análise da despersonalização não somente aliena a ideia iluminista

de homem, mas também contesta a transparência da realidade social como

imagem pré-dada do conhecimento humano. Afinal, a própria natureza da

humanidade se aliena na condição da discriminação e a partir daquela

“declividade nua” ela emerge, não como uma afirmação da vontade, nem como

evocação da liberdade, mas como uma indagação enigmática: o que quer o

homem? Fanon115

Ao articular o problema da alienação cultural colonial na linguagem

psicanalítica da demanda e do desejo, Fanon “questiona radicalmente a formação

tanto da autoridade individual como da social na forma como vêm a se

desenvolver nos discursos da soberania social”. Para ele, “tal mito do Homem e

da Sociedade é fundamentalmente minado na situação colonial”. A vida cotidiana

desloca a dúvida e questiona: o que deseja o homem negro?

114 Ver BENJAMIN, Walter, “Sobre o conceito de história”, Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política: ensaios de literatura e história da cultura, São Paulo, Editora Brasiliense, 1987. 115 FANON, apu BHABHA, Homi, op. cit., pp. 72-75.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 95

exibe uma “constelação de delírio” que medeia as relações sociais normais de

seus sujeitos: o preto escravizado por sua inferioridade, o branco escravizado por

sua superioridade, “ambos se comportam de acordo com uma orientação

neurótica”. A esse quadro social, o autor chama de “delírio maniqueísta”.

De acordo com Fanon, “o que é freqüentemente chamado de alma negra é

um artefato do homem branco”. Bhabha afirma que esta transferência revela a

incerteza psíquica da relação colonial porque suas representações fendidas “são

o palco da divisão entre corpo e alma que encena o artifício da identidade”, uma

divisão que atravessa tanto a pele branca quanto a preta no processo de

firmamento da autoridade individual e social. Daí emergem três condições

subjacentes a uma compreensão do processo de identificação na analítica do

desejo:

a) “existência” não é transcendente, mas dá-se em relação a uma

alteridade, seu olhar e seu locus. Ou seja, o colonizador só existe em relação ao

colonizado e o negro em relação ao branco. Esse pensamento supera o arco

hermenêutico;

b) o próprio lugar da identificação já contém uma cisão porque “é

precisamente naquele uso ambivalente de ‘diferente’ – ser diferente daqueles que

são diferentes faz de você o mesmo – que o Inconsciente fala da forma da

alteridade, a sombra amarrada do adiamento e do deslocamento. Não é o Eu

colonialista nem o Outro colonizado, mas a perturbadora distância entre os dois

que constitui a figura da alteridade colonial”;

c) a identificação nunca é a afirmação de uma identidade pré-dada, nunca

uma profecia auto cumpridora — é sempre a produção de uma imagem de

identidade e a transformação do sujeito ao assumir aquela imagem. A demanda

da identificação – isto é, ser para um Outro – implica a representação do sujeito

na ordem diferenciadora da alteridade”.116

Os retratos pós-coloniais manifestam o ponto de fuga de duas tradições

familiares do discurso da identidade: a tradição filosófica da identidade como

processo de auto-reflexão no espelho da natureza humana – tal como o cogito

116 BHABHA, Homi, op. cit., pp. 76-78.

96 Ruth M. Chittó Gauer

ergo sum cartesiano117 – e a visão antropológica da diferença da identidade

humana enquanto localizada na divisão natureza/cultura – tal como aponta

Claude Lévi-Strauss118

O poder total construído com base na impessoalidade e na igualdade

permitiu o discurso da identidade, que pode ser pensada como a auto-

interpretação política do mundo contemporâneo. A totalidade dos estados

nacionais foi construída, em boa parte, pelo sentido declinante de comunidade, a

inclusão dos iguais e a exclusão dos diferentes. Por outro lado, a perda de valores

espirituais unificados, que foram substituídos pela possibilidade de “liberdade” de

credo, o crescimento do poder do Estado e da cultura de massas, e mesmo o

aumento do conhecimento constituíram-se em ações políticas baseadas na

liberdade, mas que não desempenharam um papel social que tivesse impedido a

discriminação. O historiador Jacob Burckhardt via claramente o lado decadente da

natureza humana e, nesse contexto, acreditava que ele era uma barreira

permanente ao progresso. Seu argumento principal considerava a decadência

essencialmente como um decréscimo geral na vitalidade, que se originava em

uma certa espécie de virtude, “a moral das velhas senhoras” do cristianismo e da

burguesia, que salientava a piedade, o amor ao próximo, a solicitude e falta de

confiança em si mesmo.

acerca do tabu do incesto. Funciona como dobradiça da

passagem entre natureza e cultura. É a impossibilidade de reivindicar uma origem

para o Eu (ou o Outro) dentro de uma tradição de representação que concebe a

identidade como a satisfação de um objeto de visão totalizante, plenitudinário. Ao

romper a estabilidade do ego, expressa na equivalência entre imagem e

identidade, a arte secreta da invisibilidade muda os próprios termos de nossa

percepção da pessoa. A própria questão da identificação só emerge no intervalo

entre a recusa e a designação. Ela é encenada na luta agônica entre a demanda

epistemológica, visual, por um conhecimento do Outro e sua representação no ato

da articulação e da enunciação.

Durkheim119

117 Ver DESCARTES,René, Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973.

observou que as sociedades tiveram sempre mitos coletivos

para que pudessem existir, e isto era precisamente o que os europeus do final do

118 Ver LÉVI-STRAUSS, Claude, Antropologia Estrutural I, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1970. 119 DURKHEIN, E, Reglas del metodo sociologico, Madrid, Morata, 1974.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 97

século XIX já não possuíam, ou estavam em processo de perder. Ele

compreendia a suprema importância para a sociedade das crenças comuns e dos

vínculos que tradicionalmente se encarnavam na religião, na família e nas

lealdades sociais e vocacionais. Para Durkheim a Europa sofria de uma anomie

(colapso geral da consciência coletiva), que era o resultado da divisão do

trabalho, que estimulava a mobilidade e a especialização, e deste modo não

apenas separava as pessoas umas das outras, como as tornava críticas em

relação às normas tradicionais. Para muitos, essa era a melhor explicação da

decadência contemporânea. Era a crise espiritual, ou o declínio das velhas

crenças que deixara um vazio religioso e metafísico.

Ao voltar ao pensamento de Durkheim, Baumer120 afirma que se trata do

deslocamento de um novo mundo irracional do Fin-de-Siècle para o mundo sóbrio

da razão e da ciência. Durkheim só pertencia a este novo mundo irracional, no

sentido em que via a decadência e procurava maneiras de curá-la. Para

compensar a anomie, que era a causa da doença social, era necessário planejar

uma nova solidariedade moral. Para isso o autor defendeu uma nova ética secular

e um novo tipo de instituição. A ética para ser ensinada nas escolas devia

“salientar o dualismo da natureza humana: por um lado a individualidade do

homem e a dignidade da pessoa humana, por outro lado, o lado social de sua

natureza e até que ponto a sociedade o afecta, mesmo na maneira como pensa e,

conseqüentemente, o que lhe deve”. 121

Estas receitas para a recuperação, baseadas em uma crença na liberdade

da história tal como da natureza, ajudam a explicar a evaporação parcial do ânimo

pessimista, durante o período Eduardiano. Contudo, o progresso fora agora

desmascarado e era evidente para um número cada vez maior de pessoas que

não havia nada de natural nele. Na complexidade do mundo atual há muita coisa

fora do lugar – que não cabe na lógica cartesiana –, daí a importância de Mary

Douglas quando lembra que o reconhecimento de quaisquer coisas fora do lugar

constitui-se em ameaça, e assim consideramos desagradáveis e as varremos

vigorosamente, pois são perigos em potência. Esses perigos, no entanto, se

120 BAUMER, Franklin, op. cit., p. 164. 121 BAUMER, Franklin, obp cit., p. 164.

98 Ruth M. Chittó Gauer

transformaram em condição de análise. Um modelo rígido de pureza, tal como o

da igualdade moderna, quando imposto, acaba por se tornar totalizante, conduz à

exceção, já que a pureza é inimiga da mudança, da ambiguidade e da diferença.

Se a ânsia pelo rigor existe em todos nós, temos que ter presente que o rigor está

repleto de inadequação.

O tema da desilusão frente à história da violência contemporânea parece

estar presente e revela a crise dos tempos atuais. Estas constatações, baseadas

na crença da liberdade da história tal como da natureza, ajudam a explicar

parcialmente o ânimo pessimista do período. Contudo, o progresso foi

desmascarado e torna-se evidente para um número cada vez maior de

intelectuais que não há nada de automático ou certo nele. As metamorfoses

ocorridas no século passado afetaram as atitudes humanas em relação às

tradições do passado e aos modos de expressão, e acarretaram o surgimento de

uma nova perspectiva do mundo. Com relação ao advento de uma cultura

unificadora, devemos esperar o surgimento de um outro padrão cultural que

possa ser gestado em um ambiente que leve em consideração os limites e as

desilusões com a lógica moderna e com o próprio humanismo. O vazio das

convicções humanistas, os paradoxos da filosofia liberal, entre a dignidade e

igualdade humanas no plano do ideal/real, as pretensões morais totalitárias que

encobrem a real vontade de domínio, o desmascaramento da fácil crença no

progresso, a moralidade, ela própria uma forma de imoralidade, os ataques

frontais aos valores e pressupostos que fundamentavam a cultura ocidental,

desmontaram a fragilidade da visão de totalidade e superioridade. Se, na frase de

Dewey, a mente individual possui como função a vida social, a ciência deixou o

homem procurando, às apalpadelas, uma esquiva realidade; Freud deixou-o

procurando em vão uma realidade em seu próprio e mais íntimo eu; a história

explicitou esses fatos, evidenciando a violência produzida pela cultura humanista

iluminista.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 99

X A fixidez da norma frente ao fluxo contemporâneo

Todo discurso é marcado por uma dada concepção do tempo que se insere

na lógica da narrativa. As regras de uma sociedade são construídas como bases

sociais estruturadas nas tradições narradas, que são transmitidas de geração

para geração. As sanções são aplicadas sempre que houver a transgressão de

qualquer norma, o limite é colocado como padrão social que visa impedir a quebra

de certas regras previamente definidas. A fixidez implica fugir da conjugação – a

norma diz. Se a norma regulamenta a sociedade ao evocar o limite previamente

construído, o ato social está inscrito em uma dinâmica diferenciada das premissas

regulatórias construídas pelas tradições. Nas sociedades simples o cumprimento

de regras sociais se faz de forma tradicional, o conhecimento de todas as normas

pela comunidade deve ser obrigatório, uma vez que não há o instrumento da

escrita, cabe aos antecessores transmitir esse conhecimento por meio da

narrativa. Um bom exemplo de manutenção do uso do direito consuetudinário na

estrutura de dominação é o que foi utilizado pelos britânicos nos domínios da

África e da Ásia. A natureza das instituições legais britânicas, o direito inglês, a

commom law, sempre foi fundamentada teoricamente com base nos

regulamentos locais da comunidade. O costume local podia prevalecer se não

contradissesse o Parlamento. Esse caso é exemplar para verificar a permanência

da tradição em relação a uma dominação eficaz. Essa constatação serve para

compreendermos que a administração da justiça local nas regiões coloniais foi

exercida pelos líderes políticos ou religiosos nativos que detinham o poder em

paralelo ao do dominador na medida em que se constituíam nos responsáveis

pelos processos locais, desde que os interesses britânicos não corressem perigo.

Ocorreram algumas exceções, por exemplo: na África o costume de pagamento

pelo noivo à família da noiva e, na Ásia, a cremação da viúva na pira do esposo

morto. No caso inglês podemos perceber a manutenção da tradição ao lado da

legislação do país que dominava. No caso o direito consuetudinário serviu

também para manter o domínio.

O exemplo francês permite demonstrar que a política de dominação foi

totalmente contrária à utilizada pelos britânicos. Os colonos eram considerados

franceses, o que os subordinava ao direito francês. Esse fato é verificável após o

100 Ruth M. Chittó Gauer

Código Napoleônico. No caso do Brasil os portugueses aplicavam as Ordenações

do Reino. No que se refere às regras sociais, podemos pensar que elas se

organizam pela dualidade: política e lei, essa dualidade está relacionada à

contradição em qualquer estudo jurídico que se relacione com as regras sociais. A

lei como duplo sistema, proteger e punir, defronta-se com duas premissas

fundantes: a racionalidade imutável e totalizadora e o tempo linear. A

imutabilidade da racionalidade construiu o meta relato totalizador e o tempo linear

se defrontou com a fixidez da norma frente ao fluxo contínuo da história. O direito

consiste em uma série de normas e regras consideradas, via de regra, boas e

justas, daí resulta a obediência. O que é justo e bom pode mudar de sociedade

para sociedade assim como historicamente como os exemplos citados acima são

ilustrativos. A racionalidade do processo de dominação colonialista não pode

eliminar de todo as normas sociais das sociedades locais consideradas como

irracionais. A antropologia britânica do início do século XX deu enorme

contribuição para os estudos do direito “primitivo”. O grande nome da antropologia

do direito foi Malinowski, que publicou, em 1926, importante estudo, Crime e

costume na sociedade selvagem. Sobre os sistemas políticos africanos de

parentesco e casamento, a obra de Radcliffe-Brown122

Em ambos os estudos a presença de uma lógica diferente da do Ocidente

moderno não coloca as instituições dessas sociedades em uma condição de

diferença. Em um grande número de sociedades estudadas pelos especialistas

em antropologia do direito, encontraram-se argumentos para afirmar que a base

trata dos efeitos

patrimoniais do casamento no grupo dos Zulus e os efeitos do divórcio. No que se

refere ao crime, foi constatado que o único crime público em tais sociedades era o

de ser um mau caráter, os outros delitos eram vistos como afetando apenas

interesses individuais. Nesse caso previam-se sanções para frustrar o que o

criminoso poderia vir a fazer e não pelo que fizera, uma vez que a constatação de

ser um mau caráter só poderia vir pelo consenso sobre uma variedade de

experiências. Como se pode verificar, a racionalidade não está ausente, ela

apenas se desloca em relação à lógica ocidental.

122 RADCLIFFE-BROWN, A. R. e FORDE, Daryll. Os sistemas políticos africanos de parentesco e casamento. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, 1982. p. 262, 264.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 101

do direito “primitivo” é processual, isto é, a resolução de disputa para manter a

harmonia da comunidade, de preferência à aplicação de regras formais. No

entanto, esse direito não segue as premissas do direito racional moderno.

Uma das grandes preocupações que povoam o pensamento da

intelectualidade contemporânea está relacionada com a necessidade de se

pensar uma “nova” razão, dotada de liberdade. A preocupação não é nova, como

já afirmamos, Giambattista Vico, nos axiomas contidos na obra Princípios de

(Uma) Ciência Nova,123 afirma: “Outra propriedade da mente humana é que os

homens, sempre que das coisas remotas e desconhecidas não podem fazer

nenhuma ideia, avaliam-nas a partir das coisas deles conhecidas e antevistas”.

Seria possível pensar o mundo civil como à época de Vico? Ilustrativa para esse

debate parece ser a posição dos existencialistas, a exemplo de Sartre.124

O único método possível para estudar a temporalidade é abordá-la como

uma totalidade que domina suas estruturas secundárias e lhes confere

significação.

Em O

ser e o nada, Sartre revela a sua visão sobre a temporalidade: estrutura

organizada e os três pretendidos elementos do tempo (passado, presente, futuro)

não devem ser vistos como uma coleção de datas cuja soma deva ser efetuada

como uma série infinita de agoras, dos quais alguns não são ainda e outros não

são já, mas sim como elementos estruturados de uma síntese original. Caso

contrário, nos encontraremos diante deste paradoxo: o passado não é mais, o

futuro não é ainda. Quanto ao presente instantâneo, não é em absoluto: é o limite

de uma divisão infinita, como o ponto sem dimensão. Desse modo, toda a série se

aniquilaria.

É preciso, para um exame do ser do tempo, partir de uma descrição pré-

ontológica e fenomenológica de suas três dimensões. Assim obteremos uma

intuição da temporalidade global. Cada dimensão deve aparecer sobre o fundo da

totalidade temporal. O passado invoca e toda a teoria sobre a memória implica

uma pressuposição sobre o ser do passado. Estas pressuposições, nunca

123 VICO, Giambattista, Os Pensadores, seleção, trad. e notas de Antonio Lázaro de Almeida Prado, São Paulo, Abril Cultural, 1974. 124 SARTRE, Jean-Paul, O ser e o nada, Petrópolis, Vozes, 1997. Cf. especialmente o terceiro capítulo, Da fenomenologia das três dimensões temporais.

102 Ruth M. Chittó Gauer

elucidadas, obscureceram o problema da recordação e da temporalidade em

geral.

Qual é o ser de um ser passado?

O senso comum: o passado não é mais. Desse modo, parece que se quer

atribuir o ser somente ao presente. Esta pressuposição ontológica engendrou a

famosa teoria dos traços cerebrais: já que o passado não é mais, já que

desmoronou no nada, se a lembrança continua existindo é necessário que seja a

título de modificação presente de nosso ser; por exemplo, seria uma pegada

marcada agora em um grupo de células cerebrais. Assim, tudo é presente, tudo é

em ato, pois o traço mnemônico não tem uma existência virtual enquanto

lembrança: é, integralmente, traço atual. Se a lembrança ressurge, o faz no

presente, em consequência de um processo presente, ou seja, como uma ruptura

no equilíbrio protoplasmático no agrupamento celular. Aí se encontra o

paralelismo psicofisiológico, que é instantâneo e extratemporal, para explicar o

aparecimento da consciência, da imagem-recordação. Não há meio algum de

distinguir entre percepção e imagem, se pretendemos fazer desta uma percepção

renascente. Lembrar a história da violência é ter presentes as questões da

imagem-recordação, por um lado, e lembrar a história, por outro, tal como os

historiadores a descreveram. Já houve quem afirmasse que a história da

humanidade não passa dos relatos de atrocidades e violências cometidas pelos

humanos.

Extrapolamos a racionalidade do universo a partir de raros pontos de

certezas. Miller125

125 MILLER, Arthur I, Intuitions de Génie: images et crétivité dans les sciences et les arts, Paris, Flammarion, 1996, pp. 369-370.

afirma que, durante o século XX, os cientistas se ocuparam

particularmente da pesquisa de representações do mundo invisível, o que é

verdade, sobretudo, na física atômica, na qual os cientistas tentaram ler a

natureza a partir dos fatos, como fotógrafos das câmaras de gás, que dependem

fortemente da teoria. Todos eles supuseram que pudessem manipular as

entidades invisíveis, tais como os elétrons, graças aos conceitos abstratos do

mundo sensível. Depois se convenceram de seus erros, em etapas, e tomaram

consciência, mais ou menos em 1927, das restrições inerentes à imagem visual e

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 103

à linguagem da abordagem desse assunto misterioso. Por esse caminho

apoiaram-se na representação, metáfora visual adaptada ao mundo invisível. O

autor refere que essa transição, contudo, requereu transformações dramáticas

dos conceitos de imagem visual e da intuição. Sabemos que a representação da

natureza sempre constituiu problema central para a ciência. Os problemas de

tempo e espaço levam os cientistas a pesquisar e rever a representação da

natureza no século XX. Esses problemas foram tratados de formas múltiplas,

entre elas como risco. É assim que Ulrich Beck126

1 - advento da idade moderna, risco controlado;

divide a sociedade de risco em

três fases:

2 - século XIX até metade do XX, vontade de controle do risco, domesticar

e mensurar o risco para reduzir a sua ocorrência;

3 - fracasso do controle, aparecimento de novos e incontrolados riscos

provenientes da sociedade industrial tardia. Embora tenhamos ultrapassado a

racionalidade do universo a partir de raros pontos de certezas e, por outro lado,

tenhamos conseguido dar visibilidade ao risco, ainda não fomos capazes de

compreender de forma mais contundente as questões da violência.

Para além do risco e sua impossibilidade de controle temos o declínio do

político, que se manifesta de diversas formas: o desprezo pelos políticos,

anedotas, ditos populares e a versatilidade das massas, uma forma de insolência.

O individualismo determinou toda a organização política moderna. O Estado como

expressão por excelência da ordem política protege o indivíduo da comunidade. A

saturação da forma política caminha lado a lado com a saturação do

individualismo. Trata-se, pois, de uma maneira de se interrogar sobre as massas.

O processo de desindividualização, da saturação da função que lhe é inerente, e

da valorização do papel pessoal permite pensar nas massas assim com as tribos

que nelas se cristalizam (estrutura mecânica da modernidade, diferente da

estrutura complexa ou orgânica da contemporaneidade). As configurações que

permitem compreender a superação do individualismo se expressam em Beck

como metáforas que salientam o aspecto confusional da sociedade. São elas a

126 BECK, Ulrich, A Sociedade de Risco, Barcelona, Paidós, 1998.

104 Ruth M. Chittó Gauer

massa indefinida, povo sem identidade, tribalismo como nebulosa de pequenas

entidades, a organização que se dá em redes, não em estruturas hierarquizadas.

Richard Sennett, ao ver a possibilidade de se pensar como

participante/ator, remete-nos à análise da flexibilidade. Sennett127

Kerckhove

explica a

origem da palavra flexibilidade, que entrou na língua inglesa no século XV e

designa a capacidade de ceder e recuperar-se, ser adaptável a circunstâncias

variáveis, sem se deixar quebrar por elas. Os primeiros filósofos modernos

comparavam o dobramento da flexibilidade com os poderes de sensação do eu.

Citando o Ensaio sobre o entendimento humano, de Hume, Sennett refere o

filósofo por meio de uma afirmativa importante para se pensar a flexibilidade:

"quando entro mais intimamente no que chamo de eu, sempre dou com uma ou

outra determinada percepção, de calor ou frio, luz ou sombra, amor ou ódio, dor

ou prazer. Desde essa época procurou-se encontrar princípios de regulação e

recuperação interiores que resgatassem o senso de individualidade do fluxo

sensório”. A natureza humana há muito não pode ser considerada uma essência,

nem uma ideia, é um conceito, uma certa harmonia. A negação da existência do

sujeito nos permite pensar que o homem é, como diz Lévi-Strauss, apenas um

momento, uma mensagem. Momentos e mensagem não possuem o status de

verdades universais. 128

127 MAFFESOLI, Michel, O Tempo das Tribos, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987.

auxilia a compreensão da ausência da continuidade quando

diz que os computadores, ao acelerarem o ritmo da nossa cultura televisiva,

geraram a implosão pós-modernista. É exatamente quando pensávamos que a

realidade estava sob controle, que ela mudou novamente. Para Kerckhove,

mudou da Idade Média para a Idade da Razão, hoje está a mudar para a Idade da

Mente. Na idade da mídia eletrônica o controle da linguagem torna-se público.

Com a Internet temos o primeiro meio oral e escrito, público e privado, individual e

coletivo, a um só tempo. A ligação entre mente pública e individual é feita por

meio de redes abertas que recobrem todo o Planeta em um tempo “real”. Todas

MAFFESOLI, Michel, O Conhecimento Comum, São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 19. Na obra o autor justifica sua apreensão em “dar provas de uma preocupação metafórica que evite a petrificarão do objeto analisado”. Richard Sennett, A corrosão do caráter, Rio de Janeiro, Record, 1999, pp. 53-54. 128 KERKHOVE, Derrick, A Pele da Cultura, Lisboa, Relógio D’Água, 1997, pp. 175-194, 218.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 105

estas teorias introduzem na matéria os conceitos de historicidade e de processo,

de liberdade, de autodeterminação e até de consciência que antes os homens

tinham reservado para si.

Seguindo nessa mesma trilha, a análise de Paul Virilio nos dá boas pistas

para pensarmos por meio de conceitos que fogem à verdade. Virilio129

129 VIRILIO, Paul, A Inércia Polar, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1993, p. 128.

desenvolve

seu trabalho como urbanista, teórico da Dromologia, (do grego dromos =

velocidade). Em sua obra A inércia polar, a velocidade e o espaço são enfocados

a partir da experiência das guerras. A velocidade é vista por Virilio como a

alavanca do mundo. Por outro lado, o controle do tempo é remetido a uma análise

sobre o poder. Virilio associa as distâncias-espaço às distâncias-tempo e, assim,

abre um importante campo de reflexões. Para a compreensão do mundo faz-se

necessário não mais ver a sociedade a partir de dentro, mas sobrevoá-la, como

se fosse um espetáculo. Na atual velocidade, o mundo, que não é finito, está

chegando a um ponto de instantaneidade nos nossos deslocamentos. Passamos

do tempo extensivo da história ao tempo intensivo de uma instantaneidade sem

história. Para Virilio, se o tempo é história, a velocidade é apenas sua alucinação,

uma alucinação perspectiva que destrói toda a extensão da cronologia. Nesse

sentido os acontecimentos desvanecem-se, perdem-se, pois já não há ideias em

luta com os fatos. Aparece então a negação do fato real. Os acontecimentos não

são aprendidos, uma vez que as imagens não se fixam, escapam pela fluidez da

velocidade. A popularização da velocidade retira das forças militares, dos

políticos, o poder, assim como a velocidade-riqueza não é mais obtida apenas

pelos banqueiros ou por alguns poucos que tomam decisões. Há, nesse sentido,

uma desconstrução como fruto do recente primado do tempo sobre o espaço.

Criou-se um novo espaço-tempo. Depois da desintegração nuclear do espaço, da

matéria, ocorre a desintegração do tempo da luz. O fato provocará uma mutação

cultural na qual a profundidade temporal superará a profundidade espacial da

perspectiva renascentista. Os nexos estabelecidos, na obra de Virilio, embasam-

se na mutabilidade constante de suas reflexões. Os conceitos trabalhados, com

essa plasticidade, ganharam uma expansão a partir das relações estabelecidas

com os exemplos citados. Nesse sentido, a inércia torna-se um segundo conceito

106 Ruth M. Chittó Gauer

usado para avaliar a capacidade humana, capacidade essa que é identificada

pela imponderabilidade. A possibilidade de análise do imponderável permite

apresentar uma outra história do Estado que não se confunde com a reprodução

do espaço militar e mesmo civil. Nesse sentido, Virilio vê a política como energia e

o poder como o elemento movido por essa energia. Assim, a ciência política

estaria ligada à passagem e à possessão.

Para Virilio, vivemos a inércia comportamental devido à velocidade, ao

declínio das atividades no espaço, e à esclerose dos reflexos ocasionados pelo

envelhecimento do mundo, equivaleria dizer, pelo envelhecimento da história. A

velocidade é a velhice do mundo. A ecologia comete a incompreensão do caráter

relativista das atividades do homem. Não interroga o diálogo homem-máquina

sobre o meio ambiente. A ecologia não poderá desenvolver-se sem apreender a

economia do espaço-tempo das atividades humanas e suas rápidas mutações. A

verdade dos fenômenos é sempre limitada pela sua velocidade. A economia já é

gerida à distância, é a desnaturação do presente-vivo convertido em Tele-

Presente-Vivo. A lei que determina que um corpo não pode estar presente no

espaço onde há outro corpo já está defasada. A tele-presença não apenas

permite isso quanto traz a questão da Propriopercepção: e a presença, onde se

situa? Onde estou, se estou em toda parte? A questão não será mais quem sou

eu, mas onde estou eu. O ser torna-se incerto quanto à sua posição no espaço e

indeterminado quanto ao seu verdadeiro regime de tempo. Eis a inércia da

natureza relativista. O autor contribui para uma análise que associa as distâncias-

espaço às distâncias-tempo, abrindo, assim, um importante campo de questões

filosóficas. Mostra-nos ainda as categorias de velocidade, com as quais faz os

vetores do poder. A velocidade pensada pelo autor já se fazia sentir no século

XIX. Ela é vista por muitos como um moinho satânico que corrói toda tradição.

Descrever a violência, frente a essa visão, construída historicamente, reflete a

pretensão de abordar as “peças de um enigma que se imbricam, se

complementam e dão assim os grandes contornos do visível na aparência de

nossa vida”.130

130 MAFFESOLI, Michel, op. cit. p. 27.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 107

Uma vez que, segundo o próprio Maffesoli, continua não havendo nada de

novo sob o sol, cabe então, mais do que nunca, priorizar o estilo, a forma de dizer

e fazer da própria análise proposta ao longo da obra um “aparelho crítico

conseqüente”.131 Fazer dela um “trabalho minucioso de comparativismo e

despesa ostentatória”.132

Por outro lado, Maffesoli não deixa de enumerar, na própria introdução da

obra, os riscos de seu empreendimento. Sabe ele que uma obra que não

pretende contribuir com teorias que irão mudar o mundo e não se vale da

tentativa de produzir conceitos tende a ser classificada como improdutiva e

diletante. Sabe ele que, no quadro de uma ideologia produtivista, o trabalho em

questão pode muito bem ser considerado inútil. Importa, no entanto, mais do que

tudo, “reconhecer nossa época através do discurso múltiplo e com a ajuda dos

discursos que o precederam".

133

Enfocar o vivido, o vivido que, por sua vez, é constituído pela vida. Não se

trata, portanto, de apresentar os fatos e ligá-los, tentando equacionar aquilo que,

por si só, não pode ser equacionado. O reconhecimento da diferença é, desse

modo, o ponto de partida.

Para além de uma aparência homogênea,

importa mostrar o lugar onde se defrontam forças antagônicas e compreender a

pluralidade a partir de um quadro de transitoriedade cíclica.

“Quanto a nós, gostaríamos de mostrar que se pode matizar e apreciar

diversamente essas facetas variadas de uma realidade, que se pode mesmo, até

certo ponto, analisá-las em si; de modo didático ou para a clareza de exposição

que, também, como fica manifesto nessa introdução, elas remetem uma a outra e

entram em ressonância na grande harmonia da diferença”.134

131 MAFFESOLI, Michel, op. cit., p. 28.

Nessa busca da

diferença, ou talvez fosse mais correto dizer, nessa recusa em negá-la, observa-

se o próprio transcurso da crítica ao racionalismo e uma não aceitação do

princípio da realidade como constituinte único do dado social. Quanto ao primeiro,

Maffesoli irá dizer-nos que o mesmo acaba por não levar em consideração o

devir, o inacabamento e a falta e, quanto ao segundo, decorre daí o não

132 MAFFESOLI, Michel, op. cit., p. 28. 133 MAFFESOLI, Michel, op. cit., p. 30. 134 MAFFESOLI, Michel, op. cit., p. 39.

108 Ruth M. Chittó Gauer

entendimento das pulsões que, queiramos nós ou não, se fazem presentes no

vivido.

Ao analisar a maneira como o poder configura-se, o autor de A violência

Totalitária irá, então, recorrer a uma ideia de dinâmica social para além do

reducionismo racionalista e da própria negação pulsional. As questões suscitadas

passam a ser “como se determina o poder; quais os meios postos em ação, quais

as medidas empregadas para assegurar sua manutenção?”135 Deve-se levar em

consideração que, para elucidar tais questões, é preciso partir de um

entendimento sobre “o confronto do uno e do múltiplo, tendo como motor a

submissão ou a dependência que se manifesta na sua ambivalência”.136

Compreender, portanto, a função unificadora do Estado e aquilo que, em outros

termos, pode ser entendido como o “retorno do reprimido”.137

A questão do campo do poder pode ser vista, contemporaneamente, por

meio da reforma. Temos, portanto, a ideia de um poder que se nutre daquilo que

supostamente o contesta. Um poder que “não muda de natureza desde que não

sejam questionadas as suas invariantes estruturais”.

138

A socialidade, para Maffesoli, está inscrita em uma estrutura ou forma

fundamental, fragmentada, multidimensional e polifônica que atravessa a

realidade social, é também aquilo que carrega consigo uma potência que é

anterior ao poder, não se deixa reduzir à simples razão. Compreender a ideia de

socialidade torna-se, assim, essencial para que entendamos os chamados

processos revolucionários e a violência em suas diferentes instâncias. Para tanto

A revolução, nesse

sentido, nada mais é do que um fenômeno recorrente, uma vez que não apenas

renova o poder como também se torna responsável por uma nova fundação

simbólica da sociedade. A revolução serve, em última instância, para reativar e

revigorar a socialidade. A partir desse último termo tem-se, então, um fértil campo

de análise.

135 HORKHEIMER, apud Michel Maffesoli, op. cit., p. 41. 136 MAFFESOLI, Michel, op. cit., p. 41. 137 MAFFESOLI, emprega o termo em diferentes momentos da obra, sendo que a sua utilização, embora relacionada ao conceito freudiano, ganha aqui um caráter mais específico, uma vez que diz respeito ao fato social em si, quando este se coloca como uma contraposição a todo e qualquer empreendimento unificador. 138 MAFFESOLI, Michel, op. cit., p. 51.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 109

se faz necessário reconsiderarmos a maneira como vemos a violência. Ela não

pode ser pensada como resto anacrônico de uma ordem bárbara em vias de

extinção. A violência pode ser pensada como um instrumento utilizado pela

própria civilização.

Podemos deduzir que a violência é inerente ao propósito de o poder

garantir reformas parciais e insignificantes. Reformas e revoluções estão, por sua

vez, situadas na própria manifestação da socialidade, de uma socialidade que

abarca ainda a própria potência. A potência, nas palavras do autor, “faz parte

desse domínio ainda mal explorado que se chama o imaginário”.139

Ao analisar, de um modo ainda mais específico, o Marxismo, Maffesoli irá

salientar o artificialismo da crítica que o sustenta, na medida em que a própria

ideologia marxista nada mais faz do que tentar aperfeiçoar o mundo,

Nessa

perspectiva, todo e qualquer microevento constituinte da vida cotidiana revela

uma forma de atuar da vida social. Enfocar tais eventos é captar um dos aspectos

da potência, é captar um pouco daquilo que precede a consolidação do político e

do econômico. As críticas ao racionalismo instrumental, já analisadas por muitos

autores, voltam-se exclusivamente para os aspectos tributários da potência, que

não são e nunca serão, por si sós, os elementos constitutivos do fato social. O

caráter recorrente da revolução ou mesmo de todo e qualquer reformismo remete-

nos, então, à própria questão da incongruência das diferentes concepções

progressistas da história. É na conjugação das diferenças que, para Maffesoli, “se

rompe a unilateralidade entrópica e se indica a vitalidade do múltiplo”. A visão

progressista que se possa ter sobre as vicissitudes do social em nada é

compatível como a potência que, para o autor, pré-existe à emergência do político

em suas diferentes instâncias. No exame do processo revolucionário, quando

recorre a Monnerot o autor enfatiza uma das invariâncias que caracterizam o

citado processo, que diz respeito a uma “circulação acelerada das elites”. Se há

uma circularidade nos fatos que os coloca longe de toda e qualquer ideia de

progresso, há também momentos de maior aceleração no modo como estes se

consolidam. Desse modo, afirma que “a revolução não é, em primeiro lugar,

mudança de estrutura, mas mudança de velocidade”.

139 MAFFESOLI, Michel, op. cit., pp. 64, 95, 124.

110 Ruth M. Chittó Gauer

instrumentalizando a razão, ou seja, valendo-se daquilo que serve de substrato ao

próprio Estado.

Podemos pensar que as forças que sustentam a religião e aquelas que irão

sustentar a ideia de revolução se assemelham. Se, por um lado, a primeira

objetiva “amoedar o divino”,140

O direito moderno acaba também sofrendo uma espécie de reconstituição

geométrica em relação ao próprio direito romano, atendendo assim “as

necessidades de uma classe em extensão e em seguida são as realidades sociais

que devem também ficar tão evidentes quanto as verdades geométricas”. Trata-

se da possibilidade de compreensão dos próprios mitos prometeicos do progresso

sem que, para tanto, capture-se a dimensão do ato criador. Logo, é no trabalho

“que se juntam a racionalização da existência e as utopias tecnocráticas”.

a segunda “amoedará, por sua vez, a pulsão de

esperança, o progresso”. Ainda que não redutíveis entre si, ambas mostram-se

atreladas a uma visão linear da história reinante no pensamento ocidental.

O entendimento da emergência do individualismo na sociedade moderna,

agora segundo Dumont, deteve-se principalmente na sua estreita relação como o

totalitarismo. O totalitarismo seria, nesse sentido, uma espécie de “reação lógica a

um processo de atomização, à perda de solidariedade orgânica, é a resposta

desvairada que a organização economista acha para um individualismo que lhe

foi necessário no início, entretanto, essa unidade, melhor seria dizer essa

interdependência, será obtida de cima, por um órgão centralizador, e não mais a

partir de uma espontaneidade social”.141

O totalitarismo estatal e a planificação da existência surgem, desse modo,

como uma espécie de reunificação abstrata diante dos perigos de uma

desagregação total, consecutiva ao desenvolvimento de um individualismo

integral. Maffesoli irá ainda mais longe nessa análise ao afirmar que: “Não há

antinomia entre o capitalismo, o socialismo e o totalitarismo: trata-se de um

desdobramento lógico e contínuo de premissas inteiramente contidas na

organização econômica da sociedade”. O dinheiro na sociedade moderna, tal

140 MAFFESOLI, Michel, op. cit., pp. 156, 159, 193, 243, 281. 141 MAFFESOLI Michel, op. cit., pp. 281, 282.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 111

como analisado por Simmel,142

Liberdade, como liberdade de movimento, é uma forma de lidar com

constrangimentos e obrigações, ou seja, aproximação e distância em relação aos

outros (impessoalidade). O aspecto subjetivo, dinheiro, permite uma margem de

liberdade pessoal, possibilitando a essa personalidade libertada de

constrangimentos éticos e pessoais uma maior oportunidade de

autodeterminação e desenvolvimento, sendo que as teias de relações ficam mais

rarefeitas e múltiplas (permuta de contingências, dependência de muitos x

dependências de poucos). Já na cultura objetiva o desenvolvimento é

proporcionado pela economia monetária e pela divisão social do trabalho. A

questão da liberdade, uma ideia força na visão de Baumer, constitui-se em tema

fundamental para se pensar a normatização da sociedade contemporânea,

sobretudo como ferramenta para a compreensão das diferenças, da autonomia

tanto social como individual, da liberdade do fazer científico e de suas “proibições”

nem sempre tácitas.

completa o estudo sobre a violência. A separação

entre as culturas subjetiva e objetiva é fenômeno geral e característico da

modernidade ocidental, enquanto a economia monetária e a mediação das

relações humanas por meio do dinheiro apresentam-se como fundamento das

duas, segundo a visão de Simmel. O autor refere ainda que somente a cultura

objetiva se torna crescentemente cultivada e rica, enquanto os indivíduos se

tornam cada vez mais pobres e pouco cultivados, e auto-realização pessoal é

apenas uma mera possibilidade.

As diferenças entre os campos conceituais que configuram o saber dos

pesquisadores de diferentes áreas encaminharam para o que podemos

denominar de escândalo fecundo, há muito anunciado por Thomas Kuhn.

Segundo Kuhn, a relação entre a noção de anomalia e o ponto crítico em que

uma diferença se reconhece como significativa desestabiliza o paradigma e não a

competência do cientista. No entanto, o ponto focal que põe em tensão o cientista

torna-se vetor de uma criatividade que, porventura, não terá sido inspirada por

uma atitude lúcida, isto é, cética relativamente ao poder das teorias. Tal como

142 SOUZA, Jessé; OËLZE, Berthold. (Orgs.). Simmel e a modernidade. Brasília: UnB, 1998, pp. 10, 12, 33, 38, 39.

112 Ruth M. Chittó Gauer

refere Stengers,143

A “crise paradigmática” torna-se coletiva quando o cientista conquistou o

poder de contra-interpretar os resultados dos próprios colegas, quando um novo

paradigma, um novo tipo de inteligibilidade impõe uma escolha. A lucidez é um

produto de crise, é conquistada e não se pode considerar normal. O aspecto

acima apontado discute o autogoverno da ciência de forma contundente, deduz,

conforme Polanyi, que “a pesquisa científica é a arte de fazer certas espécies de

descobertas”.

a quebra da autonomia de comunidades científicas põe em

causa as bases da ciência e não o cientista.

144

Há que se levar em conta ainda o objetivo primordial da epistemologia, qual

seja, o de investigar as condições necessárias para atingir a coerência entre o

conteúdo semântico dos conceitos e o tratamento formal ao qual os submetemos.

Para além destes aspectos, faz-se necessário ter em conta as variáveis

observáveis, variáveis encobertas e condições em que ambas se imbricam. Uma

interpretação resultante de uma liberdade criativa requer uma análise que se

constitua em simultâneo com a síntese. Como sustenta Bergson, “uma forma

mais elevada de análise”,

Essa atividade só ocorre quando a liberdade de criar pauta a

atividade acadêmica. Deve-se considerar, no entanto, que a pesquisa, nascida no

seio da liberdade, tornou-se refém da norma.

145

A análise resgata elementos de toda a percepção, prolongando-se em ação

nascente; e, na medida em que as imagens, uma vez percebidas, se fixam e se

alinham nessa memória, os movimentos que as prolongam, modificam o

organismo, criam no corpo disposições novas para agir. Para Bergson, “o registro,

pela memória, de fatos e imagens únicos em seu gênero se processa em todos os

momentos da duração”. Mas não devemos deixar de lembrar o que afirma sobre a

memória como lembrança: “como as lembranças aprendidas são mais úteis,

repara-se mais nelas”.

posto que percepção é memória.

146

143 STENGERS, Isabelle, As políticas da razão, Lisboa, Edições 70, 1993, p. 11.

Sob esse enfoque as normas interiorizadas desde a

infância fundam a ação dos indivíduos em sociedade. A lembrança espontânea é

144 POLANYI, Michael, A lógica da liberdade, Rio de Janeiro, Topbooks Editora, 2003, pp. 101, 102. Após uma visita à Rússia, Polanyi escreveu em 1958 importantes contribuições à epistemologia com seus conceitos de “dimensão tácita” e “inversão moral”. 145 BERGSON, Henri, Matéria e Memória, 2. ed., São Paulo, Martins Fontes, 1999, pp. 83, 88. 146 BERGSON Henri, op. cit., pp. 89, 90, 91, 92.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 113

imediatamente perfeita; o tempo não poderia acrescentar nada à sua imagem

sem desnaturá-la; ela conservará para a memória seu lugar e sua data. O

contrário, a lembrança aprendida, sairá do tempo à medida que a lição for mais

bem sabida; tornar-se-á cada vez mais impessoal, cada vez mais estranha à

nossa vida passada. Seu papel (o da repetição) é simplesmente utilizar cada vez

mais os movimentos pelos quais a primeira se desenvolve, organizá-los entre si e,

montando um mecanismo, criar um hábito do corpo.

Esse hábito, aliás, só é lembrança porque me lembro de tê-lo adquirido; e

só me lembro de tê-lo adquirido porque apelo à memória espontânea, aquela que

data os acontecimentos e apenas os registra uma vez. Das duas memórias que

acabamos de distinguir, a primeira parece, portanto, ser efetivamente a memória

por excelência. A segunda “é antes o hábito esclarecido pela memória do que a

memória propriamente". Essa visão enfrenta muita resistência no Direito, pois

coloca em xeque a base epistêmica, calcada na razão moderna.147

No entanto, somente por meio de novas linguagens é que se pode fazer a

necessária recusa ao saber jurídico sedimentado, isto é, a tudo aquilo que

Bachelard designava “obstáculo epistemológico”.

Evidenciar a

insuficiência do monólogo jurídico à luz da complexidade (marca indelével das

sociedades contemporâneas), inserindo o Direito na epistemologia da incerteza e

na fluidez da aceleração, gera resistências das mais variadas formas.

147 CARVALHO, Salo, “Criminologia e interdisciplinaridade”, Ruth M. Chittó Gauer (Org.), Sistema penal e violência, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007.

114 Ruth M. Chittó Gauer

XI O fundamento do sistema de comunicação: a crença como norma

A norma legitima é, via de regra, aplicada pela autoridade legítima

diferentemente do poder, pois este garante a obediência mesmo quando há

oposição. Weber148 desenvolveu uma análise detalhada para a compreensão do

conceito de legitimação. Para o autor, este é, fundamentalmente, o processo de

criar poder, ou um padrão de ordens e obediência justo na opinião dos membros

de determinadas sociedades. O autor refere que a autoridade legítima é a

autoridade sem oposição perceptível, obediência livre. Os exemplos apontados

para essa forma de obediência estão relacionados pela legitimidade “tradicional” a

exemplo dos patriarcas e dos príncipes patrimoniais do antigo regime. Uma

segunda forma de legitimidade vincula-se a autoridade do encanto (carisma)

pessoal e extraordinário com base na confiança pessoal. A legitimidade com base

no encanto é vinculada ao heroísmo, aos profetas aos chefes guerreiros aos

grandes demagogos, ou outras qualidades de caudilho que um indivíduo possui.

Ao contrário da legitimidade baseada na legalidade, na crença na validade de

preceitos legais e na competência objetiva, fundada sobre normas racionalmente

criadas. Podemos dizer que a legitimação não é simplesmente ato de uma

legislatura ou de um órgão oficial. É importante referir ainda que a legitimidade de

uma figura que Weber identifica como “alguém que leva dentro a chamada para

ser condutor de homens, os quais lhe não prestam obediência porque o mande o

costume ou uma norma legal, mas porque acreditam nele” 149

Assim, diante do mito Lévi-Strauss adota uma posição intelectualista e

critica a fenomenologia da religião. Não há oposição entre pensamento lógico e mítico, apenas não sabemos como devem ser lidos os mitos. A linguagem ocupa

no mito um lugar semelhante ao do sistema fonológico dentro da linguagem.

. Essa forma de

legitimidade carismática permite uma analogia com o mito. A autoridade possui

legitimidade porque a sociedade crê nela. Os atributos que essa autoridade

representa ter são da ordem da crença, portanto fogem à racionalidade. Essa

crença relaciona-se muito mais com uma perspectiva mitológica do que com uma

perspectiva racionalista.

148 WEBER, Max, O político e o cientista, Lisboa, Presença, 1979, 3ª ed., pp. 10, 11. 149 WEBER, Max, op. cit. p. 12.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 115

A língua é sincrônica e seu tempo é reversível. O mito é fala, é diacrônico,

seu tempo é irreversível, alude ao que passou, ao mesmo tempo é idioma, uma

estrutura que se atualiza cada vez que é contada a história.

Para comparar mito e linguagem, Lévi-Strauss busca os elementos

constitutivos do mito: os mitemas, que são frases ou orações mínimas que, por

sua posição no contexto, descrevem uma relação importante entre os diversos

aspectos do relato. Os mitemas são entrelaçados ou feixes de relações mínimas e

operam em um nível superior ao puramente linguístico. Em um nível mais baixo,

estrutura fonológica, e em um segundo nível, sintática. São significativos dentro

da narrativa, e ao mesmo tempo pré-significativos, como elementos de um

segundo discurso: o mito. Graças aos mitemas os mitos são: fala (diacronia) –

narrativa – tempo irreversível – Idioma (sincronia) – estrutura – tempo reversível.

Otávio Paz150

Em seu ensaio A Estrutura dos Mitos, Lévi-Strauss usa o mito de Édipo

como premissa de suas ideias. Não lhe interessa o conteúdo do mito ou oferecer

uma nova interpretação, mas sim decifrar sua estrutura: o sistema de relações

que o determina (igual a todos os outros mitos). Busca uma lei geral, formal,

combinatória. Ele determinou os mitemas das diversas versões e dispôs em

colunas horizontais e verticais, onde cada mitema designava um feixe de

relações.

faz uma reflexão: se o mito é uma paralinguagem, sua

relação com a linguagem é inversa à do sistema de parentesco. Este se decifra

por meio da linguagem, é um sistema de significações que se serve de elementos

não linguísticos. O mito opera com a linguagem como se fosse um sistema pré-

significativo: o que diz o mito não é o que dizem as palavras do mito. Qual seria a

paralinguagem para decifrar o sentido dos mitos? Retorna o problema do sentido

da significação.

O mito oferece uma solução ao conflito por meio de um sistema de

símbolos que operam à maneira dos sistemas da lógica e da matemática.

Ao encontrar a estrutura do mito de Édipo, Lévi-Strauss aplica as mesmas

leis combinatórias a mitos de outras civilizações. Nas adivinhações (índios da

América do Norte) e mitos relativos a corujas que proferem enigmas existe uma

150 PAZ, Otávio, op. cit., p. 23.

116 Ruth M. Chittó Gauer

dupla analogia com o mito de Édipo: por um lado entre a esfinge e a coruja, por

outro, entre o incesto e a adivinhação, pois a resposta a um enigma une dois

termos inconciliáveis e o incesto também une duas pessoas inconciliáveis. A

operação mental em ambos os casos é idêntica: unir dois termos contraditórios.

Essa relação se reproduz em outros mitos e também de maneira inversa.

Lévi-Strauss entendia a possibilidade de estudar o mito mais como uma

operação mental do que como uma projeção histórica. Os elementos históricos

ficam integrados nesse sistema de transformações que abarca desde os sistemas

de parentesco e as instituições políticas até a mitologia e as práticas rituais. O

estruturalismo não pretende explicar a história, esta é apenas uma das variantes

da estrutura.

Foi durante o período situado entre as duas guerras mundiais que se deu a

recíproca atração entre antropologia e psicologia ou, mais especificamente, entre

a antropologia e psicanálise ou psicologia denominada como “profunda”, para

alguns. Sem que houvesse uma diminuição na continuidade de outras formas de

investigação, a antropologia dedicou uma boa parte de seus interesses ao

esclarecimento dos aspectos inconscientes da cultura. Principalmente nos

Estados Unidos, tal foco de atenção teve notório destaque. Durante os anos 30, o

psiquiatra e psicanalista Abraham Kardiner,151

151 Ver KARDINER, Abraham, Fronteras Psicológicas de la Sociedad, México, Fondo de Cultura Económica, 1955 e El Individuó y su Sociedad, México, Fondo de Cultura Económica, 1945.

influenciado pelas inovações

teóricas e técnicas aportadas por Sándor Ferenczi, Anna Freud, Sándor Rado,

Harry S. Sullivan e outros, conseguiu juntar em torno de si certo número de

antropólogos, entre os quais Ruth Benedict, Ralph Linton e Cora Du Bois, que

passaram a ter um papel de destaque em sua carreira. Juntos, foram os primeiros

a iniciar uma tentativa sistemática de utilizar teorias e técnicas psicodinâmicas na

análise de dados etnográficos. A influência freudiana já se havia feito sentir nos

Estados Unidos, e desse fato surgiu a tentativa de aliar os conhecimentos da

psicanálise, então em franco desenvolvimento, com os dados obtidos pelos

antropólogos em suas pesquisas de campo. Tornou-se claro, nessa atividade

interdisciplinar, o problema de estabelecer até que ponto as características da

cultura são ou não pré-determinadas por constantes de natureza universal. Assim,

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 117

se a humanidade, hipoteticamente, caracteriza-se pelo psiquismo com estruturas

básicas comuns a todos os membros da espécie, por outro lado observou-se que

as culturas, além de serem diferentes entre si, em muitos aspectos importantes

concernentes à realidade psicocultural, modificam-se de acordo com o ambiente

ecológico e com a interação entre carecimentos biológicos e instituições. Para

compreender a dinâmica de atuação dos instintos e pulsões em sociedades

diferenciadas, é necessário – afirma Kardiner – reconstruir os problemas de

adaptação que toda a sociedade enfrenta. Os comportamentos humanos não

seriam, portanto, fixados apenas de modo filogenético e, embora este modelo

forneça uma base ampla para a interpretação dos fenômenos de cultura e

personalidade, constituídas como faces especulares da mesma realidade,

explicam-se com base na dinâmica entre carecimentos biológicos fundamentais

(neste ponto se verifica a influência do biologismo freudiano) e os

condicionamentos que as instituições exercem em resposta a carecimentos e

estímulos. A teoria psicocultural gira em torno da adaptação a necessidades

fundamentais comuns a todos os seres humanos, aos quais corresponderiam

respostas psicológicas e sociais diferenciadas, que dariam vida e forma aos

diversos sistemas culturais. Foi a partir dessas considerações que Kardiner,

secundado por Ralph Linton, elaborou o conceito de personalidade básica, que

seria largamente aplicado nos estudos etnológicos.152

Embora os antropólogos, por motivos compreensíveis, tivessem sua

atenção atraída preferencialmente para Totem e Tabu (inclusive por ser o primeiro

152 “El concepto de tipos de personalidad básica... es en sí mismo una configuración que comprende varios elementos diferentes y se basa en los siguientes postulados: 1) Que las experiencias tempranas del individuó ejercen un efecto duradero sobre su personalidad, especialmente sobre el desarrollo de sus sistemas proyectivos. 2) Que experiencias similares tienden a producir configuraciones similares en la personalidad de los individuos que se sujetan a ellas. 3) Que las técnicas que los miembros de una sociedad cualquiera emplean en el cuidado y en la crianza de los niños, son modeladas culturalmente y tienden a ser semejantes, aunque nunca idénticas, para las diversas familias que forman dicha sociedad. 4) Que las técnicas modeladas culturalmente para el cuidado y la crianza de los niños, difieren de una sociedad a otra.” Acrescenta-se a seguinte definição: “El tipo de personalidad básica para cualquier sociedad es la configuración de personalidad compartida por la mayoría de sus miembros como resultado de las primeras experiencias que tuvieron en común. Esto no corresponde a la personalidad total del individuó, sino más bien a los sistemas proyectivos; en otras palabras, al sistema de valores y actitudes que son básicos para la configuración de la personalidad del individuó. Así, el mismo tipo de personalidad básica puede reflejarse en diferentes formas de conducta y puede participar en muchas configuraciones diferentes de personalidad total”. Abraham Kardiner, Fronteras Psicológicas de La Sociedad, ob. cit., pp. 8-9.

118 Ruth M. Chittó Gauer

trabalho “sociológico” de Freud), um dos textos mais mitológicos e de menos

fundamentação empírica da obra freudiana, mesmo que condizente com suas

teorias referentes ao modelo estrutural-pulsional e filogenético, as transformações

teóricas ocorridas na evolução do neurologista vienense foram acompanhadas

com suma atenção, e a riqueza contida na observação psicanalítica não passou

por alto. No entanto, talvez o passo mais decisivo para o movimento de

aproximação entre antropologia e psicanálise (movimento que depois involucraria

outras tendências psicológicas e a própria psiquiatria) tenha sido dado por

Abraham Kardiner.153

153 Cabe aqui uma citação mais extensa: “...desde un comienzo los antropólogos estadounidenses han sido influídos casi exclusivamente por la psiquiatría psicoanalítica... Del estudio de la bibliografía antropológica, surge la abrumadora impresión de que los antropólogos de este país sólo leen con dedicación a los autores psicoanalíticos... Aunque algunos antropólogos estadounidenses han demostrado cierto interés por los problemas de la percepción y por los tests de inteligencia, la psicología académica ha ejercido una influencia mínima sobre la antropología... debe decirse que la antropología estadounidense, para bien o para mal, parece haber hallado sólo en el psicoanálisis las bases de una psicología social susceptible de desarrollo... Los llamados “neofreudianos” (Horney, Kardiner, Fromm y otros) han ejercido, como se sabe, durante los últimos años, gran influencia sobre los círculos antropológicos”. C. Kluckhohn, citado por Henry W. Brosin, “Examen de la Influencia del Psicoanálisis Sobre el Pensamiento Actual”, Franz Alexander e Helen Ross, Psiquiatría Dinámica, Buenos Aires, Editorial Paidós, 1958, p. 469.

Este psicanalista conseguiu obter, diretamente junto a

diversos antropólogos que ainda hoje são considerados como clássicos de um

período da disciplina antropológica, como, por exemplo, os já mencionados Ralph

Linton e Cora DuBois, os dados etnográficos necessários para a elaboração de

hipóteses e especulações. Antes de comentar esse aspecto, cabe lembrar que na

década de 30 a psicanálise estava (como ainda hoje está) longe de poder ser

considerada um movimento unificado. As defecções de Jung, Adler, Stekel e

tantos outros criaram uma diáspora em torno de Freud, e o movimento

psicanalítico como um todo foi infestado por sectarismos dos mais variados. Essa

realidade fica evidente quando lembramos que Freud seguidamente se referia à

psicanálise como sendo uma doutrina. Não teoria, mas sim doutrina, ou seja,

dogma, fé e crença. No entanto, as variantes que a psicanálise assumiu tornaram-

se um elemento profundamente enriquecedor para ela própria. Os antropólogos,

por sua vez, também estavam organizados em torno de um fértil campo de

debates e divergências teóricas. Podemos ver, portanto, durante a década de 30,

como duas disciplinas relativamente novas, a psicanálise e a antropologia, plenas

de um grande potencial, unem-se na tentativa de desvendar os obscuros

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 119

mecanismos da cultura e da psique humana. Foi aquele período um dos

momentos férteis da antropologia e, embora as conclusões então obtidas na

investigação etnopsicanalítica atualmente possam ser consideradas elementares,

deve-se destacar o caráter de novidade com o qual se revestiram naqueles

tempos. Cabe não esquecer que, nas primeiras décadas do século XX, as teorias

raciais, infestadas ideologicamente, correspondiam ao modo sancionado de

percepção da alteridade na cultura ocidental e, diante disso, os desenvolvimentos

da antropologia devem ser considerados como um avanço.

Retornando à contribuição de Kardiner, pode-se observar que este

pesquisador aparentemente distanciou-se da ênfase dada por Freud às estruturas

pulsionais para, de certo modo, adotar, ou dar maior importância, a uma teoria

que contemplasse mais o papel das relações objetais154 e sua influência nas

vicissitudes da psique humana (mais adiante falaremos de dois modelos básicos

na psicanálise: o orientado para as estruturas pulsionais e o orientado para as

estruturas objetais), como se torna evidente pela sua simpatia por psicanalistas

tais como Harry Sullivan e Karen Horney. Foi a partir dessa postura que, apesar

do afastamento, não implicou em um abandono total do modelo pulsional (o que

seria uma impossibilidade teórica), que Kardiner voltou-se atentamente para o

estudo das instituições que os diversos sistemas culturais elaboravam com uma

grande riqueza de matizes e variedades. Ora, tais dados, extremamente

heterogêneos, deviam ser agrupados a partir de conceitos básicos e norteadores

que lhes dessem sentidos e que fornecessem ao pesquisador uma capacidade de

interpretação. Foi a partir dessa necessidade que Kardiner construiu a noção de

personalidade básica, que passou a ser entendida, em termos mais simplificados,

como sendo a típica personalidade modal, predominante entre os membros de

uma determinada cultura. As instituições155

154 A noção de modelo estrutural-objetal será tomada, neste texto, em uma acepção ampla. Assim, esse modelo designará de maneira ampla a tendência psíquica para a formação de relações interpessoais. Desse modo, não serão discutidas as posições de psicanalistas tão diferenciados entre si, mas que de qualquer maneira têm um ponto em comum em sua oposição a aspectos do modelo estrutural-pulsional freudiano, como Fairbairn e H. Sullivan, por exemplo.

responsáveis, em um processo de

155 O conceito de instituição foi definido por Kardiner, em uma primeira versão, da seguinte maneira: “un modo fijo de pensamiento o de conducta que puede comunicarse, que goza de aceptación común y cuya violación o desviación crea ciertas perturbaciones en el individúo o en el grupo”. Abraham Kardiner, ob. cit., p. 47.

120 Ruth M. Chittó Gauer

mútua causação, pela formação da personalidade básica, passaram a ser

divididas, de acordo com Kardiner, em primárias e secundárias. As primeiras

seriam aquelas instituições mais relacionadas com as fases iniciais de

socialização do indivíduo. Por outro lado, as instituições secundárias, um derivado

das primárias, seriam destinadas, por uma relativamente obscura lógica cultural, a

dar expressão cultural às configurações psicodinâmicas geradas a partir das

instituições primárias. Portanto, pode-se inferir que uma das funções das

instituições secundárias seria a de fornecer bases para a exposição socialmente

aceita, e “domesticada”, por assim dizer, das manifestações dos mecanismos

inconscientes. Tal se daria, por exemplo, com os dois grandes sistemas

projetivos, o folclore e a religião, por meio dos quais a “psicopatologia da vida

quotidiana” encontraria um meio lícito de expressão. Observe-se que o modelo de

dupla causalidade, abrangendo instituições primárias e secundárias, minorou, em

grande parte, o acirrado sociologismo que campeava na escola sociológica

francesa. No entanto, tal observação deve ser complementada com o comentário

de que é uma atitude problemática reduzir a riqueza e fecundidade de uma escola

de pensamento, como foi o caso do pensamento sociológico francês de início do

século XX, a uma escala monocromática. Por isso, os estudos de Mauss e

Durkheim devem ser analisados sem nenhuma espécie de reducionismo que os

empobreça. Isso é mostrado pela percepção sutil de Mauss quando se trata de

vincular as normas da cultura à experimentação idiossincrásica que o indivíduo

tem destas.

Partindo das premissas acima colocadas, Kardiner analisou, sob o rótulo

de instituições secundárias, os mais variados sistemas de crenças religiosas,

mitologias e rituais da vida quotidiana existentes entre as culturas primitivas das

quais se dispusessem dados etnográficos fidedignos. Elaborando suas análises

desde a matriz freudiana dedicou-se assim, basicamente, ao estudo de sistemas

concernentes à mentalidade coletiva, com inspiração nos conceitos explanados

por Freud em seus estudos sociológicos Totem e Tabu (1912) Psicologia das

Massas e Análise do Eu (1921), O Porvir de uma Ilusão (1927) e O Malestar da

Civilização (1930), mesmo não concordando integralmente com as interpretações

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 121

do criador da psicanálise.156 No entanto, a contribuição de Kardiner, embora se

destacando pelo aporte de novos dados etnográficos, em si não ofereceu

novidades, isto é, não chegou a representar uma abordagem totalmente inédita.

Como muito bem lembra Marvin Harris, Malinowski já havia percebido, nas ilhas

Trobriand, o fenômeno que depois seria analisado mais minuciosamente por

Kardiner. Assim, afirmou Malinowski, em um escrito de 1923, que “En esta versión

completa de mis resultados psicoanalíticos tendría que ser capaz de demostrar

que en la vida social, al igual que en el folclore de estos nativos, se manifiestan

inconfundiblemente sus específicas represiones. Siempre que las pasiones,

normalmente contenidas por los rígidos tabúes, por las costumbres y por las

sanciones legales, rompen los lazos tradicionales y llegan al crimen, a la

perversión o la aberración, o se manifiestan en qualquier otro de los

acontecimientos dramáticos que de vez en cuando sacuden la vida rutinaria de

una comunidad salvaje, siempre esas pasiones revelan el odio matriarcal al tío

materno o los deseos incestuosos respecto de la hermana. El folklore de los

melanesios refleja igualmente el complejo matrilinear. El examen del mito, los

cuentos de hadas y las leyendas, e igualmente el de la magia muestra (...) el odio

reprimido contra el tío materno, ordinariamente enmascarado bajo una actitud

convencional de reverencia”.157

156 No estudo das culturas marquesa, tanala, comanche, pomo, alor, navajos, tapirapés, ojibwas e outras, Kardiner enfatizou diversos aspectos: cuidados maternos, indução à afetividade, disciplinamento precoce da sexualidade, rivalidade entre irmãos, indução ao trabalho, puberdade, matrimônio, participação na vida social, fatores de integração social, sistemas projetivos e outros.

Como se vê, os pressupostos mais gerais da

abordagem de Kardiner já estão contidos nas assertivas de Malinowski. Porém,

um aspecto interessante que ressalta neste exemplo refere-se ao fato de termos,

nas culturas primitivas, todo um conjunto de crenças religiosas, mitos, contos

populares e outros fatores tais como os apontados por Malinowski, que

expressam inequivocamente disfunções latentes de natureza familiar. Este

aspecto voltará a ser abordado adiante. Cabe observar, porém, o nível de

envolvimento que o sistema de parentesco exige, quase com pretensões de

exclusividade, na vida dos membros das comunidades primitivas. A título de

comparação, observe-se que, embora nas atuais sociedades urbanas a família e

157 Citado em HARRIS, Marvin, El Desarrollo de la Teoría Antropológica. Una historia de las teorías de la cultura, Madrid, Siglo Veintiuno, 1985, p. 378.

122 Ruth M. Chittó Gauer

as primeiras relações objetais continuem a ser tidas, pela maioria, como

determinantes na moldagem personalidade do indivíduo, cabe registrar que,

nestas culturas urbanas, qualquer indivíduo, em princípio, desfruta de

oportunidades de evasão do ambiente primário de origem em uma escala muito

maior do que o membro de culturas primitivas ou camponesas. Entre estes,

principalmente o primitivo passa praticamente toda a sua existência atado aos

deveres, direitos, obrigações, compromissos e relações de índole variada

determinadas pela complexa estrutura de parentesco na qual se insere. O

selvagem passa toda a sua existência, por assim dizer, preso ou vinculado a essa

unidade altamente inclusiva que é o sistema de parentesco, de tal forma que

praticamente nenhuma de suas atitudes em consonância com a “prova da

realidade” pode ser analisada fora do caráter “familiar” que a impregna.

Considere-se, além desses aspectos, que os trabalhos desenvolvidos pela

escola de cultura e personalidade permitiram a elaboração de peculiares nexos

causais no que se refere aos fenômenos da cultura. Embora seja um fato

intrínseco a todas as orientações antropológicas o de trabalharem dentro de um

perfil de busca de nexos causais entre fenômenos aparentemente díspares (intra

ou interculturais), perfil sem o qual não teriam maior sentido do que se

apresentarem como uma exótica coleção de dados aleatórios, os adeptos da

orientação psicocultural acoplaram, às causalidades registradas, derivadas de

estudos que seguiam outras matrizes teóricas, fatores que ligavam diretamente as

manifestações culturais aos fenômenos do inconsciente. Este foi um aspecto

diferencial em relação à causalidade desenvolvida pelo evolucionismo em seus

mais variados matizes (inclusive o marxismo) em vista da ênfase dada aos

aspectos biológicos ou tecnoeconômicos, ou pelo difusionismo que, de certo

modo, apelando com exagerada exclusividade para os fenômenos de difusão,

desvalorizou as interpretações causais intraculturais em função de uma versão

mais simplificada sobre a gênese dos fenômenos culturais, que ocorreriam quase

que exclusivamente pelo processo de difusão. Um dos aspectos nucleares do

novo modelo de causalidade estabelecido pela orientação voltada para os

estudos de cultura e personalidade reflete-se diretamente sobre o

desenvolvimento interno das teorias psicanalíticas. Se estas oscilaram, assim

como, de certo modo, continuam oscilando, entre uma maior ou menor ênfase no

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 123

papel das relações objetais frente à estrutura pulsional consagrada por Freud, a

orientação psicocultural parece ter lançado um forte impulso na direção de uma

maior valorização das relações objetais na estruturação da psicodinâmica

humana. Assim, autores da área psicanalítica, como Fairbairn, por exemplo, que

desenvolveram a partir das teorias kleinianas uma ênfase maior nas relações

objetais (entendidas aqui como relações com objetos externos), de certo modo

compartilham da orientação antropológica psicocultural que, pelo fato da

importância atribuída à cultura e, por conseguinte, a realidades construídas

coletivamente, a partir de múltiplas individualidades interatuantes, não poderia

encapsular o homem em um restrito modelo biológico próprio do evolucionismo do

século XIX, do qual Freud é um dos grandes tributários. Ao mesmo tempo, os

antropólogos de orientação psicocultural deslocaram, em parte, a grande

importância que Freud atribuiu à equiparação da psicanálise com as ciências

naturais, para atraí-la a um âmbito próprio.

Neste ponto, é necessário colocar algumas observações mais pertinentes

ao âmbito da psicanálise. Deve-se lembrar que Freud, no início do

desenvolvimento da teoria psicanalítica, passou a elaborar como um dos pontos

centrais desta o conceito de pulsão. Assim, “A pesquisa de Freud levou-o ao que

ele via como as ‘profundezas’ da experiência humana, às pulsões que eram

manifestações da natureza biológica do homem, requisitos gerados pelo corpo

que fornecem a energia para, e os objetivos de qualquer atividade mental. Ele não

considerava as relações com o mundo externo e as outras pessoas sem

importância, mas a investigação das pulsões e suas vicissitudes parecia o mais

importante, mais urgente. Em trabalhos posteriores, quando Freud realmente

tomou o problema do ‘ego’ e sua relação com o mundo externo e outras pessoas,

não era de forma alguma aparente como posicionar (...) aqueles processos dentro

de sua teoria das pulsões. As relações objetais tinham que ser explicadas; suas

origens, significados e distinção não eram, de forma alguma, automaticamente

fornecidos e compreendidos dentro da antiga teoria da pulsão”.158

158 GREENBERG, e MITCHELL, Relações Objetais na Teoria Psicanalítica, Porto Alegre, Artes Médicas, 1994, p. XII.

Portanto,

quando se coloca o problema de analisar a importância das relações objetais

124 Ruth M. Chittó Gauer

(com os objetos externos) na psicodinâmica, surgem posições, no âmbito da

teoria psicanalítica, bastantes divergentes daquela linha que originalmente foi

sugerida por Freud e à qual, em grande parte, ele se manteve apegado durante

toda a sua carreira. Desse modo, Fairbairn, K. Horney, E. Fromm, H. Sullivan e

vários outros tentaram dar, para os processos de gênese e constituição do

psiquismo humano, certa primazia às relações objetais, deslocando para um

segundo plano a questão das pulsões, mais atada ao mecanicismo biológico e ao

positivismo naturalista do século XIX. Ora, como os antropólogos têm no conceito

de cultura o fundamento para a elaboração de suas teorias, e esse conceito

aponta diretamente para modos de relação entre os indivíduos, ou seja, para o

modelo (que compreende variações internas) de relações “objetais”, pode-se

entender que a maioria deles, transformam a noção de cultura em um conceito

“sagrado”. A opção, na associação que desenvolveram com a psicologia

profunda, por esse último modelo, em detrimento, como já foi colocado, da ênfase

quase exclusiva posta nas pulsões e, portanto, nos determinantes filogenéticos de

natureza biológica. De fato, parece que o grande elo entre antropologia e

psicanálise se deu a partir de um acordo em torno da importância das relações

objetais. Isso não quer dizer, é claro, que a ortodoxia freudiana, muito antes disso,

e particularmente por meio das obras “sociológicas” de Freud, não tenha exercido

uma influência sobre a antropologia. Totem e Tabu e O Mal-estar da Civilização

são exemplos dessa influência. No entanto, o grande passo de união entre as

duas disciplinas foi dado com a primazia atribuída às relações objetais. Basta

examinar os trabalhos de Margareth Mead, Ruth Benedict (embora esta tenha

sido influenciada em parte pela teoria da Gestalt), Cora DuBois e tantos outros

para que isso ressalte como uma evidência. Nas análises das autoras citadas,

assim como em outros antropólogos da escola de cultura e personalidade, os

grupos familiares, onipresentes nas comunidades primitivas, configurando o

entorno no qual o indivíduo estabelece suas primeiras relações, não podem deixar

de “invadir” e conformar a mente infantil imprimindo nesta, de fora para dentro, as

marcas da personalidade grupal, ao mesmo tempo em que se estabelece, para a

criança, o modelo primordial de “busca do objeto”. Muito elucidativas a esse

respeito são as observações sobre os sistemas de parentesco na Nova Guiné

(entre eles o sistema “em corda”, por ex.), realizadas por Mead, e o trabalho

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 125

desenvolvido por Kardiner e DuBois em Alor, focalizando, com grande destaque,

as primeiras fases de socialização.159

Lévi-Strauss, em Estruturas Elementares de Parentesco (1949),

enfrentando o mesmo enigma que Freud se propusera resolver em 1913, em

Totem e Tabu, afirma a existência de um evento originário, fundador da sociedade

humana. Tal evento originário, para Lévi-Strauss, seria o da proibição do incesto,

como já referido anteriormente.

Outro ponto importante para pensarmos as relações entre antropologia e

psicanálise é a utilização do conceito de alteridade. Os antropólogos debruçaram-

se sobre as culturas tribais para tentar compreender o outro, o diferente, pensado

às vezes como o “novo”, como o que pode sempre revelar uma escolha para a

exaurida civilização ocidental. Como diz Eliade, “o que é escolhido é

implicitamente forte, eficaz, temido ou fértil, ainda que a escolha se faça pela

singularização do insólito, do novo, do extraordinário; o que foi escolhido e

revelado como tal torna-se eventualmente perigoso”.160 Sempre que os

antropólogos se deparam com as diferenças, passam a pensar no outro, nos

antagonismos. Assim, devemos lembrar o pluralismo das representações, das

convicções ou das situações desestabilizadoras. Nesse sentido, Durand161

159 O sistema “em corda”, examinado por Margareth Mead, na Nova Guiné, mostra uma adaptação patológica da comunidade tribal, por meio da qual se mantém como elemento dinâmico da estrutura familiar um sistema de relações baseado no antagonismo sexual, de gerações e de linhagens. Para esse assunto, ver Margareth Mead, Sexo e Temperamento, São Paulo, Editora Perspectiva, 1969. Em Alor, foi examinado um tipo de cultura no qual se encontram fortes distorções psíquicas constituindo a personalidade básica de seus membros. Assim, puderam ser verificadas, como características típicas, as consequências da precoce rejeição materna que resultam, posteriormente, na personalidade do indivíduo adulto, em um tipo modal que apresenta vários sintomas reveladores de um bloqueio e não integração das etapas evolutivas. Para isso, ver Cora Dubois In. Abraham Kardiner, Fronteras Psicológicas de la Sociedad, ob. cit., pp. 129-296.

nos

ensina que a força do imaginário está presente para indicar-nos tudo o que leve à

tensão paradoxal. Para aqueles que souberam demonstrar vivacidade no

encontro dos contrários, a troca restabelece, fortificando e atenuando, por meio

de um duplo movimento, a diferença. Este é um problema cultural e

epistemológico muito complexo: o que seria ter a verdadeira compreensão do

outro? Há, nesta pergunta, o detalhismo e a individualização cujas respostas

adquirem sentido por meio dos arquétipos subjacentes, dos quais deriva o lastro

160 ELIADE, Mircea, Tratado de História das Religiões, Lisboa, Cosmos, 1970, p. 48. 161 DURAND, Gilbert, As Estruturas Simbólicas do Imaginário, São Paulo, Martins Fontes, 1997.

126 Ruth M. Chittó Gauer

cultural que dá o molde a essa atitude detalhista. O arquétipo e o detalhismo

individualizador acoplam-se nas estruturas fundamentais e arquetípicas da mente.

São essas estruturas que impulsionam a construção do detalhe.

Ao falarmos sobre alteridade, pensamos na expressão de Emmanuel

Lévinas,162

Frente a esse quadro geral, muitos autores têm aberto portas de

comunicação entre as disciplinas, o que possibilita um avanço em investigações

sobre os mais variados temas. Seguindo a via de aliar preocupações de índole

teórica com problemas concretos, o estudo das organizações, das instituições, do

direito, da educação e muitas outras áreas, tem permitido a utilização de uma

prática interdisciplinar sem a qual não haveria uma compreensão mais alargada

desses fenômenos sociais. É grande o número de autores que poderiam ser

citados. Talvez caiba um destaque especial a Robert K. Merton, Marshall B.

quando afirma que “Um ser particular só pode ser tomado por uma

totalidade se carece de pensamento”. Nesse sentido é possível dizer que esse ser

seria uma inconsciência petrificada, um não existente para si mesmo, encerrado

na totalidade pela qual é constituído. Para o ser pensante, a interioridade se opõe

à exterioridade, mas simultaneamente se complementa com ela, de tal maneira

que esses dois termos não podem ser dissociados, a não ser que se pretenda

erigir abstrações sem sentido. Sob este aspecto, a identidade por meio da história

individual é o processo cambiante da síntese eu-entorno. Para compreender tal

fato, nada mais exemplar do que o caso do homem da modernidade. Este é um

cosmopolita, separa-se do lugar onde se considera seguro e busca o incerto, o

incógnito, não apenas para observá-lo, entendê-lo e descrevê-lo, mas para

apreender os limites de sua própria diferença. Essa possibilidade ocorre por meio

da lógica do descentramento. O contato com a diferença possibilitou o

deslocamento do homem para o seu próprio interior, que foi erigido como

categoria autônoma, onde as estruturas básicas da mente permitiram a

interiorização de conteúdos heterogêneos em uma ambiguidade em que o local e

o global puderam transmutar-se nessa outra coisa, na diversidade exuberante que

alicerça os fundamentos existenciais do homem moderno.

162 LEVINAS, Emmanuel, Entre Nós. Ensaios Sobre a Alteridade, Petrópolis, Vozes, 1997.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 127

Clinard e Edwin Lemmert,163 que dentro dos parâmetros da escola funcionalista,

desenvolveram interessantes estudos sobre a anomia psicossocial, assim como a

Erving Goffman, que muito contribuiu para a compreensão do comportamento

humano em instituições, a partir da aplicação da micro-sociologia das instituições

psiquiátricas.164 Também não cabe desprezar a contribuição de outros, que como

Goffman são herdeiros da chamada Escola de Chicago, tais quais Morris

Janowicz (instituições militares), Howard Becker (profissões e desvio social) e, no

que se refere à psicanálise de orientação culturalista, K. Horney e E. Fromm. No

caso da etnopsicanálise, a investigação dos quadros culturais auxilia em muito a

compreensão dos padrões de comportamentos considerados normais ou

desviantes nas diferentes sociedades. Um dos trabalhos que podem ser referidos

no marco de uma visão transdisciplinar que alia sociologia, antropologia e

psicanálise, foi realizado por Erik H. Erikson. Este autor, escrevendo sobre temas

concernentes à infância, identidade e crise social, nas décadas de 50 e 60,

realizou um excelente diálogo entre valores sociais e a identidade individual.

Segundo Erikson, “as formulações originais de Freud, referentes ao eu e sua

relação com a sociedade dependem necessariamente do estado geral da teoria

psicanalítica”.165

163 Ver Marshall B. Clinard, Anomia y Conducta Desviada, Buenos Aires, Paidós, 1967.

Com isto, Erikson busca acentuar o fato de que a obra de Freud

se presta a múltiplas leituras, e, em última instância, será a relação da psicanálise

com os processos sociais mais amplos que irão determinar o predomínio desta ou

daquela interpretação do pensamento freudiano. Esta relativização “epocal”

aplicada para as análises do pensamento de Freud é de máxima importância, e

nisso desempenha um papel fundamental a constante atualização da teoria

psicanalítica frente aos avanços da etnologia e ao aporte de dados etnográficos.

Tal atualização pode se dar na medida em que o psicanalista se volte, a partir de

um enfoque psicocultural, para os fenômenos da cultura em suas múltiplas

idiossincrasias e variações. Mas, quando se fala em dados etnográficos, deve-se

registrar que no momento atual estes se referem, quase que exclusivamente, a

elementos da atual cultura urbana e civilização industrial.

164 GOFFMAN, Erving, Manicômios, Prisões e Conventos, São Paulo, Editora Perspectiva, 1974. 165 ERIKSON, Erik H, Identidad, Juventud y Crisis, Buenos Aires, Paidós, 1968, p. 38.

128 Ruth M. Chittó Gauer

Com isto levanta-se o fundo de crise no qual a sociedade ocidental se

move nos tempos contemporâneos. Em face disso, a necessidade de auto-

reflexão parece ter adquirido uma importância cada vez maior, e tudo se dá como

se um sentimento de perplexidade e insegurança estivesse enraizado na

realidade cultural de nossos dias. Tal estado de espírito se reflete, como não

poderia deixar de ser, no pensamento social que inclui áreas tão variadas como

psicanálise, filosofia, história, sociologia, antropologia e outras. Assim,

retrocedendo algumas décadas, não podemos deixar de lembrar a influência que

o pensamento de Sartre exerceu sobre a geração pós-guerra. O elemento de

fascínio contido nas reflexões filosóficas desse autor emana diretamente de sua

concepção do homem, que o situa em uma dimensão de facticidade e

contingência. Ou seja, elimina-se a possibilidade de uma transcendência que dê

sentido e justificação à existência humana. Nega-se assim todo um passado

metafísico que alicerçou a civilização ocidental. Não há mais transcendência que

justifique a existência humana. Tudo se dá no reino do fático e da gratuidade.

Pois bem, o pensamento sartriano é importante na medida em que aponta para

um sentimento que existe em estado difuso no homem do século XX, e que se

reflete, no tempo contemporâneo, das mais diversas maneiras. Assim, por

exemplo, a importância da busca de soluções mágicas impõe-se cada vez mais,

como é possível verificar mesmo em uma análise superficial. Nega-se a

racionalidade, vista como geradora da cultura tecnológica e desumanizante, em

nome de modos filo e ontogeneticamente arcaicos de pensamento.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 129

XII A sedução da objetividade: natureza & cultura

Para Lévi-Strauss,166 “a ausência da norma parece oferecer o critério mais

seguro que permita distinguir um processo natural de um processo cultural”. Na

concepção do autor há um círculo vicioso ao se procurar na natureza a origem

das regras institucionais que são inscritas na cultura e que dificilmente pode ser

concebida sem a intervenção da linguagem. Refere que “a constância e a

regularidade existem, a bem dizer, tanto na natureza quanto na cultura. Mas a

primeira aparece precisamente no domínio em que a segunda se manifesta mais

fracamente, e vice versa”.167

166 LÉVI-STRAUSS, Claude, op. cit., p. 46.

A objetividade utilizada pelo autor leva a pensar na

permanência tanto da herança biológica quanto da tradição cultural. A ser assim,

nenhuma análise real permite apreender o ponto de passagem entre fatos da

natureza e da cultura, além do mecanismo da articulação deles. Esta reflexão, no

entanto, oferece a possibilidade de identificar a presença ou a ausência da regra

dos comportamentos não sujeitos às determinações instintivas. No caso da

presença da regra há a sobreposição da cultura sobre a natureza, diferentemente

do pensado pelos evolucionistas do século XIX e do início do XX. A presença da

norma indica que o conjunto complexo de crenças, costumes, estipulações,

instituições, em todas as sociedades, é o que o autor designa como proibição do

incesto. Essa proibição apresenta, sem o menor equívoco e indissoluvelmente

reunido, os dois caracteres nos quais reconhecemos os atributos contraditórios de

duas ordens exclusivas, isto é, constituem uma regra, mas uma regra que, única

entre todas as regras sociais, possui ao mesmo tempo caráter de universalidade.

Esta premissa defendida por Lévi-Strauss permite pensar que a etnologia

contemporânea, em sua grande parte, defende a tese segundo a qual todas as

sociedades sancionam com penalidades variáveis, podendo ir da execução dos

culpados à reprovação difusa, e às vezes até à zombaria. É fundamental

compreender que o tabu adquire características específicas em cada sociedade,

no entanto, a norma é universal. Se há sociedades que permitem o casamento

entre irmãos, elas estão acordadas no direito de uma concessão de

167 LÉVI-STRAUSS, Claude, op. cit., pp. 46-47.

130 Ruth M. Chittó Gauer

primogenitura. Nos exemplos de casamentos entre irmãos, indicados pelo autor

(Egito e Japão em período antigo),168

O exemplo anteriormente citado é um fenômeno que apresenta ao mesmo

tempo o caráter distintivo dos fatos da natureza e o caráter distintivo –

teoricamente contraditório do precedente – dos fatos da cultura. A proibição do

incesto possui ao mesmo tempo a universalidade das tendências e dos instintos e

o caráter coercitivo das instituições. Inclui-se nas sociedades ocidentais a auréola

de terror respeitoso sobre as coisas sagradas, entre elas, e de maneira

significativa, consta o incesto em sua forma cultural instituída pela tradição judaica

cristã, e na forma metafórica o abuso de menores. Pode surgir a pergunta: por

que o incesto é proibido, já que ninguém explicita essa proibição? Os pais não

verbalizam aos seus filhos que é proibido desejar ou desposar a mãe, a irmã, o

irmão, o pai, os tios, entre outros parentes próximos, essa proibição não é

verbalizada, ninguém pensa em proibi-la. É alguma coisa que se coloca como

impossível de acontecer, quando ocorre é visto como inaudita, uma

monstruosidade, uma transgressão que provoca horror e repulsa. Se por um lado

a natureza impõe a aliança, por outro não a determina. Partindo destas premissas

podemos dizer que essa norma apresenta-se à reflexão com toda a ambiguidade

que, em um plano diferente, explica sem dúvida o caráter sagrado da norma

enquanto tal. Ela transcende o ato reprodutivo que se encontra no campo da

natureza. Ao ultrapassar a natureza cria condições para se compreender esta

outra forma de natureza que é também cultural. Se a fundação da norma nos faz

pensar na ordem classificatória das relações de parentesco, ela também nos faz

questionar a sua função organizadora. Seria possível pensar uma sociedade sem

princípios normativos? No caso da sociedade contemporânea ocidental, mesmo

tendo em conta a sua dinâmica social e, com ela, as metamorfoses das normas

sociais, o que se verifica é uma ampliação da função das normas. Uma das

dificuldades da nossa reflexão sobre a questão da norma deve-se ao fato de

vivermos em uma condição de dependência delas. Quer sejamos críticos ou

liberais, temos vivido com a ideia de que existe uma condição de dependência da

a universalidade não é menos aparente do

que o caráter normativo da instituição.

168 LÉVI-STRAUSS, Claude, op. cit., pp. 48-49.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 131

norma. A ser assim, não se trata de discutir a sua exclusão, trata-se de constatar

que, ao invés de diminuirmos as funções da norma, vivemos em uma sociedade

onde o direito – pensado como conjunto normativo das relações sociais – tornou-

se o modo mais corrente de resolução de conflitos. Esse fato contribuiu para o

surgimento de uma sociedade de litígios, o exemplo mais emblemático pode ser

constatado pelo enorme aumento de processos.

Qual o sentido da regulação e da regulamentação social que se revestem

de ideais normativos de conduta? Mesmo que muitas das normas sociais

permaneçam semelhantes no decorrer da história, assumem significados sociais

diferentes, hierarquias variáveis, além de deslocamentos contínuos. Cada

universo social exprime inteiramente o princípio social que o fundamenta, no

entanto esse princípio não esgota todas as suas modalidades. A norma fundante

exprime e constitui um sistemático universo de leis que se correspondem em

domínios e níveis diferenciados. Nesse sentido a cultura pode ser pensada como

a comunicação regulada e regulamentada. Para Pouillon,169

Ninguém precisa dizer que houve uma revolução na física no século XX, ou

um movimento psicanalítico, a que Thomas Mann chamou de “um movimento

mundial”, que afetou não só a ciência, mas todos os domínios do intelecto,

incluindo a literatura, a arte e a religião. “Na verdade”, disse Mann, “seria

demasiado dizer que cheguei à psicanálise. Cheguei a mim”.

o humanismo jurídico

está posto em causa: já podemos prescindir da norma?

170

Mas existe um sentido em que o poder foge à concepção “normal”.

É provável que

muitas pessoas não possam prescindir que se fale sobre romantismo, positivismo,

existencialismo, surrealismo, entre outros temas do mundo da academia.

Se, na contemporaneidade, o homem tornou-se problemático e não apenas

bom, mau ou indiferente, o universo passou a ser misterioso, a natureza tornou-se

longínqua, as questões teológicas passaram a não ter sentido, os cientistas

sociais lutam com uma nova ciência política desprovida de valores enquanto

novos mitos sociais “chocantes” provocam desordens em todo mundo. O autor

que prefaciou a obra “O mundo como Comédia”, John Galsworthy, escrevia em

169 POUILLON, Jean, In. Claude Lévi-Strauss, Raça e história, Lisboa, Presença, 1952, pp. 123-127. 170 Apud BAUMER, Franklin L, O pensamento europeu moderno, v. II, Lisboa, Edições 70, 1990.

132 Ruth M. Chittó Gauer

1926: “Como agora tudo é relativo, já não podemos confiar de modo absoluto em

Deus, no livre comércio, no casamento, nos títulos da dívida pública, nas

diferentes formas de energia, nas classes sociais”.171

Há uma verdadeira descrença, que é também fruto da impossibilidade de

se nominar o humano, o homem é inominável. Bergson

Faz-se necessário

complementar a sua posição dizendo que nem o psicologismo, nem o ceticismo

descrevem de uma forma convincente a nova mentalidade surgida nos finais do

XIX, que se aprofundou no século XX.

172

Destaca que era interessante para a fisiologia vincular-se a esta tese, como

se ela fornecesse a tradução fisiológica integral da atividade psicológica.

reconheceu o problema

dos muitos egos e da dificuldade de juntá-los em um único, e menciona que a

ideia de uma equivalência entre o estado psíquico e o estado cerebral

correspondente permeia uma boa parte da filosofia moderna. Alguns admitem a

equivalência ou o paralelismo das duas séries. Assim, para fixar as ideias, a tese

poderia ser formulada no sentido de que a um estado cerebral corresponde um

estado psíquico determinado ou, nas palavras do autor, “a consciência não diz

nada mais do que se passa no cérebro; ela apenas o exprime numa outra língua”.

Bergson sustenta não haver dúvida sobre as origens metafísicas desta tese. Ela

deriva em linha direta do cartesianismo.

Contudo, a afirmação dogmática do paralelismo psicofisiológico era coisa

totalmente diferente, pois não se tratava de uma regra científica, mas de uma

hipótese metafísica. Os fatos, examinados sem pressuposições matemáticas,

sugerem uma hipótese mais sutil relativamente à correspondência entre estado

psicológico e estado cerebral. Assim, o estado cerebral somente exprimiria ações

que se encontrassem pré-formadas no estado psicológico, desenharia as

articulações motoras dele. Dado um fato psicológico, seria possível a

determinação do estado cerebral concomitante. Entretanto, a recíproca não era

verdadeira, pois ao mesmo estado cerebral corresponderiam estados psíquicos

diversos.

171 Apud BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno, v. II, Lisboa, Edições 70, 1990. 172 BERGSON, Henri , “O cérebro e o pensamento: uma ilusão filosófica”, Trad. Franklin Leopoldo Silva, Os Pensadores – Cartas, Conferências e Outros Escritos, São Paulo, Abril Cultural, 1974, pp. 49- 58.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 133

“A afirmação dogmática do paralelismo psicofisiológico implica um artifício

dialético pelo qual se passa sub-repticiamente de certo sistema de notação para o

sistema oposto, sem levar em conta a substituição”173

O realismo fala de coisas e o idealismo de representações. Trata-se de

duas maneiras diferentes de compreensão do real. Em suma, segundo Bergson:

“o idealismo é um sistema de notação implicando que todo o essencial da matéria

é mostrado ou mostrável na representação que dele temos, e que as articulações

do real são as mesmas de nossas representações. O realismo repousa na

hipótese inversa. Dizer que a matéria existe independentemente de nossa

representação é pretender que sob nossa representação da matéria há uma

causa inacessível desta representação, que por trás da percepção do atual há

poderes e virtualidades ocultos: é, enfim, afirmar que as divisões e articulações

visíveis em nossa representação são puramente relativas à nossa maneira de

perceber”. As palavras realismo e idealismo, em termos convencionais,

representam duas noções do real, sendo que uma implica a possibilidade e a

outra a impossibilidade de identificar as coisas com a representação, desdobrada

e articulada no espaço, oferecida pela consciência humana. Afirmou o autor que

todos concordariam com o fato de que os dois postulados se excluem, propondo-

se a estabelecer três pontos:

: quando falamos de objetos

exteriores, podemos escolher, com efeito, entre dois sistemas de notação.

Podemos tratar esses objetos e as mudanças que se operam neles como as

coisas ou representações. E os dois sistemas são aceitáveis contando que se

adira estritamente ao escolhido.

1o) a opção pela notação idealista implica contradição com a afirmação de

um paralelismo (equivalência) entre os estado psicológico e o estado cerebral;

2o) na notação realista estará transposta a mesma contradição;

3o) a tese do paralelismo somente é sustentável se os dois sistemas de

notação fossem empregados ao mesmo tempo: “ela só parece inteligível se, por

uma mágica intelectual inconsciente, passamos instantaneamente do idealismo

para o realismo, abandonando um ou outro no exato momento em que estamos

para ser surpreendidos em flagrante delito de contradição. Somos aqui

173 BERGSON, Henri, op. cit.

134 Ruth M. Chittó Gauer

naturalmente mágicos, pois o problema em pauta, sendo a questão

psicofisiológica das relações entre o cérebro e o pensamento, sugere-nos, pela

sua própria colocação, os dois pontos de vista do realismo e do idealismo, uma

vez que o termo ‘cérebro’ nos faz pensar numa coisa e o termo pensamento,

numa representação”.174

Bergson concebe, na hipótese idealista, que a modificação cerebral seja

um efeito da ação dos objetos exteriores, um movimento recebido pelo organismo

que vai preparar as reações apropriadas, e por outro lado questiona se a função

do cérebro se reduziria a sofrer certos efeitos das outras representações e a

esboçar as articulações motoras. O cérebro não esboça as próprias

representações; não poderia, sendo ele uma representação, esboçar a totalidade

da representação a não ser que deixasse de ser uma parte para tornar-se essa

totalidade. Formulada em uma linguagem rigorosamente idealista, a tese do

paralelismo se resumiria nesta proposição contraditória: a parte é o todo.

A tese do paralelismo consistirá em sustentar que

podemos, uma vez de posse do estado cerebral, suprimir, por um golpe de

mágica, todos os objetos percebidos sem que nada mude no que se passa na

consciência, pois este é o estado cerebral causado pelos objetos e não pelo

próprio objeto, que determina a percepção do consciente. Para o idealismo, os

objetos exteriores são imagens e o cérebro é uma delas. Nada há nas coisas

além do que é mostrado ou do que é mostrável na imagem que elas apresentam.

As imagens do mundo exterior e o mundo intercerebral são supostamente de

mesma natureza, e a segunda imagem é uma ínfima parte do campo da

representação, enquanto a primeira preenche totalmente o campo da

representação.

Mas a verdade é que se passa inconscientemente de um ponto de vista

idealista a um ponto de vista pseudo-realista. O deslizamento do idealismo para o

realismo é favorecido por muitas ilusões teóricas; contudo, não se deixaria levar

tão facilmente por elas se não fosse encorajado pelos fatos. Fazer dos estados

cerebrais o equivalente das percepções e das lembranças consistirá sempre em

afirmar que a parte é o todo.

174 BERGSON, Henri, op. cit 58-59.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 135

Aprofundando os dois sistemas, veríamos que o idealismo tem por

essência o fato de se deter no que está dado no espaço e nas divisões espaciais,

enquanto o realismo tem estes dados por superficiais e estas divisões por

artificiais.

Tendo por premissa que o realismo não pode ultrapassar o idealismo em

suas explicações, podemos pensar na hipótese de que o realismo não é mais do

que um ideal destinado a lembrar-nos que nunca aprofundaremos suficientemente

a explicação da realidade e que deveremos estabelecer relações mais íntimas

entre as partes do real que se justapõem, a nossos olhos, no espaço. Neste

sentido podemos lembrar Merleau-Ponty175

A ideia implícita (inconsciente) é a de uma alma cerebral, isto é, uma

concentração da representação na substância cortical: “A consciência, para

perceber o universo, sem se alterar, só tem que se dilatar no espaço restrito da

superfície do cérebro, verdadeira ‘câmera escura’ em que se reproduz em

tamanho reduzido o mundo circundante”. Também implícita é a ideia de que se

duas totalidades são solidárias, cada parte de uma é solidária a determinada

quando afirma: “o olho vê o mundo, e

aquilo que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele

próprio, e, sobre a paleta, a cor que o quadro espera, e vê, uma vez feito, o

quadro que responde a todas estas faltas, e vê os quadros dos outros, as

respostas outras a outras faltas”. A relação do cérebro ao restante da

representação era então a parte do todo. Disso passa bruscamente para uma

realidade que seria subjacente à representação: ela é subparcial, o que significa

que o cérebro não é uma entidade independente. Conservamos o cérebro tal qual

é representado, mas esquecemos que, se o real está desdobrado na

representação, estendido nela e não contraído nela, ele não pode mais encerrar

as potencialidades e as virtualidades de que falava o realismo; erigimos, então, os

movimentos cerebrais em equivalentes de toda a representação. Oscilamos, pois,

do idealismo ao realismo e do realismo ao idealismo, mas tão rapidamente que

nos acreditamos imóveis e, de alguma forma, cavaleiros dos sistemas reunidos

em um só. Esta aparente conciliação de duas afirmações inconciliáveis é a

própria essência da tese do paralelismo.

175 MERLEAU-PONTY, O olho e o espírito, Lisboa, Grafilarte, 1997, p. 25.

136 Ruth M. Chittó Gauer

parte de outra. Então, como não há estado de consciência que não tenha

concomitante estado cerebral, como uma variação de estado cerebral não

acontece sem uma variação do estado de consciência, enfim, como uma lesão da

atividade cerebral provoca uma lesão da atividade consciente, Bergson concluiu

que “a qualquer fração do estado de consciência corresponde uma parte

determinada do estado cerebral, e que os dois termos são, portanto,

intercambiáveis”. A relação do estado cerebral com a representação poderia

muito bem ser a do parafuso com a máquina, isto é, da parte com o todo.

Por meio da análise que ultrapassa idealismo versus realismo, Bergson

procurou destacar a contradição inerente à própria tese do paralelismo.

Reconheceu o problema dos muitos egos e a dificuldade de juntá-los em um

único.

Se ninguém precisa dizer que houve uma revolução na física no século XX,

ou um movimento psicanalítico como referi no início, por que ainda não podemos

prescindir da norma como poder de punir da mesma forma que negamos outros

valores?

A reflexão dos modernos sobre castigo e poder se desvinculou da

cosmovisão hierarquizada. Esse fato ocorreu por meio de um esforço que tem o

mérito do dever imposto pelo imperativo respeito à lei, termos em que a ética

moderna se formulou. A hierarquia a que a virtude antiga se referia desapareceu

e o mundo substancial se retraiu. A concepção moderna nem por isso

permaneceu menos apegada à ideia de uma transcendência da lei em relação

aos desejos do indivíduo, e a razão prática, entretanto, continua, pela sua

universalidade e pelo seu estatuto transcendental, a ser exterior ao homem

empírico. A ideia de autonomia supõe que a lei seja a minha lei, mas nem por isso

anula a distância que separa o autor e o nomos, o si próprio e a norma.

A ética do poder de punição da lei não se confunde com a psicologia, e

também não com a sociologia dos costumes que levou vários contemporâneos a

considerar toda e qualquer norma como um produto histórico relativo ao estado

de uma sociedade determinada. Segundo Luc Ferry,176

176 FERRY Luc, Homo Aestheticus. A Invenção do gosto na era democrática, Coimbra, Almeida, 2003, p. 286.

“Estudos realizados nos

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 137

Estados Unidos e na França revelam que após os anos 60, o hedonismo, o

narcisismo se haviam apoderado das questões morais tradicionais”.

138 Ruth M. Chittó Gauer

XIII A Ilusão Totalizadora e a Violência da Fragmentação

A ciência moderna criou premissas e métodos vinculados a uma verdade

totalizante. O conhecimento foi tido como absoluto, cabal, universal e eterno. As

premissas que embasaram essa concepção de ciência e que serviram como

pressupostos para o direito estão estruturadas na experimentação, objetividade,

neutralidade e generalização. Essas premissas se complementam e demarcam o

conhecimento científico. A experimentação trouxe a primazia da técnica, a

objetividade sustentou o discurso da neutralidade do cientista assim como a do

juiz. Não é por acaso que somos, via de regra, advertidos de que decisões

sensatas provêm de uma cabeça fria e de que emoções e razão jamais se

misturam. A perspectiva largamente difundida era a de que existiam sistemas

neurológicos diferentes para a razão e para a emoção. Antônio Damásio177

Sob esse enfoque, a tentação inicial foi a de fazer valer a vida comum dos

homens naquilo que se poderia chamar de uma mútua partilha de verdades. As

tradições políticas modernas, desde seu início, assumiram explicitamente não

apenas a necessidade de um sentimento comum racionalizado e homogeneizado,

sugere que certos aspectos do processo da emoção e do sentimento são

indispensáveis para a racionalidade. As emoções e os sentimentos, juntamente

com a oculta maquinaria fisiológica que lhes está subjacente, auxiliam-nos na

assustadora tarefa de fazer previsões para um futuro incerto e planejar as nossas

ações de acordo com essas previsões. Sabemos que as pesquisas com base na

ciência moderna levaram os muitos avanços em todos os campos do saber, no

entanto, as teorias desenvolvidas por Einstein, Max Planck, Prigogine, e muitos

outros, não atingiram a forma tradicional de pensar de vários campos do

conhecimento. O fim das certezas chegou ao campo da física, da matemática, da

neurociência, entre outros, mas não chegou ainda nas ciências sociais aplicadas,

pelo menos de forma substancial. Há muito de crença nas verdades científicas,

assim como muito de otimismo acerca das vantagens que o conhecimento traz

para a humanidade. Neste sentido, é possível concordar com a ideia de que a

ciência, além de elucidar, é cega a respeito de sua própria aventura.

177 DAMÁSIO, Antônio R, O Erro de Descartes, Lisboa, Publicações Europa-América, 2000.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 139

mas também o culto das instituições, principalmente das instituições jurídicas,

sem as quais esse sentimento se fragmentaria. A preocupação com a

fragmentação talvez seja um dos problemas que leva à manutenção das tradições

de forma conservadora. A estrutura da sociedade moderna está pautada no

direito tal como foi analisado por Max Weber na obra O cientista e o político.178

Na contemporaneidade a soberania do estado passou a ser a soberania do

direito. Hans Kelsen

O

autor descreve, de forma precisa, o papel do cientista e do jurista na construção

do estado e das instituições modernas. Seguindo as reflexões do autor, podemos

afirmar que o cientista, responsável pela construção do estado moderno, foi o

jurista. A presença do jurista permitiu a organização de todas as instituições laicas

na modernidade. Não é por acaso que muitos intelectuais atribuem ao direito

moderno a condição de aplicação da racionalidade e da burocracia institucional.

179 defendeu a identidade entre o Estado e a própria ordem

legal com base nesta premissa. A ideia moderna de estado (Krabb, 1919) foi

aceita pelo autor, que afirma: "não é o estado que é soberano, mas o próprio

direito". E é esta ideia de soberania do direito que permitiu ao autor180

Esse estado, neutro e liberal, é que permite a emergência de um poder

total. Com esse enfoque poderíamos afirmar que o sentido do político pode ser

pensado como descrito por Maffesoli,

afirmar que

Kelsen pode defender na sua teoria pura do direito a identidade entre o estado e a

própria ordem legal por ele sustentada. Essa visão nos leva a pensar sob outro

enfoque a crise do direito e do estado que, ao perder o poder político que o

caracterizava, surge como tendencialmente neutro e não interveniente diante de

uma sociedade que se desorganiza a partir de si mesma. Trata-se do estado

liberal, disposto pelo princípio do laisser passer diante das leis imanentes à

organização econômica e técnica da sociedade, assim como neutro diante dos

eventuais conflitos sociais, religiosos e culturais que ocorreram no seu interior.

181

178 WEBER, Max, O Político e o Cientista, Lisboa, Presença Ltda., 1979.

quando refere: "o desencantamento do

mundo, próprio da modernidade, apagou a estética do mundo delimitado".

179 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, Trad. João Baptista Machado, 4. ed., Coimbra, Armênio Amado, 1979. 180 SÁ Alexandre Franco de, Metamorfoses do poder, Coimbra, Ariadne Editora, 2004, pp. 30-31. (Coleção Sophia 002). 181 MAFFESIOLI, Michel, No fundo das aparências, Petrópolis, Vozes, 1996, pp. 121-122.

140 Ruth M. Chittó Gauer

Podemos dizer que a experiência coletiva acumulada levou à constatação de que

as grandes máquinas institucionais, racionais e mecânicas, a exemplo do estado,

matrizes da sociedade ocidental moderna, demonstram ser ineficazes para

atender a demanda da complexidade atual. A experiência vivida vem

apresentando outras lógicas, nas quais outras sensibilidades e solidariedades

engendram novas formas de experiência social. A soberania das formas

institucionais, racionais, está há muito tempo indicando a sua ineficácia. O

exemplo da soberania, vista enquanto legitimidade de poder legalmente

constituído, que está inserida nos aparelhos de estado, dilacera-se frente à

corrosão da própria lei. Porém, o mais desconcertante nessa tese é que se pode

considerar como conservadora a ideia de soberania do direito e da neutralidade

do estado. A soberania só pode ser entendida enquanto legitimidade do poder do

estado: hoje é possível pensar neste poder soberano?

A estrutura jurídica se fez a partir da secularização, como tentativa de

eliminar a sacralidade, o princípio secularizador; constitui-se, portanto, como

elemento estruturador das sociedades ocidentais modernas, que reivindicaram

para si a verdade como substância afirmada em si e negada no outro (a seu

tempo excluído como alguém infiel), mas que assumiram uma verdade, índice de

si mesma. Esta verdade é excessiva por natureza. No entanto, o direito penal

continua usando a premissa da evidência dos fatos. A evidência, como diz Rui

Cunha Martins,182

182 GIL, Fernando e MARTINS, Rui Cunha, Modos da Verdade, In. Revista de História das Ideias. Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, v. 23, p. 19-20, 2002.

é uma alucinação dos sentidos; em sentido quase estrito da

linguagem, ela foi exaustivamente atestada por grandes filósofos, de Duns Scot a

Husserl. Em toda a argumentação realizada em qualquer âmbito, a prática

utilizada é a extirpação de elementos que impeçam a explicitação daqueles

fatores que poderiam conotar um problema para o convencimento do que se quer

que seja tido como verdade. Mesmo os fatos mais evidentes, notórios, chamados

no âmbito judiciário de flagrante delito, carregam uma nebulosidade que os

impede de ser totalmente transparentes; é, portanto, impossível torná-los visíveis

em sua totalidade e também para todos.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 141

A tradição jurídica tende a agir frente ao flagrante delito deslocando para o

juiz a responsabilidade de julgar uma verdade tida como óbvia, por meio de sua

neutralidade e imparcialidade. Na tramitação do processo, a preocupação das

garantias está na defesa de que a visibilidade do fato não antecipe a decisão

judicial. Fernando Gil183

O século XX revelou que a garantia pretendida por esses princípios foi

desmontada pela realidade empírica divulgada em tempo real. A identidade

polarizada, tal como analisada por Hall,

analisa a questão da evidência dizendo que "o direito

garantista é um outro sistema de constrangimento imposto à evidência, O sentido

da racionalidade é sempre esse, nas ciências do direito".

184 fruto da multiplicação, é "celebração

móvel", e transformação contínua nos sistemas culturais. Esses fatores levam ao

tempo da insegurança, um tempo diferente do tempo da segurança, no qual

prevalece o estado de direito. Entre tantas inseguranças temos a insegurança

jurídica, que nos aproxima ao estado de natureza. Esse mal endógeno da

máquina jurídica precisa ser revertido. Para tanto se faz necessário equilibrar o

tempo da promessa com o tempo de requestionamento. Impõe-se o imperativo de

uma nova gestão pública, em que o caráter problemático dos fins, dos meios e

dos resultados possa conduzir a outros critérios de oportunidades. Ost185

183 GIL, Fernando e MARTINS, Rui Cunha, Modos da Verdade, In. Revista de História das Ideias. Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, v. 23, p. 26, 2002.

refere

que "o direito tradicional dá lugar ao direito excepcional e ao homem vitimado

inscrito e datado numa sociedade onde há um elevado nível de desordem

simbólica". De modo geral, a violência, vista mais especificamente como

criminalidade, deixa transparecer uma reivindicação de ordenamentos sociais

mais justos. Como se sabe, o conceito de justo (conceito relativo, mas sempre

dotado de valor) é eminentemente arbitrário e, por outro lado, denuncia a

impotência do Estado, que não consegue cumprir o seu projeto. Já não se

acredita no devir, portanto não se acredita no projeto (muitas vezes mais

anunciado que desejado) de unificar e equilibrar a sociedade. Esse é um

problema geral para os governos atuais; se problema real ou ficção discursiva é

outro assunto.

184 HALL, Stuart, A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro, DP&A, 1997. 185 OST, François, O tempo do direito, Lisboa, Piaget, 1999.

142 Ruth M. Chittó Gauer

Frente a essa complexidade, novas questões se fazem presentes. O tempo

da segurança, do estado de direito já não existe. A organização política

estruturada no direito moderno já não possui a eficácia do controle social, tal

como se acreditava nos séculos passados. As transformações nos levam a

constatar uma ausência de controle. Caminharíamos para uma insegurança que

nos levaria a um estado de natureza? Sabemos que a insegurança jurídica é um

mal endógeno da máquina jurídica. Qual seria o remédio, o dever ser jurídico? Há

consciência de que um fator de segurança importante é o equilíbrio do tempo da

promessa com o tempo de (re)questionamento. Impõe-se o imperativo da gestão

pública: o direito apresenta características do (re)questionamento e da

temporalidade, marcado pela racionalidade falível. Uma nova gestão implica a

integração da incerteza e da indeterminação dos valores, a nova direção das

condutas é vista como um problema a construir, essa gestão deve assumir o

caráter problemático dos fins, dos meios e dos resultados. A produção normativa,

vista como uma inversão temporal, operacionaliza de forma a dirigir os critérios de

oportunidade que resultam das condições "reais" dos contextos de

implementação.

O direito deu lugar à relação frente a frente, gerando ora a comunhão, ora

a violência. Dessa forma ocorre a heterogeneidade do elo social. A flexibilidade

das prestações e a precariedade dos empregos, bem como a duração dos

códigos e das instituições, dão lugar a um tempo que é percebido como que em

frangalhos, que deve ser (re)questionado a todo instante, impondo o imperativo

de viver o dia-a-dia para todos os segmentos da sociedade. Um dos diagnósticos

mais claros dessa crise é o declínio do político. Toda e qualquer forma de ilícito

pode ser considerada um fenômeno complexo, e, portanto, impossível de ser

explicada sob o olhar de uma só ciência com base na “verdade" absolutizada e na

imparcialidade do julgador.

A dicotomia sujeito-objeto, própria da modernidade, separou ciência e

política, ciência e direito, assim como todos os campos de saber. No entanto,

desde Kant tentou-se superar essa dicotomia. Dos finais do XIX aos nossos dias

a discussão em torno da insuficiência teórica da ciência se constituiu no grande

debate, principalmente no campo das humanidades. A insuficiência da lógica

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 143

cartesiana para explicar fenômenos complexos é uma constatação. Entre os

fenômenos mais complexos temos a violência, em suas múltiplas faces.

Um dos problemas no mundo globalizado, tal como conceituado a partir da

segunda metade do século XX, pode ser pensado por meio da ilusão midiática.

Ao tomar-se o real pelo real, abre-se a possibilidade de que o próprio excesso da

ilusão midiática faça as vezes de desilusão vital. As lutas inexpiáveis entre

diferentes ordens de valores do mundo que desloca fronteiras geram polaridades

reagrupadoras de atitudes, sentimentos, práticas que se encontram em constante

tensão no cotidiano. A heterogeneidade, as tensões nos remetem a pensar sobre

o cansaço da civilização, e esse cansaço talvez seja um dos elementos para

diagnosticarmos as vivências dos homens na atualidade – o homem que vive em

margens indefinidas, ambíguas, polifacetadas, próprias para compreensões (ou

compressões) subjetivas.

A complexidade destas problemáticas implica visualizar um número

considerável de eventos caracterizados como exemplos de globalização, todos

carregados de violência, impossíveis de mencionar em sua totalidade. Cabe

selecionar alguns pontos de referência para pensarmos sobre essa inquietante

problemática. Um exemplo importante foi disponibilizado pela Internet com um

comentário de Kerckhove.186 Sobre os incidentes de setembro de 2001, o autor

afirma: "Os arquitetos de Babel foram punidos por aquilo que os tornava

orgulhosos: a universalidade de sua linguagem”. Referindo-se aos atentados ao

World Trade Center, reviveu um dos temas de seu livro A Pele da Cultura,187

186 KERCKHOVE, Derrick de, A Pele da Cultura (Uma investigação sobre a nova realidade eletrônica), Lisboa, Relógio D'Água Editores, 1997.

em

que faz uma comparação entre a passagem bíblica da destruição da Torre de

Babel e das muralhas de Jericó e uma “catástrofe de software”, ou seja, uma

implosão da linguagem universal em novos e variados padrões. Importante

observar a conotação dada, pois enfatiza a transformação da cosmovisão que

ocorre no mundo atual. Sua análise continua, e neste sentido afirma que: "A

overdose de informação é o que permite visualizar a repetição de um padrão. Não

foi apenas um atentado terrorista contra um alvo simbólico do capitalismo, houve

uma ruptura com um padrão saturado de ver o mundo. Osama Bin Laden

187 KERCKHOVE, Derrick de, op. cit.

144 Ruth M. Chittó Gauer

derrubou a crença do ocidente em sua razão materialista". O evento, em sua

velocidade, representa, nesta leitura, uma passagem decisiva, um limite em

relação ao desenvolvimento da linguagem humana, em que a imagem em tempo

real excede a lógica das palavras e das interpretações. Podemos dizer que há

uma falta de transparência das palavras para descrever o evento cuja imagem

revela uma implosão indescritível, revela que não sabemos mais qual é o

caminho, mas continuamos caminhando, revela ainda a forma saturada de ver o

mundo.

Ao lado destas questões inquietantes, temos um mundo monetário que

auxiliou em muito a implementação de um ritmo social quase alucinatório, que

precisa ser examinado em sua relação com a violência e o direito. Esse mundo se

amplia graças ao consumo desenfreado, principalmente do supérfluo. Como

podemos pensar na criança criativa em um mundo do descartável, questiona Lévi-

Strauss ainda nas primeiras décadas do século XX. A economia monetária

permitiu a aceleração do ritmo social na modernidade. O mundo sem dinheiro, tal

como referido por Kerckhove, não significará a ausência do seu papel tal como

construído pela modernidade.

Essas representações revelaram muito da violência que a crença no

projeto científico promoveu e dos riscos que o tão prometido progresso traz.

O avanço do conhecimento durante o século passado permitiu o

surgimento de uma série de eventos que se revelaram incontroláveis: a chuva de

bombas durante a Primeira Grande Guerra, o uso de armamento atômico na

Segunda Guerra, além de todo o processo armamentista ocorrido durante a

Guerra Fria. Esses fatos, no entanto, revelam apenas uma das faces da violência.

Outros eventos, não tão visíveis, trazem informações sobre a violência

subterrânea.

A violência relatada de forma emblemática, a violência subterrânea tal

como descrita por Michel Maffesoli,188

188 MAFFESOLI, Michel, O Tempo das Tribos, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987. Ver ainda O Conhecimento Comum, São Paulo, Brasiliense, 1988.

está atrelada ao desaparecimento do

indivíduo moderno e ao surgimento do tribalismo.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 145

A tradição ocidental manifesta-se hoje como uma consequência do pro-

cesso de racionalização, que iniciou em fins do século XVIII, e é caracterizada por

ser uma "civilização legal". No entanto, toda a legislação moderna que tenta coibir

a violência não tem alcançado seus objetivos. A língua geral da lei parece não

ecoar na violência da sociedade contemporânea. É como se fosse uma visitante

recém-chegada a uma cidade que desconhece totalmente o seu significado.

Uma das formas de ver a questão da modernidade está associada ao tempo.

Lewis189 chamou a atenção para a importância do tempo no pensamento

ocidental moderno, referindo-se a isto como o triunfo do "Espírito do tempo". Esse

espírito foca o aspecto dinâmico da realidade, atirando as pessoas para um

"êxtase de ação", fazendo-as correr, tal como os futuristas queriam que fizessem,

a velocidades cada vez maiores, mas sem metas fixas, “isto que a realidade era,

segundo este ponto de vista, um devir, uma história, um processo dialético sem

fim. Essa doutrina do tempo é, segundo Lewis, o produto da ciência, a filha

instável do pensamento positivista. Ele encontrou-a presente na filosofia

contemporânea, no mundo einsteniano, bergsoniano, na literatura e na arte,

assim como entre historiadores e filósofos como Oswald Spengler, que inventou a

frase ‘Mundo-como-história’, ou seja, integralmente dinâmico e nunca estático.

Lewis deplorava esse novo culto ao tempo. Nele pode-se ler, além da

preocupação com a instabilidade, a busca de uma racionalidade. Como afirmaria

Collingwood,190 “a noção de ideias claras e distintas é completamente subjetiva,

prova apenas a crença na verdade de quem as formulou". Entretanto, adverte o

autor, uma vez que "esse mundo civil foi feito certamente pelos homens", a

compreensão histórica necessitava perceber as "ordens universais", os costumes

impostos por meio do "senso comum" às sociedades humanas. Essa percepção

opera com um movimento de reinterpretação das tradições, levado a efeito pelo

historiador. A globalização adquiriu novas faces a partir da última década do

século XX. Kerckhove191

189 Apud BAUMER, Franklin L, O pensamento europeu moderno, v. I, Lisboa, Edições 70, 1990.

refere que o termo Aldeia Global (termo introduzido por

Marshall McLuhan) parece estar em conflito com os crescentes regionalismos,

separatismos e movimentos locais que aparecem na última década. O termo, no

190 COLLINGWOOD, R. G. A Ideia de História, Lisboa, Editorial Presença, s/d, p. 88. 191 KERCKHOVE, Derrick de, op. cit., pp. 24-26.

146 Ruth M. Chittó Gauer

entanto, revela o complexo panorama das telecomunicações internacionais que

vem acompanhando a globalização. É uma expressão que se refere à terra

quando esta se constitui em uma única comunidade comunicativa à distância. Há

várias formas de se falar sobre globalização. A metáfora "Aldeia Global" é uma

noção de escala.

Há menos espaço para nos movermos em uma aldeia do que em uma

cidade. As telecomunicações impõem forçosamente uma associação, foi-nos

imposta uma situação implosiva – e potencialmente explosiva. As comunidades

humanas vivem a diferentes velocidades, com níveis muito diferentes de

experiência social são lançadas de encontro umas às outras sem aviso ou

medição. Não há protocolo que nos prepare para estes confrontos

desorganizados, não há treino para o comportamento social e coletivo. Estes

fatos revelam que mudou a forma de mudança. Quanto mais noção temos da

globalidade, mais ficamos conscientes das identificações locais, e mais as

protegemos; é esse o paradoxo da aldeia global. O hiperlocal e o complemento

inevitável do hiperglobal. A televisão já havia fornecido o conhecimento de que

existiam várias nações na terra e éramos todos aldeões do mesmo planeta. Ainda

somos, mas nem sempre com sucesso.

A inércia da natureza relativista não é suficiente para apagar a questão da

globalização como um último esforço para o apagamento das diferenças. Por

mais paradoxal que possa parecer, o caminho da homogeneização global leva

cada vez mais à ampliação do fascínio pela diferença e à justificação da

fragmentação. O impacto global cria, continuamente, o novo interesse pelo local.

Porém, há que se salientar que não se pode pensar o global substituindo o local.

É mais importante pensar em uma nova articulação entre o global e o local. A

lógica da globalização não se concretiza, o atual panorama aponta para prováveis

produções que devem ocorrem simultaneamente com novas identificações

globais e novas identificações locais.

A geometria do poder global emprestará diferentes problemas. Entre os

mais visíveis podemos lembrar o deslocamento do próprio poder, principalmente

do poder do estado, tal como visto no início do século XX.

Não há possibilidade de se saber o que será mais afetado pela globalização,

uma vez que o fluxo é desequilibrado, pois continuam existindo relações

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 147

desiguais de poder entre Norte x Sul, Ocidente & Oriente, etc. Há quem afirme

que a globalização é um fenômeno que atinge apenas o ocidente. Kevin Robins

lembra que, embora se projetando a si próprio como trans-histórico e transacional,

como força transcendente e universalizadora da modernização e da modernidade,

o capitalismo global é, na verdade, um processo de ocidentalização que cada vez

mais se empenha na exportação de mercadorias, valores, prioridades das formas

de vida do ocidente. Trata-se de um desencontro cultural, desigual, do império do

ocidente, que, ao mesmo tempo, vê-se face a face com a cultura "alienígena",

exótica, com a diferença, com seu outro. A duração da tecnociência sobre a

democracia dá visibilidade ao resto do ocidente: processos migratórios,

deslocamentos de fronteiras, diáspora, migrações criam condições para que se

instalem duas ou mais identidades. Assim, instalam-se os hibridismos que tendem

a superar tanto a igualdade como a diferença. Por outro lado, não podemos

esquecer a volta dos fundamentalismos, acompanhados da descrença no futuro e

da violência que se transmutou em formas que desconhecíamos. O livro Versos

Satânicos celebra o hibridismo, a impureza, a mistura, a transformação e o perigo,

o absolutismo do puro. Esse absoluto se fragmenta na velocidade da

impossibilidade de se realizar.

148 Ruth M. Chittó Gauer

XIV Norma, ciência e autenticidade

A história da ciência há muito demonstrou ser possível que mitos e

equívocos fossem e ainda sejam produzidos pelos mesmos processos que hoje

nos levam ao conhecimento científico. Questionando aquilo que no passado era

propriamente científico Thomas Kuhn192 elabora o conceito de Paradigma. O

autor refere que “considera Paradigmas as realizações científicas universalmente

reconhecidas que, durante algum tempo, forneceram problemas e soluções

modulares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”193. A palavra

paradigma sugere um modelo ou mesmo um padrão, porém não podemos

considerar como tal; ela é, antes de mais nada, para o autor, uma tentativa de

aumentar a precisão do conhecimento sobre fatos que o paradigma mostrar ser

relevante; uma busca de aprofundamento entre o abstrato e o real, por meio de

novos instrumentos na medida em que o paradigma é uma tese abstrata; a

articulação do paradigma visa aparar as diferenças e ambiguidades residuais para

buscar universalidades que permitam aplicá-lo a um conjunto de problemas

correlatos194. Para o autor, os paradigmas se constituem em uma moldura do

conhecimento sobre o mundo, que “o que um homem vê depende tanto daquilo

que ele olha como daquilo que sua experiência visual-conceitual prévia o ensinou

a ver”195

As reações à concepção de Paradigma de Khun podem ser apoiadas na

tese que outros autores já defenderam. Entre elas a de que o essencial já não é o

. Seguindo as reflexões apresentadas não há possibilidade de

encararmos a realidade como uma das interpretações apresentadas pela analise

hermenêutica, a forma de ver o mundo sob esse enfoque se transformaria

segundo a cosmovisão representada pelas revoluções científicas. Podemos referir

ainda que nesta compreensão a autenticidade da ciência estaria ligada às

mudanças do olhar sobre determinados problemas que são designados pelos

cientistas.

192 KUHN, Thomas,. A estrutura das revoluções científica, São Paulo, Perspectiva, 1982, p. 5, 30, 31. 193 KUHN, Thomas, op. cit, p. 13. 194 KUHN, Thomas, op. cit, p. 53. 195 KUHN, Thomas, op. cit, p. 23.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 149

confronto com as normas exteriores impositivas da atividade científica baseada

em uma epistemologia normativa, tampouco com a verdade tal como a suposta

autonomia dos critérios de avaliação dos produtos científicos, mas sim lograr a

expressão da personalidade, a plena afirmação de si próprio.

Vivemos a substituição da moral pela psicologia e a ansiedade tomou lugar

da culpabilidade. Já não se pode interpretar a não ser em termos de “conflitos

psíquicos”: é a vitória do terapêutico sobre o religioso.

Por outro lado, a ética da autenticidade compensa o narcisismo por meio

de um suplemento de tolerância e de respeito ao outro fazendo com que a

alteridade tenha garantido a sua segurança. Não por acaso o discurso dos direitos

humanos, expressão mais acabada da cosmovisão newtoniana da era das

resoluções, torna-se hoje sinônimo de “direito da diferença”.

A ética moderna não abandonou o projeto de responder à questão dos

limites tanto no plano moral como no jurídico: o princípio da autolimitação – limite

da liberdade – e a universalidade da lei permanecem e se confrontam com a

sacralização do autêntico enquanto tal, é que a referência à própria ideia de limite

parece deslegitimada pela exigência imperiosa da plena realização individual e o

direito à diferença. A tendência de se pensar na autolimitação implica fazer uma

relação com a questão de ordem. Polanyi,196 em A lógica da liberdade, afirma que

sempre que vemos um arranjo bem-ordenado de coisas e de homens, nós,

instintivamente, supomos que alguém, de forma intencional, coloca-os daquele

modo. Tal modo de ver as coisas consiste em limitar a liberdade das coisas e dos

homens de continuarem como estão ou de se moverem segundo suas vontades,

desejos consciente ou inconsciente. Essa tendência vincula-se à alternativa

totalitária e constitui-se em uma ficção. Na análise sobre liberdade, lemos, na

obra de Polanyi,197

196 POLANYI, Michael, A lógica da liberdade, Rio de Janeiro, Topbooks Editora, 2003, p. 242.

que a “conclusão a que chegamos é que tanto a liberdade

econômica como a ordem jurídica estabelecida para a salvaguarda e orientação

da liberdade só se justificam para fins de gerência de uma tarefa particular”.

Como a permanência de situações bem-ordenadas constitui-se de situações que

permanecem em temporalidades muito pouco douradoras, um sistema de leis

197 POLANYI, Michael, op. cit., p. 291.

150 Ruth M. Chittó Gauer

contratuais que garanta essa situação e, ao mesmo tempo a liberdade, seja um

sistema jurídico pelo qual se administram essas leis, seja um sistema de ordem

espontânea, ultrapassa a própria lógica da liberdade. A autenticidade jurídica

deve vincular-se a um sistema social manifesto de forma espontânea.

Embora se tenha afirmado que nenhum pensamento se desliga

completamente de um suporte, o pensamento falante manobrável tentou, assim

como fez Freud, dar uma logicidade ao ilógico. O inconsciente, tal como colocado

por Freud, possibilitou no mundo contemporâneo a ética da autenticidade e a sua

crítica, foi o apanágio de muitos filósofos e encontrou eco até mesmo no universo

da ciência – veja-se o sucesso da epistemologia, empenhada em espezinhar a

razão moderna, embora a explicação do inconsciente tenha sido pautada na

lógica moderna.

O sucesso da ciência nos fez esquecer de seus insucessos e de seus

monstros. Neste sentido, não podemos deixar de notar que o progresso da

ciência e da técnica nos leva a pensar o quanto é urgente tratar dos limites. Para

isso, precisamos perceber a sedução da autonomia moderna – moralidade

moderna –, com sua independência, com o consenso da autenticidade atribuída

ao consumo contemporâneo, com sua imagem de indivíduo-átomo que, por ser

único, distingue-se dos outros. É importante salientar que essa distinção, no

entanto, não eliminou a banalidade do universal abstrato, assim como não resistiu

ao charme do limite, que não permite eliminar o poder e a punição. Temos, por

outro lado, que pensar em deslocamentos. Poder e punição se deslocaram na

contemporaneidade de tal forma que a norma já não incide apenas sobre o ilícito,

mas sobre os que não podem se proteger dela. O século XXI vê-se frente a

desafios morais, éticos, intelectuais, entre outros. Tais desafios, no entanto, não

permitiram que abdicássemos de problemáticas ainda não respondidas: se a

fundação da norma nos faz pensar na ordem classificatória das relações de

parentesco, ela também nos faz questionar a sua função organizadora. Seria

possível pensar uma sociedade sem princípios normativos? A antiga norma, o

primeiro não, reflexo do ser-conjunto, estrutura das sociedades simples e antigas,

pode ser encontrada nas organizações complexas contemporâneas. A

particularidade é que essa antiga forma classificatória, portando organizadora,

teria criado o cúmulo da paranoia ou a negação de que a estrutura dos mitos e de

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 151

todos os sistemas de parentesco possui uma coerência interna, vista como a

negação da independência. Essa premissa leva a pensar que a igualdade

moderna, com a conotação moral que a envolve, é stricto sensu a

desestruturação social, é antes a negação da ordem do que uma outra maneira

de exprimir o ético.

A estrutura perene de nossa história, situada em um sentimento ambíguo

entre a tradição e modernidade redentora, fornece uma representação

caleidoscópica das múltiplas e diferentes partes que formam uma "realidade" em

constante equilíbrio de antagonismos. Os antagonismos revelam-se, geralmente,

em atos de violência, vistos como um dos mais preocupantes fenômenos da

atualidade, conferindo visibilidade à face “noturna” de um mundo que se afastou

radicalmente da promessa feita pelos modernos dos séculos dezessete e dezoito,

o mundo como progresso. A representação da violência não pode ser igualada a

outras formas pensadas como puras, nas quais o representado pode ser

exclusivamente uma projeção do pensamento.

A importância das imagens transmitidas pelos meios de comunicação

retrata as diferentes formas de violência, tanto as de repressão, como as de

coerção. Estas imagens desvelam a sistemática intelectualista estabelecida,

apenas para reduzir o simbolizado dos diferentes processos de violência sem

mistério. A diferente face da desagregação social aparece, sem que seja

necessário reduzi-la ou mesmo incluí-la em uma hermenêutica redutora. Os

dados científicos, embasados em premissas de que existe uma causalidade

especificamente material para os atos mais cotidianos, que se revelam como

explosões de inquietação, insatisfação, perversidade, além de outras

manifestações entendidas como expressões da violência, não podem ser

interpretadas de forma linear. A redução advém de crenças em uma história única

que explicaria as diferentes formas de manifestações dramáticas que demonstram

cabalmente uma outra face do “destino” pensado para a humanidade desde o

período iluminista. A objetivação e a racionalização construíram a promessa de

um mundo com soluções positivas para os problemas da humanidade: fome,

pobreza, diferença, hierarquia, poder, privilégios, pandemias, epidemias,

desagregações, etc. No entanto, as imagens da desagregação expressam com

extrema sensibilidade os resultados de traumas vivenciados pela sociedade, cujo

152 Ruth M. Chittó Gauer

projeto racional de progresso desemboca em monstruosidades impensáveis do

ponto de vista da premissa que criou a perspectiva do futuro glorioso.

Assim, balizar a condição diferencial e o estatuto particular de fenômenos

sociais vinculados a processos violentos implica compreender que a violência não

é um fato anacrônico, alienígena da sociedade. No entanto, certo é que se há

alguma novidade nas reflexões ora apresentadas, ela está fundada sobre dois

alicerces, inauditos na sua conjugação: a possibilidade de ver alguma coisa já

inacessível no tempo e a possibilidade de ver alguma coisa acessível na história

do direito, como poder controlador e limitador da violência. A vontade de dar leis

como forma de controle é ambicionada por governantes sempre que o poder foge

ao controle. Esses governantes se defrontam com a vontade moral de sociedade

que é autônoma. Já a vontade jurídica, na medida em que é condicionada, impõe

perguntar quais os fins a que se destinam. As características que validam o direito

são apresentadas por Kant198 a partir do que é direito para o autor. O direito seria

um regramento entre subjetividades, não é, no entanto um regramento entre os

desejos das subjetividades, mas sim entre os arbítrios dos homens. Faz a

distinção entre arbítrio e desejo afirmando que o primeiro se liga à consciência

pela capacidade da ação de produzir, enquanto ação socialmente intersubjetiva,

os fins que ambiciona. Se a lei apenas regra as relações externas entre os

indivíduos não pode a lei se preocupar com finalidades individuais, mas apenas

sobre como os fins podem ser alcançados sob o ponto de vista formal, sem

inviabilizar a liberdade individual intersubjetiva. A definição do autor assenta-se na

ambição de que o regulamento jurídico pode viabilizar a manifestação da justiça

entendida não como segurança ou igualdade mas como liberdade. A liberdade do

arbítrio de um pode continuar com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei

universal199

198 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Kant. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1984.

. A liberdade seria o valor maior porque seria o único valor que

viabilizaria a construção de outros valores. A liberdade vista como valor maior

garantiria a liberdade da ciência e a autenticidade do valor científico. Cabe aqui

referendar o que acima afirmamos sobre a visão de liberdade em Polanyi quando

refere que, nessa situação, ao mesmo tempo a liberdade, seja por um sistema

199 BOBBIO, Norberto, op. cit, p. 71, 72.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 153

jurídico pelo qual se administram as leis, seja um sistema de ordem espontânea,

ultrapassa a própria lógica da liberdade.

154 Ruth M. Chittó Gauer

XV Juridicidade, violência, mito e memória

Situar os problemas da violência como prática cultural, dentro de âmbitos

que são, simultaneamente, o da busca de valores, a questão da identidade e do

acesso à justiça somente se torna possível quando os vinculamos com a

velocidade no mundo da complexidade. As respectivas tensões criadas nos

tempos atuais levam à análise da complexidade, na medida em que ela permite a

compreensão da civilização ocidental, batizada de civilização dos indivíduos.

Partimos de um pressuposto de três hipóteses de trabalho: a crise do

individualismo, a velocidade e a crise de valores.

Caracteriza-se, assim, uma emergência que, ao ocorrer em paridade com

um amálgama de fenômenos híbridos e virtualmente nômades, parece dotar a

violência de uma particular sensibilidade para pensar a relação entre a velocidade

e a crise de valores. Em termos de uma transgressão necessária, os limites

sugeridos pela modernidade tendem a desaparecer. Se há alguma novidade, não

se radicará tanto na possibilidade da transgressão — uma vez que, como é

sabido, a própria existência de separações normalizadoras e de classificações,

quando inerentes à modernidade, nunca deixou de estimular, afinal, a sua própria

transgressão.

Lembrando alguns dos axiomas contidos na obra Princípios de (Uma)

Ciência Nova (1725), de Giambattista Vico,200

200 VICO, Giambattista. Os Pensadores, Seleção, trad. e notas de Antônio Lázaro de Almeida Prado, São Paulo, Abril Cultural, 1974.

é possível iniciar esta reflexão, já

muito antiga, acerca dos problemas acima mencionados. Segundo o autor, “O

humano arbítrio, incertíssimo por sua própria natureza, consolida-se e se

determina pelo senso comum dos homens no que tange às necessidades e

utilidades humanas, que são as duas fontes do direito natural das gentes. (...) o

direito natural das gentes foi ordenado pelo costume, pois nasceu com os

costumes humanos que surgiram da natureza comum das nações (que é o objeto

preciso dessa ciência) e tal direito preserva a sociedade humana. Além disso, não

há nada mais natural do que celebrar os costumes naturais (...) este mundo civil

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 155

foi certamente feito pelos homens, pelo que se podem e devem encontrar os seus

princípios nas modificações da nossa própria mente humana”.

A vaidade das nações é expressa pela historiografia, lugar em que os

historiadores normalmente se ocupam apenas dos feitos gloriosos na história de

seus respectivos países, sem revelar outros aspectos menos dignos de suas

nações. A vaidade dos eruditos e o espírito acadêmico que move os historiadores

tende a fazê-los crer que, no passado histórico, estão a dialogar com seus pares.

Salvo em uma tentativa de reconstituição da história imanente do pensamento, a

partir de personalidades, tal fato não ocorre. Os fatos demonstram que, na

maioria das vezes, a proeminência de personalidades históricas não coincide com

a reflexão histórico-filosófica. Para Vico, é falsa a ideia de que quando nações

apresentam instituições análogas, necessariamente copiaram-se entre si. Embora

seja possível admitir influências entre nações, o mais correto seria afirmar que

nenhuma sociedade aprende da outra aquilo para a qual não estava previamente

preparada (grifo meu). Além disso, a proximidade da época não torna os antigos,

por exemplo, mais bem informados sobre um período histórico. Tais reflexões do

autor nos permitem pensar outras questões vinculadas aos aspectos culturais

como a linguagem e o mito.

Linguagem e mito exprimem a evolução do espírito humano. O mito e a

linguagem mítica possuem princípios classificadores, uma lógica imanente que

opera na tentativa de apreensão da natureza com os recursos inerentes às

possibilidades da consciência humana. Portanto, antes de considerar a arte como

objeto de prazer e embelezamento e os mitos como ficções extravagantes de um

tempo de obscuridade, lembremo-nos de Vico, quando diz que “as fábulas são as

primeiras histórias dos povos gentios, e podem ser imensamente relevantes e

informativas desde que corretamente interpretadas". Eis por que motivo ele dirá

que “a verdade só pode ser pensada como sendo uma experiência relativa ao

tempo [sendo que,] sob essa ótica, não há narrativa mestra ou perspectiva

realista que forneça um repertório de fatos fora do mito”.201

201 BERGSON, Henri, Matéria e Memória, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 290.

156 Ruth M. Chittó Gauer

A propósito do mito, convirá recordar aqui, com Lévi-Strauss,202 que o mito

não é poema, nem ciência, nem filosofia, embora coincida com o primeiro por

seus processos (função poética), com a segunda por sua lógica e com a última

por sua ambição de nos fornecer uma ideia do universo. Sob esse enfoque, a

verdade científica (e a ciência, para Lévi-Stauss, traduz o mito por meio de

sequências de proposições) constitui-se em uma narrativa que pretende explicar a

lógica do universo. Quererá isto dizer que a verdade científica, tal como é

concebida na tradição ocidental moderna, assenta na construção de narrativas de

tipo mítico? Há aqui uma situação algo paradoxal. De fato, o mito é constituído de

uma lógica que não se encaixa na concepção do saber moderno, que criou uma

linguagem desvinculada do mito. Mas, por outro lado, se tivermos em conta que o

ideal de cumulatividade que, no contexto da modernidade, sustenta a verdade,

inscreve esta última em um tempo histórico que solicita um esforço narrativo,

então aquela hipótese merece, ao menos, ser colocada, pois, como explica

Durand,203

As linguagens e as idades podem ser exemplificadas pelas palavras do

autor: “Os primeiros povos foram poetas”, e os primeiros códigos jurídicos foram

expressos em forma de versos. Também os primeiros historiadores eram poetas.

Na Idade dos deuses havia a linguagem ritual – das mãos, por exemplo, ou

escritas sagradas como os chineses e egípcios. Na Idade heroica, simbolismos

convencionados (heráldica, por exemplo). Na Idade dos homens, os alfabetos

propriamente ditos, baseados na razão, sinônimo de civilização. Na idade dos

todo o mito é uma relação com o tempo, é, sobretudo, “uma procura

do tempo perdido”. Mais ainda: o mito “é um esboço de racionalização sobre um

mundo à partida não coincidente com a razão desse esforço, pois utiliza o fio do

discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em

ideias”. Não choca reconhecer, portanto, usando a afirmativa do autor, que

também a ideia de uma verdade absolutizada pela ciência moderna, ao pretender

conferir uma ordem a um mundo não previamente organizado de acordo com os

seus cânones, formulou-se narrativamente. Não podia formular-se a não ser

narrativamente.

202 LÉVI- STRAUSS, Claude. O pensamento Selvagem. Campinas: Papirus, 1989. 203 DURAND, Gilbert, As Estruturas Antropológicas do Imaginário, São Paulo, Martins Fontes, 1997.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 157

Deuses, todas as coisas são obras de Deus. E na idade contemporânea, o que

dizer da violência, dos valores, da justiça, dos mitos, de Deus, da razão e da

civilização?

A civilização ocidental vive, no mundo contemporâneo, um momento em

que o ceticismo e o dogmatismo nos levam à impossibilidade do conhecimento.

Ambos estão equivocados na medida em que nos colocam frente ao imobilismo,

esquecendo que vivemos em movimento. A vida é movimento para frente e o

equilíbrio é dinâmico, já que fundado justamente no movimento. O ceticismo

impulsionou o fim do dogmatismo, das certezas científicas criou, por um lado, um

imobilismo e, por outro, não conseguiu eliminar o movimento. O fluxo, desde

Heráclito, tornou-se rei no pensamento ocidental. A lógica do ser é o movimento,

a inovação, inscrita no tempo. A priorização do Devir sobre o Ser, levou à busca

do progresso, com base no tempo linear estruturado no projeto progressista. Com

essa premissa, acreditou-se ser possível controlar o futuro. Futuro de felicidade,

onde o paraíso terreno substituiria o paraíso divino. A dinâmica da humanidade

retratada pela inovação criou, nas palavras de Gilles Lipovetsky,204

Essas constatações nos encaminham para o pensamento sobre a

necessidade de mudar nossa maneira de avaliarmos os reagrupamentos sociais.

Maffesoli

a era do após-

dever. Na sociedade atual, vemos o indivíduo concebendo a si mesmo como seu

próprio universo. O horizonte esgota-se nele mesmo. É a política do cada um por

si, fruto de uma cultura hedonista-utilitarista, em contraposição à cultura do dever,

de essência teológica ou resultante do culto laico da abnegação. E, segundo

Lipovetsky, não devemos lamentar isso, porque o nosso mundo parece mais

necessitado de responsabilidade ética do que de cruzadas morais heroicas.

205

204 LIPOVETSKY, Gilles, “Prefácio e Introdução. A era do após-dever”, Edgar Morin e Ilya Prigogine (Orgs.), A sociedade em busca de valores – Para fugir à alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo, Lisboa, Piaget, 2001.

propõe a utilização do conceito de Stimmung isto é, atmosfera, tal

qual pensada pelo romantismo alemão, ou ainda o conceito inglês de feeling, para

descrever essas novas formas de relação social. A ênfase da análise é o que

reúne essas novas formas de socialidade e não o que as separa. O mito

apresenta, para esses grupos, uma função agregadora, ultrapassa a lógica

205 MAFFESOLI, Michel, O Tempo das Tribos. O declínio do Individualismo nas sociedades de Massa, Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1987.

158 Ruth M. Chittó Gauer

identitária, dá lugar a uma estética do nós, revelando-se um misto de indiferença

e de energia pontual. Há um desprezo por toda atitude projetiva e uma grande

intensidade na ação, indicando a supervalorização do presente (presenteísmo).

A sociedade deixou de ser uma totalidade unificada e integrada a uma

transcendência para tornar-se aberta. Por outro lado, a abertura planetária não

eliminou a tendências de certas especificidades. No mundo contemporâneo

passou-se a conhecer "novas" formas de identificação: as gangues são um bom

exemplo de uma tentativa, talvez, de resgate de sociabilidades perdidas. Este

conceito, trabalhado por Maffesoli,206

Esses indicadores de mudança nas formas de relação social ocorrem

simultaneamente e criam problemáticas instigantes e muito diferentes das que

afligiam os homens do século XIX e do início do século XX. Convivemos, hoje,

com uma complexidade tecnológica que caminha rapidamente para a produção

de conhecimento desvinculado das instituições, tradicionalmente as únicas

responsáveis pelo avanço da ciência. Lyotard

constitui-se em uma tela para onde

convergem as análises das sociedades complexas após a segunda metade do

século passado.

207

A busca do homem que vive essa fragmentação não pode ser mais

comparada à mônada, átomo perfeito que lembra Deus, criado pelo modelo

Iluminista; com capacidade máxima de síntese, o homem possui um cérebro

temporário e improvável, ambos interagem em um não-espaço cosmolocal. A

menciona a criação de um centro

de memória que estará para além do ser e de qualquer possibilidade de controle.

Caminha-se para a elaboração de outro tipo de síntese do conhecimento. Logo,

teremos em breve a “extinção” da universidade como único local de produção e

circulação privilegiado de conhecimento. As novas tecnologias (eletrônica e

informática) estão possibilitando a criação de novos bens culturais, fascinantes,

velozes, diversos, é a era da globalização do homem. Será isso progresso? Esta

capacidade cada vez maior de síntese global da memória acaba por constituir, ao

fim e ao cabo, a memória de ninguém, o que implica a dissolução total do poder

sobre o conhecimento, assim como das tradições.

206 MAFFESOLI, Michel op. cit., pp. 15-28. 207 LYOTARD, Jean-François, O Inumano, Lisboa, Estampa, 1998, pp. 69-70.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 159

busca desse homem hoje é o grande desafio, qual o seu referencial? Qual o

elemento que pode ser o ponto seguro se a terra deixou de ser? A mudança de

referencial da terra para a luz (velocidade) teria levado o homem a um egotismo

supremo. São as muitas perguntas que fazemos e para as quais não temos

respostas acabadas. O que fazer com a ciência? Esta é uma das perguntas que

Paul Virilo208

A identificação parece ser geralmente mais forte quando se trata da família,

do local de habitação, do local de nascimento e do Estado nacional. Tais fatos

permitem localizar pontos de referência identitária. Como lembra Lévi-Strauss,

faz quando analisa a troca de referencial – da terra para a luz

(velocidade, tempo-luz), como centro de referência. O autor afirma que “é difícil

imaginar uma sociedade que negue o corpo, do mesmo modo que foi

progressivamente negando a alma, e, todavia, é para ela que nos

encaminhamos”. Esta dificuldade parece hoje resolvida em parte pelas novas

tecnologias da interatividade instantânea. Do vazio do ambiente virtual as técnicas

de comunicação são, simultaneamente, a origem e o fim.

209

A constatação da existência de novas formas de relação indica que

estamos vivendo uma transformação que ocorre com uma velocidade gigantesca,

impedindo assim que se capte uma imagem coerente das novas identificações.

Nas palavras de Emmanuel Lévinas,

em suas conclusões sobre identidade, esta é "uma entidade abstrata sem

existência real, muito embora seja indispensável como ponto de referência".

Nossas referências se encontram em um processo veloz de mudanças. Talvez

estejamos “fortalecendo” a produção de uma nova identificação unificada por uma

trans-história. Isso não significa a ressurreição de ideologias nacionalistas ou

regionalismos vinculados às ideias puristas, mas sim a celebração do hibridismo,

da impureza, da mistura, que traz novas e inesperadas combinações culturais, as

quais produzirão um novo eu, cuja identificação quebre os parâmetros da visão

iluminista.

210

208 VIRILIO, Paul, A inércia polar, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1993, pp. 124-125.

quando pensamos que conhecemos o

outro é porque nos falta conhecimento. A estrutura dessas relações sociais exige,

209 LÉVI-STRAUSS, Claude, (Org.), La Identidad, Paris, Grasset, 1977, pp. 11-39. 210 LÉVINAS, Emmanuel, Entre Nós. Ensaios sobre a alteridade, Rio de Janeiro, Vozes, 1997, p. 36.

160 Ruth M. Chittó Gauer

de cada indivíduo, em termos de autoproteção e pragmatismo exacerbado, maior

prudência, assim como formas mais elaboradas e conscientes de

autoregulamentação, acompanhadas de uma diminuição da espontaneidade no

agir e no falar, no processo de modelagem das relações sociais, tal como refere

António Damásio:211

Esses fatos permitem pensar que estamos caminhando para a superação

do estado de natureza definitivamente, e assim, superando a análise kantiana.

Nesse sentido, poderíamos dizer que estaríamos superando o eterno retorno à

natureza e entrando em um momento no qual a violência, vista como a condição

natural, estaria desaparecendo. O que vemos, no entanto, é um aumento de

todas as formas de violência.

“o self central, uma entidade transitória, incessantemente

recriada para cada objeto com o qual o cérebro interage. Nossa noção tradicional

de self, porém, está ligada à ideia de identidade, e corresponde a um conjunto

não transitório de fatos e modos de ser únicos que caracterizam uma pessoa”. A

resistência à fusão da própria unidade de sobrevivência com uma unidade maior,

ou até à absorção por esta, prende-se à necessidade de liberdade e de

independência política, conceitos sujeitos à avaliação relativizante dos mais

diversos grupos de interesse. A ideia de perder a identidade, a independência

política ou econômica marca a história do indivíduo e da nação; para muitos, tal

perda seria equivalente a sofrer uma morte coletiva. A transmissão contínua que

sobreviveu pela tradição, configurando a identidade nacional, perde seu sentido,

fragmenta a sua imagem, o que leva a uma sensação de morte, a morte da

identidade construída por meio do individualismo.

No ensaio sobre a dádiva, Marcel Mauss212

211 DAMÁSIO, António, O Erro de Descartes: Emoção, Razão e Cérebro Humano, Lisboa, Publicações Europa-América, 1995.

afirma que o anagrama ou a

troca dádiva não são episódios curiosos de antropólogos que explicam a

reversibilidade da troca, do tempo cíclico, da produção, da destruição, etc.,

transformando-se em um modelo de simulação. No entanto, convém lembrar que

o individualismo moderno criou a impessoalidade, condição básica para o

surgimento dos grandes códigos e que essa mesma impessoalidade permitiu que

212 MAUSS, Marce, Sociologia e Antropologia, v. II, São Paulo, EPU/EDUSP, 1974, pp. 39-49.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 161

o dinheiro tornasse impessoal todo processo de trocas. Nesse sentido, Simmel213

O paradoxo, fundador do individualismo, levou à dissolução das antigas

formas de enquadramento e não mostra, em qualquer caso, aquilo a que se

poderia chamar o "grau zero" dos valores.

explica que o “caráter impessoal e não colorido, que é típico para o dinheiro em

oposição aos outros valores específicos, tem de se reforçar continuamente ao

longo da história cultural na medida em que o dinheiro tem de substituir mais e

mais coisas cada vez mais variadas”. Sob esse enfoque a análise sobre o

anagrama, ou a troca dádiva de Mauss já não possui o mesmo papel que possuía

em sociedades simples. O dinheiro, que é impessoal como as leis, vulgares, e

que pode ser a medida de todas as coisas, finalmente coisificou o humano.

214

1) A primeira e mais longa pode ser classificada como a fase da moral-

teológica, que vai até o Iluminismo. A verdade moral está na Bíblia. Portanto, nos

mandamentos divinos. Aqui as sanções post mortem – juízo final – são

importantes para os ditames morais.

Pelo contrário, o indivíduo é instado

“a emancipar-se da tutela tranquilizante, mas penosa do dever para se entregar

ao comando de uma ética da responsabilidade, por essência liberal e pragmática”.

E por ser deveras custosa essa tarefa, por vezes o indivíduo tenta dela escapar.

Inicia Lipovetski dizendo que os valores morais são sempre os mesmos desde o

Decálogo. A ética, porém, tem uma história, assim como outros ramos do saber.

Por tratar-se de um fato social, tal história vincula-se a diferentes momentos que

são identificados por imprimirem prioridades éticas. Estas fases, por envolverem

um “sentido social de que se revestem os ideais éticos e as regras de conduta”,

devem ser questionadas, pois se muitas permanecem invariáveis ao longo dos

séculos, outras “assumem significados sociais diferentes”. Dentro desta

perspectiva, Lipovetski define três fases essenciais da história da moral ocidental:

2) A segunda é laico-moralista e se dá nas sociedades modernas. A moral

é independente dos dogmas religiosos-cristãos. Os princípios morais passam a

ser pensados a partir da racionalidade (a deusa razão) e são universais porque

presentes em todos os homens (todos os homens nascem dotados de

213 SOUZA, Jessé; OËLZE, Berthold. (Orgs.), Simmel e a Modernidade, Brasília, Editora da UNB, 1998, pp. 25-30. 214 LIPOVETSKY, Gilles, op. cit., pp. 22-30, 32.

162 Ruth M. Chittó Gauer

racionalidade). A moralidade é possível mesmo para os pagãos e hereges e não

precisa dos castigos do inferno para ser autêntica. O homem pode ser virtuoso

sem a ajuda de Deus e do dogmatismo teológico. O paradoxo reside no fato de

que ao independentizar-se da religiosidade, o processo de secularização sacou-

lhe um aspecto essencial, que é o do dever absoluto: a ética do sacrifício. A Igreja

continuou a influenciar fortemente a cultura do dever: austeridade e

repressividade que pode ser lida como a secularização do direito penal.

3) A terceira fase da moral, que Lipovetski chama de pós-moralista,

estimula os desejos, o ego, a felicidade (Jorge Luís Borges: a obrigação de todas

as coisas é ser uma felicidade, se não são uma felicidade, não se prestam a

nada), o bem-estar individualista, em detrimento da abnegação e da cultura da

ética dos sacrifícios. A cultura de comunicação-consumo de massa aniquilou com

os mandamentos morais difíceis. Agora a sociedade caminha para a ausência da

necessidade do dever, da obrigação moral “intransigente e disciplinadora”. A

própria velocidade, que promove o presenteísmo, encarrega-se de dissolver as

permanências, entre elas, a própria dignidade.

A cultura ocidental contemporânea transformou o humano em utilitarista,

dissolveu as formas de enquadramento e autocontrole do indivíduo; um exemplo

emblemático foi o movimento feminista, que solapou o esforço em prol dos

benefícios imediatos e midiáticos: “A especulação tomou o lugar da produção”. As

sociedades se voltam para a transgressão dos princípios éticos e jurídicos

(corrupção, remuneração escondida, fraude fiscal). Essas transgressões são

comuns em todos os países: o exemplo dos EUA, onde um em cada cinco

contribuintes comete fraudes sobre o imposto de rendimentos, pode ser indicado

para a maioria dos países. O caso brasileiro não é diferente, e pensamos que seja

ainda mais grave. Quem nunca pecou que atire a primeira pedra. No Brasil, o

pensamento dominante ainda é da chamada Lei do Gérson.

Há um enfraquecimento das instâncias formais de controle social (igreja,

sindicato, escola, família, entre outras), assiste-se ao crescimento de guetos:

famílias sem pai (ou com vários pais), tráfico de drogas (onde muitas vezes o

traficante é o pai), violência e delinquência aumentadas em níveis que fogem ao

controle formal. A sociedade perde os pontos de referência tradicionais. A

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 163

ausência de padrões de referência ética (des)estrutura a sociedade, que já não

acredita no futuro.

Mas esta é apenas uma das facetas, pois não estamos no grau zero dos

valores morais. Afirmamos um núcleo estável de valores (morais, éticos): direitos

humanos, honestidade, dignidade: “O mundo da autonomia das morais

contemporânea não leva à desordem sem freio dos costumes: a cultura, cujo

funcionamento ocorre dentro de um caos organizador”. A liberdade trava, limita e

impede a própria liberdade. Outra exemplificação do “caos organizador” é o fato

de que já não se apela para morrer pela Pátria, embora a democracia nunca

tenha estado em tão “boa forma”. Por fim, Lipovetski acaba com o mito do macho

provedor, ao falar que “a cultura do fim do século já não limita imperativamente e

idealmente os homens” (ensino da moral do trabalho), mas capacita a

humanidade a empenhar-se cada vez mais em suas atividades profissionais,

sendo, sobretudo, as mulheres que assim o fazem.

Para Lipovetski, a moral a la carte “não é a ideia do dever, enquanto tal,

que se afunda, mas a ideologia do dever disciplinador e hiperbólico, ou seja, o

valor da renúncia suprema a si próprio, no altar da Família, da História, do

Partido, da Pátria, da Humanidade”215

215 LIPOVETSKY, Gilles, op. cit., pp. 34-37. Para o autor, o ideal altruísta teve uma espécie de renascimento, pois, apesar de estar fora de moda, isso não impede que um em cada dois franceses contribua “com dinheiro para um acontecimento lançado por uma operação mediática excepcional. Dois franceses em cada três apoiaram a instauração do Rendimento Mínimo de Inserção. Existem em França dois milhões de voluntários, cujo trabalho efetuado é equivalente ao de 500.000 assalariados a tempo inteiro. Na Inglaterra e nos EUA, entre 40 a 50 por cento dos adultos são, de vez em quando, voluntários. É sempre o princípio da ‘desordem organizadora’ que funciona”. Toda esta argumentação é encaminhada para criticar a teoria de um caos totalmente desorganizado. Igualmente como ocorre com a tolerância – que é a segunda virtude a ser inculcada nas crianças, sendo que ela se tornou um valor de massa – afasta as ideias apocalípticas sobre o nosso tempo, apesar do quadro preocupante. Essa ideia sucumbe em razão do individualismo. Cita, como exceção, o caso da Madre Teresa, ao que dizer que, embora sejam elogiáveis suas ações altruístas, essas preferências “já não tem nada que ver com a interiorização de uma moral exigente em si mesma, com a prioridade incondicional do altruísmo. Isso está deslocado no tempo. Hoje as boas maneiras são consideradas mais importantes que a solidariedade. O autor refere que “quando se pede para destacar, em uma lista de 17 qualidades morais, as cinco virtudes que desejaríamos ver prioritariamente inculcadas nas crianças, apenas 15 por cento dos europeus se preocupam em mencionar o altruísmo. A obrigação de socorrer o outro ocupa apenas o 15° lugar entre 17. Ao mesmo nível da paciência! Quando se interroga a faixa dos 13-17 anos sobre aquilo que os pais verdadeiramente lhes ensinaram, 75 por cento falam da necessidade de trabalhar bem para ter um bom emprego. Mas, o respeito pelos princípios morais é apenas citado uma vez em cada quatro: a própria ideia da educação moral perdeu o valor”.

. Os exemplos que citamos, na nota abaixo,

podem servir de parâmetro para constatar que as transformações ocorridas após

164 Ruth M. Chittó Gauer

a segunda metade do século XX dizem respeito às sociedades ocidentais como

um todo. Para comprovar tais referências é suficiente consultar as redes de

grupos de internautas e verificar a importância da busca da felicidade a qualquer

custo. Essas transformações estão muito bem refletidas nas tribos urbanas, na

supervalorização das festas, na cultura do presente, o que vale é o aqui e o

agora. No que diz respeito à violência, basta que relembremos de diferentes tribos

como: gangues urbanas, torcidas organizadas, a delinquência juvenil, o aumento

de pequenas violências no cotidiano, entre outras questões não menos

importantes.

Talvez aqui coubesse inserir a constatação de Max Weber,216

Esses fatos não indicam que exista menos moral, mas que aquela moral

tradicional deixou de ser socialmente legítima (o culto do dever de sacrifício),

passando à moral a la carte, ou seja, sacrifícios altruístas mínimos,

descomprometidos, “indolores”, que podem ser escolhidos. A família sobrevive,

mas com a condição de que possa divorciar-se, viver em concubinato, ter filhos

por encomenda. As práticas da solidariedade, da caridade pela tele-entrega ou do

0800 para doações são reveladoras dessas transformações. Como a caridade

mediática, “a moral não desaparece, torna-se sentimental, a la carte, intermitente

e, ao mesmo tempo, espetacular, melhor dito, epidérmica, última forma do

consumo interativo de massa”.

segundo a

qual “o fim precípuo de nossa época, caracterizada pela racionalização, pela

intelectualização e, principalmente, pelo ‘desencantamento do mundo’ levou os

homens a banir da vida pública os valores supremos e mais sublimes”. Seria o fim

das ilusões?

217

216 WEBER, Max, Ciência e Política. Duas Vocações, São Paulo, Martin Claret, 2002, p. 57.

Como visto, a tendência mais forte de nossa

sociedade atual é por uma “moral sem obrigações nem sanções”. Há, no entanto,

outra tendência que busca o comprometimento moral mais arraigado: antiaborto,

censura pornográfica, extremismo higienista, repressão total em matéria de

drogas, entre outras repressões. Temos mais necessidade do alargamento e

proliferação das virtudes mais modestas, como honestidade e respeito às leis, por

exemplo, do que de grandes cruzadas moralizantes, incapazes de resolver os

217 LIPOVETSKY, Gilles, A era do após-dever. IN: A sociedade em busca de valores. Edgar Morin Ilya Prigogini (organizadores). Lisboa: Piaget, 2000 p. 29.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 165

concretos problemas sociais. Daí, priorizar a ética da responsabilidade, fundada

em uma ação ético-liberal e, sobretudo, pragmática, capaz de estabelecer o

melhor para os indivíduos e não o bem idealizado.

Vários historiadores e sociólogos, entre eles Simmel,218 analisam os

problemas da cultura moderna. Simmel anuncia a coisificação do indivíduo pelo

dinheiro. Da mesma forma, vemos Elias219 esmerar-se para explicar a sociedade

dos indivíduos e a violência como característica mais regular e manifesta na vida

cotidiana. Por outro viés, Dumont220

A preocupação com os problemas da exclusão nas áreas tradicionais do

conhecimento foi enfocado com outras perspectivas. Alguns membros da

chamada “Escola de Chicago”, ao se debruçarem sobre os problemas da

urbanização relacionados com o continuum rural urbano criaram um conceito de

cultura urbana. Nas análises, os autores desta “Escola” abriram espaço

importante para pensar a liberdade quando debateram o anonimato das grandes

metrópoles. A desorganização da cultura vista no processo de urbanização

explicitou, por um lado, os problemas da cidade, por outro, permitiu observar o

afrouxamento dos laços sociais nas sociedades campesinas que migraram para

áreas urbanas. Robert Ezra Park, Louis Wirt, discutiram a desorganização da

cultura no processo de urbanização enquanto Oscar Lewis, entre outros refutaram

essa posição preferindo analisar a cultura da pobreza. Nas sociedades

refere que “a grande contribuição da

sociedade moderna foi o aparecimento do indivíduo caracterizado pelo

rompimento de amarras que o prendiam à sociedade tradicional”. No entanto, a

hierarquia, para Dumont, permanece, e esse rompimento criou outras amarras no

que se refere aos princípios de organização, dos valores, do surgimento do direito

natural, do direito subjetivo, vinculado à sua qualidade única de ser humano

dissociado do ser social e político. Ao descreverem a lógica da individualização,

todos são sensíveis à ambivalência desta modernidade que, simultaneamente,

produz o indivíduo na sua autonomia e, ao mesmo tempo, o expõe. O paradoxo

levou à violência da inclusão/exclusão.

218 SOUZA, Jessé; OËLZE, Berthold. (Orgs.), op. cit. 219 ELIAS, Norbert, A busca da excitação, Lisboa, Difusão editorial, 1992. 220 DUMONT, Louis, O Individualismo. Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, Rio de Janeiro, Rocco, 1985.

166 Ruth M. Chittó Gauer

tradicionais onde ocorreu o processo de urbanização haveria uma maior

mobilidade o que permitiria ampliar os espaços de liberdade. A questão

relacionada ao estilo de vida urbano e à abertura para o anonimato e, com ele, o

afrouxamento do controle social tradicional não significa maior liberdade. No

entanto, foi nos centros urbanos contemporâneos que o indivíduo desvinculou-se

dos laços de dependência, das hierarquias tanto sociais como as familiares

características das sociedades tradicionais. O lugar fixo abriu espaços para a

mobilidade a qual se constituiu como a base para novos estudos sobre a

liberdade individual.

O exemplo da armadura (que coincidentemente era peça importante da

indumentária medieval) pode esclarecer que o indivíduo moderno saiu dela (que o

encerrava, o sustentava, o protegia) para deparar-se com a sua assimilação. Isto

é, liberta-se dela, mas, ao mesmo tempo, a incorpora. Em uma explicação

simples: o sujeito liberta-se da armadura, mas o preço a ser pago por essa

libertação é a incorporação da própria armadura.

A nova posição, ou seja, a impossibilidade de submeter-se à ordem

exterior, leva-o a “opções de vida, opções morais” (moral a la carte), “opções

existenciais”, que antes não tinha de fazer, porque lhe eram impostas pela

estrutura social, caracterizadamente holística.221

O Ocidente moderno criou essa categoria, o indivíduo, que nasceu sob a

égide do paradoxo acima mencionado. Os desdobramentos que ocorreram após

esse fato são de todos conhecidos: o surgimento dos estados nacionais, dos

grandes códigos modernos, da visão de unidade totalizada da cultura ocidental,

da "eliminação" das diferenças, da busca da igualdade e da liberdade como

fundamentos estrutural da sociedade e, ao mesmo tempo, como projeto a ser

alcançado, graças às crenças no projeto político e a um tempo linear, que se

instalou a partir das revoluções do final do século XVIII. O fim das desigualdades

levaria ao surgimento de sociedades mais justas, nas quais a humanidade

221 Holística deriva de holismo, termo de sentido filosófico que significa a tendência, supostamente própria do universo, à síntese de “unidades em totalidades organizadas” (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 730). Em outra fonte léxica, de maior precisão conceitual, holismo é a “teoria segundo a qual o todo é algo mais do que a soma das suas partes” (André Lalande, Vocabulário técnico e crítico da filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 1269).

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 167

poderia ser considerada igual e, por óbvio, possuir os mesmos direitos. No

entanto, concordamos com Delmas-Marty222

A sedução do direito parece impossível de ser dispensada. Se isso fosse

viável, teríamos a possibilidade de poder identificar o discurso em nível de senso

quando refere que "não devemos

procurar a palavra Humanidade nos manuais de introdução ao direito. Não a

encontraríamos". Complementando a análise, afirma: “no campo jurídico, a

humanidade é, na verdade, um recém-nascido. [...]. Da mesma forma, também

não devemos procurar a palavra “Homem” nos manuais de direito”. Delmas-Marty

desenvolveu pesquisa em manuais de direito. Apesar de ter consultado uma

dezena de clássicos de introdução ao direito encontrou apenas em dois a palavra

"Homem", e em nenhum a palavra “humanidade”. Não é de se admirar que o

direito não tenha por função principal protegê-los. O título sugestivo do capítulo,

Acesso à humanidade em termos jurídicos, nos leva a pensar sobre a questão

dos direitos humanos. Esta noção, embora balizada atualmente, na realidade é

extremamente subversiva. Significa qualquer Homem, independentemente de

qualquer condição. Seria possível pensar dessa forma na China, por exemplo? A

autora refere que nesse país há duas maneiras de traduzir “direito do homem". Na

tradução oficial, os termos que se empregam remetem à ideia de "força e de

Poder". Nesse sentido, para o poder do estado sobre o Homem e não aos direitos

do Homem contra o Estado, tal como pensado no Ocidente. A busca da

igualdade, do modelo único e do domínio da potência norte-americana, modelo

“exemplar” dessa unidade de dominação, criou a forma mais expressiva de

violência, o terrorismo, que foge ao controle do estado e das tecnologias mais

modernas de controle. No entanto, é importante pensar sobre a invisibilidade dos

termos humanidade e humano nos manuais de direito. Os direitos humanos

seriam a conquista mais importante do direito natural moderno. O que vemos é

uma grande maioria tratada como os outros do direito. Problemas como o desvio

social, ausência do estado, bolsões de miséria e violência, apenas para citar os

exemplos mais conhecidos, nos levam a pensar sobre o descaso do estado frente

a essa invisibilidade.

222 DELMAS-MARTY, Mireille, “Acesso à humanidade em termos jurídicos”, O desafio do século XXI. Religar os conhecimentos, Lisboa, Piaget, 1999, p. 227.

168 Ruth M. Chittó Gauer

comum, pois ele permite observar indicadores que nos levariam a concluir que na

sociedade atual não há preparação para se lidar com o erro. A verdade dos fatos

circunscritos e legitimados pelo direito transmite uma estabilidade aparente,

simultânea a uma realidade única. Nesta forma de pensar a humanidade não há

lugar para a diferença, o que impede relativizar em termos jurídicos. O discurso

pensado como projetivo, tal como o pensamento moderno o instituiu, leva ao

consensual, o que impõe um totalitarismo circunscrito pelo determinismo do único,

dos direitos humanos. A busca de um pensamento heterotópico, não consensual,

é eliminada pelas teorias do consenso, cuja função é tornar invisíveis as

manifestações dos diferentes. Os resquícios dos totalitarismos, em todos os

níveis sociais e políticos, vêm recebendo reações diversas. As diferenças se

manifestam com violência, eliminando os discursos dos direitos, tanto no interior

dos estados-nações como internacionalmente. O consenso sobre a ideia de

totalidade tem levado a política internacional a ações de violência brutal,

legitimadas pelos direitos internacionais. O custo dessa forma de política começa

a ser cobrado.

Para além dessa façanha, derrubou o que restava da crença na unidade,

na igualdade, no domínio controlado pela tecnociência e no poder do Império.

Hoje a violência ganha dimensões que ultrapassam qualquer racionalidade. Os

direitos humanos, nascidos sob a égide da proteção aos indivíduos, já não

possuem o lugar que almejavam e já não atendem às complexas relações

estabelecidas internamente e em nível internacional.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 169

BIBLIOGRAFIA

BACHELARD, Gaston. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973. BASTIDE, Roger. Sociologia e Psicanálise. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1974. BAUMER, Franklin L Baumer. O Pensamento Europeu Moderno. v. I, v. II, Vila Nova de Gaia, Edições 70, 1990. BECK, Ulrich. A Sociedade de Risco. Barcelona, Paidós, 1998. BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”, Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política: ensaios de literatura e história da cultura. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987. BENVENISTE, Èmile. Le vocabulaire dês instituitions indo-européennes. v. I, Paris. BERGSON, Henri. Matéria e Memória. 2. ed., São Paulo, Martins Fontes, 1999. ______. O cérebro e o pensamento: uma ilusão filosófica. Trad. Franklin. Leopoldo Silva. Os Pensadores – Cartas, Conferências e Outros Escritos. São Paulo, Abril Cultural. BHABHA, Homi K.. O Local da Cultura. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001. BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Kant. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1984. CAILLOIS, Roger. O Mito e o Homem. Lisboa, Edições 70, 1986. CARVALHO, Salo. “Criminologia e interdisciplinaridade”, Ruth M. Chittó Gauer (Org.), Sistema penal e violência. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007.

170 Ruth M. Chittó Gauer

COLLINGWOOD, R. G.. A Ideia de História. Lisboa, Editorial Presença, s/d. DAMÁSIO, António. O Erro de Descartes: Emoção, Razão e Cérebro Humano. Lisboa, Publicações Europa-América, 1995. DELMAS-MARTY, Mireille. “Acesso à humanidade em termos jurídicos”, O desafio do século XXI. Religar os conhecimentos. Lisboa, Piaget, 1999. DESCARTES, René. Discurso do Método. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981. ______. Discurso do método. Lisboa, Edições 70, 1993. ______. Os Pensadores XV. São Paulo, Abril Cultural, 1973. DEVEREUX, Georges. Etnopsicoanálisis Complementarista. Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1975. DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo, Perspectiva, 1976. DUMONT, Louis. O individualismo. Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro, Rocco, 1985. DURAND, Gilbert. Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro, Difel, 2001. ______. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo, Martins Fontes, 1997. DURKHEIN, E. Reglas del metodo sociológico. Madrid, Morata, 1974. ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. Lisboa, Cosmos, 1970. ELIAS, Norbert. A busca da excitação. Lisboa, Difusão editorial, 1992.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 171

ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro, Zahar, 1997. ERIBOM, Didier e LÉVI-STRAUSS, Claude. De Perto e de Longe. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990. ERIKSON, Erik H. Identidad, Juventud y Crisis. Buenos Aires, Paidós, 1968. FERRY Luc. Homo Aestheticus. A Invenção do gosto na era democrática. Coimbra, Almeida, 2003. FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro, Ed. Nau, 1999. FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. São Paulo, Imago, 2000. GASSET, José Ortega y. La rebelión de las masas (1930), Obras, v. VI, Madrid, Alianza Editorial, 1946. ______. Meditações do Quixote, São Paulo, Livro Ibero-Americano, 1977. GAUER, Ruth M. Chittó. O reino da estupidez e o reino da razão. Rio de Janeiro: Lúmen & Júris, 2006. GEERTZ Clifford. Entrevista de Victor Aiello Tsu com Clifford Geertz originalmente publicada na Folha de São Paulo de 18 de fevereiro de 2001. ______. Nova Luz sobre a Antropologia. São Paulo, Jorge Zahar, 2001. ______. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978. ______. El Antropólogo Como Autor. Barcelona, Paidos, 1989 GIL, Fernando e MARTINS, Rui Cunha, Modos da Verdade, In. Revista de História das Ideias. Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, v. 23, 2002.

172 Ruth M. Chittó Gauer

GOFFMAN, Erving. Estigma. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. ______. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo, Editora Perspectiva, 1974. GREENBERG, e MITCHELL. Relações Objetais na Teoria Psicanalítica. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994. GUSDORF, George. Les Sciences Humaines et la Pensée Occidentale. Les principes de La Pensée ao Siècle des Lumières. v. IV, Paris, Payot, 1967. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 1997. HARRIS, Marvin. El Desarrollo de la Teoría Antropológica. Una historia de las teorías de la cultura. Madrid, Siglo Veintiuno, 1985. KARDINER, Abraham. Fronteras Psicológicas de la Sociedad. México, Fondo de Cultura Económica, 1955 e El Individuó y su Sociedad. México, Fondo de Cultura Económica, 1945. KELSEN Hans. In: SHIRLEY, Robert, W. Antropologia jurídica. São Paulo, Saraiva, 1987. ______. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado, 4 ed., Coimbra, Armênio Amado, 1979. KERCKHOVE, Derrick de. A Pele da Cultura (Uma investigação sobre a nova realidade eletrônica). Lisboa, Relógio D'Água Editores, 1997. KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científica. São Paulo, Perspectiva, 1982. LEIBNIZ, Gottfried W. Os Pensadores XIX. São Paulo, Abril Cultural, 1974. LÉVI- STRAUSS, Claude. O pensamento Selvagem. Campinas: Papirus, 1989.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 173

LÉVI-STRAUSS, Claude. (Org.). La Identidad. Paris, Grasset, 1977. ______. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1976. ______. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1970. ______. O Pensamento Selvagem. 3ª ed., São Paulo, Papirus, 2002. ______. As Estruturas Elementares do Parentesco (1949). Petrópolis, Vozes, 1982. ______. Antropologia Estrutural I. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1970. LEVINAS, Emmanuel. Entre Nós. Ensaios Sobre a Alteridade, Petrópolis, Vozes, 1997. LIPOVETSKY, Gilles. A era do após-dever. IN: A sociedade em busca de valores. Edgar Morin Ilya Prigogini (organizadores). Lisboa: Piaget, 2000. LOCKE, John. Os Pensadores XVII. São Paulo, Abril Cultural, 1973. LYOTARD, Jean-François. O Inumano. Lisboa, Estampa, 1998. MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis, Vozes, 1996. ______. O Tempo das Tribos. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987. ______. Conhecimento Comum. São Paulo, Brasiliense, 1988. MALINOWSKI, Bronislaw. Journal d’ethnographe. Paris, Ëditions Du Seuil, 1985. MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. v. II, São Paulo, EPU/EDUSP, 1974. ______. Sociedad y ciências sociales. Obras III. Barcelona: Barral Editores, 1970.

174 Ruth M. Chittó Gauer

MAUSS, Marcel, Sociologia e Antropologia. v. I, São Paulo, EPU/EDUSP, 1974. ______. Sociologia e Antropologia. v. II, São Paulo, EPU/EDUSP, 1974. MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Lisboa, Grafilarte, 1997. ______. De Mauss à Claude Lévi-Strauss. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1975. MICELA Rosaria. Antropologia e Psicanálise. São Paulo, Brasiliense, 1984. MILLER, Arthur I. Intuitions de Génie: images et crétivité dans les sciences et les arts. Paris, Flammarion, 1996. ODA, Ana Maria Galdini Raimundo, “A teoria da degenerescência na fundação da psiquiatria brasileira: contraposição entre Raimundo Nina Rodrigues e Juliano Moreira”, Psychiatry On Line Brazil, v. 6, n. 12, dez. 2001. Disponível em: http://www.polbr.med.br/arquivo/wal1201.htm. Acesso em: 03 jan. 2002. OST, François. O tempo do direito. Lisboa, Piaget, 1999. PAZ, Otávio. Claude Lévi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo. São Paulo, Perspectiva, 1977. POLANYI, Michael. A lógica da liberdade. Rio de Janeiro, Topbooks Editora, 2003. POUILLON, Jean. In. Claude Lévi-Strauss. Raça e história. Lisboa, Presença, 1952. RADCLIFFE-BROWN, A. R. e FORDE, Daryll. Os sistemas políticos africanos de parentesco e casamento. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, 1982. RADCLIFFE-BROWN, Alfred. El método de la antropologia social. Barcelona, Anagrama, 1975.

A Fundação da Norma: para além da racionalidade histórica 175

SÁ, Alexandre Franco de. Metamorfoses do poder. Coimbra, Ariadne Editora, 2004. (Coleção Sophia 002) SAHLINS, Marshall. Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro, Zahar, 1979. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Petrópolis, Vozes, 1997. SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. Lisboa, Dom Quixote, 1995. SHIRLEY, Robert W. Antropologia jurídica. São Paulo, Saraiva, 1987. SOARES, Luiz Eduardo. O rigor da indisciplina. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994. SOUZA, Jessé; OËLZE, Berthold. (Orgs.). Simmel e a Modernidade. Brasília, Editora da UNB, 1998. STENGERS, Isabelle. As políticas da razão. Lisboa, Edições 70, 1993. TOCQUEVILLE, Aléxis de. O Antigo Regime e a Revolução. Brasília, UNB, 1979. VICO, Giambattista. Os Pensadores. Seleção, trad. e notas de Antônio Lázaro de Almeida Prado, São Paulo, Abril Cultural, 1974. VIRILIO, Paul. A inércia polar. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1993. WEBER, Max. O Político e o Cientista. Lisboa, Presença Ltda., 1979. WEGROCKI, Henry. “Crítica dos Conceitos Culturais e Estatísticos de Anormalidade”, Kluckhohn e Murray, Personalidade na Natureza, na Sociedade e na Cultura. Belo Horizonte, Itatiaia, 1965.