A FORMAÇÃO LEITORA EM LIVROS DIDÁTICOS: ESTUDO DE … · compreender os sentidos ... de modo a...
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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 4204
A FORMAÇÃO LEITORA EM LIVROS DIDÁTICOS: ESTUDO DE UMA TRAJETÓRIA INDIVIDUAL NO SÉCULO XX1
Lisiane Sias Manke2
Ana Maria de Oliveira Galvão3
Introdução
Os estudos que se ocupam da história dos manuais escolares vêm mostrando que as
leituras realizadas nesses suportes não se restringem à instituição escolar, pois eles têm se
constituído, para parte significativa da população brasileira, um dos principais meios de
aproximação das culturas do escrito4. Nesse sentido, este estudo tem por objetivo analisar o
papel de dois livros didáticos nos processos de formação, como leitor, de um indivíduo não
escolarizado, nascido em 1922, considerando a relação que se estabelece entre os protocolos
de leitura e os sentidos produzidos nos textos dados a ler (cf. CHARTIER, 1994). Trata-se da
trajetória de um agricultor aposentado, que foi alfabetizado por uma professora leiga, que
morou na propriedade rural de seu pai, no sul do Rio Grande do Sul. Desse período, ele
guarda dois livros didáticos, um de História e outro de Geografia, que acompanharam sua
trajetória, influenciando os modos de ler e escrever que foram desenvolvidos de modo
autodidata ao longo de sua vida5.
A análise de livros didáticos, de textos manuscritos e de depoimentos orais, possibilitou
compreender os sentidos produzidos pelo leitor em evidência, como também a influência dos
livros didáticos no processo de sua constituição como leitor. Para tanto, vários encontros
foram realizados, resultando na produção de longos depoimentos que versaram sobre
diferentes perspectivas de sua vida social. As entrevistas foram realizadas em um longo
espaço de tempo, entre os anos de 2008 e 2016, permitindo compreender de forma
aprofundada a relação que o indivíduo estabelece com a cultura escrita, os meios de
1 O trabalho resulta de pesquisa realizada durante pós-doutorado desenvolvido entre 2015 e 2016 no PPGE/UFMG, com bolsa pós-doutorado júnior CNPq.
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas. Professora do Departamento de História da mesma universidade. E-mail: [email protected]
3 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da Faculdade de Educação da mesma universidade e pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected]
4 Como mostra os estudos: GALVÃO e OLIVEIRA, 2007; BATISTA e GALVÃO, 2009. 5 A trajetória autodidata desse indivíduo foi problematizada no texto “O bisneto do comendador: herança cultural
e formação autodidata em uma trajetória no século XX”.
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constituição do seu acervo, o uso que faz dos livros didáticos e os sentidos que produz ao
escrever ou transcrever pequenos textos.
A partir dos pressupostos da História Cultural, temos considerado, ainda, na pesquisa,
a necessidade de analisar os aspectos textuais e gráficos das obras, pois um impresso dá-se a
ler a partir de um conjunto de protocolos de leitura, que foram produzidos tendo em vista um
Leitor-Modelo6, no intuito de indicar os caminhos para a produção de sentidos. O historiador
Roger Chartier (1990, 1999, 2001, 2002), em diferentes obras, problematiza as práticas de
leitura considerando os modos de ler e a apropriação que os leitores fazem das leituras que
realizam. Para Chartier (1994), ao investigar a apropriação dos textos torna-se necessário
considerar a materialidade dos suportes de leitura, uma vez que “as significações históricas e
socialmente diferenciadas de um texto, qualquer que ele seja, não podem separar-se das
modalidades materiais que o dão a ler aos seus leitores” (p.105). Desse modo, para o autor, a
compreensão do texto é inseparável da análise da materialidade do impresso, que confere a
ele uma forma fixa. Assim, Chartier (2014), apoiado nos estudos de McKenzie, afirma que o
significado de um texto, canônico ou não, “depende das formas que o tornam possível de ler,
ou seja, das diferentes características da materialidade da palavra escrita” (p.20). Referindo-
se ao Antigo Regime, observa que os livros começavam com uma série de textos preliminares
ao texto principal, que conduziam o leitor para uma determinada leitura dessa obra. Assim,
demonstra a necessária análise dos aspectos textuais e gráficos de uma obra, para se chegar à
apropriação que dela é feita, indicando para uma proximidade entre História Cultural e
Crítica Textual. Para tanto, de modo a compreender as apropriações do texto lido, em toda a
sua complexidade, o trabalho investigativo requer a combinação da compreensão da
textualização (que editor e autor pretendem atingir e constituir), das formas de publicação (a
materialidade do texto, projeto gráfico), e das competências e disposições socioculturais
estabelecidas pelos leitores com a cultura escrita.
Uma trajetória atrelada a dois livros de infância
O ator pesquisado chama-se Ismael, nasceu no ano de 1921, no município de Canguçu,
Rio Grande do Sul, filho de produtores rurais de origem portuguesa. O local em que nasceu
foi também o palco de sua trajetória de vida profissional, onde desenvolveu atividade como
pecuarista e agricultor até o ano de 1995, quando se aposentou, passando a residir na área
urbana do município. Ismael não frequentou a escola, assim como seus pais, embora todos da
6 Conforme Eco (2004).
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família fossem alfabetizados, segundo relata. Embora não havendo escola na localidade em
que moravam, assim como igrejas, o que impedia práticas de socialização recorrentes no
período, como a presença na missa semanal, atividade que poderia aproximar a família da
cultura escrita, construíram estratégias que resultaram no domínio do sistema de escrita
alfabética. Não há também, em suas memórias, registro de momentos de leitura de textos
bíblicos na casa paterna. Porém, se não havia a prática de leitura e escrita sistematizada, ela
não esteve totalmente ausente do contexto familiar. A família de Ismael abrigou durante um
ano, em 1930, uma professora leiga, para alfabetizar os três filhos do casal e as crianças da
vizinhança. Essa senhora ocupava-se de ensinar, conforme relata Ismael: “sabia ensinar, se
não fosse ela eu não tinha aprendido nada, foi a única pessoa daquela época que sabia
ensinar”. O pagamento pelo trabalho prestado era dividido entre os pais dos alunos.
Ismael valoriza, sobremaneira, as aprendizagens que adquiriu com essa professora: “eu
aprendi com ela a ler, escrever e fazer as quatro operações, e naquele tempo lendo e
fazendo as quatro operações se defendia muito bem.” O uso do verbo defender indica para o
sentido prático e, ao mesmo tempo, simbólico, do domínio da leitura e da escrita. Depois de
ser alfabetizado, Ismael ganhou dois livros, um de História e outro de Geografia, para que
pudesse, de forma autodidata, adquirir novos conhecimentos. De acordo com sua narrativa, a
professora indicou ao seu pai que comprasse um livro de História do Brasil, que serviria para
que ele e suas irmãs tivessem um conhecimento básico sobre a história do País. O livro teria
sido adquirido na cidade de Pelotas, o centro urbano mais próximo de sua casa. Outro livro,
de Geografia, foi dado por um primo da família materna que, por ser mais velho, já havia
utilizado esse material em seus estudos. Conforme Bittencourt, na passagem do século XIX
para o XX: “era essencial garantir a difusão do vínculo nação-território, necessitando-se dos
estudos de geografia para o conhecimento do espaço físico do ‘país’ e da História Nacional
para legitimar as formas de conquista do continente que é o Brasil” (BITTENCOURT, 1993,
p.30).
A primeira e única vez que Ismael se afastou por algum tempo da localidade em que
nasceu foi em 1945, durante a II Guerra Mundial, quando tinha 23 anos de idade, por
convocação das Forças Armadas do Brasil, tendo sido direcionado ao quartel de Quaraí, Rio
Grande do Sul. Durante os onze meses de serviço militar, Ismael vivenciou um período de
grande desafio: a distância e a ausência de comunicação com a família, as condições de vida
no quartel e a tensão decorrente do estado de guerra, fizeram com que essas vivências
marcassem fortemente sua trajetória. Diante desse contexto, Ismael tentou se precaver,
levando consigo o dinheiro da venda de umas novilhas e seus dois livros didáticos, de
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História e Geografia. Segundo conta, os relatos do irmão sobre o serviço militar lhe fizeram
pensar que esses livros poderiam ajudar-lhe a fazer um curso de cabo e assim ascender na
carreira militar, possibilitando-lhe melhores condições de trabalho no exército, como relata:
O meu irmão dizia que era coisa horrorosa ficar no quartel como soldado raso, e eu fui então... e me acompanhou a minha Geografia velha, que eu ganhei de presente desse meu primo, e aquela História do Brasil, que foi na mala comigo. (...) Mas eu fui com aquela fé, mas levei comigo os livros. (Ismael, 2009).
Essa atitude, por si só, demonstra a crença na cultura escrita, ou seja, Ismael tinha
convicção de que o conhecimento advindo dos livros poderia lhe possibilitar um lugar de
distinção na hierarquia militar, havendo um sentido social no uso dos livros que levou na
mala. Após uma semana no quartel, foi submetido ao exame de seleção para o curso de cabo
e, com quatro meses de serviço militar, promovido para essa nova função. Ele atribui a
aprovação no exame de seleção aos ensinamentos de sua professora e aos livros de História e
Geografia, embora também afirme não ter utilizado os livros em nenhum momento, pois já
conhecia o conteúdo e não havia tempo para a leitura no quartel. Os livros teriam lhe servido
como uma espécie de suporte de memória, ou mesmo, tendo uma função especialmente
representativa nesse processo de seleção e aprovação.
É possível concluir que o serviço militar aproximou Ismael da cultura escrita,
contribuindo para que adquirisse novas aprendizagens e percebesse de forma prática o valor
social da leitura e da escrita. Ao ser promovido, as condições de trabalho foram alteradas e
sua remuneração aumentou. Dessa forma, a intenção inicial se concretizou, pois esse foi seu
objetivo ao colocar os livros na mala: alcançar melhor posição na hierarquia militar. Como
cabo, Ismael passou a fazer uso da escrita cotidianamente, desempenhando seu trabalho com
desenvoltura, como relata: E logo eu peguei muita média com ele [tenente], ele tinha muita
confiança em mim, e via que eu fazia muito empenho, ele via que eu tava sempre com o
lápis e qualquer coisa eu tava anotando. (Ismael, 2009). Esse trecho nos remete para o
papel da escrita, para a sua importância e o seu reconhecimento social, bem como para o uso
que Ismael fez dela no período em que esteve no quartel.
Ao retornar para casa, Ismael casou-se e continuou morando na propriedade que
herdou de seu pai, onde constituiu família, composta por quatro filhos. Atualmente, estando
aposentado e morando sozinho, desde o falecimento de sua esposa, vive cercado por livros,
entre esses os livros didáticos de infância: o livro Noções de História do Brasil, de Afonso
Guerreiro Lima, e o livro Geografia Elementar de autoria de José Theodoro de Souza Lobo;
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considerados por ele como “relíquias”: eu tenho aqui guardado os livros que eu tinha, que eu
aprendi... eu guardo como uma relíquia. Foi onde eu aprendi o Descobrimento do Brasil,
nesta História do Brasil. (Ismael, 2008). Como leitor assíduo, Ismael possui um acervo7
composto de outros livros didáticos, enciclopédia, livros de história do Brasil e textos
fotocopiados de livros emprestados, além de resumos e textos que escreve a partir das
leituras que realiza e das vivências que rememora. Atualmente, a leitura e a escrita ocupam o
seu tempo, os seus pensamentos, e lhe oferecem “conteúdo” para falar sobre o passado e o
presente. Trata-se de uma trajetória de grande significado para pensarmos o papel dos textos
didáticos em comunidades de circulação escassa da palavra escrita, e o papel que esses textos
cumprem na formação de leitores assíduos.
Os livros didáticos de Ismael e seus sentidos
De modo a compreender a contribuição dos livros didáticos na constituição dos modos
de ler e na apropriação das leituras realizadas por Ismael, centramos a análise a partir do
conceito de apropriação, central na obra de Chartier (1990, 2001), como processo que
determina a operação de construção de sentidos do texto lido. Para o autor, a constituição
dos sentidos é estabelecida no cruzamento entre os textos, as obras - que são compostas por
significados relacionados a dispositivos discursivos e formais (tipográficos) -, e os leitores,
com suas competências e disposições, que caracterizam os modos de ler, levando à
configuração da apropriação. Nesse processo, pode ocorrer uma pluralidade de usos e uma
diversidade de interpretações empregadas ao texto lido, atreladas ao processo sócio-histórico
vivenciado pelo leitor. Isso ocorre porque, conforme alerta Chartier, “devemos ver que cada
apropriação tem seus recursos e suas práticas, e que uns e outras dependem da identidade
sócio histórica de cada comunidade e de cada leitor”. (2001, p.116). Por considerarmos que
os livros Geografia Elementar e Noções de História do Brasil tiveram significativa
contribuição na formação das práticas de leitura desenvolvidas por Ismael, centramos a
análise nesses suportes de leitura, considerando os aspectos textuais e gráficos dos livros
paralelamente à análise dos relatos sobre as leituras que realiza, de modo a compreender
processo de formação leitora de um indivíduo não escolarizado.
A ‘História velha’, como denomina Ismael, é um livro de formato 15 x 22 cm. Seu
exemplar começa na página 15 e termina na página 168; nessas condições materiais, resume-
7 A análise pormenorizada do acervo que possui pode ser encontrada na tese “História e Sociologia das Práticas de Leitura: a trajetória de seis leitores oriundos do meio rural”, de autoria de Lisiane Sias Manke, defendida em 2012, no PPGE/FaE/UFPel.
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se a um fragmento do livro adquirido por seu pai há 87 anos. De igual forma, o livro de
geografia, de formato 13 x 18 cm, possui apenas as páginas 23 a 188, também devido ao
desgaste decorrente dos anos de utilização. Ambos os livros foram restaurados (sem técnica
especializada para tal), no início dos anos 2000, quando foram encadernados com capa
transparente e tiveram algumas bordas de página coladas.
Por não possuírem capa e dados de autoria, e por serem informações sobre as quais
Ismael não se recordava, foi necessário um trabalho investigativo sobre essas obras, para que
pudéssemos identificar suas autorias. Depois de buscar vestígios, junto a pesquisadores e
bibliófilos, que ajudassem a indicar a autoria das obras, exemplares de ambos foram
localizadas no acervo de livros didáticos do Laboratório de Ensino de História – LEH/UFPel.
Foi possível constatar que se tratava do livro Noções de História do Brasil, de autoria de
Affonso Guerreiro Lima8, publicado pela livraria do Globo9, localizada em Porto Alegre, que
teve 10 edições publicadas, a 1ª em 1915 e a 10ª em 1942 (MARTINS, 1978). No acervo
localizamos cinco edições dessa obra, - a 3ª edição de 1925; a 5ª edição de 1931; a 7ª edição
de 1935, a 9ª edição de 1939 e a 10ª edição de 1942 -, que possibilitaram concluir que o
exemplar que pertence ao acervo de Ismael trata-se, provavelmente, da 3ª edição de 1925.
Dois aspectos corroboram essa conclusão: o conteúdo de ambos os livros é idêntico e o livro
de Ismael foi comprado em 1930.
De igual modo, identificamos o livro de geografia de Ismael como sendo a obra de
José Theodoro de Souza Lobo10 intitulada Geografia Elementar, que teve ampla circulação
no Rio Grande do Sul por ser livro adotado nas aulas públicas do estado (PAIS, 2010). Foi
possível localizar dois exemplares desse livro: a 5ª edição de 1898, publicada pela livraria
8 O Professor Afonso Guerreiro Lima (1870-1959) era diplomado pela Escola Normal de P. Alegre (1890), aposentando-se quando lecionava no Instituto de Educação de P. Alegre. Figura destacada do magistério gaúcho, foi Diretor da Instrução Pública do RS e do Anuário Indicador do RS, P. Alegre, 1920-28. Foi também membro da Sociedade de Ensaios Literários. P. Alegre. 1888; do IHGRS; e da Sociedade Rio Grandense de Educação, que presidiu (MARTINS, 1978).
9 Em 10 de dezembro de 1883, por iniciativa de Laudelino Pinheiro Barcelos e Saturnino Antunes Pinto surge, na Rua dos Andradas, nº 268, a Livraria do Globo. Em seus primeiros anúncios e etiquetas, anunciava o seguinte: “estabelecimento de livros, músicas, papel, miudezas e objetos de escritório”. Nos anos 20, era um dos principais pontos de encontro da intelectualidade porto-alegrense. A razão social dessa editora, primeiro foi L.P. Barcelos & Cia, depois, com o ingresso de José Bertaso, passou a denominar-se, Barcelos, Bertaso & Cia. (ARRIADA, 2012).
10 O professor gaúcho José Theodoro de Souza Lobo (1846-1913) fez seus primeiros estudos no Colégio Caraça, em Minas Gerais e formou-se em engenheiro-geógrafo na Escola Central do Rio de Janeiro. De volta ao Rio Grande do Sul começou a lecionar Matemática na Escola Normal de Porto Alegre. Em 1877 fundou o Colégio Particular Souza Lobo e um internato, este último esteve em funcionamento por seis anos. Além dos livros didáticos de Geografia, publicou os livros Segunda Aritmética para Meninos e Primeira Aritmética para Meninos, os quais foram publicados, respectivamente, em 1870 e 1874 (BASTOS; ERMEL, 2013). Os livros citados tiveram grande circulação não somente no Rio Grande do Sul; a Primeira Aritmética, editada pela Livraria o Globo, lançou em 1933 a 41ª edição; em relação à Segunda Aritmética, em 1939 foi publicada a 33ª edição (PAIS, 2010).
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Rodolpho José Machado, de Porto Alegre, e a 17ª edição de 1941, publicada pela gráfica da
livraria do Globo. Ao compararmos a edição de Ismael com essas outras edições, observa-se
que não são iguais. A 5ª edição guarda maior semelhança com o livro que pertence a Ismael,
contudo, essa edição possui acréscimo de conteúdos e formas diferentes de apresentá-los,
embora, partes dos textos sejam idênticas. Desse modo, é possível considerar que o livro de
Ismael seja de uma edição mais antiga, anterior a 1898, inclusive por ter sido adquirida por
um primo mais velho, que lhe deu o livro por já ter concluído seus estudos.
A análise da textualidade e materialidade da obra Noções de História do Brasil torna
possível fazer algumas considerações que contribuirão para que se compreenda a apropriação
que Ismael faz dessa leitura. Os textos desse livro são impressos somente em cor preta, a letra
possui tamanho 7 pontos para o corpo (alguns trechos explicativos do texto, de menor
destaque, possuem tipo 5 pontos) e tipo 9 pontos para os títulos. Além de a letra ser pequena,
a cor do papel, no tom bege amarelado, não contrasta com a letra, prejudicando
sobremaneira a legibilidade11 do texto. As imagens, em sua maioria do busto de
personalidades históricas, são reproduzidas em escala cinza. Poucas frases ou palavras são
colocadas em destaque no texto, o uso de negrito é o único recurso utilizado, que é aplicado
nos títulos das lições, datas e nomes de vultos históricos. Não há abertura de capítulo: apenas
um título em nota de rodapé superior indica o assunto da unidade. As unidades são
compostas por lições (de quatro a nove lições, em sua maioria). Cada lição ocupa duas
páginas do livro e apresenta: o texto principal destacado pelo título da lição, um quadro
denominado Resumo Cronológico da Lição e um texto denominado Leitura, que versa sobre
algum aspecto da lição, que é assinado por diferentes autores, como por exemplo, Olavo
Bilac, Coelho Neto e Rocha Pombo. Esses aspectos podem ser observados na imagem 2:
11 Sobre os conceitos de legibilidade e leiturabilidade consultar: Richaudeau (1979, 1984, 2005).
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Imagem 2 – páginas do livro Noções de História do Brasil Fonte: acervo particular Ismael
No final das unidades, há um quadro cronológico denominado Recapitulação, que
contempla os principais acontecimentos abordados na unidade e, após algumas unidades, um
quadro-resumo chamado de Quadro de Civilisação, que faz menção a acontecimentos
políticos, econômicos, sociais e/ou culturais do período em evidência, conforme ilustra a
imagem 3:
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Imagem 3 – páginas do livro Noções de História do Brasil Fonte: acervo particular Ismael
Na apresentação do livro, em carta direcionada aos senhores professores, o autor
apresenta a sua obra, indicando que ela apresenta o seguinte formato:
Na pagina par: 1º) Um ponto historico exposto em linguagem ao alcance das creanças, sendo o essencial em caracteres maiores e em typo menor as notas e explicações. Na pagina impar: 2º) Um resumo chronologico da lição. 3º) Uma leitura litteraria sobre o ponto dado. No fim de cada período vem um quadro de recapitulação das licções, assim como a demonstração do progresso do paiz por meio de quadros demonstrativos de sua civilização. É um livro amplamente ilustrado com mapas e figuras. (LIMA, 1925).
É importante destacar que a editoração da obra cumpre papel minucioso quanto à
organização dos conteúdos, pois em toda a obra as lições são apresentadas na página par do
livro, e o quadro cronológico e o texto literário nas páginas impares. Todas as lições ocupam
apenas um par de páginas, havendo, portanto, um esforço para que haja um padrão na
apresentação dos conteúdos. De certo modo, esses aspectos correspondem à proposta da obra
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em relação à abordagem dos temas históricos, apresentados de forma supostamente técnica e
objetiva.
A análise da textualidade do livro indica para uma proposta bem definida, que
contempla temáticas políticas, lutas de conquista e colonização territorial, considerando o
então desejado progresso do estado brasileiro. O texto de cada lição caracteriza-se por um
resumo descritivo dos acontecimentos organizados por período, destacando, especialmente, o
nome dos personagens históricos e a data do acontecimento. Ou seja, o texto, em uma breve
descrição, centra-se em: recorte temporal, personagem histórico, feitos/acontecimentos.
Embora, na apresentação do livro, o autor destaque que os textos possuem uma linguagem
acessível as crianças, eles apresentam uma linguagem rebuscada – pelo menos aos olhos
contemporâneos – e a ausência de qualquer vocativo que indique uma escrita direcionada
para os alunos. A objetividade dos textos das lições, por sua vez, contrasta com o texto
literário denominado Leitura (assinado por autores diversos). Em alguns textos, inclusive, os
autores referem-se ao leitor de forma mais próxima, com linguagem mais leve e menos
objetiva. Ao que parece, esta é intencionalmente a proposta da obra, que o autor apresenta
com as palavras: “na sua composição seguimos um processo inteiramente novo entre nós”
(LIMA, 1925): ou seja, lições descritivas e quadro cronológico dos principais acontecimentos
históricos, seguido por textos literários com narrativas mais detalhada, e linguagem mais
desprendida.
A análise da obra Geografia Elementar também contribui para a compreensão dos
modos de ler e de escrever de Ismael, sendo um dos livros que acompanhou a sua trajetória
de vida. Analisamos o exemplar que pertence ao seu acervo particular em paralelo à edição de
1898, “quinta edição mais correta”, conforme consta na contracapa do livro, visto que o
exemplar de Ismael não está completo. Na 5ª edição da obra, o autor assina a apresentação
intitulada “A quem lêr”, na qual afirma que seu objetivo, ao produzir a obra, foi o de apenas
facilitar o estudo da geografia aos “jovens patrícios”, tanto é que fez inteira cessão da mesma
em favor do livreiro Rodolpho José Machado. Afirma, ainda, que isso não o impedirá de
melhorar o que chama de “obrinha” em edições futuras (LOBO, 1898). Na segunda
contracapa, o autor dedica a obra ao Professorado Rio-Grandense.
Os textos são impressos somente em cor preta, a letra possui tamanho 10 pontos para
o corpo e 14 pontos para os títulos, um pouco maior se comparada ao livro de História.
Contudo, a letra com serifa, em tamanho pequeno, em papel bege amarelado pelo tempo, faz
com que o texto tenha pouca legibilidade. Algumas palavras são colocadas em destaque no
texto, assim como os títulos e subtítulos: para tanto, são utilizados o negrito, letras em
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tamanho maior e fonte sem serifa. Não há imagens no livro, mas a 5ª edição destaca na
contra capa: “contém esta Geographia nove nítidos Mappas”; os mapas são reproduzidos em
papel maior e bem fino, dobrados no tamanho das páginas do livro, e são coloridos. No livro
de Ismael não há mapas, mas podem ter sido extraviados com o tempo, em virtude da
fragilidade do papel.
O conteúdo está organizado em capítulos que seguem a divisão continental do
território terrestre, contemplando cinco continentes: América, Europa, Ásia, África e
Oceania; há ainda, um capítulo exclusivo para o Brasil e outro para o Rio Grande do Sul. As
unidades ou capítulos que tratam dos continentes são divididos em Geografia Física e
Geografia Política, como ilustra a imagem 4:
Imagem 4 – páginas do livro Geografia Elementar Fonte: acervo particular Ismael.
O uso de colchetes e outros elementos gráficos são bastante presentes no livro, os
textos apresentam-se em forma de esquemas que comunicam dados pontuais sobre aspectos
físicos e políticos de cada continente. Os capítulos que tratam de geográfica política, por
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exemplo, são divididos por países e apresentam dados como: longitude, latitude, limites,
superfície, população, governo, religião, capital e principais cidades.
Conforme Bittencourt (1998), o crescimento das instituições públicas de ensino foi
fator determinante para a produção dos primeiros livros didáticos, e alguns princípios
norteavam essa produção:
A questão básica dos autores residia no tempo cronológico, hesitantes entre uma cronologia ordenada por uma datação minuciosa, de ordem quantitativa ou aritmética e uma cronologia situada em uma periodização, em épocas bem organizadas semelhante à História Sagrada. (BITTENCOURT, 1998, p.216).
Esses aspectos marcam as duas obras analisadas neste texto: em relação à história,
além da cronologia marcada por periodizações, a consagração de vultos históricos e a luta
contra estrangeiros constituíam o cerne da história da nação em formação. Ainda conforme
Bittencourt (1998), muitos autores transitavam confortavelmente entre compêndios de
História e Geografia, defendendo que a História só poderia ser compreendida por aqueles
que tivessem uma noção exata da estrutura do solo sobre o qual se desdobravam os
acontecimentos históricos. Essa concepção parece ser comum à compreensão de Ismael em
relação as obras de História e Geografia, as quais lhe foram apresentadas na infância como
leituras essenciais para a formação da cidadania, conforme orientou a professora que o
alfabetizou. Assim, a referência que constituiu sobre essas áreas do conhecimento está
vinculada à importância dos vultos históricos, às datas, aos aspectos políticos e geográficos de
territórios em que se desenrolaram importantes acontecimentos históricos; aspectos que
evidencia em suas narrativas e nas escritas que realiza.
Dos Livros didáticos aos modos de ler e escrever
Depois de 70 anos vivendo no meio rural, Ismael e a esposa mudaram totalmente a vida
cotidiana, quando passaram a morar em uma casa na cidade. Nesse novo ambiente, as
relações de trabalho são interrompidas e o formato dos dias muda, exigindo novas ocupações.
Assim, a leitura e a escrita, que sempre tiveram espaço na vida de Ismael, embora não sendo
uma prática relacionada com sua atividade profissional, passam a fazer parte de sua rotina.
Seus principais interesses de leitura centram-se em textos que contribuem para que
compreenda a história familiar e a história da localidade em que vive. Por diversas vezes
Ismael localizou, durante as entrevistas, textos que mostravam a oposição da família ao
Partido Republicano Riograndense, e as consequências da posição política assumida. Em suas
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leituras, a história vivida/ouvida e o registro histórico são ressignificados e novamente
verbalizados, produzindo conteúdo para suas narrativas sobre o passado.
Ismael também costuma escrever a partir das leituras que realiza, escritas que são
registradas em suporte específico e assumem uma característica de compilação do texto lido.
Ele possui dois cadernos tamanho grande, modelo espiral e duas cadernetas que medem 10
cm de altura por 7 cm de largura, nos quais registra diversas informações que irão subsidiar a
suas narrativas, ao falar sobre acontecimentos históricos. Essas escritas não representam
para Ismael apenas um suporte de memória, mas um registro escrito que se sobrepõe à
narrativa oral, ao considerar o estatuto de verdade que a escrita representa. Assim, em suas
práticas, vincula o que é comum na experiência de novos letrados12: leitura, escrita e
oralidade.
Durante as entrevistas, em diversos momentos, Ismael fez referência às suas anotações.
Exemplo de suas cadernetas pode ser observado na figura 5:
Imagem 5 – página da caderneta de anotações de Ismael13
O texto fala sobre o agrimensor Hermes Ernesto da Fonseca, pai do presidente Hermes
da Fonseca, que em 1855 teria medido as terras do atual município de Bagé/RS. O registro
destaca o nome de personalidades políticas e o ano em que o fato ocorreu. Ao referir-se à
medição territorial de um determinado município, assim, o texto estabelece relação entre
12 Conforme conceito desenvolvido por Galvão (2007). 13 “O agrimensor Hermes Ernesto da Fonseca, pai do Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca, quando capitão,
por volta de 1855, mediu a situação das terras de Bagé. A medida encontrada foi de 171.450.000 braças quadradas”.
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dados históricos e geográficos. Outros pequenos textos como este compõem as cadernetas de
Ismael, que em sua maioria registaram efemérides.
Outro suporte de escrita são os cadernos, nos quais Ismael escreve, cria e organiza
dados a partir das leituras que realiza, como exemplificado na imagem 6 que segue:
Imagem 6 – páginas do caderno de Ismael
Na página da esquerda há uma relação dos presidentes do Brasil de 1930 a 2002, com o
nome do presidente e o período do mandato presidencial; ao lado, à direita, encontra-se uma
lista com a relação dos estados do Brasil, com data de fundação, nome da capital, área em
km² e população. Outros tantos manuscritos como esses são produzidos por Ismael, como
por exemplo, a relação dos municípios do estado do Rio Grande do Sul, que ele organizou em
ordem alfabética, colocando ao lado do nome de cada município a área, a população e as
principais atrações turísticas. Segundo Ismael, os dados sobre os municípios foram
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pesquisados em um material produzido pelo jornal Zero Hora, denominado O melhor do Rio
Grande: Cadernos Especiais sobre os 496 municípios do Estado. Nesse caso, percebe-se, que
além de registrar dados específicos sobre o que leu, ele também reorganizou essas
informações ao colocar os municípios em ordem alfabética, com o seguinte objetivo conforme
suas palavras: fui colocando por letra A, B, C, deu 18 folhas, assim quando eu quero procuro
pela letra o município. (Ismael, 2010). Assim também faz ao registrar o número de
habitantes de cada um dos países envolvidos na II Guerra Mundial; o nome dos prefeitos de
municípios da região sul do Estado, e o tempo de seus mandatos, entre outros exemplos.
Dessa forma, Ismael não apenas faz cópia dos textos que lê, mas pesquisa, estabelece
relações, compara, organiza segundo a sua lógica, produzindo textos autorais.
Escrever é uma forma de não esquecer, assim justifica Ismael. Essa é uma das funções
primordiais da escrita em sociedades grafocêntricas, mas as práticas de Ismael nos ajudam a
perceber outros usos e sentidos atribuídos à cultura escrita. A leitura e a escrita que ele
realiza estão sempre vinculadas, de algum modo, à sua trajetória sócio-histórica; alguns
temas o movem e motivam de modo especial, com percebemos nesse relato:
Agora eu tirei [fez cópia manuscrita] da Itália, por que a minha neta14 tá lá. Então, eu tirei da minha geografia velha os limites físicos da Itália. A Norte França, Suíça e Áustria, ao Leste o Asiático e o mar Jônio, ao Sul e Oeste o Mediterrâneo. Superfície da Itália 287 mil km², regula com Rio Grande do Sul que tem 282 mil km². (Ismael, 2010).
Para Ismael, ler e escrever é uma prática relacionada ao prazer, à distração, à ocupação
do tempo livre; mas, além disso, é uma maneira de rememorar o que vivenciou, de retomar
assuntos sobre os quais já possui algum conhecimento, de buscar novos conhecimentos sobre
temas que lhe mobilizam. Ou seja, sua relação com a cultura escrita está ligada ao sentido
prático, experiencial que essas práticas podem lhe oferecer.
Considerações Finais
Compreendemos que os sentidos atribuídos à leitura, e mesmo a relação que os leitores
estabelecem com os livros, certamente são os aspectos mais difíceis de apreender
(DARNTON, 1992), pois exigem uma análise profunda, que contemple desde a trajetória
sócio-histórica dos leitores – compreendidos como comunidades – às especificidades que
compreendem a textualidade e a materialidade dos suportes de leitura. Na análise que
realizamos neste texto, buscamos compreender a influência de dois livros didáticos, em
14 Sua neta, formada em Enfermagem, atualmente trabalha na Itália.
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especial, nos modos de ler e escrever, e de produzir sentidos sobre essas práticas, realizadas
por um indivíduo não escolarizado. A presença e a representatividade desses dois livros em
sua trajetória são evidentes, assim como o reconhecimento que tem o indivíduo em relação
ao significado social do domínio do escrito, até mesmo como mecanismo de ascensão social
(explicitado, por exemplo, na atitude de levar os livros na mala ao ingressar no exército, pois
lhe auxiliariam a pleitear outro posto na carreira militar). A crença na relevância da
instituição escolar também é demonstrada nas palavras de Ismael que expressam o
sentimento de inferioridade por não ter frequentado a escola, verbalizadas na afirmação “sou
um quase analfabeto”, mesmo sabendo que possui significativo domínio do sistema de escrita
alfabética.
A leitura que Ismael realiza caracteriza-se por uma apropriação ético-prática15, ou seja,
o conteúdo é sobreposto ao estilo e o significado atribuído ao texto é ancorado não em sua
própria configuração, mas em pragmática que está fora dele. Ao ler, estabelece relação com
saberes adquiridos na experiência, no conhecimento advindo através da oralidade, em
vivências que mobilizam o seu desejo por saber mais. Suas práticas de leitura privilegiam
assuntos e temas que são “recortados” dos livros que lê, em uma prática de leitura parcial do
texto que corresponde a uma apropriação fragmentada das obras, ou seja, não é o livro por
completo que lhe instiga, mas alguns temas em especial. Para esse leitor, os livros didáticos
correspondem às expectativas de leitura, pois é próprio desse gênero a apresentação de textos
curtos, que possibilitam a leitura de alguns fragmentos sem prejuízo do todo.
As práticas de escrita realizadas por Ismael também correspondem a um modelo de
texto que lhe serviu de base desde a infância: o texto didático. Ao compararmos a organização
tipográfica dos dois livros didáticos analisados, e a forma com que Ismael organiza a sua
escrita percebemos que ambos guardam significativas semelhanças, em relação aos quadros,
resumos e arranjos da escrita. De igual modo, os aspectos privilegiados na textualidade
desses livros, como a ênfase nos vultos históricos, nas datas, no território e em suas
características físicas e políticas, também marcam as práticas de escrita de Ismael. Desse
modo, o modelo de texto e os conhecimentos adquiridos através da leitura lhe possibilitam
escritas mediadas por diferentes experiências sociais, o que lhe confere a autoria dos textos
que escreve. Por fim, consideramos que sua formação leitora, ou seja, o modo pelo qual foi
constituindo seus modos de ler e escrever, está diretamente relacionado com os protocolos de
leitura desses livros didáticos, que foram durante a infância de Ismael a primeira e única
15 Conforme observa LAHIRE, Bernard. Homem Plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 92.
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fonte sobre os conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade, em tempos de
pouca circulação do escrito, especialmente em espaços rurais, em que inclusive a escola
estava ausente.
Referências
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