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universidade estadual de campinas

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Clara Rowland

A forma do meiolivro e narração na obra

de joão guimarães rosa

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Índices para catálogo sistemático:

1. Rosa, João Guimarães, 1908-1967 B869.35 2. Ficção brasileira B869.35 3. Literatura brasileira – História e crítica B869.09

copyright © by clara Rowlandcopyright © 2011 by editora da unicamp

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isbn 978-85-268-0943-7 (editora da unicamp) isbn 978-85-314-1322-3 (edusp)

R796f Rowland, clara.A forma do meio: livro e narração na obra de João Guimarães Rosa / cla-

ra Rowland. – campinas, sp: editora da unicamp; editora da universidade de São Paulo, 2011.

1. Rosa, João Guimarães, 1908-1967. 2. Ficção brasileira. 3. Literatura brasileira – História e crítica. I. Título.

cdd B869.35 B869.09

ficha catalográfica elaborada pelosistema de bibliotecas da unicamp

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O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?...Grande sertão: veredas

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sumário

introdução .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

i – indesfechos1 o resto que falta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

2 terrível simetria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

ii – o livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber

3 circuito .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

4 livro .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

5 indicações de leitura .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171

iii – só se pode entrar no mato é até ao meio dele

6 aqui eu podia pôr ponto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211

7 mais longe do que o fim; mais perto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249

referências bibliográficas .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 291

roteiro .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 301

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introdução

experience has shown that it is by no means difficult for phi-losophy to begin. Far from it. It begins with nothing, and consequently can always begin. But the difficulty, both with philosophy and for philosophers, is to stop. This difficulty is obviated in my philoso phy; for if any one believes that when I stop now, I really stop, he proves himself lacking in the speculative insight. For I do not stop now, I stopped at the time when I began.

Søren Kierkegaard, Either/Or*

Divulgo: que as coisas começam deveras é por detrás, do que há, recurso; quando no remate acontecem, estão já desa-parecidas.

“Antiperipleia”**

I

Num ensaio em que interroga as relações entre literatura e filosofia a partir de Grande sertão: veredas, Benedito Nunes anuncia deste modo o seu pro-grama de abordagem inter disciplinar: “Tudo o que vai ser exposto acerca dessa obra tem o caráter de reflexão sobre uma forma” (1983b, p. 205). co-meço por arriscar que é também esse o ponto de partida deste livro, tendo em conta que o que aqui se procurará identificar é o modo como na obra de Guimarães Rosa se reflete sobre a ficção a partir da sua relação com uma forma. essa identificação, porém, não será feita no sentido de uma forma que represente uma “instância de questionamento” de “ideias que são pro-blemas do e para o pensamento”, como propõe Benedito Nunes (1983b, p. 205): o que aqui se procurará é uma ideia de forma que responda ao ques-

* Kierkegaard, 1949, p. 38: “A experiência mostrou que não é de todo difícil para a filosofia começar. Longe disso. começa com nada, logo pode sempre começar. Mas a dificuldade, para a filosofia e para os filósofos, é parar. essa dificuldade é obviada na minha filosofia; pois se alguém pensar que, se eu parar agora, estou ver-dadeiramente parando revela ter falta de visão especulativa. Porque eu não paro agora, eu parei no momento em que comecei”.

** G. Rosa, 1994, II, p. 527.

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tionamento da legibilidade que os livros de Guimarães Rosa insistentemen-te põem em cena. A forma não será, assim, entendida como veículo de pro­blemas — o problema é a forma, porque é nela que se ques tiona a inteligibilidade da representação. como princípio de organização da ação, a forma é a questão da ficção rosiana, no sentido em que é perante a impo-sição de uma estruturação entre início, meio e fim, para retomar a confi-guração aristo télica da questão, que narrativa e mundo se colocam em re-lação; e o que os textos que aqui analisarei parecem demonstrar é que o problema não é tanto o de uma oposição entre as duas dimensões — a fic-ção que dá forma ao mundo, como é comum dizer-se, por exemplo, a pro-pósito da noção de closure — mas o modo como ambas se colocam em ten-são com uma ideia de forma (orientação e estruturação) e lhe parecem resistir. O mundo movente, como sugere o título do ensaio de José car los Garbuglio, é também imagem do texto rosiano: ler a for ma não concluída desse mundo (ou seja, o modo co mo o mundo se furta à forma) é a legibili-dade paradoxal que a ficção de Guimarães Rosa parece perseguir, através da forma e contra ela. A interrogação dessa legibilidade do informe será aqui construída sobre a articulação de duas dimensões, o livro e a narração, con-siderando o modo como os textos de Rosa colocam em relação, na tensão entre escrita e oralidade que está na sua base, a representação do ato narra-tivo, vinculada à figura do contador de histórias, e a acentuação da mate-rialidade do livro, dando particular atenção aos pontos de contaminação entre as duas ordens (o diálogo que se faz inscrição, o livro que encena uma situação de presença). É uma passagem que é importante esclarecer desde já: se a oposição em causa não é, como tentarei demonstrar, uma oposição entre mundo e ficção, e sim uma opo sição entre mundo ou ficção e a forma como condição de legibi lidade, é essencial concentrar a atenção nas figuras dessa oposição, que ganharão corpo na encenação de gestos de performação, no sentido com que Rosa usará o termo e que veremos em detalhe na pri-meira parte deste trabalho — os momentos em que o mundo e as histórias são postos em tensão com a materialidade de um suporte que lhes dá forma. Por essa razão é que se propõe, no título, uma relação entre livro e narração, e não entre livro e história, por exemplo: como se verá nas encenações do ato narrativo que a obra de Rosa insistentemente oferecerá, a tensão com a forma constrói-se numa tensão entre os ouvintes e o narrador, corpo da his-

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tória, que põe em causa a sua delimitação e bloqueia, no sentido em que re-tém, a sua plena transmissão. A narração é o momento em que a história “sem formato”, para usar uma expressão que reencontraremos, pode ser per-cebida como forma através do corpo do contador; mas será percebida como lacunar, incompleta, movente, pelos seus destinatários, que procurarão im-por-lhe, em nome da forma, um final. É então na tensão entre a perfor-mação da história e a imposição de uma forma que a delimite que a legibili-dade do informe como resistência à forma se constrói. Assim se percebe que o livro venha a ser o ponto central do percurso que aqui se propõe: na re-presentação de situações de narra tiva oral, a ficção de Rosa acentua precisa-mente a resistência do suporte à transmissão e nesse sentido aproxima a ca-racterização da narração de problemas associados à escrita e ao livro. A narração é imagem de uma tensão relacional (retenção e desejo de comple-tude) a que o livro, enquanto ideia de to talidade numa forma material, dá corpo; e o que aqui se entrevê é que, contrariamente ao que muitas vezes se sugere, a recriação em Rosa de um mundo de contadores de histórias não se oferece apenas como compensação de uma cultura da pre sença que a mo-dernização destruiu, nem como regressão a uma oralidade arcaica. Nos exemplos que veremos, a narração encena através da acentuação do corpo uma resistência própria da escrita: a representação da oralidade dirige-se para uma legibilidade diferida que o livro de Guimarães Rosa encenará e o valor performativo dessa legibilidade assenta por inteiro na tensão com os limites da forma. A hipótese de que parto, assim, é a de que é possível arti-cular o tratamento reflexivo da narração, em Guimarães Rosa, com o questiona mento do livro como figura de uma totalidade concluída e apreen sível, e que nessa articulação o que se dá a ver é uma resistência à for­ma que, ao pôr em causa a imposição de limites (fim, começo, margem), irá revelar-se também resistência à leitura. A conjugação entre narração e livro, acentuando a dimensão do transporte — a escrita como transporte de uma oralidade encenada, o livro como suporte da “estória” —, apresenta-se desse modo como o lugar privilegiado de uma interrogação que terá na materiali-dade do suporte (corpo do narrador, visibilidade da letra, livro material) o seu campo de tensão. A partir desse quadro, é então possível colocar a hipó-tese de um trabalho sobre a forma do livro que procure superar os seus li-mites a partir do seu interior, impondo uma dupla tempo ralidade à sua

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construção material: linear, de um lado, e recur siva, do outro, devolvendo insistentemente o leitor ao que no livro não se fez legível, orientando o ato de leitura para a paradoxal legibilidade do que não tem formato. É esse o projeto que aqui se desenvolve e são essas as dimensões que determinam os dois primeiros movimentos deste trabalho; na interrogação do modo como o livro resiste à forma impôs-se, porém, um terceiro movimento, con-sequên cia dessa primeira articulação. Antes de explicar a sua posição, torna-se necessário um pequeno desvio que articule, a partir do título, livro e nar-ração com a ideia de uma forma do meio.

II

Na sequência central do conto “cara-de-Bronze”, de Corpo de baile, a narra-tiva interrompe-se com a seguinte indi cação de leitura: “estória custosa, que não tem nome; dessarte, destarte. Será que nem o bicho larvim, que já está co mendo da fruta, e perfura a fruta indo para o seu centro. Mas, como na adivinha — só se pode entrar no mato é até ao meio dele. Assim, esta es-tória” (I, p. 688)1. Importante por diferentes motivos no percurso deste li-vro, o excerto expõe uma dificuldade intrínseca desta obra: antes mesmo de entrarmos em interpretações mais substanciais das implicações de uma su-posição como essa para a relação entre início, meio e fim (o todo edificado da obra), a adivinha coloca um problema determinante para qualquer tenta-tiva de leitura da ficção de Guimarães Rosa, ao encenar a passagem de uma suposta descrição do mundo (o mato, o bicho larvim) para um comentário sobre a linguagem. A adivinha assenta num desvio: de uma pergunta sobre o mato — até onde se pode entrar? — desloca-se, sem transição, para um jogo entre expressões — até ao ponto em que se começa a sair. O problema reside na brusca transição entre os dois verbos, contíguos numa relação que põe em causa precisamente o terceiro termo que os define. e o problema desse terceiro termo será aquele a que se tentará dar resposta ao longo destas páginas, e para o qual se orientará o questionamento da legibilidade do in-

1 Todas as citações da obra de Guimarães Rosa, exceto quando indicado, serão feitas a partir dos dois volumes da Ficção completa (Rosa, 1994), indicando-se apenas o volume e a página.

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forme que aqui se propõe. Se a adivinha interroga até que ponto se pode entrar no mato, o texto de Rosa parece perguntar incessantemente em que ponto se sabe que se começou a sair ou, por outras pa lavras, em que ponto a forma se fez forma. A resposta a essa pergunta, desdobrada por todos os li-vros de Rosa, passará necessariamente pela ideia de um diferimento, que ganhará corpo na figura decisiva da releitura. Na relação entre entrar e sair, o meio revela-se o ponto elusivo e diferido em torno do qual o texto se arti-cula. como se diz em Grande ser tão: veredas: “Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num pon to muito mais embaixo, bem diverso do em que primei ro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?” (II, p. 28).

começar (e terminar) por um enigma, que necessariamente obscurece, por agora, qualquer ideia de estrutura, é uma estratégia bem rosiana: no entanto, o enigma serve-me para destacar um problema de leitura para o qual muitos dos esquemas recorrentes na recepção de Rosa não parecem oferecer resposta. Trata-se de um problema de reflexividade, ou do modo como, na obra de Guimarães Rosa, comentário do mundo e comentário das estratégias de representação são continuamente sobrepostos, constituindo um nó reflexivo de difícil orientação. O anacoluto que o enigma sugere é disso exemplo: é através de um vazio conceitual — o centro — que passa-mos de uma ordem supostamente mimética para a forma da enunciação, a ação de sair ganhando então o sentido de uma passagem (sem regresso) do mundo à linguagem. O meio é o espaço da sobreposição entre essas duas ordens: referência e autorreferencialidade coincidem, por momentos, nessa suspensão que se faz fronteira.

Parece-me ser esse o ponto de chegada possível de um trabalho que pro-cure interrogar a ideia de legibilidade em Guimarães Rosa: o que opõe uma forma concluída e delimitada a uma construção orientada para um centro que, furtando-se a uma fixação, desestabiliza os pontos de entrada e de saí-da, introduzindo na forma a sua transformação. No limite, poderíamos di-zer que este livro pode ser descrito, em todos os seus momentos, como um esforço de leitura de uma das sequências mais conhecidas da obra rosiana: “um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (II, p. 46). O que tentarei demonstrar é que numa

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passagem como essa se concentram e tornam visíveis os principais proble-mas da poética rosiana: na construção de uma dimensão intervalar e diferi-da — a travessia que não se soube ver a tempo — é a própria ideia de forma estruturada que é posta em questão a partir de uma ideia de centro que, vindo depois, faz da forma uma forma movente. Nessa imagem encontramos não só a resistência que o caráter elusivo de um meio em trânsito oferece a uma legibilidade do mundo, mas também o ponto de tensão de uma cons-trução da forma do livro em Guimarães Rosa.

O lugar de articulação destas questões — questionamento da forma, re-flexividade, centro — será a parábase de Corpo de baile e o modo como per-mite ler, de forma mais abrangente, o trabalho sobre a suspensão intervalar que os dois exemplos de Grande sertão: veredas já acentuavam. A parábase é também o eixo explícito da relação entre livro e narração (a forma do meio). Momento de suspensão da ação da comédia An ti ga, em que o coro avança para o proscênio e fala diretamente aos espectadores em nome do autor, a parábase ocupava o centro da estrutura da peça. extradramática e perturba-dora da ilusão ficcional, autorreferencial e intertextual, é um in tervalo que interrompe e ameaça a ficção contra a qual se define. Rosa incorpora a pará-base, como se verá em detalhe, através da duplicação dos índices de Corpo de baile, identificando três das sete novelas, no segundo índice, como “pará-bases”. O lei tor verifica, nesse momento, que esses três contos ocupam efeti-vamente o lugar da parábase na estrutura do livro, situando-se, como sus-pensões periódicas na sua mate riali dade, no intervalo entre os restantes. Tal como no exemplo an terior, o meio do livro revela-se depois, na saída, na fi-gura de um índice de releitura que relança o livro em direção a si pró prio a partir do seu limite. Ao tradutor italiano Rosa escre verá que a classificação deriva de se ocuparem, os três textos, de “expressões de arte”: a parábase de Corpo de baile, desse mo do, apresenta-se como momento reflexivo de expli-citação poé tica — nele a ficção reflete sobre a ficção e a sua transmissão — e como elemento da construção do livro, abrindo um intervalo, um centro, indissoluvelmente ligado à margem do livro que o indica e identifica — o índice. É através da parábase que encontraremos a imagem do livro rosiano: a de uma so licitação crítica que ameaça a ideia de um livro como unida de estruturada em princípio e fim para no mesmo gesto rea fir mar na releitura a construção de um livro que se alimenta do seu centro. Nessa conjugação de

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questionamento metaliterário e investimento numa forma desviante de li-vro, a pa rábase propõe-se como figura determinante para a ficção de Rosa, e o que aqui se fará é tomá-la como figura da interrogação da forma.

III

O percurso desta leitura determina-se assim na articulação dos dois pontos anteriores. O seu movimento irá, podemos arriscar, do fim ao meio: da ne-gação do fim como questionamento da forma à construção de um intervalo para o qual a legibilidade do informe se orienta. A forma do livro, instituin-do a releitura, será o ponto de passagem.

A primeira parte, intitulada “Indesfechos”, propõe, nos dois capítulos que a compõem, uma leitura das represen tações da narração na ficção de Guimarães Rosa. Aí veremos como a relação entre narrador, história e inter-locutor será configurada como uma relação de resistência, no sentido de uma retenção, de uma configuração, por negação, de um sentido incomple-to ou associado a uma falta, lacuna ou abertura constitutiva; mas também de uma tensão entre os elementos em diálogo que terá a sua manifestação mais forte nos tex tos em que Rosa recorre à fórmula do diálogo oculto. A reflexão en abîme sobre a narração em Guimarães Rosa parece con trapor a ordem resistente do narrador, que não permite o ani qui lamento da história, e o movimento da leitura, em que ouvintes e leitores procuram impor atra-vés da determinação de um fe chamento uma forma que delimite a história. É no encontro dessas duas forças que se dá aquilo a que chamei questiona-mento da forma e que parece funcionar, na obra de Rosa, no sentido de uma inscrição do segredo numa mate rialidade persistente. essa resistência é construída, como já sugeri, através de uma acentuação do corpo como lugar da história; e o que se decide nesse gesto é uma coincidência, na tensão ago-nística que destaquei, entre tentativa de imposição de uma conclusão e uma ideia de morte. A morte é a interrup ção, nesses textos, que termina aquilo que não pode ra zoavel mente terminar. esse movimento será caracterizado de duas formas: no primeiro capítulo, a partir de três exemplos significa-tivos (episódios de “uma estória de amor” e de Grande sertão: veredas, e o conto “Pirlimpsiquice”, de Primeiras e stórias); no segundo, numa proposta

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de leitura de “Meu tio o Iauaretê” como encenação extrema, na obra de Gui-marães Rosa, da nar ração como ato de resistência que resulta, pe rante a ten-tativa de eliminação do suporte, numa queda na ilegibilidade.

O passo seguinte dessa interrogação estabelece no trabalho sobre o livro, como figura de uma totalidade organizada e estruturada que a ficção deses-trutura, a forma dessa tensão. Na construção do livro rosiano é possível identificar a resistência que a história opõe ao livro, ou à ideia de livro, ou seja, a resistência que a ideia de ficção definida na primeira parte introduz no seio do próprio livro: a articulação entre livro e narração é o lugar da forma como problema. Nesse movimento define-se também de forma mais clara o lugar deste trabalho. Nos livros de Rosa reconhece-se a insistente encenação de uma forma plenamente delimitada que contra os seus limites se abre como lugar de uma comunicação resistente em que se problematiza a referência. e, no entanto, o problema do livro é um problema ausente da fortuna crítica rosiana. Se excetuarmos leituras individuais de livros em que a questão se impõe, como por exemplo Tutameia, são surpreenden-temente poucas as leituras que interrogam de forma transversal o papel do investimento sobre a forma do livro em Guimarães Rosa, e sobretudo que o procuram relacionar com outros aspectos da sua recepção2. A questão do livro permite, porém, um questionamento integrado das tensões estrutu-radoras da obra de Guimarães Rosa que articule diferentes leituras sem que se es gote em nenhuma delas: nesse sentido, o que me proponho é ler os li-vros de Rosa, acreditando que a partir deles é possível pensar uma ideia de literatura.

A leitura que desenvolvo na segunda parte, intitulada “O livro pode va-ler pelo muito que nele não deveu caber” e dividida por três capítulos, in-terroga então a dupla temporalidade em que a tensão da forma ganha corpo

2 Se, por um lado, é evidente que a recepção crítica rosiana constitui hoje um corpus excessivamente vasto e disperso para que não se coloque sob suspeita qualquer tentativa de generalização, também é verdade que certas tendências se têm delineado de forma muito precisa. Num ensaio publicado em 2004, Willi Bolle dividia os estudos sobre Grande sertão: veredas em cinco grandes grupos — 1) linguísticos e estilísticos; 2) análises de estrutura, composição e gênero; 3) crítica genética; 4) interpretações esotéricas, mitológicas e metafísicas; e 5) interpretações sociológicas, históricas ou políticas — para sublinhar que as últimas duas tendências “acabaram polarizando o debate em torno da obra” (Bolle, 2004, p. 20), movimento visível sobre-tudo a partir do final dos anos 1990. Trata-se de uma classificação meramente indicativa que pode fazer sen-tido, no entanto, para uma visão de conjunto da fortuna crítica.

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no livro rosiano: a linearidade do livro como forma estruturada e unificada e o prolongamento do livro, além do seu limite, num movimento regressivo em direção ao seu centro. essa interrogação faz-se em dois momentos. No primeiro, identifica-se uma constante dos livros de Rosa depois de Sagara­na3: a construção de uma forma estrutural de desdobramento que põe em causa a noção de margem, através da acentuação e multiplicação da dimen-são paratextual e do trabalho sobre a ilustração. Num segundo momento de senvolve-se uma leitura, a partir dos elementos de composição do livro, dos dois casos extremos de problematização da forma que apresentam a fi-gura de um “índice de relei tura”: Corpo de baile e Tutameia. A comparação entre os dois, ideia inicial deste projeto, permite introduzir um elemento decisivo para o questionamento da legibilidade que aqui está em causa: nos exemplos da primeira parte, a imposição de um limite fazia coincidir morte e interrupção; no índice de releitura, ao contrário, o livro prolonga-se, ne-gando a sua delimitação, em nome de uma legibilidade dife rida, como ten-tarei demonstrar, figura última da leitura da forma. É nesse traço que se fará mais explícita a rela ção da forma com o tempo: inscrita na materialidade do suporte, a desestabilização que a história produz no livro é tal que não anu-la o limite contra o qual se constrói, e nesse sen tido o movimento que o li-vro origina é um movimento regressivo, que devolve, através da figura da parábase, o leitor ao centro do livro, intervalo crítico em que a forma se suspende e se revela. Nesse gesto decide-se a configuração do livro como errata, forma em transformação, e a identificação dos dois polos desse movi-mento, que serão objeto da parte final: a releitura e a parábase.

Na terceira parte, intitulada “Só se pode entrar no mato é até ao meio dele”, o primeiro capítulo identifica três movimentos dessa desestabilização regressiva do livro a partir de Grande sertão: veredas: a revelação póstuma como fi gura da negação da closure; a interrupção central que questiona a forma sem a destruir, parábase do romance; e, por último, o movimento

3 Sagarana, livro que antecede de dez anos a publicação de Corpo de baile em 1956, ficará fora do âmbito deste trabalho, apesar de muitas das questões que aqui se levantam poderem — numa releitura a partir dos livros posteriores — iluminar a sua leitura. este trabalho toma como possíveis limites para a escolha e a coesão do corpus a construção de Corpo de baile (1956) e Tutameia (1967), a partir do comum tratamento do livro que aí, e nos livros que medeiam, se identificará. As questões principais que aqui se tratarão passam pela identifi-cação de movimentos reflexivos; como afirma Suzi Sperber, é só a partir de Corpo de baile que “ida e volta, travessia, [se] convertem em problemas metalinguísticos” (Sperber, 1982, p. 113).

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retroativo da releitura na representação da carta atrasada de Nhorinhá como figura en abîme desse questionamento da legibilidade. A construção do livro ana lisada a partir de Tutameia é aí articulada com a construção do romance, interrogando em particular a dimensão temporal da repetição e a função do reconhecimento como figura estrutural do questionamento da forma. O segundo e último capítulo identifica em “cara-de-Bronze” o ponto de fuga dos movimentos que aqui se descreveram. Parábase da parábase, como ar-gumentarei, toda a sua construção encena uma resistência da forma em tor-no de um centro que se furta à representação. O texto cruza a definição de uma aprendizagem poética e do fazer do próprio texto com um questiona-mento da experiência literária e dos seus efeitos a partir de uma multiplica-ção de formas que delimitam, enquanto ponto de atração, a ideia de poesia como núcleo ao mesmo tempo vital e irrepresentável. Texto central na obra de Rosa, nele se encontrarão as linhas que defi nem reflexivamente a ideia de representação que está em causa nessa ficção, fazendo da tensão com os li-mites da forma o ponto de superação de uma ideia de morte. “cara-de-Bronze”, assim, encerra o movimento de uma leitura contra a forma em tor-no da suspensão da parábase: só se pode entrar no mato é até ao meio dele.

uma última nota a esta apresentação do caminho a percorrer. Se a estru-tura do livro é a que se descreveu, é preciso dizer ainda alguma coisa sobre o procedimento de leitura: o trabalho de subversão da forma que está aqui em causa é identificado, essencialmente, através de episódios e passagens míni-mas que refletem (ou invertem) movimentos maiores dos textos em análise. Apenas dois dos textos considerados serão lidos como totalidade: “Meu tio o Iauaretê” e “cara-de-Bronze”, os dois extremos dessa interrogação da for-ma, o primeiro encenando o colapso do texto perante o seu limite violento e o segundo construindo regressivamente além do fim o espaço irrepresen-tável da forma do centro. Todas as outras passagens irão fazer-se através da consideração de elementos marginais, tanto no sentido literal, que faz do paratexto do livro o lugar da sua subversão e relançamento, quanto em sen-tido figurado: pequenos episódios ou personagens aparentemente secun-dárias, na economia dos textos ou na recepção crítica, que introduzem neste trabalho uma segunda narrativa, que só na leitura se poderá acompanhar, e que faz de personagens como Joana Xaviel, o Guegue, Nhorinhá ou Aris-teu — men digos, prostitutas e bobos a quem o texto reserva escassos pará-

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A forma do meio

grafos — as fissuras decisivas de uma resistência à forma. Tentarei aqui mos-trar que são essas as veredas que permitem a leitura da forma do sertão.

IV

Feita a apresentação do percurso, falta explicar-lhe o contexto. Apresentado inicialmente como tese de doutoramento em estudos comparatistas à uni-versidade de Lisboa em 2009, este livro é o resultado, agora revisto, do tra-balho desenvolvido do final de 2003 ao início de 2009 entre Portugal, Brasil e estados unidos. contou com a indispensável orientação, em todos os sentidos, dos professores Manuel Gusmão e Abel Barros Baptista, que tor-naram possível essa travessia. e não teria acontecido sem a companhia e o apoio da minha família, dos amigos, dos professores e colegas que, de dife-rentes modos, fizeram parte do caminho. Agradeço em particular aos meus pais, a Teresa Amado, Orlanda Azevedo, Helena Buescu, Vânia chaves, João Dionísio, Jussara, Ângela Fernandes, Francisco Frazão, Richard Gor-don, Herb Marks, Nuno Matos, José Maria Vieira Mendes, Ariane Nunes, Arianna Pieri, João Ribeirete, clara Riso, Francisco Rosa, Filipa Ribeiro do Rosário, Bárbara Vallera, Roberto Vecchi e Riccardo Wanke. No Brasil con-tei com a amizade e a ajuda de Lélia Parreira Duarte, de Milton Ohata, de José Miguel Wisnik e Laura Vinci, da Luz e do caio. Ao Instituto de estu-dos Brasileiros e ao Arquivo Guimarães Rosa, quero agradecer a hospitali-dade e a disponibilização de materiais. À companhia de Navegação do Rio São Francisco, a viagem no Santa Doroteia. Mas este livro é para o Marco, por todas as razões.

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