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Maria Manoella Beaklini Baffa A forma da metafísica: sobre a história na obra tardia de Heidegger Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação do Departamento de Filosofia da PUC-Rio como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Eduardo Jardim de Moraes Rio de Janeiro, setembro de 2005

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Maria Manoella Beaklini Baffa

A forma da metafísica: sobre a história na obra tardia de Heidegger

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação do Departamento de Filosofia da PUC-Rio como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Orientador: Eduardo Jardim de Moraes

Rio de Janeiro, setembro de 2005

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Maria Manoella Beaklini Baffa

A forma da metafísica: sobre a história na obra tardia de Heidegger

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Eduardo Jardim de Moraes Orientador

Departamento de Filosofia – PUC-Rio

Prof. André de Macedo Duarte Departamento de Filosofia – UFPR

Prof. Edgar de Brito Lyra

Departamento de Filosofia – PUC-Rio

Profa.Kátia Muricy Rodrigues Departamento de Filosofia – PUC-Rio

Profa. Nelcy Nascimento

Departamento de Filosofia – UERJ

Prof. Paulo Fernando C. de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia

e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 23 de setembro de 2005

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Maria Manoella Beaklini Baffa

Graduou-se em comunicação social pela PUC-Rio em 1997. Obteve, em 2001, o título de mestre em filosofia, com uma dissertação intitulada “Heidegger e o sentido da história”. Participou de diversos congressos, colóquios e seminários, abordando temas ligados à fenomenologia e à filosofia da história moderna e contemporânea. Tendo recebido uma bolsa sanduíche da Capes, realizou pesquisas na Universidade de Nice entre 2002 e 2003. Obteve, nesta mesma universidade, um Diplôme d’Etudes Approfondies em filosofia e história das idéias, sob a orientação da Profa. Françoise Dastur. É professora dos cursos de especialização em filosofia da PUC-Rio.

Ficha Catalográfica

Baffa, Maria Manoella Beaklini

A forma da metafísica: sobre a história na obra tardia de Heidegger / Maria Manoella Beaklini Baffa ; orientador: Eduardo Jardim de Moraes. – Rio de Janeiro : PUC-Rio, Departamento de Filosofia, 2005. 188 f. ; 30cm Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia. Inclui bibliografia 1. Filosofia – Teses. 2. Metafísica. 3. História. 4. Martin Heidegger. 5. Modernidade. 6. Forma. I. Moraes, Eduardo Jardim de. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.

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À memória de Antonio Abranches,

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Agradecimentos

Ao Eduardo Jardim. Aos professores do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ao CNPq, pela bolsa de doutorado concedida. À Capes, pela bolsa “sanduíche” concedida entre 2002 e 2003. Aos amigos Edgar Lyra, Andrea Bieri, Filipe Ceppas, Tito Marques Palmeiro e Pedro Duarte. A Françoise Dastur e Eliane Escoubas. Ao André Duarte. A Benoit Guilielmo e Alexandre Martin. A Myriam, Altair, Marianna e Maria Pia. A Jean-Baptiste.

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Resumo

Em 1927, Heidegger dedica um dos capítulos finais de Ser e tempo a mostrar o “nexo” entre a sua exposição do problema da historicidade e as pesquisas de Wilhelm Dilthey. O capítulo consiste numa série de citações de trechos da correspondência entre Dilthey e um certo Conde Yorck, em que as cartas citadas, curiosamente, são apenas as deste último. O que Heidegger encontra nessas cartas é a afirmação de que o pensamento histórico tradicional se atém, “com imensa força, a determinações puramente oculares”. O que ele descobre na crítica do Conde Yorck à tradição da historiografia é que o figurável, o imagético, o “esteticamente construído”, literalmente, o espetacular, são o objeto historicamente privilegiado da reflexão – histórica ou filosófica – sobre a história. Cerca de trinta anos mais tarde, é Heidegger quem escreve uma carta a Ernst Jünger, dizendo que em seu livro O Trabalhador Jünger teria dado à forma um “estatuto sagrado”. No intervalo, o projeto de fundamentar existencialmente a historiografia foi abandonado e Heidegger passa a interrogar o que se decide na história do Ocidente sob o nome de “metafísica”. Nessa nova posição, vemos se elaborar a perspectiva de que uma cumplicidade bi-milenar entre a forma, a idéa e o ser mobiliza o pensar e o fazer ocidentais. Heidegger confiará então a Jünger que a forma é “potência metafísica”. A tese parte dessas duas indicações principais para pensar o que está em jogo nessa potência “ocular” que Heidegger identifica na (e à) história da tradição. Em seguida, ela coloca a questão sobre o sentido e a possibilidade de uma superação do recurso metafísico à imagem.

Palavras-chave Metafísica; história; Martin Heidegger; modernidade; forma

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Résumé En 1927, Heidegger consacre l’un des derniers chapitres de Etre et temps à

exposer le « lien » entre ses propres développements concernant le problème de l’historicité et les investigations menées par Wilhelm Dilthey sur ce même sujet. Le chapitre se compose d’une suite de citations de passages de la correspondance entre Dilthey et son ami le Comte Yorck von Wartenburg, mais les lettres reprises par Heidegger ne sont que celles du Comte Yorck. Il y reconnaît l’affirmation que la pensée historique traditionnelle s’attache encore de façon profonde à des « déterminations purement oculaires ». Ce que Heidegger découvre dans la critique du Comte Yorck à la tradition de l’historiographie, c’est l’idée que le figuratif, l’imaginable, « l’esthétiquement construit », ou littéralement le spectaculaire sont des objets historiquement privilégiés par la réflexion – historique ou philosophique – sur l’histoire. Presque trente ans plus tard, c’est encore dans le contexte d’un échange épistolaire que nous verrons s’élaborer sous la plume de Heidegger une critique au privilège de la figure. Dans une lettre alors adressée à Ernst Jünger, il reprochera à son interlocuteur d’avoir conféré à la forme « un statut sacré ». Entre-temps, le projet annoncé dans Être et temps de fonder l’historiographie sur une compréhension propre de l’existence a été abandonné. Il s’agit alors d’interroger la portée de cette tradition que Heidegger désignera du nom de « métaphysique ». A la base de cette nouvelle position, c’est une complicité fondamentale entre la forme, l’idée et l’être qu’il s’efforcera de montrer, laquelle aurait mobilisé la pensée occidentale depuis deux millénaires. Heidegger le confiera à Jünger : « la forme est puissance métaphysique ». La thèse partira de ces deux indications principales pour penser ce qui est en cause dans cette « puissance oculaire » que, depuis les années vingt, Heidegger semble identifier à l’histoire de l’Occident. Ensuite nous poserons la question sur le sens et la possibilité d’un dépassement du recours métaphysique à l’image.

Mots-clefs Métaphysique; histoire, Martin Heidegger, modernité, forme

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Sumário Introdução 11 1. A fabricação da História : da entronização e do declínio de um conceito 26 Uma idéia da história 30 Para educar a humanidade 34 A Idéia na história 38 Fatos e fontes 44 Crítica da razão histórica 47 Da história à vida 51 Da vida à história 54 Da visibilidade da história 57 2. A forma da metafísica e a travessia da história 67 Do quê e do como 73 A paidéia platônica e o pôr em forma da verdade 75 A metafísica entra em cena 78 Um novo modo de (não) ver 81 Uma marcha, um desvio, uma volta 84 O motu continuum da transcendência 88 Um sistema de equivalências? 91 Uma indecisão originária 93 3. De um extremo a outro da metafísica: “o mesmo essencialmente transformado” 100 Diferentes posições, novas configurações 102 Breves inventários 109 A verdade imperial 112 Um deus que dá ordens 115 Que a verdade e a justiça... se façam 118 Operari, facere, agere: “o real incluído no procedimento do agir” 123 Uma metafísica da manufatura? 128 Uma dobra sobre si: do apequenamento metafísico do mundo 136 4. O mundo feito imagem 142 Para onde tudo retorna 145 Weltbild e Weltanschauung: a antropologia em sua última forma 148 Maquinação e vivência 153

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Vontade e sistema 158 A fisionomia do novo homem 165 Uma antiga inscrição 173 Considerações finais 181 Referências bibliográficas 187

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“Teoria da imaginação. É a faculdade de plasticizar.”

Novalis, Das allgemeine Brouillon, 698

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IInnttrroodduuççããoo

“Se a história fosse uma coisa, então seria compreensível que, para reconhecê-la, fosse-nos exigido que nos estabeleçamos ‘acima’ dela.” 1

Se o século XIX constituiu o momento do apogeu do que Foucault chamou de

a “Era da história”2, se ele foi de fato, segundo a expressão freqüentemente evocada,

o “século da história”, o século XX talvez mereça ser chamado de o “século da anti-

história”. É nele que, com uma força jamais antes vista, o modelo robusto das

filosofias da história universal será definitivamente posto à prova. Criticadas

ferozmente ao longo das últimas décadas como secularizações de velhos sonhos

messiânicos, essas filosofias parecem finalmente ultrapassadas. Caídas não somente

em desuso, mas praticamente em desonra, faz muito tempo que ninguém sonha em

ressuscitá-las. A História com “h” maiúsculo, o relato da ascensão e declínio das

civilizações e das culturas, das grandes obras e feitos da humanidade, já não parece

interessar nem mesmo aos historiadores de profissão. Naturalmente, a noção mesma

de uma “humanidade” é hoje tão desacreditada quanto a de História. Pode-se dizer

que esse descrédito se deu a partir do momento em que se começaram a questionar os

pressupostos envolvidos nas concepções excessivamente englobantes, nas “vastas

construções abstratas”3 nas quais se enveredaram as filosofias da história do mundo.

O ritmo seguro do movimento histórico, marcado pela promessa de um acontecer

eventualmente oblíquo, mas ainda assim infalível das conquistas e progressos da

civilização, já há muito deixou de ecoar nos ouvidos dos homens civilizados. Mas se

é bem verdade que a noção de uma Weltgeschichte glorificando a marcha do Espírito

humano e sua progressiva realização sofreu, ainda no século de Hegel, uma crítica

1 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 202 (tr.fr., p. 162). 2 Cf. FOUCAULT 1966, p. 229. 3 A expressão é de Charles Langlois, historiador francês que viveu a passagem do século XIX ao XX, e cuja obra Introduction aux études historiques (1898) iria se tornar por muito tempo uma espécie de bíblia da metodologia histórica. Cf. LANGLOIS, SEIGNOBOS 1898, p. 17.

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suficientemente corrosiva, e que foi o próprio século XIX que iniciou o processo de

desmoronamento das “metafísicas da história” e sua pretensão de formular a priori as

leis que governam o curso dos acontecimentos, é o século XX quem formulará a

rejeição ao moderno conceito da história com uma ênfase jamais antes ouvida. Essa

rejeição, partilhada e expressa por filósofos das mais diversas correntes, mas também

por teólogos, sociólogos, cientistas e intelectuais em geral, operará um corte

definitivo no que fora até ali festejado como uma verdadeira revolução: a tomada de

consciência que, no seio da modernidade ocidental, havia sido finalmente capaz de

reconhecer na “razão histórica” uma chave para a compreensão do universo humano

– e justamente nessa “compreensão” (Verstehen), a faculdade capaz de conduzir a

História no caminho seguro do conhecimento científico.

A generalização e radicalização de uma posição resolutamente crítica em

relação ao problema da história se dão a partir de meados dos anos 1940. Sob um tom

e uma urgência até então inéditos, o que se buscará promover, sob perspectivas e com

ênfases diversas, é um balanço do legado deixado pelo pensamento histórico no

Ocidente. O que se verá é algo como uma reedição da proposta nietszcheana de

considerar as vantagens e desvantagens da história para a vida, sem que seja a vida,

no entanto, o “valor” que se pretende aí diretamente reivindicar. Nesse momento,

tratar-se-á de pensar, ou melhor, de pesar o alcance propriamente político de

determinados tipos de interpretação do processo histórico, e mais precisamente de

medir certas conseqüências indiretas, mas talvez intrínsecas ou mesmo inevitáveis ao

tipo de concepção da história que se elabora no âmbito do pensamento filosófico

moderno. Essa crítica terá como foco alguns pressupostos envolvidos numa idéia que,

ora afirmada, ora recusada, em todo caso incansavelmente postulada por um bom

número de autores a partir do século XVIII, acabou por constituir uma espécie de

ápice, algo como uma apoteose de toda a filosofia moderna. A “idéia”, grosso modo,

seria a da história pensada como um todo pleno e fechado sobre si mesmo, com um

início e um fim, e nesse sentido pronto a ser representado através de todas as suas

épocas e etapas a partir de um fio condutor único. Precisamente esse fio condutor,

isto é, a suposição de uma orientação interna capaz de assegurar à marcha dos

acontecimentos ao mesmo tempo um significado e uma direção, será visto como o

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pressuposto fundamental, o fundo sobre o qual repousariam as representações

“totalizantes” da história produzidas ao longo da modernidade. O fato é que tanto um

quanto o outro, tanto a concepção da história em termos de totalidade quanto o fundo

de sentido que a sustentaria serão pouco a pouco convertidos no verdadeiro ponto

cego da tradição do pensamento histórico ocidental. E é tomando esta tradição como

objeto de análise, questionando suas obras, seus propósitos explícitos e suas

entrelinhas, que começa a se construir, menos como um debate e mais como uma

discussão difusa, encontrando ecos, criando respostas e polêmicas aqui e ali, a crítica

à idéia de “sentido na história”, anunciada com todas as letras por Karl Löwith em

seu livro publicado em 1949 nos Estados Unidos, sob o título de Meaning in history4.

Neste livro cuja tese principal teria adquirido, segundo Hans Blumenberg,

“valor de dogma”5, Löwith tenta mostrar que o que separa a filosofia da história

moderna (que culmina com Hegel) de uma dita “teologia da história”, é nada mais do

que a substituição da problemática da transcendência – ilustrada em Agostinho, por

exemplo, pelo tema das duas cidades, a divina e a terrestre – por uma problemática da

imanência, isto é, do sentido como imanente ao curso da história humana. Quatro

anos após a edição americana da obra, o autor tornará explícita essa posição,

adicionando à sua tradução alemã o subtítulo: “as implicações teológicas da filosofia

da história”6. Quanto a esta última, sua definição é enunciada logo na introdução, e

ela designa “a interpretação sistemática da história do mundo segundo um princípio

diretor que permite pôr em relação acontecimentos e conseqüências históricas e

relacioná-los a um sentido último”7. Compreendida deste modo, “toda a filosofia da

história torna-se totalmente dependente da teologia, isto é, da interpretação teológica

da história como história da Salvação”8. Assim, para Hegel, a história do mundo é

uma teodicéia e a astúcia da razão é o conceito racional para designar a Providência.

O materialismo histórico de Marx, por sua vez, “uma história sagrada formulada em 4 Cf. LÖWITH 1949: Meaning in history, Chicago, Chicago University Press. 5 Citado em MONOD 2002, p. 35. Jean-Claude Monod faz referência à obra de Blumenberg: Die Legimität der Neuzeit, que discute em que medida as teorias políticas e filosofias da história modernas podem ser entendidas como simples “secularizações da teologia cristã”. 6 Esta tradução, feita por Hanno Kesting, foi revista e ampliada pelo próprio autor e publicada na Alemanha como Weltgeschichte und Heilsgeschehen. Die theologischen Voraussetzungen der Geschichtsphilosophie, Stuttgart, Kohlhammer, 1953. 7 LOWITH 1949, p. 21. 8 Ibid.

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termos econômicos” e a fé comunista “uma pseudo-metamorfose do messianismo

judaico-cristão”9. De fato, para o autor de O sentido da história, a consciência

histórica moderna poderia ter se despojado da fé cristã num acontecimento central de

uma significação absoluta – para os cristãos, a encarnação de Jesus Cristo –, mas ela

se manteve fundamentalmente presa a seus postulados e a suas conseqüências. A fé

numa revelação progressiva da verdade divina converteu-se em fé num

aprimoramento racional igualmente progressivo da humanidade. Assim, “contra a

opinião comum de que um pensamento histórico verdadeiramente digno deste nome

teria começado apenas no século XVII”10, Löwith não hesitará em sustentar que toda

a moderna filosofia da história tem raízes na crença bíblica na redenção. “A

consciência histórica é determinada pelo motivo escatológico, e isto de Isaías a Marx,

de Agostinho a Hegel, de Joachim de Fiore a Schelling”11.

O “argumento do sentido”, circunscrito por Löwith basicamente em termos da

secularização de concepções históricas oriundas da teologia, passa então a ser

perscrutado em obras e períodos os mais diversos. A afirmação de um sentido para a

história do mundo, reinando independente e a despeito de toda contigência

eventualmente experimentada nesse mesmo mundo, desdobraria o duplo registro

implicado no próprio termo “sentido”. Seus críticos mostrarão que um tal sentido, ao

se apresentar por um lado como um elo ou vínculo, como causa imanente ou

transcendente impondo aos eventos a medida de sua coerência possível, anunciaria

por outro lado o objetivo ou fim que, uma vez levado a termo, conduziria o processo

histórico à realização de seu significado supremo. Através dessas duas dimensões

supostamente complementares, a certeza de um sentido, além de poder dotar de

significação o curso confuso dos acontecimentos mundanos, seria a prova de que

estes rumam, a despeito de todo eventual obstáculo, de possíveis acasos e

contingências, em direção a um fim devido e esperado. Falando em termos mais

tradicionais, é como se o sentido, enquanto causa eficiente ou motriz operando na

história, como uma espécie de força atuando e dirigindo as diferentes etapas de seu

devir, fosse o elemento capaz de conduzi-la à sua realização última, a seu télos

9 Ibid., pp. 70-71. 10 Ibid., p. 22. 11 Ibid., p. 84.

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específico, ou seja, à causa final de todo o processo. E os indícios mais visíveis dessa

espécie de permuta lingüística se encontrariam no próprio vocabulário de nossas

línguas ocidentais, em que a palavra “sentido”, guardando a dupla acepção de finis e

télos, comportaria tanto a noção de “significação” (Sinn, sens, sense) como a de

“objetivo” ou “propósito” (Ziel, but, purpose), termos que em sua utilização corrente

se revelam, de fato, freqüentemente equivalentes ou intercambiáveis.

A posição apresentada pelo livro de Karl Löwith pode ser vista como o

exemplo mais nítido de uma certa percepção da história que começou a ser

encampada relativamente cedo pelo século XX, em meio às querelas em torno do

historicismo e da sua “crise”12. Mas o que ela parece trazer à tona pela primeira vez

de modo realmente explícito é o momento de uma convergência definitiva entre dois

diagnósticos: de um lado, uma crise efetiva da tradição, que há muito havia

extrapolado os circuitos acadêmicos e o campo cerrado das discussões puramente

metodológicas e se incorporado em diversos tipos de visões de mundo; do outro, a

idéia ou o conceito da história por meio dos quais o homem moderno durante séculos

se auto-representou ou projetou. Embora nenhum dos autores contemporâneos

sensíveis ao argumento do sentido na história tenha se preocupado, como Löwith, em

justificar seus resultados por meio de uma cronologia invertida, era a tese da

secularização que ele explicitamente punha em jogo que acabaria por marcar um

ponto de confluências entre eles. Verificar a existência, senão de um motivo comum,

ao menos de uma estrutura formal muito semelhante nas diferentes e mais distantes

concepções da história ocidentais tornou-se um exercício aparentemente

incontornável a todos os que pretendiam se confrontar com o problema. Sem

entrarmos na questão de saber até que ponto essas aproximações entre universos e

épocas tão distantes e diversos — e Löwith não faz outra coisa ao longo das quase

duzentas páginas de sua obra — não equivale a repetir um dos gestos característicos

do discurso dos mesmos teólogos e filósofos da história por ele “revisitados”, o fato é

que tais críticas num certo sentido contribuíram para circunscrever o horizonte disto

que ainda hoje é chamado, de forma mais ou menos problemática, de “filosofia da

12 Cf. a esse respeito BAMBACH 1995: Heidegger, Dilthey and the crisis of historicism, Ithaca, Cornell University Press.

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história”. Paralelamente a isso, contudo, o maior efeito produzido por essas

contendas, pela discussão em torno do tema da secularização – Hannah Arendt, por

exemplo, jamais aceitou a tese de uma secularização de conceitos, afirmando que o

termo corresponde a um evento na história do mundo, e não a uma suposta conversão

de pontos de vista teológicos em pontos de vista racionais ou mundanos –, o maior

efeito, nós dizíamos, talvez tenha sido o de “tornar muito difícil, no século XX, não

sorrir diante das pretensões daqueles que ousavam ainda falar do sentido da

história”13. Num artigo escrito em 1944, um ano antes de sua morte, Ernst Cassirer

resume a atmosfera intelectual dessa época dizendo que “um dos problemas mais

difíceis e mais controvertidos do pensamento filosófico contemporâneo é o problema

da filosofia da história”14. Vindo de alguém que praticamente atravessou o século XX

tentando dar nova luz a questões que inflamaram a filosofia e a ciência dos tempos

modernos – dentre as quais a de como filosofar sobre a história constituiu um marco

definitivo –, a declaração aparentemente circunstancial pode comportar algo de

dramático.

Em História e verdade, Ricoeur declara que a sua geração era “sem dúvida

mais sensível que as precedentes a uma certa ambigüidade do desenvolvimento

histórico”15. Mas parece pouco dizer que os pensadores do século XX, e

especialmente aqueles da geração de Ricoeur, tenham somente hesitado mais do que

seus antecessores em sugerir que a história em todo seu conjunto pudesse ter algum

sentido. Mais do que ambigüidade, do que hesitação ou aporia, a tonalidade que

marcou a reflexão histórica do século XX foi a da perplexidade, a de um embaraço

radical. Num ensaio escrito em 1952, o historiador Henri-Irénée Marrou, para quem

filosofia da história era também sinônimo da “laicização de uma teologia”, de um

“dogmatismo ingênuo”16, declara:

A noção de um sentido da História tornou-se uma noção corrente entre nossos contemporâneos, um tema de propaganda política, um princípio de ação: é em nome

13 Cf. LAGUEUX 2001, p. 139. 14 Cf. CASSIRER 1940/44, p. 51. 15 RICOEUR 1955, p. 298. 16 Cf. LAGUEUX 2001, p. 3.

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do sentido da História que agem nações e partidos, que em países totalitários ‘liquidam-se’ adversários, convencidos de que eles se opõem à marcha da História.17

A partir do momento em que a censura às filosofias especulativas da história

tornou-se uma espécie de parti pris, pareceu natural a muitos autores que qualquer

pensamento ainda interessado em que a história “fizesse algum sentido” revelasse, de

antemão, um certo comprometimento. Falar em sentido da ou na história tornara-se a

marca registrada, seja dos que tinham uma compreensão limitada e no melhor dos

casos ingênua do colapso histórico e político do mundo contemporâneo, seja dos que

buscavam justificar esse colapso a qualquer custo em nome de sabe-se lá que

interesses ideológicos.

Recentemente, o canadense Maurice Lagueux, autor de um livro sobre a

Atualidade da filosofia da história, propõe a seus leitores levar em conta “a

possibilidade de que haja algo de um pouco excessivo na condenação geral de que

foram vítimas as filosofias especulativas da história”18. Anunciando de saída que seu

objetivo é tentar esquivar tanto o elogio indulgente quanto a denúncia indignada, ele

afirma que uma tal condenação parece tão mais questionável quanto as impugnações

freqüentemente dirigidas às teorias especulativas do sentido histórico tinham como

propósito pôr em questão as pretensões, elas mesmas tidas como “excessivas”, dos

filósofos da história19. Quanto aos motivos prováveis dessa crítica generalizada,

Lagueux propõe algumas pistas. A questão é formulada logo na segunda página do

livro mais ou menos nesses termos: o descrédito que sofrem hoje as filosofias da

história não teria como base o fato de que elas serviram como uma espécie de bode

expiatório a ideologias pretensamente oriundas da história intelectual ocidental, sendo

ligadas, direta ou indiretamente, às aberrações políticas mais funestas que se

produziram no século XX? Não é assim que boa parte dos intelectuais que

testemunharam os eventos catastróficos da história recente buscaram a todo custo se

dissociar das reflexões que, nesse domínio, não tinham como critério primeiro uma

sóbria metodologia científica?20

17 MARROU 1952, p. 5. 18 LAGUEUX 2001, p. viii. 19 Ibid., p. xiii. 20 Ibid., p. viii.

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A pista fornecida em forma de questão pelo escritor canadense toca o cerne do

nosso problema. Ela aponta para o pano de fundo sobre o qual, de uma maneira ou de

outra, parece se mover boa parte dos juízos que o século XX emitiu acerca das

filosofias da história, seja contra os atalhos e as “sínteses audaciosas”21 por elas

produzidos, ou contra a ilusão e a arbitrariedade vistas como inerentes a seus

propósitos. Para os que conheceram os horrores associados às duas grandes guerras, à

grande crise que explodiu no intervalo, aos campos de concentração e, sobretudo, aos

genocídios que atravessaram o século, prover fundamentos para a “marcha” da

história já não era indício de ingenuidade, mas, sim, de temeridade. Que tais filosofias

fossem vistas como meros delírios teóricos destituídos de qualquer força persuasiva

no mundo das ações e decisões políticas, ou como graves equívocos ideológicos

dotados de uma retórica perigosa capaz de engendrar criaturas em forma de regime

político, a crítica ao “sentido da história” era uma forma de defrontar os eventos

brutais que haviam marcado a história recente. Se a idéia da história como o processo

que conduz a humanidade à plena possessão da razão (e desta à conseqüência

aparentemente evidente de uma organização melhor e mais justa da sociedade) já

havia perdido toda e qualquer evidência, é porque, ao contrário, nada parecia mais

evidente do que a total ausência de sentido na qual desaguava enfim toda uma

tradição. Para a geração que se queria definitivamente dissociada das ilusões da razão

e do progresso, tanto o otimismo racional das Luzes quanto o voluntarismo político

das teorias do idealismo precisavam ser revistos. O misto de melancolia e esperança

de um Kant refletindo “como se” a espécie humana seguisse um plano racional

traçado pela Natureza, o entusiasmo quase trágico de um Condorcet ao resumir em

dez épocas a marcha en avant do espírito humano, as viravoltas de um Schiller

tentando conciliar liberdade e beleza com o intuito de educar a humanidade, a

coragem intelectual de um Fichte reivindicando liberdade de pensamento “para os

doutos”, os arroubos identitários de um certo romantismo político conscientemente

carregado de contradições, isso sem nada dizer de Hegel, cujo projeto monumental de

reconstruir a História do mundo sobre o solo do Espírito Absoluto seguia sendo o

símbolo mais eloqüente das pretensões “totalizantes” das metafísicas modernas –

21 Cf. RÉMOND 1956, p. 12.

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tudo precisava ser revisto, como se o inimigo estivesse escondido em qualquer

esquina e por onde quer que se espreitasse o vasto conjunto de doutrinas políticas,

históricas e filosóficas produzidas no Ocidente. Tal exercício de vigilância foi a

tônica dominante de boa parte da produção intelectual surgida a partir dos anos

quarenta e, se o clima de crise era apenas sacramentado, a crítica dessa vez se via

forçada a não negligenciar qualquer um dos seus alvos possíveis. De lá até aqui,

pode-se dizer que tanto um quanto o outro reinaram praticamente absolutos. “Crítica

e crise”, parafraseando Reinhardt Koselleck, um dos proeminentes teóricos da

história do século XX22, se confirmavam finalmente como termos aliados na sua

eterna vocação para a dissolução. Terminado o século XX, não é exagero dizer que

qualquer pensador consciente dos percalços políticos de nossa era tenha hesitado em

encampar a idéia de que a história possa afinal ter qualquer sentido – que se leia isto

como a obediência a um suposto desígnio a priori e transcendente ou como a

realização de uma tendência imanente, latente no próprio fluxo dos acontecimentos.

* * *

Mas o que tudo isso tem a ver com o nosso tema? Qual o lugar de Heidegger

dentro desse quadro já inúmeras vezes reconstituído da crise de fundamentos do

pensamento ocidental e perda das referências tradicionais que marcou, de uma forma

geral, a história do século XX?

Heidegger pode ser contado entre os autores para os quais pensar a crise da

tradição é ao mesmo tempo questionar a auto-interpretação do homem moderno em

relação a sua história. Desde o início dos anos vinte, quando vinha tomando forma

em seus cursos o que Ser e tempo nomeou como o projeto de uma “ontologia

fundamental”, se impunha a necessidade de pensar a história (Geschichte)como uma 22 “Kritik und Krisis: ein Beitrag zur Pathogenese der burgerlichen Welt” é o título de uma obra publicada em 1979 por Koselleck, que se tornou uma referência importante no estudo da história das idéias políticas modernas. Na tradução brasileira: Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês, tr. Luciana Castello-Branco, Rio de Janeiro, EdUERJ/ Contraponto, 1999.

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estrutura constitutiva de nosso próprio modo de acesso ao mundo. Heidegger se

perguntava aí sobre a possibilidade de se manter com a tradição uma relação viva e

questionadora, de se franquear um caminho para um encontro fecundo do passado.

Segundo a conhecida formulação do parágrafo 6 de Ser e tempo, tratava-se de

realizar, através de um “retorno positivo”23 à tradição do pensamento filosófico, uma

“destruição” (Destruktion) capaz de liberar os conceitos e categorias tradicionais das

múltiplas camadas de sentido que séculos de história lhes haviam sucessivamente

atribuído. O caráter negativo dessa destruição, Heidegger insistia, “era apenas

implícito e indireto”24. Ao constatar no presente, “através de muitas filiações e

distorções”25, a permanência do aparato conceitual da ontologia grega, seu intuito era

o de chegar às experiências originárias em que tais conceitos e categorias haviam

sido obtidos. A tradição, Heidegger afirmava então, pode desarraigar de tal modo o

homem de sua história que este, em meio a todo o interesse por fatos históricos e por

interpretações objetivas, acaba sendo incapaz de compreender as condições de um

retorno a à história no sentido de sua “apropriação produtiva” (produktiven

Aneigung).26

Seja como for, a crítica a um conceito da história por demais petrificado,

fundado numa compreensão equivocada, espacializada do tempo, nem sempre

coincidiu, em Heidegger, com a total supressão da possibilidade de pensar um

sentido para a história como um todo. E isto valerá ainda mais para a obra posterior a

Ser e tempo. Nesse momento mais tardio, numa perspectiva que começa a ganhar

corpo após os anos trinta, é precisamente o contrário que parece se dar. Ao trazer ao

centro do seu questionamento da tradição a enigmática expressão “história do ser” –

Seinsgeschichte –, Heidegger passa a ler a história do pensamento ocidental em

termos que, segundo muitos intérpretes, não fariam senão reeditar o modelo das

grandes filosofias da história do mundo. A Seinsgeschichte constituirá daí em diante

um dos termos-chave do pensamento heideggeriano. Através dela, Heidegger se

lança numa espécie de travessia da história da filosofia ocidental, buscando nela os

23 Cf. HEIDEGGER 1927, I, p. 23 (tr.br., p. 51). 24 Ibid. 25 Ibid., p. 20 (tr.br., p. 50). 26 Ibid., p. 21 (tr.br., p. 50).

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indícios de uma forma de pensar e experimentar as coisas e o mundo que teria selado

a posteridade do Ocidente. Tal pensamento e experiência ele chamará então de

“metafísica”. De Platão a Nietzsche, e se estendendo à ciência e à técnica

contemporâneas, de um extremo a outro de um trajeto permeado de figuras do ser

capazes de “fazer época”, Heidegger mergulhará durante anos numa leitura dos

clássicos da tradição filosófica, acenando a partir de cada uma delas para a formação

de um mundo destinado a vigorar. O fato é que em nenhum momento ele se recusará

a interrogar essa história do ponto de vista de uma unidade profunda. O estatuto

dessa unidade, que ele diz ser historial (geschichtlich) e não simplesmente histórica

(historish)27 – não é como produto de uma coesão metodológica ou narrativa fundada

em eventos passíveis de demonstração que ela se constitui –, alcançará no

pensamento de Heidegger uma dimensão absolutamente crucial.

É aqui mesmo que um certo traço paradoxal da nossa discussão pode ser

entrevisto. Na verdade, com a idéia de uma história filosófica que se confunde com o

próprio mundo ocidental, não somente Heidegger se dispõe a produzir um

pensamento sobre o sentido essencial da história, mas ele sublinha ainda que, desde

o seu início e ao longo de todo o seu desenvolvimento, essa história é atravessada

por uma mesma forma de determinar o sentido daquilo que é. Em vez de se

perguntar se é legítimo ou não falar de um sentido para a história como um todo, ou,

o que dá no mesmo, se a história pode ou não ter algum sentido, Heidegger levanta

de antemão a questão do estatuto disto que a tradição filosófica nomeou sob a idéia

de “sentido”. Nesse recuo característico, é como se ele acabasse por converter a

questão sobre o sentido da história na questão sobre a história de uma determinada

27 Embora a questão da história sofra quebras importantes ao longo do percurso filosófico de Heidegger, a distinção entre Geschichte e Historie valerá até o final. Marcando a diferença entre os dois termos, Heidegger se apoiava na etimologia (evidente em alemão) da palavra Geschichte, derivada do verbo geschehen, para se referir ao acontecer da história, à realidade histórica propriamente dita. Com Historie, do verbo grego istoreín (indagar, investigar) e de istoría, mantidos em todas as línguas latinas, trata-se em geral da narrativa dos acontecimentos históricos, e posteriormente da investigação deles feita pela ciência historiográfica. Trata-se finalmente de uma distinção clássica na língua alemã. Com relação à tradução, uma dificuldade considerável se impõe. No que se segue, à exceção de Ser tempo, onde manteremos a escolha da tradução brasileira (“historicidade” para Geschichtlichkeit e “histórico” para geschichtlich), optamos por utilizar os termos “historialidade” e “historial”. Foi a solução encontrada por Henri Corbin, tradutor do primeiro volume com textos de Heidegger publicado na França, que buscava sublinhar com ele a diferença entre os dois termos alemães, inexistente em francês. Embora o adjetivo “historial” exista nos dicionários de língua portuguesa, a decisão não deixa de ser em última instância arbitrária.

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decisão pelo sentido, em uma questão sobre essa história, a da “metafísica”

justamente, em que se teria decidido que o ser mesmo, e os seus diferentes sentidos,

deveriam valer como medida ou critério último da verdade das coisas. Ao pôr as

coisas nesses termos, Heidegger parecia convencido de que as críticas às filosofias

da história não avançariam sequer um passo se elas não estivessem à altura de

questionar o que aí permaneceu precisamente não questionado, ou seja, o fundo

subjacente à histórica determinação do sentido histórico em termos de lei ou

fundamento, de orientação ou fim previamente impostos aos acontecimentos. Assim,

é como se a história do ser heideggeriana invertesse os termos do problema,

mostrando que, antes de discutir a idéia de “sentido da história”, seria necessário se

perguntar pelo sentido ou pela verdade desse “ser” que, no curso da tradição

ocidental, se revelou sob as mais diversas figuras históricas, entre elas sob a de leis

regendo o processo histórico como um todo, sob a de fins encadeando e motivando o

movimento da história universal. O que ele então acabou por sugerir, implícita ou

explicitamente, é que toda tentativa de compreender o sentido da aventura humana

no mundo, que ela tenha ou não em vista desvendar um significado geral subjacente

aos fenômenos e ocorrências particulares, supõe a abertura de um mundo já

amplamente dotado de sentido, e que é no interior desse espaço e dessa abertura que

a própria história pode também ter um. Se a história não é um palco sobre o qual

fatos e obras humanas vêm um por um linearmente se suceder, é preciso pensar isso

mesmo que vincula a história a seus sentidos possíveis, isso que faz com que os

homens possam se dizer e se pensar como entes privilegiadamente marcados pelo

histórico, isso que faz com que sejam os homens, afinal, aqueles para quem

unicamente algo como uma história pode se tornar digno de questão.

O que propomos neste trabalho é discutir essa série de questões – o problema

da história e sua relação com o fim da tradição, a crítica massiva às filosofias do

sentido da história na contemporaneidade, a resistência nem sempre manifesta às

“visões de conjunto”, às propostas de um pensar a totalidade (já então quase

imediatamente assimiladas a um pensar de tipo “totalitário”), a possibilidade de um

pensamento sobre a história que não necessariamente se comprometa com “a

História” como essa espécie de armadura de ferro do sentido que a crítica mais

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recente instituiu –, é discutir essa série de questões seguindo o modo como elas foram

encaminhadas por Heidegger, sobretudo na sua obra mais tardia.

* * *

No primeiro capítulo da tese, intitulado “A fabricação da história: da

entronização e do declínio de um conceito”, buscamos apresentar o amplo contexto

em que começa a se produzir um tipo de abordagem da “esfera dos negócios

humanos”28 – a história, a política, a moral, a cultura – que, sob a fórmula “filosofia

da história”, nasce de certo modo já destinada à controvérsia. A idéia de percorrer

uma determinada história do conceito de história surgiu da necessidade de perguntar

pelo quê afinal motivaria esse “projeto”, abraçado por alguns dos autores mais

eminentes da tradição moderna, de justificar filosoficamente – de modo sistemático

ou não – o conjunto da aventura humana dos seus primórdios às suas realizações mais

recentes. Mas essa necessidade se explica também por outras razões. Ao longo de

nossas pesquisas em torno do pensamento histórico moderno, a questão que acabou

por se colocar foi a de saber qual é o interesse e a atualidade que uma reflexão

filosófica sobre a história pode reivindicar no momento em que estamos. No

panorama que buscamos reconstituir neste primeiro capítulo, o surgimento da

moderna concepção da história é abordado através de três momentos principais. No

primeiro deles, as perspectivas de Kant, Herder e Hegel vêm situar as diferenças entre

uma visão da história orientada pela busca de princípios racionais suficientemente

estabelecidos e a tentativa, levada a cabo especialmente por Herder, de lançar um

olhar sobre os diferentes povos ou culturas históricas que seja capaz de se orientar

pela singularidades que os constituem. Num segundo momento, trazemos à discussão

as críticas dirigidas à filosofia da história ainda no século XIX, tomando como

exemplo o programa elaborado por Leopold von Ranke, um dos principais

representantes da Escola Histórica. É no seio dessa crítica a uma história

28 A expressão é de Hannah Arendt, que a têm como um conceito diretor para pensar tudo o que concerne ao universo do agir humano. Cf. ARENDT 1958, cap. V.

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sobredeterminada filosoficamente, da qual o maior alvo foi Hegel, que se prepara a

“virada” metodológica do início do século XX, a qual termina por reconduzir a

história para o terreno da reflexão filosófica. O terceiro momento considera a

importância atribuída ao método nessa nova reivindicação do “histórico” pela

filosofia. Restituindo brevemente a démarche elaborada pela escola neo-kantiana de

Baden, começamos a nos aproximar do contexto em que inicialmente se elabora o

pensamento de Heidegger sobre a história. É a partir daí, e tomando como eixo os

motivos que levam o Heidegger de Ser e tempo a situar a sua própria tematização da

história em termos de um diálogo com a filosofia da vida de Dilthey, que a nossa

questão começa a se explicitar. O problema da história analisado em Ser e tempo –

que a analítica visava a reconduzir à sua origem existencial – aparecerá curiosamente

associado a uma crítica do “ocular” como modo preeminente de referência ao mundo

histórico. Ao mostrar o “nexo” da sua própria exposição do problema da história com

as pesquisas de Dilthey e do Conde Yorck, o que Ser e tempo termina por sugerir é

que o pensamento sobre a história, filosófico ou historiográfico, é dominado por uma

referência ao olhar – à forma, à figura, ao tipo, à imagem – cujos pressupostos

parecem determinar a sua própria história.

Temos aqui o ponto de partida para a discussão dos três capítulos seguintes: o

que tentaremos mostrar é que, embora Heidegger não leve essas considerações mais

adiante no âmbito da ontologia fundamental, é no período que se segue ao projeto de

1927 que ele acaba por explorá-las nas suas conseqüências mais decisivas. A história

que Heidegger chamará de “metafísica” é a história de uma forma de circunscrever o

ser e os entes, a verdade e o pensamento, o homem e a relação ao divino, que se

decide na referência ao ver e à visibilidade . É no recurso à presença, e a uma

presença estável e constante, que a metafísica, desde o início, se articula. Heidegger

se aterá aos meandros dessa articulação, ao modo como inicialmente a metafísica se

põe em marcha, num texto de 1940 intitulado A doutrina de Platão sobre a verdade

(Platons Lehre von der Wahrheit). Mas esse pôr-se em marcha, eis a afirmação com

que se inicia a interpretação heideggeriana, começa com uma transformação

(Wandlung). O que propomos no segundo capítulo, “A forma da metafísica e a

travessia da história”, é partir de dois momentos privilegiados na obra de Heidegger

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para pensar o que se passa nesse começo: o primeiro deles é o texto-resposta que

Heidegger dedica a Jünger em 1956, Contribuição à questão do ser (Zur Seinfrage);

o segundo é o artigo sobre a doutrina platônica da verdade.

No terceiro capítulo, “De um extremo ao outro da metafísica: ‘o mesmo

essencialmente transformado’”, buscamos acompanhar a interpretação heideggeriana

dos desdobramentos da metafísica e sua história. A questão determinante é a de saber

em que medida os reinícios, que Heidegger não cessa de nomear como

“transformações” (Wandlungen) – da essência da verdade, do ser, da relação do

homem ao ente, da referência ao pensar e aos deuses –, constituem verdadeiras

mudanças ou apenas reformulações da forma metafísica inaugural de recurso à

presença. Uma atenção especial será dada ao texto do curso de 1942/43 intitulado

Parmênides. Nesse texto, que de certo modo amplia o motivo inicial da mudança na

essência da verdade, Heidegger se propõe a refletir sobre a passagem da metafísica

grega por Roma e os deslocamentos que essa passagem inscreve na história ocidental.

No quarto e último capítulo, “O mundo feito imagem”, tratamos do processo

descrito por Heidegger como a entrada da metafísica na sua configuração moderna.

Essa entrada assinala, porém, uma nova série de transformações e deslocamentos.

Para pensar em que consistem essa entrada, os deslocamentos que ela opera, as

mudanças que ela faz surgir, partimos do texto de 1938, A Época das imagens do

mundo (Die Zeit des Weltbildes). Nele, ao articular o início da modernidade à idéia de

um esvaziamento da experiência do mundo, Heidegger sustenta que a interpretação

moderna do mundo é aquela em que o mundo, pela primeira vez, se vê

metamorfoseado em “imagem” (Bild). É o sentido desse “tornar-se imagem”, e o tipo

de imaginação que ele passa a requerer, que nos interessa interrogar. Ele deve nos

conduzir ao diagnóstico heideggeriano de um esgotamento “figural” da história da

metafísica.

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26

11..

AA ffaabbrriiccaaççããoo ddaa HHiissttóórriiaa:: ddaa eennttrroonniizzaaççããoo ee ddoo ddeeccllíínniioo ddee uumm

ccoonncceeiittoo

“Nós jamais encontraremos na história mais do que aquilo que nós mesmos nela de antemão colocamos (...)” 29 “A ‘modernidade’ não traz casualmente a ciência histórica (Historie) ao verdadeiro domínio.”30 “O ente torna-se objeto, seja (aspecto, imagem) para o olhar, seja como produto e coisa calculada para o fazer.”31

Uma questão parece de saída dificilmente contornável: confrontar o problema

da história nos dias de hoje não é o indício claro de um anacronismo? Ainda que

evitemos assumir, precipitada ou mesmo pretensiosamente, uma posição epigonal, ou

que evitemos caracterizar como “pós-metafísica” ou como “pós-moderna” a situação

em que nos encontramos, é impossível passar ao largo dos diversos diagnósticos

contemporâneos, e sobretudo dos mais sérios deles, acerca do esgotamento de toda

uma tradição de pensamento, filosófico, político ou propriamente histórico. Um jeito

talvez mais honesto de não dar por simplesmente decidida a questão acerca do sentido

da história, que para nós consiste de fato em uma, um modo de não decretar de

antemão obsoleto qualquer questionamento sobre o sentido que pode ainda haver em

se falar de “uma história” e sobre a possibilidade de pensá-la filosoficamente, seria

percorrer, ainda que nas suas grandes linhas, a história ao longo da qual se originou e

formou isto a que nos referimos hoje como sendo o conceito moderno da história. A

suspeita mesma de anacronismo supõe uma determinada relação com a história que

nos precede e, mais do que isso, uma interpretação, explícita ou não, da presença ou 29 FICHTE 1795, p. 79. 30 HEIDEGGER 1936/38, p. 493 (tr.esp., p. 388). 31 HEIDEGGER 1935, p. 67 (tr.fr., p. 73).

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da ação do passado sobre a experiência, a linguagem e o pensamento que, queiramos

nós ou não, continuam em grande parte a nos servir de referência. Por essa razão,

parece-nos fundamental a tentativa de compreender os motivos prováveis seja da

vigência, seja da ulterior falência do tipo de abordagem da história que se produziu ao

longo de pelo menos dois séculos de pensamento moderno. Retraçar o processo de

formação de um discurso de cunho deliberadamente filosófico sobre a história, tomar

em conta o “pathos intelectual” que se encontra na base das primeiras filosofias da

história talvez seja o único meio de precisar os contornos de uma época em que se

criam as condições para essa tomada de consciência do mundo histórico anunciada

como uma das grandes conquistas da modernidade ocidental – e em seguida quase

inteiramente relegada à condição de exercício teórico de sublimação e totalização do

múltiplo, de redução da realidade e de sua pluralidade a conceitos oriundos da pura

especulação.

* * *

Partamos então desta questão: como foi que se começou a propriamente

filosofar sobre a história? Que a filosofia nem sempre reconheceu o âmbito dos

negócios humanos como objeto passível de uma reflexão filosófica é bem sabido.

Que os gregos se recusaram a atribuir uma importância fundamental ao que, em

sentido lato, constituía o mundo das obras humanas, destinado a perecer num cosmos

perene e imortal, também o é. Freqüentemente se sublinha a diferença entre as

concepções antiga e moderna do tempo. Costuma-se mostrar, por exemplo, que se os

gregos não desenvolveram uma reflexão ou um conceito de história, muito embora

tenham tido plena consciência dos “progressos” que haviam realizado tanto em

relação ao Oriente quanto em relação a seu próprio passado, isto se deve à sua

compreensão do tempo em termos “físicos”, isto é, como o movimento cíclico de

geração e corrupção que a physis por si mesma realiza, concepção que exclui

qualquer referência ao tempo como uma marcha linear conduzindo o homem em

direção ao aperfeiçoamento progressivo da sua natureza. Se, para os gregos, o tempo

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humano, o tempo interpretado em função das perspectivas limitadas dos homens,

significaria destruição e dissolução, o tempo cósmico, ao contrário, o tempo da

periodicidade celeste, que retorna incessantemente sobre si mesmo, seria considerado

como o único símbolo da eternidade. Não é o nosso objetivo aqui perguntar que

razões exatamente teriam interditado aos gregos produzir um conceito de história. O

fato é que se a organização da “cidade terrestre” esteve sempre no centro das

reflexões dos poetas e filósofos gregos, assim como de seus educadores e

legisladores, em nenhum lugar há um indício de que a História seja, assim como

chegamos a compreendê-la na modernidade, um processo abrangente capaz de

justificar a fragilidade da condição humana, subordinando-a a algo que a transcenda.

Como lembra Hannah Arendt num importante ensaio de 1954 sobre “O conceito de

história”, o próprio Heródoto, batizado por Cícero de paeter historiae, não dispunha

previamente de um termo quando decidiu “preservar aquilo que deve sua existência

aos homens”32. Qualquer que tenha sido o entendimento grego da história, o seu

pressuposto básico era “a distinção entre a mortalidade dos homens e a imortalidade

da natureza, entre as coisas feitas pelo homem e as coisas que existem por si

mesmas”33. Como nos mostra Arendt, a tarefa da história grega – salvar os feitos e as

palavras humanas da futilidade e do esquecimento – tem raízes na experiência grega,

não da história, mas, antes, da natureza.

Por outro lado, por mais lugar comum que ela possa parecer, é difícil recusar a

afirmação de que a concepção do progresso em sentido lato, em termos de uma

progressão do tempo e da vida humana no mundo, só foi introduzida na filosofia com

o cristianismo.”34 A idéia de apreender a história da humanidade como uma história,

isto é, como uma totalidade que tem um começo e um fim, tem de fato raízes na

noção de criação consagrada por uma longa tradição de pensamento cristão. Essa

noção é precisamente a de uma gênese do mundo fundada sobre a boa vontade de

uma Entidade pessoal e autônoma e, embora isso não explique tudo, pode-se dizer

que o princípio de um mundo criado e do homem como parte dele, a convicção de

que todas as criaturas deveriam encontrar um lugar no único cenário que seu criador

32 ARENDT 1954, p. 70. 33 Ibid., p. 72. 34 Ver a esse respeito PAPAIOANNOU 1996, p. 48.

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concebeu ao criá-las, está presente não apenas na historiografia cristã, mas também

nos primeiros discursos propriamente filosóficos sobre a história. Se o mundo é o

produto de um grande projeto divino, como negar que os homens se encontram

engajados no curso de uma história comum a toda a humanidade? E se ao homem é

dado conhecer ao menos certos desígnios do seu Criador, estes não poderiam conter

algumas chaves decisivas para a compreensão da história do mundo?35 Qualquer que

seja a forma exata com que se represente essa entidade divina, a idéia de associar a

sua realização à realidade da própria história humana dificilmente teria sido

concebível se numerosas gerações não houvessem meditado sobre a existência no

tempo como uma espécie de plataforma para o “além-mundo”, como exercício

preparatório para a redenção, para a salvação futura.36

Mas se tomamos como válida essa perspectiva, a de que a História despontou

no horizonte da reflexão ocidental como algo já de antemão ultrapassável, que

desdobramentos e transformações lhe possibilitaram ressurgir como essa espécie de

objeto privilegiado, quase como um objeto de culto para o pensamento moderno

tardio? Como se deu essa consagração, preparada pelas grandes sínteses especulativas

do Idealismo alemão e consumada mais tarde, em oposição a estas, com a guinada

metodológica das últimas décadas do século XIX? De que modo a filosofia pôde

chegar à compreensão de que o ser histórico é o caráter verdadeiramente distintivo da

humanidade do homem, à idéia de que “o gênio do homem, seu dom naturalmente a-

natural ou sobre-natural”37, é a tekhne, e não a natureza, sendo a cultura justamente o

seu elemento original? De onde, enfim, veio a convicção, explícita ou implicitamente

reiterada pela tradição do pensamento histórico no Ocidente, de que sendo essencial

ao ser humano o poder de criar obras e conceber mundos, é fazendo a sua própria

história que o homem realiza a sua natureza mais íntima? Embora não pretendamos

encontrar uma resposta definitiva a todas essas questões, tentemos nos aproximar

delas explorando o próprio contexto no qual elas começam a ganhar maior relevo e

uma melhor visibilidade.

35 Cf. LAGUEUX, p. 39 36 Ibid., p. 44. 37 Cf. LACOUE-LABARTHE 2002, p. 48-49.

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Uma idéia da história

É verdade que a emergência das filosofias da história deu-se um tanto

tardiamente na história do pensamento ocidental. Em geral, todos parecem reconhecer

que, antes da época moderna, nesse caso mais especificamente antes do século XVII,

não há verdadeiramente exemplos de filosofias do gênero. O acordo é bem menos

evidente quando se trata de situar com precisão, no seio dos tempos modernos, o

lugar e o momento de nascimento das filosofias da história. Um exemplo curioso

disso pode ser visto no livro Origens da filosofia burguesa da história (Anfänge der

bürgerlichen Geschichtsphilosophie), de Max Horkheimer. No espaço de pouco mais

de cem páginas, Horkheimer afirma que Machiavel foi “o primeiro filósofo da

história da época moderna” para em seguida dizer que Vico, através de sua Scienza

Nuova, de 1725, foi “o primeiro verdadeiro filósofo da história”.38 Mas a hesitação é

nesse caso extremamente significativa. Por trás da simples periodização está a

questão de saber que elementos teriam sido necessários para caracterizar uma

“verdadeira filosofia da história”. Para isso não parecia suficiente o fato de abrir uma

brecha num discurso filosófico para uma reflexão sobre a história. Como o próprio

Horkheimer ressalta, no que hoje se tornou a definição mais ou menos aceita do

empreendimento levado a cabo pelas modernas filosofias da história, “a essência de

toda filosofia da história autêntica” reside na convicção de que “atrás da confusão

vivida da vida e da morte” se possa “reconhecer uma intenção velada e benevolente,

no interior da qual o fato individual, aparentemente incompreensível e absurdo, tem

um lugar e um valor determinados”.39

Talvez mais importante do que situá-las (em Vico ou em qualquer outro autor)

seja compreender as razões do surgimento relativamente tardio dessas tentativas de

aplicar a razão à história. Por um lado, é inegável que a idéia de uma racionalização

do processo histórico supõe a perspectiva de uma racionalização do mundo

fenomenal tout court. O projeto de encontrar o princípio a partir do qual a realidade

histórica se move, respondendo a relações ou leis presumidamente universais,

pertence à posteridade desse legado moderno que é a “descoberta” do homem como 38 Cf. HORKHEIMER 1970, p. 48. 39 Ibid., p. 114.

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sujeito capaz de interpelar o mundo, perguntando de saída por que meios esse mesmo

mundo se torna a ele acessível. A pergunta na base das filosofias da história: de que

modo a história se produz, que princípio serve ou pode servir como fio condutor para

explicar o seu movimento e o sentido desse movimento, suporia, sob esse aspecto, o

“momento cartesiano”, a saber, a figura do homem que quer conhecer as leis que

regem o funcionamento das coisas para delas poder se apossar. Mas não há dúvida,

tampouco, quanto ao fato de que o modelo de racionalidade reivindicado pelas

primeiras filosofias da história é bem diverso daquele exigido por Descartes, fundado

numa homogeneidade espaço-temporal e na exigência matemática de um raciocínio

claro e distinto.

Na verdade, para boa parte da filosofia racionalista dos séculos XVII e XVIII,

já a própria noção de uma “filosofia da história” deveria se afirmar de maneira

contraditória. A associação dos dois termos e das duas disciplinas não tinha nada de

evidente, muito pelo contrário – e é isso o que demonstra a distinção estabelecida por

Wolff entre uma cognitio philosophica, clara e intemporal, e uma cognitio historica,

confusa e passageira. A distinção de Wolff data do início do século XVIII, uma época

em que ainda não convinha à filosofia se misturar com a contingência histórica.40

Encontrar regularidade na esfera essencialmente arbitrária das ações e dos valores

humanos, nesse âmbito visivelmente condicionado por todo tipo de interesses, por

conflitos de ordem prática, política ou psicológica, seria no melhor dos casos uma

hipótese41. Nem é preciso dizer que, sob a pressuposição de um mundo humano

movido essencialmente pelo arbítrio, as obras de história são consideradas

infinitamente inferiores a qualquer tratado filosófico.

Mas, então, tornemos a perguntar: como é que pôde se desenvolver no

Ocidente uma reflexão sobre a história de cunho deliberadamente filosófico, e isto

precisamente na época da Aufklärung? Como se deu, em plena era das Luzes, a

passagem de uma atitude de suspeita em relação à fragilidade dos relatos históricos à

40 Wolff distingue na verdade três espécies de conhecimento: o histórico, o filosófico e o matemático. O conhecimento histórico constitui o degrau mais baixo de todos eles. 41 É o caso explícito e suficientemente conhecido de Kant no clássico Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht), que consideraremos mais à frente.

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convicção de que “a história deve ser aclarada pela chama da filosofia”42? Como se

operou a mudança de estatuto desse objeto que, até então relegado à crônica,

permanecia inteiramente dependente da experiência parcial e das preferências do

sujeito que o relata? Como pôde surgir a vontade de que o historiador, confrontado a

uma enorme variedade de figuras humanas, fosse doravante guiado pelo “homem do

filósofo”, isto é, precisamente, por uma idéia acerca da natureza humana?

A busca de um lugar a partir do qual escrever a história condicionou o

aparecimento disto que Voltaire foi o primeiro a propriamente nomear com a

expressão “filosofia da história”.43 Mas o que se dá nesse primeiro momento não é

mais do que a transposição de um domínio do saber, naturalmente mais incerto, a um

outro mais certo, cuja função é a de subordiná-lo. O que interessa aos autores dessa

recém vislumbrada forma de filosofia é mais uma idéia possível da história do que a

massa de eventos isolados que a história pode oferecer. A “idade de ouro” sendo

projetada como uma realização futura, o passado torna-se, no máximo, um objeto de

erudição. “Meu livro só deve conter a metafísica da história (...) e jamais tratar a

história ela mesma”, afirma Isaac Iselin, um dos primeiros filósofos a propor uma

obra “sobre a história da humanidade”44. Aqui é a filosofia, e com ela a razão, que

esclarecem a história com a ajuda de uma concepção cultivada do homem. Essa

concepção e a razão que possibilita a sua compreensão são precisamente o lugar de

onde o filósofo ilustrado assiste ao espetáculo da história.

Desde o seu surgimento, portanto, a história “de um ponto de vista filosófico”

é posta sob o jugo de uma certa concepção da racionalidade. Se tal subordinação

repousa sobre a clássica superioridade concedida à razão em detrimento da

experiência sensível da realidade, o fato é que mesmo lá onde sensibilidade e

experiência passam a ser vistas como elementos imprescindíveis no processo de

conhecimento das coisas deste mundo, uma atitude de reserva se manterá quanto à

possibilidade de conhecer a história, que permanece sendo vista como o “mundo”

confuso e desordenado das ações e dos feitos humanos. Isto é flagrante em Kant, que

42 Cf. LE BLANC, MARGANTIN, SCHEFER 2003, p. 631. 43 No título da obra Philosophie de l’histoire par feu l’abbé Bazin, publicada em 1765. 44 Cf. LE BLANC, MARGANTIN, SCHEFER 2003, p. 632. É o filósofo Isaak Iselin, que publica em 1764 uma obra intitulada Über die Geschichte der Menschheit, um dos primeiros a exortarem os seus companheiros de pluma a se lançarem numa investigação filosófica da história da humanidade.

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no famoso opúsculo Idéia de uma história universal de um ponto de vista

cosmopolita (Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht), de

1784, reconhece ser necessário ir além da contingência das ações e dos propósitos

humanos para entrever o trabalho lento mas progressivo de um desígnio racional na

história. Frente à “melancólica casualidade” (trostlose Ungefähr)45 com a qual a

história nos confronta, às imensas contradições a que está sujeita a existência finita

dos homens, o filósofo não tem outra escolha senão “tentar descobrir, no curso

absurdo das coisas humanas, um propósito da natureza que possibilite uma história

segundo um determinado plano da natureza”46.

Embora em contextos intelectuais bem diversos, um elemento comum às

filosofias da história do iluminismo foi a tendência a universalizar os padrões de

racionalidade que lhes eram contemporâneos, utilizando-os para explicar o curso de

toda a história passada e presente. Voltaire com a sua certeza de um avanço no

esclarecimento racional da humanidade, Hume com o postulado acerca do progresso

dos sentimentos humanos (tutelados por uma apreciação racional universalmente

válida da utilidade das virtudes sociais), Iselin com a sua identificação de um

princípio universal no “fervor de fazer o bem e de tornar-se útil”47 – para cada um

desses autores, conceder à história um significado dependia da possibilidade de trazer

à inteligibilidade a vitória progressiva alcançada pela civilização sobre as forças

cegas e desregradas que atuam no mundo social, cultural ou político. À sua maneira,

também Kant abraçou a fé iluminista no progresso da humanidade, propondo que se

considerassem todas as épocas como etapas no processo infinito que orienta todos os

sistemas políticos rumo à sua realização final: a constituição republicana. Também

ele defendeu a idéia de que o fim de cada existência particular, individual ou coletiva,

está para além dela mesma, no desenvolvimento completo de todas as disposições da

espécie humana. Assim, por exemplo, partindo do modelo do Estado grego, da sua

influência sobre a formação política do povo romano, passando pelos povos bárbaros

que o destruíram e até chegar à época atual, Kant afirmou que é possível descobrir

45 É Hannah Arendt quem retoma essa expressão, utilizada por Kant na terceira parte de O Conflito das faculdades, para falar da “grande hesitação com que Kant se resignou a introduzir um conceito de História em sua filosofia política”. Cf. ARENDT 1954, p. 117 e 120. 46 KANT 1784, p. 33. 47 Citado em LE BLANC, MARGANTIN, SCHEFER 2003, p. 632.

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“um curso regular no melhoramento da constituição política sobre o nosso continente

(o qual, segundo tudo indica, fornecerá um dia leis a todos os outros)”48. Sem deixar

de levar em conta “episodicamente a história política de outros povos”49, Kant

afirmava a necessidade de constatar que o conhecimento que se tem deles foi

precisamente alcançado por intermédio das nações esclarecidas. Mesmo que a

dimensão teleológica da leitura kantiana tivesse um caráter apenas regulador, e que o

fio condutor da razão não garantisse que haviam sido estes o sentido e a função de

cada época considerada, a démarche de Kant acabava por nivelar as diferenças entre

os povos e culturas históricos em função de uma suposta finalidade para a qual todos

eles estariam igualmente orientados. A história de um ponto de vista cosmopolita,

para abranger universalmente a humanidade, reduzia a pluralidade dos homens, assim

como os diferentes universos históricos a um pressuposto racional normativo que

deveria lhes servir de regra. Um cosmopolitismo que, a despeito das boas intenções

do seu autor, poderia se revelar um tanto uniformizante.

Para educar a humanidade...

É Herder quem pela primeira vez põe seriamente em causa a pretensão da

filosofia de subordinar o mundo histórico a um fio condutor racional. Na sua crítica

das concepções iluministas da razão e do progresso, ele ataca o modo filosófico de

proceder em relação à história, que é o de submeter as diferenças entre épocas e

culturas do passado a uma idéia de como deve se dar (e ter se dado) o

desenvolvimento de toda a espécie humana. Num escrito com forte tom panfletário

publicado em 1774 sob o título Ainda uma filosofia da história para contribuir para

a educação da humanidade (Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der

Menschheit), Herder tomará partido contra a filosofia das Luzes, endereçando

diretamente as suas críticas a Voltaire e aos que ele chama aí ironicamente de

“filósofos de Paris”50. Opondo-se abertamente à crença numa progressão incessante

da humanidade, Herder dirá que a concepção do progresso como aumento gradual da 48 Ibid., p. 47. 49 Ibid. 50 HERDER 1774, pp. 256-257.

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racionalidade e da liberdade não pode deixar de negligenciar a especificidade de cada

época histórica e a equivalente dignidade de todas as suas instituições. À pretensão de

superioridade de um século que se auto-proclama “esclarecido”, Herder vai opor

então o seu princípio metodológico: nenhuma época, assim como a cultura que a

encarna, pode ser avaliada a partir de critérios retirados de uma outra época ou de

uma outra cultura. Contra a idéia de que os períodos históricos se aperfeiçoam

gradualmente na mesma medida em que se sucedem cronologicamente, ele afirmará

que as contribuições dos tempos mais recentes são compensadas por perdas

irremediáveis em relação ao que havia sido conquistado em tempos anteriores.

Ao chamar a atenção para os preconceitos característicos da filosofia de sua

época, Herder mostra que somente uma visão capaz de perscrutar a dinâmica interna

de um povo ou cultura do passado, de literalmente sentir, ao observá-la, o pathos que

a sustém e conduz em cada uma de suas realizações, pode atentar para o sentido

profundo que acompanha os diferentes momentos da história da humanidade. O

método de Herder pode ser traduzido nesta única palavra: empatia (Einfühlung). Seu

objetivo: compreender o caráter singular de cada fenômeno, todo o quadro vivo (das

ganze lebendige Gemälde) do modo de vida, dos hábitos, das necessidades, das

particularidades do país e do céu”51. É necessário, ele escreve, “começar por

simpatizar (sympathisieren) com uma nação para sentir somente uma de suas

inclinações mais íntimas, somente uma de suas ações e todo o seu conjunto”52.

Em suas investidas contra “os filósofos do século XVIII”53, contra a pretensão

de seus contemporâneos que acreditavam representar o “apogeu e o fim de toda

cultura humana”54, Herder mostrava que o espírito moderno das Luzes, ao ignorar as

forças que estão em jogo nos fenômenos históricos, não fazia mais do que projetar um

esquema linear e artificial lá onde, no fundo, o que existe é uma realidade movente,

cambiante, dinâmica. Mantendo o passado à distância como algo de ultrapassado e

superado, a visão racionalista da história, que Herder não hesita em chamar de

51 Cf. HERDER 1774, pp. 167-169. 52 Ibid. 53 HERDER 1774, p. 232-233. 54 Ibid., p. 248-249.

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“mecânica”55, deixava para trás a possibilidade de vivificá-lo. Julgando todas as

coisas segundo os seus próprios padrões de beleza, de justiça, de moral e de

felicidade – “cada um no uniforme de sua condição, máquina” (jeder in der Uniform

seines Standes, Maschiene) – “viu desaparecer o desejo de viver, de agir, de viver

humanamente”.56 Alguns anos mais tarde, nas Idéias para a filosofia da história da

humanidade (Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit), é contra a

teleologia kantiana da história que Herder se voltará. Neste livro, cuja primeira edição

data de 1884, mesmo ano de publicação do escrito de Kant sobre a história universal,

Herder mais uma vez afirma que cada realidade histórica é um fim em si mesmo, e

não um simples meio para a realização de desígnios a ela alheios.57 Sem citar o antigo

mestre, mas numa alusão bem clara a suas proposições sobre o aperfeiçoamento

progressivo dos sistemas políticos na história do mundo, ele se pergunta se não “seria

de um orgulho insensato pretender que os habitantes de todas as partes do mundo

deveriam ser Europeus para viverem felizes”58. Nas conjeturas que ele propõe em

seguida fazer a respeito da destinação do gênero humano, lemos que, se assim fosse,

se o homem estivesse, por exemplo, destinado a um crescimento indefinido de suas

faculdades, ou ao Estado como fim de sua espécie, então todas as gerações teriam

sido feitas apenas em vista da última, que reinaria soberana e solitária “sobre as

fundações em ruínas da felicidade de todos os povos”59. Ao fim do livro VIII das

Idéias, num estilo ainda mais corrosivo que o utilizado no escrito anterior, Herder

lança uma espécie de manifesto em nome dos “homens de todos os continentes,

55 Cf. por exemplo, HERDER 1774, p. 240-241 “(...) uma grande parte disto que se convencionou chamar de civilização nova (dieser sogennanten neue Bildung) é ela própria, na verdade, algo de mecânico (Mechanik); quando se a olha de um pouco mais perto, é o caráter mecânico que constitui o nosso espírito moderno!”. Ver também pp. 242-249, 252-255. 56 Cf. Ibid., pp. 252-253 57 HERDER 1784/91, p. 188: “O fim de uma coisa que não é simplesmente um meio sem vida deve necessariamente se encontrar nela mesma”. Em Ainda uma filosofia da história... Herder escreve essas palavras tornadas emblemáticas: “Mas eu não posso persuadir-me de que qualquer coisa no reino de Deus seja unicamente um meio – tudo é a um só tempo meio e fim, e o mesmo se dá também para esses séculos.” (Cf. HERDER 1774, p. 224-225) 58 1784/91, p. 136-137. A resposta de Kant a essas alusões virá logo em seguida, numa resenha publicada em 1785 sobre as Idéias de Herder. Já nas primeiras páginas, Kant fará questão de notar o caráter poético, e “não científico”, do método utilizado por seu autor. Além disso ele chama a atenção do autor do livro pela falta de clareza de sua argumentação, que torna suas idéias “menos aptas a ser comunicadas”. Para além do aspecto irônico da caracterização, ao qualificar o antigo aluno de “filósofo-poeta”, Kant o exclui não somente do campo da filosofia crítica, mas do da ciência em geral. 59 Ibid., pp. 140-141.

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desaparecidos desde eternidades”, perguntando-se se eles não teriam vivido e enchido

a terra com suas cinzas simplesmente para que no fim dos tempos seus descendentes

encontrassem a felicidade na civilização européia.60

A convicção de Herder de que a civilização avança, mas não se torna por isso

mais perfeita, fundou as bases de uma concepção da história segundo a qual cada

individualidade é uma expressão possível do conjunto da humanidade. É aliás essa

solidariedade entre o indivíduo e o todo – entre a originalidade de cada cultura,

totalidade fechada sobre si mesma, e a idéia de que cada uma delas é um “espelho do

universo”, refletindo à sua maneira o sentido do todo – que Herder busca caracterizar,

para isso servindo-se freqüentemente de metáforas orgânicas. Pensados como

organismos históricos, cada povo ou nação, cada comunidade e cada época é uma

unidade carregada de formas de expressão tão diversas quanto as crenças e ritos

religiosos, as leis e instituições políticas e sociais, a organização familiar e suas

tradições, suas diferentes manifestações folclóricas e artísticas. Precisamente essa

visão “orgânica” do universo humano constituirá o legado mais duradouro da

filosofia da história de Herder. Se ela encontrará ecos imediatos na primeira geração

de românticos de Iena, sua influência pode também ser identificada, mais de um

século depois, na imbricação de consciência histórica e experiência da vida tão cara a

um autor como Wilhelm Dilthey. Novalis, por exemplo, que possuía em sua

biblioteca todas as obras publicadas por Herder em vida, dará voz a algo de muito

parecido ao afirmar que é preciso “animar” a matéria histórica, colocá-la em contato

com os órgãos do próprio indivíduo que a estuda de modo a transformá-la em uma

60 Ibid., pp. 146-147. Seria interessante se perguntar em que medida a posição de Herder é aquela capaz de dar forma a um cosmopolitismo dos mais conseqüentes. Mas sabe-se que, de um modo geral, foi o contrário que se deu no século XX, com a associação das suas teses à defesa de um sentimento nacional incompatível com qualquer universalismo. Assim, o próprio tradutor francês das Idéias pôde atribuir a Herder um “racismo inconsciente”, afirmando não ser de todo incompreensível que o terceiro Reich possa por vezes ter se referido “ao ideal herderiano de autarquia nacional”. (Cf. HERDER 1784/91, pp. 73-74). Contra essa identificação de Herder a um “naturalista irracional que vira as costas para a filosofia das Luzes”, interpretação que o relaciona direta ou indiretamente aos episódios mais trágicos da história do nacionalismo alemão, Jan Patocka, num breve texto de 1941, foi um dos primeiros a se posicionar. (Cf. PATOCKA 1941, p. 17 et seq.) Ver também a esse respeito BERLIN 1976, p. 142 et seq. e BENJAMIN 1939a, pp. 270-272.

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“verdadeira obra de arte histórica”61. Com efeito, não faltarão leituras no século XX

dispostas a ver na crítica de Herder ao modelo de racionalidade e universalidade das

Luzes o germe de uma concepção irracionalista e estetizante da história com as mais

sérias conseqüências para a posteridade do pensamento europeu. Mas este é um

assunto central ao qual devemos voltar mais tarde.

A Idéia na história

Herder é tido comumente como um dos pais da moderna concepção da

história.62 Alguns autores chegaram a ver em sua obra o germe de uma verdadeira

“revolução do espírito ocidental”63, o início de um esforço sem precedentes no

sentido de fundamentar uma compreensão verdadeiramente histórica do mundo

histórico. O fato é que a despeito da ênfase freqüentemente colocada no apelo

romântico a uma determinada estetização da história, não é possível dizer que isto

tenha significado a total supressão do problema do conhecimento do horizonte de

seus questionamentos. Mesmo ali onde reinava a idéia de que a história é feita de

singularidades entre si incomparáveis, a questão desde o início se colocou de saber

por que meios fazer justiça a esses “mundos” distantes no tempo e no espaço, às suas

diferenças e características singulares. Quer elas interditassem ou liberassem o acesso

a uma experiência direta do passado, as modernas filosofias da história já haviam se

confrontado a esta máxima decisiva, a saber, a de que a despeito do seu objeto, todo

ato de conhecer envolve um sujeito que se reconhece enquanto tal, um sujeito que

necessariamente se observa na medida em que observa o material que a história lhe

apresenta. A “tomada de consciência” que a partir do século XVIII passa a conferir ao

homem e a sua história um papel determinante na cena do mundo talvez não tenha

sido outra coisa senão a revelação e a decisão de aprofundar o alcance dessa 61 NOVALIS 1798/99a, p. 145: “Então dependerá provavelmente dele animar a matéria histórica, ele obrigará os seus sentidos a produzir a forma que ele deseja, para poder viver verdadeiramente em seu mundo.” Cf. também LE BLANC, MARGANTIN, SCHEFER 2003, pp. 633-634. 62 Vale apenas notar que essa “paternidade” vem sendo disputada com Vico desde meados do último século. O fato de deixarmos de fora de nossas considerações o autor italiano tem em certa medida a ver com a própria história da recepção de sua obra, que permaneceu desconhecida no panorama de estudos históricos na Alemanha durante praticamente todo o século XIX. 63 Ver MEINECKE 1943, p. 24.

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confrontação. Que tipo de apreensão propriamente filosófica pode-se fazer da vida e

da experiência humanas, desse universo repleto de fenômenos relativos, dotados de

tantas e tamanhas especificidades? Embutida nela, vibrando tacitamente no seu

interior, estava a pergunta sobre o quão dependente é o olhar do filósofo ou

historiador em relação à sua própria existência histórica, isto é, ao seu próprio

horizonte de experiências.

Sabe-se que é Hegel quem dará a essa questão a solução tida por algum tempo

como a mais satisfatória. A articulação entre a diversidade das manifestações da

verdade na história e a unidade de sentido que as engloba a todas ganhou na filosofia

hegeliana, senão a sua formulação mais acabada, ao menos a mais grandiosa. A

respeito dessa filosofia, aliás, Heidegger escreverá na década de 1910 que ela consiste

no “mais poderoso sistema de uma visão de mundo histórica (historische

Weltanschauung), com o qual nenhuma abordagem essencial da história da filosofia

poderia deixar de travar um diálogo”64. Mas o encontro de Hegel com a história

encontra raízes no contexto que o antecede. Ele próprio fará questão de conceber a

sua tarefa filosófica na continuidade de um horizonte histórico mais amplo, situando-

a, como se sabe, no ponto de chegada desse longo trajeto de efetivação do espírito

filosófico que narram as Lições sobre a história da filosofia. O debate que durante

bons séculos opôs na Alemanha uma certa apropriação das Luzes e o “pré-

romantismo” de autores como Herder e Lessing será um ponto marcante na

constituição do sistema de Hegel. A sua filosofia será em algum sentido a

justaposição dessas duas perspectivas.

Hegel rejeitou desde muito cedo o formalismo kantiano. Num ensaio escrito

em 1803 e intitulado Sobre os modos de tratar a lei natural (Über die

wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts), ele mostra que investigar a

natureza exige que se leve em conta as diferenças fundamentais entre as épocas

através das quais se constituiu essa investigação.65 À idéia de um universalismo da

razão pura, de uma razão universal aplicada ao âmbito teórico ou moral, ele opõe a de

uma razão que é encarnada na “individualidade viva de um povo”66. São divergências

64 Citado em BARASH 2003, p. 7. 65 Cf. STANGUENNEC 1985, p. 121. 66 Cf. Ibid.

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não muito diferentes das que vimos esboçadas na querela entre Kant e Herder que

sustentam as críticas de Hegel ao modelo transcendental da consciência kantiana.

Atendo-se especialmente à noção de “consciência em geral” (Bewusstsein

überhaupt), que Kant circunscrevera idealmente a partir dos modos como as suas

faculdades projetam no mundo uma estrutura coerente, Hegel afirma que a

consciência jamais é isolada das influências que a situam em um contexto histórico

determinado. Nem a atividade teórica da consciência nem muito menos ainda o seu

uso prático, podem se dar sem qualquer mediação num mundo concreto. Seja atuando

na esfera conceitual do conhecimento teórico, ou possibilitando a fundação de normas

práticas para um uso moral da liberdade, toda consciência finita existe num mundo e

nele ela reflete a ação do tempo e do “espírito” que a cada vez o determinam. O que a

consciência produz é também reflexo do Zeitgeist, espírito do seu tempo.

Na tese de doutorado que elabora sob a orientação de Heidegger, em 1932,

Marcuse nota que, a partir dos escritos teológicos de juventude, a elaboração da

problemática filosófica de Hegel é a da “Vida como conceito ontológico”.67 Com

efeito, nesses escritos anteriores à Fenomenologia do espírito (1807) – e à

necessidade, confessada a Schelling numa carta de 1800, de dar ao seu pensamento

uma forma propriamente sistemática68 –, Hegel já buscava reconstituir o elo que liga a

vida espiritual, a religiosidade de um povo, aos fenômenos concretos pelos quais ela

se manifesta. Mas nesses anos marcados pela formação teológica no seminário de

Tübingen, o foco da reflexão de Hegel é ainda a oposição entre vida e conceito. É

através da religião, e não da filosofia, que se pode atingir uma compreensão da vida

de um povo, expressa tanto na esfera da vivência religiosa propriamente dita como

nas demais esferas da experiência mundana. Por volta de 1801, em seu primeiro texto

publicado e assinado69, A Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e de

Schelling, Hegel passa a afirmar a identidade entre o espírito (que não se reduz ao

conceito) e a vida (pensada como modo de ser universal). Para pensar essa identidade,

ele mostra a que ponto a filosofia deve romper tanto com o puro racionalismo, em

67 Cf. MARCUSE 1932, p. 211. 68 A referência a essa carta encontra-se em DASTUR 1999a, p. 199. 69 Cf. LEGROS 1980, p. 24. Robert Legros sublinha aí que todos os escritos de Hegel anteriores ao período de Iena (1800-1807) ou permaneceram não publicados ou o foram anonimamente.

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que o pensamento aparece como abstrato e vazio, como com o empirismo, em que a

diversidade sensível aparece como uma multiplicidade morta. O que importa à

filosofia é a união (Vereinigung) do sensível e do inteligível, do um e do múltiplo, do

espírito e da matéria.70 Somente o reconhecimento dessa necessidade de reunir os

opostos e diferenças pode conduzir a filosofia a exprimir, ou mais que isso, a realizar

o Absoluto. No livro sobre a diferença entre os sistemas de Fichte e Schelling, Hegel

lança mão de uma fórmula tomada de empréstimo a Schelling que nos põe no centro

da dialética e no coração do que virá a ser o seu sistema filosófico: “O absoluto é a

identidade da identidade e da não identidade; opor e identificar nele coexistem.”71

Ao longo do trajeto que leva Hegel a elaborar a grande síntese entre o mundo

fenomenal e o mundo espiritual que determinará o eixo de toda sua obra, é a religião

que, junto com a arte, passa a ser “subsumida” no saber filosófico. Um saber

produzido pelo e para o Espírito, do qual a vida mesma só toma conhecimento uma

vez que ele, o Espírito, se vê plena e absolutamente realizado. A passagem do

conceito ontológico de vida ao conceito (também ontológico) de Espírito dá-se, como

sublinha ainda Marcuse, a partir do período de Iena.72 Nas obras que compõem o

monumental sistema iniciado com os cursos sobre a lógica e que vão resultar na

Fenomenologia do Espírito, a vida passa a ser antes de tudo um modo de ser do

Espírito absoluto.

Num artigo escrito no início dos anos quarenta, Heidegger nos lembra que

Fenomenologia do Espírito era na verdade o segundo título da grande obra de 1807.

Ele viria substituir, já no meio do processo de publicação, um outro título

inicialmente previsto, sob o qual era enunciada a “Ciência da experiência da

consciência”.73 O enunciado inicialmente previsto deve, segundo Heidegger, ser

tomado ao pé da letra. Ele traduz perfeitamente o conteúdo essencial da obra, a saber,

70 “União e Ser têm o mesmo significado” (Vereinigung um Sein sind gleichbedeutung). Esta frase, que se encontra num dos esboços publicados no apêndice de O Espírito do cristianismo e seu destino, mostra que a preocupação com a união ou conciliação dos opostos estava presente em Hegel desde cedo. Cf. HEGEL 1799, p. 147. 71 HEGEL 1801, p. 168. 72 Cf. MARCUSE 1932, p. 214. 73 Cf. HEIDEGGER 1942/43a, p. 115 (tr.fr., p. 147). Heidegger abre o seu artigo com as seguintes palavras: “‘Ciência da Experiência da Consciência’, tal é o titulo que Hegel, no momento da publicação da Fenomenologia do espírito em 1807, põe à frente da obra. A palavra experiência se encontra em itálico, entre as duas outras palavras. ‘A experiência’ nomeia o que é ‘a Fenomenologia’.”

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a fenomenologia como sendo o percurso realizado pela consciência em direção à

ciência, isto é, ao saber de si mesma. A fenomenologia é o processo pelo qual deve

passar a consciência a fim de se tornar um saber no sentido mais próprio do termo, ela

é o caminho, exposto em cada um de seus momentos constitutivos, através do qual a

consciência efetua o seu auto-conhecimento. O que Hegel mostra nesse livro é que

aquilo que, para a consciência finita, é a experiência de um objeto sempre novo e

diverso, para o espírito infinito, nada mais é do que uma das figuras necessárias à sua

efetivação. Isto implica que a ciência dessa experiência, dessa Erfahrung que é

literalmente a passagem de um objeto e de um momento ao outro, não se revela como

outra coisa senão como o saber que tem o Espírito da sua própria necessidade de se

tornar fenômeno.

A Weltgeschichte que Hegel nos relata move-se por assim dizer sobre esse

mesmo cenário. Se o seu palco é o próprio mundo, o seu ator principal, ao mesmo

tempo “agente” e “paciente”, é o Espírito que se efetua na história. A célebre

passagem que se encontra na introdução às Lições sobre a filosofia da história: “o

único pensamento que a filosofia aporta é a contemplação da história, a simples idéia

de que a Razão governa o mundo (daß die Vernunft die Welt beherrsche), e que,

portanto, a história universal é também um processo racional” 74, mostra o quão

decisivo será para Hegel unir ou identificar os opostos – algo que ele justificará

mostrando que “em nenhuma outra parte a exigência de um (...) conhecimento

conciliador é sentida tão imperiosamente quanto na história”.75 A Vereinigung desde

74 HEGEL 1822/31, p. 20 (tr.fr. Gibelin, p. 22). A interpretação dos textos que constituem a filosofia da história de Hegel “propriamente dita”, a despeito da imensa bibliografia em torno dela e dos muitos lugares comuns que estas produziram, está longe de ser uma tarefa fácil. Os textos a que temos acesso são publicações póstumas estabelecidas a partir de manuscritos deixados por Hegel, mas também a partir de longas séries de notas de curso produzidas por alguns de seus estudantes. Aqui nos servimos unicamente do volume 12 das obras completas de Hegel, as Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte. As duas traduções francesas das quais também nos servimos são baseadas em edições diferentes desses grupos de textos. A primeira é a feita por Jean Gibelin e publicada pela editora J. Vrin, em 1963, sob o título Leçons sur la philosophie de l’histoire. Ela se baseia na edição feita por H. Glockner em 1928, que reproduzia a edição de 1848 feita por Karl Hegel, filho do filósofo, o qual remanejava, por sua vez, a edição Ganz de 1837. A outra tradução é a feita por K. Papaioannou e inicialmente publicada pela editora Plon, em 1965, sob o título La Raison dans l’histoire. Ela se baseia na quinta edição de Der Vernunft in der Geschichte (Hamburgo, Felix Meiner, 1955) que propõe, por meio de uma escolha diferente de manuscritos e notas de curso, uma versão mais alargada do que constituía apenas a introdução da primeira edição das Vorlesungen. As referência às traduções vêm antecedidas dos nomes de seus autores. 75 HEGEL 1822/31, p. 54 (tr.fr. Papaioannou, p. 68).

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cedo valorizada por Hegel se revelará então como a identidade do pensamento e do

real, da liberdade e da necessidade, do sujeito e do objeto da história, pois é ela que

constitui a essência desse Espírito que, nas palavras do filósofo, “deve se reconciliar

com o negativo”76. Nada disso significa que o processo descrito como um

desenvolvimento racional e necessário do Espírito do Mundo (Weltgeist) – a Razão

manifestando-se historicamente na vida social e política, na moralidade subjetiva

(Moralität) que Hegel distingue da moralidade objetiva ou concreta (Sittlichkeit), nos

costumes, na arte e na religião – chegue a jamais perder de vista as individualidades

históricas, a vida dos povos e das épocas que articularam e deram corpo a cada uma

dessas manifestações. Como elemento unificador da multiplicidade, garantia mesma

de que o aparente arbítrio e gratuidade da história são precisamente os meios pelos

quais a necessidade cumpre o seu propósito no mundo, o Espírito não é uma idéia

geral ou abstrata. Ao contrário, diz Hegel, ele é “o objeto mais concreto, na sua figura

concreta e na sua evolução necessária, que a filosofia a si proporciona quando ela

trata da história”77.

Se pudermos simplificar as coisas nesses termos, a concepção hegeliana da

história seria como uma síntese dos dois pontos de vista antagônicos que vimos

brevemente ilustrados com Herder e Kant. Nem a realidade histórica pode ser

compreendida como algo que existe entregue a si mesmo, independente do sentido

que o Espírito de antemão lhe proporciona, nem ela é uma simples massa de

ocorrências arbitrárias, cujo princípio caberia à razão humana na melhor das

hipóteses postular. Mas tampouco Hegel invalida essas duas perspectivas, essas duas

figuras possíveis da consciência histórica, mostrando ao contrário que ambas são

necessárias ao aprendizado que a consciência deve fazer no seu próprio itinerário pela

história do mundo. Na auto-atribuída missão de salvar a totalidade dos fenômenos,

Hegel encontra a solução do problema resolvendo dialeticamente todas as suas

oposições e contradições: transformando estas últimas em “energia”78 mesma do

movimento histórico – da dinâmica segundo a qual o Espírito se objetiva e vem a ser

76 Ibid. 77 Ibid., p. 40 (tr.fr. Papaioannou, p. 52). 78 No texto do seminário que Heidegger dedica em 1942 à Introdução da Fenomenologia do Espírito, ele dirá que “a energia [do negativo] se encontra (...) cortada de sua fonte na medida em que ela é ‘pressuposta’.” A referência se encontra em MALABOU 2003, p. 267.

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mundo –, Hegel faz da negatividade o motor ontológico da história. É no ritmo desse

negativo que o Espírito reconhece a história universal como a cena original da sua

“paixão”, o lugar no qual ele deve padecer antes de consumar o seu pleno

desenvolvimento.

Fatos e fontes

Já nas primeiras décadas do século XIX, a exigência de construir um modelo

de conhecimento histórico mais condizente com uma metodologia acadêmica para as

ciências humanas começa a se impor. Substituir qualquer “idéia da história” pela

aplicação de parâmetros mais críticos e menos especulativos será o lema de filósofos

e historiadores como Wilhelm von Humboldt e Barthold Georg Niebuhr. O primeiro,

que era contemporâneo de Hegel, foi quem antecipou as grandes linhas de uma teoria

da história fundada em duas distinções fundamentais: em primeiro lugar, a distinção

entre a diversidade individual, que o historiador tenta tornar coerente a partir de suas

manifestações nacionais ou culturais, e a especulação metafísica do filósofo, abstrata

e nem sempre atenta a essa mesma diversidade; em segundo lugar, a distinção entre a

realidade empírica interpretada pelas ciências humanas e aquela explicada pelas

ciências da natureza em termos de processos mecânicos. Acolhido uma geração mais

tarde por historiadores como Leopold von Ranke e Gustav Droysen, membros da

chamada “Escola Histórica”, o projeto de circunscrever os limites de uma prática

mais positiva para a disciplina histórica não poupará críticas às grandes sínteses

filosóficas ao estilo do Idealismo alemão. A Weltgeschichte hegeliana torna-se para

esses autores algo como as antípodas de uma verdadeira historiografia, e Ranke

atacará Hegel diretamente, afirmando a diferença entre um modo filosófico de

conceber a realidade histórica, que atua por meio de princípios a priori como o

progresso, a razão ou o Espírito, e a tarefa do historiador, que é a de estabelecer o

curso real dos acontecimentos através de uma cuidadosa pesquisa documental, da

verificação dos registros e dos arquivos existentes. Essa atenção às fontes seria a

única forma de evitar que a história fosse monopolizada por noções estranhas aos

objetos investigados como, justamente, a de que a razão governa o mundo e tende a

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nele progressivamente se efetuar. Embora ele não fosse hostil à filosofia em si

mesma, o que Ranke definitivamente rejeitava era o procedimento, característico do

pensamento idealista, de derivar o universo de fatos concretos de um sistema limitado

de idéias e conceitos. Para ele, ao contrário disso, as idéias deveriam ser reunidas

indutivamente como manifestações a posteriori do espírito na realidade.79 Idéias

filosóficas deveriam complementar os fatos históricos, em vez de serem impostas

sobre eles.

Mas Ranke ia além disso. Segundo ele, no trabalho de observação e

interpretação das fontes, o historiador deve se esforçar pela sua “auto-extinção”

(Selbstauslöschung). Em outras palavras, ele deve evitar depositar sobre o objeto

investigado valores oriundos do seu próprio quadro de referências sociais e culturais.

O ideal de contemplação objetiva dos fatos recebe aqui a sua formulação lapidar: é de

Ranke a célebre divisa conclamando os historiadores a apreender o passado “assim

como ele realmente foi” (“wie es eingentlich gewesen ist”)80. Numa fórmula que faz

ecoar facilmente as críticas dirigidas por Herder aos filósofos de seu tempo, Ranke

afirma que “cada época deve ser vista como válida por si mesma e em si mesma

aparecer como digna de consideração”81.

Se o projeto de transformar a história numa ciência com uma metodologia

autônoma visava a superar tanto a mera erudição quanto os grandes vôos

especulativos, o fato é que a visão de Ranke se expunha ao mesmo tipo de impasse

presente na problematização feita por Herder do universalismo das Luzes. Se toda

época deve ser compreendida segundo tendências dominantes a ela imanentes, como

chegar a um princípio de sistematização do conhecimento histórico que transcenda

horizontes temporais a cada vez necessariamente limitados? Como esperar que a

realidade histórica se preste a um conhecimento propriamente objetivo se o que ela

revela é, a cada vez, algo de singular e irrepetível? Onde encontrar e sob que critérios

estabelecer a verdade dos fatos históricos, e o que fazer para que a exigência de um

olhar neutro e imparcial não acabe resultando num puro relativismo? Tais questões,

79 Cf. BARASH 2003, p. 13. 80 A expressão aparece sob a pluma de Ranke no prefácio da primeira edição das Histórias das nações latinas e germânicas de 1494 a 1514, de 1824. 81 Citado em BARASH 2003, p. 13.

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na verdade, não se apresentaram de maneira tão problemática para Ranke quanto elas

o seriam para as gerações de teóricos que o sucederam. A razão disso é que a sua

teoria baseava-se abertamente na convicção de que cada uma das manifestações

temporais surgidas na história do mundo tem a sua origem na vontade divina e que,

na medida em que reproduz com rigor o passado, o historiador descobre nele não

quaisquer valores contingentes, cujo significado e alcance se limitariam à cultura e à

época que os produziram, mas antes o caráter verdadeiramente ético das instituições

sociais, construído ao longo dos séculos por um desenvolvimento histórico que

concerne à humanidade como um todo. Assim, embora rejeitasse a crença num

determinismo causal ou teleológico como princípio de sistematização e interpretação

dos dados historiográficos, ao afirmar uma ordem divina das coisas, Ranke expunha a

sua fé numa unidade ética essencial do mundo histórico. Como escreve Georg Iggers

num estudo sobre a tradição do historicismo na Alemanha, apesar de esses autores

insistirem na radical diversidade dos homens e das culturas humanas, “o que os

preservava do relativismo ético e epistemológico era a sua profunda fé numa

realidade metafísica para além do mundo histórico. Eles estavam convencidos de que

cada uma das diversas culturas apenas refletia os vários aspectos dessa realidade.”82

Não menos do que Hegel, portanto, Ranke sustentava a idéia de uma coerência

objetiva do mundo histórico, ainda que frente a ela o entendimento humano, y

compris o do historiador especializado, devesse permanecer limitado. No universo

das obras humanas, finitas e transitórias, há sempre um traço do mistério divino – e

esse mistério jamais pode ser integralmente esgotado.

No fundo, boa parte do que se produziu nessas primeiras tentativas de superar

Hegel com uma historiografia de cunho “anti-metafísico” não chegará a se

desvencilhar de algumas das suas principais prerrogativas – e o pós-hegelianismo,

como se sabe, teve o mesmo destino no campo da filosofia. Em última instância, o

que permanecerá é a própria separação entre o mundo histórico “ele mesmo” e a

possibilidade de um conceito filosófico que o abarque na sua totalidade. A vontade de

promover a legitimação da disciplina histórica no campo das ciências humanas não

fez de início muito mais do que reacionar o jogo de antigas e poderosas dualidades:

82 IGGERS 1983, p. 14.

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razão e sensibilidade, desígnio racional e pura contingência, necessidade e liberdade,

vontade divina e realidade finita continuaram a reinar no horizonte de uma discussão

onde a preocupação com os “fatos” não parecia poder abrir mão das “idéias” capazes

de articulá-los. Se a salvação da história pela historiografia tornou-se o mote da velha

disciplina que acreditava ter finalmente atingido a sua maturidade como ciência, o

debate sobre a fundamentação de uma sólida metodologia para as disciplinas

humanísticas frente às ciências naturais estava apenas começando.

Mais para o fim do século XIX, um amplo debate teórico em torno das

condições de acesso ao mundo histórico e cultural mostrou-se praticamente

incontornável. Grupos de pensadores das mais diferentes disciplinas encamparam

uma controvérsia metodológica que posteriormente será conhecida como

Methodenstreit, “polêmica do método” 83. Em torno dessa polêmica, a filosofia

ocupará durante alguns anos uma posição de destaque. E é no que começa a ser

identificado como um elemento-chave na crise de valores do pensamento tradicional

que o problema da história acaba por tomar de volta o caminho da reflexão filosófica.

Crítica da razão histórica

A retomada do problema da história pela reflexão filosófica na virada do

século deu-se num momento em que a filosofia, enquanto disciplina acadêmica,

buscava se resguardar frente à crescente especialização das ciências. A competência

da filosofia para prover ao conhecimento científico os seus princípios e regras de

orientação – tarefa assumida por Descartes no início da Era Moderna, reiterada por

Kant um século depois, e perfeitamente sintetizada na concepção de Fichte da

filosofia como “ciência da ciência” – vinha sendo fortemente desafiada pelos

resultados positivos obtidos no campo das ciências naturais. Com o afrouxamento da

influência das filosofias especulativas, as academias alemãs começam a tentar

corresponder com pesquisas científicas às demandas vindas da sociedade e da

indústria modernas. A influência massiva das ciências naturais durante essas últimas 83 Leituras mais detalhadas acerca da verdadeira polifonia teórica que se produziu nessa época podem ser encontradas em SCHNÄDELBACH 1980, IGGERS 1983 e BAMBACH 2003.

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décadas do século XIX encorajou o surgimento de uma nova perspectiva abarcante

sobre a realidade, que se passou a chamar de “visão de mundo naturalista”

(naturalische Weltanschauung). Segundo os adeptos desse novo naturalismo, cujo

apelo se fez ouvir muito além dos círculos acadêmicos, o espírito e todas as suas

criações poderiam ser elucidados como resultados de processos naturais. Alternando

“leis” oriundas da psicologia, da biologia e da física, eles explicavam a gênesis da

reflexão e de todas as esferas do pensamento e do juízo em termos de uma atividade

“associativa” na qual toda experiência estaria supostamente fundada. O mundo do

espírito, em seus sentidos e dimensões os mais diversos, decorreriam, tal como

fenômenos naturais, da pura associação de determinadas circunstâncias com os seus

resultados. Esse contexto será brevemente descrito por Dilthey, que vivenciou a

passagem, ainda nos seus primeiros anos de filosofia, do predomínio de uma filosofia

do espírito de tipo idealista a uma concepção naturalista do mundo e do próprio

espírito:

Quando eu comecei em filosofia, o monismo idealista de Hegel havia sido substituído pelo predomínio das ciências naturais. Quando o espírito científico tornou-se filosofia, como entre os enciclopedistas, Comte e os pesquisadores naturais adeptos da filosofia na Alemanha, tentou-se conceber o espírito como um produto da natureza.84 Uma das primeiras e mais influentes tentativas de elaborar um contra-

argumento à visão de mundo naturalista deu-se como uma retomada do pensamento

transcendental de Kant. Com o intuito de salvaguardar o antigo estatuto de

propedêutica a toda ciência, a filosofia procurou reapropriar-se das diretivas postas

pela filosofia crítica, estendendo-as ao domínio das humanidades, mais

especificamente à história e à cultura. Fornecer as bases para uma teoria do

conhecimento dos objetos históricos foi a tarefa assumida por autores como Wilhelm

Windelband e Heinrich Rickert, membros da escola neo-kantiana de Baden. Para

esses autores, era necessário fundamentar as diferenças lógicas e estruturais entre as

ciências da natureza e as ciências humanas, e nesse sentido consolidar de uma vez por

todas as distinções metodológicas a cada uma delas específicas. Antes de qualquer

84 DILTHEY 1911, p. 37.

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coisa, porém, tratava-se de mostrar que uma teoria transcendental do conhecimento

histórico deveria se ocupar dos limites que condicionam a formação dos conceitos em

cada ciência. Não basta restringir todo o acesso à história à investigação dos fatos e

das fontes, mas trata-se de determinar as condições segundo as quais um tal acesso

torna-se possível. Sem antes discernir esses limites e essas condições, o que o

historiador pode ver diante de si não é nem fatos nem fontes, mas sim o contínuo

fluxo da história, nas palavras de Windelband, “um fenômeno inexprimível e

indefinível”85. Assim, Rickert afirmará, por exemplo, que a diversidade geralmente

reconhecida como uma característica intrínseca do mundo cultural está no fundo

conectada a categorias racionais a priori produzidas pelo entendimento.

Rickert queria tomar distância da forte tendência da época de atribuir à

psicologia uma função de destaque na teoria do conhecimento. Atribuir à consciência

e a categorias psíquicas ou espirituais um papel na construção dos objetos históricos

equivaleria a fundamentar o conhecimento com base em princípios empíricos, o que

lhe parecia impossível. Para esses aspectos, aliás, é que convergia o conteúdo de suas

críticas a Dilthey, cujas posições consideraremos mais adiante. De acordo com

Rickert, a realidade em si mesma é algo de incalculável e irracional e exige, para que

se possa compreendê-la, uma simplificação ou transposição conceitual. Porque o

conhecimento humano jamais pode reproduzir as coisas em si mesmas, somos

forçados a selecionar o que julgamos essencial a partir dos interesses cognitivos de

nossas pesquisas. É sobre a base desses mesmos interesses, que Rickert chamará de

“valores”, que se dá a formação de conceitos nas ciências históricas. A filosofia deve

assim orientar-se em direção a esta única questão: como formar os conceitos de modo

que nossos interesses cognitivos sejam realizados nos próprios métodos de

investigação? Segundo Rickert, Dilthey havia optado por uma solução ontológica do

problema, sustentando que a diferença entre ciência natural e ciência do espírito,

entre Natur- e Geisteswissenschaft, funda-se no fato de ambas se relacionarem com

realidades fundamentalmente distintas, com dois modos distintos de existência.

85 A fórmula aparece no fim da conferência “Geschichte und Naturwissenschaft”, proferida em 1894 (citado por Guy Oakes na sua introdução à tradução inglesa da obra de Rickert, The Limits of concept formation in natural science. A logical introduction to the historical sciences, Cambridge, Cambridge University Press, 1986, p. x.).

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Contra Dilthey, Rickert argumentará que não está em causa um conhecimento dos

próprios objetos, dos objetos históricos eles mesmos, pois a realidade histórica ou

cultural só se torna de fato “real” na medida em que é conceptualizada, isto é, referida

a um valor. Em última instância, e num sentido rigorosamente kantiano, Rickert

queria provar que nada mais nos é dado conhecer acerca dos objetos da história do

que os valores que, a priori, nós neles depositamos.

Um ponto interessante aqui é o reaparecimento de uma terminologia

largamente orientada para a noção de cultura: é de autoria de Rickert a expressão

Kulturwissenschaft, que se quer um equivalente – se não mesmo um substituto – para

a noção mais antiga de Geiteswissenschaft. Ela sintetiza também o elemento

fundamental da sua teoria: as ciências humanas não lidam com conceitos puramente

empíricos, mas com valores culturais transcendentais. Para demonstrar a

possibilidade de uma validade objetiva dos juízos históricos, Rickert afirmará então

que o sujeito do conhecimento histórico, o historiador que conduz uma investigação,

não avalia ou ajuíza fatos e eventos particulares, mas aplica valores de acordo com

uma perspectiva teórica específica – a qual ele denomina “relação teórica a valores”

(theoretische Wertbeziehung).86 Nessa distinção entre a avaliação propriamente dita

(Wertung), que sempre corre o risco de ser tendenciosa, e o ato de relacionar a valores

(Wertbeziehung), que reconstrói eventos e personagens históricos de acordo com

características essenciais que determinam a sua coerência dentro de um quadro de

valores específicos, Rickert acreditava ter encontrado uma saída para o problema do

relativismo cultural. Mas se a questão de como frear o relativismo mobilizou boa

parte da reflexão filosófica das primeiras décadas do século XX, a saída muitas vezes

não podia ser outra senão a de des-historicizar a história. Os “valores” que Rickert

quis transformar em categorias a priori de todo conhecimento possível da história ou

da cultura são, provavelmente, um bom exemplo disso.

86 RICKERT 1902, pp. 244-256.

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Da história à vida

É dentro desse contexto que Heidegger elabora, sob a orientação de Rickert

precisamente, o ensaio sobre O Conceito de tempo nas ciências históricas (Der

Zeitbegriff in den Geschichtswissenschaften). O escrito data de 1915 e constitui a

primeira parte do seu Habilitationschrift. Embora aparentemente tentado a contribuir

com a sua parte no debate metodológico da época, vê-se que, de saída, o caminho que

Heidegger escolhe para abordar o problema da história passa por um questionamento

do tempo. Não há ainda aqui nada que anuncie os desenvolvimentos encontrados

cerca de dez anos mais tarde em Ser e tempo e nos trabalhos do período da ontologia

fundamental. Nada ainda acerca da constituição da historicidade (Geschichtlichkeit),

do “acontecer” (geschehen) próprio à existência humana, da finitude como horizonte

de uma apropriação autêntica do tempo e, portanto, também do passado e da história.

Neste primeiro escrito, é a taxonomia neo-kantiana das ciências proposta por

Wilhelm Windelband – a divisão do pensamento científico entre um modo

“nomotético” e um modo “idiográfico” de proceder, o primeiro preocupado com leis

gerais e constantes, o segundo com fatos particulares, com a estrutura historicamente

definida – que serve de base à distinção entre um “tempo das ciências naturais” e um

“tempo humano”, o tempo mensurável das ciências matemáticas da natureza e o

tempo “vivido” das ciências históricas ou do espírito. Mas essa proximidade com um

ponto de vista dicotômico, característica das preocupações metodológicas do neo-

kantismo, não durará muito tempo, e Heidegger se revelará mais adiante um crítico

severo do princípio de validade universal (Allgemeingültigkeit) defendido pelo neo-

kantismo. Na passagem dos anos dez aos anos vinte, e na mesma medida em que se

aproxima da hermenêutica da vida de Dilthey, Heidegger começa a tecer os nexos

entre o que virá a ser a sua própria hermenêutica da facticidade e os fenômenos do

tempo e da história que surgirão como uma espécie de coroamento da analítica

existencial de Ser e tempo. E é bem outra, como veremos, a perspectiva que passará a

orientar o tratamento dessas questões.

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É através dos escritos de Dilthey que vem à luz o projeto de realizar uma

“crítica da razão histórica” (Kritik der historischen Vernunft).87 Sua questão diretriz,

enunciada por Dilthey em termos rigorosamente transcendentais, pergunta sobre

“como a edificação do mundo do espírito no sujeito tornaria possível o conhecimento

da realidade espiritual”88. Seu objetivo não é outro senão o de fundar

transcendentalmente uma metodologia para as ciências humanas. Mas a despeito da

linhagem explicitamente kantiana, Dilthey punha no centro do seu programa crítico

um elemento que desafiava as prerrogativas mais fundamentais do criticismo.

Segundo ele, as condições de possibilidade da realização da razão na história devem

ser investigadas a partir da vida. Uma reflexão crítica sobre as ciências humanas,

sobre o conhecimento que elas produzem e sobre o sentido que elas interpretam,

depende de uma articulação mais profunda entre a razão (Verstand) e a experiência

vivida (Erlebnis). É a partir do conceito de “compreensão” (Verstehen) que Dilthey

nomeará essa articulação, sustentando que, para apreender a da vida, a razão deve se

tornar, como ela, uma estrutura dinâmica. “A relação fundamental da experiência

vivida (Erlebnis) e da compreensão (das Verstehen) é uma relação de dependência

recíproca.”89 É nessa íntima relação com a experiência que a compreensão adere, por

assim dizer, à realidade. A objetividade do conhecimento científico só é possível

como decorrência de uma determinada adequação entre o pensamento e a vida.

Com o modelo de uma racionalidade fundada na compreensão, Dilthey

mostrava que a estrutura do conhecimento histórico, antes de atingir qualquer unidade

lógica ou propriamente racional, se encontra intimamente conectada à experiência

vivida. É da reflexão sobre esse entrelaçamento que nascerá o conceito de

historicidade (Geschichtlichkeit), que aparece praticamente pela primeira vez na

correspondência trocada entre 1877 e 1897 entre Dilthey e Yorck von Wartenburg.90

Para os dois autores, que Heidegger tomará como guias na sua própria tematização do

problema da história em Ser e tempo, a historicidade é esse modo de ser do espírito

humano cuja realidade efetiva comporta um caráter essencialmente vivo, uma

87 A frase é dita por Dilthey em 1903, num discurso comemorativo dos seus setenta anos. Citado em IGGERS 1983, pp. 143-144. 88 Citado em BROGOWSKI 1997, p. 103. 89 DILTHEY 1910, p. 99. 90 Cf. DASTUR 2000, p. 105.

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Lebendigkeit.91 Se a implicação recíproca entre Leben e Geschichte, entre vida e

história, é o âmbito original da constituição de todo sentido, é partindo dela que deve

se pautar a construção de um conhecimento teórico acerca da história (Historie).

Assim, confrontado à vida na sua integralidade, o projeto de crítica da razão histórica

revelava uma “identidade de natureza” (Gleichartigkeit) entre o homem, aquele que

conhece, e a história, a realidade conhecida.92 Na medida em que ela interpreta o

objeto histórico, a consciência histórica ao mesmo tempo interpreta a si mesma.

Heidegger, como se sabe, reconheceu no trabalho de Dilthey algo de revelador

e pioneiro. Além das muitas referências importantes feitas a Dilthey ao longo dos

anos vinte93, o parágrafo 77 do capítulo 5 de Ser e tempo, intitulado “Temporalidade e

historicidade”, é inteiramente dedicado a mostrar “o nexo da exposição do problema

da historicidade com as pesquisas de Dilthey e as idéias do Conde Yorck”94. No

parágrafo 72, que abre esse mesmo capítulo, Heidegger chega a escrever:

“A presente consideração deve se contentar em indicar o lugar ontológico do problema da historicidade. No fundo, a presente análise trata unicamente da preparação de um caminho para que a geração atual possa apropriar-se das pesquisas de Dilthey, com a qual ela ainda deve se confrontar.”95

Mas já em Ser e tempo Heidegger dirá que a meta e a preocupação

elementares do trabalho de Dilthey − “trazer a ‘vida’ para uma compreensão

filosófica e assegurar para essa compreensão um fundamento hermenêutico a partir da

própria vida”96 −, esbarram com um problema fundamental. Segundo ele, o próprio

conceito de vida permanece aí ambíguo, levando a uma dualidade aparentemente 91 Ibid. 92 DILTHEY 1911, p. 26. 93 No curso do semestre de verão de 1925, Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs, Heidegger escreve: “O elemento decisivo na investigação de Dilthey não é a teoria das ciências da história, mas a tendência a trazer a realidade do histórico à luz e tornar clara, a partir disso, a maneira e a possibilidade da sua interpretação”. Heidegger diz também nesse curso que um dos fatores da “trivialização” do questionamento de Dilthey foi a interpretação que deles fizeram Windelband e Rickert. Eles a teriam reduzido a uma “metodologia vazia”. HEIDEGGER 1925, pp. 19-20 (tr.am., p. 17).Além do curso, Heidegger profere no mesmo ano uma série de conferências em Kassel, que acabarão por constituir o ponto culminante de uma recepção que se fez cada vez mais marcada no período de elaboração da hermenêutica da facticidade. Aqui, Heidegger chega a identificar em Dilthey a colocação da questão sobre o sentido do ser. 94 HEIDEGGER 1927, II, p. 397 (tr.br., p. 205). 95 Ibid., p. 377 (tr.br., p. 182). 96 Ibid., p. 398 (tr.br., p. 206).

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irresoluta. Pois Dilthey, ao estabelecer o fenômeno primordial da vida como “fundo

sensível da consciência”, como “totalidade da vida psíquica”, define-a também como

um “meio irracional”97. Enquanto condição originária da possibilidade de todo

sentido, a vida se compreende a partir de si mesma, mas, ao mesmo tempo, ela é em

si mesma irracional, “abissal” (unergrünlich), nas palavras de Dilthey. Para mostrar

esse caráter opaco que originalmente a vida tem em relação à razão, Dilthey se vê

forçado a determinar o conhecimento histórico como uma espécie de vitória da

compreensão sobre a irracionalidade da vida. Segundo Heidegger, é o próprio ponto

de partida de Dilthey, a saber, o de uma filosofia da consciência, que o conduz a esses

impasses. Ao ancorar o seu “ponto de vista epistemológico”98 na consciência, Dilthey

busca abrir, através da investigação dos produtos do espírito humano, uma visão

sobre os nexos psíquicos que os produziram. Mostrando ser impossível situar-se por

detrás da consciência – “para ver como se fosse sem olhos”, como ele mesmo

sublinha – Dilthey entrega a tarefa de uma hermenêutica da vida à psicologia,

assentando sobre esta última a interpretação da historicidade da primeira.99

Da vida à história

No âmbito do que Heidegger chama, em 1927, de uma “análise preparatória dos

fundamentos do Dasein”, é a este último, definido como o âmbito de uma abertura em

que se desdobra a existência do homem, que será conferida a primazia de todo

acontecer (geschehen) histórico (geschichtlich). Para o Heidegger de Ser e tempo, a

possibilidade de existir historicamente exige a capacidade de que assumamos a finitude

que é a nossa, de que afrontemos a morte como limite instransponível de toda

existência, para a partir dessa condição projetarmos para nós mesmos a possibilidade de

97 Cf. BROGOWSKI 1997, p. 99. 98 DILTHEY 1883, p. xvii: “Toda ciência é empírica, mas toda experiência é originariamente conectada e validada por nossa consciência, na qual ela ocorre de fato, isto é, por toda a nossa natureza. Nós chamamos este ponto de vista − o qual reconhece consistentemente a impossibilidade de pôr-se atrás da consciência (para ver como se fosse sem olhos, ou dirigir um olhar cognitivo por detrás dos próprios olhos) − o ponto de vista epistemológico. A ciência moderna não reconhece outro.” 99 Cf. HEIDEGGER 1927, II, p. 398 (tr.br., p. 206): “Tudo está centrado na ‘psicologia’ que deve compreender a ‘vida’ em seu nexo de desenvolvimento e ação históricos como o modo em que o homem é, tomando-a ao mesmo tempo como objeto possível e como raiz das ciências do espírito.”

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uma história (Geschichte). Antecipar-se em direção à morte é a condição necessária de

todo voltar-se para o que “foi” em termos de uma possibilidade de existência a repetir.

É na idéia de repetição (Wiederholung) que Heidegger encontra o gesto de autêntica

apropriação do passado, buscando caracterizar com ele um retorno, não

necessariamente reprodutivo, mas ao contrário e justamente produtivo, sobre aquilo

que, tendo sido presente como possibilidade, é também passível de ser retomado. Essa

espécie de “volta antecipada” sobre o “fato de seu fim” – segundo a dupla estrutura,

que Heidegger faz aparecer no seio de todo existente, do projeto-lançado (geworfener

Entwurf) – significa que a história está fundada na ‘ekstase’ temporal do porvir

(Zukunft). Essa idéia encontrou a sua formulação lapidar na definição, que encontramos

no parágrafo 75, de toda história genuína como “o ‘retorno’ do possível” (die

‘Wiederkehr’ des Möglichen)100. Fundar a história no horizonte do porvir foi o modo de

mostrar, na articulação existencial e temporal dos modos de ser do Dasein no mundo, a

dinâmica essencialmente projetiva que define este último como um autêntico “poder-

ser”.

No fundo do conceito de historicidade (Geschichtlichkeit) elaborado em Ser e

tempo, o que se abre ao homem é mais do que a simples promessa de uma auto-

compreensão própria ou autêntica. Se a finitude da temporalidade aparece aí como “o

fundamento velado da historicidade do Dasein” (der verborgene Grund der

Geschichtlichkeit des Daseins)101, assumir esse “fundamento” significa, para além de

sua simples compreensão, a necessidade de uma tomada de decisão a seu respeito.

Somente o Dasein decidido a assumir a finitude que é a sua pode se auto-transmitir

uma situação histórica – e é essa auto-transmissão, a remissão a uma “outra história”

possível, que Heidegger designará através do termo “destino” (Schicksal).

Relacionando, desde Ser e tempo, as noções de destino e história, Heidegger toca o

ponto culminante da sua empreitada. Trata-se finalmente de mostrar que o

movimento deste ente que nós mesmos somos, desse ente que se estende entre dois

tempos em última instância “impossíveis” – o do nascimento e o da morte –, é não só

abertura para o futuro, mas também livre escolha e repetição de uma herança legada

100 HEIDEGGER 1927, II, p. 391 (tr.br., p. 198). 101 Ibid., p. 386 (tr.br., p. 192).

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pelo passado. A repetição é esse evento, fundado na temporalidade finita, em que a

identidade do Dasein é ao mesmo tempo preservada e transformada: nela, o outro

apropriado no passado revela-se passível de ser retomado, isto é, retorna como

possível, mas enquanto projeto a ser reconstruído.

A história é portanto uma estrutura intrínseca ao Dasein. Este existe ou

acontece enquanto um ente fundamentalmente histórico, ainda que ele não se

compreenda efetivamente desse modo. Mas se é possível dizer que a história está

sempre aí, que ela é uma estrutura fundamental, inerente ao ser humano, isto não

significa que ela seja para o homem uma propriedade, um bem de uma vez por todas

adquirido. A história pertence ao Dasein como uma possibilidade, e propriamente ela

só é dada àquele que decide dela se apropriar. Em poucas palavras, a história não vem

ao homem se o homem não decide ir ao encontro da história. Ou, dito de outro modo,

se a possibilidade de ter uma história é para o homem uma possibilidade concreta,

ela não deixa de ser por isso uma realidade que ele deve criar para si.

Com relação aos impasses tradicionalmente confrontados pela epistemologia

crítica da história, a posição de Heidegger em Ser e tempo se mostrava categórica:

“não é na historiografia (Historie) que se deve buscar a história (Geschichte)”102. Nem

a visão da história voltada para o conhecimento dos fatos de um passado

supostamente intacto, nem a lógica da construção de conceitos no estilo do neo-

kantismo, mas já tampouco a hermenêutica da vida estariam aptas a apreender a

historicidade como fenômeno originariamente articulado à estrutura da existência

humana. “Os conceitos fundamentais das ciências historiográficas são conceitos

existenciais (Existenzbegriffe)”103, anuncia Heidegger categoricamente. O problema

da história não pode esquivar a sua origem existencial, e é dela que depende a

possibilidade de uma fundamentação epistemológica da ciência historiográfica. A

questão da historicidade é portanto, e antes de tudo, “uma questão ontológica sobre a

constituição do ser dos entes históricos (nach der Seinsverfassung des geschichtlich

Seienden), e não concerne à epistemologia.”104 Para Heidegger, é na medida em que

se compreende como um ente que traz na sua própria constituição a possibilidade do

102 Ibid., p. (tr.br., 180). 103 Ibid., p. 397 (tr.br., p. 205). 104 Ibid., p. 403 (tr.br., p. 211).

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histórico (geschichtlich) que o homem pode compreender que não só ele é na história,

mas que também, de algum modo, a história só é nele.

Da visibilidade da história

Mas, em Ser e tempo, um elemento-chave na crítica (indireta)105 que

Heidegger dirige à historiografia tradicional acena para uma dimensão decisiva da

questão que atravessará a sua interpretação da história nos anos seguintes à ontologia

fundamental. Em geral pouco explorado nas leituras acerca dos conceitos de história e

historicidade em Ser e tempo, esse elemento é apresentado, nas palavras de

Heidegger, como algo que deve se esclarecer “mais profundamente através das idéias

do conde Yorck von Wartenburg”106. Essas idéias são, na verdade, passagens

dispersas recortadas da vasta correspondência entre Yorck e Dilthey. Mas se

Heidegger é capaz de dizer nesse momento que é da “assimilação do trabalho de

Dilthey”107 que nasceu a sua própria discussão sobre o problema da história, é através

das teses do Conde Yorck que ele diz tê-la confirmado e ao mesmo tempo reforçado

(bestätigt und zugleich gefestigt).108

É no interlocutor de Dilthey que Heidegger encontra a formulação explícita da

distinção entre o “ôntico” (Ontischem) e o histórico (Historischem). E nesta distinção

ele nos convida a ver uma espécie de antecipação do que Ser e tempo enuncia como o

seu primeiro passo, a saber: esclarecer a diferença entre ontologias regionais e

ontologia fundamental, entre o ôntico e o ontológico. Yorck move-se, contudo, ainda

no campo das preocupações ligadas à Lebensphilosophie. Utilizando aparentemente o

termo “ôntico” para caracterizar o objeto que se encontra sob o domínio das ciências

da natureza, ele o diferencia do “histórico” como o âmbito de efetivação da vida 105 Numa passagem do parágrafo 76, onde Heidegger trata da “origem existencial da historiografia a partir da historicidade do Dasein”, lemos o seguinte: “Será, portanto, o possível (das Mögliche) tema da historiografia? Todo o seu “sentido” não reside, unicamente, nos “fatos” (“Tatsachen”), no modo como de fato foi (wie es tatsächlich gewesen ist)?” Embora ela não dê nome ao verdadeiro “objeto” da sua suposição, a questão faz indireta mas muito claramente referência ao lema de Ranke de buscar o passado “wie es eigentlich gewesen”, isto é, assim como ele “de fato” foi, assim como efetivamente se passou. Cf. HEIDEGGER 1927, II, p. 394 (tr.br., p. 201). 106 Ibid., p. 397 (tr.br., p. 205). 107 Ibid. 108 Ibid.

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(Leben) e da história (Geschichte). Uma das críticas que em suas cartas Yorck

endereça a Dilthey é justamente o fato de este ter salientado pouco a diferença entre o

ôntico e o histórico. Porque ele não o fez, por não ter insistido suficientemente na

diferença entre o ente que é natureza e “o ente que é história”109, é que Dilthey teria

reivindicado especialmente “a comparação como método das ciências do espírito”110.

Pois é precisamente aqui, Yorck escreve a Dilthey, “que eu me separo do senhor.

Toda comparação é estética, e está sempre presa à figura (Vergleichung ist immer

aesthetisch, haftet immer an der Gestalt)”.

Na sua tentativa de elaborar a questão do pertencimento (Zugehörigkeit) do

ser humano à realidade histórica – nisto se opondo, ainda que sutilmente, à idéia cara

a Dilthey de uma identidade de natureza (Gleichartigkeit) entre o que conhece a

história e o que nela é conhecido111 –, Yorck chama surpreendentemente a atenção

para um modo “ocular” (okular) de conceber o mundo do espírito, um tipo de

objetivação que, ao pretender trazer a história diante do pensamento, transforma-a

numa coisa “esteticamente construída”.112 Como Heidegger notará, ao transcrever as

palavras de York e completá-las com as suas próprias: “Yorck reconhece o quanto a

pesquisa histórica tradicional ainda se atém, com imensa força, às ‘determinações

puramente oculares’ (‘rein okularen Bestimmungen’), que visam ao que é corporal e

figurável (Körperliche und Gestalthafte)”.113 E, de fato, é a alguns dos representantes

mais ilustres da tradição da pesquisa histórica na Alemanha que Yorck diretamente se

refere. “Ranke, ele dirá sem hesitar, é um grande ocular (ein großes Okular)”, para

quem não pode se tornar realidade o que desapareceu”114. Se de maneira bem

característica, ele restringiu a matéria histórica ao político, é porque é neste,

unicamente, que Ranke pode vislumbrar o “dramático” (das Dramatische)115. É nesse

êxtase contemplativo que o historiador supostamente se extingue, e é nela que ele

109 Ibid., p. 399 (tr.br., p. 207). 110 Ibid. 111 Cf. DILTHEY 1883, p. 116: “É necessário desenvolver uma fundamentação epistemológica para as ciências humanas... [que determine] a capacidade do ser humano de conhecer a si mesmo, assim como a sociedade e a história que ele produziu.” Cf. também DASTUR 2000, p. 106. 112 HEIDEGGER 1927, II, p. 400 (tr.br., p. 208). 113 Ibid. (tr.br., pp. 207-208). 114 Ibid. (tr.br., p. 208). 115 Ibid.

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chega à “pura visão da coisa” (das reine Sehen der Dinge).116 Também Windelband,

afirma Yorck, remete à história as figuras. Para ele, “história é uma série de imagens,

de figuras particulares, uma exigência estética (eine Reihe von Bildern, von

Einzelgestalten, aesthetisch Forderung)”117.

Em Windelband, com efeito, as ciências que buscam o “conteúdo único e

imanente do evento real”118 são ditas idiográficas. Mas se aquilo a que visa o

conhecimento histórico são conteúdos próprios e singulares, isto não exclui que o

pensamento deva ainda assim formar a imagem conceitual capaz de determiná-los.

Dirigindo-se à perspectiva reivindicada pelo próprio Dilthey, Yorck observa: “O

conceito de tipo proposto pelo senhor é totalmente interno. Trata-se aí de caracteres,

não de figuras (es sich um Charaktere, nicht Gestalten).”119 Como se quisesse

precaver o amigo a respeito do que em seu próprio pensamento permanece na

fronteira, quase à margem do ocular, Yorck declara: “O conceito de história que o

senhor propõe é, no entanto, o de uma conexão de forças, de unidades de força, às

quais a categoria figura (die Kategorie: Gestalt) só poderia ser aplicada em sentido

figurado (nur übertragener Maßen anwendbar sein solte)”120.

É atento à tendência estetizante latente no esforço de Dilthey de comparar “as

diversas maneiras de ver o mundo”121, que Yorck chama-lhe a atenção para a

distinção entre o histórico e o ôntico. A “ontificação” da história, nós então

compreendemos, é nada menos do que a sua ocularização, a sua conversão em quadro

(Bild) e figura (Gestalt) – Yorck dirá mesmo: em espetáculo. Assim, na medida em

que operam através de métodos comparativos, preocupados com a “determinação de

relações” (“Verhältnisbestimmungen”)122, os historiadores não fazem mais do que se

exercer em maneirismos exteriores. E quando é esse o caso, afirma Yorck, a sua

prática não difere muito da do cientista, para o qual, além da ciência como uma

espécie de meio de tranqüilização humana, resta somente o “deleite estético” 116 É do próprio Ranke a expressão “das reine Sehen der Dinge”. Cf. ARENDT 1954, p. 79. 117 Ibid., pp. 399-400 (tr.br., p. 207). 118 WINDELBAND 1894, p. 169. 119 HEIDEGGER 1927, II, p. 399-400 (tr.br., p. 207). 120 Ibid. (tr.br., p. 207). 121 “Das geschichtliche Bewusstsein und die Weltanschaaung” (“A consciência histórica e as visões de mundo”) é o título de um ensaio escrito por Dilthey em 1911 e publicado no tomo VIII dos seus Gesammelte Schriften. 122 Ibid., p. 401 (tr.br., p. 210).

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(aesthetische Genuß)123. É como o filólogo “autêntico”, lemos ainda, que tem um

conceito de história como um baú de antiguidades: porque eles não chegam ao que

não se pode apalpar, acabam agindo como os cientistas da natureza, que se tornam

ainda mais céticos quando lhes falta o experimento.124 Mas na história, o principal não

é a evidência, “o espetáculo e o que dá na vista, (was Spektakel macht und

augenfällig ist)”125. Assim como os nervos são invisíveis (unsichtbar), o que é

essencial na história, diz Yorck, em geral também o é. O que Yorck nos mostra

através da crítica ao predomínio do “ôntico-ocular”, é que ele é um tipo de olhar

sobre o mundo que articula, tornando-os perfeitamente convergentes, dois domínios

que a própria tradição de pensamento decretou como opostos: a ciência e a estética. A

historiografia, na medida em que se vê presa a esse tipo de olhar, a um olhar que

transforma o mundo em quadro, transformando-se com ele imediatamente em

espectador, se revela, na expressão de Heidegger, um “modo estético-mecanicista de

pensar” (ästhetisch-mechanistische Denkenweise)126. “Os cientistas, escreve Yorck, se

comportam face às forças do tempo à semelhança da sociedade francesa mais erudita

e refinada frente ao movimento revolucionário. Tanto aqui como lá, trata-se apenas

de formalismo, de culto da forma (Kultus der Form).”127

É impossível não relacionar todas essas passagens que acabamos de citar à

crítica dirigida por Nietzsche à moderna “cultura histórica” na segunda de suas

considerações intempestivas. Não é o ponto de vista ocular que Nietzsche tem como

alvo quando ele afirma que o culto do saber histórico na modernidade produziu nada

menos que uma “geração de eunucos”128? Na conhecida passagem do texto de 1874,

“nenhuma geração viu ainda um espetáculo tão inabarcável como o que a ciência do

vir-a-ser universal, a história, mostra agora”.129 E os historiadores modernos, diante

deste espetáculo, se neutralizaram: diante do seu rosto, diz Nietzsche, “figura, bela, a

pura objetividade”130. Nietzsche sugere que o historiador moderno teria se dissipado

123 Ibid., p. 400 (tr.br., p. 207). 124 Ibid., (tr.br., p. 208). 125 Ibid., p. 401 (tr.br., p. 209). 126 Ibid., p. 402 (tr.br., p. 211). 127 Ibid., p. 400 (tr.br., p. 208). O grifo é nosso. 128 NIETZSCHE 1874, p. 43. 129 Ibid., p. 32. 130 Ibid., p. 43.

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numa espécie de trabalho de sentinela. Eles confiaram a si mesmos a função de

“vigias da história”, mas de uma história (Geschichte), diz Nietzsche, na qual não

faltam histórias, mas que carece propriamente de acontecimento (Geschehnis).131 Ou,

então, como o “autêntico filólogo” descrito por Yorck, que anseia por “palpabilidade”

(Palpabilität)132, eles passaram a praticar a história por meio de “exercícios de

dissecação”, cavando e revolvendo os restos do passado em busca de provas. No

mesmo registro da forma e da figura, Nietzsche escreve que os homens da erudição

moderna, “compêndios encarnados”, são meras “formações culturais históricas

(historische Bildungsgebilde), unicamente cultura (ganz und gar Bildung), imagem

(Bild), forma sem conteúdo demonstrável (Form ohne nachweisbaren Inhalt), (...)

uniforme (Uniform).”133 Frente a esses homens neutros, diz Nietzsche, os homens

ocos da cultura, a coisa mais espantosa possível pode acontecer que eles estarão

prontos a examiná-la com a arrogância de sua suposta neutralidade. Mais que isso,

como Nietzsche sublinha, eles estarão sempre prontos a visualizar o seu autor a partir

de uma distância considerável.

O que Nietzsche revela, ao apontar para esse evento que ele diz ser

literalmente desastroso – a intromissão do “astro poderoso” da ciência alterando o

equilíbrio da constelação entre história e vida –, é que o homem moderno, que

absorve a história em doses descomunais e não vê mais limites para o saber histórico,

corre simplesmente o risco de desmoronar sob ele. No caso de Nietzsche, o remédio

capaz de evitar os efeitos dessa “indigestão” por excesso de história, e de evitar ao

mesmo tempo a despotencialização dos próprios fenômenos históricos, que tornam-se

pesos mortos quando completamente resolvidos pelo conhecimento, é a

transformação da história pela arte: “É somente quando a história suporta ser

transformada em obra de arte e, portanto, tornar-se pura forma artística”, que ela pode

chegar a conservar ou despertar instintos, e assim servir à vida. Se, para Nietzsche

como para a Lebensphilosophie de Yorck e Dilthey, é a vida a verdadeira força

transformadora do histórico, é verdade também que o apelo à arte não se dá da

mesma maneira nos dois casos. No entanto, é possível pensar que a reivindicação que

131 Ibid. 132 Cf. HEIDEGGER 1927, II, p. 400 (tr.br., p. 208). 133 Ibid., p. 45.

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Nietzsche faz da arte como contraponto à “objetividade eunuca”134 da cultura histórica

não nega essencialmente a crítica ao esteticismo histórico – ao historicismo

estetizante – cuja importância não passou despercebida a Heidegger em 1927. Nesse

como em outros casos, é possível que arte e estética refiram-se a domínios não

necessariamente equivalentes.

* * *

Após todo esse percurso, seria o momento de retomar as questões das quais

partimos e perguntar sobre o que se produz nesse encontro moderno entre filosofia e

história. O que vem à luz no “projeto” de abarcar o horizonte histórico, provendo-lhe

um conceito ou uma compreensão, circunscrevendo-lhe a realidade e fundamentando-

a num método. Que motivos parecem encaminhar o surgimento do moderno conceito

de história, que pressupostos conferem às suas investigações e relatos o seu ponto de

partida? Entre as teorias da história de cunho manifestamente especulativo nascidas

no século XVIII e os exercícios mais sóbrios de investigação que a partir de meados

do século XIX buscam alçar a história ao estatuto de ciência do espírito, há de fato

ruptura, tanto no fundo quanto na forma? Há realmente incompatibilidade entre a

perspectiva iluminista de uma história da razão e do progresso e as visões

“românticas” decididas a cultivar o caráter específico, as particularidades de cada

época histórica? No embate entre a idéia de um conhecimento da natureza humana a

partir de leis suficientemente bem fixadas e a idéia de um saber “compreensivo”, que

só compara as diferenças para melhor poder singularizá-las, o que essencialmente

vem à luz? Entre os vôos “metafísicos” da pura reflexão, que pressupõem a unidade

da história antes de investigar o material que ela apresenta, e a visão do historiador

tecnicamente treinado, interessado em produzir uma historiografia baseada em fontes

e fatos, há realmente dessimetria? Entre a vontade de viabilizar o acesso à história por

134 É Hannah Arendt quem retoma essa expressão, cunhada pelo historiador Gustav Droysen, ao comentar, em seu artigo “O conceito de história – antigo e moderno”, os impasses criados pela noção de objetividade pela moderna ciência histórica. Cf. ARENDT 1954, pp. 79-80.

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uma teoria do conhecimento e a de buscar na vida a autêntica e mais profunda

expressão do histórico, há verdadeira oposição?

Se não é nada certo que todas essas questões admitam uma resposta única e

satisfatória, uma coisa parece indiscutível: o surgimento da consciência histórica

moderna traz consigo, e já nomeada, a preocupação com a possibilidade de conhecer

a história, isto é, com o como e o quanto é possível saber acerca disso de que se

tomou ciência. O que não significa que o problema esteja resolvido, ao contrário, é aí

mesmo que ele começa. Uma vez que “isso” que vem à consciência do homem

moderno é “ele mesmo”, ele mesmo na sua existência num mundo, percebe-se porque

a questão de um conhecimento objetivo na história foi durante tanto tempo um

embaraço para os que tentaram solucioná-la. Como diz Dilthey, que tinha sem dúvida

uma consciência extrema das dificuldades envolvidas em sua tarefa, “o fato de que o

investigador é igualmente aquele que a faz é a condição primeira, aquilo que torna a

história científica possível.”135 Com efeito, se uma das grandes realizações da

moderna concepção da história foi alçar o homem ao duplo posto de ator e autor da

história, ela ao mesma tempo consolidou um tipo de referência ao mundo – “ôntico-

ocular”, diria o conde Yorck, “entitativo”, dirá Heidegger anos mais tarde –, no qual

o homem é sempre potencialmente um espectador de si mesmo. O homem é tanto o

que age na produção dos fatos e eventos da história, quanto o que a contempla

atencioso, apenas para aprender em retrospecto algo a respeito do seu rumo.

Movimentando-se nesse duplo registro – duplo modo de ver a história, duplo modo

de se ver a si mesmo –, o pensamento moderno acabou por decretar que se o homem

faz a história, então lhe é dada também a missão de conhecê-la. Os homens são,

sujeitos na e da história: eles dão forma, transformam a realidade, eles se voltam para

ela no intuito de conhecer as suas obras. Assim, mais do que a via para o seu

conhecimento, o gesto de conscientização que modernamente descobriu a história

franqueou o acesso a um domínio em que aquele que conhece reconhece-se ao

mesmo tempo como objeto do conhecimento, um domínio em que conhecer significa

sempre, também, auto-conhecer-se. É como se ao voltar-se para a história como o

âmbito das coisas representadas como sendo literalmente “as suas”, o olhar histórico

135 DILTHEY 1883, p. 122.

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se enredasse num jogo de espelhos em que aquele que contempla projeta a sua

própria imagem sobre o objeto contemplado, o que significa ao mesmo tempo: em

que aquele que produz a “obra”, a composição ou a cena, é sempre virtualmente o

mesmo que põe em obra o(s) motivo(s) que a anima(m). Não é de espantar que a era

moderna tenha levado o ponto de vista da Bildung, cuja polissemia, nesse caso, é

nada menos que reveladora, a exercer-se como palavra de ordem. É formando e se

formando, cultivando e se cultivando – pondo em obra, compondo, organizando,

educando –, que o homem moderno cumpre, como Rousseau foi um dos primeiros a

reconhecer, essa poiesis que lhe determina a própria natureza e que faz desta última,

na expressão de Philippe Lacoue-Labarthe, uma “tékhne originária”.136

O olhar que funda a história na sua acepção moderna desloca, quase que de

saída, a história para o registro figural. Ela é “esboço”, “quadro dos progressos”,

“palco de disputas”, “teatro de intenções” veladas ou manifestas. É de fato

impressionante o número de metáforas teatrais e/ou picturais que pontuam – ou que

suportam? – o discurso moderno sobre a história137. Como se a idéia de uma “grande

cena do mundo” fosse realmente a mais propícia para registrar o aparecimento do

homem moderno na sua dupla condição de ator e de autor. Pois é no momento em que

ele se descobre dentro dessa cena, como agente ou ator, que ele passa a ter que tomar

distância dela, para poder retraçá-la em seus contornos específicos. O deslocamento

ocular é uma exigência da história pensada nesses termos: trata-se de investigar, em

meio à ordem confusa dos acontecimentos, os “sentidos” que escapam aos

personagens nela envolvidos. A composição desse quadro, que reconfigurou a

imagem do homem sobre si mesmo substituindo-a talvez pela de uma “humanidade”,

136 Cf. LABARTHE 2002, p. 46. Nós retornaremos ainda a esse ponto e à sua formulação por Lacoue-Labarthe, pois ele toca, como se verá a seguir, o cerne da nossa questão. 137 Herder utiliza diversas metáforas desse tipo, tanto “teatrais” quanto “pictóricas”. Ele fala de “teatro da divindade” (Schauplatz der Gottheit), mas também de “belo quadro” (schönes Gemälde), das “obras do espírito e do gênio” (die Werke des Geistes und des Genies). Cf. HERDER 1774, pp. 190-191, 224-225 e 228-229. Ver também a esse respeito KANT 1784, pp. 33-34; CONDORCET 1793; FICHTE 1806, p. 22. HEGEL 1822/31, pp. 34, 35, e 38. Em Hegel pode-se encontrar todas essas metáforas reunidas. Num mesmo parágrafo, ele se refere ao famoso “espetáculo das paixões humanas” (dieses Schauspiel der Leidenschaften), ao “campo de batalha” (Schlachtbank), assim como aos termos quadro (Gemälde) e imagem (Bild). Logo à frente, ele se serve da imagem da história como um “tear”: “Assim, dois momentos intervêm no nosso objeto: um é a idéia, o outro as paixões humanas; um é o fio (der Zettel), o outro a trama do grande tapete (der Einschlag des großen Teppichs) da história universal estendida à nossa frente.” Ver ainda, a esse respeito, WHITE 1973: Meta-história: a imaginação histórica do século XIX, São Paulo, Edusp, 1992.

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foi o maior feito da moderna consciência histórica. O que a tradição do pensamento

histórico no Ocidente compõe, como as duas faces de uma moeda, é o caráter a um só

tempo figurável e factível do mundo histórico.

*

* *

Cerca de dez anos após o abandono do projeto de uma ontologia fundamental,

a possibilidade de fundar existencialmente a historiografia já não interessa a

Heidegger. No livro redigido entre os anos de 1936 e 1938, Beiträge zur Philosophie,

a sua perspectiva em relação à história como ciência (Historie) é bem outra. O que

lemos aí é que a história está “em toda parte determinada a partir do historiográfico

(überall vom Historischen her bestimmt)”, mesmo onde se pretende captar a realidade

histórica ela mesma, isto é, mesmo quando se supõe poder delimitá-la no seu

acontecer real, no seu “devir”. A reflexão sobre a história, em toda parte cindida entre

duas visões: uma “ontológica” – “a realidade histórica como realidade em devir (die

geschichtliche Wirklichkeit als Werde-Wirklichkeit)” – e outra, segundo a

“Erkenntnistheorie” – a história como passado verificável (die Geschichte als das

feststellbare Vergangene) – é inteiramente dependente daquilo que tornou possível

tanto “Ontologia” quanto “Teoria do conhecimento”.138 O domínio em que são

possíveis ontologia e ciência, conhecimento do real e realidade do conhecimento,

chama-se agora “metafísica”. O que Heidegger dirá então é que a história tal como

historicamente determinada, isto é, pensada na sua dupla determinação – Geschichte-

Historie –, é “inteiramente uma conseqüência da metafísica.”139

A articulação, ao longo da história do pensamento, de uma dicotomia entre um

ver e um fazer que jamais se des-solidarizam, de um pensar que tem a dualidade

como ponto de partida e a leva a se multiplicar sob numerosas rubricas – essência e

existência, geral e particular, necessário e contingente, “nomotético” e “idiográfico” –

, eis o que Heidegger, após os anos vinte, passa a chamar pelo nome de metafísica.

138 HEIDEGGER 1936/38, p. 492 (tr.esp., p. 388). 139 Ibid., p. 494 (tr.esp., p. 389).

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Seguindo o registro dessa partilha operando discretamente na história da tradição

ocidental, perguntando pelo que ela produz na (e como) forma de pensar o ser, o

homem, a verdade, os entes e o próprio pensamento, é que Heidegger vai explorar a

possibilidade de uma história que não se inscreva nem do âmbito do “real”, isto é, da

Geschichte como objeto da Historie, nem tampouco no do conhecimento, isto é, o da

Historie como visada sobre a Geschichte. Essa história, que ele chamará também de

“história do ser” (Seinsgeschichte), não será nem primeiramente a do homem (a

história que o homem faz) nem a dos fatos e eventos (a história que se dá a conhecer

através da pesquisa histórica) nem a dos filósofos (a história que procede em termos

de uma idéia, mas a que busca também a singularidade), e nem mesmo a do Dasein (a

história pensada como possível, isto é, como passível de um projeto). O que

tentaremos ver no que se segue é onde e de que modo propriamente Heidegger

pretende encontrar essa história. Como afinal é que essa história “se faz” e que

espécie de olhar é capaz de se abrir para o acontecer que lhe é próprio?

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22..

AA ffoorrmmaa ddaa mmeettaaffííssiiccaa ee aa ttrraavveessssiiaa ddaa hhiissttóórriiaa140

“No começo de sua história, o ser se ilumina enquanto eclosão (physis) e desocultamento (alétheia). Daí ele recebe a marca da presença e da consistência (das Gepräge von Anwesenheit und Beständigkeit) no sentido do permanecer (ousia). Assim começa a metafísica propriamente dita.”141 “A palavra [metafísica] e seu surgimento são muito estranhos (merkwürdig), mais estranha ainda é sua história. E, no entanto, é da potência e da predominância desse termo e de sua história que depende, numa medida essencial, a formação (Gestaltung) do mundo espiritual ocidental e, desse modo, do mundo em geral.”142

Numa carta endereçada a Ernst Jünger em 1955, e retomada um ano depois sob

o título Contribuição à questão do ser (Zur Seinsfrage)143, Heidegger se propõe discutir

a perspectiva de uma travessia “para além da linha”144 do niilismo, tema trabalhado por

140 O título desse capítulo, assim como o acento nas noções de forma e transformação que se seguirão, acompanham de perto a reflexão de Catherine Malabou em seu livro Le Change Heidegger: du phantastique en philosophie, Paris, Éditions Léo Scheer, 2004. Retraçando em diversos textos heideggerianos os meandros do que ela chama de ‘triade du change’ – os termos Wandel, Wandelung e Verwandlung, traduzidos respectivamente por changement, transformation e métamorphose –, Malabou propõe uma interpretação do motivo do “change” na obra de Heidegger, isto é, das mudanças, das transformações e das metamorfoses do ser, como “o agente secreto da filosofia heideggeriana, que sustenta e guia clandestinamente” o seu desenvolvimento desde Ser e Tempo. Nós nos ocuparemos mais à frente das principais questões levantadas por essa interpretação. 141 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 403 (tr.fr., p. 324). 142 Ibid., I, p. 450 (tr.fr., p. 348). 143 HEIDEGGER 1956, tr.fr. de Gérard Granel, “Contribution à la question de l’être”, in Questions I et II, Paris, Gallimard, 1996. 144 Über die Linie é o título do texto escrito por Jünger em 1950, e dedicado a Heidegger por ocasião de seu sexagésimo aniversário. A resposta de Heidegger vem alguns anos depois, em 1955, em forma de homenagem e na mesma ocasião, a comemoração dos sessenta anos de Jünger. Os dois escritos terão exatamente o mesmo título. É no momento da republicação do artigo em, 1956, que Heidegger modifica o título inicialmente atribuído, o qual ele dizia ter repetido “por sua própria conta”. O texto se chamará agora Sobre a questão do ser (Zur Seinsfrage). Para explicar essa mudança, cujo intuito é o de pôr em suspenso a referência anterior à linha, Heidegger escreve: “O novo título gostaria de indicar

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Jünger num artigo do fim da década de quarenta. Trata-se de refletir sobre as questões

levantadas pelo autor de Passagem da linha, de insistir num questionamento sobre o

lugar ou sítio próprio a essa linha cujo traçado revelaria, segundo Jünger, o niilismo

europeu realizado em sua dimensão planetária. O “balanço da situação”145 anunciado

então por Jünger, cujos signos deveriam indicar se e em que medida o homem está

pronto a cruzar a linha crítica, a zona do niilismo consumado, é analisado por

Heidegger através de alguns pontos desenvolvidos por Jünger em 1932, em seu livro O

Trabalhador146. Sobre essa obra Heidegger havia já se debruçado durante o inverno de

1939-1940 junto a um círculo de professores da universidade de Friburg, numa

tentativa de “explicação” que, como ele faz questão de lembrar em 1955, foi sujeita ao

controle da censura nacional-socialista, sendo finalmente suspendida. Heidegger dirá

agora a Jünger que o que há de verdadeiramente decisivo em O Trabalhador é a

linguagem da qual ele se serve, uma linguagem aparentemente tornada habitual, “hoje

vista e falada por todos”147, mas que a descrição realizada pela obra teria trazido aos

olhos e à fala pela primeira vez de modo inteiramente inusual. “A linguagem de O

Trabalhador revela, ao que me parece, seus traços principais sobretudo no subtítulo

(...): ‘Dominação e forma’ (“Herrschaft und Gestalt”).”148 A ação da obra consiste “em

que ela torna visível o ‘caráter total de trabalho’ de todo real a partir da figura do

trabalhador.”149 Quanto à força descritiva do texto, a ação intrínseca que ele realiza, que

é a de fazer ver a totalidade do real através da figura do trabalhador, o próprio Jünger,

numa nota no fim do livro à qual Heidegger alude de maneira especial, ressalta: a tarefa

do leitor é a de ver através da descrição conceitual produzida pela obra “como quem vê

através de um sistema de ótica” (wie durch ein optisches System hindurchzusehen)150. É

a partir dessas indicações sobre o caráter eminentemente visual da descrição de Jünger

– caráter esse que, como Heidegger sugere a propósito do título Über die Linie, se deixa

que a meditação sobre a essência do niilismo tem sua origem num esforço para situar o ser enquanto ser”. Cf. a esse respeito a nota preliminar ao texto, inserida por Heidegger em 1956, em HEIDEGGER 1956, p. 385 (tr.fr., p. 197). 145 Cf. Ibid. 146 JÛNGER 1932: Der Arbeiter, Stuttgart, Klett-Cotta, 1982. 147 Cf. HEIDEGGER 1956, p. 391 (tr.fr., p. 206). 148 Ibid., p. 394 (tr.fr., p. 211). 149 Ibid., p. 389 (tr.fr., p. 204). 150 Ibid., p. 401 (tr.fr., p. 220).

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evidenciar no próprio apego à “imagem da linha” – que o texto trará à tona a

proveniência e o alcance historiais de algumas de suas palavras fundamentais.

Na articulação “ótica” dos conceitos de “forma” e “dominação” anunciada pelo

autor de O Trabalhador, Heidegger observará a predominância de uma economia

imagética cujos termos sustentam, secretamente, um âmbito desde há muito tempo

consolidado pela linguagem da tradição filosófica. É no registro da “forma” ou da

“figura” (Gestalt) que estaria inscrito o plano essencial da reflexão de Jünger. Forma,

figura, domínio, dominação – eis os termos com que Jünger reedita um encontro

plurisecular que atravessa a história do pensamento no Ocidente: o do conceito e da

imagem, o da essência e da forma.

Heidegger declara a Jünger: “A forma permanece para o senhor o que só é

accessível num ‘ver’”151. Trata-se desse ver que entre os gregos se diz idein e o qual, de

acordo com Platão, significa “um olhar que considera, não o mutável da percepção

sensível, mas o imutável, o ser, a idéa”152. Por outro lado, e assim como Platão o faz “às

vezes” (bisweilen): “O senhor também pensa a relação da forma àquilo que ela dá

forma como a relação do carimbo à impressão”153. Ao pensar o que traz o ente à

presença, o que o pro-duz (das Her-vor-bringende), em termos de tipo ou marca (tupos,

das Prägende), Jünger teria concebido a forma como traço distintivo, como espécie de

selo ou estampa, como o timbre que imprime a algo um caractere. Essa impressão

porém, Heidegger salienta, é entendida de maneira moderna. É como o fato de

emprestar sentido àquilo que não tem um, como fixação e representação pela perceptio,

pela percepção humana, dos contornos de uma coisa específica, que a forma é

concebida por Jünger precisamente em termos de “concepção”. Nos termos de Jünger,

que Heidegger sublinha bem, a forma é “fonte da doação de sentido” (“Quelle der

Sinngebung”) 154. E uma vez que uma tal fonte se identifica com a “forma do

trabalhador” – é ela justamente essa “potência de antemão presente que imprime a sua

marca em todas as coisas”155 –, o que finalmente aparece através do texto de Jünger é a

forma enquanto “forma do ser humano” (die Gestalt des Menschenwesens). Não como

151 Ibid., p. 395 (tr.fr., p. 211). 152 Ibid. 153 Ibid. (tr.fr., p. 212) 154 Ibid. 155 Ibid., p. 396 (tr.fr., p. 212).

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a egoidade de um homem singular, nem como uma “subjetidade subjetivista do ser

humano” (subjektivistische Subjektität des Menschenwesens)156, diz Heidegger, mas

como a “presença de um tipo humano” (die Praesenz eines Menschenschlages Typus).

O trabalhador é a figura do homem que, no mundo contemporâneo, exerce a sua

potência na realidade total do trabalho.

Heidegger diz a Jünger que ele teria dado à forma “um estatuto sagrado” (einen

kultischen Rang)157. E que as referências historiais à tradição que ele próprio estaria

fazendo não têm por intenção promover um balanço histórico da obra de Jünger, mas

antes mostrar que “ela permanece uma obra cuja pátria é a metafísica”158. O que há de

propriamente meta-físico neste “vasto terreno” (weite Vorfeld)159 ao qual permanece

ligada a linguagem de Jünger é o horizonte que, através da noção de forma, ela retoma

eacaba por reiterar. Esse horizonte é o mesmo que, desde Platão, se move numa

diferença entre o ser e o ente, e que vê nessa diferença a distância entre o que muda e o

que permanece. Vista a partir do ente e tendo sempre em vista o ser, essa diferença

pode ser chamada também de “transcendência”160. Sua estrutura determinante, o trans-

ou o meta-físico que ela traz consigo, diz: “todo ente – o mutante e mudado, móvel e

mobilizado – é representado a partir de um ‘ser calmo’, e isto também lá onde o ‘ser’ (a

realidade do real), como em Hegel e Nietzsche, é pensado como puro devir e absoluta

mobilidade”161. Se a obra de Jünger não abandona o horizonte da transcendência, o

vasto país que a precede, a pátria metafísica, é porque ela se move nesse mesmo

horizonte de maneira decisiva, fazendo ver o que nele está fundamentalmente em jogo,

a saber: o “copertencimento da forma, da idéa e do ser” (die Zusammengehörigkeit von

Gestalt, idéa und Sein)162. Este copertencimento entre forma, idéa e ser constitui, confia

Heidegger a Jünger, a verdadeira “potência metafísica”.163

156 Ibid. (tr.fr., p. 213). 157 HEIDEGGER 1956, p. 396 (tr.fr., p. 213). 158 Ibid. Os grifos são do próprio Heidegger. 159 Ibid., p. 394 (tr.fr., p. 210). Com a expressão “das weite Vorfeld”, Heidegger caracteriza essa região “anterior” à linha cujo ultrapassamento significa, segundo Jünger, a possibilidade de um abandono do niilismo. É em torno dessa mesma questão que toda a discussão vai se mover. 160 Cf. Ibid., p. 395 (tr.fr., p. 212). 161 Ibid. 162 Ibid. 163 Cf. Ibid. A expressão “metaphysische Macht” é localizada por Heidegger na primeira edição de 1932 de O Trabalhador (páginas 113, 124, 146).

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A tentativa de Jünger de cruzar a linha teria permanecido condenada a

consolidar a potência de formação que atravessa a história do Ocidente. A sua própria

representação procede “de uma hegemonia”, nota Heidegger, que se exprime ao longo

de toda a metafísica ocidental através dos conceitos de forma, do valor, da

transcendência.164 A questão do copertencimento, de uma solidariedade essencial entre

ser e forma – entre a forma de pensar o ser que atravessa a história da metafísica e a

metafísica ela mesma como “potência formal”, como tendência a formar e enformar – é

o que deve nos ocupar neste capítulo. Como se inicia essa travessia e no que consiste

essa Gestaltung, esse dar forma e essa formação? De onde a metafísica retira essa

vocação para a “marca”, isto é, para o formar e o configurar, que a situa milenarmente

no registro da imagem e da figura, do modelo e do tipo? Para tentar começar a

responder a essas questões, vejamos o que Heidegger tem a dizer no parágrafo 34 dos

Beiträge zur Philosophie.

Pergunta-se pelo ente como ente e segundo este ponto de partida (Ansetzung) e direção (Richtung), portanto, a respeito do ser do ente, então aquele que pergunta permanece no domínio da questão que conduz o começo da filosofia ocidental e sua história até o seu fim com Nietzsche. Por isso nós chamamos esta pergunta pelo ser (do ente) a questão condutora (Leitfrage). Sua forma mais geral (ihre allgemeinste Form) recebeu de Aristóteles a sua marca (Prägung): ti tò ón, o que é o ente, isto é, segundo ele, o que é a ousia como entidade do ente? Ser significa aqui entidade (Sein meint hier Seiendheit). Por aí se exprime ao mesmo tempo que, apesar da sua resistência ao caráter genérico (daß trotz Ablehnung des Gattungscharakters), o ser (como entidade) é sempre e somente visado como koinón, o comum (das Gemeinsame) e assim comum para cada ente.165

Trinta anos se passaram desde a publicação de Ser e tempo. Mais ou menos

vinte desde que Heidegger dedicou o seminário, em Friburg, ao recém-publicado O

Trabalhador. A essa altura já não é mais o “problema” da história – a história como

objeto de uma tematização explícita – que ocupa o questionamento de Heidegger. De

conceito fundamental da analítica existencial de Ser e tempo – aquele capaz de

mostrar, “através de uma construção fenomenológica”166, a elaboração mais concreta

da temporalidade como sentido de toda existência humana –, a noção de historicidade

164 Cf. Ibid., p. 421 (tr.fr., p. 246). 165 HEIDEGGER 1936/38, p. 75 (tr.esp., p. 75). 166 Cf. HEIDEGGER 1927, II, p. 375 (tr.br., p. 180).

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cede lugar aos poucos à afirmação de que a história deve ser pensada como história

do ser (Seinsgeschichte). Não que a noção simplesmente desapareça: ela se torna

menos visível ou, precisamente, menos temática.167 Como indicamos anteriormente, a

relativa distância tomada por Heidegger do questionamento ontológico-existencial de

Ser e tempo o conduz a se perguntar pela possibilidade de uma história já não mais

determinada do ponto de vista de algo que o próprio homem faz, nem tampouco como

o que a historiografia recolhe e investiga, mas, antes, como o que se forma nessa

articulação entre um ver e um fazer que, segundo ele, mobilizam toda a metafísica.

Isto significa agora que é preciso interrogar a história da metafísica, não como aquilo

que o homem simplesmente possuiria consigo, mas como algo que, por assim dizer,

possui o próprio homem. Encontramos essa idéia expressa num escrito dos anos

trinta, onde se lê: “A historicidade originária a partir do Ser é aquilo que nos

sobrevém” (Die anfängliche Geschichtlichkeit aus dem Seyn ist das, was auf usn zu-

kommt).168 É no sentido de algo que literalmente “vem por sobre”, daquilo cujo

acontecimento nos atinge, nos surpreende e nos transforma, que essa história, escapa

seja à dimensão do antecipável e previsível, seja à dimensão dos fatos e dos feitos,

isto é, do factível.169

Devemos a partir daqui tratar de duas questões. A primeira é saber de que

modo Heidegger se aproxima dessa história – a do ser, a da metafísica. A segunda é

167 Hans Ruin, autor de um livro sobre o tema da historicidade na obra de Heidegger, lembra que com poucas exceções significantes, entre as quais a conferência de 1966, O Fim da filosofia e a tarefa do pensamento, a noção de historicidade não aparece mais nos escritos heideggerianos do pós-guerra para designar um termo filosófico. (Cf. RUIN 1994, pp. 4-5). De fato, se a noção de Geschichtlichkeit aparece ainda em textos posteriores à ontologia fundamental, é freqüentemente em alusão a Ser e tempo. Na série de notas escritas entre 1938 e 1939, intitulada A história do ser (Die Geschichte des Seyns), Heidegger diz se tratar de uma determinação que deve ser reconduzida a um questionamento mais essencial. Nesse mesmo texto, ele a coloca entre aspas duas vezes. Cf. HEIDEGGER 1936/38, p. 491 e 1938/39, pp. 20, 94, 95, 219, 220. 168 HEIDEGGER 1938/39, p. 20. 169 A noção de “evento” (événement) pensada nesses termos vem sendo um tema privilegiado por autores contemporâneos ligados à fenomenologia na França. Fortemente inspirados pelo Heidegger de Ser e tempo, esses trabalhos nem sempre fornecem uma reflexão mais localizada acerca da questão da história, com a exceção, talvez, de Jacques Derrida (Cf. DERRIDA 1999: Dire l’événement, est-il-possible?, Paris, L’Harmattan). Uma referência importante é o trabalho de Claude Romano, que se orienta numa “interface” entre fenomenologia, filosofia existencial e psiquiatria (Cf. ROMANO 2002: “Entre le vide et l’événement pur : la phénoménologie’” in Études phénoménologiques, n. 36, pp. 5-37). Também Françoise Dastur trabalhou a questão, ligando-a ao tema da temporalidade em Husserl e Heidegger (Cf. DASTUR 1997: “Pour une phénoménologie de l’événement: l’attente et la surprise”, in Études phénoménologiques, n. 25, pp. 59-75).

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tentar entender por que razões o modo de pensar determinado pelo “ótico” ou

“ocular”, o modo de determinar as coisas explorando os recursos da forma e da

figura, continua ainda a intrigá-lo.

Do quê e do como

O esforço de delimitação do ente na sua totalidade – eis o exercício que,

segundo Heidegger, consuma os vinte e cinco séculos que se seguem à invenção da

filosofia no Ocidente. Toda a história da filosofia pode ser vista como uma série de

tentativas de responder a uma mesma questão: o que e como são todas essas diferentes

coisas que, apesar de diferentes entre si, têm entre si “algo” que as identifica,

precisamente o fato de que todas elas de algum modo são. Se a pergunta leva em conta

as possíveis diferenças, aquilo que distingue os entes em suas manifestações

particulares, a resposta por sua vez dirá respeito ao que há de genérico, ao que torna

possível, a cada um e a todos eles, ser em geral, de um modo ou de outro. Como

Heidegger tentará mostrar com uma obstinação surpreendente em boa parte de sua obra,

a metafísica é a instituição desse gesto de pensamento que consiste, grosso modo, em

interrogar o ser tendo em vista o ente. Se o ser, concebido como o que há de comum a

todos os entes, é o mais geral ou genérico, os entes são, por sua vez, a cada vez

“particulares”, isto é, dotados de tais ou tais especificidades ou singularidades. Mas as

especificidades dos entes “de fato”, das coisas “existentes” em suas diferenças e

particularidades, não impedirão a metafísica de eleger como modo de ser privilegiado o

modo da permanência e da consistência, o da estabilidade e da constância. A tese

heideggeriana, tornada célebre a essa altura, é que a filosofia, do começo ao fim de sua

história, sempre que buscou o ser, encontrou apenas o(s) ente(s). Isso porque, lá mesmo

onde ela reconheceu a necessidade de ir além dos entes para chegar ao ser, ela não

encontrou senão a entidade, a Seiendheit, termo que Heidegger usa para exprimir essa

forma de “absorção” dos múltiplos modos possíveis de ser das coisas que são na forma

fundamental do conceito. Assim fazendo, o pensamento representou o ser substantiva

ou “onticamente” – como o que é comum a tudo o que é, a sua propriedade comum, o

génos e o koinón, a ousia, a quididade. Uma tal determinação conhecerá épocas e

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constelações as mais diversas: seja como idéia, seja como energeia, como substância,

como Deus, como sujeito, como objetividade ou como vontade, a filosofia dará nomes

ao ser como a uma garantia de estabilidade sem a qual nenhum ente alcançaria a sua

parte de permanência no mundo. A metafísica é, então, segundo Heidegger, essa

espécie de volta operada pela filosofia, destinada a conduzi-la de um ponto a outro de

seu desdobramento, em que o pensamento volta-se justamente para o fato de que algo

além das próprias coisas deve existir como seu fundamento, fundamento esse que, no

entanto, jamais deixa de ser determinado como algo além de uma “outra coisa”.

Por outro lado, sem jamais se furtar à pergunta por aquilo que permite que as

coisas sejam, e pour cause, a metafísica vai oferecer-lhe por assim dizer respostas

estratégicas, concebendo o acesso ao real em termos geralmente prescritivos. Assim, à

questão sobre o sentido e a possibilidade de que as coisas afinal sejam quando

eventualmente poderiam não ser, corresponderá a do caminho necessário para explicá-

la: que isto se mostre explícita e literalmente em termos pedagógicos (como é o caso da

paidéia platônica), ou do ponto de vista de um instrumental geral, de um organon para

a expressão adequada do conhecimento, quer se trate, como em Descartes, de construir

um método capaz de fundamentar o conhecimento sobre bases indubitáveis ou, como

em Hegel, de arregimentar um sistema completo capaz de estabelecer, pelo e para o

próprio conhecer, a sua consciência absoluta em relação a si mesmo, a metafísica

define, como contrapartida necessária à fundamentação do ente na totalidade, a via a ser

tomada para essa fundamentação. Esse duplo registro que atravessa a história da

filosofia – o de privilegiar a cada vez um ente para explicar a possibilidade de ser de

todos os outros, e o de circunscrever, ao mesmo tempo, um meio de acesso à verdade

que surge do acordo entre o pensamento e a coisa pensada – levou Heidegger a

sustentar duas posições fundamentais na sua interpretação da metafísica como história.

Uma é a de que, nessa história, o ser teria sido confundido com o ente, e que a

experiência que aí se inaugura e repercute é em certa medida a de uma indistinção entre

ambos. A outra é a de que a metafísica é a história de um se referir ou se relacionar ao

ser em que este se revela, sempre e de antemão, como o correlato possível de um ato de

conhecimento. Quer o conhecer seja pensado como simples ver, como o idein da idéia,

ou ligado à noção de uma analogia entre a inteligência criada e a criadora, ou mesmo

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quando se trata de interditar o conhecimento no que diz respeito ao “ser” para limitar o

seu alcance apenas aos fenômenos, a filosofia se desdobrará no alinhamento dessa

dupla prerrogativa: dizer o ser é conhecer o princípio que possibilita a sua justa

apreensão. E é observando a imbricação entre uma tal forma de perceber o ser e a forma

de definir a verdade que nasce na sua exata contrapartida, que Heidegger surpreende,

no começo da metafísica, isto que segundo ele constituirá, “na história dessa parte da

humanidade marcada pela insígnia do ocidental”, o acontecimento propriamente

decisivo.170 Vejamos o que ele pretende dizer com isso.

A paidéia platônica e o pôr em forma da verdade

É num curso ministrado em Friburg no inverno de 1931-1932 que vemos

exposta, pela primeira vez de maneira sistemática, a interpretação feita por Heidegger

desse acontecimento inaugural e decisivo. O curso propõe uma leitura da filosofia de

Platão a partir de algumas passagens do Teeteto, assim como a tradução seguida de um

longo comentário da alegoria da caverna, livro VII da República.171 Como lembra Alain

Boutot, no prefácio à tradução francesa da obra – ela foi publicada em 1988 como o

tomo 34 da edição completa das obras de Heidegger –, “o curso de 1931/1932 foi

pronunciado numa época limítrofe do caminho de pensamento de Heidegger – em que

se dá isso que o próprio Heidegger designa como a virada (Kehre)”172. Ele inaugura

uma nova abordagem do pensamento de Platão e põe em obra os princípios do que

constituirá, nos anos que se seguem, “a interpretação heideggeriana do platonismo, e

correlativamente da metafísica”173. Uma versão condensada desse mesmo curso será

publicada dez anos mais tarde sob o título A doutrina de Platão sobre a verdade

(Platons Lehre von der Wahrheit)174. Embora o caminho tomado para abordar o

170 Cf. HEIDEGGER 1940, p. 237 (tr.fr., p. 467). 171 Cf. HEIDEGGER 1931/32: Vom Wesen der Wahrheit – zu Platons Höhlengleichnis und Theätet, GA Bd. 34, 1988 (tr.fr. de Alain Boutot, De l'Essence de la vérité – Approche de l'allégorie de la caverne et du Théétète de Platon, Paris, Gallimard, 2001). 172 Ibid., prefácio do tradutor, p. 8. 173 Ibid. 174 O texto foi publicado pela primeira vez em 1942 na revista Geistige Überlieferung. Em 1947 uma reedição do artigo virá a público juntamente com o texto em resposta à carta de Jean Beauffret, que ficará conhecido como a “Carta sobre o ‘humanismo’”. Ambos foram inseridos nos Wegmarken,

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problema da verdade não seja num e noutro escritos exatamente o mesmo, pode-se

dizer que a tonalidade que os conduz a ambos em grande parte o é. O que há de comum

é, sem dúvida, a perspectiva segundo a qual Heidegger procura situar a questão da

verdade em termos essencialmente historiais. A virada ou volta que intervêm no

caminho de Heidegger é também uma volta definitiva a Platão: o que ela anuncia de

maneira definitiva é essa identificação, que Heidegger não deixará mais de sustentar,

entre a história da metafísica e o destino do platonismo.

Com efeito, é na interpretação minuciosa da alegoria apresentada por Sócrates a

Glauco, nesse contexto em que vem à luz de maneira propriamente espetacular a teoria

das idéias platônica, que Heidegger vê se prepararem algumas das transformações

capitais que definirão as bases do pensamento ocidental. A alegoria da caverna, pelo

conjunto de imagens que ela apresenta, é também um “símbolo” (Sinn-Bild), símbolo,

diz Heidegger, no sentido justamente de “um espetáculo, de algo que se oferece à visão,

de tal forma que o que aí é visto acena”175, faz sinal para o que se trata de ver. O

espetáculo, e Heidegger insiste neste ponto, não pretende valer por si mesmo: apenas

ele acena176. Aquilo para que ele acena é uma transição e essa transição possui um

itinerário preciso, que merece ser acompanhado de perto, que não é um simples fato

isolado, mas, como o próprio termo indica, envolve um “acontecer” (ein Geschehen).

Heidegger sublinha: “trata-se mesmo de nada menos que o acontecer no seio do qual o

começo da história ocidental da filosofia toma o seu curso”177. O espetáculo apresentado

na alegoria da caverna aponta para uma transição que se opera no âmbito do ser e da

verdade.

Heidegger lembra que um traço característico da alegoria da caverna é o fato de

que ela se deixe descontextualizar, isto é, de que ela possa ser extraída do contexto de

seu surgimento no diálogo sem que isso necessariamente enfraqueça ou altere o seu

conteúdo próprio, a sua significação. O necessário é “se deixar tocar pela força com que

Platão dá forma a seu pensamento, o que em nenhum caso é secundário ou uma mera

volume 9 da edição completa das obras de Heidegger. Nós seguiremos aqui o texto da edição da Gesamtausgabe, assim como a tradução francesa feita por André Préau, publicada em Questions I et II, Paris, Gallimard, 1996. 175 HEIDEGGER 1931/32, p. 18 (tr.fr., p. 34). 176 Ibid. 177 Ibid., p. 17 (tr.fr., p. 34).

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superfluidade estética”178. A alegoria presente na Politéia de Platão (livro VII, 514 a –

517 a) deve ser lida como um signo acenando para um evento fundamental: a transição

que transforma, em seu curso, a noção de verdade no Ocidente. No movimento que põe

em marcha essa transformação e essa transição, movimento que se decide nas voltas

descritas e experimentadas pelo próprio texto platônico, Heidegger pontuará uma série

de passagens fundamentais. O mito da caverna “conta uma história e não descreve

apenas lugares e condições do homem na caverna e fora dela. Na verdade, os processos

aí relatados são passagens (Die berichteten Vorgänge aber sind Übergänge)”179. Que

passagens tem em vista Platão ao contar sua história? E como, por sua vez, Heidegger

as interpreta, chegando a ver nelas, “em trânsito”, o acontecer de algo decisivo para

toda a história do Ocidente? É o que tentaremos verificar recuperando as linhas gerais

do que Heidegger nomeou a doutrina de Platão sobre a verdade.

De acordo com o relato platônico, aquele capaz de realizar a passagem, não

somente das sombras no interior da caverna à luz do dia, mas também da claridade

exterior de volta às sombras, terá experimentado nada menos que uma reviravolta

completa da alma (periagogé holes tes psyches), realizando assim a essência mais

íntima da paidéia – a educação ou formação do filósofo. De acordo com Heidegger,

esse mesmo movimento formulado por Platão em termos de uma ascese pedagógica se

apóia em algo que permanece não formulado e que concerne, antes, à essência da

verdade. As passagens que se precisam no seio da doutrina platônica das idéias,

precisando desde então os contornos da própria metafísica, operam no fundo um

“deslocamento” (Versetzung). E se o significado desse deslocamento ultrapassa, aos

olhos de Heidegger, aquilo que aprendemos a ver como sendo a sua dimensão meta-

física – a divisão da realidade em um plano sensível e outro supra-sensível – é porque

nele se constitui algo cujo alcance historial, ainda que imediatamente menos manifesto,

não será por isso menos pleno de consequências. Heidegger explica que o termo

Bildung é aquele que melhor corresponde ao grego paidéia :

Bildung quer dizer duas coisas. Em primeiro lugar, um ato formador (ein Bilden) que imprime à coisa uma marca (Prägung) segundo a qual ela se desenvolve. Mas se esse

178 Ibid., p. 19 (tr.fr., p. 36). Grifos nossos. 179 Ibid., pp. 215-16 (tr.fr., p. 439).

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“formar” imprime (prägt), é porque, ao mesmo tempo, ele conforma a coisa a uma visada determinante (an einen maßgebenden Anblick) que, por essa razão, é chamada de modelo (Vorbild). A “formação” (Bildung) é a uma só vez impressão recebida de um caractere e orientação recebida de um modelo (Geleit durch ein Bild).180

A essência metafísica da verdade se decide no curso de um processo de

formação que literalmente a transforma. Na paidéia platônica, descrita como o árduo

percurso através do qual se forma ou se transforma a alma do filósofo, o que toma

forma literalmente, mas de maneira implícita, é o modo de pensar o ser e a verdade que

deverão conduzir, ao longo de quase dois mil e quinhentos anos, a história do

pensamento. O que precisamente transita nesse começo é uma certa forma do ser e da

verdade que assediará, de Platão a Nietzsche, toda a tradição ocidental. A história da

metafísica, nós veremos a seguir, é a história de um longo percurso de “reformas” ou

“refigurações”, de redirecionamentos ou reorientações que rearticulam, sem

fundamentalmente a deformar, a insígnia platônica do ser, a sua primeira impressão.

Transitando entre a marca (Prägung) e o modelo (Vorbild), da idéa à ousia e da

substância ao sujeito, a metafísica se põe em marcha para explorar o fundo de seus

recursos formais. Até eventualmente esgotá-lo. É o que Heidegger, ao ler a alegoria de

Platão, nos relata.

A metafísica entra em cena

Na profusão de imagens produzidas pela alegoria da caverna, nessa figuração

perfeita construída por Platão para traduzir em “linguagem sensível” os diferentes

estágios da Bildung que transforma o homem comum, prisioneiro das sombras, em

filósofo, o que se vê são estágios de uma luminosidade crescente que vai do fogo ao sol

e vice-versa, dos reflexos que se movem na penumbra da caverna ao brilho fulgurante

do dia, aos quais correspondem a cada vez um grau menor ou maior de nitidez no que

diz respeito ao aspecto (eidos) das coisas. “Nenhuma aparência sem luz” – é a frase

com que Heidegger costuma resumir a exigência fundamental da metafísica platônica.

E a fonte de toda luz, diz Platão, é a idéia. Ora, se aparecer é mostrar-se visível entre as

180 Ibid., p. 217 (tr.fr., p. 441, modificada).

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coisas visíveis, é apresentar-se como presente entre as coisas presentes, como garantir

que um ente permaneça numa tal presença senão vinculando-o, isto é, tornando-o

dependente da luz a ele conferida pela idéia? A idéia que confere a cada ente o seu

quinhão de visibilidade no mundo, é a mesma que lhes permite a cada vez adquirir um

grau específico de estabilidade ou permanência. Heidegger dirá que “é a luminosidade

da idéia que realiza a presença, isto é, que a cada vez torna presente o que é um ente”181,

tornando-o visível (presente) em seu ser. As idéias são em cada ente aquilo que é.182

Sem a idéia, sem o brilho que ela lhes confere, as coisas não são mais do que meras

silhuetas moventes, imagens instáveis, inconstantes. Como saber o que algo é se seus

contornos são sempre imprecisos, cambiantes? Assim, o que a linguagem figurada de

Platão põe literalmente em cena é o surgimento da idéia como instância unicamente

capaz de prover ao ente o seu aspecto próprio, isto é, aquele que não muda nem se

dissimula, aquele que dura, que não perece. As idéias tornam o ente apto a aparecer

como ele realmente é, na visibilidade que lhe é própria, o que quer dizer também: no

que ele tem de constante183. Sustentando cada ente em seu ser, a idéia o revela em sua

essência, e assim o “salva”184. O que a linguagem figurada de Platão põe em cena é a

imagem da idéia como essência do ente, em que “essência” passa a valer como o que

torna algo apto ou possível, como causa ou condição daquilo que é. A idéia, a essência

determinada como entidade (ousía), é o que passa a valer pelo ser. Imobilizada assim

desde o começo, “acalmada” na fonte, como sugeria Heidegger na carta a Jünger, a

essência poderá alojar-se na figura do ser. E uma vez assim instalada, ela tende a se

tornar a constante propriamente inabalável da metafísica.

Assim se organiza a economia da “confusão” entre o ser e a entidade, entre Sein

e Seiendheit, à qual a leitura heideggeriana da história da metafísica não cessa de

retornar. Na Introdução de 1949 a O que é metafísica, lemos:

“O enunciado da metafísica, do seu começo ao seu acabamento, move-se estranhamente numa confusão permanente entre o ser e o ente (in einer

181 Ibid., p. 225 (tr.fr., p. 452). 182 Ibid., p. 228 (tr.fr., p. 455): “Die Ideen sind das Seiende jedes Seienden”. 183 Cf. Ibid., p. 228 (tr.fr., p. 455). 184 Ibid., p. 229 (tr.fr., p. 457): “Durch diese Gewährung ist das Seiende in das Sein einbehalten und ‘gerette’.”

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durchgängigen Verwechslung von Seiendem und Sein). Essa confusão, certamente é preciso pensá-la como acontecimento (Ereignis), não como falta.”185

É como se a historialidade intrínseca a um tal acontecer, a “confusão” votada a

tornar-se tradição, preparasse o Ocidente para um curioso périplo. Esse périplo é o das

múltiplas transformações e trajetos do ser, o das suas diferentes figuras, mas como

figuras de uma constante essencial: a essência como imutabilidade.

Assim as etapas da alegoria, os movimentos de ascensão e descida nela

descritos, serão observados por Heidegger como momentos constitutivos de uma

passagem, de um deslocamento, de uma mudança decisivos. Uma “mudança da

essência da verdade” (eine Wandel des Wesens der Warheit)186 toma forma, acontece.

Esta mudança, por sua vez, se explicitará em termos de um deslocamento

(Versetzung)187 da noção de verdade como não-velamento (Unverborgenheit) – cujo

sentido estaria presente na palavra grega aletheia – à noção da verdade entendida

como adequação ou justeza (Richtigkeit) entre a idéa e o ideín, entre o ver e o que por

ele é visto. A paidéia platônica se revela a Heidegger sob uma dupla perspectiva,

como as duas faces indissociáveis de um mesmo acontecimento. Operando-se no

cerne da verdade, configurando e situando a dimensão própria e os limites a partir daí

designados para o verdadeiro, um tal acontecimento passa ao mesmo tempo a exigir

do homem a adoção de uma “atitude decisiva” (maβgebende Haltung), de um

“comportamento firme e bem definido” (ein festes Verhalten), de um esforço

(Streben) para se adaptar ao novo âmbito constituído pelas idéias. Ao cabo do

processo, o resultado é aquele descrito por Platão como uma reviravolta completa na

alma, que Heidegger traduz no sentido de uma mudança de direção que concerne à

própria essência humana, que se opera no fundo do seu ser”188. Com efeito, passar da

185 Cf. HEIDEGGER 1949, p. 370 (tr.fr. p. 29). Numa nota adicionada ao texto de 1949, Heidegger precisa o sentido dessa confusão: “Confusão: o nexo indissolúvel entre de um lado o ser e de um lado o ente. Um está sempre no outro e para o outro, ‘substituição’, ‘troca’, ora um, ora outro.” (Verwechslung: die Gebundenheit in das Hinüber zu Sein und das Herüber zu Seiendem. Eines steht stets im anderen und für das andere, „Auswechslung“, „Wechsel“, bald so, bald so.) 186 Ibid., p. 218 (tr.fr., p. 442), p. 231 (tr.fr., p. 459), p. 233 (tr.fr., p. 463), p. 234 (tr.fr., p. 464), p. 237 (tr.fr., p. 467). Heidegger usa, além do termo Wandel, também Wandlung para dizer essa “mudança”, mas o primeiro é bem mais recorrente ao longo do texto. 187 Ibid., p. 218 (tr.fr., p. 443). 188 Ibid., p. 216 (tr.fr., p. 400): “... die Umwendung das Menschsein angeht und daher sich im Grunde seines Wesens vollzieht.”

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caverna a um outro domínio (in einen anderen Bereich), transformar-se de habitante

da caverna em amigo das idéias e aspirante à verdade, nada disso consistiria numa

simples mudança interna, nem mesmo numa mudança de “postura”. Se uma postura

aqui se forma, ela diz respeito à própria figura metafísica do homem, a esse tipo de

homem que, junto com as coisas que a ele se manifestam, se torna, diz Heidegger,

efetivamente “outro” (anders werden).189

Junto com a essência da verdade é portanto também a essência do homem que

ganha forma no início da metafísica. Ou, dito de outro modo, no início da história, o

que se configura é a forma metafísica da verdade, do ser e do homem. A paidéia é, ao

mesmo tempo, a formação dessa forma e a abertura do acesso a ela, o “passe” de

entrada nas figuras do ser, do homem e da verdade que conduzirão a metafísica. Na

lição contida na paidéia platônica acerca da essência do ser, do ver e da verdade,

Heidegger retém o que lhe parece verdadeiramente essencial, a saber: a constituição

de uma forma de ver o ser que abre caminho para a história da metafísica, selando o

destino do Ocidente filosófico.190

Um novo modo de (não) ver

O deslocamento promovido pela doutrina de Platão diz respeito, portanto,

também ao homem. No fundo, como a dimensão pedagógica do relato já o indica,

talvez ela diga mesmo respeito a ele prioritariamente. Doravante, insiste Heidegger, o

não-velamento remete sempre a um “não-velado” (Unverborgene) que se tornou

precisamente acessível graças à luminosidade da idéia. A luz nada mais é senão esse

189 Ibid. 190 Catherine Malabou, em Le Change Heidegger, toma de empréstimo o título de um quadro de Jean Dubuffet, “La butte aux visions”, para nomear o espaço e o momento em que se performa a leitura heidegeriana da doutrina de Platão sobre a verdade. O que se realiza aí é, nas palavras da autora, um cruzamento de olhares. À imagem do ser, dos entes, dos homens e da verdade trazida à cena por Platão se confronta a tentativa de liberação desses mesmos termos da sua ‘empreinte’ metafísica. O olhar lançado por Heidegger sobre o mito da caverna equivaleria assim a um esforço de mobilização de uma outra imagem do ser, dos entes, dos homens e da verdade. Todo o capítulo II de Le Change Heidegger, que tem como subtítulo “Platon et le détour du regard”, tratará especificamente dessa questão. Cf. MALABOU 2004, pp. 73-88.

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vínculo, o elo ou nexo que Platão chama de “jugo”191, e que permite a ligação entre a

visão e o visível, o olhar e o que é visto. Mas isso não significa também que, de agora

em diante, o aparecer das coisas passa a estar estreita e necessariamente relacionado à

visão capaz de a ela aceder? Não é de um esforço de reorientação, de um gesto que

reafirma a capacidade que só o homem tem de se manter firme no caminho que leva até

as idéias que o mito da caverna vem sobretudo nos falar? É o que Heidegger afirma: “o

‘não-velado’ é compreendido de antemão e de uma maneira única como aquilo que nós

percebemos ao percebermos a idéia, como o que é conhecido (gignoskómenon) no

conhecer (gignóskein)”192. Eis o que explica o fato de que não basta apenas permanecer

no caminho. Para perceber a idéia, para bem apreendê-la, é necessário também saber

olhá-la, isto é, olhá-la corretamente, olhá-la como ela deve ser olhada.

Quando em toda parte e em cada uma das relações com as coisas que são, nada importa mais que o ideín da idéa, a apreensão do ‘aspecto’ (Aussehen) pelo olhar, todos os nossos esforços devem se concentrar de antemão num único ponto: tornar possível uma tal visão. Para isso, é necessário um olhar correto”193.

Olhar corretamente é corrigir o olhar, é conformá-lo àquilo que por “ter mais

ser”, permite uma visão “mais exata”194. Passar de um estado de visibilidade a outro na

alegoria da caverna significa sempre poder olhar de maneira mais certa, mais conforme

ao real, mais adaptada àquilo que se trata de ver. Tudo é assim submetido à exatidão, ao

que os gregos chamavam de orthótes. É essa exatidão, finalmente, que atesta a

conformidade, a correção da percepção ao percebido. Mas essa adaptação da percepção,

do ideín à idéa, traz com ela uma outra possibilidade, que é a rigor uma conseqüência

intrínseca da primeira. Ela abre o espaço da homóiosis, do acordo do conhecimento à

coisa, levando a verdade a se instalar no logos, na proposição, na linguagem. “Faz

muito tempo que verdade significa, para o pensamento ocidental, o acordo da

representação pensante e da coisa: adaequation intellectus et rei.”195 E isto

provavelmente não teria sido possível sem que a percepção, o noein e o nous, fossem

postos a serviço da idéa, e a idéa a serviço da percepção. “Como exatidão do ‘olhar’ 191 PLATÃO, A República , 508 a. 192 Ibid., p. 225 (tr.fr., p. 452). 193 Ibid., p. 230 (tr.fr., p. 459). 194 Cf. Ibid., p. 231 (tr.fr., 459). 195 Ibid.

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(Als Richtigkeit des “Blickens”), a verdade torna-se a característica de um certo

comportamento humano em relação às coisas que são” 196. A verdade deserta daí em

diante as coisas mesmas, se desloca (verlagert sich)197, passando a habitar o logos como

proposição. Nesse deslocamento, nessa espécie de migração rumo ao domínio da sua

consolidação metafísica, a verdade cede lugar ao juízo: o juízo pronunciado pelo

entendimento torna-se “o lugar da verdade, da falsidade e da diferença entre eles”198.

Nessa mudança da essência da verdade, realiza-se “ao mesmo tempo (zugleich) uma

mudança do lugar da verdade” (ein Wechsel des Ortes der Wahreit)199. Com a

transformação de sua essência, a verdade literalmente se muda. As sucessivas metáforas

espaciais do texto não parecem ter a ver com essa transferência?

O que se passa aqui, Heidegger o resume em algumas poucas palavras: de agora

em diante, “a chegada do ente à presença” (die Anwesung) não é mais “a vinda do

velado ao estado de não-velamento” (der Aufgang des Verborgenen in die

Unverborgenheit)200. A verdade não é mais, como não-velamento, “o traço distintivo do

próprio ser” (der Grundzug des Seins selbst), mas, “de acordo com a sua subjugação à

Idéia” (zufolge der Unterjochung unter die Idee), ela passa a ser “o traço distintivo do

conhecimento do ente” (die Auszeichnung des Erkennens des Seinden)201. A alétheia, a

Unverborgenheit, o não-velamento do ente enquanto tal – no sentido verbal do

surgimento, da vinda à presença ou do tornar-se presente do ente a partir de um

velamento que lhe co-originário –, tudo isto é posto sob o “jugo” da idéia. É o eidos o

que importa, a figura ou o aspecto segundo o qual cada coisa aparece como algo, aquilo

como o que cada ente se apresenta (was je ein Seiendes ist): a sua qüididade (das Was-

sein). A mobilidade essencial que mantêm unidas, em todas as coisas, presença e

ausência – esse modo de presença que, seis anos depois, num texto sobre a sentença de

Anaximandro, Heidegger chamará de “das Je-Weilige”, o “permanecer sempre de

passagem”202 que é próprio a todo ente, a duração sem demora que marca a estada

196 Ibid., p. 231 (tr.fr., pp. 459-60). 197 Ibid. 198 Ibid., p. 232 (tr.fr., p. 461): “Das urteilende Aussagen des Verstandes ist die Stätte der Wahreit und Falschheit und ihres Unterschiedes.” 199 Ibid., p. 231 (tr.fr., p. 459). 200 Cf. Ibid., pp. 233-34 (tr.fr., p. 464). 201 Cf. Ibid., p. 234 (tr.fr., p. 464). 202 Cf. FRANCK 2004, p. 48 et seq.

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essencialmente provisória de cada ente em seu modo de manifestar-se –, tudo isto passa

a ser exclusivamente remetido a uma presença já presente, em algum lugar já sempre

aparente, perfeitamente desvelada. A mudança que advém com Platão é, em suma, a

anulação de toda dimensão privativa do ser e do aparecer em nome de algo chamado a

exibir-se ao máximo, a brilhar na mais pura positividade, a ser to alethéstaton, das

Unverborgenste, o “maximamente desvelado”. E ao homem cabe daí em diante

“acostumar-se” ao exercício de uma tal visão.

À emergência da visibilidade do ser e da verdade corresponde assim a

emergência da visibilidade do próprio homem. O início da filosofia chama o homem a

vir (e a ver) a si mesmo como vidente, a reconhecer-se como cognoscente. Cumprida a

passagem de um âmbito a outro, a volta completa prevista na periagogé platônica, um

novo homem vem ao mundo: ele é o homem afeito à verdade, feito para o seu cultivo,

vivente entre outros no mundo dos entes (zóon), mas dotado da capacidade de habitar,

com a razão e com o discurso, o mundo espiritual que a ele foi confiado (logon echon).

Somente a partir daí, diz Heidegger, o homem é o animal rationale.

A meditação sobre a paidéia e a mudança na essência da alétheia vão de par e ambas têm seu lugar numa mesma história, a apresentada no mito da caverna, que descreve a passagem de um lugar de estada a um outro .203

Uma marcha, um desvio, uma volta

Na seqüência do texto, e dirigindo-se para o seu final, Heidegger vai proceder a

uma espécie de inventário dos resultados historialmente decisivos que a démarche da

alegoria platônica teria, num mesmo movimento, ocultado e revelado. A marcha que

implicitamente se performa nessa “volta na determinação da essência da verdade”

(Wendung in der Bestimmung des Wesens der Wahreit)204 é portanto, de algum modo,

também um desvio – ela desvia o olhar da direção do ser redirecionando-o

exclusivamente ao ente. Um tal desvio caracteriza o regime de questionamento da

metafísica, é no seu movimento que se organiza e estrutura o começo da metafísica

203 Ibid. 204 Cf. Ibid., p. 203 (tr.fr., p. 427)

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como questão condutora (Leitfrage) destinada a vigorar. Na passagem dos Beiträge zur

Philosophie que citamos mais atrás, “questiona-se a respeito do ente (...), questiona-se a

respeito do ser do ente portanto, então aquele que questiona permanece no domínio da

questão que conduz o começo da filosofia ocidental e sua história até o seu fim...”205.

Desde então, a metafísica se organiza como um tipo diferente de sofia. Se os

gregos já empregavam esta palavra, designando com ela a inclinação a “se reconhecer”

no âmbito do ente da maneira necessária, com Platão a sofia passa a nomear um modo

de ocupar um lugar determinado, “o exterior da caverna”, no qual se reconhecer

significa de antemão ter um ponto de apoio no que é estável e constante. “Essa sofia

superior... é caracterizada pelo desejo de ultrapassar as coisas imediatamente presentes

para encontrar um ponto de apoio no Permanente, no que é visível por si mesmo”206. E

se, com Platão, “o pensamento sobre o ser do ente torna-se filosofia”207, a filosofia que

assim começa possui já o caráter do que mais tarde será chamado de metafísica.

Na história que ele nos conta, é o próprio Platão quem nos apresenta claramente,

diz Heidegger, a “figura da metafísica”208. E: “No relato de Platão, a palavra mesma

metafísica já se encontra pré-formada”209. Com efeito, no contexto da alegoria, Platão

diz que o pensamento vai met’ekeina, além das coisas percebidas, atravessando as

sombras e imagens que primeiramente lhe aparecem para atingir, na verticalidade de

um olhar sem entraves físicas, a contemplação direta das idéias (516 c, 3). É colocando-

se em direção a estas (que, sendo supra-sensíveis, exigem um olhar capaz de extrapolar

o sensível, a visão unicamente corpórea), que o pensamento toca a dimensão essencial

do que em primeiro lugar importa a ele atingir. “E suprema no domínio do supra-

sensível é esta Idéia que, enquanto idéia de todas as idéias, permanece sendo a causa da

consistência e da aparição de tudo o que é”210: a Idéia do Bem.

To agathón, o Bem, Causa universal e primeira – segundo Heidegger, Platão e

em seguida Aristóteles designaram uma tal causa tó theíon, o divino. Isto significa

então que uma certa forma do divino também se prepara com o advento da metafísica? 205 HEIDEGGER 1936/38, p. 75 (tr.esp., p. 75). 206 HEIDEGGER 1940, pp. 234-35 (tr.fr., p. 464-65). 207 Ibid., p. 235 (tr.fr., p. 465). 208 Ibid.: “Die Grundgestalt der Metaphysik macht Platon selbst in die Geschichte anschaulich...” (o grifo é nosso). 209 Ibid. 210 Ibid.

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É precisamente o que Heidegger afirma. Ou inversamente, mas dizendo no fundo o

mesmo, a metafísica desde então informa o próprio modo do advento de deus. O

pensamento dedicado a relatar esse advento vai se chamar teologia. Por teologia, diz

Heidegger, é preciso entender duas coisas: por um lado, a interpretação segundo a qual

a causa (Ursache) do ente é Deus; por outro lado, “a transferência do ser para dentro

desta causa, que contém em si o ser e dela o faz emergir (die das Sein in sich enthalt

und aus sich entläβt)”. Desde que o ser foi interrogado em termos do que o causa, a

questão do ser diz respeito a um Ente supremo, ao Ente dos entes (das Seiendste des

Seienden)”211. Desde que o ser foi interpretado como idéa, isto é, como causa, “o

pensamento voltado para o ser do ente é metafísica, e a metafísica é teológica.”212 Mas o

surgimento do Deus da metafísica como Ente máximo não exclui, pelo contrário, torna

sempre mais urgente, a delimitação do papel desempenhado pelo homem em meio a

todas as coisas. Enquanto ente que ele mesmo também é, o homem deve distinguir-se,

diferenciar-se dos outros entes, demarcando para si mesmo a essência que é a sua. Daí

se compreende que a metafísica, como diz Heidegger, seja “toda ela regida pela

preocupação com o ser do homem e com a sua posição no meio de tudo o que é. O

início da metafísica, que se observa no pensamento de Platão, é ao mesmo tempo o

início do humanismo”213.

“Humanismo” designa aqui o processo – ligado ao início, ao desenvolvimento e ao fim da metafísica – pelo qual o homem, em perspectivas a cada vez diferentes, mas sempre cientemente, se situa em um centro do ente, sem ser ainda ele próprio o Ente supremo. “Homem” quer dizer aqui, seja a humanidade ou uma de suas culturas, seja o indivíduo ou uma comunidade, seja o povo ou um grupo de povos. Trata-se sempre, partindo de uma constituição metafísica bem fixada do ente, de permitir ao “homem”(...), ao animal rationale, liberar suas possibilidades, chegar à certeza de sua destinação e pôr em segurança a sua “vida”.214

Uma vez recolhidas as implicações da paidéia platônica e da reviravolta que ela

torna possível, nos vemos conduzidos ao centro de uma curiosa sinonímia que

comparece de maneira recorrente no pensamento de Heidegger. Nela, filosofia,

211 Ibid., p. 236 (tr.fr., p. 466). 212 Ibid., pp. 235-36 (tr.fr., p. 466). 213 Ibid., p. 236 (tr.fr., p. 466) 214 Ibid. (tr.fr., p. 466-467).

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metafísica, ontologia, teologia, humanismo, platonismo, idealismo dizem, em boa

medida, o mesmo. Como se todo o pensamento ocidental, embora marcado por

posições fundamentais a cada vez diferentes, pudesse ser identificado a cada um ou

todos esses termos.215 Filosofia, ontologia, metafísica, teologia, idealismo, humanismo

nomeiam o arranjo determinante, ao mesmo tempo único e diverso, de todas essas

formas de se referir ao ser, à verdade, ao homem e ao próprio pensamento que

conferem à metafísica isto que Heidegger designa como a sua “coesão historial”

(geschichtlichen Zusammenhang )216.

Em seu livro Le Change Heidegger, Catherine Malabou chama a atenção para o

fato de que Heidegger insista no termo “estrutura”217 para evocar esse arranjo de formas

determinantes – formas diversas, mas historialmente coesas, de se referir ao ser, à

verdade, ao homem e ao próprio pensamento. Num conhecido artigo de 1957,

Heidegger efetivamente se serve da expressão “a estrutura onto-teológica de toda

metafísica”, (die onto-theologischen Struktur aller Metaphysik), dizendo que ela possui

uma “origem essencial” (Wesenherkunft) .218 Lemos aí que “a metafísica é em si, desse

modo duplo e uno, a verdade do ente na sua generalidade e seu cume mais alto.”219 Eis

como Malabou interpreta a afirmação: a metafísica é em si, desse modo duplo e uno, o

pensamento em que o ser é “duplicado”, isto é, em algum sentido “dublado” pelo ente,

seja ele pensado como o ente geral, como generalidade, seja como o Ente mais alto, o

Ens maximum. Importa mostrar nesse caso que essa “origem essencial” é na verdade o

esquecimento do que há de essencial na origem, ou, inversamente, do que há de

originário na essência. Um tal “esquecimento” não é senão um outro nome, um outro

termo para precisar o sentido do deslocamento operado no cerne de toda ontologia, essa

virada, essa volta sutil que consiste em substituir, em “trocar” por assim dizer a

essência pela essentia, isto é, pela ousia, pela generalidade, pela entidade.

215 É freqüentemente citada a passagem do segundo volume do Nietzsche em que Heidegger escreve: “Do ponto de vista do fundador da metafísica, pode-se dizer que toda a filosofia ocidental é platonismo. Metafísica, idealismo, platonismo significam a mesma coisa em sua essência”. Cf. HEIDEGGER 1936/46, II, p. 220 (tr.fr., p. 176). 216 Cf. Ibid., p. 173 (tr.fr., p. 140; tr.am., vol. 4, p. 122). 217 Cf. MALABOU 2004, pp. 61-62. 218 HEIDEGGER 1957a, p. 47 (tr.fr., p. 290-291). 219 HEIDEGGER 1949, p. 379 (tr.fr., p. 40).

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O motu continuum da transcendência

A troca do ser pela entidade, o “change” de que fala Catherine Malabou em seu

livro, resume o que há de inessencial na origem essencial da metafísica. Num outro

contexto, Heidegger explicará esse esquecimento da diferença entre ser e ente, o

esquecimento, digamos, da distinção entre essência (Wesen) e essentia, em termos da

sua conversão historial em diferença entre essentia e existentia. “A essência onto-

teológica da metafísica pensa o ente em relação à essentia e à existentia”220. A distinção

que se torna corrente na metafísica “sob o nome de diferença”, lemos no segundo

volume do Nietzsche, é “a distinção entre essentia e existentia”. A diferença que

permanece, sem deixar por isso de se manifestar numa “pluralidade de sentidos”221, é

aquela mesma que, como dizia a carta a Ernst Jünger, constitui o propriamente trans- ou

meta-físico da metafísica, a saber, a transcendência.

Transcendência – é esse o nome atribuído por Heidegger à articulação

“imutável” da estrutura onto-teológica da metafísica, a essa relação que articula,

como numa constante, os diversos movimentos da metafísica como desenvolvimentos

em torno de um mesmo motivo. Nós vimos logo no começo deste capítulo: a

transcendência é esta relação que, “partindo do ente e se alçando em direção ao ser, é

relação entre os dois” (hinübergehende Beziehung zwischen beiden). Mas ela é, ao

mesmo tempo, “a relação que conduz do ente mutável (verändlichen Seiendes) a um

ente calmo (ruhenden Seienden)”222. É na permanente articulação desse movimento

que vai de baixo para cima e do mutante ao invariável que a transcendência pode

aparecer como “a forma intrínseca da metafísica” (die innere Form der

Metaphysik)223. Na interpretação de Malabou, que é quem transpõe para o campo

“morfológico” os termos dessa articulação: “A análise da transcendência como

solidariedade de uma forma e de um deslocamento que não deformam nem deslocam

a substituição da qual eles procedem é que conduz Heidegger a precisar o sentido

220 Cf. HEIDEGGER 1936/46, II, p. 349 (tr.fr., p. 280). 221 HEIDEGGER 1956, p. 397 (tr.fr., p. 214). 222 Ibid. (tr.fr., p. 215). 223 Ibid. (tr.fr., p. 214).

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mesmo desta substituição como estrutura”.224 Seguindo essa mesma perspectiva, nós

poderíamos dizer também: é como “solidariedade de uma forma e de um movimento

que nem deformam nem deslocam a substituição da qual eles procedem” que a

transcendência atravessará a tradição na pluralidade de todos esses nomes que não

dizem senão o mesmo: filosofia, ontologia, teologia, humanismo, platonismo.

Ao longo de toda a tradição metafísica, Heidegger escreve, “a essência é apenas

um outro nome para dizer ser”225. E, por essência, deve-se entender entidade,

Seiendheit. Os modos diversos desse “motu continuum” de substituição, dessa troca em

que o ser passa pelo ente, o ente passa pelo ser, será retomado inúmeras vezes ao longo

dos Beiträge zur Philosophie. “O ser, lemos aí, vale como (gilt als) a generalização do

ente; representativamente tão captável quanto este, mas apenas mais

‘abstratamente’.”226 “O ser, tal como sempre elevado ao estatuto de condição, é desde

logo rebaixado na submissão e na suplementaridade em relação ao ente (ist so schon

herabgesetzt in die Knecht- und Nachtragschaft zum Seienden).”227 A elevação do ser (a

sua abstração, portanto) ao posto de condição do ente é no fundo, diz Heidegger, o seu

condicionamento (Bedingnis): “condicionamento do ente através do ser, que ao mesmo

tempo sempre põe o ser a serviço (verdingt) do ente”.228 A economia geral desse

movimento de mútuo condicionamento, que Heidegger nos revela ser o movimento de

um mútua subordinação entre ser e ente, é verificada explicitamente neste trecho dos

Beiträge: “Em todas as transformações e secularizações da metafísica ocidental, deve-

se reconhecer isto: o ser a serviço do ente, mesmo quando ele parece, enquanto causa,

ter o controle,”229.

A partir dessas descrições, vamos percebendo que a “substituição”

(Auswechslung) do ser pelo ente, a troca (Wechsel) em que insiste Catherine Malabou, é

finalmente uma troca por contrapartida, uma substituição por compensação, um pôr ou

224 MALABOU 2004, pp. 61-62. 225 Ibid., p. 288 (tr.esp., p. 235): “Wesen ist hier nur das andere Wort für Sein (verstanden als Seiendheit)”. 226 HEIDEGGER 1936/38, p. 477 (tr.esp., p. 377). 227 Ibid., p. 479 (tr.esp., p. 379). 228 Ibid., p. 480 (tr.esp., p. 379). 229 Ibid., p. 229 (tr.esp., p. 191): “Das Sein in Dienste des Seienden, auch wenn es als Ursache scheinbar die Herrschaft hat.”

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“dispor de” que em certo sentido se acomoda, “se mete no lugar”.230 E Catherine

Malabou é quem, pela primeira vez, propõe que se tome essa questão como a que dá

peso e torna incontornável o horizonte aberto pelo pensamento heideggeriano do ser. É

ela quem nos mostra que o tomar o lugar e o “fazer-se passar por” está na origem do

regime de câmbios e contrapartidas em direção ao qual a filosofia de Heidegger não

parou de acenar. Esse regime tem como nome “gelten”: “valer por”. Do começo ao fim,

a metafísica rende por assim dizer o ser, sujeitando-o ao ente. É colocando o ser a seu

serviço que, na metafísica, a essência – Heidegger em algum momento dirá: a

“essencialidade” (die “Wesenheit”)231 – toma o espaço, se faz valer. A dimensão

“lógica” característica dessa substituição é evocada explicitamente por Heidegger numa

passagem de seu curso de 1936 sobre Schelling: “O ‘é’ passa por (gilt als) uma palavra

de ligação (copula), a enunciação (logos) passa pela forma fundamental do pensar.”232

A metafísica se revela então como um regime peculiar de pensamento. Ela é o

pensamento cujo modo de apropriação é o da posse e o da captura. Esse modo de

proceder é do tipo que delimita um território para dele melhor se apossar, que

imprime por onde passa a sua marca para melhor demarcar o seu lugar. Não é nessa

direção que Heidegger parece apontar quando ele afirma que a mudança na essência

da verdade faz com que a idéia passe a valer pelo ser e que a exatidão ou justeza se

façam valer como a verdade? A partir daí se compreende melhor em que sentido a

doutrina platônica da verdade pode nos abrir os olhos para a instituição dessa

afinidade e dessa correspondência entre idéias e valores sobre a qual tanto insiste

Heidegger. O apelo irresistível aos valores no mundo contemporâneo será visto como

a consumação extrema dessa exigência de validade e vigência (Geltung), apenas que

invertida nas suas próprias bases. Se a primazia dos valores se consuma ali onde a

verdade se esvaziou dos seus antigos princípios, ali onde, precisamente, declina a

noção de primazia, nem por isso eles deixam de editar o esquema de substituição, o

230 É ainda Catherine Malabou quem chama a atenção para a centralidade da crítica de Heidegger não apenas da noção de “valor” (Wert), mas também da estrutura do “valer por ou como” (gelten als). Cf. MALABOU 2004, pp. 95-101. Em outro contexto, a autora formulará a noção de “capitalismo ontológico” para dar conta dessa longa economia de troca à qual, segundo ela, Heidegger não cessa de aludir. 231 Cf. HEIDEGGER 1936/46, II, p. 362 (tr.fr., p. 290). 232 HEIDEGGER 1936a, p. 214 (tr.fr., p. 304). Os grifos são nossos.

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“valer por” sobre o qual a metafísica assenta a sua posteridade. Eis como Heidegger

anuncia esse esquema:

A história do pensar metafísico e ontológico-historial acontece sobretudo, nas suas diferentes épocas, segundo diferentes poderes de primazia (nach verschiedenen Mächtigkeiten des Vorrangs) do ser sobre o ente, do ente sobre o ser, da confusão (Verwirrung) de ambos, do extinguir-se de toda primazia na época da compreensibilidade calculável de tudo.233

Um sistema de equivalências?

A questão que naturalmente se impõe a essa altura é a seguinte: será que o

acento posto por Heidegger em todas essas identificações, o recurso à noção de um

intercâmbio permanente que no fim das contas resulta sempre no mesmo, são

suficientes para compreender o que está em obra na história da metafísica? Esse sistema

de equivalências que opera reiteradamente nas leituras heideggerianas da tradição

filosófica, essa espécie de aparelho conversor que reduz a um mínimo denominador

comum o que parece haver de propriamente irredutível entre os filósofos e suas

filosofias, não acaba promovendo como que um achatamento do que vimos ser, antes, a

origem essencialmente “mutante” do ser na história? Submeter a aventura da filosofia a

uma mesma “forma de ver o ser” destinada a perdurar – ontologia, teologia,

humanismo, platonismo – não seria enfim confinar a história a uma monumental

continuidade234 em que precisamente “tudo vale por tudo”, indiferentemente? E não

haveria nisso tudo um paradoxo flagrante? Como entender que da profusão de

passagens, de mudanças e deslocamentos que vimos se alternando da primeira à última

página no texto sobre Platão, o resultado não seja outro finalmente senão a instauração

do mesmo? Mudança na essência da verdade (Wandel des Wesens der Warheit);

mudança do lugar da verdade (Wechsel des Ortes der Warheit); reviravolta ou reversão

do ser do homem (Umwendung des Menschseins); formação que autenticamente

apodera e transfigura (Die echte Bildung ergreift und verwandelt); nova orientação e

233 Heidegger 1936/38, p. 431 (tr.fr., p. 344). 234 A expressão é formulada por Didier Franck em Heidegger et la question de l’espace. Cf. FRANCK 1986, p. 10.

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adaptação da essência humana (Um- und Eingewöhnung des Menschenwesens);

mudança da direção fundamental (Umwendung der Grundrichtung); passagens

(Übergangen)... Seriam todas essas fórmulas apenas marcos, simples pontos de

passagem justamente, para corroborar o caráter resoluto e incontornável das

implicações contidas na doutrina platônica da verdade?

O que tentaremos mostrar aqui é algo um pouco diferente disso. Algo que talvez

só se deixe propriamente perceber se pudermos medir o alcance dos termos

transformação, deslocamento e mudança, menos como termos que se revezam para

falar de um antes e de um depois da história da metafísica – é o que gostaria de afirmar

a imagem de um Heidegger romântico, cultivador da nostalgia da Grécia arcaica – do

que para dar nome a esse instante singular em que, pela primeira vez, o ser da verdade

ele próprio irrompe e se libera, oferecendo-se à visão como fixável no seu próprio

acontecimento, como imobilizável em sua própria movência. Mas essa liberação, que

advém como a abertura historial para o surgimento do ente como tal na sua totalidade –

abertura do espaço de jogo da mútua relação entre o homem e o ser que funda, segundo

Heidegger, a história –, encerra em si mesma um fechamento. A questão decisiva, e

com a qual devemos ainda nos confrontar, é a de saber se a história da metafísica, essa

história que se inicia com o “relato” de uma mudança, pode operar sobre o fundo de

uma unidade e de uma continuidade sem caráter generalizador ou assimilador. Uma

unidade e uma continuidade que reúnem e unificam sem identificar, que unificam sem

propriamente constranger ou violentar .

A troca do ser pelo ente, essa confusão ou indiferenciação que destina a tradição

a pensar a essência como generalidade e esta última como imobilidade, deve ser

entendida em termos de uma decisão (Entscheidung). No texto sobre Platão, mas

veremos que não apenas aí, essa decisão surge como o domínio inaugurado pela

experiência da verdade e do ente no seio da compreensão da essência como entidade.

Se nela ou a partir dela se prefiguram os sentidos, isto é, a forma e a direção dentro dos

quais ser e verdade serão mantidos na metafísica, é porque é sobre fundo de decisão, de

uma decisão portanto anterior a toda tomada de decisão, que advêm, como num esboço

geral, os relevos determinantes de toda nova época. Decisão, nesse sentido, é o que

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prepara, o que abre caminho235. E é uma decisão desse tipo, diz Heidegger, que abre, no

início da história, o caminho para a instauração da metafísica no Ocidente. “Tudo o que

advém ao homem historial resulta a cada vez de uma decisão tomada anteriormente e

que não é jamais o fato do próprio homem.”236 Num parágrafo dos Beiträge zur

Philosophie intitulado “Porque devem se produzir decisões?”, Heidegger escreve ainda:

“A dimensão espaço-temporal da decisão como quebra que irrompe do próprio Ser

(Das Zeit-raum-hafte der Entscheidung als aufbrechende Klüftung des Seyns selbst),

compreendida historialmente, não moral-antropologicamente.”237

Uma indecisão originária

É verdade, contudo, que uma estranha situação se impõe a partir dessas

declarações, algo que a noção de decisão tal como formulada acima parece

intimamente sustentar. É que, no fundo, com a idéia de uma decisão “anterior” que

concerne à verdade, que advém como quebra, que irrompe do próprio ser, somos

confrontados finalmente a um tipo de indecisão bem peculiar. Os indícios dessa

indecisão se confirmam em diversos pontos do texto sobre Platão. É ela que nos põe

diante da dúvida, bastante desconcertante num primeiro momento, quanto a saber se a

filosofia platônica afinal provoca a mudança na essência da verdade ou se, antes, ela

resulta desta mudança, sendo a sua herdeira imediata. Se percorremos atentos a letra

de Heidegger, encontramos declarações como esta: “o pensamento de Platão obedece

a uma mudança na essência da verdade” (Platons Denken sich einem Wandel des

Wesens der Wahreit unterwirft)238, “obediência” que pode também ser traduzida em

termos de uma verdadeira submissão. Curiosamente, aqui não é mais a alétheia que

teria sido colocada sob o jugo da idéia, mas antes a alétheia e sua mudança teriam

235 No texto da conferência Die Kehre, de 1949, Heidegger diz que o verbo “destinar-se” (sich schicken) deve ser pensado como “pôr-se a caminho” ou “pôr-se em marcha” (sich aufmachen). A expressão “sich aufmachen” diz comumente “pegar a estrada” (é o que reflete a tradução francesa que optou por traduzi-la como “se mettre en route”). Cf. HEIDEGGER 1949, p. 37 (tr.fr., p. 310). 236 Ibid., (tr.fr. pp. 467-468): “Was immer sich mit dem geschichtlichen Menschen begibt, ergibt sich jeweils aus einer zuvor gefallenen und nie beim Menschen selbst stehenden Entscheidung über das Wesen der Wahreit (...)”. 237 HEIDEGGER 1936/38, p. 103 (tr.esp., p. 95). 238 HEIDEGGER 1940, p. 218 (tr.fr., p. 442). O grifo é nosso.

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sujeitado o pensamento platônico a segui-las, a respeitar por assim dizer as voltas da

mutação ocorrida. Mais à frente, Heidegger se pergunta: “não é necessário que uma

relação essencial una a formação e a verdade?”. A relação existe, é o que ele buscará

mostrar. Ela consiste no fato de que “é a essência da verdade e a natureza da sua

mutação que primeiro tornaram possível a ‘formação’ na sua estrutura

fundamental”239. Numa outra passagem ainda: “O pensamento de Platão segue a

mutação da essência da verdade (Platons Denken folgt dem Wandel des Wesens der

Wahreit)240.

Mas ao mesmo tempo, Heidegger afirmará claramente que o pensamento de

Platão está na origem da mutação – dessa mutação que, como acabamos de ver, ele

não faria senão seguir. “Desta proeminência conferida à idéa e ao ideín sobre a

alétheia resulta uma mudança na essência da verdade” (So entspringt aus dem

Vorrang der idéa und des idein vor der alétheia eine Wandlung des Wesens der

Wahrheit).241 Estranha situação é esta de fato: a filosofia de Platão procederia de uma

transformação e de um deslocamento que ela ao mesmo tempo produz. A mudança na

essência da verdade dá origem a um acontecimento, a verdade decidida em termos de

correção, do qual ela não faz mais do que resultar. A mudança da essência na origem

seria então a origem da mudança na essência? No cruzamento das passagens entre o

que a Bildung metafísica ao mesmo tempo oculta e revela – entre o que é visto e o

que é ocultado por Platão e o que é visto como se ocultando por Heidegger – a

formação faria surgir uma mutação historial da qual ela justamente deriva? Nessa

indecisão quanto ao que de fato dá origem à origem, uma única coisa parece

possivelmente decidida: “origem” (Ursprung), na interpretção heideggeriana do

início da história, não pode ser pensada em termos de causa. Eis talvez a razão que

leva Heidegger a insistir nas passagens, nas mudanças, nos deslocamentos, isto é, na

dinâmica de uma mutabilidade ou transformabilidade que se põe em marcha desde o

começo. Originar-se e transformar-se significam em última instância a mesma coisa.

Ou dito apenas de outro modo: não há propriamente nada antes da mudança, o que há

239 Ibid.: “... das Wesen der Wahrheit und die Art seiner Wandlung erst ‘die Bildung’ in ihrem Grundgefüge ermöglicht.” 240 Ibid., p. 237 (tr.fr., p. 467). 241 Ibid., p. 231 (tr.fr., p. 459). O grifo no verbo entspringen, resultar, é nosso.

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é a mais estrita contemporaneidade entre o surgimento do que se transforma e o

movimento mesmo de sua transformação. 242O que há, na origem, é a convergência

perfeita da mutabilidade originária da verdade e do acontecimento “platônico” da sua

mutação. É como se, no início, o mudar ou transformar (wechseln ou verwandeln)

inventassem aquilo mesmo que eles mudam. E do mesmo modo como a mutação na

essência da alétheia “torna-se a história da metafísica” e “não é nada que esteja já

perdido no passado”243, também o não-velamento, aquilo “que a essência privativa da

alétheia contém de positivo”244, não é um fato perdido nos confins de um passado

pré-platônico, em que reinaria presente, simplesmente dada, uma concepção da

verdade mais adequada ao próprio ser.

Eis a tese defendida por Catherine Malabou, que vimos acompanhando desde

o início deste capítulo: é sob o véu da mutação, das mutações que conferem ao ser,

aos entes, ao homem, ao pensamento, ao deus as suas diferentes figuras metafísicas,

que acena o esboço disto que, num eventual “para além” da metafísica, se revelerá

como ser, entes, homem, pensamento, deus – essencialmente transformados. Assim, o

que importa mais uma vez enfatizar é que, se a interpretação heideggeriana da

metafísica platônica é esse olhar à espreita das mudanças decisivas que iniciam uma

tradição, é menos para demarcar uma linha entre um momento anterior e um posterior

da história, do que para dar conta do início como algo que, grávido de destino, isto é,

pronto a se enviar, a se dar na e como história, vai transpassar de um ponto a outro a

tradição, carregando consigo, como pura reserva, essa possibilidade que lhe é

originária e constitutiva, e que não é outra senão a possibilidade de (se) transformar.

O que tentaremos mostrar é que exatamente essa perspectiva de uma

transformabilidade historial que jamais se esgota num mero scire per causas, isto é,

que explode a lógica da transformação por derivação a partir de um princípio ou

causa primeiros245, é o que confere à compreensão heideggeriana da história o seu

caráter radical e, num certo sentido, vertiginoso. Mas ela comporta, ao mesmo tempo,

um sentido ambíguo, que a situa no ponto de intersecção entre duas disposições

242 Cf. ainda MALABOU 2004, pp. 84-87. 243 Ibid., p. 237 (tr.fr., p. 467). 244 Ibid., p. 238 (tr.fr., p. 469). 245 Ver a esse respeito SCHÜRMANN 1982, p. 16.

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fundamentais. Uma que constata o fechamento inaugural e progressivo da metafísica

sobre si mesma, a impossibilidade por assim dizer de “pular para fora” do esquema e

do modo como se esquematizam, epocalmente, os diferentes modos metafísicos de

referência ao ser como entidade, como fundo geral e presença constante. Outra que

“pressente” o que há de literalmente imenso, isto é, de aberto e indecidido no

movimento em que se forma e transforma a metafísica, e que se pergunta pelo que

está em jogo nessa surpreendente maleabilidade do ser a se deixar enformar, nessa

maleabilidade com que ele se deixa sucessivamente “marcar” (prägen) ao longo da

tradição, reconhecendo aí o indício de uma recusa originária à captura total e

definitiva, isto é, ao conceito, e liberando portanto as idéias mesmas de fim ou de

fechamento da carga totalizante a que elas parecem inicialmente referidas. É nessa

ambigüidade não acidental, isto é, no entre-dois em que ela se move, que a noção de

um “outro começo” (anderer Anfang) pode se anunciar. Em outras palavras, falar em

um outro começo é reiterar que a história da tradição se articula nos termos e a partir

de uma potência dupla que se declina ora na manutenção figural do mesmo, ora na

transformação do mesmo em outro.

É Malabou, mais uma vez, quem resume a coisa de modo admirável: “a

aparição do outro no mesmo é o tema que ronda, como o seu espectro” 246, as leituras

heideggerianas das épocas da metafísica como essas múltiplas variações de um único

tema, como ecos repercutindo a partir de um primeiro acorde: o da presença

convertida em constância, o do fundamento valendo pelo ser. Ela é o outro lado desse

horizonte ao qual a Kehre, se pudermos dizer as coisas assim, vai justamente se

voltar. É de uma espécie de tensão entre o familiar e o estrangeiro, entre o que

permanece e o que se desloca, que Heidegger nos fala a todo tempo. E é essa tensão

que nos permite considerar as variações do mesmo como sendo ao mesmo tempo algo

de outro do que meros anexos, meras adições ou superposições que deixariam intacta,

intocada a forma metafísica da história. Eis o que é preciso ainda tentar dizer a

respeito dessa “mesmidade” (Selbstigkeit): ela não é esse nivelamento, essa

“varredura”, como já se disse, que arrasta consigo toda possibilidade da diferença.

Nem ela reconduz a um fatídico Selbst toda chance do encontro, da relação com a

246 Cf. MALABOU 2004, p. 93.

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“absoluta alteridade”.247 Cada época da metafísica explode, em alguma medida, a

vocação da metafísica para o mesmo. Cada época não apenas reformula a forma

inaugural da presença, o jogo de substituição do móvel e fugidio pelo fixo e estável.

Cada época não só dá prosseguimento ao trajeto decidido no início, ela ao mesmo

tempo rompe e modifica, sutil mas profundamente, essa mesma lógica de

remanejamento, o processo de “remodelagem entitativa” da essência ao qual ela

parece destinada. Sem essas rupturas (aparentes ou não), sem as oscilações e os

deslizes no percurso que fornecem à história os seus relevos epocais, o movimento da

metafísica não seria propriamente um. Numa continuidade indiferente, ele se

reduziria a uma simples sucessão de problemas e conceitos filosóficos. Mas é o

contrário disso que Heidegger parece dizer.

Na conferência Tempo e ser, Heidegger escreve que somente a atenção ao

modo como o ser propriamente se dá pode liberá-lo do estatuto que a época moderna

freqüentemente lhe atribuiu como o “mais vazio dos conceitos vazios”, o

“absolutamente abstrato”. Essa nova atenção, lemos logo em seguida, supõe que se

tenha em vista “a riqueza da transformação (den Reichtung der Wandlung) disto que

se nomeia com suficiente imprecisão: ser”248. A questão é então a de saber se não é

justamente dessa riqueza de transformação, das mudanças e das metamorfoses que

originariamente transitam no domínio do ser pensado como acontecimento (Ereignis),

que pode advir a chance de uma ruptura com essa forma de pensar e de ver, com essa

forma do pensar como “ver”, que, segundo Heidegger, governa a metafísica de um

extremo ao outro de seu percurso. E não é ela que provavelmente está em jogo nesse

salto (Sprung) ao qual Heidegger se refere muitas vezes, e que ele diz ser mesmo

necessário, mas que não é um pulo por cima da sombra do metafísico (o que é de

247 A expressão é de Jacques Derrida e se encontra numa entrevista concedida a Dominique Janicaud, publicada no segundo volume de Heidegger en France. Eis o que diz Derrida na passagem em questão (a pergunta diz respeito precisamente à visão heideggeriana da história, ao problema de saber se o “envio destinal” tematizado por Heidegger seria um “envio único”): “O Ser conta, o que quer que se diga a respeito. É o Ser, diferente do ente, diferente do conceito de ser, que reúne e que concede o legein e a Versammlung, e é lá que as coisas se decidem. Mesmo sentindo a necessidade e a força desse pensamento, eu resisto a ele do lado daquilo que não se deixa mais reunir. (...) o fato de resistir ao ajuntamento pode ser sentido como uma penúria, uma infelicidade, uma perda – a deslocação, a disseminação, o não-estar-em-casa, etc. – mas é também uma chance. A chance do encontro, da justiça, da relação à alteridade absoluta.” Cf. JANICAUD 2001, p. 116-119. 248 HEIDEGGER 1962a, p. (tr.fr., p. 199).

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resto impossível) e, sim, um recuo para dentro dele, uma experiência feita dele e com

ele dos tesouros das suas “fontes inesgotáveis”?249

* * *

Vimos neste capítulo que a paidéia platônica, o evento de formação que

instala o começo da filosofia no Ocidente e o começo do Ocidente como filosofia, é o

fruto de uma “decisão” (Entscheidung) que concerne ao ser e à verdade. Essa decisão,

que, como vimos também, não coincide com qualquer idéia de arbítrio ou

deliberação, cinde (scheidet) literalmente o caminho em que passa a se mover o

pensamento metafísico, fixando o ser na figura da causa e do fundamento, projetando

para a verdade a imagem da justeza e da correção. A decisão é, ao mesmo tempo, a

dimensão capaz de franquear o espaço de jogo de uma longa época em que a

metafísica poderá fazer história. O que propriamente aí se decide são as formas do

ser, dos entes, da verdade, do homem, do pensamento, do deus na metafísica. A

“obra” que realiza e consuma a história da metafísica é a fixação sempre mais certa e

segura dos princípios segundo os quais ser e homens, pensamento e verdade, deus e

os demais entes, recuperam a cada vez, sob figuras diversas mas sobre o solo de uma

proveniência comum, a direção aberta, isto é, decidida no início. Pensar o caráter

mais próprio desse “fazer” e desse “obrar” é, já dissemos, um dos motivos que nos

orientam neste trabalho.

No próximo capítulo, seguiremos com Heidegger alguns dos principais

marcos do que vimos chamando aqui, junto com Catherine Malabou, o movimento ou

a travessia da metafísica. A questão que deve nos guiar é a de em que medida as

etapas dessa travessia constituem verdadeiras transformações ou apenas “reformas”

249 Em O Princípio de razão, Heidegger fala desse “salto”, que constituirá a terceira das “junturas” (Fügungen) tratadas nos Beiträge zur Philosophie, como sendo uma “partida” (Absprung). Mas ele precisa o sentido desse “partir”, mostrando que não se trata aí de um abandono: “O salto do pensamento não deixa atrás dele aquilo de que ele parte, mas dele se apropria de um modo mais original.” No mesmo parágrafo, a história é designada como um dom (ein Gewähren) cujos tesouros (Schätze) podem permanecer muitas vezes intocados, mas cujas “fontes inesgotáveis” (unerschöpflichen Brunnen) podem sempre despertar um pensamento a vir rememorá-las. Cf. HEIDEGGER 1957, pp. 106-107 (tr.fr., pp. 146-147).

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ou reformulações dessa forma de figurar o ser que inaugura a (e se inaugura como)

metafísica. Mais para a frente, duas outras questões se ligarão diretamente a esta: a

primeira pergunta sobre se e de que maneira nos seria propriamente dada a chance de

um abandono do que chamamos a forma metafísica da história, isto é, em que medida

pode haver superação do modo de ver e conceber o ser que define a metafísica desde

Platão. A segunda, essencialmente ligada à primeira mas sem se confundir com ela,

pergunta sobre a possibilidade de um abandono da forma tradicional de ver e

conceber a própria história, isto é, do tipo de representação do mundo histórico que

atravessa a história do Ocidente desde a época moderna. Ambas nos guiarão nas

próximas etapas deste trabalho.

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33..

DDee uumm eexxttrreemmoo aaoo oouuttrroo ddaa mmeettaaffííssiiccaa:: ““oo mmeessmmoo

eesssseenncciiaallmmeennttee ttrraannssffoorrmmaaddoo””

“... a meditação historial que se seguirá sobre a essência da metafísica não se apresentará de outro modo senão como o sumário de um qualquer manual da história da filosofia.”250

Algum leitor de Heidegger terá jamais deixado de se surpreender com as

“listas” de nomes e conceitos que vêm freqüentemente resumir em poucas páginas, na

interpretação heideggeriana da história da metafísica, os vinte e cinco séculos de

filosofia no Ocidente?251 Textos como Introdução à metafísica, O Que é filosofia?, os

dois volumes do Nietzsche e, de maneira especialmente monumental, os Beiträge zur

Philosophie são exemplos desse procedimento aparentemente paradoxal pelo qual

Heidegger recorre às mudanças e deslocamentos ocorridos na história do pensamento

com o intuito claro e assumido de reafirmar a sua origem comum, o “mesmo” (das

Selbe) que os sustenta. Para Heidegger, a metafísica é de fato a história dos diversos

desdobramentos de um tipo de questionamento sobre o ente que se conduz,

basicamente, da mesma forma. Não só isso, o conduzir-se da mesma forma implica,

de maneira definitiva, um conduzir-se no mesmo sentido, isto é, numa direção que

tende a se confirmar e a perseverar. A via tomada pela história da metafísica é a de

um esquecimento sempre mais agudo do começo, de um abandono progressivo da sua

origem essencial, esquecimento do acontecimento que nela inicialmente se põe em

250 HEIDEGGER 1936/46, I, p. 451 (tr.fr., p. 349). 251 Continuamos, nesse ponto, a seguir a interpretação de Catherine Malabou em Le Change Heidegger, que no capítulo intitulado “Esquisse d’une cinépalstique de l’être” evoca o problema das continuidades e rupturas na concepção da história heideggeriana. Malabou afirma que há na verdade “duas cineplásticas no seio da cineplástica heideggeriana”. Por um lado, passagem contínua e “trottoir roulant” (expressão que ela toma de empréstimo a Balzac). Por outro lado, dislocação e interrupções múltiplas. O duplo eixo coordena a obra de Heidegger de um extremo a outro. Cf. MALABOU 2004, pp. 132-133.

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trânsito, do ser como acontecimento primordial que a suporta na sua possibilidade

mesma de perdurar. Mas essa via de modo algum é reta ou direta, nenhum télos a

guia que seja previsto ou calculado de saída. A história do ser, diz Heidegger – e é

igualmente impossível passar despercebidamente por esta afirmação –, “não é

pensada a partir de um devir (Geschehen) caracterizado por um curso (Verlauf) e um

processo (Prozeß)”252. Se uma identidade persiste nas diversas dispensações do ser ao

longo da história da metafísica, ela “não pode ser representada por um conceito

geral”, tal como “um fio vermelho (ein roter Faden) que se possa extrair da variedade

do desenvolvimento histórico (aus dem vielfältigen Geschichtsgang)”253. A questão

condutora, mesmo se Heidegger freqüentemente apresenta as etapas de seu

desenvolvimento sob a forma de um inventário de noções e nomes próprios, não é um

fio estendido de uma ponta à outra da tradição, encadeando causalmente os seus

momentos respectivos. Quanto a estes, diz mais uma vez Heidegger, trata-se de

pensá-los em termos da sua “coesão historial” (geschichtlichen Zusammenhang), não

em termos de uma suposta dependência histórica (historische Abhängigkeit) de um

em relação ao outro”.254

É sob a perspectiva de uma unidade plena de retornos e desvios, e atenta às

voltas, às “quebradas” do caminho que conduz a metafísica a erigir-se em tradição,

que a leitura heideggeriana da metafísica reata, por assim dizer, o fio dessa questão

condutora (Leitfrage) que Heidegger vê perpassar a sua história, do início ao fim. O

que tentaremos mostrar a partir daqui é o modo como Heidegger, ao ler a história da

filosofia seguindo um tal fio condutor, não faz senão reportar as transformações que

nela estão em curso. Paradoxalmente, à idéia de um fio condutor religando as

determinações metafísicas do ser, do ente, da verdade, do homem, do pensamento, do

deus, conjuga-se a perspectiva de um desdobramento marcado por mudanças e

deslocamentos que não cessam de ocorrer. Nenhum desses termos permanecerá “tal

qual”, luzindo no céu das idéias eternas ao qual a metafísica platônica num primeiro

momento os destinou. Ser, ente, verdade, homem, pensamento, deus estão, todos eles,

252 HEIDEGGER 1957, p. 109. 253 Ibid., p. 110. 254 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 173 (tr.fr., p. 140; tr.am., vol. 4, p. 122). Sobre essa mesma referência a uma “coesão historial”, ver infra, p. 74.

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destinados a se transformar. Ocorre que essas transformações se dão no interior do

espaço aberto pela compreensão inaugural do ser como entidade e da essência como

imobilidade, e não fora dele. Ao se transformar, longe de provocar uma total

interrupção no registro “formal” que estrutura a metafísica, longe de interditar o

caminho que se estende em direção à determinação da essência como figura valendo

pelo ser e da verdade como acordo do pensamento a ela – ser e ente, pensamento e

homem, deus e verdade não farão senão se reformular a cada vez, reiterando a

“conversão” e a “troca” iniciais das quais, originalmente, cada um deles procede. Se

há mudanças, portanto, e é o que Heidegger fará questão de mostrar do início ao fim,

elas não necessariamente “deformam” ou “desfiguram” a forma e a figura inaugurais

que transportam a economia metafísica do ser. Mais que isso: se há transformações

ou mutações fundamentais, e é o que Heidegger fará questão de mostrar de um

extremo a outro, elas não revogam a tendência da metafísica a pôr em forma o ser,

isto é a “idealizá-lo”. O copertencimento entre forma, idéa e ser, a solidariedade de

um regime figural que põe em cena o ser à imagem e semelhança do ente, é o que

duradouramente deve permanecer. As diferentes rubricas surgidas no seio da

interpretação da essência como entidade e da verdade como adequação ou justeza não

desmobilizam a vocação da metafísica a “imaginar” e a refletir historialmente a

imagem que de si própria ela faz. As mudanças não cessarão de acontecer. E

precisamente esse acontecer reserva à história da metafísica enquanto história do ser a

possibilidade de desdobrar, e de finalmente esgotar, o fundo de seus múltiplos

recursos figurais.

Diferentes posições, novas configurações

Segundo Heidegger, as configurações do ser, do ente, da verdade, do homem,

do pensamento, do deus constituem o estofo de diferentes “posições metafísicas

fundamentais” (metaphysische Grundstellungen), formadas ao longo da história do

pensamento ocidental. Em tais posições vêem-se traçados os limites e o alcance de

cada nova época da tradição. O que são essas diferentes épocas e como as diferenças

específicas entre elas se estabelecem – isso, diz Heidegger, só pode ser apreendido à

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medida que consideramos a maneira como “a significação muda a cada momento

historial e como ela se fixa a cada vez” (inwiefern jeweils die Bedeutung sich wandelt

und wie sich jeweils geschichtlich festliegt)255. Cada posição metafísica fundamental

corresponde a “uma interpretação determinada do ente” e a “uma acepção

determinada da verdade” que lhe fornecem, de maneira determinante, “o princípio de

sua configuração essencial” (den Grund seiner Wesensgestalt)256. Tais princípios

fundam então uma época e eles regem, de um extremo a outro, “todos os fenômenos

característicos dessa época”257. Quatro diretivas básicas determinam as diferentes

épocas da metafísica nas suas configurações características. Nelas está também

contido o que Heidegger chama de “o essencial de uma posição metafísica

fundamental”. Isto compreende:

1) o modo como o homem é homem, isto é, é ele mesmo; o modo de advinda da sua ipseidade (...); 2) a interpretação da essência do ser do ente; 3) a projeção da verdade em sua essência; 4) o sentido segundo o qual o homem é – aqui e lá – medida.

“Nenhum dos momentos essenciais de uma posição metafísica pode ser

compreendido separadamente dos outros, precisa ainda Heidegger. Cada um deles já

caracteriza por si mesmo o conjunto (...)”258. Há algo como um encadeamento interno

desses quatro momentos ou diretivas. Ao se pôr a questão acerca de um deles – quer

se interrogue isoladamente a respeito do modo como o homem se auto-interpreta

numa época determinada, quer se busque saber como nela se delimita a essência do

ente ou como se articula, entre o homem e as coisas, os limites e critérios a partir dos

quais a verdade se faz valer –, os outros três se vêem imediatamente implicados.

Nessa referência mútua e articulada, os quatro pontos, diz Heidegger, enunciam uma

“estrutura unificada” (ein einheitliches Gefüge)259. É a reunião de todos esses aspectos

de uma posição metafísica fundamental que revela a Wesengestalt, a configuração

essencial, de uma época historial. Situando a estrutura circunscrita por esses quatro

255 HEIDEGGER 1942/43, p. 175 (tr.fr., p. 214). 256 HEIDEGGER 1938, p. 75 (tr.fr., p. 100). 257 Ibid. 258 Ibid., p. 104 (tr.fr., p. 135-136). 259 HEIDEGGER 1936/46 II, p. 203 (tr.fr., pp. 162-163; tr.am., vol. 4, p. 150).

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pontos de vista (Hinsichten), é possível então questionar como, no curso da

metafísica, “a relação do homem ao ente” (das Verhältnis des Menschen zum

Seienden)260 se transforma.

No primeiro volume de seu Nietzsche, Heidegger propõe uma explicação mais

circunscrita do que ele entende por uma posição metafísica fundamental. Ele se

pergunta por aquilo que torna possível, afinal, que ao longo da história da filosofia

diferentes posições fundamentais tenham se produzido. O que permite, ou seja, de

onde, como e porque pode surgir uma visão da história que se move em torno de

“posições” desse tipo? A resposta: “Onde, como e porque (...), nós só podemos

avaliar se determinarmos por um conceito suficientemente claro o que se nomeia

‘metafísica’”261. O que parece haver de claro, embora não se saiba ainda se

suficientemente, é que “trata-se menos de indicar os diversos esboços de posições

desse tipo, com suas conseqüências históricas (geschichtliche Abfolge)” supostamente

demonstráveis, do que de destacar que “aquilo que se nomeia posição fundamental

metafísica constitui um fenômeno único e próprio ao Ocidente e contribui para

determinar essencialmente a sua história (eigens und nur der abendländischen

Geschichte zugehört und sie wesentlich mitbestimmt)”262. O que nos interdita de tomar

a metafísica como um adjetivo ou mesmo como uma doutrina, como uma espécie

particular de concepção filosófica ao lado de outras, menos “meta” ou transcendentes,

é a dimensão propriamente historial que Heidegger lhe atribui. E essa dimensão

historial é o que deve nos impedir de pensar o termo “metafísica” como o título para

uma história passada, ultrapassada ou resolvida. Heidegger afirma: “as palavras

exercem na história uma potência freqüentemente maior do que as coisas ou os

atos.”263 Uma explicação (Auseinandersetzung) com a história da metafísica exige a

disposição de se confrontar com “a potência da palavra metafísica”, e isto quer dizer:

“com as suas posições fundamentais e suas forças unificadoras e determinantes”.264

Cada posição metafísica é como uma constelação dentro da qual se articulam,

em torno do espaço aberto pela compreensão inaugural da essência como entidade, os

260 Ibid. 261 HEIDEGGER 1936/46, I, p. 448-449 (tr.fr., p. 347; tr.am., vol. 2, p. 184). 262 Ibid. 263 Ibid., p. 450 (tr.fr., p. 348). 264 Ibid. (tr.fr., pp. 348-349).

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encontros entre o homem e o ser, o ser e a verdade, os entes e deus, deus e os homens,

o homem e a linguagem. Se a potência da palavra “metafísica” leva Heidegger a

utilizá-la como um outro nome para a história mesma, é porque, desde o começo (e

com distâncias e proximidades a cada vez especificas em relação a ele), é em torno

dela que o pensar ocidental segue o seu caminho, se transformando com e no

desenvolvimento da sua questão inaugural e condutora. A “suficiente clareza” no

conceito que se poderá alcançar da metafísica e de sua história supõe em primeiro

lugar que prestemos atenção a isto: se a metafísica é uma mesma história, a história

de uma mesma questão, é porque ela carrega o “mesmo” em seu seio, articulando-o e

articulando-se com ele; mas esse mesmo, que não é a queda na pura coincidência nem

na indiferença, só se dá a ver através do que há de singular em cada uma das posições

fundamentais que em seu curso se desenvolvem.

É também nos volumes do Nietzsche, nos cursos das décadas de trinta e

quarenta reunidos e publicados em 1961, que são analisadas as conexões e quebras

epocais que pontuam o desdobramento da metafísica como história do ser. Talvez em

nenhuma outra obra de Heidegger se veja explorada com tamanha desenvoltura

narrativa a questão sobre o sentido das continuidades e rupturas que permeiam a sua

interpretação da história do Ocidente. As análises se oferecem aí em termos

alternados, evoluindo em sentidos diversos, ora por meio de uma consideração

comparativa, ora por indicações de semelhanças aparentes, ora ponderando contrastes

radicais, ora mostrando conexões essenciais265. O motivo disso é explícito: trata-se aí

de fazer ver de que modo “a questão condutora da metafísica tradicional – o que é o

ente? – se transforma (wandelt sich) no começo da metafísica moderna (...)”266, de que

modo, por exemplo, “a idéa torna-se idéia e essa última representação”267, ou como,

por sua vez, a “energeia (...) mais tarde se nomeará actualitas e existentia, realidade e

existência”268.

As transformações são aqui, mais uma vez, ligadas à idéia de uma

transferência ou de um transporte, isto é, vistas sob a perspectiva de uma mudança

265 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 189 et seq. (tr.fr., p. 152 et seq.; tr.am., vol. 4, p. 136 et seq.). 266 Ibid., p. 142 (tr.fr., p. 115; tr.am., vol. 4, p. 97). 267 Ibid., p. 410 (tr.fr., p. 330). 268 Ibid.

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que introduz uma volta ou uma virada, uma quebra de sentido ou direção.

Expliquemos melhor: o surgimento da metafísica moderna é, a um só tempo, uma

mudança no horizonte em vista do qual a questão do ser é colocada e um

redirecionamento na via até então tomada para respondê-la. Essa mudança se revela

de modo tão mais preciso quanto o horizonte da questão que se transforma aparece,

segundo Heidegger, como dizendo respeito ao método, isto é, ao “caminho que

permite ao homem buscar para si mesmo algo de absolutamente certo e seguro, e

delimitar a essência da verdade”269. Mas se “essa transformação é o começo de um

novo pensar”270, e se o pensar nele em jogo se vê ele mesmo de saída como algo de

inteiramente novo, o que se consuma nesse começo é ainda essencialmente da ordem

de uma passagem, de uma transposição. Heidegger escreve: no início dos tempos

modernos, “a velha ordem passa no interior da nova e a época que se sucede torna-se

a época moderna”271. Assim como a questão condutora, que de pergunta pela verdade

do ente se desloca em direção à do caminho mais adequado à busca do fundamentum

inconcussum veritatis, é a própria maneira de “perceber” as coisas que se desloca.

Como vimos anteriormente a respeito da transformação que instala a

metafísica no mundo grego, também o início moderno se move através de um

deslocamento. Junto com a transformação da essência verdade, diz Heidegger, “a

estrutura essencial da representação se desloca” (verlagert sich das Wesensgefüge des

Vortellens)272. Toda nova época realiza então um “deslocamento da unidade de

essência da representação precedente (Verlagerung des Wesensgefüges des

vormaligen Vorstellens)”273. A unidade de essência em questão diz respeito portanto à

verdade e sua transformação, ao ser e sua transformação, ao homem e sua

transformação, ao modo de representar que também se desloca, ao caminho tomado

pelo perguntar, que assume outro caminho e torna-se método. Toda nova época se

organiza em torno de uma mudança essencial, em que o ser e os entes, a verdade e

269 Ibid., p. 142 (tr.fr., p. 115; tr.am., vol. 4, p. 97). 270 Ibid. 271 Ibid. A passagem diz: “Dieser Wandel ist der Beginn eines neuen Denkens, wodurch das Zeitalter zu einem neuen und die Folgezeit zur Neuzeit wird.“ Seguimos aqui a sugestão dos tradutores americanos, que com a locução “the old order passes into the new” parecem querer fazer jus às transformações e passagens descritas por Heidegger na seqüência do texto. 272 Ibid., p. 295 (tr.fr., p. 237; tr.am., vol. 3, p. 219). 273 Ibid., p. 296 (tr.fr., p. 237; tr.am., vol. 3, p. 219).

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seus critérios, os homens e sua auto-interpretação, o pensamento e seu método se

reformulam ou reconfiguram. Assim se reformulando, todos deixam de valer com os

traços que lhe eram característicos para reaparecer com um rosto novo, sob uma outra

figura. A cada nova época, a essência, ao se transformar, se traveste em algo de outro.

O início metafísico da época moderna responde portanto, também ele, a uma

mudança na essência da verdade. Mais que isso, é Heidegger quem o afirma, ele

“reside nessa mutação (ruht in diesem Wandel)”274. Verdade desde então significa

certeza (Gewißheit). Junto com a verdade são também os próprios entes que se

modificam: “No início da época moderna a entidade se modifica (wandelt sich die

Seindheit des Seienden)”275. Agora, “a consistência da presença (die Beständigkeit des

Anwesens), isto é, a entidade, passa a consistir no poder ser representada (in der

Vorgestelltheit) por e para uma representação”276. Uma outra época se inicia sob o

signo de mudanças e deslocamentos, de passagens ou transições. Os mesmos termos

que pontuavam o surgimento da forma do pensar metafísico com Platão vêm dar o

tom dessa nova época, que se quer nova e que assim se vê. Mas se eles comparecem

de novo, é para dar a medida da transformação e do deslocamento, ou seja, da

distância ou intervalo que inevitavelmente se abre entre um mundo e outro, entre a

“velha” e a “nova” ordens. Se os termos são os mesmos, é justamente porque eles

mesmos são a única “guarda”, a garantia contra a tentação de reduzir as passagens a

uma continuidade plana, desprovida de qualquer novidade. É verdade que, de um

extremo a outro, a forma da metafísica integra a si novos elementos, num movimento

que, de um ponto a outro do trajeto, leva o fio da idéia diretriz, a Leitfrage, a se

entender, a se esgarçar mais um pouco. A metafísica, o questionar acerca do que é o

ente, não abandona “esse ponto de partida” (dieser Ansetzung), não se distrai dessa

sua “direção” (Richtung)277. Ela não deixa de ser a metafísica e, no entanto, é o que

Heidegger afirma, ela muda, ela se transforma. Nas mudanças e nos distanciamentos

epocais – do ser, do ente, da verdade, do homem, do caminho de pensamento, do deus

– ela no fundo se confirma, se firma, se consolida. Mas assim se confirmando e

274 Ibid., p. 296 (tr.fr., p. 238). 275 Ibid. 276 Ibid. (tr.fr., p. 237; tr.ing., vol. 3, p. 220). 277 Cf. HEIDEGGER 1936/38, p. 75 (tr.esp., p. 75) e infra p. 60.

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consolidando a sua vocação inaugural, ela ao mesmo tempo não deixa de se

metamorfosear. Ainda no contexto dos cursos sobre Nietzsche, encontramos essa

passagem fundamental:

Se posições cambiantes do pensamento metafísico (wechselnde Grundstellungen des metaphysischen Denken) se desenvolvem (...), sua multiplicidade não faz senão confirmar a unidade, que permanece a mesma, das determinações cardinais do ser. No entanto, esse permanecer idêntico não é mais do que uma aparência, sob o abrigo da qual a metafísica enquanto história do ser se produz de forma sempre diferente (je anders ereignet).278

A mudança na essência da verdade – que implica “estruturalmente” uma

mudança no modo como o homem é homem, uma mudança na interpretação da

essência do ente e da verdade, no sentido segundo o qual o homem toma e dá a cada

vez a medida das coisas – não cessa de originariamente acontecer. E nesse acontecer,

que é a própria metafísica, ela abre o espaço de um profundo distanciamento, ainda

que aparentemente imperceptível, entre a metafísica e ela mesma. Não é isto, com

efeito, o que Heidegger parece querer afirmar? A metafísica é a multiplicação de

marcas ou rubricas do mesmo; suas posições, embora cambiantes, não fazem senão

confirmar a unidade das determinações cardinais do ser. Mas, ao mesmo tempo, essa

identidade é apenas aparente, pois a metafísica enquanto história do ser, ao se

desdobrar, não deixa de produzir diferenças. A cada nova época a metafísica se

reestrutura dentro dos limites da sua estrutura inaugural, reorganizando as suas

dicotomias no seio da sua organização dual. A cada nova época, os emblemas da

transcendência se redefinem, transformando, de passagem, a entidade e o homem,

deus e o pensamento, pronunciando um novo juízo acerca da verdade. E no entanto,

as diferenças que as separam e as distinguem entre si parecem abrir entre as épocas da

história fendas mínimas, invisíveis, que irrompem secretamente no solo metafísico,

reorientando-o. Como os sismos discretos que de tempos em tempos ocorrem, sem

que ninguém tenha notícia deles. A cada fase da metafísica, Heidegger escreve ainda,

“se torna a cada vez visível um pedaço do caminho” (wird jeweils ein Stück eines

Weges sichtbar). E a cada pedaço desse caminho, é o que ele acrescenta logo em

278 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 410-411 (tr.fr., p. 330).

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seguida, é “em bruscas épocas da verdade” (in jähen Epochen der Wahrheit)279 que o

ente ganha visibilidade.

As transformações e deslocamentos do mesmo que reformulam e reorientam a

forma e o trajeto da metafísica abrem a cada vez o ser a algo que parece irredutível a

ele mesmo.280 Numa passagem decisiva do texto que trata da “Determinação

ontológico-historial do niilismo”, redigido entre 1944 e 1946 e publicado na mesma

compilação de 1961 sobre Nietzsche, ouvimos de Heidegger a seguinte revelação: “O

ser enquanto tal é um outro de si mesmo” (Das Sein ist als solches ein Anderes als es

selbst)281. É nessa alteridade radical que provavelmente se situa a estranheza

(Befremdlichkeit) de um “ser” cuja história, finalmente, é a das suas incessantes

metamorfoses.

O ser como outro de si mesmo. – É deixando ecoar esta afirmação, sem em

nenhum momento perdê-la de vista, que buscaremos nos mover nas considerações a

seguir.

Breves inventários282

Catherine Malabou nos lembra o quanto os inventários heideggerianos de

autores e épocas se assemelham aos “trottoirs roulants” de que fala Proust ao

caracterizar o estilo de Flaubert.283 Em Heidegger, é verdade que nos deparamos

freqüentemente como essas espécies de “esteiras rolantes” que resumem, em algumas

páginas, séculos inteiros de história do pensamento. Os index das diferentes rubricas

do ser parecem ter como intuito primordial mostrar em que medida a metafísica

atravessa a sua história orientando-se basicamente pela mesma questão. A leitura dos

cursos dos anos trinta e quarenta revela que esse é um procedimento recorrente em

Heidegger, uma prática presente em diversos momentos de sua obra. Mas com esse

detalhe que, como acabamos de sugerir, realmente muda tudo: a investigação desse

279 Cf. HEIDEGGER 1943, p. 210 (tr.fr., p. 254). 280 Cf. MALABOU 2004, p. 133-134. 281 HEIDEGGER 1936/46, II, pp. 354-355 (tr.fr., p. 284; tr.am., vol. 4, p. 215).. 282 A expressão, mais uma vez, é tomada de empréstimo a Catherine Malabou. Cf. MALABOU 2004, pp. 66-67. 283 Cf. Ibid, p. 379.

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“mesmo” (das Selbe), dessa mesma questão, é feita como a experiência das mutações

que, do início ao fim, não cessam de se dar. O encontro com o mesmo supõe,

portanto, o reconhecimento de que o mesmo, como Heidegger declara nos Conceitos

fundamentais da metafísica, “é sempre essencialmente transformado”. Eis o que

nesse texto ele nos diz :

Toda grande e autêntica filosofia se move no círculo de um pequeno número de questões. Para o senso comum, essas questões são sempre pura e simplesmente as mesmas. E, no entanto, em cada filosofar, elas são necessariamente outras (anders). Outras – não num sentido superficial, mas de tal modo que o mesmo (das Selbe) seja sempre, essencialmente, de novo transformado (verwandelt). É apenas nessa transformação (Verwandlung) que a filosofia tem sua autêntica identidade. Essa transformação dá ao acontecer da história do filosofar uma historicidade absolutamente original (eine ureigene Geschichtlichkeit) (...).284

A experiência da metafísica como a história da repercussão e consolidação de

um modo de ver e apreender o mundo que se decide no começo da tradição ocidental

decide-se, por sua vez, no encontro com as diversas figuras desse “mesmo” que,

essencialmente, se transforma sempre de novo. É assim que numa curta seqüência de

notas redigidas por Heidegger em 1941 vemos anunciadas, uma após a outra, “a

modificação (Wandel) da energeia em actualitas”, “a mutação (Wandel) da verdade

em certeza” e a “mutação (Wandel) do hypokeimenon em subjectum”285. Com efeito,

de uma mutação a outra, nas passagens do ser aos seus outros, cada nova época se

reconfigura inteiramente. Cada transformação dá nova forma, isto é, transfigura

inteiramente os fenômenos que lhes são característicos. É na pergunta pelo que se

decide nessas transformações e no retorno a esse tomar forma que ao longo da

história da filosofia insiste em acontecer, que se decide ao mesmo tempo a tonalidade

do pensar que questiona sobre a metafísica no fim da metafísica. Eis o que tentaremos

explorar a partir daqui, acompanhando junto com Heidegger essa “historicidade

absolutamente original” que, segundo ele, carrega a história do filosofar na sua

“plenitude de transformação” (Wandlungsfülle)286.

284 Cf. HEIDEGGER 1929/30, p. 259 (tr.fr., pp. 262-263). 285 HEIDEGGER 1936/46, II, pp. 410, 421 e 429 (tr.fr., pp. 329, 337 e 344). 286 Cf. HEIDEGGER 1942/43, p. 62 (tr.am., p. 42).

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* * *

Mas como tudo isso (re)começa? Como é dada a partida para essa longa

seqüência de transformações, para o incessante “tornar-se outro” do ser que sela, de

um extremo ao outro da metafísica, o desdobramento figural do seu “vir à presença”

(Anwesen)? O que propriamente acontece nessa profusão de mudanças, de passagens

e deslocamentos que Heidegger insiste em nos relatar, e que ele reconhece aliás se

assemelhar, à primeira vista, a uma espécie de recensão, a uma pura catalogação

histórica?287 Uma obra parece propícia para (re)começarmos, seguindo o percurso

heideggeriano, a nossa própria busca das metamorfoses e transfigurações do ser na

metafísica. Essa obra é o Parmênides, curso ministrado por Heidegger em Friburg no

semestre de inverno de 1942-1943. Nesse texto encontramos os desenvolvimentos

mais amplos acerca do motivo da mudança na essência da verdade, que servia de base

já ao texto sobre Platão. Mas aqui, como em nenhum outro escrito do mesmo período,

Heidegger parece esboçar uma outra tese a respeito da mudança que teria finalmente

direcionado a tradição ocidental a pensar e falar a língua da metafísica. O lugar e o

momento precisos em que essa mudança ocorre são agora Roma e a língua latina. É o

domínio aberto pela apropriação romana da experiência do pensamento e da

linguagem gregos que em última instância decide a articulação da compreensão do

ser e da verdade que informam a tradição do Ocidente. Se essa articulação permanece

necessariamente dupla, isto é, grega e romana, o momento platônico parece contudo

passar a um segundo plano. E, de fato, Heidegger sustentará a idéia de que é na

interpretação romana da verdade como justiça, uma interpretação que revira e acaba

por inteiramente resituar o pensamento, o discurso e a poesia dos gregos, que se

consuma finalmente a virada iniciada por Platão em direção à determinação do

pensamento em termos “pedagógicos”, isto é, no mesmo sentido do “formar”

287 Além da passagem que nos serviu de epígrafe na abertura do capítulo, Heidegger reconhece em diversos outros momentos do Nietzsche que a sua démarche possa se fazer passar por “uma recensão histórica da história do conceito de ser” (einen historischen Bericht über die Gaschichte des Seinsbegriff). Cf HEIDEGGER 1936/46, II, p. 399 (tr.fr., p. 321) e também p. 235 (tr.fr., p. 187).

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revelado na paidéia platônica, que é tanto a impressão de um caractere quanto a

orientação recebida de um modelo.

Em Roma, a oposição entre verdadeiro e falso torna-se oposição entre justo e

injusto, na qual vem à luz de um modo até então inédito o fundo essencialmente

normativo da determinação da verdade como adequação e justeza. Uma tal

articulação será central para o pensamento moderno, na medida em que ela o destina

a conceber o ser no horizonte de uma compreensão essencialmente impositiva,

vinculando de uma vez por todas a noção de verdade à de acordo entre o

conhecimento e o que é conhecido, mas tornando-a de agora em diante indissociável

da idéia de justificação, de uma justificação em razão, que é a medida e a garantia

humanamente estabelecidas para a verdade do ente. A condição de possibilidade da

instauração desse horizonte impositivo ou normativo é a experiência romana do

imperium. E, junto com o verdadeiro, é também naturalmente o “falso”, isto é, tudo o

que integra a esfera da não-correção e da inadequação, que deve ser radicalmente

transformado.

A verdade imperial

No Parmênides, Heidegger afirma diversas vezes que o verdadeiro

acontecimento (das eigentliche Ereignis) da história é a mudança na essência da

verdade288. Mas a mudança de que se trata agora é mais precisamente uma tradução: a

tradução historicamente operada no mundo romano da alétheia grega pela veritas

latina. O que essa tradução produz é evidentemente muito mais do que a simples

substituição de um termo por outro. Nesse campo, não se trata de tradução literal e,

sim, de transposição literal. A tradução e interpretação da alétheia por veritas

significa um deslocamento do domínio de experiência da verdade e do ser

inicialmente aberto pelos gregos. A mudança que se produz, na transposição

(Übersetzen) entre dois domínios de experiência, o grego e o romano, é mais

precisamente uma passagem de mundos. É essa passagem que a tradução da verdade

como veritas faz chegar até a linguagem: segundo Heidegger, ela é a entrada “no 288 Cf. HEIDEGGER 1942/43, p. 62 (tr.am., p. 42).

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domínio de uma verdade transformada” (in den Bereich einer gewandelten

Wahrheit)”.289

Quanto à transposição do mundo grego à romanidade, se o seu acontecimento

se inicia com um assalto da latinidade no domínio greco-romano da história, ele

destina ao mesmo tempo à “moderna visão do mundo grego através de olhos

romanos”290. A idéia de um assalto não é aqui figura de linguagem. Heidegger declara

que o processo de latinização do grego, no qual a tradução da alétheia por veritas tem

lugar e toma forma, decide-se a partir de uma noção estranha à experiência filosófica

e política dos gregos, a noção de comando (Befehl). A interpretação do pensamento e

da língua gregos pelo helenismo tardio opera uma retomada que literalmente faz cair

por terra a experiência anterior e inicial. À tradução da alétheia por veritas

corresponde a tradução de pseudos por “falsum” e o que ocorre aqui é que o pseudos

grego abandona o sentido de ocultação e dissimulação, de encobrimento e de disfarce,

que o mantinha vinculado à alétheia como abertura e desocultamento. Agora “falso”

significa, a partir do vocábulo latino fallo – de fallere, cair –, um “fazer cair” (zum

Fall bringen) ou derrubar. Entre os romanos, diz Heidegger, fallere é o ato de levar à

ruína um inimigo. “A raíz da palavra latina falsum (fallo) é ‘cair’ [‘fallen’] e está

ligada ao grego sphállo, isto é, derrubar, trazer à ruína, derrotar, fazer vacilar”291. O

domínio de essência em que se desdobra o termo latino falsum, afirma Heidegger, não

é outro senão o do imperium, o do imperial. “Nós tomaremos essas palavras no seu

sentido estrito e original. Imperium significa comando.”292

É portanto na esfera do comando e da obediência, a sua contrapartida, que se

dá esse deslocamento decisivo, a quebra e a divisão de um mundo, a transição que

radicalmente o transforma. Nessa passagem, três momentos fundamentais podem ser

destacados, e eles dizem respeito, respectivamente, (1) à determinação romana do

domínio da verdade como “império”, (2) à relação de Roma com o culto de suas

divindades e (3) à instauração do direito romano293. Nós abordaremos cada um deles

289 Ibid., p. 18 (tr.am., p.12). 290 Ibid., p. 57 (tr.am., p. 39). 291 Ibid. 292 Ibid., p. 59 (tr.am., p. 40). 293 Esses três momentos aparecem, no texto heideggeriano, como aspectos inter-relacionados da “nova” determinação da essência da verdade como veritas. É Eliane Escoubas, num interessante artigo

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de modo a situar com mais precisão os termos dessa nova mutação analisada no curso

de 1942-43. Segundo Heidegger, ela destina o Ocidente a pensar e a dizer a verdade

unicamente em termos romanos.

O copertencimento da noção de comando ao domínio de experiência do

imperium, isto é, segundo Heidegger, ao que é essencial e historialmente romanum,

revela todo o seu alcance já na própria palavra “império”. Imperare, im-parare, diz

Heidegger, significa instalar, tomar medidas, e isso no sentido de prae-cipere, dispôr

e ocupar de antemão, dispôr de algo no sentido de tomar posse e de ocupá-lo: “tomar

posse do território ocupado e nele reinar”294. Imperium é o território (Gebiet) fundado

em ordens ou decretos (Gebot), no qual os outros são obedientes (botmäsig)”295. Para

Heidegger, o comando assim entendido é a base e a essência da dominação. Não se

trata de uma conseqüência dela, e certamente ainda menos de uma forma entre outras

de exercê-la, mas do princípio mesmo pelo qual a dominação se instaura, que

possibilita àquele que domina se elevar suficientemente, de modo a literalmente

supervisionar todas as coisas. No âmbito de experiência do imperial entendido como

comando, do imperare entendido como sendo fundamentalmente um commendare296,

todo domínio exige um situar-se a uma altura superior, um ocupar uma posição mais

alta. Aqui, afirma Heidegger, se inscreve o actus genuíno, porque o mais eficaz, de

uma ação imperial: olhar de cima, super-visionar, é a condição para que o domínio se

exerça de maneira integral. Para que ele se torne ao mesmo tempo constante, é

intitulado “Heidegger, la question romaine, la question impérial. Autour du ‘Tournant’”, quem os analisa separadamente, fazendo ver de maneira precisa as articulações existentes entre cada um deles ao longo da leitura que Heidegger faz do movimento de “latinização” do pensamento grego. Nós acompanharemos aqui a interpretação de Escoubas, sem entrar na questão, que guia a leitura da autora, sobre em que medida o Parmênides constitui um ‘texte-charnière’ para pensar a “virada” (Kehre) na filosofia de Heidegger. Cf. HEIDEGGER 1942/43, pp. 58-59 (tr.am., pp. 40-41) e ESCOUBAS 1988, pp. 173-188. 294 HEIDEGGER 1942/43, p. 59 (tr.am., p. 40). 295 Ibid. 296 Oscar Bloch e Walther von Wartburg, autores de um dicionário etimológico da língua francesa, afirmam: “O sentido clássico de commendare era ‘confiar, recomendar’. (...) Desde César, o latim commendare tem também o sentido de ‘dar uma ordem’, corrente então em francês desde os primeiros textos”. É possivelmente ao que Heidegger alude quando ele diz que, “na sua passagem pela língua francesa, ‘comandar’ (befehlen) torna-se commandieren, isto é, mais precisamente, o latim imperare, im-parare.” (Cf. HEIDEGGER 1942/43, p. 59, e a tradução dessa passagem dada por Éliane Escoubas em ESCOUBAS 1988, p. 186). De fato, o verbo francês emparer, hoje praticamente reduzido à sua forma pronominal, significa originalmente “fortificar”, donde, como atesta ainda o dicionário de Bloch e Wartburg, “o emprego moderno no sentido de “tornar-se mestre”. Cf. BLOCH e WARTBURG 2002, pp. 143, 219 et seq.

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necessário a manutenção dessa visada de sobrevôo, desse olhar que dirige e

inspeciona a partir de uma posição superior. Mas se o dominado é abatido, se ele é,

no sentido próprio, “posto abaixo”, isso não significa necessariamente que ele seja

destruído. Ao contrário, faz parte do domínio imperial que o outro vencido seja

reerguido, e que assim ele seja mantido nos limites bem fixados por aqueles que o

dominam. A sua posição, na comparação de Heidegger, seria como à do vale em

relação às montanhas que o circundam297.

Um deus que dá ordens

Um segundo aspecto determinante da latinização do grego vem à luz através

da consideração dos deuses romanos. Aqui também, trata-se de considerar o caráter

profundamente imperial da crença nascida do encontro entre o império romano e a

religião cristã. Mas Heidegger sublinha uma diferença no que concerne às proprias

divindades romanas: se os deuses da Grécia são deuses que acenam, que

essencialmente fazem sinais, os de Roma manifestam a sua presença em termos do

que a língua latina chama de numen, segundo Heidegger, em termos de um “fazer”

que se define como um “querer”. O numen298 latino traduz o gênio próprio a uma

divindade que se revela sob um traço por assim dizer “tutelar”. Nele se exprime um

movimento que é da ordem da vontade, vontade pela qual age e se manifesta a

potência e a majestade divinas. Com o cristianismo, em seguida, o deus se torna

aquele que é capaz de tudo criar, ele se transforma num deus que engenha e engendra,

e que o faz por meio de uma vontade infinitamente livre e espontânea. É nesse

sentido que, numa alusão ao Velho Testamento, Heidegger dirá que o deus da religião

judaico-cristã “é um Deus que comanda (ein befehlender Gott).”299 A potência do

deus da tradição judaico-cristã repousa nessa dimensão volitiva. O caráter imperativo

ou normativo desse deus se exprime em ordens e comandos.

297 HEIDEGGER 1942/43, pp. 60-65 (tr.am., pp. 41-45). 298 Originalmente, o substantivo latino nūmĕn significa “movimento da cabeça manifestando a vontade”, indicando consentimento. Cf. GAFFIOT 2001, p. 492. 299 Ibid., p. 58 (tr.am., p. 40).

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Comandar, prescrever ou dar ordens são ações que permanecem estranhas ao

modo de agir e habitar o mundo que é próprio aos deuses gregos. Os deuses gregos,

se eles são capazes de cohabitar o mundo ao lado dos homens e dos diversos outros

entes, se eles se dissimulam e muitas vezes se fazem deliberadamente confundir com

quaisquer outros entes, é porque eles integram essa abertura comum a todas as coisas

que os gregos chamam de alétheia, o não-encobrimento do ente. Eles revelam e

ocultam, encobrem e frequentemente enganam, mas de modo algum impõem a

verdade em termos de leis. Os deuses gregos, Heidegger afirma, simplesmente não

dão ordens.300

A transformação no conceito metafísico de verdade se precisa assim aos olhos

de Heidegger: sob a influência do império romano, “verum torna-se imediatamente

‘estar por cima’ (Obensein), a diretiva do que é reto; veritas é rectitudo,

‘correção’”301. A verdade entendida no sentido do verum latino torna-se a partir daí a

possibilidade de se manter de pé, ela se liga à idéia de uma manutenção de si, isto é,

de um manter-se reto, íntegro ou intacto, que é o oposto do falsum compreendido

como “cair”, como um se deixar tocar e assim oscilar, em suma, como queda e ruína.

É seguindo essa mesma diretiva que o mundo romano, encampando ulteriormente a

dogmática eclesiástica da fé cristã, contribui decisivamente para consolidar a

determinação da verdade como retidão, correção, e justeza. Uma referência explícita

a Lutero deixa claro o sentido da mudança que Heidegger vê acontecer no encontro

de Roma com o cristianismo:

Lutero evoca a questão sobre se e como o homem pode estar certo e seguro da salvação eterna, isto é, certo da ‘verdade’. Lutero pergunta como o homem poderia ser um ‘verdadeiro’ cristão, isto é, um homem justo, um homem feito para o que é justo, um homem justificado. A questão da veritas cristã torna-se, no sentido assim articulado, a questão da justitia e justificatio. Enquanto conceito da teologia medieval, justitia é rectitudo rationis et voluntatis – correção da razão e da vontade. (...) A doutrina da justificação, e precisamente como a questão da certeza da salvação, torna-se o centro da teologia evangélica.302

300 Cf. Ibid., p. 58 (tr.am., p. 40). 301 Ibid., p. 71 (tr.am., p. 48). 302 Ibid.

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O que Heidegger tem em vista ao identificar desse modo um tanto sumário o

mundo romano e a tradição judaico-cristã, é no fundo menos uma crítica ao

monoteísmo ou ao cristianismo do que a possibilidade de observar, no movimento de

romanização da cultura grega destinado a se expandir universalmente através da

crença no Deus cristão, a consolidação de uma forma de compreender a verdade que a

encerra desde então, e de maneira definitiva, num espaço inteiramente recoberto pelo

homem. A verdade torna-se essa instância última a que a razão humana não só pode

mas deve se adequar. Se já na filosofia de Platão todas essas características se

encontram “pré-formadas” – e Heidegger não hesitará em repetir ao longo do

Parmênides que “todo o pensamento do Ocidente, de Platão a Nietzsche, pensa em

termos dessa delimitação da essência da verdade como correção (Richtigkeit)” e que

uma tal delimitação “é o conceito metafísico de verdade”303 –, o deslocamento que

agora se produz diz respeito ao modo como a adequatio passa a ser experimentada, a

saber em termos de um “auto-ajustamento”. Auto-ajustar-se significa aqui o

movimento, operado pela ratio, pela razão humana, de ir atrás, de pôr-se ou

posicionar-se a si própria na direção do que é fiável, do que é certo e justo. A ratio

latina, lembra Heidegger, tem originalmente o sentido de um cálculo, de um contar a

partir de algo posto como certo, de algo que, sob quaisquer circunstâncias, pode ser

considerado válido e assim “justificado em razão”. Cícero emprega o mesmo termo,

por exemplo, ora no sentido de “justificação de uma ação considerada como

criminosa”, ora em termos do “argumento que justifica uma ação”, ora “para indicar o

porquê de uma coisa tal como ele é explicado por um homem, à diferença da causa,

entendida como “causa real”304. O deslocamento, portanto, consiste em que a essência

303 Ibid., p. 73 (tr.am., p. 50). 304 Cf. Ibid.: “Tomar algo como algo, diz-se em latin reor – o nome correspondente é ratio (...) A essência da verdade como veritas e rectitudo passa sob a ratio do homem.” Em O Princípio de razão (Der Satz vom Grund), Heidegger tece as seguintes considerações sobre a relação entre o substantivo ratio e o verbo reor: “Ratio se conecta ao verbo reor, cujo sentido diretor é: tomar por, considerar como. Aquilo pelo quê uma coisa é tomada é sub-entendido, suposto. Numa tal su-posição, o sobre-posto se ajusta em relação ao suposto. Ora, ‘ajustar uma coisa a uma outra’ é o sentido do nosso verbo contar, calcular (rechnen). ‘Contar com uma coisa’ significa: não perdê-la de vista e ajustar-se a ela. ‘Contar com uma coisa’ quer dizer: esperar por ela e ao mesmo tempo dispô-la como uma base sobre a qual se possa construir.” Cf. HEIDEGGER 1957, p. (tr.fr., pp. 217-218). Cf. também BLOCH e WARTBURG 2002, p. 531.

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da verdade como veritas e rectitudo passa a situar-se no interior e a depender

exclusivamente do domínio da ratio humana.

Se a ratio é, como nos lembra ainda Heidegger, facultas animi, uma faculdade

do espírito humano, na veritas entendida como adequação entre o intelecto e a coisa –

adaequatio intellectus ad rem –, a razão assimila a res, integra a si a coisa verdadeira.

“A verdade como rectitudo é uma qualidade da mente ou da alma interior ao

homem”305. Retidão e correção passam a consistir numa assimilação no sentido mais

próprio do termo, isto é, numa assimilação que desloca as coisas do mundo fazendo-

as “entrar” no interior do homem, seja esse interior denominado intelecto, razão,

alma, espírito ou mente. “A dominação dos romanos e sua transformação do

helenismo não se limitam de modo algum a instituições particulares do mundo grego

ou a certas atitudes e ‘modos de expressão’ da humanidade grega”306. Essa dominação

se dá, antes, como a inclusão da própria noção de dominação na esfera do que, para a

“humanidade grega”, é a verdade entendida como abertura e desvelamento do ente.

Mais decisiva do que o próprio império e sua expansão historicamente

constatável é, diz Heidegger, a dominação da veritas sobre a alétheia, a projeção da

primeira à frente da segunda e seu confinamento historial no interior da interpretação

da verdade em termos de rectitudo e justitia307. Sem a transformação do helenismo,

que corresponde à transformação imperial da verdade em asseguramento do domínio

do verdadeiro e segurança dessa dominação, a verdade não poderia ter se tornado esse

tipo de auto-ajustamento calculador que fornecerá à razão a sua figura determinante

no mundo moderno.

Que a verdade e a justiça... se façam

Estreitamente conectados a todas essas transformações e delas em boa medida

decorrentes estão a lei e o direito romanos. Eis o terceiro ponto destacado por

Heidegger. A experiência romana da verdade se mantém numa relação ao ente que é

inteiramente dominada pela idéia de jus, isto é, pela lei ou pela ordem. Essa palavra, 305 HEIDEGGER 1942/43, p. 73 (tr.am., p. 50). 306 Ibid., p. 62 (tr.am., p. 42). 307 Cf. Ibid., p. 79 (tr.am., p. 53).

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Heidegger sublinha, é ligada a jubeo, termo que marca, em latim, o desejo ou a

vontade de que uma coisa se faça. Jubere, como verbo, significa precisamente a ação

de ordenar, de comandar, de prescrever ou mandar fazer. À determinação romana da

verdade como comando pertencem, mais direta e visivelmente do que qualquer outro

elemento, a lei e o direito romanos. “A lei romana, jus – jubeo, eu comando – se

enraíza no mesmo domínio essencial do imperial: comando e obediência”308. Se o

direito romano se inscreve, junto com as leis que ele erige e faz valer, no mesmo

registro imperativo da verdade como comando, é porque ele reflete “o

comportamento básico dos romanos em relação aos entes, que é governado pela regra

do imperium”309.

No direito civil romano, cujas bases sustentam, ainda hoje, todos os direitos

ocidentais modernos, o comando é a base indispensável da dominação. Desde então, é

no domínio do direito, isto é, no âmbito previamente instaurado para a determinação

de tudo o que é correto e conforme à lei, que se diferencia o justum daquilo que não o

é. Possuir e estar no seu direito implica agir reta ou corretamente, e, inversamente,

aquele que age de modo incorreto, deixa de contar com o direito que inicialmente lhe

era assegurado. Se estar certo é o mesmo que estar conforme, isto é, adequado à lei,

“justo” é antes de tudo o comportamento de quem se adequa, de quem é conforme ao

que é prescrito e estabelecido pela lei. A verdade não tem nenhum outro estatuto

senão o de lei ou regra, o de norma e critério. A alétheia se vê assim inteiramente

arrancada da sua dimensão originária, a pura emergência dos entes, o aparecer das

coisas mesmas, imposto por nenhuma ordem humanamente prescrita e nesse sentido

inteiramente gratuito, para assumir uma dimensão definitivamente normativa. A

verdade romana encontra a concretização exemplar no funcionamento da lei, do

direito romano. E nenhuma lei, humana ou divina, pode eventualmente valer sem ter

sido de antemão instituída, isto é, firme e conscientemente estabelecida por uma

justitia – humana ou divina. A justiça requer um ou vários autores que a olhem de

cima, isto é, que velem pela sua garantia e que inspecionem o seu correto andamento.

Assim como o Deus judaico-cristão, que reina omnisciente nas alturas e impera por

308 Ibid., p. 65 (tr.am., p. 45). 309 Ibid. (tr.am., p. 44).

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sobre as leis por ele mesmo pré-estabelecidas, o jus gentium comanda, em Roma, o

grau de adequação e correção dos homens ao domínio de uma verdade por eles

mesmos validada e instaurada. No primeiro caso, diz Heidegger, reina o imperium do

sacerdotium, no segundo, o imperium civil. Através da civilização romana o imperial,

o pseudos torna-se o falso e o verdadeiro o não-falso. A partir de Roma, os dois

reinos normativos, seja na sua forma civil, seja na sua forma pontifical – “a forma do

curial da cúria do pontífice”310 –, se entrelaçam para fazer com que a verdade valha no

sentido do que impera. E é da essência do comando que, segundo Heidegger, ambos

esses reinos provêm.

* * *

É a partir do momento em que o verdadeiro passa a ser definido

exclusivamente como o oposto do falso, e em que este último é entendido como o que

é incapaz de manter-se reto ou de pé, que a essência da verdade, na sua forma

imperial, se estende às múltiplas acepções que Heidegger vê nela implicadas. Assim,

experimentada a partir da essência do comando, ela possibilita esse modo de habitar o

mundo e de se remeter às coisas e aos outros em que estar na verdade significa “ser

sólido, manter-se estável, ou seja, não cair (não falsum), permanecer acima, manter-se

a si mesmo, manter a cabeça levantada, ser o cabeça, comandar”.311 Dela resulta, ao

mesmo tempo, um manter-se reto e posicionar-se direito, isto é, corretamente. É

assim que, do domínio essencial do imperial, o verum, como contraposto ao falsum,

recebeu o sentido de direito estabelecido, de estabelecido em direito.”312 Do mundo

romano do verum e justum como o que se mantem firme, “de pé”, à determinação

moderna, cartesiana, da verdade como certum, a certeza e segurança do ente pelo

sujeito que o representa, o passo, segundo Heidegger, já está dado. Fixada a

configuração da verdade como adequatio, e arregimentado o domínio da ratio e do

310 Cf. Ibid., p. 67 (tr.am., p. 45). 311 Ibid., p. 69 (tr.am., p. 47). 312 Ibid.

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intellectus, humano ou divino, não será necessário muito esforço para que a certeza se

torne o critério que decide da justa relação com o real313.

A passagem da metafísica por Roma e o encontro de ambas com o

cristianismo têm um peso historial que vai muito além das influências ou das

heranças culturalmente deixadas pelas instituições dessa época. Como se sabe, a

leitura que Heidegger faz do mundo antigo, quer se trate da Grécia, de Roma ou do

Cristianismo, é resolutamente resistente à idéia de analisá-lo culturalmente, isto é, sob

o ponto de vista de suas obras e instituições sociais, religiosas, políticas ou artísticas,

e do valor que elas teriam legado ao mundo ocidental. A idéia de que essas

constituam, por exemplo, “‘saltos’ na evolução cultural da humanidade”314 está

inteiramente ausente da reflexão heideggeriana. Ao contrário – e essa é uma questão

que veremos ser levantada por Heidegger quando se tratará de pensar o que resta de

essencialmente “cristão” num mundo que os deuses há muito deixaram de habitar –, o

surgimento mesmo da noção de Cultura, a despeito do seu uso banalizado na época

contemporânea, é parte integrante dessa história que acabou por erigir o cultural em

figura-chave, em quadro ou cenário determinante para a compreensão que o homem

moderno fez e faz de si mesmo. Naturalmente, muito menos do que qualquer outro, a

cultura poderia valer como um fenômeno cultural entre muitos, marcando a evolução

ou o processo de formação da civilização ocidental. Ao contrário, a função de

destaque obtida pela interpretação da história em termos de “cultura” é em si mesma

um evento historialmente decisivo e constitutivo da “visão de mundo” moderna, ou, o

que quer dizer o mesmo, da modernidade como terreno em que a história se converte

em objeto das diferentes visões ou concepções de um sujeito. Em todo caso, a

transformação do mundo ocidental que advém com o Cristianismo, e cujas raízes

profundas se encontram nessa singular partilha historial entre o imperial e o curial

que nele se produz315, não parece poder ser avaliada em função do seu significado

313 Cf. HEIDEGGER 1936/46, II, p. 426 (tr.fr., p. 342): “... die Gewißheit über das gemäße Verhältnis zum Wirklichkeit entscheidet”. 314 NEMO 2004, p. 29. 315 Numa rápida passagem do Nietzsche II, Heidegger sugere que a síntese do dogma cristão e da metafísica greco-romana teria desencaminhado a tradição não apenas em relação às origens gregas do pensamento ocidental, mas também em relação à crença do Cristianismo primitivo. Infelizmente, a questão aí não é levada mais adiante. Cf. HEIDEGGER 1936/46, II, p. 427 (tr.fr., p. 339) e também BARASH 2003, p. 215.

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para a história da cultura. Para Heidegger, ela tira a sua força de um acontecimento

primeiro que é a mudança da verdade de alétheia em orthotes e homoiosis, e destas

em verum e veritas, as quais abrem a possibilidade da conversão do verdadeiro em

certum, quer se trate da certeza num além-mundo e na salvação da alma, ou da

certeza em um acesso pleno e integral ao mundo pela razão e pelo conhecimento.

Como vimos anteriormente, é porque o ser e a verdade se transformam que há

propriamente história. No Parmênides, encontramos essa passagem fundamental: “a

história (Geschichte), pensada essencialmente, isto é, pensada em termos do

fundamento da essência do próprio ser, é a transformação da essência da verdade”316.

Se essencialmente a história é “apenas isso”, como Heidegger logo em seguida faz

questão de acrescentar (envolvendo com aspas a palavra “nur”, apenas), é porque “o

ente histórico recebe o seu ser de uma tal transformação”317. Mas se esse “receber o

ser” não obedece a nenhum esquema de causação ou possibilitação a partir de

princípios primeiros – veremos isto com mais calma mais à frente –, não seria este

um modo de dizer que eles, os entes, nada são para além ou fora delas, as suas

transformações? Isto ao menos parece claro: as mudanças decidem o seu ritmo, os

deslocamentos e transposições ditam a sua marcha ao acontecimento do ser na

história da metafísica. Na travessia que conduz a metafísica do mundo grego ao

mundo romano-cristão, é a mudança na essência da verdade que mais uma vez

reordena o esquema, é ela que retraça o caminho em que os sentidos do ser, dos entes,

do homem, do pensamento, do deus vão ganhar novas formas, isto é, se reconfigurar.

“A modificação da presença (Anwesenheit) do ente presente (das Anwesende),

Heidegger afirma, não repousa sobre uma mudança nas visões dos filósofos”318. Não

se trata de mudanças de opinião ou de juízo, de seguidas alterações de pontos de

vista. As transformações, as “modificações da presença do ente presente” são o estofo

mesmo da história do ser. Lida nas entrelinhas, a Geschichtlichkeit heideggeriana não

poderia ter esse outro nome: “mutabilidade”?

316 HEIDEGGER 1942/43, p. 80 (tr.am., p. 54-55). 317 Cf. HEIDEGGER 1942/43, pp. 79-80 (tr.am., p. 54-55): “Das geschichtlich Seiende hat sein Sein aus solchem Wandel.” 318 Ibid.

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Operari, facere, agere: “o real incluído no procedimento do agir”

Se retornamos aos cursos sobre Nietzsche, podemos verificar que em 1941,

isto é, um ano antes do Parmênides, Heidegger já se referia à passagem da metafísica

por Roma como um evento sob diversos aspectos capital. Mas a ênfase nele colocada

será aí um pouco diferente, como o é também o caminho tomado para examiná-lo.

Por um lado, a romanidade é definida nos mesmos termos que vimos orientar o curso

de 1942-1943, a saber, como uma “fusão singular do imperial e do curial”, fusão em

cujo seio se prepara “a estrutura fundamental da experiência da realidade nos tempos

modernos”319. Mas é o fundo metafísico dessa experiência da realidade – o que aqui

significa mais precisamente: da determinação do ser como realidade, como realitas –

o que aqui passa a um primeiro plano. Eis o ponto: a determinação do ser como

realidade no sentido da actualitas latina, isto é, como realidade efetiva, como

efetividade (Wirklichkeit), é a figura que “se estende, segundo as suas épocas, desde o

império romano até os tempos modernos mais recentes”320. Heidegger permanece

insistindo, como veremos, no registro da transposição. Se actualitas é a tradução para

a energeia grega, ela opera contudo um deslocamento na compreensão filosófica que

os gregos possuem do termo ergon, transformando a acepção que lhe atribui

Aristóteles por exemplo, a saber, como presença realizada de um tode ti, do ente que

se oferece e tal como ele se oferece a cada vez, à noção de “obra” no sentido de um

operar, isto é, como o efeito de um ato, o resultado de um fazer. Essa transposição

realizada pela língua latina será consagrada em seguida pela filosofia escolástica.

Nos Beiträge zur Philosophie, no contexto de uma discussão acerca da relação

entre movimento e repouso no pensamento aristotélico, encontramos a formulação de

um “tardio mal-entendido não grego”.321 Esse mal-entendido, Heidegger o esclarece

melhor no texto do Nietzsche: ele concerne, entre outras coisas, à conversão

escolástico-cristã da energeia aristotélica em actualitas, que fornece ao ente como um

319 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 412 (tr.fr., p. 331). 320 Ibid. 321 Cf. HEIDEGGER 1936/38, p. 194 (tr.esp., p. 164).

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todo este “traço fundamental do qual poderá se apropriar a representação da crença

bíblica e cristã na criação, de modo a assegurar a sua justificação metafísica”322.

No segundo tomo do Nietzsche, ao longo da exposição dos motivos que

movem a apreensão metafísica da entidade, das diversas figuras que conferem à

história do ser a sua “coesão historial”, Heidegger retoma mais uma vez a relação

entre ousia, idéa e energeia nas filosofias de Platão e Aristóteles. O intuito aí é o de

mostrar como a partir delas se estabelece esta divisão, destinada a perdurar como a

estrutura de base de toda metafísica, entre essentia e existentia. Essentia responde

tardiamente, isto é, em língua latina, à questão ti estin: o que é um ente? Existentia

enuncia, a respeito de um ente, hoti estin, a saber, o fato de que ele é. Enquanto

“versão conceitual ulteriormente corrente na metafísica escolástica”323, a dupla

essentia (ho ti, o quê, quid, Was-sein, quididade, ) e existentia (hóti, que, quo, Daß-

sein, quodidade) traduz os dois modos fundamentais da presença dos entes, tais como

formuladas, no começo da filosofia grega, por Platão e Aristóteles. “Desde sempre a

metafísica distingue entre o que é um ente e o fato de que este ente é ou não é. A

linguagem escolástica da metafísica conhece essa distinção enquanto a de essentia e

existentia”324. Em formulações reiteradas não só ao longo deste texto, mas também de

uma série de outros, Heidegger mostra que, na história da metafísica, os dois modos

distintos do ser, a essentia-quididade e a existentia-quodidade, “assumem a função de

uma regra a cada vez diferente segundo a qual o ser se mantém na determinação da

entidade (Seiendheit)”325. Os dois modos distintos do ser, a quididade-idéa-essentia e

a quodidade-energeia-existentia, serão tomados como os signos distintivos da

metafísica.

Mas se o que está em jogo agora é pensar o alcance da mudança da energeia

grega em actualitas latina, mudança que sela de maneira definitiva o destino da

metafísica moderna e de toda a história da filosofia ocidental, de que modo a

“atualidade” da filosofia escolástica, ao traduzir energeia e ergon por actualitas e

actus, sobre-determina não apenas o significado lingüístico, mas o próprio domínio

322 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 414 (tr.fr., p. 333). 323 Ibid., p. 402 (tr.fr., p. 324). 324 Ibid., p. 400 (tr.fr., p. 322). 325 Ibid.

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de experiência em que esses termos vêm à luz, a ponto de torná-los irreconhecíveis e

inacessíveis à posteridade? Também, já que atualidade e realidade são traduções que

têm em conta a energeia, e se na relação que distingue (sem separar) essentia e

existentia como modos metafísicos insignes da presença, a energeia liga-se

historialmente à segunda, que destino é reservado ao conceito de existência uma vez

que ele é integrado à noção de “realidade”? À primeira questão, Heidegger parece

responder da seguinte maneira:

No início da metafísica o ente é enquanto ergon o que se presentifica na sua própria com-posição (das in seine Hergestelltheit Anwesende). Doravante, ergon torna-se o opus do operari, o factum do facere, o actus do agere. Ergon não é mais o que é deixado livre no aberto da presença (das ins Offene des Anwesens Freigelassene), mas o que é efetuado pela eficácia (im Wirken Gewirkte), realizado pelo fazer (im Tun Geleistete). A essência da “obra” não é mais a “obridade” (die Werkheit) no sentido do livre estar-presente no livre espaço, mas a “realidade” de um real efetivo, que domina por seu agir e que se vê incluído no procedimento do agir (in das Vorgehen des Wirkens).326

A insistência em expressões com uma conotação claramente “ativa” dá o tom

da mudança que se trata agora de referir. A compreensão pós-grega do que venha a

ser uma “obra” a surpreende como de antemão incluída numa dynamis específica,

num dinâmica em que o real permanentemente se efetua, em que a realidade

“trabalha”, é literalmente operante. Mas como ocorre essa passagem? Por onde opera

propriamente essa conversão do ser em actualitas, que mergulha a metafísica numa

interpretação ativa do ser? Ora, essa conversão, Heidegger é o primeiro a reconhecê-

lo, é preparada pela “metafísica inicial do ser”, isto é, pela metafísica grega que,

desde Platão, como afirmava o texto sobre a doutrina da verdade, compreende a idéa

como o que torna apto à presença e à constância, e que insere a essência no seio de

uma economia causal. Desde Platão, a figura da aitia, da causação e da possibilitação,

como que escorrega para dentro do ser. Sem dúvida, Heidegger ressalta, a causação

não tem aí o caráter do que age eficazmente, isto é, do causar que produz, que gera ou

provoca um efeito. Mesmo assim, a assimilação da noção de arché pela noção de

aitia, a sobre-determinação causal da origem que assedia o começo da metafísica, se

consolida suficientemente para que a segunda tome a frente da primeira. Heidegger o 326 Ibid., p. 412 (tr.fr., p. 331).

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precisa: “para que ela introduza a transformação do caráter da arché no da aitia” (die

Umbildung des arché-Charakters in den des aition einleitet)327. Logo, a assimilação da

arché e da aitia tornar-se-há evidente. E isto, Heidegger o reconhece, em parte já em

Aristóteles...

É verdade que a reserva heideggeriana com relação ao caráter “genético” do

“tornar apto a” expresso na aitia grega se aplica sobretudo a Aristóteles.328 Embora

não possamos ir mais fundo na leitura heideggeriana do motivo da gênese do

movimento (na dupla acepção do termo, isto é, como origem e devir) na filosofia do

Stagirita329, o fato é que, como lembra Reiner Schürmann num comentário

fundamental sobre “o paradigma cinético da origem” metafísica do conceito de

origem, “Heidegger ligará a fortuna do conceito de arché à constituição da metafísica

das causas”330. Numa passagem do artigo de 1946 sobre A Sentença de Anaximandro

(Der Spruch des Anaximander), Heidegger declara que, já em Aristóteles, o termo

physis abandonou a ampla significação do todo do ente que ecoava, de certo modo

ainda não decidida, no dizer dos pensadores pré-platônicos. “O modo do ente, no

sentido dos physei onta, é delimitado por Aristóteles no início das considerações

temáticas da Física, isto é, da ontologia dos physei onta, em relação aos techne

onta”.331 Já em Aristóteles uma ambigüidade se instala no seio dessa determinação

“temática”, determinação que inaugura, precisamente, a possibilidade de um conceito

da physis. Essa ambigüidade habita o coração da ontologia aristotélica na distinção

entre “entes físicos” e “entes poiéticos”. O que Heidegger parece compreender é que

embora a conversão da energeia em “ser em ato” só se consume a partir da

experiência tardia da verdade como principium e comando, a distinção entre physei e

techne onta seria como uma brecha para a entrada da arché grega na esfera de uma

327 Ibid., p. 414 (tr.fr., p. 332). 328 Essa reserva se exprime, por exemplo, numa das notas preparatórias a um curso sobre Schelling, de 1941, onde Heidegger escreve a propósito da noção de arché em Aristóteles: “A arché kineseos no sentido estrito – o que se tornará mais tarde a causa efficiens – permanece notavelmente indeterminada; para o pensamento grego, não está aí o essencial, como será o caso em seguida no pensamento cristão (criação) e no pensamento moderno (“técnica”).” Cf. HEIDEGGER 1936a, p. 221 (tr.fr., p. 313). 329 Ver a esse respeito HEIDEGGER 1939: Die Physis bei Aristoteles (tr.fr. de François Fédier: “Ce qu’est et comment se détermine la physis”). 330 Cf. SCHÜRMANN 1982, pp. 115-125 e HEIDEGGER 1957, p. 182 (tr.fr., p. 236). 331 HEIDEGGER 1946, p. 298 (tr.fr., p.390).

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causalidade puramente eficiente (Wirkendheit). Com a apropriação escolástica da

metafísica aristotélica, a arché passa a ser identificada a um primeiro e supremo Ente,

capaz de efetuar o próprio mundo e tudo o que nele existe. Esse agente, primum e

summun, não é outro senão Deus.

Heidegger cita São Tomás, ressaltando que a proposição Deus est summun

bonum não contém nenhuma caracterização moral, estando para além de um simples

juízo de valor. “O nome summun bonum é aqui a expressão mais pura para a

causalidade própria ao real puro, conforme ao seu efeito, que é o de produzir a

consistência de tudo o que é subsistente” 332. Ainda em Aristóteles, o ens ‘actu’ é

precisamente o ente no repouso, e não o ente “em ação”. Ele é o ente que, tendo

realizado o telos para o qual seu movimento originalmente é apropriado333, reúne-se

na sua perfeição, na plenitude e completude do modo de presença que lhe é próprio.

Mas no momento em que o “em ato” designa a atualização de um algo potencial, a

presença se vê ligada a esse supremo ente, agente primeiro, cujo caráter de actus

purus significa que o seu agir não conhece jamais o estado da possibilidade. Ergon

passa a designar o ente posto na existência por um outro ente, que jamais poderia não

ser, que é já e desde sempre, plena e constantemente realizado. E é a partir daí, nota

Heidegger, que a totalidade do ente recebe uma estrutura particular. Agora, “a

realidade do grão de poeira, dos vegetais, dos animais, dos homens, dos números”334,

na medida em que ela corresponde à eficiência do primeiro agente, passa a ser

determinada como a correspondência de um efeito, a cada vez causado, ao supremo

ente efetuante ou causador. O que ocorre nesse caso é que todas as coisas, tudo aquilo

que existe, pode agora ser visto como obra, como o produto de um sumo fazedor. “O

ente em suas diversas ordens é a criação do Deus criador (das Geschaffene des

Schöpfergottes).”335 Tudo o que é, é o efeito de uma causa criadora, todas as coisas

vêem-se abarcadas no processo de uma gênese ativa ou efetiva. Toda obra – coisas,

homens, céu e ar, casa, cadeira, plantas e animais –, e o mundo mesmo como sendo a

primeira delas, o lugar onde cada uma delas tem a existência que lhe convém, são

332 A referência é a Soma Teológica, I, Qu. I-23. Cf. HEIDEGGER 1936/46, II, p. (tr. fr., p 334). 333 “Ser-apropriado-para” é a tradução que Heidegger propõe para a dynamis aristotélica: “Dynamis bedeutet... die Eignung zu”. Cf. HEIDEGGER 1939, pp. 280-281 (tr.fr., pp. 546-547). 334 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 418 (tr.fr., p. 336). 335 Ibid., p. 320 (tr.fr., p. 256).

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agora vistos como o opus de um operar, o actus de um agir, o factum de um fazer e,

em última instância, como o objeto de um fabricar. Heidegger completa: “Uma vez o

ser transformado em actualitas (realidade), o ente é o real (das Wirkliche),

determinado por um agir eficaz no sentido de um fazer que causa, tira à conseqüência

(im Sinne des verursachenden Machens).”336 A partir daqui pode-se explicar a

realidade agente não apenas do criar divino, mas também – e é esse o aspecto

decisivo – do fazer humano. A partir daqui, todo ente presente, quer ele subsista por

si mesmo, quer ele dependa de um outro para vir à presença e nela subsistir, existe no

modo do plano e do projeto; “incluído”, diz Heidegger, num procedimento, num

processo.

À segunda questão que levantamos mais acima sobre o destino do conceito de

existência, a resposta parece agora presumível. Heidegger a enuncia num dos esboços

que integram os “Projetos para a história do ser enquanto metafísica”, inserido no

segundo volume do Nietzsche e que é, aliás, um dos melhores exemplos dos breves

inventários de que falávamos mais atrás. O título do esboço é “existência” (Existenz).

Uma das alíneas, a de número três, resume em quatro frases a história das

metamorfoses da energeia na sua travessia pela língua latina e na sua posterior

interpretação pela teologia escolástica:

A energeia se vê reinterpretada enquanto actualitas do actus. O agere enquanto facere, creare. A pura essência da actualitas é o actus purus enquanto a existentia do ens, à essentia do qual pertence a existentia (teologia medieval). É o realizar enquanto o efetuar do efetuado (das Leisten als Erwirken des Gewirkten) que caracteriza o actus, não o deixar vir à presença na não-ocultação (nicht das Anwesenlassen in der Unverborgenheit).337

Uma metafísica da manufatura?

Será essa história das transformações da energeia grega uma simples

prestação de contas lingüística, um recenseamento das diferentes interpretações de

um conceito da história dos problemas filosóficos? Ou o trajeto de metamorfoses que

acompanhamos até aqui com Heidegger sugere, em vez disso, que as transformações

336 Ibid., p. 414 (tr.fr., p. 333). 337 Ibid., p. 474 (tr.fr., p. 382).

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das categorias em questão mostram o curso de uma efetivação quase literal, o tomar

forma da própria linguagem e dos conceitos ao longo de seus deslocamentos e

transposições historiais? Se a segunda hipótese for a correta, a história da metafísica

pode então se revelar a nós como o movimento de um pôr em forma do ser e da

verdade que os converte, progressivamente, em coisa criada, causada, engendrada,

produzida. O que se veria aqui seria então o estabelecimento disto que Reiner

Schürmann descreveu, numa fórmula penetrante, como uma “metafísica da

manufatura”.

Detenhamos-nos por um momento na leitura que Schürmann faz desse

movimento, que ele observa seguindo a história dos deslocamentos metafísicos da

noção de “princípio”. Ao interpretar as transformações da arché grega, e

confrontando-se com a primazia adquirida pela explicação do movimento natural por

meio de categorias causais, Schürmann avança uma hipótese frente à qual o próprio

Heidegger, em determinados momentos, parece preferir manter certa reserva.

Segundo ele, se é possível dizer que, já em Aristóteles, as noções de arché e de telos

são dominadas por uma experiência precisa, “a do movimento e da mudança de que

nós somos o autor”338, é porque, antes de qualquer arqueologia ou teleologia, o que

decide a empresa metafísica da explicação do ser pela causalidade é a possibilidade

de apreender, no seu eidos (original ou final), o ente movente e mutante, e o próprio

movimento e a mutação que originariamente o afetam. O vir-a-ser é compreendido,

nesse caso, como a condução pela qual um eidos é levado a se tornar inteira e

duravelmente visível. Se na apropriação do pensamento grego pela tradição latina e

medieval, o mundo passa a ser o produto, o artefato, literalmente, de um Ente criador

de entes, a preponderância definitiva das noções de causa e princípio na filosofia e na

ciência modernas poderia nos levar a afirmar que “o núcleo da filosofia ocidental é

uma metafísica da manufatura, do manu facere, que traça no seu seio os

deslocamentos da idéia (...)”339. Na perspectiva de Schürmann, que vem apoiar

algumas hipóteses fundamentais do nosso trabalho, é a própria centralidade da noção

de eidos na tradição platônico-aristotélica – centralidade que não é outra senão a da

338 Ibid. 339 SCHÜRMANN 1982, p. 124.

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figura, a da possibilidade da fixação de um “rosto”, de uma fisionomia, da forma

acabada do ente – que conduz a metafísica, de Platão à modernidade, a articular o

conhecimento em torno da experiência da formação ou da composição do ente, na

atenção aos meandros de um processo de fazimento, às implicações de causa e efeito,

ao encadeamento dos meios e dos fins. Se essa preocupação só será definitivamente

assumida por uma visão “mecanicista” da natureza que é posterior ao Renascimento,

ela está presente, em germe pelo menos, desde a articulação fundamental da dupla

arché e telos em Aristóteles. Nas palavras de Schürmann, “pela dupla arché e telos, a

‘pro-dução’ deixa definitivamente de significar ‘adução no aberto’ e coincide desde

então com a ‘fabricação’, com a adução eidética.”340. O conhecimento “técnico” é,

desde Aristóteles, aquele que fixa, que põe a mão sobre um eidos.

O fato é que Heidegger não viu a coisa de maneira muito diferente. Nos

Beiträge zur Philosophie, encontramos parágrafos inteiros onde ele procura mostrar

que, se a compreensão grega da causalidade se diferencia da interpretação que dela

dará a teologia medieval e escolástica, uma versão “técnica” do conhecimento se

prepara desde os primórdios da filosofia no Ocidente, com Platão e Aristóteles. A

coesão historial que Heidegger diz atravessar a história da metafísica, e que o faz vir

e voltar continuamente do começo grego do pensamento ocidental aos seus

desdobramentos latinos – modernos ou medievais – pode de fato ser lida através do

legado, preparado ainda no âmbito da metafísica grega, de um tipo de relação com o

ente que se orienta a partir da “techne e seu círculo de referência” (der techne und

ihrem Hinblickskreis)341. É nesse contexto que Heidegger lançará mão do termo

“maquinação” (Machenschaft). Numa definição das mais sucintas, ele dirá que

maquinação é tudo o que diz respeito ao “domínio do fazer e da feitura”

(Machenschaft als Herrschaft des Machens und des Gemächtes)342.

* * *

340 Ibid. 341 HEIDEGGER 1936/38, p. 126 (tr.esp., p. 113). 342 Ibid., p. 131 (tr.esp., p. 117).

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Não é somente a época moderna, de fato a primeira a formular explicitamente

o princípio do verum factum, do verdadeiro como equivalendo ao feito, que se move

numa compreensão do ser regida pela “preponderância do factível e do que se faz”

(das Übergewicht in das Machbare und Sich-machende)343. Se o princípio

gnosiológico moderno, com sua insistência no caráter ativo do conhecer (na idéia de

que conhecer uma coisa implica a capacidade de fazê-la) consagrou o primado de

uma lida com as coisas inteiramente orientada por uma lógica da instrumentalidade, a

maquinação, não como um simples modo de proceder, nem como um tipo de

comportamento humano, mas como “denominação de uma determinada verdade do

ente” (einer bestimmten Wahrheit des Seienden)344, é uma forma de interpretar o ente

que o refere primariamente à techne. A própria idéia do “fazer-se por si mesma”

(Sich-von-selbst-machen) com a qual os gregos delimitaram o âmbito da physis seria

a interpretação desta última desde o horizonte da techne.345 Da noção de “que algo se

faz por si mesmo”, eis o que Heidegger nos sugere, não é possível subtender que

outros entes sejam também factíveis “para um proceder correspondente” (für ein

entsprechendes Vorgehen)?346 Subentendido ou não, é o que ele vê a caminho já na

fixação do conceito de physis por Platão e Aristóteles. Segundo Heidegger, “o que

pertence à techne, a mirada prévia que se familiariza com o eidos, o re-presentar e o

trazer diante de si o aspecto, justamente isto ocorre na physis”347 – só que por si

mesmo...

Se a noção de maquinação só atinge a sua máxima visibilidade no mundo

contemporâneo, numa época que se descobre inteiramente regida pelo imperativo da

fabricação, o fato é que Heidegger a verá prenunciada no campo da determinação

platônica do ser como idéa. No co-pertencimento entre eidos, idein e uma certa

dimensão da poiesis e da techne, o que se revela como que en passant é o registro de

uma relação privilegiada ao que se oferece como disponível, ao que é passível de ser

construído. Isto se verifica num esquema proposto no parágrafo 64 dos mesmos

Beiträge zur Philosophie, em que vemos lado a lado, articulados por traços de união,

343 Ibid., p. 126 (tr.esp., p. 113). 344 Ibid., p. 132 (tr.fr., p. 117). 345 Ibid. 346 Ibid., p. 336 (tr.esp., p. 272). 347 Ibid., p. 191 (tr.esp., p. 161).

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os termos ousia, techne, poiesis e idéa. O mundo contemporâneo, em que reinam

praticamente absolutas (após a ruína do absoluto) as tecno-ciências, é de certa forma

a herança – o destino, diria Heidegger – legada por essa articulação, por essa

associação latente, mas poderosa. A seguinte passagem do mesmo texto nos indica o

significado mais próprio a ser atribuído a esse destino e à sua preparação:

O que em Platão se afirma, sobretudo, como preeminência da entidade interpretada a partir da techne é agora tão intensificado e elevado à exclusividade, que foi criada a condição fundamental para uma época humana na qual necessariamente a “técnica” – a preeminência do maquinador (der Vorrang des Machenschaftlichen), dos critérios e do procedimento sobre o que entra nele e é nele afetado – assume o domínio. A evidência do ser (Die Selbstverständlichkeit des Seyns) e da verdade como certeza é agora sem limites.348

Se, desde Platão, libera-se o caminho para o surgimento da techne como

caráter fundamental do conhecimento, é porque a determinação do ser como eidos,

como idéa que se trata de conhecer, abre sobre esta um olhar prévio (Vorblick), uma

visada que se antecipa à coisa. É esse olhar de tipo inteligível que basta para fixar a

essência: é a ele que as coisas se mostram na sua plenitude formal ou figural.

Precisamente essa antecipação – “uma antecipação humana”349, Heidegger sublinha –

é o que se converte em critério na interpretação verdade.

E, no entanto, sabemos bem: a techne grega não é algo de simplesmente

técnico. Nela, procedimento não é método, e nem o proceder tem primazia sobre o

resultado do processo. Como lemos no Nietzsche: “Concebida no sentido grego, a

obra não é obra no sentido da produção de um fazer que se esforça, ela não é nem

resultado nem sucesso (ist das Werk nicht Werk im Sinne der Leistung eines

angestrengten Machens)”350. É que Heidegger vê de fato um abismo separando seja a

causalidade platônica (lida sobretudo a partir da Idéia do Bem), seja as quatro causas

aristotélicas (a cujos desdobramentos literalmente múltiplos ele nunca deixa de

348 Ibid., p. 336 (tr.esp., p. 272). 349 “... ein menschlicher Vorgriff (des Aussagens, der techne, der Gewissheit)...”. Ibid., p. 184 (tr.esp., p. 156). 350 Cf. HEIDEGGER 1936/46, II, p. 404 (tr.fr., p. 325). Heidegger trabalha aqui com o duplo sentido do adjetivo effĭcax, que se refere tanto à propriedade agente ou operante inerente a algo ou a alguém quanto à sua capacidade de produzir um efeito, de realizar com sucesso um fim previsto. Effectŏr, aliás, é utilizado comumente na prosa cristã para nomear o Deus-criador. Cf. BLOCH e WARTBURG 2002, pp. 253-254.

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retornar351) da noção de “ser causado” da tradição judaico-cristã. É somente nesta

última que a relação causa-efeito se faz totalmente dominante. Ao se embrenhar nas

trilhas do “maquinal” como horizonte próprio do pensar/agir metafísico, Heidegger

não invalida quaisquer diferenças e distâncias. A passagem a seguir, que não diz nada

de muito diferente do que vimos analisando até aqui, pode servir para esclarecer a

necessidade dessas “nuances”:

(...) através do pôr em jogo do pensamento judaico-cristão da criação e da correspondente representação de Deus, o ens se torna ens creatum. Ainda que se recuse uma interpretação grosseira da idéia de criação, permanece contudo essencial o ser causado do ente. A relação causa-efeito se faz totalmente dominante (Deus como causa sui). Isto é um distanciamento essencial da physis e ao mesmo tempo a transição (Übergang) para o surgir da maquinação como essência da entidade no pensamento moderno.352

Não há dúvida de que um momento decisivo na passagem da techne grega à

noção moderna de criação concerne à apropriação cristã do ente como criatura – foi

assim também com a noção de “obra” na interpretação latina da energeia, e

Heidegger sublinha: “quer se tome isto de modo crente ou secularizado”353. A

interpretação “cristã-bíblica” (christlich-biblische) do ente como criatura projeta

adiante a idéia do ente como derivado de um outro ente, do “ente como produtível por

um outro ente” (als Herstellbaren aus anderem Seienden)354, tornando-a desde então

cada vez mais evidente e inquestionável. A metafísica da causação e da efetuação de

algo por um “outro algo” opera assim a passagem à experiência moderna da

maquinação como “esquema da explicabilidade calculável geral”355.

Se há um aspecto que não parece deixar dúvidas no desdobramento comum do

cristianismo e da modernidade, ele concerne ao fundo metafísico que compartilham a

doutrina da criação e a perspectiva da efetividade. “Desde que o ser entrou

(eingegangen ist) na essência do efetuar, em cada ente – res, Ding, coisa – enquanto

efetuado, algo é disposto como um procedimento e um esforço (wie ein Vorgehen und

351 Ver também HEIDEGGER 1953, pp. 11-15 (tr.fr., pp. 12-17). 352 HEIDEGGER 1936/38, p. 126-127 (tr.esp., p. 113). 353 Ibid., p. 132 (tr.esp., p. 117). 354 Ibid. 355 Ibid., p. 132 (tr.esp., p. 118).

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eine Vorstrengung)”356. Ou nesta outra formulação, digamos, lapidar: “Com a

determinação do facere aparece ao mesmo tempo o caráter de produto do ser (der

Herstellungscharakter des Seins), no sentido em que o ser mesmo é feito e efetuado

por um ente (daß das Sein selbst von einem Seienden gemacht und gewirkt wird).”357

Mas o que dizer então do fato de que, em Descartes, ainda haja a intenção de

justificar a certeza como lumen naturale a partir do ente supremo como creatum do

creator?358 Para Heidegger, o fato de que Descartes, o filósofo moderno por

excelência, pai da racionalidade moderna e da exigência das idéias claras e distintas –

ele costuma lembrar a frase das Lições sobre a história da filosofia de Hegel, na qual

Descartes é louvado como aquele que fez a filosofia pisar pela primeira vez em terra

firme359 –, o fato de que Descartes tenha de “validar” a descoberta do cogito na figura

de Deus como substância infinita apenas confirma o esquema da identificação

moderna entre verum e certum, entre verdade e certeza, em que os princípios de todo

conhecimento verdadeiro passam a depender da garantia de uma medida indubitável e

inquestionável. Vista de uma tal perspectiva, a relação de dependência entre criador e

criatura é uma das formas de manutenção dessa garantia, e nesse sentido a criação

não é outra coisa senão a certeza de uma medida certa e segura sobre a qual repousa a

disponibilidade do mundo como o universo das criaturas em geral. A descoberta da

natureza na filosofia moderna, escreve Heidegger ainda nos Beiträge, é a

contrapartida, mas de modo algum a contraposição, ao domínio exercido pelo

“sobrenatural” nas épocas anteriores. Do mesmo modo, o humanismo moderno, cuja

lei Heidegger diz só entrar total e abertamente em vigor, como realidade irresistível e

conscientemente apreensível, no século XX, foi preparado de maneira mediata pelo

homem cristão, fixado sobre a certeza da salvação. “Que figura (Welche Gestalt)

assume mais tarde esse contexto?”360, Heidegger torna a perguntar. A resposta: Em

Kant, a teoria dos postulados. No idealismo alemão, o caráter absoluto do Eu e da

consciência. Ambos são “formas derivadas” (Nachformen), temperadas e 356 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 446 (tr.fr., p. 357). 357 Ibid., p. 449 (tr.fr., p. 359). 358 Cf. HEIDEGGER 1936/38, p. 337 (tr.esp., p. 272). 359 Cf. HEIDEGGER 1969, p. 85 (tr.fr., p. 418): “Com ele, diz Hegel, o pensamento atingiu pela primeira vez ‘ein fester Boden’, um solo firme. (...) Descartes na realidade abandona o solo. Ele o troca pela firmeza.” 360 Ibid., p. 337 (tr.esp., p. 272).

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aprofundadas no campo transcendental e pela transformação da subjetividade em

incondicionada, do curso cartesiano de pensamento.

*

* *

Para Heidegger, com efeito, “a figura (Gestalt) do ens como ens certum” é

uma primeira e decisiva conseqüência da interpretação do ente como criado. E é

nesse sentido que “o passo de Descartes” se oferece como a abertura de uma esfera

em que “a maquinação como verdade transformada (die Machenschaft als gewandelte

Wahrheit), a saber, como certeza, se põe na dominação”.361 Se é na modernidade que

a essência maquinadora se manifesta com uma força sem precedente, é porque o que

se verifica no pensamento da “mathesis” e na “mecânica” modernas é num primeiro

momento a aplicação do pressuposto da causação e da produção do ente em geral ao

domínio, agora restringido, da natureza. A inclusão do ser, dos entes, da verdade, do

pensamento, da essência humana como da divina no regime de uma calculabilidade

generalizada é o início da plena consolidação do movimento de “humanização do ser

e sua verdade” (Vormenschung des Seins und seiner Wahrheit)362, que Heidegger vê

carregar, desde o início, a forma como a filosofia contempla o ser e busca apreendê-lo

sobre o fundo da entidade. Essa “Vormenschung des Seins” – a antropomorfia

peculiar que se exerce secreta mas continuamente ao longo da história do Ocidente –

entra em jogo desde o momento em que se delineia a imagem do ser como fundo

estável, presença plena, apreensível de um modo ou de outro pela percepção ou pelo

conhecimento. Mas o antropomorfismo nesse caso incide não somente sobre a

imagem do ser e da verdade. Antes, é a própria figura humana, o homem

metafisicamente definido como ente entre outros, “o animal pensante, como fonte

simplesmente dada de paixões, instintos, metas e valorações, dotado de um caráter,

etc.”363, quem se encontra desde então enredado nessa lógica inclusivamente

361 Cf. Ibid., p. 132 (tr.esp., p. 118). 362 Ibid., p. 337 (tr.esp., p. 272). 363 Ibid., p. 491 (tr.esp., p. 387).

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antropomórfica e antropomorfizante que Heidegger chamou também de

“humanismo”.

Uma dobra sobre si: do apequenamento metafísico do mundo364

Daqui em diante, é possível mais ou menos presumir os últimos

desdobramentos de toda essa história. O real é agora, exclusivamente, produto e

objeto do representar humano. Mas é daqui em diante também que começa o estágio

mais demorado, o passo mais longo e refletido que executa a leitura heideggeriana da

metafísica. Longo, porque múltiplo e multifacetado, envolvendo muitos nomes e

conceitos da tradição do pensamento moderno: de Descartes a Nietzsche, passando

por Leibniz, Kant, Hegel e Schelling, mas se estendendo também às diversas

tentativas de inversão do hegelianismo, em comentários breves mas pontuais sobre

Marx, assim como às formas mais tardias da querela contemporânea envolvendo o

neo-kantismo, o historicismo, as filosofias da vida e as concepções de mundo,

Heidegger vai se embrenhar durante décadas numa “explicação”

(Auseinandersetzung) com a figura metafísica do sujeito moderno nos seus diferentes

estágios e desdobramentos historiais. Mas longo, nós dizíamos, sobretudo porque o

que está em causa nesse momento é nada menos do que a sorte do pensamento e do

mundo ocidentais, ou seja, na perspectiva heideggeriana, a história mesma do

Ocidente, de um extremo a outro de sua travessia. O ponto crítico é o do esgotamento

da metafísica, o do seu fechamento sobre si mesma, nessa espécie de dobra sobre si

que o pensamento metafísico finalmente realiza, na máxima realização de suas

possibilidades figurais, na culminação do esquecimento do ser que ela opera. O que

se decide aqui, como a sorte ou o destino do pensamento, é a sorte ou o destino do

ser, dos entes, do deus, da verdade, do homem – numa época em que a metafísica,

cumprindo a sua vocação inaugural, se vê pronta a gravar a sua marca em toda parte,

e a se refletir, através dela, em tudo aquilo que ela toca.

364 A fórmula “Die metaphysische Verkleinerung der ‘Welt’” encontra-se no fim dos Beiträge zur Philosophie, no parágrafo intitulado “Das Seiende und die Berechnung”, o ente e o cálculo. Cf. Heidegger 1936/38, p. 495 (tr.esp., p. 390).

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A certeza de que tudo pode ser explicado, esquadrinhado pelo conhecimento, a

pronta disponibilidade de todas as coisas a se tornar objeto para um sujeito, leva a

metafísica a uma espécie de auto-esvaziamento. Se a filosofia em seu começo concebeu

o ser como essa espécie de última instância de apelação que é o céu das idéias, ela

experimentará o seu esgotamento no momento em que desloca o ser para o domínio da

representação de um sujeito. A modernidade, que pode também ser lida a partir desse

processo de deslocamento, isto é, como uma espécie de “migração” da idéa grega para

dentro da estrutura perceptiva do sujeito, faz a verdade depender não apenas da

adequação a critérios estabelecidos pela razão, mas da própria atividade constituinte

que a razão humana passa a reivindicar como “obra sua”, como órgão, faculdade,

capacidade ou poder inerentes a sua estrutura cognitiva. Heidegger tenta mostrar – e

nós veremos mais à frente de que maneira ele o faz – que o trabalho de fixação e

circunscrição pelo conceito, assim como a tendência tipicamente moderna a borrar os

limites dessa fixação reconhecendo-os como pertencentes a “nós mesmos”, vai

conduzir a metafísica a perfazer integralmente a sua travessia, a completar o circuito de

deslocamentos e remanejamentos da forma inaugural de ver e fazer, de representar e re-

produzir o ser e os entes que a filosofia, desde o seu começo platônico, põe e repõe em

marcha. Nas voltas que ela realiza transformando a sua forma inicial, nos desvios

sucessivos em que se reconfiguram as diferentes figuras do mesmo, a metafísica acaba

por recobrir, sistematicamente diz Heidegger, todas as suas possibilidades. No fim, à

última das rubricas metafísicas de que se revestiu a subjetividade moderna – a vontade

– não lhe restou senão a possibilidade de se projetar como “fim” de si mesma, de se

oferecer ao seu próprio querer, de querer a si mesma. É nesse sentido que as filosofias

da vontade, desdobradas nas suas diversas configurações de Descartes a Nietzsche,

revelam o encerramento literal, a “descida” a si e o extremo insulamento do homem

moderno, fechado para toda possível dimensão de alteridade. Esse fechamento culmina

quando destina ao esquecimento os próprios entes: o eclipse do ente e a remissão de

todas as coisas à figura humana – a antropologia como “forma final” (letzte Gestalt)365

da metafísica, como o diz Heidegger textualmente – seriam o fruto da evidência e da

365 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 202 (tr.fr., p. 161).

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positividade com que os entes permanentemente se mostraram no horizonte do

pensamento ocidental.

No texto da conferência A Questão da técnica, Heidegger retoma as palavras

de Werner Heisenberg para falar dessa inevitável “aparência” (Anschein) que se

estende em toda parte nos dias de hoje, segundo a qual “tudo aquilo que encontramos

subsiste apenas na medida em que é um feito do homem” (insofern es ein Gemächte

des Menschen sei)366. Continuando a discussão com a paráfrase de uma conhecida

fórmula de Heisenberg, ele acrescenta logo em seguida: “parece-nos que em toda

parte o homem encontra apenas a si mesmo”367. Dizer que no mundo de hoje o

homem vê a sua própria imagem em toda parte – a idéia em si mesma não parece ter

soado tão desconcertante aos ouvidos do homem Heisenberg, embora ela resumisse,

para o cientista, as conseqüências perturbadoras das novas descobertas da física

contemporânea –, dizer, como o disse Heisenberg, que o homem projeta a sua própria

imagem em todos os domínios onde ele se move, isto parecia dar conta do nexo

profundo que liga, na perspectiva de Heidegger, a travessia historial do pensamento

ocidental à figura que o homem mesmo se auto-atribuiu no seu interior e ao longo

dela. Esse homem da metafísica, isto é, o homem compreendido metafisicamente

como animal dotado de razão e de vontade – esse misto perfeito de sensível e

inteligível, de razão e sensibilidade – é quem chega à modernidade sob a figura auto-

atribuída, e muitas vezes ainda exaltada, do inventor, do artífice de idéias, do criador

e mantenedor de valores. De modo sempre mais exclusivo, ele refere tudo a si

mesmo. Em toda parte, o homem encontra apenas a si mesmo.

Heidegger insistirá, sob diversos aspectos, na articulação moderna entre razão e

vontade, afirmando que a racionalidade que na época moderna reivindica a máxima

autoridade está por essência ligada a uma dimensão volitiva. É através de um retorno,

de um recuo reflexivo, que a razão passa a se auto-configurar como o fundo presente e

subsistente em si mesmo frente ao qual todas as coisas vêm se dispor. A articulação

impecavelmente traduzida na definição cartesiana do cogito como um me cogitare,

mostra que o refletir é sempre um se refletir, que o conhecer supõe sempre e

366 Cf. HEIDEGGER 1953, pp. 30-31 (tr.fr., p. 36). 367 Ibid.

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necessariamente um se conhecer – seja para estar ciente de seus limites, seja para

enunciar a ausência absoluta deles. Que no mundo de hoje o homem encontre apenas a

si mesmo, co-representando implicitamente a si mesmo em cada ente tornado objeto de

sua representação, isto tem a ver talvez com o fato de que, durante muito tempo, a

liberdade tenha sido pensada em função da medida da sua correspondência à vontade,

quando não mesmo como o seu correlato direto. E o fato de que a vontade (mesmo lá

onde suas leis deveriam responder a um dever inteiramente independente e autônomo)

tenha sido freqüentemente pensada sob o registro da causalidade, isto é, como função

do querer humano – “segundo a causalidade do ‘fazer’”368, na expressão sugestivamente

utilizada por Heidegger para definir o deus “eficiente” da tradição filosófica –,

corresponde perfeitamente à primazia do “técnico” na auto-interpretação do homem

moderno, à primazia do feito e do factível na interpretação do ser, dos entes, da verdade

e em primeiríssimo lugar, do deus, no curso da metafísica moderna.

A auto-referência, exercício praticado “em toda parte nos dias de hoje”, seria o

movimento incessante de oscilação entre a criação de novas idéias, a sua propagação na

esfera social ou cultural e a sua conexão à vida e suas necessidades e valores. Forma de

manifestação mais tardia do fundo maquinador do pensamento ocidental – da potência

articulada entre o “ver” e o “fazer” que sustenta a trajetória historial da metafísica –, o

referir-se a si mesmo do homem moderno encerra-o num horizonte em que finalmente

nada resiste ao humano, em que tudo se torna produto, criação, construção. Que de

nenhum outro lugar poderia emergir a figura de um mundo como o moderno, quase

exclusivamente reduzido à Cultura e aos objetos e valores por esta cultivados (e ditos

pertencerem a toda a humanidade), é o que tentaremos entrever daqui para a frente.

Para fazê-lo, acompanharemos o diagnóstico heideggeriano do mundo moderno ou,

mais precisamente, da imagem do mundo moderna, tema de um artigo escrito em 1938

que analisaremos mais de perto.

368 HEIDEGGER 1953, p. 28 (tr.fr., p. 33-34): “A essência da liberdade não está ordenada originalmente em função da vontade, ainda menos somente em função da vontade do querer humano.” Cf. Ibid., p. 30 (tr.fr., p. 35): “Deus, visto à luz da causalidade, pode decair ao posto de uma causa, da causa efficiens. Então, e mesmo no interior da teologia, ele se torna o Deus dos filósofos, a saber, daqueles que determinam o velado e o não-velado segundo a causalidade do fazer (die das Unverborgene und Verborgene nach der Kausalität des Machens bestimmen) (...)”.

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*

* *

Apenas para não perder o passo, retomemos a questão levantada por Catherine

Malabou em Le Change Heidegger, que veio nos conduzindo até aqui: a metafísica é

descrita por Heidegger como uma “forma” de ver e pensar o ser que, a despeito de sua

unidade profunda e da continuidade de suas estruturas essenciais, não cessa de se

modificar. A estrutura dupla e una da metafísica, ritmada por um modo de transposição

que reproduz a todo tempo, sob novas rubricas conceituais, dicotomias vigentes desde o

começo, é portanto a de uma forma que continuamente se transforma, se reformulando

ou reconfigurando ao longo de sua travessia. O que tentaremos ver mais à frente é

como o “outro pensamento” (andere Denken) se anuncia igualmente como uma

transformação (Verwandlung) no sentido mais próprio do termo, precisamente aquele

que vimos explorando desde a leitura do texto sobre Platão, a saber, como um trânsito

ou uma passagem (Übergang) a uma outra forma de pensar e ver. Antes disso, porém,

refaçamos o trajeto que conduz Heidegger a um momento crítico, ali onde, finalmente,

a metafísica começa a propriamente se ver ou se “auto-imaginar”. Aqui deve decidir-se

a posteridade daquela economia imagética à qual vimos Heidegger se referir quando ele

situava a metafísica no registro da forma e da idéia, do aspecto e da figura, do tipo e da

marca. Aqui se joga o futuro daquela decisão que, desde o início – mas de uma vez por

todas? –, convoca a filosofia a fixar uma cumplicidade pluri-secular entre essência-

idéia-aspecto-figura-tipo-marca-modelo-quadro, a qual constitui, ao mesmo tempo, o

conceito metafisicamente consagrado da forma e a forma mesma da metafísica. O

estágio final dessa série de configurações, dessas múltiplas constelações do ser, do ente,

da verdade, do homem e dos deuses que carregam a história do pensamento ocidental, é

o que deve nos ocupar no próximo capítulo. No outro extremo da metafísica, nos

depararemos com um mundo “feito imagem”. Um mundo que por um lado se vê

apanhado numa profusão de visões de mundo e que, por outro lado, é transformado em

objeto do fazer. Nos dois casos, o mundo é produto de uma fabricação ou modelagem

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virtualmente ilimitadas. Ele se tornou produto de uma poiesis que, como dirá Heidegger

nos Beiträge zur Philosophie, tem vocação à maquinação.

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44..

OO mmuunnddoo ffeeiittoo iimmaaggeemm “(...) que, para Platão, a entidade do ente se determine como eidos (aspecto, vista) [Aussehen, Anblick], eis a condição historial longínqua, reinando longamente numa velada mediação, para que o mundo tenha podido se tornar imagem.” 369 “Die Metaphysik ist kein Gemächte des Menschen.”370

Num ensaio de 1933 intitulado Experiência e pobreza, Walter Benjamin

lançou luz de maneira surpreendente sobre o estado de empobrecimento a que

chegara a experiência dos homens no mundo contemporâneo. “Pobres, eis o que nos

tornamos”, escrevia Benjamin numa das últimas linhas do texto. A penúria do século

XX, que Benjamin traduz luminosamente citando André Gide: “cada objeto que

quero possuir torna-se para mim opaco”371, não se reflete somente na redução

tipicamente moderna da esfera pública à vida privada, à fuga do mundo comum para

um individualismo crescente, como temos ainda o hábito de constatar. Tampouco a

“pobreza em experiência” descrita por Benjamin se limitava ao estado de entrega do

homem moderno à superabundância do novo, das novidades do presente, a sua plena

imersão na evolução técnica e social, no conforto conformista de uma vida reduzida à

busca do bem-estar. Benjamin, um autor cuja lucidez para apreender o presente

jamais passou ao largo de uma necessidade profunda de compreender o passado,

sequer precisou se defender da tentação da pura nostalgia. O traço mais marcante

dessa pobreza, a pobreza de um presente despojado da autoridade do tempo e de suas

histórias, viria à público, segundo ele, sobretudo na linguagem e nas obras de artistas

que, longe de voltar as costas para a indigência do mundo atual, “aspiram por um

369 HEIDEGGER 1938, p. 91. A tradução é nossa. 370 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 332. 371 BENJAMIN 1933, p. 217 (tr.fr., p. 369).

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ambiente no qual possam fazer valer a sua pobreza”372. O que torna esse homens

sensíveis à pobreza, diz Benjamin, é que eles “‘engoliram’ tudo isso, a ‘cultura’ e o

‘homem’, e estão enojados e cansados disso”373. Pois a pobreza não advém da falta de

um como do outro, mas antes do seu excesso, da incapacidade do homem moderno de

se referir a qualquer coisa de outro que não a sua cultura, da impossibilidade da

cultura moderna de exaltar qualquer outro valor que não a si mesma. A cultura teria

se tornado, definitivamente, o único e mais alto objeto de culto do homem moderno.

E os que ainda têm olhos para vê-lo são também os únicos capazes de constatar que

um dos germes da indigência espiritual da época reside nessa espécie de

deslumbramento consigo mesmo que não cessa de assediá-la. Benjamin vê na

assunção da pobreza pela arte um modo de resistir às investidas políticas de uma

civilização que, tendo transformado o passado em “herança cultural”, tornou-o

irreconhecível, estéril, inócuo. A tradição convertida em moeda de troca – “capital

cultural” é, com efeito, uma fórmula empregada sem quaisquer reservas no debate

pedagógico atual – tornou-se o material necessário à manutenção do homem na

cultura. Mas a pergunta capital que Benjamin dirige a seus contemporâneos é: “o que

vale todo o patrimônio cultural (das ganze Bildungsgut), se nós não nos ligamos a ele

por laços de experiência?”374

O assédio da interpretação “cultural” das coisas humanas – “das menschliche

Tun als Kultur” – é um tema que ocupa Heidegger na sua leitura das transformações

produzidas pelo advento dos tempos modernos.375 Ao analisar, por volta do final dos

anos trinta, alguns dos “fenômenos essenciais” (wesentlichen Erscheinungen) que

constituem a Neuzeit, ele dirá que um deles é sem dúvida a Cultura, tomada como “a

realização dos valores supremos através do cuidado (die Pflege) dos mais altos bens

do homem”376. Heidegger também constata um processo de radical esvaziamento da

experiência, embora o enfoque dado a essas análises seja diferente do de Benjamin.

Para Heidegger, a indigência da experiência que afeta o mundo contemporâneo tem a

372 Ibid., p. 218 (tr.fr., p. 371). 373 Ibid: “Sie haben das alles ‘gefressen’, die ‘Kultur’ und den ‘Menschen’ und sie sind übersatt daran geworden und müde.” 374 Ibid., p. 215 (tr.fr., p. 366). 375 HEIDEGGER 1938, p. 75-76 (tr.fr., p. 100). 376 Ibid.

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ver sobretudo com o fato de que ao longo desse grande empreendimento de

determinação do fundamento das coisas e do mundo que é a tradição ocidental, a

parte reservada ao mundo no chamado “jogo do mundo” teria sido progressivamente

esvaziada. O circuito de possibilidades exploradas pela tradição metafísica teria

procedido a uma espécie de absorção de tudo aquilo que o homem mesmo não é

dentro de um universo cada vez mais habitado por todo tipo de referências ao

humano. O que a era moderna (levando a termo a disposição inaugural da metafísica

a conformar as coisas a um fundo, a um “porquê”) teria finalmente concretizado é a

conversão de tudo aquilo que o homem encontra em torno de si mesmo em objeto de

suas próprias representações. Não muito distante da perspectiva de Benjamin,

Heidegger mostrará também que “na esfera das experiências do ente enquanto tal”

(im Umkreis der Erfahrungen des Seienden als solchen)377, a era moderna

transformará toda experiência (Erfahrung) em vivência (Erlebnis), em “experiência

vivida”.

É num texto de 1938, intitulado A Época das imagens do mundo (Die Zeit des

Weltbildes)378, que Heidegger se dedica a mostrar de que modo a época moderna abre

caminho para uma interpretação do mundo em que o mundo, justamente,

transformado em objeto de representação para um sujeito, mostra-se pela primeira

vez virtualmente reduzido a uma “imagem” (Bild). O processo fundamental dos

tempos modernos, ele dirá aí, “é a conquista do mundo enquanto imagem (die

Erorberung der Welt als Bild)”379. O pensar em termos de Weltbild pontua a

emergência de uma época sem nenhum precedente em toda a história do Ocidente,

uma época em que o homem toma para si, de maneira consciente e voluntária, a tarefa

de se figurar um mundo, isto é, de fazer do mundo nada menos que uma imagem sua.

O que significa aqui um tal “imaginar” e de que maneira a expressão “imagem do

mundo” descreve essa nova transformação na configuração do ser e da verdade,

anunciando a novidade dos tempos modernos – das Neue der Neuzeit –, é o que

devemos tentar compreender daqui para a frente.

377 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 390 (tr.fr., p. 312). 378 O texto, publicado ulteriormente em Holzwege, é a retomada de uma conferência feita em 1938 sob o título “Die Begründung des neuzeitlichen Weltbildes durch die Metaphysik” (“O fundamento da imagem moderna do mundo pela metafísica”). 379 HEIDEGGER 1938, p. 94 (tr.fr, p. 123).

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Para onde tudo retorna

É Descartes quem Heidegger tem primeiramente em mira quando ele pergunta

pela essência da metafísica dos tempos modernos. O ponto de partida não traz nada

de inédito, ao contrário, soa mesmo como um lugar comum. Em todo caso, é para

fugir de um outro ponto de vista comum na interpretação dos tempos modernos pela

história da filosofia – o qual responde à interpretação racionalista que o pensamento

moderno se auto atribuiu, vendo-se como um momento de emancipação, de conquista

de autonomia intelectual e política – que Heidegger parece insistir numa análise da

essência da modernidade partindo do modo específico de representar o ente e a

verdade que desde então começa a se produzir. A esse propósito, Heidegger diz que

pode-se até compreender o significado dos tempos modernos a partir da emancipação,

do fato de que o homem se libere dos laços que o ligam à Idade Média para encontrar

finalmente a sua própria liberdade, a sua maioridade intelectual, como dizia Kant.

Mas essa caracterização “justa” (richtige) não deixa de permanecer superficial.380 “O

ente é determinado pela primeira vez como objetividade da representação e a verdade

como certeza da representação na metafísica de Descartes.”381 Desde então, diz

Heidegger, a metafísica moderna toda ela, Nietzsche inclusive, se mantém no interior

dessa mesma interpretação do ente em seu ser, da verdade em sua adequação e

validade. No centro do problema está, mais uma vez, uma radical e decisiva

transformação. Junto com o ente e a verdade é, mais uma vez também, a própria

essência do homem que se transforma. “O decisivo, Heidegger afirma, não é que o

homem se tenha emancipado das antigas amarras para chegar a si mesmo”. Antes, “é

a própria essência humana que se transforma (sich wandelt) na medida em que o

homem se torna sujeito”382.

O termo sob o qual se vê concentrada essa série de transformações que

inauguram a era moderna – transformação do ente em objeto de representação,

transformação da verdade em certeza, transformação do homem em sujeito – é 380 Ibid., p. 87 (tr.fr., pp. 114-115). 381 Ibid. (tr.fr., p. 114). 382 Ibid., p. 88 (tr.fr., p. 115).

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Vorstellung. Para Heidegger, é este o termo capaz de traduzir o mais claramente

possível o sentido contido na repraesentatio latina. Se a interpretação moderna do ser

do ente é uma Vorstellung na acepção mais própria da palavra, é porque ela consiste

no fato de que, “levado diante (vor) do homem na qualidade de objeto, o ente seja

situado (gestellt) no seu domínio de atribuição e disponibilidade, tornando-se ente

apenas desta maneira”383. O que faz época nesse caso, o que introduz uma mutação e

uma quebra decisivas na história da metafísica, é que aqui começa o processo de

transferência de todas as coisas para esse domínio fixado previamente pela razão que

as interpela, e que as situa à frente (gegen) de si mesma como objetos (Gegenständen)

diante de um sujeito.

Acerca do termo “sujeito”, porém, Heidegger insiste em mostrar que ele

mesmo é também, antes de qualquer coisa, o produto de uma mutação. O que ocorre

na era moderna, deflagrando o processo de disponibilização representativa do ente

como um todo, é uma conversão que circunscreve a noção de subjectum, de início

apenas um outro nome para a substância, dentro da esfera de um “eu” humano. O

termo subjectum, Heidegger o repete quase à exaustão, é a tradução latina (e que se

quer direta e literal) do grego hypokeímenon. Seu significado é “ser subjacente”,

aquilo que jaz na base, o que se encontra dado previamente como o fundamento sobre

o qual algo repousa. A “aplicação acentuada do ‘sujeito’” (betonten Ansetzung des

“Subjekts”)384, a precipitação do homem no “papel do sujeito único e propriamente

dito” (in die Rolle des eigentlichen und einzigen Subjekts), é iniciada por Descartes,

no limiar da época moderna – o que não significa que mesmo aí, no início da

metafísica moderna e ainda nas obras e no discurso de Descartes, subjectum não seja

um termo para dizer, simplesmente, o ente como tal. Em todo caso, a transferência do

sentido de subjectum para o de “sujeito humano”, e a conversão que restringe este

último ao “eu” – “de tal forma que subjetividade (Subjektivität) passe a equivaler a

egoidade (Ichheit)”385 – é algo que começa a se preparar no interior da filosofia

cartesiana. Privilegiando enquanto substância o intelecto humano, a coisa pensante,

Descartes vai instituir a razão e seu poder de raciocinar ou calcular como árbitro

383 Ibid., p. 90 (tr.fr., p. 118). 384 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 141 (tr.fr., p. 114). 385 Ibid., p. 142 (tr.fr., p. 115).

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exclusivo da verdade. Mesmo a essência e existência de Deus tornam-se, na

démarche cartesiana, objeto de uma demonstração absolutamente certa386.

Se o processo moderno de conquista do mundo se cumpre através da

transformação do próprio mundo em imagem, um dos princípios que o presidem é a

impugnação de toda verdade não suscetível de ser legitimada, certificada pela razão, e

de figurar perante a própria razão como verdade propriamente objetiva. Os critérios

do verdadeiro devem se articular única e explicitamente em torno da certeza: certeza

de si da res cogitans, certeza matemática da res extensa. Mas o que se revela, por um

lado, como uma exclusão, como a interdição ao conhecimento de todo um campo de

experiências humanas fundamentais, é também, por outro lado, o primeiro passo para

uma inclusão definitiva: por ela, o homem passa a recobrir antecipadamente todo o

ente, fixando-o diante de si e instalando-o no interior de um horizonte por ele

delimitado e por ele mesmo mantido.

Heidegger se refere ao acontecimento inaugural da metafísica moderna – a

posição do ego sum cartesiano – como sendo da ordem de um deslocamento.387 O

novo fundamento sobre o qual todas as coisas passam a se assentar não apenas

redimensiona a forma e o lugar como e onde elas se apresentam, ele as re-situa

inteiramente, reconduzindo-as, isto é, fazendo-as recuar para dentro do domínio

previamente constituído pela representação. O “pôr diante” – Vor-stellen – da

representação deve ser rigorosamente entendido como um Vor-sich-stellen, um “pôr

diante de si”. O “eu” transformado em sujeito num sentido proeminente “é aquilo em

direção a que, no interior do fundo subjacente à representação, tudo retorna” (alles

386 Cf. Ibid., p. 140 (tr.fr., p. 114). 387 Ibid., p. 141 (tr.fr., p. 115; tr.am., vol. 4, p. 96): “Warum verlegt sich dieses menschliches Subjekt in das “Ich” (...)?”. É interessante notar que o adjetivo verlegen, que correntemente quer dizer “embaraçado”, “constrangido”, significa literalmente (e etimologicamente) a incapacidade de se mover de alguém que permaneceu por muito tempo deitado ou acamado. Convém lembrar que “embaraço”, tradução corrente para o termo substantivado Verlegenheit, tem não somente o sentido de constrangimento, mas refere-se também ao “estado de alguém que se encontra interditado, bloqueado”. É se valendo dessa acepção que, em Ser e tempo (§ 6, p. 25), Heidegger declara que “a dialética é um autêntico embaraço filosófico” (eine echte philosophische Verlegenheit). Essa mesma polissemia poderia nos ajudar a pensar em que medida o deslocamento que opera a “entrada” do subjectum no domínio da subjetividade é no sentido mais próprio uma imobilização, isto é, o entrincheiramento ou o bloqueio do ente dentro da esfera de um sujeito que tende, por sua vez, a “mobilizar-se” cada vez mais. Cf. a esse respeito HEIDEGGER 1952, pp. 3-4.

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zurückgeht)388. E como ao ato de representar pertence intrinsecamente a referência

àquele que representa, o representar decide não somente da presença de todas as

coisas representadas, mas ele é também a decisão tomada quanto ao tipo de

determinação que o sujeito faz de si mesmo:

Aquilo sobre o que todas as coisas se encontram transpostas de volta (Das, worauf ... alles zurückverlegt wird) é a plena essência da representação, na medida em que a partir dessa essência se determinam a do ser e a da verdade, mas também a essência do homem enquanto o representador e o modo dessa medida (als der Vortellenden und die Art dieser Maßgabe).389

No texto sobre a época das visões do mundo, Heidegger precisa o sentido do

que ele entende por “plena essência da representação” (das volle Wesen der

Vorstellung selbst), mostrando que ela envolve um tipo de investida humana que é, ao

mesmo tempo, a certificação para si de um terreno e a disposição do ente dentro desse

terreno (um terreno que passa a abrigar os caminhos e critérios para a verdade do

ente). A partir de agora, “não é o ente presente que impera, mas o ataque é que

domina”. (Nicht das Anwesende waltet, sondern der Angriff herrscht).390

Re-presentar (Vor-stellen) significa aqui: trazer para diante de si (vor sich bringen), enquanto o que se mantém diante (als ein Entgegenstehendes), o ente presente (das Vorhandene), referi-lo a si, àquele que o representa (den Vortellenden), e impor-lhe que se reflita nessa relação a si enquanto região da qual advém toda medida.391

Weltbild e Weltanschauung: a antropologia em sua última forma

O fato de que Heidegger evite a interpretação dos tempos modernos como

emancipação e esclarecimento, de que ele recuse de saída identificar modernidade

com progresso, não o impede de dedicar algumas boas páginas a pensar o sentido

dessa “liberação” na qual se vê manifestamente engajada a época que se inicia com

Descartes. Por um lado, é impossível não ver que o projeto de encontrar por e para si

388 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 163 (tr.fr., p. 131). 389 Ibid., p. 162 (tr.fr., p. 131, modificada). 390 HEIDEGGER 1938, p. 108 (tr.fr., p. 141). 391 HEIDEGGER 1938, p. 91 (tr.fr., p. 119).

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mesmo o fundamento da verdade tem o sentido de um desobrigar-se da verdade

revelada, bíblica e cristã, da verdade da dogmática da Igreja. Mas esse lado, diz

Heidegger, o da liberação em relação à fé na revelação, é apenas o avesso de uma

liberdade mais fundamental, que não se limita a uma simples ruptura, a uma “irrupção

para fora de algo”.392 As mudanças e deslocamentos que assinalam a entrada da

metafísica nos tempos modernos têm como base “uma nova determinação da essência

da liberdade”, que tampouco se reduz à pura licença ou ao arbítrio – estes são,

Heidegger escreve, apenas “a face noturna da liberdade” (die Nachtseite der

Freiheit), e não o que ela tem de luminoso.393 O lado diurno ou positivo da liberdade

é precisamente o fato de que ela sempre reivindica algo de necessário como aquilo

que a conforma e sustenta (als das Bindende und Tragende).394 E a nova liberdade

“não somente reivindica de maneira geral algo de necessário, mas o reivindica de tal

modo que é o homem, a cada vez, que põe a partir de si mesmo esse algo de

necessário e a obrigação que dele decorre.”395 A nova liberdade deve ser pensada

como a inauguração de uma multiplicidade que abrange tudo aquilo que, no futuro,

poderá e será conscientemente posto pelo homem enquanto necessário e obrigatório.

É na aplicação desses múltiplos modos da nova liberdade, Heidegger chega a dizer,

que consiste a essência da história dos tempos modernos.396 Mas se a liberdade tem

um sentido inteiramente decisivo na estruturação da posição fundamental da

metafísica moderna, é porque ela responde aí a uma mutação (Wandel) que concerne

à essência do próprio homem que através dela se libera. A mutação consiste no fato

de que, colocando para si mesmo aquilo que é necessário assim como o modo da sua

obrigatoriedade, o homem passa a estar pronto para determinar por si mesmo a

própria essência do humano.397

A metafísica de Descartes seria então a primeira a se interrogar “dessa

maneira clara e decidida” (in dieser Weise klar und entschieden)398 sobre o caminho

através do qual o homem que representa decide por si mesmo, de antemão (e isto em 392 HEIDEGGER 1936/46, II, pp. 142-143 (tr.fr., p. 115-116). 393 Ibid., p. 143 (tr.fr., p. 116). 394 Ibid. 395 Ibid., p. 143 (tr.fr., p. 116). 396 Ibid., p. 144 (tr.fr., p. 116). 397 Cf. Ibid. 398 Cf. Ibid., p. 134 (tr.fr., p. 109).

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todos os sentidos), sobre “aquilo que pode legitimamente valer enquanto posto e

constante” (was als gestellt und ständig gelten kann und darf).399 O que vale assim é

então assegurado, garantido como certo e indubitável. Em relação ao sentido

especificamente moderno do representar, Heidegger afirmará então que ele é não

somente um trazer diante de si, mas também um “pôr em segurança” (sicherstellen).

Vê-se que o que está em obra aqui, e com uma eficácia até então inigualável, é a

aceleração do movimento de humanização do ser, dos entes, da verdade, do

pensamento, do deus – que, como buscamos caracterizar mais atrás, transporta a

metafísica em seu percurso e a mobiliza desde o seu instante inaugural. Tal

humanização rebate-se necessariamente sobre a própria essência humana: o advento

da autonomia do homem na metafísica moderna, que se faz ver mais diretamente

como superação dos limites que atavam a razão à ignorância e ao dogmatismo, são no

fundo uma vitória conquistada através de séculos de pensamento metafísico, de um

pensamento que é todo ele, como o notava Heidegger no artigo sobre Platão, regido

pela preocupação com o ser do homem e com a sua posição e estatuto no meio de

tudo aquilo que é.

No texto sobre a época das imagens do mundo, a sinonímia acionada pela

interpretação heideggeriana da história da metafísica ganha um novo componente: é o

termo “antropologia”, a princípio apenas o correlato grego para o termo humanismo,

que começa a se destacar. A metafísica será então considerada como uma

antropologia no sentido literal: ela é um modo de acesso às coisas que remete ao

logos humano qualquer possibilidade de determiná-las. Numa afirmação que segue de

perto a que descrevia o início do humanismo no texto sobre a doutrina platônica da

verdade, Heidegger escreve:

Este termo antropologia não significa de modo algum aqui uma exploração científica do homem. Ele tampouco quer aludir ao dogma teológico do homem criado, decaído e salvo. Ele quer designar essa interpretação filosófica do homem que explica e avalia a totalidade do ente a partir e na direção do homem.400

399 Ibid., p. 157 (tr.fr., p. 127). 400 HEIDEGGER 1938, p. 93 (tr.fr., p. 122).

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No advento das antropologias, cujo período de gestação coincide com o

processo pelo qual a razão e a vontade, de capacidades pelas quais os homens

transcendem às demais criaturas, impõem-se ativamente como faculdades

calculadoras e legisladoras, Heidegger dirá que “é Descartes quem festeja o seu

supremo triunfo401. Mas ele diz mais: a antropologia, como interpretação geral do

homem que tudo avalia e explica em função do próprio homem que (se) interpreta, é

também a transição da metafísica na sua configuração final (letzte Gestalt).402 E essa

configuração final tem um nome preciso: “visão ou concepção do mundo”

(Weltanschauung)403. Como o seu termo irmão “Weltbild”, a noção de

“Weltanschauung” traduz a transformação do mundo em imagem, a transferência de

todas as coisas para a órbita pré-constituída pelo homem enquanto sujeito que

representa. A idéia é sintetizada por Hannah Arendt numa fórmula luminosa do

Prólogo de A Condição humana: o processo que define os rumos da história moderna

é o “duplo vôo da Terra para o universo e do mundo para dentro do homem”.404 Essa

“era nova e desconhecida”, cujo advento Arendt descreveu pesquisando as origens da

alienação do mundo, destina o homem a não somente refletir sobre o mundo as suas

próprias visões, mas a reduzi-lo, literalmente, a uma visão sua. Reencontramos aqui o

topos característico da moderna representação da história. O evento fundador da

modernidade é a transformação do mundo em um cenário, em uma cena à qual

conscientemente se assiste.

Num sentido semelhante, Heidegger sustentará que as locuções “concepção do

mundo dos tempos modernos” e “concepção moderna do mundo” dizem

rigorosamente a mesma coisa.405 Nem entre os gregos nem entre os medievais algo

como uma visão de mundo jamais existiu. No que diz respeito ao pensamento grego,

ele nos lembra que não é por intermédio exclusivo do homem, isto é, pelo fato de que

o homem vê ou percebe as coisas, que estas acedem ao ser. Na perspectiva grega, “o

homem é quem é olhado pelo ente”, o que significa que ele é “compreendido, contido

401 Ibid., p. 102 (tr.fr., p. 130). 402 Aludimos já a essa passagem, que se encontra no Nietzsche II, no fim do capítulo anterior. Cf. HEIDEGGER 1936/46, II, p. 202 (tr.fr., p. 161). 403 HEIDEGGER 1936/46, II, p. (tr.fr., p. 161). 404 ARENDT 1958, p. 14. 405 Cf. Ibid., p. (tr.fr., p. 118).

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e assim conduzido no e pelo aberto do ente, tomado no ciclo de seus contrastes”406,

marcado pela sua multiplicidade, atravessado por suas diferenças. Na Idade Média,

por outro lado – reencontramos aqui o motivo que permeou boa parte do capítulo

precedente –, o ente é ens creatum, o que é criado pelo Criador, por um Deus pessoal

agindo enquanto causa suprema. Assim, tão inapropriado quanto falar de uma visão

do mundo na Grécia, tão impossível quanto a noção de uma Weltanschauung

medieval, tanto mais insensato seria falar de uma Weltanschauung católica. Seja

como for – Heidegger afirmara ainda nas primeiras páginas do texto que o

cristianismo é o principal responsável pela transformação de seu ideal de vida em

Weltanschauung, em “visão cristã do mundo” (christlichen Weltanschauung), e que é

portanto nele que se opera o desaparecimento dos deuses (Entgötterung), em outras

palavras, a transformação de toda referência ao deus em “vivência religiosa”

(religiöse Erleben)407 –, seja como for, e a despeito das razões que coordenam essa

partição entre o que seria o mundo na perspectiva católica e medieval e a visão do

mundo configurada a partir do cristianismo, Heidegger quer mostrar que não parece

nada aleatório o fato de que hoje se aplique a expressão “visão de mundo” para falar

de “mundos” para os quais jamais esteve em questão projetar-se através de uma

imagem. Muito mais do que anacronismos, tais aplicações são no fundo uma amostra

do processo através do qual, na representação histórica moderna, todas as épocas

(com tudo o que pode haver de incomensurável entre elas) são metodicamente

engolfadas sob a uniformidade das visões ou concepções de mundo. Desde que o

mundo se torna imagem e que o homem, na qualidade de sujeito, passa a se situar

frente a ele, não parece normal que quaisquer juízos ou apreciações, que qualquer

opinião ou posição tomada em relação a ele possa se exprimir em termos de uma

“imagem”, ser ilustrado numa “visão”?

Uma coisa, em todo caso, Heidegger deixa clara: a relação entre a profusão de

concepções do mundo que se disputam na modernidade e o enraizamento cada vez

mais exclusivo da interpretação do mundo na antropologia vão absolutamente de par.

E é no interior dessa mesma correlação que a “cultura” se impõe como um outro

406 Cf. Ibid., p. (tr.fr., p. 118-119). 407 Cf. Ibid., p. 76 (tr.fr., p. 100-101).

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elemento tornado praticamente incontornável no discurso da filosofia e da ciência

modernas. A retomada da “crítica da cultura” pelo Heidegger dos anos trinta tem o

sentido de mostrar que, se a noção de cultura remonta ao humanismo da Antiguidade

romana e cristã, é na modernidade que ela terá o seu alcance plenamente explorado. É

na era moderna, e isto precisamente através do olhar que a modernidade começa a

lançar sobre a sua própria situação histórica, que a cultura passa a exercer uma função

determinante no processo de constituição e formação do sujeito. Numa passagem do

Parmênides, Heidegger observa não sem uma certa ironia o quão curioso é o fato de

que mesmo os melhores filólogos clássicos ainda se movam pelas alamedas do

passado vendo nelas a “cultura” ou o “gênio” gregos408. O que para Heidegger parece

contudo inquestionável, é que o elemento cultural é tão estranho aos gregos quanto o

seria a natureza pensada modernamente, à maneira de um Rousseau, por exemplo.

Projetados no mundo grego, tanto a natureza quanto a cultura modernas, e mais ainda

a oposição entre elas, são o que os gregos chamariam de verdadeiros barbarismos. Eis

o que nos diz a passagem do curso de 1942/43:

Só houve ‘cultura’ a partir do começo da época moderna. Ela começa no instante em que veritas se torna certitudo, quando o homem põe a si mesmo para si mesmo (sich auf sich selbst stellt) e, através de seu próprio ‘cuidado’ (durch eigene ‘Pflege’) – cultura –, através de sua própria ‘criação’ (durch eigenes Schaffen), faz de si mesmo o criador (Schöpfer) (...).409

Maquinação e vivência

Se é somente na modernidade que a cultura se erige como o âmbito de

consolidação dos bens e dos valores humanos, e se é somente aí que a atenção às mais

altas obras da humanidade passa a mobilizar todo o mundo, é porque pertence à

natureza da civilização, desde que ela se vê e compreende como cultura, a tarefa de se

cultivar a si mesma, transformando esse cuidado em um verdadeiro projeto no seio de

uma administração dos problemas culturais.410 Como a ciência e a Estética – esta

408 Cf. HEIDEGGER 1942/43, p. 103 (tr.am., p. 70). A referência aqui implícita a Jacob Burkhardt se explicitará em outros momentos do texto. 409 Ibid. 410 Cf. HEIDEGGER 1938, p. 76 (tr.fr., p. 100).

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marcaria o processo de entrada da arte no horizonte da experiência vivida, a

transformação da arte em “expressão da vida humana” (Ausdruck des Lebens des

Menschen)411 –, a interpretação cultural dos aportes fundamentais da história da

humanidade, sejam eles materiais ou espirituais, é um signo da transformação da

própria experiência do passado. Absorvida dentro de uma lógica da “cultura geral”, a

história com seus documentos e monumentos torna-se uma massa de material

disponível, escrupulosamente ordenado para servir aos novos imperativos

pedagógicos das sociedades modernas. Com seus registros permanentemente

atualizados, o “espetáculo inabarcável” de que falava Nietzsche, irrompendo “sempre

novamente a partir de fontes inesgotáveis”412, parece ainda mais inabarcável e

inesgotável. É que o conhecimento histórico, nesse processo de ampliação, vai se

transformando: ele atravessa os limites da pura erudição para receber pouco a pouco o

estatuto de informação. Sua importância não por isso diminui, ao contrário, aumenta

consideravelmente. O passado importa na medida exata em que crescem a busca e a

necessidade da civilização de se informar acerca de si mesma.413

Nos Beiträge zur Philosophie, texto cuja elaboração, iniciada em 1936, se

conclui por volta do mesmo período em que a conferência sobre a época das imagens

do mundo é proferida, os mesmos termos que encontramos aqui – imagem do mundo,

visão ou concepção de mundo, experiência vivida – são trabalhados em uma série de

anotações e esboços. O objetivo aí é o de mostrar que “concepção da vida”

(Lebensanschauung) e “concepção do mundo” (Weltanschauung) são noções que em

última instância se equivalem e cujos nexos no mundo contemporâneo respondem a

uma origem metafisicamente comum. Na medida em que o homem se apreende cada

vez mais irrestritamente “na configuração de sua essência (in die Gestaltung seines

Wesens)”414, é como se se tornasse necessário e normal que toda coisa se converta

para ele em experiência vivida (Erlebnis). Na obra de 1936/38, porém, no contexto 411 Ibid., p. 75 (tr.fr., p. 100). 412 NIETZSCHE 1874, pp. 32-33. 413 Cf. HEIDEGGER 1936/46, II, pp. 386-387: “No intervalo, conforme às pretensões e às exigências da época, o exercício eficaz da historiografia (Historie) passou da ciência ao jornalismo. Este nome designa de maneira justa, e não pejorativa, o pôr em segurança e a instalação metafísica da quotidianidade (...) sob a forma da informação histórica, que trabalha seguramente, isto é, com o máximo de rapidez e de competência possíveis, e graças à qual cada um pode dispor da objetividade do dia a cada vez utilizável.” 414 Ibid., p. 94 (tr.fr., p. 123).

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dessa mesma discussão, é a correspondência entre os termos Machenschaft e

Erlebnis, “maquinação” e “vivência”, que vai ocupar uma posição central. Se ambos

os princípios ganham forma e sentido privilegiados no curso da metafísica moderna, é

porque o pertencimento recíproco da vivência e da maquinação – da interpretação

fabricadora do mundo, por um lado, com a conversão final do mundo em imagem

produzida por uma representação, e da interiorização da experiência, por outro lado,

com a sua transformação em vivência subjetiva – repousa numa cumplicidade

longínqua. É no solo da mutação da verdade em certeza, a partir da correlação

essencial entre o “eu penso” e o “eu vivo”, que ambas, maquinação e vivência, se

enraízam. Se é na modernidade que elas atingem o suposto “caráter de urgência”415 de

sua determinação, o fato é que Heidegger as verá como constituindo “a versão mais

originária” (die ürsprunglichere Fassung) da fórmula para a pergunta condutora do

pensar ocidental, isto é, para a questão do que seja o ente na sua entidade e da sua

relação com o pensar, metafisicamente entendido como um “con-ceber re-

presentativo” (vor-stellendes Be-greifen).416 No mesmo parágrafo em que tece essas

considerações, Heidegger afirma simplesmente que a maquinação é esse movimento

de despotencialização da entidade do ente que, embora largamente oculto, não deixa

por isso de ser “precoce” (frühe)417. Quando então, como na modernidade, ele vem a

público “em figuras determinadas” (in bestimmten Gestalten), ele sequer é

reconhecido ou concebido como tal. Pelo contrário, a sua potência se retrai por trás de

algo que parece o seu extremo contraste e que, no entanto, permanece “em tudo e

somente como o seu feito” (ganz und nur ihr Gemächte)418. E isto, diz Heidegger,

nada mais é do que a vivência, o processo através do qual o sujeito moderno remete a

si, “como centro de referência” (als die Bezugsmitte), o ente como o re-presentado

415 Heidegger se serve do adjetivo “Vordringliche”, “de urgência”, “em caráter de emergência”, no parágrafo 63 dos Beiträge, intitulado precisamente “Er-leben”. Trata-se de mostrar que somente o que é “vivenciado” (das Er-lebte) e “vivenciável” (das Er-lebbare), e as coisas passíveis de integrar o circuito do “vivido”, podem valer como realmente sendo (kann als “seiend” gelten). Somente aquilo que o homem é capaz de trazer e pôr diante de si para em seguida interiorizá-lo, transformá-lo em objeto de uma vivência, pode integrar o circuito da Erleben. Cf. HEIDEGGER 1936/38, p. 129 (tr.esp., p. 115) e também HEIDEGGER 1938, p. 93 (tr.fr., p. 121). 416 HEIDEGGER 1936/38, p. 128 (tr.esp., p. 115) 417 Cf. Ibid., p. 128 (tr.esp., p. 114). 418 Cf. Ibid.

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(Vor-gestelltes), e assim não cessa de, voluntariamente ou não, “incluí-lo na ‘vida’”

(in “das Leben” einbeziehen).”419

A experiência vivida, diz o parágrafo 61 dos Beiträge, dá desde sempre no

Ocidente a medida da justeza e da verdade. Se a tríade Erlebnis, Weltansschauung e

Machenschaft opera a transição da metafísica moderna à sua “última forma”, a

deflagração conjunta dos três termos não deixa de ser o coroamento de um legado que

domina o pensamento ocidental como um todo. Correspondendo à potência

informadora que desde o início a engaja num entrelaçamento entre o ver e o fazer –

entre a idéia e o modelo, entre o conhecimento e a techne, entre a teoria como visada

que antecipa o ente e a produção que o fixa em sua plena visibilidade –, eles são parte

dos recursos figurais em jogo desde o início da história da metafísica. O

“apequenamento metafísico do mundo” vai de par com um modo de acercar-se da

vida que Heidegger descreve como um “torvelinho calculável” (berechenbaren

Wirbel), como um “vazio girar em torno de si mesmo”.420 A referência ao ente como

tal deixa de ser em si mesma uma meta. “A referência como comportamento do

homem, lemos nos Beiträge zur Philosophie, refere-se não mais que a si mesma e à

planificabilidade de suas realizações” (der Bezug als Verhalten des Menschen bezieht

sich nur noch auf sich selbst und die Planmäßigkeit seines Vollzugs).421

Mas voltemos à análise da vida e do seu ingresso final no horizonte subjetivo

da vivência. Heidegger mostrará que se a ciência moderna é o espaço onde o laço

entre maquinação e vivência se tece com uma força incomparável, o que ela traz à

tona é, ao mesmo tempo, o afrouxamento da distinção clássica entre ciências da

natureza e ciências do espírito, entre Natur- e Geisteswissenschaften. Com a crescente

consolidação da essência técnico-maquinadora de todas as ciências, a “distinção

procedimental” (verfahrungsmäßige Unterschied) entre ciências da natureza e do

espírito tende a retroceder sempre mais.422 Por um lado, com a transformação do

mundo em imagem concebida e com a conseqüente redução do mundo às concepções

e teorias dele produzidas, o que ocorre é um esgarçamento dos limites classicamente

419 Ibid., p. 129 (tr.esp., p. 115). 420 HEIDEGGER 1936/38, p. 495 (tr.esp., p. 390). 421 Cf. Ibid. 422 Cf. HEIDEGGER 1936/38, p. 155 (tr.esp., p. 134).

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vigentes entre as diferentes representações científicas do mundo. Por outro lado, na

medida em que se exibe em todas as frentes, na experiência exterior como na interior,

no mundo da natureza como no da cultura, a vida se torna um fenômeno universal,

“experimentado” em toda parte e onde quer que se queira vê-la. O caso exemplar é o

das fronteiras entre natureza e história, entre os procedimentos característicos das

ciências naturais e os das ciências históricas, entre os modos de ordenação dos

domínios de objetos nos quais cada uma pretendeu se orientar. A projeção da noção

de vivência sobre todos os períodos da história equivale ao processo segundo o qual,

paralelamente à “historicização” da biologia ou da zoologia, por exemplo, a cultura

passa a ser vista em termos “morfológicos”, como o ambiente natural da evolução

humana. É porque “o homem tornou-se o centro de referência do ente enquanto tal”423

que a mudança no modo de apreender os entes que tem lugar na época moderna ao

mesmo tempo ganha e perde força no olhar que a ciência projeta sobre eles. Na

formulação de Heidegger, que tenta dar conta desta situação no que ela tem de “quase

absurdo à primeira vista”424, quanto melhor sucedida é a construção figural do mundo

operada pelas ciências modernas, tanto mais o que aí parece ser uma “teoria do

mundo” se transforma em “teoria do homem”.425 Dito de outro modo, quanto mais o

mundo é visto como um mundo produzido e ordenado pelo e para o conhecimento do

homem, menos o homem é capaz de ver nele o mundo, encontrando nele apenas os

objetos da sua própria representação e produção. Num tal mundo, de fato, para onde

quer que ele se volte, é como se o homem visse apenas ele mesmo. Co-presente nos

objetos que ele representa, co-agente em todo ato de representar, o sujeito moderno

nasce literalmente consciente do fato de que todo refletir é também um se refletir.426

423 HEIDEGGER 1938, p. 88 (tr.fr., p. 115): “Der Mensch wird zur Bezugsmitte des Seienden als solchen.” 424 Cf. Ibid., p. 93 (tr.fr., p. 121). 425 Quanto a este processo “quase absurdo à primeira vista” (im ersten Anschein fast widersinnigen), mas fundamental da história moderna, Heidegger usa as seguintes palavras para descrevê-lo: “Com efeito, quanto mais completamente o mundo parece disponível como mundo conquistado (Je umfassender... und durchgreifender die Welt als eroberte zur Verfügung steht), quanto mais objetivamente o objeto aparece, mais subjetivamente, isto é, mais peremptoriamente se eleva o sujeito, e mais irresistivelmente se transforma (wandelt sich) a consideração do mundo (die Welt-Betrachtung), a teoria do mundo (Welt-Lehre) numa teoria do homem (zu einer Lehre vom Menschen) – a Antropologia.” Cf. Ibid., p. 93 (tr.fr., p. 121, ligeiramente modificada). 426 Cf. HEIDEGGER 1936/46, II, p. 162 (tr.fr., p. 131): “(…) im cogitare das me cogitare liegt (…).” Cf. também a esse respeito o breve artigo de Françoise Dastur “La critique de la représentation chez

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Vontade e sistema

Vimos que a posição alcançada pela representação moderna envolve um

movimento de trazer diante de si (vor sich bringen) o ente, que se torna com isso

objeto para um sujeito. Na posição determinada pelo “ego cogito” na metafísica

cartesiana isto significa que o “ego” aí em jogo, isto é, o ente representador, é em

cada ato de representar não menos conhecido do que o próprio objeto representado. O

célebre enunciado de Descartes não diz outra coisa, segundo Heidegger: “ele quer

exprimir justamente o pertencimento essencial daquele que re-presenta à constituição

do re-presentar” (die wesenhafte Zugehörigkeit des Vor-stellenden zur Verfassung des

Vor-stellens).427 Um tal pertencimento, diz Heidegger ainda, é o que determina o

pensamento moderno como uma co-agitatio literal, envolvendo-o numa

simultaneidade que reúne as duas partes, representante e representado, constituinte e

constituído, na consciência, fazendo rebater continuamente a segunda sobre a

primeira. Do ponto de vista do pensamento reflexivo, para o qual o ente só é

propriamente presente na medida em que é posto diante, oposto ao homem, “ver”

significa conceber no sentido mais próprio do termo, pois ele retira do seu lugar,

remove por assim dizer a coisa vista do seu sítio original, para recolocá-la,

reapresentá-la sob o estatuto de objeto no domínio previamente aberto de aparição de

toda objetividade. A representação é “apreensão e concepção de...” (Ergreifen und

Begreifen von...)428, diz Heidegger. Ou seja, ela é literalmente esse movimento de

tomada, de pegada do ente, que o instala (stellt) de antemão (vor) dentro do espaço de

jogo do representar, realojando-o nessa nova posição que é a objetividade.

O fato é que, embora insista em vincular a consagração das Antropologias ao

triunfo moderno (cartesiano) da filosofia da representação, é seguindo atento os

passos de uma “agravação” (Aufblähung)429 da tendência antropológica que atravessa

a história da metafísica que Heidegger buscará retraçar o processo de transição de

Heidegger”, in Philosophie, n. 69, Paris, P. U. F, 2001, pp. 48-57. 427 Cf. HEIDEGGER 1936/46, II, p. 155 (tr.fr., p. 126). 428 Ibid. 429 Cf. HEIDEGGER 1941, p. 71.

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uma subjetividade egóica, ainda essencialmente “condicionada” (bedingte), a uma

subjetividade que se quer incondicional e incondicionada (unbedingte), afirmada sob

a figura do Absoluto. Essa passagem merece ser analisada com um cuidado especial.

Ao longo dela duas noções se cruzam e completam, marcando um virada na história

da metafísica, algo como a sua apoteose figural. A primeira delas é a vontade, que se

estende pela metafísica moderna numa multiplicidade de nomes. A segunda,

intimamente relacionada à primeira e a ela servindo como uma espécie de suporte ou

edifício, é o sistema. A este Heidegger dedicará uma série de passagens centrais dos

Beiträge, as quais tentaremos acompanhar mais de perto no que se segue.

Nos cursos sobre Nietzsche, Heidegger formula a idéia de que toda a

metafísica moderna, enquanto metafísica da representação, é ao mesmo tempo, e

constitutivamente, uma metafísica da vontade. No que diz respeito à história moderna

da metafísica, o termo “subjetividade” só se exprime em toda a sua plenitude a partir

do momento em que não somente se pensa a razão como faculdade representativa,

mas quando se atenta também para o modo como a noção de volição revelou-se um

traço fundamental do próprio ser. Desde a plena impulsão da metafísica dos tempos

modernos, o ser, diz Heidegger, é vontade. Mas se a vontade conserva uma essência

múltipla, manifestando-se sob formas diversas no curso da metafísica moderna, é

precisamente porque ela não se deixa determinar como simples faculdade, isto é,

como uma atividade exercida pela alma humana, um estado da alma. Heidegger

insiste sempre neste ponto: “Vontade enquanto traço fundamental da realidade.”430 A

plenitude de essência da vontade (die Wesensfülle des Willens) se determina em

termos ontológicos, e não puramente egóicos. Para o pensamento moderno, a vontade

é a própria estrutura do real. É enquanto traço essencial do aparecer que ela se

configura como: “idéa, re-praesentatio, tornar-manifesto, se-representar, se realizar e

se ultrapassar e, assim, ‘se possuir’ e, assim, ‘ser’.”431 É certo que a vontade é sempre

a “vontade da razão ou a vontade do espírito, a vontade do amor ou a vontade de

potência”432. Mas em cada uma dessas determinações está presente a referência

430 Ibid., p. 467 (tr.fr., p. 377). 431 Ibid., 460 (tr.fr., p. 370). 432 Ibid., p. 452 (tr.fr., p. 362).

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fundamental a uma estrutura que unifica o real em seu ser, a uma estrutura que forma

e organiza o real, sustentando-o na sua realidade efetiva.

A vontade enquanto figura predominante na modernidade conduz, por sua

própria essência, a uma metafísica do sistema. Segundo Heidegger, “desde que o ser

alcança a essência da vontade, ele é em si mesmo sistemático e (por si mesmo) um

sistema.”433 A princípio, ele explica, o sistema é concebido como a unidade ordinária

de um saber e aparece como o modelo da representação descritiva (Darstellung) de

uma totalidade cognoscível na sua estrutura conjunta.434 Mas porque o ser mesmo

enquanto realidade é vontade, e porque a vontade realiza a unidade do todo numa

representação que se sabe ela mesma unificante, por isso o sistema não é apenas o

esquema de uma ordenação, algo que um pensador teria na sua cabeça, mas antes a

própria realidade do real, estruturado na sua coerência mais íntima. Com a mutação

da essência da verdade em certeza e a prefiguração do ser como representatividade do

(se) representar (Vorgestelltheit), é a própria essência da subjetividade que põe a

exigência do sistema. Em outras palavras, a exigência de totalidade vai de par com o

movimento através do qual a subjetividade (e portanto também a vontade) passa a

conceber-se como incondicionada. Quando a verdade torna-se certeza e quando a

certeza se efetiva sob o traço fundamental do pôr em segurança, ela exige que a

estrutura do real seja exibida na absoluta totalidade de seus aspectos e relações. O

sistema se produz então na e como reflexão, uma reflexão que ajunta o todo em suas

partes e, organizando-as umas ao lado das outras, produz a sua unidade. Forma

especificamente moderna de reunião ou ajuntamento, o sistema marca uma concepção

da unidade que ressalta o “manter-se de pé” – consistere – do real diante da

consciência. O seu unir supõe que, por e para a consciência, a objetividade do objeto

do discurso tenha avançado, se acomodado no seu campo de visão. Por isso, diz

Heidegger, não é tanto o syn, isto é, a dimensão do ajuntamento, que constitui a

essência do sistema, mas antes o istemi, o pôr que faz erigir o ente na sua posição de

objeto. A “sistemática” (Systematik), Heidegger observará em seu curso de 1936

sobre Schelling, tem a sua disposição de conjunto, a ordenação (Ordnung) e o

433 Ibid., p. 453 (tr.fr., p. 363). 434 Cf. Ibid.

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ajuntamento (Fügung), como resultantes dessa colocação.435 “O sistema diz a entidade

do ente no modo da systasis”436.

O sistema é, por fim, o modo característico de um pensamento que se move

sempre segundo a sua própria lei e princípio, numa marcha capaz de reapropriar-se de

si mesma a cada etapa e em todos os momentos de sua progressão. Isto significa que,

para a metafísica que chegou conscientemente à forma sistemática, o verdadeiro é o

sistema na medida em que ele se auto-realiza, em que ele se produz e reúne a si

mesmo nessa produção. É aqui que começa a se esclarecer o profundo parentesco

historial entre a metafísica da vontade e o sistema. “O sistema, a systasis, é a estrutura

essencial da realidade do real (das wesenhafte Gefüge der Wirklichkeit des

Wirklichen) – mas, na verdade, somente a partir do momento em que a realidade

encontrou a sua essência enquanto vontade”.437 Em outras palavras, mas dizendo o

mesmo, Heidegger escreverá que ele “só é propriamente sistema enquanto sistema

absoluto”438.

Inevitável aqui a referência a essas grandes figuras do Idealismo alemão que

são Fichte, Schelling e Hegel. É neles que, praticamente ao mesmo tempo, se operam

as mais poderosas sínteses entre o pensamento e a realidade, entre o plano lógico e o

ontológico, que a filosofia moderna jamais produziu. Já com Fichte a Egoidade

pensada ontologicamente, e não como um “eu” meramente subjetivo, havia se

lançado rumo à sua determinação incondicional. Na sua Wissenschaftlehre, a

Doutrina da ciência (1794), texto que marcou toda uma geração de autores alemães

(e isto não só na filosofia)439, Fichte afirma que o Eu não pode ser instituído por meio

de uma abordagem analítica, construtiva, mas que ele só pode ser um ato primeiro

(Tathandlung), imediato, uma intuição primordial. Não se trata mais de procurar

aquilo que a razão pode a priori constituir para chegar a um conhecimento dos

435 Cf. HEIDEGGER 1936a, pp. 32-33 (tr.fr., p. 56). Cf. também HEIDEGGER 1942/43, p. 137 (tr.am., p. 92). 436 Cf. Ibid. 437 HEIDEGGER 1936/46, II, pp. 453-454 (tr.fr., p. 363). 438 Ibid., p. 460 (tr.fr., p. 371). 439 August e Friedrich Schlegel, os irmãos que deflagram, na sua forma e articulação essenciais, isto que veio a se chamar de primeiro romantismo ou Romantismo de Iena, estimavam de modo nada arbitrário que, ao lado da Revolução francesa (no plano político) e do romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe (no plano poético), a Doutrina da ciência de Fichte era o acontecimento anunciador de uma nova era, de uma verdadeira transformação no espírito da época.

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objetos do mundo, mas de mostrar em que sentido o mundo e tudo o que nele parece

simplesmente se opor ao Eu, são antes um produto deste, do poder ilimitado de criar

que a razão traz consigo e que se chama precisamente: Einbildungskraft, “imaginação

produtora”. Na sua atividade livre, a razão produz inconscientemente os seus próprios

objetos, sem que qualquer instância externa a limite, seja esta pensada como Deus ou

como coisa em si. Se há oposição ao Eu – e Fichte dirá que o há no âmbito da

consciência finita, pois esta não se sabe criadora e vê o mundo exterior, o Não-Eu,

sempre como obstáculo e limitação –, essa oposição é no entanto, como todo o resto,

produzida pelo próprio Eu. Com Schelling, a mesma posição absoluta de uma

subjetividade imediata e criadora será afirmada, mas Schelling recorrerá a uma

filosofia da natureza para fazer jus a esse mundo que a consciência fichteana

experimenta como exterior si, como uma “força cega” que a ela se opõe. A natureza

se revelará a Schelling como “o inconsciente da consciência humana”440, e a filosofia

deve ultrapassar a contradição entre uma inteligência “cega e inconsciente” e uma

outra, “livre e consciente”, mostrando a identidade entre mundo real e o ideal. “Nos

produtos da natureza, escreve Schelling, descobre-se uma mistura perfeita do ideal e

do real”441, e a atividade inconsciente revela-se como originalmente idêntica à

atividade consciente. Para o filósofo, trata-se então de se abrir para o mundo fora de

nós como a via que permite decifrar a história do espírito. Se já em Schelling pode-se

de fato pensar numa “odisséia do espírito”442, em que a natureza se mostra como “o

organismo visível de nosso entendimento”443, é porque a sua filosofia pretende

explodir o solipsismo fichteano, mostrando que a infinitude e o Absoluto não habitam

apenas a intuição que se produz em nós, mas também a atividade inconsciente que se

chama real, matéria ou natureza. Nas suas Idéias para uma filosofia da natureza, de

1797, Schelling mostrará então que se a tarefa da filosofia transcendental é a de

subordinar o real ao ideal – é o que precisamente teria feito Fichte –, a da filosofia da

440 Citado em LE BLANC, MARGANTIN, SCHEFER, p. 343. 441 Ibid. 442 A fórmula é de Vladimir Jankélévitch e se encontra no título de sua obra L'odyssée de la conscience dans la dernière philosophie de Schelling (Paris, F. Alcan, 1933 ). 443 SCHELLING 1797, p. 153.

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natureza é a de explicar o ideal a partir do real”444. E isto, ainda que as duas ciências

sejam no fundo uma única, tendo ambas a mesma necessidade no sistema do saber.

Hegel é quem explicitamente tomará para si a tarefa de ultrapassar tanto o

idealismo transcendental de Fichte quanto a filosofia da identidade de Schelling. E é

o que ele fará em 1801 no Differenzschrift, a obra já mencionada aqui sobre a

diferença entre os sistemas de ambos os filósofos.445 Mas é no Prefácio à

Fenomenologia do Espírito que Hegel criticará a noção do absoluto defendida por

Schelling, opondo ao Absoluto substancial da natureza schellingniana (ao qual

faltaria a mediação da reflexão) a concepção de um absoluto que é ao mesmo tempo

substância e sujeito, e ao qual se vê integrada a reflexão da consciência finita. Na

Fenomenologia do Espírito, é precisamente essa integração da diferença entre sujeito

e objeto, experimentada pela consciência finita, à identidade do sujeito e do objeto,

que é o absoluto, que será nomeada Aufhebung, subsunção ou abolição.

Em Hegel e seu conceito de experiência (Hegels Begriff der Erfahrung),

Heidegger procura mostrar de que modo a Fenomenologia do Espírito opera sobre

um duplo eixo, segundo o qual a experiência da consciência seria ao mesmo tempo

uma autêntica apreensão de si mesma pela própria existência e a completa

arregimentação metafísica da subjetividade. Haveria de início uma ambigüidade em

Hegel que, em sua reflexão acerca da origem da negatividade, faz esta aparecer ora

como o fundo mesmo de toda experiência, ora como uma estrutura fundamental da

consciência. É a estrutura da consciência que finalmente se impõe como instância

originária. Como Heidegger termina por mostrar,446 não é dos objetos propriamente

que a consciência faz a sua experiência, mas sim da origem mesma da objetividade,

ou seja, da negatividade como o seu próprio poder sintético. A Erfahrung da

consciência, a sua passagem e aprendizagem pelo mundo, revelar-se-á, segundo

Heidegger, como o percurso de conquista de si pela subjetividade. O si mesmo que 444 Ibid. 445 Cf. infra p. 30. 446 HEIDEGGER 1943, p. 142 (tr.fr., pp. 174-175). Ao contrário da leitura feita no curso do semestre de inverno de 1930/31 sobre a Fenomenologia do Espírito (Hegels Phänomenologie des Geistes, volume 32 das obras completas), Heidegger defende neste artigo de 1943 a existência de uma íntima conexão entre a fenomenologia e o sistema da lógica. O lugar da Lógica na Fenomenologia será justificado pelo fato de que é somente com ela que o aparecer a si mesmo do sujeito leva-o à incondicionalidade de sua essência. A figura do absoluto se identifica, segundo Heidegger, à subjetividade que atinge a sua plena consumação no elemento do saber (Wissen).

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“aprende” a sua facticidade no curso do itinerário fenomenológico é o mesmo que a

fabrica, que cria-se a si mesmo na medida em que existe. O que a Fenomenologia

realmente faz ver, sustenta Heidegger nesse texto, é que à medida que cumpre as

“direções de experiência” (Erfahrungsrichtungen) constitutivas dos diferentes

momentos do seu itinerário fenomenológico, a consciência absoluta hegeliana prepara

o fechamento moderno do circuito de possibilidades da metafísica, e isto ainda mais

radicalmente na medida em que o saber que se auto-media sabe-se a si mesmo como

acabamento. A “história da formação da consciência”447 relatada por Hegel em todos

os seus estágios constitutivos descreveria o resultado de uma “técnica ideal”448, que é

a técnica de auto-organização. Criando-se à medida que existe, e experimentando-se

como a sua própria criação, ela seria portanto a figura extrema da união entre

Maquinação e Vivência, a unidade do cogito e existência, do “eu penso” e do “eu

vivo”, da qual Heidegger dizia que ela dá sempre, no Ocidente, a medida da justeza e

da verdade.449 A união do eu penso e do eu sou, do pensamento como antecipação e

produção garantindo ao “existir” a sua estabilidade, articula a posição da certeza de si

no limiar da metafísica dos tempos modernos. A emergência do pensar como auto-

produção, e da existência como organização integral da experiência, alçam ao estatuto

incondicional a “essência maquinadora” (das machenschaftliche Wesen) da verdade

na metafísica.450

A inclusão total do ser na esfera do pensar, da experiência na estrutura da

consciência, “do mundo dentro do homem”, torna patente em seu mais alto grau o

movimento de auto-verificação e realização do sujeito, levando ao extremo uma

lógica da feitura e da manufatura que se confunde, como havíamos visto, com a

própria metafísica. A essa auto-inclusão do pensador em todo possível pensado, que é

a marca por excelência do pensamento especulativo, Heidegger vai dedicar algumas

das páginas mais contundentes da sua obra dos anos trinta e quarenta. A partir desses

questionamentos, vamos percebendo melhor em que sentido a novidade dos tempos

modernos se determina em termos disto que Heidegger nomeia o “caráter de

447 A expressão é de Françoise Dastur. Cf. DASTUR 1999a, p. 205. 448 A expressão é de Catherine Malabou. Cf. MALABOU 2003, p. 277. 449 Cf. HEIDEGGER 1952, p. 14: “A posição fundamental de Descartes expressamente retomada por Hegel é essa que quer que ens = ens certum.” 450 Cf. HEIDEGGER 1936/38, pp. 126-134 (tr.esp., pp. 113-119).

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imagem” (Bildcharakter) do mundo, tornado enfim incontornável. No texto sobre as

imagens do mundo, Heidegger escreve que é somente na medida em que se instala no

mundo de forma resoluta, isto é, de modo consciente e calculado, que o homem pode

reduzir o mundo a uma “cena” (Szene).451 Agora sim – e eis que as “dramatizações”,

as metáforas teatrais tão caras aos filósofos da história se revelam não como simples

subterfúgios da representação, mas como a representação ela mesma e no que ela tem

de essencial –, o jogo do mundo passa a ser decidido num palco. Heidegger o

confirma: é apenas quando são postos sobre essa cena que os entes podem receber o

“selo do ser” (das Siegel des Seins) 452. A confirmação nos leva de volta ao início de

toda a nossa discussão, ao registro “tipológico” da marca e da figura, da forma

(Gestalt) e da impressão (Prägung).

A fisionomia do novo homem

Surpreendente como foi e vem sendo ainda para muitos, Heidegger verá entre

Hegel e Nietzsche um elo e uma afinidade historial, afinidade que ele se propõe a

demonstrar em muitas páginas do seu Nietzsche. Mas se o pensamento de Nietzsche

será situado do ponto de vista de uma continuidade em relação à metafísica do

idealismo especulativo não é por razões puramente cronológicas. Heidegger não

cessará de afirmar, a partir dos anos trinta, que a filosofia de Nietzsche é uma

metafísica da subjetividade, da subjetividade auto-apreendida e levada a exercer-se de

modo integral e incondicional. Subjetividade incondicionada, negatividade, Vontade

de potência e antropomorfismo encontram-se, segundo ele, intimamente entrelaçados.

Mas com esta, que é apenas uma entre as muitas “teses” controvertidas sustentadas ao

longo dos anos consecutivos dedicados à leitura de Nietzsche, Heidegger não

supunha evidentemente uma total identificação entre a filosofia nietzscheana e os

sistemas do idealismo absoluto. Se Hegel concebe a subjetividade absoluta enquanto

querer consciente, isto é, como espírito, a partir da essência da razão existente em si e

por si mesma, para Nietzsche, a subjetividade é absoluta a partir do corpo, das suas

451 HEIDEGGER 1938, p. 92 (tr.fr., p. 120). 452 Ibid.

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impulsões e dos seus afetos. “Em cada uma dessas duas figuras (dieser beiden

Gestalten) da absoluta subjetividade, a essência do homem entra num papel a cada

vez diferente.”453 Mas ao inverter a forma metafísica do homem configurada

milenarmente, a do animal racional, a filosofia de Nietzsche não deixa de manter com

esta um encadeamento (einen Zusammenhang) e relações de essência historial

(wesensgeschichtlichen Bezüge).454 A negação do primado metafísico da razão não é a

sua total supressão. Ela não exclui simplesmente a ratio, mas inverte o seu estatuto

tradicional, pondo-a a serviço da animalitas. A inversão, dirá Heidegger, é da ordem

de uma transposição ou, mais precisamente, ela é a “recuperação” (der Rücknahme)

da marca que metafisicamente distingue a essência humana, a racionalidade,

transposta em animalidade.455 Esta última é no modo da Vontade de potência, isto é,

como “corpo corporante” (der leibende Leib), com suas impulsões próprias, que

impõem a todas as coisas o seu élan também impulsivo.456 E se a própria vontade é

também o fruto de uma transposição decisiva, é porque a “razão agente” (handelnde

Vernunft) da filosofia moderna, que age à medida que representa e só é autônoma à

medida que legisla (representa) racionalmente, transforma-se agora em pura auto-

legislação. “A vontade é, de agora em diante, pura auto-legislação”.457 Através de uma

“metamorfose em pensar que institui valores” (die Verwandlung zum wertesetzenden

Denken), a razão passa sob o comando da Vontade de potência.458 Com a inversão da

metafísica, cada uma das decisões fundamentais do pensamento inicial se transforma.

Mas essa transformação não impede que elas atinjam, de maneira tão ou mais

decisiva, a sua soberania.459 “No pensamento de Nietzsche, escreve ainda Heidegger,

todos os motivos do pensamento ocidental se reúnem num destino, mas todos

transmutados (verwandelt).”460

453 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 200 (tr.fr., p. 160). 454 Ibid., p. 201 (tr.fr., p. 161). 455 Cf. Ibid., p. 295 (tr.fr., p. 236). 456 Ibid. 457 Ibid., p. 301 (tr.fr., p. 241). 458 Ibid., p. 302 (tr.fr., p. 242). 459 HEIDEGGER 1936/46, I, p. 456 (tr.fr., p. 395). 460 Ibid.

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No que Heidegger nomeia como a sua “explicação” com Nietzsche –

Auseinandersetzung461, isto é, o debate ou mútua confrontação que, por mais de três

décadas, ocupará um lugar central em sua obra –, está em jogo a possibilidade de

decidir se o esgotamento das possibilidades essenciais da metafísica constituem

propriamente o fim desta, no sentido da sua cessação. Ao falar desse esgotamento,

Heidegger afirma que o que se dá aqui é a realização das “possibilidades extremas da

dominação universal e da tentativa levada a cabo pelo homem de decidir

exclusivamente sobre a sua própria essência (rein aus sich über sein Wesen zu

entscheiden)”462. Mas de que modo esse esgotamento se torna visível para nós? E no

que concerne a Nietzsche mais diretamente, em que ele consiste? A esse respeito,

Heidegger escreve que “é necessário que a última dessas possibilidades seja essa

forma da metafísica na qual a sua essência se vê invertida.”463 Adiantemos de uma

vez o nosso ponto: com Nietzsche, a forma da metafísica não apenas chega à sua

configuração final, com todos os seus velhos valores e crenças finalmente invertidos

ou lançados abaixo. Com Nietzsche, é a metafísica que pela primeira vez se vê e sabe

como forma, que se pensa, pela primeira vez, como gesto ou disposição – nos termos

de Nietzsche, como “necessidade” – de pôr em forma, de enformar e conformar. Com

Nietzsche, a metafísica se descobre, ela se exibe propriamente como esquema de pré-

formação, como a fixação (sempre necessária) de figuras destinadas a fisgar o real, a

capturá-lo, a retê-lo em seu curso. Mas não só “a metafísica”, a qual teria operado

esse esquema de fixação e formação de uma maneira bem específica, dirigindo-o à

instituição de valores tidos como os mais altos, por baixo dos quais se fixou e formou

justamente uma “lógica” ou uma moral da submissão e da fraqueza. O fato de que a

verdade chegue ao fim da sua travessia metafísica reduzida a “vapor”, a essa “espécie

461 Como lembra Michel Haar em La Fracture de l’histoire, a palavra Auseinandersetzung tem em alemão um sentido muito forte e significa “literalmente ‘posição fora um do outro’ (...)”. No que o próprio Heidegger procura dizer a respeito da sua Auseinandersetzung com Nietzsche, a dimensão do conflito (Streit) não parece descartada. Mas aquilo de que se trata essencialmente, diz ele, é uma “explicação mútua (Aus-einander- setzung) entre a potência do ente e a verdade do ser”. Os termos “debate”, “confronto”, “afrontamento”, ou mesmo “acerto de contas” (na tradução francesa de Pierre Klossowski), são os mais utilizados. Cf. HEIDEGGER 1936/46, II, p. 262 (tr.fr., p. 211) e também HAAR 1994, p. 190. 462 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 261 (tr.fr., p. 210). 463 Ibid., p. 201 (tr.fr., p. 161): “Die letzte dieser Möglichkeiten muß diejenige Form der Metaphysik sein, in der ihr Wesen umgekehrt wird.” O grifo é nosso.

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de erro”, a ilusão necessária, não é função unicamente de uma refutação – do

platonismo, do socratismo ou do cristianismo. Para Heidegger, que assume ser

“desconcertante” que no acabamento dos tempos modernos a verdade seja

determinada enquanto ilusão, a metafísica que com Nietzsche literalmente se

descobre, que deliberadamente se despe do manto de imagens secularmente tidas por

verdades, pontua, consagrando-o, o movimento de humanização do ente que sela a

travessia do pensar no Ocidente. O antropomorfismo de Nietzsche consuma, virando-

o às avessas, o processo de projeção “humanizante”, a inclusão ativa da figura

humana – como nous, techne, alma, criatura, mente, razão, espírito ou vontade – na

totalidade do ente. O que decide da sua radicalidade, e que nesse caso muda

radicalmente tudo, é o fato de que Nietzsche mesmo se antecipe a esse processo,

percorrendo-o, perscrutando-o em seu (inevitável, segundo ele) acontecer. É

reconhecendo o modo demasiado humano de contar com as coisas, de julgá-las ou

apreciá-las sempre segundo um ponto de vista, que Nietzsche concebe sem

subterfúgios a “antecipação” – o menschlicher Vorgriff de que falava Heidegger nos

Beiträge zur Philosophie – como um gesto constitutivo e, em última instância, natural

ao homem. “O mundo fictício do sujeito, da substância, da ‘razão’, etc., lemos num

fragmento póstumo, é necessário: habita-nos um poder que ordena, simplifica,

falsifica, separa artificialmente”. Dizer que a metafísica se completa com Nietzsche

significa portanto dizer que, com Nietzsche, o pensamento leva ao cume, ao extremo

da sua possibilidade, a potência de figuração que, desde Platão, pontua os seus

múltiplos desdobramentos. Mas, ao mesmo tempo, com Nietzsche, esfumam-se

definitivamente as fronteiras entre o mundo e a sua imagem, entre a verdade e a

ficção, entre o sujeito e a cena. Tudo se transforma em imagem e palco onde todos,

ou quase, são ao mesmo tempo criadores, atores e espectadores.

É num ensaio de 1940 intitulado “A metafísica de Nietzsche” que Heidegger

elabora algumas das análises mais instigantes a esse respeito. Nos esboços e

aforismos de Nietzsche acerca do Übermensch ele vai ler uma afirmação

absolutamente inédita da figura metafísica do homem – e isto, justamente, no seio da

negação nietzscheana da figura precedente do homem, do homem tal como ele existiu

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até então (der bisherigen Menschen).464 Heidegger faz questão de sublinhar que a

noção de Super-homem em nada tem a ver com uma glorificação de atos de violência

arbitrários. Na idéia deste homem que vai além do homem tradicional nada aponta

para uma exageração virtualmente desmedida das suas características precedentes. Ao

contrário, “o passo rumo ao Super-homem (der Schritt zum Übermenschen)

transforma (wandelt) essencialmente o homem tal como ele foi até aqui no estado de

um homem ‘invertido’” (“Umgekehrten”).465 Como transformação que inverte, como

essa reviravolta transformadora, a emergência do Super-homem faz aparecer nada

menos que a forma de uma nova humanidade466. O que se dá de inédito, o que ressoa

como verdadeiramente inaudito em toda a história do pensamento filosófico, é a

aparição do homem determinado em termos de “tipo” (Typus).467

Não se trata aqui da invenção de um “novo tipo” humano: bem antes, o

homem que inverteu o ponto de vista da racionalidade, o homem liberado do jugo

(fictício) da razão e sua vontade, é aquele finalmente decidido a se querer enquanto

tipo. Heidegger cita, no Parmênides, uma anotação do ano de 1888 na qual Nietzsche

afirma: “A ânsia por e o prazer na nuance (– a própria modernidade), no que não é

geral, vai contra a tendência que tira o seu prazer da apreensão do típico...”468. É para

selar a sua distância em relação ao individualismo do século XIX, ao apelo por um

pluralismo apoiado no valor do “único”, que Nietzsche afirma o seu próprio prazer

em apreender o que é típico. O homem determinado como tipo é o oposto do “eu”

singular, desse “homem escondido no mundo interior” que, como se sabe, Nietzsche

critica duramente.469 Segundo Heidegger, a possibilidade de pensar o homem como

tipo repousa sobre os traços essenciais de uma humanidade que se vê, pela primeira

vez de modo absolutamente claro, como única instância criadora de sentido e de

forma. O homem decidido como tipo é aquele que sabe que a forma de todas as

coisas, e portanto também a sua própria, não é nada além de uma “figuração”.

464 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 308 (tr.fr., p. 246). 465 Ibid. 466 Cf. HEIDEGGER 1956, p. 395 (tr.fr., p. 212). 467 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 308 (tr.fr., p. 246). 468 A nota se refere a W. M., 819. Cf. HEIDEGGER 1942/43, pp. 204-205 (tr.am., p. 137-138). 469 Cf. NIETZSCHE 1874, p. 62.

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Para precisar essa nova posição, Heidegger cita uma passagem do prólogo ao

livro II da Vontade de potência, onde Nietzsche diz: “Toda a beleza, toda a

sublimidade que nós atribuímos às coisas reais e imaginárias, eu quero reivindicá-las

como a propriedade e o produto do homem (als Eigentum und Erzeugnis des

Menschen): como a sua mais bela apologia.”470 O que Nietzsche reivindica para o

homem como sua propriedade, é um conhecimento de si mesmo como produtor,

como inventor de valores e de mundos. Esse homem que se entrega à arte insigne de

“recriar a vida”471 como a mais suprema de suas obras, seria o primeiro em condições

de se autorizar a construção da sua própria fisionomia. Ele é “o homem enquanto

poeta, pensador, deus, amor, potência”472, o homem que ao dotar todas as coisas de

uma real magnificência, agora sabe não “se diminuir e se sentir miserável”473, não

dissimular para si mesmo que foi ele quem criou tudo isso.

Heidegger dirá que no fundo da apreensão do homem enquanto “tipo” vigora

ainda, embora invertida, a perspectiva metafísica do sujeito. E é precisamente porque

essa subjetividade deixou para trás qualquer outro “fim”, qualquer ideal além dela

mesma, que ela pode agora instalar-se na sua dominação incondicionada.474 Porque a

subjetividade consumada interdita um “fora” de si mesma, nada que esteja para além

dela mesma, isto é, da sua própria esfera de potência, pode pretender “ser”. A

Vontade de potência quer a si própria, diz Heidegger inúmeras vezes. Ela é o puro

exercício da sua potência, seja para simplesmente conservá-la, seja, de modo mais

essencial, para intensificá-la. É nesse sentido que a subjetividade consumada na

Vontade de potência é a origem metafísica da necessidade do Super-homem. Como a

Vontade, cuja essência é superar-se em nome da conservação ou do aumento da sua

potência, a nova humanidade dispõe de “uma própria jurisdição que não tem

nenhuma instância acima de si (keine Instanz über sich hat)”475. Dentro do domínio

dessa jurisdição, do campo de competência que só a ela concerne, dá-se o que

470 Ibid., p. 305 (tr.fr., p. 244). A edição de Wille zur Macht à qual Heidegger se refere nos cursos e outros escritos que integram os dois volumes do seu Nietzsche são os volumes XV e XVI da chamada Grossoktavausgabe, publicados em 1910/1911 por Alfred Kröner em Leipzig. 471 Cf. Ibid., p. 310 (tr.fr., p. 248). [W.M., 849] 472 Ibid., p. 305 (tr.fr., p. 244). 473 Ibid. 474 Cf. HEIDEGGER 1942/43, pp. 204-205 (tr.am., pp. 138-139). 475 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 312 (tr.fr., p. 250).

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Heidegger chamará de uma “Selbstprägung”, que poderíamos tentar traduzir como

“caracterização de si mesmo”, “auto-figuração”. O homem determinado como marca

ou tipo (Prägung, Typus)476 é aquele que abandonou as suas formas precedentes, ou

melhor, que deixou para trás a uniformidade sob a qual ele próprio até então se

imaginou, para emergir como o resultado de uma livre atividade de criação: “dessa

figuração de si mesmo que o homem empreende com as suas próprias mãos (dieser

sich selbst in die Hand nehmenden Selbstprägung des Menschen... )”477. Mas essa

atividade está longe de ser sem risco, e isto precisamente porque a Vontade quer

continuamente se ultrapassar, projetando-se em novas formas, configurando novas

marcas e rubricas. É porque nenhuma verdadeira criação se resolve numa estabilidade

inerte, de uma vez por todas alcançada, que o exercício da Vontade – em cada uma de

suas formações – dispõe de uma “alteração controlável” (beherrschten Wechsel)”478.

Retomando os termos com que Nietzsche se refere ao “grande estilo”, ao estilo da

“arte clássica” como arte sumamente afirmativa, Heidegger lembra que a

simplicidade e a sobriedade, a clareza e a concentração são, ao contrário do arbítrio e

da gratuidade, elementos essenciais a essa “atividade criadora ‘magistral’”479 chamada

Vontade de potência. Na interpretação que ele propõe, “a grandeza do grande estilo”

(das Große des großen Stils) é fazer do “relativo”, isto é, do caráter necessariamente

transitório da Vontade em suas reformulações de si mesma, a energia mesma desse

movimento de “cunhagem”, de “impressão e “tipificação” que ela incessantemente

realiza.

“É da simplicidade própria à Vontade de potência que decorrem a univocidade (Eindeutigkeit), a polidez (Geschliffenheit) e a firmeza (Festigkeit) de todas as suas marcas e rubricas (aller seiner Prägungen und Schläge)480. É dela que resulta, é a ela que corresponde o imprimível (das Schlaghafte), o típico (das Typische).”481

476 Cf. HEIDEGGER 1942/43, p. 204 (tr.am., pp. 138): “Nietzsche vê a emergência de uma nova marca da humanidade (neue Prägung des Menschentums), caracterizada pelo típico.” 477 HEIDEGGER 1936/46, II, p. 308 (tr.fr., p. 247). 478 Ibid., p. 311 (tr.fr., p. 249). 479 Cf. HAAR 1994, p. 215. 480 A tradução para o português dos termos Prägungen e Schläge é de uma dificuldade considerável. O sentido corrente do verbo prägen é marcar, imprimir uma marca, enquanto o termo Schlag diz mais comumente “golpe, choque, batida”. O substantivo Prägung pode dizer ainda: cunho, impressão, traço, feição, modelo. 481 Ibid., p. 310 (tr.fr., p. 248).

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Em Zur Seinsfrage, o texto decisivo com que demos início a nossa discussão

sobre a interpretação heideggeriana da história, encontramos a seguinte pergunta, que

Heidegger dirige a Jünger: “De que maneira, no interior da metafísica moderna,

tornou-se necessário um pensamento que representa Zaratustra enquanto forma (das

Zarathoustra als Gestalt vorstellen)?”482 Ele mesmo busca formular uma resposta a

essa questão, dizendo mais ou menos o seguinte: com a representação da forma

humana em uma fisionomia particular, “a transcendência se modifica (sich

wandelt)”483, “a forma interna da metafísica se transforma (wandelt sich die innere

Form der Metaphysik)”484. Heidegger precisa melhor a coisa: O meta-físico da

metafísica – a transcendência – se modifica quando, no domínio das formas distintas

que ela recebe, aparece “a forma do ser humano como fonte da doação de sentido (die

Gestalt des Menschenwesens als Quelle der Sinngebung)”485. No momento em que o

“meta” da metafísica deixa de remeter a qualquer outra fonte ou dom, em que o

elemento “trans” da transcendência é reorientado para remeter única e

exclusivamente ao próprio homem, quando o homem passa a encontrar nele mesmo a

possibilidade de todo sentido – de si mesmo, dos entes, do mundo –, a estrutura da

metafísica se desestrutura, e a transcendência transforma-se em “rescendência”

(Reszendez)486. O fim da história da metafísica torna-se visível e pensável

precisamente a partir daí: é no momento em que a transcendência se rebate sobre si

mesma, em que ela volta violentamente a si, deixando o mundo ideal para integrar um

mundo em que tudo é produto do fazer humano, que a coesão da metafísica se desfaz.

A “rescendência” é assim, literalmente, a descida de volta do homem ao mundo. Mas

uma vez que o “mundo” é dissolvido no seu caráter de imagem, uma vez ele

integrado ao circuito fechado de auto-referência do humano, ela é ao mesmo tempo a

perda do mundo, o fechamento radical da possibilidade mesma dos seus sentidos. A

“queda” na rescendência seria, nesse caso, o abandono do homem à vertigem de um

mundo inteiramente factível e fabricável.

482 HEIDEGGER 1956, p. 399 (tr.fr., p. 216). 483 Ibid., p. 398 (tr.fr., p. 215). 484 Ibid., p. 397 (tr.fr., p. 214). 485 Ibid., p. 398 (tr.fr., p. 215). 486 Ibid. Ver a esse respeito o interessante comentário de Reiner Schürmann em SCHÜRMANN 1982, p. 242.

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Seja como for, essa queda de modo algum parece decidida, mas, sim, aberta

entre duas possibilidades. Dois caminhos parecem se esboçar, que ressaltam não

somente a desconcertante ambigüidade do pensamento de Nietzsche, mas também a

do próprio Heidegger diante do caráter incontornável desse pensamento. Assim,

Heidegger verá no Super-homem o representante por excelência de uma “economia

maquinal” (machinalen Ökonomie)487 que destina a metafísica a uma lógica de

apropriação por dominação: o futuro mestre da terra, o supremo sujeito que realizará

“o puro exercício da vontade de potência”488. Mas, ao mesmo tempo, Nietzsche é o

primeiro a nomear a transição (Übergang), o primeiro a pensá-la explicitamente,

definindo a situação do homem como uma passagem precária489, como uma ponte

entre a figura humana tradicional e aquela ainda por vir. Nietzsche é, de fato, quem

opera o primeiro rasgo, quem faz ver sob uma nova luz a ilusão “etiológica” que

governa a metafísica. A sua crítica da confiança na substância, da suposição de que o

conhecimento pode ser “sem resto”, um scire per causas, como já se disse, conduz a

um descentramento irreparável de toda a tradição do pensamento. De que modo então

compreendê-lo? Última figura que conduz e domina a história ou suntuosa obra de

arte e de vida extrapolando e desafiando essa mesma história? Se a interpretação

heideggeriana não nos fornece resposta a essa questão, ela parece contudo sugerir que

entre uma e outra dessas alternativas se situa a imagem do homem e do pensamento

no fim da metafísica. E, eventualmente (por que não?), para além dela.

Uma antiga inscrição

Conhece-se esta outra tese controvertida de Heidegger segundo a qual

Nietzsche guardaria um vínculo profundo com o platonismo que ele supõe inverter.

Outro ponto no qual Heidegger não cessará de tocar: a filosofia de Nietzsche, com

seu privilégio dado à noção de valor, é a atualização (possibilitada pelo conversão

487 HEIDEGGER 1936/46, II, pp. 165-166 (tr.fr., pp. 133-134). 488 HEIDEGGER 1936/46, II, p. (tr.fr., p. 243). 489 É a leitura que Heidegger fará de Nietzsche em 1951, no curso publicado em Was heißt Denken?, cujo tom em boa medida se diferencia do utilizado no segundo volume do Nietzsche. Cf. o ótimo comentário de Michel Haar acerca das variações que a leitura de Nietzsche feita por Heidegger sofreu. Em HAAR 1994, pp. 189-218.

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moderna da idéa em perceptio, pelo deslocamento literal da forma para dentro da

mente humana) desse fundo a priorístico do ser que, desde Platão, põe em marcha a

metafísica no Ocidente. A interpretação do ser como condição de possibilidade se

prepara em seus traços essenciais através de diferentes estágios, diz Heidegger: “pelo

começo da metafísica em Platão (ousia enquanto idéa, idéa enquanto agathón), pela

reviravolta [Umschlag] em Descartes (idéa enquanto perceptio) e por Kant (ser

enquanto condição da possibilidade da objetividade dos objetos).”490 Na medida em

que Nietzsche concebe os valores enquanto condições (do real, do devir), condições

que servem ao mesmo tempo para o aumento ou a conservação da potência, ele

reencontra a determinação da entidade (Seiendheit) lá mesmo onde ele pretendia

aboli-la. Ali onde a “verdade” torna-se inadequada para pensar o “ser”, são os valores

que passam a comandar todos os modos de apreensão e fixação do devir. Seja eidos,

Deus ou o sujeito o primeiro na ordem das pressuposições, a condição é sempre

apriórica (vorherig), isto é, sempre ela torna possível (ermöglichend). É dessa

múltipla filiação da metafísica nietzscheana que Heidegger faz aparecer o seu caráter

propriamente terminal. A metafísica de Nietzsche, ele o diz explicitamente, é o

esgotamento de uma inscrição (Verzeichnung)491 a qual, ao longo de toda a filosofia,

persevera no registro da condição e da precedência, do que dispõe e possibilita. Com

a sua interpretação de todo pensar como essencialmente um valorar, o que a filosofia

de Nietzsche faz é reexibir, mas agora em seu traçado final, essa inscrição inicial: a

da idéa precisamente (a da forma e do esquema), cuja marca (Prägung) permanece

motivando a filosofia dos tempos ulteriores.492 Mas com essa diferença decisiva, mais

uma vez, e que mais uma vez muda tudo: as idéias aqui converteram-se em “modo de

ver”, e o esquema em perspectiva ou ponto de vista (Ansicht). Elas são a visão que

nós, à medida que vemos, formamos de todas as coisas.493 O ente, “as coisas que

são”, diz um fragmento de 1880, são parte da ótica humana.494

490 HEIDEGGER 1936/46, II, pp. 232-233 (tr.fr., p. p. 185). 491 Cf. Ibid., p. 227 (tr.fr., p. 180). 492 Cf. Ibid., p. 220 (tr.fr., p. 175). 493 Cf. Ibid., p. 218 (tr.fr., p. 174). 494 “Wir reden, als ob es seiende Dinge gebe, und unsere Wissenschaft redet nur von solchen Dingen. Aber ein seiendes Ding giebt es nur nach der menschlichen Optik: von ihr können wir nicht los.”

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No curso do semestre de verão de 1939 intitulado “A vontade de poder

enquanto conhecimento”, Heidegger retoma um fragmento datado de março-junho de

1888 para pensar a relação de “utilidade” estabelecida por Nietzsche entre

conhecimento, razão e vida. O fragmento, no qual Heidegger diz encontrar uma

indicação “não explícita, mas tacitamente suposta”495 a essa questão, diz o seguinte:

“Não ‘conhecer’, mas esquematizar – impor sobre o caos tanta regularidade e tantas

formas quanto nossas necessidades práticas requerem.”496 Heidegger observa de saída

que a palavra “conhecer” é colocada entre aspas. Não conhecer, portanto, mas

esquematizar: eis o que nossas necessidades práticas exigem, para que nós não

sucumbamos ao caos. A este, e sempre em função de nossas necessidades, nós antes,

isto é, previamente, reagimos, esquematizando-o, impondo-lhe formas que o regulam,

que o estabilizam. Interpretando o “esquematizar” evocado por Nietzsche, Heidegger

reconhece aquilo que ao longo de toda a história da metafísica constitui o que se

poderia chamar “a essência poetificante da razão” (das dichtende Wesen der

Vernunft).497 Nietzsche, como se sabe, não é o primeiro a nomeá-la, é Kant o primeiro

a discernir, em sua doutrina da imaginação transcendental, essa capacidade que tem a

razão de pré-elaborar, de pré-formar seus esquemas e categorias.498 Sem estes, Kant

já o havia mostrado, nenhuma apreensão do múltiplo seria possível, nada seria

possivelmente reconhecido como “algo” e o mundo da nossa experiência não seria

propriamente um. A imaginação, na sua relação com as faculdades da sensibilidade e

do entendimento, constitui, cria a imagem da coisa, articulando entre si, fazendo jogar

entre elas, as formas sensíveis que recebemos e as categorias que nosso intelecto

produz. A concepção da essência da razão absoluta, escreve Heidegger,

“desenvolvida na metafísica do idealismo alemão (por Fichte, Schelling e Hegel), se

funda totalmente sobre a compreensão kantiana da essência da razão enquanto ‘força’

imaginativa, poetificante” (das Wesen der Vernunft als einer “bildenden”, dichtenden

“Kraft”)499. Nietzsche, para quem a “força inventiva” (erfinderische Kraft)500 que

495 Citado em HEIDEGGER 1936/46, I, p. 499 (tr.fr., p. 431). 496 Ibid. A referência é ao fragmento 515 da Vontade de potência. 497 HEIDEGGER 1936/46, I, p. 524 (tr.fr., p. 451). 498 Ibid., p. 526 (tr.fr., p. 453). 499 Ibid. 500 Ibid.

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imaginou as categorias trabalha a serviço da necessidade, não fez senão sublinhar, e

“de maneira particularmente abrupta”, esse caráter pré-formativo e poetificante da

razão.

O poder da razão de “poetificar” (e não simplesmente poetizar)501, essa

capacidade, que a metafísica atribuiu ao conhecer, de organizar ou esquematizar a

totalidade do ente (o sensível, o múltiplo, o caos), instalando-o na esfera do pré-

visível e por aí mesmo apreensível, vem à tona agora do modo mais eloqüente. Com

Nietzsche, a razão se descobre como consistindo em nada além do que “o arranjo, a

elaboração imaginativa do mesmo”502. É o que revela a seqüência do fragmento

analisado, que, apesar dos parênteses, diz Heidegger, não tem nada de acessório ou

supérfluo.

(O arranjo (Zurechtmachen), a elaboração imaginativa (Ausdichten) do semelhante, do mesmo – este mesmo processo, que realiza toda impressão sensível, é o desenvolvimento da razão!)503

Pôr ou supor um “mesmo” equivale a imaginar, a elaborar esquemática ou

imaginativamente. Se todo o mundo sensível já se submeteu de antemão ao processo

poetificante que faz dele, através das impressões que dele temos, algo de regulado, de

idêntico a si mesmo, é porque somente o idêntico oferece a segurança de uma

presença constante, mesmo que essencialmente ilusória. O fato é que a vida, por

necessidade prática, aspira a uma tal constância. O “conhecer” convertido em prática

ilusionista é ainda assim necessário, ele é condição posta pela vida. “As categorias

são apenas ‘verdades’ no sentido em que elas são para nós condições de vida (...)”.504

A estabilidade que encontramos nas coisas são o projeto, o resultado de uma

atividade que em nós pré-forma, prefigura horizontes e perspectivas – Nietzsche diz:

não a causa, mas o efeito de uma organização prévia que fixa o devir em uma

multiplicidade infinita de formas. Através dessas formas, “tantas quantas a nossa

501 Cf. HEIDEGGER 1936/46, I, p. 527 (tr.fr., p. 454): “O discurso sobre a essência poetificante (dichtenden Wesen) da razão não remete certamente a uma essência poética (dichterisches Wesen). Assim como nem todo pensamento é pensante, nem toda poetificação (Dichten), nem toda elaboração poetificante (Ausdichten), é já poética.” 502 Ibid., p. 525 (tr.fr., p. 452). 503 Ibid. Trata-se da continuação do mesmo fragmento 515 de Wille zur Macht. 504 HEIDEGGER 1936/46, I, p. 524 (tr.fr., p. 451).

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necessidade exige”, o turbilhão incessante do devir é estabilizado, provisoriamente

estancado. “Jamais até então, Heidegger declara, a razão tornara-se tão explicitamente

essa faculdade que imagina e forma para si mesma tudo aquilo que os entes são (das

Alles, was das Seiende ist, sich selbst zu- und einbildet)”505. É precisamente esse dar

forma que Nietzsche confirma e, ao mesmo tempo, renega, que ele consagra, mas ao

mesmo tempo desmistifica, ao mostrar que o que está em jogo na força imaginativa

da razão nada mais é do que utilidade e necessidade.

Ao longo de toda sua história, a metafísica ocidental, isto é, a meditação sobre o ente enquanto tal na sua totalidade, determina o ente previamente, enquanto o que se torna apreensível e delimitável segundo os pontos de vista da razão e do pensamento. Na medida em que todo pensar ordinário se funda a cada vez numa estrutura da metafísica, o pensamento cotidiano e o pensamento metafísico repousam sobre a confiança nessa “relação”, a saber, que no pensamento da razão e suas categorias o ente se mostra enquanto tal, isto é, que o verdadeiro e a verdade são apreendidos e “visualizados” na razão.506

* * *

Até onde podemos ver através de toda a ambivalência da leitura heideggeriana

de Nietzsche, o pensamento deste último aparece simultaneamente como a

completação do legado metafísico (a forma compreendida como idéia, como marca e

figura, como representação e cena) e a possibilidade mesma de uma brecha, de um

aceno em direção ao outro pensamento (em que a forma e a imagem já não mais são

referidas a nenhuma permanência essencial). A ambivalência da leitura heideggeriana

de Nietzsche, que é a ambivalência da posição historial de Nietzsche no seio da

metafísica, consiste em ver em Nietzsche, por um lado, o último filósofo, aquele que

consuma, que realiza a história da metafísica como história da idéia (da forma, do

traçado), mas ao mesmo tempo, e por outro lado, como o primeiro pensador da

mudança, da metamorfose da idéia – aquele que, reconhecendo na constituição de

505 HEIDEGGER 1936/46, I, p. 527 (tr.fr., p. 454). 506 Ibid., pp. 476-477 (tr.fr., p. 412).

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forma uma “diretiva do comportamento humano em relação ao homem e as coisas”507,

revela, no interior do dispositivo metafísico de “imaginação”, uma espécie de fenda,

uma distância a partir de então irredutível da metafísica em relação a si mesma. Por

um lado, Nietzsche se situa na linhagem direta da compreensão metafísica da verdade

como justeza e do ser como idéia, aspecto, tipo e figura. Ao interpretar a formação de

esquemas como maneira necessária de poder contar com as coisas, de se assegurar de

um mínimo de “ser” no caótico devir, o seu pensamento se move no sentido de uma

“reformulação”, da consumação das diversas configurações epocais da forma que têm

lugar “no terreno da metafísica moderna”508. Mas, por outro lado, Nietzsche é aquele

que provoca uma quebra nessa mesma linhagem, que leva à crise, a um abalo

incontornável na concepção tradicional do ser e da verdade. Por um lado, a

compreensão nietzscheana da verdade como valor, como condição que a vida mesma

põe para si, impele a estrutura do pensar metafísico a continuar, consumando a sua

formulação derradeira (na forma da sua própria inversão). Mas, ao mesmo tempo, ela

é a desorganização suprema dessa mesma estrutura, o corte na sua continuidade, a

desestabilização do recurso à figuração. É como se no momento em que se tornasse

visível para si mesmo – no momento em que vem à tona, com Nietzsche, a imagem

terminal da metafísica, a imagem que a metafísica faz de si mesma no fim da

metafísica –, o modo metafísico de imaginar, a formação do modelo e da imagem

típica, se deslocasse definitivamente rumo à possibilidade da sua transformação.

Rumo à possibilidade de continuar se dando ou se formando, sim, mas de um modo

diferente.

* * *

Vimos no segundo capítulo que a definição da forma como idéia – como

aspecto, evidência – resultava de uma “mudança inaugural”. Essa mudança deixava

aberta, numa indecisão “de princípio”, a questão de saber “quem” propriamente

507 Ibid., p. 522 (tr.fr., p. 450). 508 Ibid., p. 526 (tr.fr., p. 453).

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transforma, se a doutrina platônica da verdade é o que produz ou o que sofre a

transformação na essência do ser e da verdade. O que resta saber é se ser e verdade

poderão encontrar (ou reencontrar) uma “outra forma” no momento em que

eventualmente muda essa primeira mudança, isto é, no momento em que o ser cessa

de ser o que ele é ao longo de toda a história da metafísica – entidade do ente,

quididade, essentia – e passa ao outro começo do pensar. Esse momento, o da

passagem ao outro começo, é indicado por Heidegger em diversos textos a partir de

meados dos anos trinta como se tratando do começo de uma nova “economia da

presença”. Não mais a presença como constantemente idêntica a si, não mais a

essência como unidade genérica comum a muitos, mas a presença como o que reúne

sem confinar, que apropria sem propriamente apoderar, como uma essência “aberta”,

que deixa passar por ela a diferença “multiforme (vielgestaltig) e rica em

metamorfoses (reich an Wandlungen)”509, que habita todas as coisas. Nos Beiträge

zur Philosophie, Heidegger escreve:

O Dasein (...) é a mais alta efetividade no domínio da imaginação (die höchste Wirklichkeit im Bereich der Einbildung), desde que compreendido que, com esta palavra, nós não visamos apenas uma capacidade da alma nem uma instância transcendental (cf. Kant e o problema da metafísica), mas bem antes o próprio Ereignis, de onde irradia toda transfiguração (Verklärung). A “imaginação” como advinda da própria clareira.510

Sabe-se que transmutação, transformação, transição, passagem são, todos,

termos que Heidegger encontra no próprio Nietzsche. Transição, Übergang, é o termo

usado por Nietzsche para definir o homem: ele é ponte, corda estendida entre o último

homem e o Super-homem. É como se Heidegger, ao retomá-los como ele o faz de um

extremo ao outro de sua própria obra, se situasse junto com Nietzsche no espaço não

decidido dessa passagem, dessa transição. A transição não retira a imagem de jogo,

não abandona a forma como lugar possível do aparecimento de um mundo, mas

aposta na sua transfiguração real, isto é, na liberação do ser, dos entes, da verdade, do

homem, do pensamento e, quem sabe, do próprio deus, para um acontecer multiforme

e, propriamente, mais livre. Um acontecer em que a “imaginação” se despoja da

509 HEIDEGGER 1957b, p. 139 (tr.fr., p. 51). 510 HEIDEGGER 1936/38, p. 312 (tr.esp., p. 254).

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forma de uma atividade, de um puro produto humano. A decisão que conduz a

metafísica a se economizar maquinalmente, a exercer do início ao fim um

pensamento com vocação à antecipação e à feitura, não está simplesmente revogada,

muito ao contrário. Heidegger o sabia muito bem quando escreveu nos mesmos

Beiträge esta frase: “Mas ninguém conhece a figura do ente por vir (Aber niemand

kennt die Gestalt des kommenden Seienden)”511.

511 Ibid. pp. 431-432 (tr.esp., 344).

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CCoonncclluussããoo

“A essência do poder se transforma. (...) Uma tal transformação advém apenas do Ser.”512

Tentaremos recuperar alguns dos motivos que definiram o encaminhamento

deste trabalho, mas também aqueles que, embora ausentes do corpo do texto, não

deixaram de convocá-lo. Trata-se de chamar à discussão questões certamente

incontornáveis, que, por razões diversas, não pudemos confrontar de modo mais

explícito. Trata-se também de indicar em que medida elas permaneceram e

permanecerão apontando para novas eventuais direções, outros desdobramentos

possíveis.

Num livro publicado em 2002, Lacoue-Labarthe se propõe mostrar – é essa a

sua tese desde meados dos anos setenta – que uma das principais aderências de

Heidegger, a mais resistente, aquela que levou mais tempo para se desfazer, é a “que

forma a noção de Gestalt”.513 Segundo o autor, trata-se de um motivo capital na obra

de Heidegger, na medida em que ele arrasta consigo os valores – pré-formais ou pré-

eidéticos – da plástica ou da ficção/figuração (plassein,fingere), do fazimento, da

marca (Schlag), do Geschlecht, da estampa e da impressão – ou para, falar grego,

justamente, do tipo.514 A deriva semântica, afirma Labarthe, é nada menos que abissal.

O vocabulário que Labarthe qualifica de “onto-tipo-lógico” seria o indício mais

marcante, e nesse caso absolutamente marcante, da obsessão pela figura (que é

obsessão pelo mito) que atravessa a obra de Heidegger, e isto, desde bem antes de

1933. O que estaria em jogo aqui é nada menos que um “programa poiético-político”.

512 HEIDEGGER 1938/39, p. 21: “Das Wesen der Herrschaft wandelt sich. (...) Solche Wandlung entspringt nur dem Seyn.” 513 Cf. LACOUE-LABARTHE 2002a, p. 164. 514 Ibid., p. 165.

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E é em nome dele que Heidegger anunciaria a necessidade de desmontar o edifício da

estética ocidental.515

A desconstrução sistemática do todo da estética ocidental, sempre segundo

Labarthe, equivale a apostar numa “archi-tekhne”.516 Uma tekhne mais essencial,

arqui-original, à qual Heidegger tenta dar corpo, a partir de 1934-1935, com uma

reflexão sobre a origem da obra de arte. É na linhagem do romantismo que Heidegger

se inscreve, quer ele o assuma ou não. É o projeto de uma imitatio absolutamente

original que ele repõe em marcha, esse projeto de uma mimetologia cujo anti-modelo

é a imitatio latina (romana, italiana, francesa), e para a qual o único modelo

concebível é o da auto-formação. A onto-tipologia carregaria o discurso de

Heidegger ali mesmo onde ele pretende mostrar que transcendência e onto-teo-logia

são as formas da metafísica. Mesmo ali onde todo o esforço consiste em mostrar que

o núcleo da filosofia ocidental, a história dos múltiplos deslocamentos da idéia, é,

como tentamos dizer antes, uma metafísica do manu facere. É uma mitologia,

segundo Labarthe, o que em última instância está em obra – a despeito, é claro, da

renitente indiferença para com o Romantismo, não o romantismo em geral, mas o de

Iena precisamente, aquele que traz ao mundo, com Schlegel, Schelling e Novalis, o

projeto de uma nova mitologia. De acordo com toda uma tradição que culminará

fatalmente em 1933, a poiético-política de Heidegger teria sido o seu modo de

reivindicar “a apropriação dos meios de identificação”517. A tarefa do político (com

ou sem aspas) não seria outra senão a de “ficcionar os seres e a comunidade”518.

Daí a deriva num nacional-estetismo. Era então a “verdade” que se tratava de

opor ao nacional-socialismo. Será necessário esperar pela conferência sobre a técnica

e sobretudo pela carta à Jünger para ver, já em meados de 1950, a mínima tentativa

por parte de Heidegger de se desassociar da terminologia onto-tipo-lógica. O que não

é nada evidente que ele tenha conseguido.

515 Ibid., p. 163. 516 Ibid. 517 LACOUE-LABARTHE 2002a, p. 168. 518 LACOUE-LABARTHE 1988, p. 125.

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Vê-se o quão longe podem ir de fato essas questões. Até onde pode apontar,

nas suas conseqüências mais radicais, nas suas derivas possíveis, a perspectiva que

vimos sustentando aqui. A dificuldade mais imediata, no que concerne à tese de

Labarthe, diz respeito aos pressupostos estéticos que ela envolve, isto é, toda uma

discussão que ela supõe com uma longa história da estética, à qual ela

incessantemente remete, e que a sustenta do início ao fim. Em todo caso, a

importância da crítica é decisiva, e há nela questões que simplesmente não podem ser

esquivadas.

Seria então de uma vontade de ontotipificação (de uma retipificação, isto é, de

uma refundação) alemã da história que decorre a leitura da história feita por

Heidegger? É através de uma mimesis originária que Heidegger pretende alçar o ser –

como modelo, justamente, e nesse caso identificado ao povo alemão, ao mito do

Dasein historial – à plenitude de sua essência? É nisso que se resume a crítica

heideggeriana do idealismo, do ocularismo histórico da metafísica – ou seja, em nada

mais que o seu avesso? Não é a proposta de uma liberação da forma, mais exatamente

da forma como modelo ideal, da forma como passível de ser conformada, reformada e

enformada, que opera o e no pensamento heideggeriano (Labarthe se atém,

naturalmente, a todo o vocabulário do “operar”, da obra como ergon e o organon, que

não passou despercebido a Heideger)? Perguntemos mais uma vez (a questão foi

colocada ainda no segundo capítulo) : a profusão de passagens e deslocamentos, que

vimos se alternando “de um extremo ao outro” – as incursões do ser nos entes, dos

entes no ser, do pensamento na verdade, da verdade na representação do divino –,

constituem uma estratégia do “historial” heideggeriano para fundir qualquer outro

eventual num Mesmo habitual ao qual nada resistiria? Se é este o caso, então temos

que admitir que o diagnóstico do mundo contemporâneo, da conversão demiúrgica do

mundo em imagem, a insistência no maquinal como modo de ser do ocidental (o que

não significa que ele seja diabólico) – tudo isso é pura retórica de alguém que sabe

perfeitamente o quanto “o ser mesmo” se presta a toda sorte de empreendimentos

poiéticos. E Heidegger sabe, ao menos isto parece indiscutível, o quanto todas as

coisas se prestam a toda sorte de empreendimentos poiéticos.

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Tentemos dizer a coisa de um outro modo: parece haver, sim, algo como uma

“fazibilidade originária” do ser. É ela que permite, que deixa que o ser se mostre,

desde o início da história do Ocidente, “sob o jugo” da idéa. O léxico da Gestalt, para

o qual Heidegger chama a atenção de Jünger, atravessa a metafísica como uma

espécie de fundo de reserva figural: eidos, idéa, forma, tipo falam, na sua

solidariedade, dessa incrível docilidade com que o ser se deixa apropriar ao longo da

história. Mas a única maneira de percebê-lo, e é nisso que Heidegger parece insistir, é

atentar para essa surpreendente flexibilidade com que os entes se liberam, com que a

essência precisamente se dá, sem resistência, a toda sorte de apropriação. O deixar-se

figurar, marcar ou informar, o modo como os entes se prestam a um tipo de domínio

regido, explicitamente ou não, por isto que Heidegger chamou de “machinalen

Ökonomie”519, é de fato o lugar onde tudo se decide. Mostrar a docilidade com que as

coisas se dão, com que elas se expõem e se abandonam umas às outras, seria um meio

de apostar num outro regime de “troca”, em que as noções de mudança e de

transformação já não mais são regidas pela lógica da equivalência, o “tudo vale por

tudo”.

Dissemos, no segundo capítulo, que a aparição do outro no mesmo é o tema

que ronda cada uma das leituras heideggerianas das épocas da metafísica. No terceiro

capítulo, tentamos acompanhar o modo como se coordena essa leitura: é mostrando a

metafísica como as múltiplas variações de um tema, como ecos repercutindo um

único acorde inaugural – a presença convertida em constância, o fundamento valendo

pelo ser –, que Heidegger chama a atenção para o “ser” como outro de si mesmo. . No

ensaio “...O homem habita poeticamente...” (“...dichterisch wohnt der Mensch...”),

Heidegger escreve que “a verdadeira imagem (...), como aspecto, deixa ver o invisível

(das Unsichtbare sehen läßt) e assim o ‘imagina’, fazendo-o entrar numa coisa que

lhe é estrangeira.”520 O aparecer da história da metafísica – esse pôr-se em cena da

metafísica platônica que Heidegger descreve, criando ele próprio, necessariamente, a

sua imagem do início – não parece desde o início ligado à possibilidade de fazer ver

um outro da metafísica, algo que transita nela desde sempre, mas como uma espécie

519 Cf. infra p. 163. 520 HEIDEGGER 1951, p. 194 (tr.fr., p. 241).

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de estrangeiro? E esse algo de outro não seria justamente o ponto cego do olhar

metafísico, o ponto que a metafísica, conforme o modo de ver e de se ver que é o seu,

jamais tem em vista propriamente?

Se é na forma que Heidegger reconhece a verdadeira potência metafísica, se é

ela o motivo, o mote que destina a história do ser a se desdobrar no regime do “ver” e

do “fazer”, é através dela também que se esboça a retirada do ser como

acontecimento. Se a forma é o emblema mesmo do poder (Macht, Machenschaft), é

nela mesma, isto é, na pluralidade das suas rubricas metafísicas, que se pode ver a

impossibilidade da metafísica de conferir ao ser uma identidade última e definitiva.

Nós apontamos para essa dupla reserva, para a ambigüidade não acidental em que se

move a leitura heideggeriana da tradição (é nesse mesmo “entre-dois” que Heidegger

se situa em relação a Nietzsche). Há duas fontes de recurso à imagem, duas formas de

se relacionar com a forma, mas elas comparecem simultaneamente na história que

Heidegger nos relata, jamais deixando de se interpenetrar. Daí, talvez, a insistência

nas passagens, o recurso incessante ao movimento de transformação. A entrega do

ente à maquinação seria nesse também uma reserva. Ela reserva ao mesmo tempo a

possibilidade de que, para além de uma apreensão marcada por uma aparentemente

irresistível vocação à manipulação, um outro modo de imaginar se dê, literalmente.

Há, sim, em Heidegger, como que duas imagens da imagem, dois regimes

imaginativos, duas formas de se relacionar com a forma. O outro modo de imaginar –

outro pensamento diz a mesma coisa – seria a possibilidade de um acesso às coisas já

não regido pelo princípio da captura ocular.

O que Heidegger chamará de Ereignis parece ser justamente o ponto de

cruzamento, esse lugar não-localizável em que se cruzam o mesmo da metafísica e

seu outro. Nele as coisas podem aparecer na sua força originária de transformação.

Mas essa força é uma força de doação, ela em nada tem a ver com a possibilidade de

fabricar um ser, de montar uma essência, de compor peça por peça, somando

diferenças específicas, um tipo privilegiado de entes, uma identidade exemplar para o

homem. Ela nada tem a ver, em suma, com uma “onto-tipificação”. O que se dá aqui

não é o advento de nenhum ente privilegiado. O que se dá, e nesse sentido

literalmente, não é uma região do mundo, mas o próprio acontecer do mundo, no que

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ele pode (e pôde) se abrir como esboço e clausura figural, como ponto de partilha e

passagem e captura conceitual, como transposição de limites identitários e como

apelo ao idêntico.

A direção para a qual Heidegger aponta é aquela na qual as coisas seriam de

algum modo entregues a elas mesmas. Liberado o ente da ofensiva direta, da empresa

de captação e de poderio, é como se fosse afrouxado o cerco da entidade como

imobilidade, como se a presença, precisamente, “se mobilizasse” numa outra via,

num outro modo de surgimento. É como se ela deixasse pesar sob si a constância e a

estabilidade maciças que lhe foram reiteradamente atribuídas para assumir uma outra

espessura, mais plástica por assim dizer. Como se a essência como “puro”

acontecimento, o vir à presença (Anwesen) sem qualquer razão de ser, fossem

entregues à movência de um ritmo que não é o continuum das nossas próprias

codificações. Como o devir inocente de Nietzsche, sem causa nem autor, a essência

se desautorizaria do apelo à transcendência. Nem a carga da totalidade, nem a

clausura genérica (e genética). Nos seus rostos e travestimentos estaria então

estampada não a marca ideal, o eidos ou a idéia, mas uma forma plástica, múltipla e

imprevisível. A disponibilidade do ente a se deixar “marcar” – a incrível docilidade

com que o mundo se oferece a toda sorte de empreendimentos poiéticos – seria então

reconhecida como o seu maior mistério.

Mas tudo isso... Quem sabe? Nada é realmente evidente. Ninguém conhece a

figura do ente por vir.

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