A Fogueira do Conhecimento: religação de saberes e formação
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Cincias Sociais Aplicadas
Programa de Ps-graduao em Educao Ncleo de Estudos e Pesquisa em Educao, Cincia e Tecnologia
Grupo de Estudos da Complexidade
A Fogueira do Conhecimento: religao de saberes e formao
Maria de Ftima Arajo
Natal/RN
2005
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Maria de Ftima Arajo
A Fogueira do Conhecimento: religao de saberes e formao
Dissertao apresentada como requisito parcial
para a obteno do ttulo de Mestre em
Educao, junto ao Programa de Ps-Graduao
em Educao da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, sob a orientao da
Professora Dra. Maria da Conceio Xavier de
Almeida.
Natal/RN
2005
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Catalogao da Publicao na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA
Diviso de Servios Tcnicos Arajo, Maria de Ftima. A fogueira do conhecimento: religao de saberes e formao. / Maria de Ftima Arajo. Natal, 2005. 155 p. il.
Orientadora: Prof. Dr. Maria da Conceio Xavier de Almeida. Dissertao (Graduao em Pedagogia) Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Cincias Sociais Aplicadas. Departamento de Educao.
1. Educao Tese. 2. Educador - Tese. 3. Formao Tese. 4. Conhecimento Tese. 5. Professor Tese. I. Almeida, Maria da Conceio Xavier de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Ttulo.
RN/BS/CCSA CDU 371.13 (043.3)
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Banca Examinadora
_______________________________________________________ Dra. Maria da Conceio Xavier de Almeida (UFRN)
(Orientadora)
Dr. Elizeu Clementino de Souza (UNEB) (Examinador Externo)
Dra.Wani Fernandes Pereira (UFRN) (Examinador Interno)
_______________________________________________________ Dr. Jos Willington Germano (UFRN)
(Suplente)
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A vov Jlia, vov Neco,
e a Lucas, meu pequeno prncipe.
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Uma idia que no perigosa no de todo uma idia.
Oscar Wilde.
Brincar condio fundamental para ser srio. Arquimedes.
Segurar uma caneta estar em guerra.
Voltaire.
Fecho meus olhos para ver. Paul Gauguin.
No sou daqueles que tm uma carreira, mas dos que tm uma vida.
Edgar Morin.
Inventar uma nova forma de discurso parece, pois, exigido
pela nova reflexo tica. Henri Atlan.
Cada homem carrega a forma inteira da condio humana.
Montaigne.
O homem compe-se do que tem e do que lhe falta.
Ortega y Gasset.
O dia de amanh ningum usou. Pode ser seu. Pagano Sobrinho.
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Agradecimentos
A seu Antonio, mestre soberano que com sua simplicidade e
sapincia promoveu a minha insero no mundo da literatura e do
conhecimento. O resto eu aprendi depois.
A Ceia, grande borboleta polinizadora de nossas idias que me
ajudou a trilhar o caminho de volta para mim mesma e enxergar nas
minhas experincias, a matriz de referncia para a escrita dessa
dissertao.
A Wani, co-partcipe dessa dissertao, lendo amorosamente meu
texto e contribuindo com suas idias.
Aos meus avs, Jlia e Manoel que desde cedo me ensinaram
com seus exemplos de vida, o sentido pleno do amor, da felicidade e da
tica.
Aos meus pais Wilson e Maria que nunca descuidaram da tarefa
de nos educar: a mim e a meus sete irmos.
Aos professores da Ps-graduao em Educao pelas suas
contribuies no campo terico e prtico.
Aos colegas da ps-graduao em educao pelas trocas
enriquecedoras e pelo sentimento de solidariedade e companheirismo
nos momentos de sucesso e de fragilidade.
A Gil, companheira de tantas jornadas, por colocar em minhas
mos o material de que necessitava para parte dessa pesquisa.
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Aos professores-narradores que contriburam com suas narrativas
de formao.
A Almira Navarro pela reviso cuidadosa. A Luzia, Vera, Rejane e
Ana Lcia Arago, pelo apoio e carinho dispensados na hora certa.
A Djakson Rocha, pelo apoio teraputico contribuindo e
fortalecendo-me nessa jornada de autoconhecimento.
A meus irmos, meus sobrinhos, meu filho e meus amigos, pela
ausncia nem sempre compreendida, mas necessria nesse processo.
A meu primo Genilson, pelo apoio afetivo e tcnico na
apresentao final do texto.
Aos que acreditam que a poesia abre janelas para o mundo.
A todos que consideram a educao como um meio que possibilita
a reforma do pensamento e a reforma do sujeito.
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Resumo
As narrativas sobre experincias de vida se constituem em aprendizagens significativas no processo de autoformao dos educadores. A formao um fenmeno que extrapola o mbito escolar, incluindo as experincias que servem de matriz para a construo de conhecimento ao longo da vida. Dessa perspectiva, o conhecimento de si, tal como proposto por SOUZA, NVOA e JOSSO, a noo central em torno da qual de desenvolve esta dissertao. A pesquisa tem como foco principal transpor para a realidade dos professores o exerccio reflexivo de sua docncia, mediante a redescoberta de suas vivncias atravs de histrias de si que, potencializadas, pode transformar suas prticas em sala de aula. Tomo como ponto de partida minhas prprias experincias como educadora, assumindo a convico da indissociao entre sujeito e objeto do conhecimento, como prope Edgar Morin para falar da cincia da complexidade. Lano mo tambm das narrativas de formao de seis professores da rede pblica de ensino, reveladoras da construo de conhecimento pautada na coerncia do fazer pedaggico com seu modo de compreender e sentir o mundo. As obras Meus Demnios de Edgar Morin, O Tempo e EU de Lus da Cmara Cascudo e O Banquete dos Deuses de Daniel Munduruku, alargam o escopo das narrativas de experincias que se constituem em matrizes dos processos de formao. O trabalho com narrativas de formao demonstra que, a partir da reflexo do sujeito sobre sua prpria experincia, possvel projetar novas configuraes do conhecimento com base na religao entre vida, idias e prticas pedaggicas. A partir da metfora da fogueira possvel compreender a fora da combusto das experincias de vida na formao docente. Palavras-chave: Educao Formao Complexidade.
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Resum
Les rcits sur les expriences de vie se constituent en apprentissages signifiants dans le processus d auto-formation des ducateurs. La formation est un phenomne qui extraple lambiance scolaire, incluant les expriences qui servent de matrice pour la construction de la connaissance au long de la vie. Dans cette perspective, la connaissance de soi, telle quelle propose par SOUZA, NOVOA et JOSSO, est la notion centrale au tour de laquelle se dveloppe cette dissertation. La recherche a comme ide principale transposer pour la realit des professeurs lexercice reflexif de son enseignement, mdiant la redcouverte de ses expriences de vie, a travers des histoires de soi que, potentialiss, peuvent transformer ses pratiques dans la classe scolaire. Je prends comme point de dpart mes propres expriences comme ducatrice assumant la conviction de la indissociation entre sujet et objet de la connaissance, comme propose dgar Morin pour parler de la science de la complexit. Je fais aussi lusage des rcits de six professeurs du rseau publique de lenseigment, rvlateurs de la construction de la connaissance appuye dans la cohrence de la praxis pdagogique avec son mode de comprendre et sentir le monde. Les oeuvres Mes Dmons ddgar Morin, O Tempo e Eu de Luis da Cmara Cascudo et O Banquete dos Deuses de Daniel Munduruku, ont largit le champs des rcits dexpriences que se constituent en matrices des processus de formation. Le travail avec les rcits de formation dmontrent qu partir de la rflection du sujet sur sa propre exprience, il est possible de se projter des nouvelles configurations de la connaissance tenant comme base, la reliaison entre vie, ides, et pratiques pdagogiques. partir de la mtaphore du bcher il est possible de se comprendre la force de combustion des expriences de vie dans la formation des enseignants. Mots-cls : ducation Formation Complexit.
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Sumrio
Fagulhas e Imagens Preparando a Fogueira:
O sujeito em combusto 12 Narrar para construir laos
Primeiras Chamas:
Narrar para construir laos 26
Chama Escarlate:
O conhecimento de si 42
Botando lenha na fogueira:
Compartilhando experincias 55
Ressurgindo das cinzas:
O educador como Fnix 140
O Lume da fogueira: O Lume da fogueira:
iluminadores 148
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Fagulhas e Imagens
Imagem 1- Capa- Fogueira. www. olambelambe.com.br.
Imagem 2- Foto.Gerlzia Azevedo Alves Fogueira do DEARTE- Natal-RN, junho/2005.
Imagem 3- Playing with fire. www.burwell.co.uk/ sally/pfire.htm.
Imagem 4- Render2.www.renton.wednet.edu/.../ BotTbl-Render2.jpg
Imagem 5- Fogueira. www.olambelambe.com.br.
Imagem 6- Caminho.www.poemar.com/Belour.htm.
Imagem 7- Pimentes.www.nouvellesimages.com.
Imagem 8- Bonfire-3..www.zentropolis.com/ log images 2004.
Imagem 9- Fogueira Junina, Vandeberg Medeiros. Natal-RN, 2004.
Imagem 10- Adivinhando Chuva, Vandeberg Medeiros. Natal-RN, 2004.
Imagem 11- Singularity_Cosmos.wwww.sergecar.club.fr/cours/theorie cours/theorie.
Imagem 12- Brinquedo_brincadeira. www.festivaldebonecos.com.br/ 2001/exposicoes.htm.
Imagem 13- Cascudo- outras fotos-31.www.memoriaviva.digi.com.br Imagem 14- Brincando. Nova escola. Abril uol.com.br/brincando.htm. Imagem 16- Jangadas NE Brasil. Ktia Rocha01 www.mundointerior. com.br/ ktia-rocha.htm Imagem 17- Fada madrinha. www celtiquefeu.blogs.sapo.pt/ arquivo/2004. Imagem 18- Preguia2.www.lyceepasteur-ceb-ccslf.com.br/faune.htm Imagem 19- Daniel3.www.omelete.com.br/cinema/artigos/taina2/3jpg Imagem 20- fenix.jpg . www.niwidu.org/praca/4791. Imagem 21- Fenix. www.fractalschlaraffenland.net/ gl10/fenix.htm Imagem 22-FractalFirewww.fractalschlaraffenland.net/gl10/fnix.Htm.
http://www.burwell.co.uk/sally/pfire.htmhttp://www.mundointerior/http://www.niwidu.org/praca/4791
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Preparando a Fogueira: O sujeito em combusto
A fogueira acesa
Pessoas contando histrias. Madrugada vai.
Neila M. Toledo
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Esto no centro do debate contemporneo sobre educao,
questes sobre a Reforma do sistema Educacional, a Reforma da
Educao, a Reforma do Pensamento e, portanto, a reforma do ensino,
na perspectiva de contribuir para a autoformao do sujeito. Neste
sentido a escola se incumbe, segundo Edgar Morin, da funo de
ensinar a assumir a condio humana, ensinar a viver e ensinar a se
tornar cidado (Morin, 2001a, p.65). Uma educao que promova a
necessria Reforma do Pensamento dever ter como pressupostos o fim
da fragmentao do conhecimento e a necessidade de articular e religar
saberes, exigindo uma nova postura do sujeito diante do conhecimento.
Isso implica recusar a ciso entre a cultura cientifica e as humanidades,
entre saber e fazer.
Surge da a necessidade urgente de educar os educadores, de
investir na formao de intelectuais abertos, capazes de refletir sobre a
cultura em sentido mais amplo; profissionais encorajados a religar suas
disciplinas e investir em reformas curriculares capazes de rejuntar
natureza e cultura, homem e cosmo, construindo uma aprendizagem
que reponha a dignidade da condio humana, hoje esgarada e
comprometida.
Para responder a pergunta formulada por Karl Marx em suas teses
sobre Feuerbach: Quem educar os educadores?, Morin considera que
existe ainda um grande nmero de professores animados pela crena
na necessria reforma do pensamento e na regenerao do ensino.
Segundo ele, estes so educadores que possuem um forte senso de sua
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misso, para quem o ensino deve ser encarado como uma tarefa
poltica por excelncia e deve propiciar a formulao de estratgias para
a vida, o desenvolvimento de competncias e o domnio de uma tcnica
e de uma arte.
A essa mesma pergunta, formulada por Karl Marx, Quem educar
os educadores?, Gaston Pineau responde apoiando-se nos trs
mestres de Rousseau: eu, os outros e as coisas. E quem forma o
formador? O formador forma-se a si prprio, atravs de uma reflexo
sobre seus percursos pessoais e profissionais que pode ser denominado
como um processo de auto-formao; o formador forma-se tambm na
relao com os outros, numa aprendizagem coletiva apelando
conscincia, aos sentimentos e s emoes - a hetero-formao; o
formador forma-se atravs das coisas, dos saberes tcnicos, culturais e
artsticos e da sua compreenso crtica - a eco-formao (Pineau apud
Josso, 2004, p.16).
Educar supe, portanto, um processo que inclui formao,
autoformao e reintroduo do sujeito no conhecimento. Mas no
basta qualquer conhecimento. Para efeito deste estudo, interessa o
conhecimento pertinente, aquele que tecido junto, que no privilegia
a parte em detrimento do todo, que tem uma natureza interativa e
inter-retroativa entre o objeto do conhecimento e seu contexto. O
conhecimento pertinente, segundo Morin aquele que se realiza tendo
por cenrio, o contexto maior do qual parte.
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Para Marie-Chrstine Josso, falar de autoformao no significa
dizer que o sujeito aprende por si s. No um processo em que se
prescinde do formador. Significa um caminhar com o sujeito em
formao e ajud-lo a reconhecer sua humanidade singular. Em seu
processo de formao, o professor desenvolve um novo olhar que
ultrapassa a concepo escolar de formao, pois pode tomar
conscincia da enorme quantidade de experincias que cada um vive,
de onde tira lies e aprende coisas (Josso, 2004, p.9).
a partir dessa perspectiva que tomamos aqui as narrativas de
formao como operadores cognitivos capazes de reintroduzir o sujeito
no conhecimento, ampliando e retroalimentando seus saberes a partir
da reflexo sobre as experincias que foram fundamentais para seu
processo de formao.
Longe de prefigurar o discurso da certeza e da soluo para os
complexos problemas que envolvem a educao, a dissertao aponta
para o caminho da incompletude, do inacabamento e da parcialidade do
conhecimento, uma vez que as idias aqui apresentadas esto
organizadas a partir da viso de um sujeito-observador que
compreende o mundo a partir do lugar que ele ocupa, da maneira como
ele percebe e das informaes que ele julga pertinentes (Almeida,
2004, p.3). Essa concepo afirma a natureza subjetiva do ato de
construir conhecimento que emerge da nossa forma de pensar e de
viver, resultando da, muitas maneiras de traar o itinerrio de uma
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idia e de se aproximar dela. somente a partir das experincias
vividas que o sujeito pode tratar as informaes que lhes chegam, uma
vez que estamos, ainda e sempre, no domnio das interpretaes, como
assinala Humberto Eco. Toda organizao do conhecimento tem, pois,
as marcas (imprintings) e as possibilidades do sujeito. Tomar
conscincia da simbiose entre viver e conhecer (Henri Atlan, 2002);
compreender com (Ilya Prigogine, 2001) que a natureza racional e a
paixo habitam as formas de construo das interpretaes sobre o
mundo; e, por fim, propugnar pela reintroduo do sujeito no
conhecimento, constituem juntos os princpios epistemolgicos que
tecem essa dissertao. Da porque minha experincia como educadora,
os saberes que fui construindo ao longo dos anos e as marcas de
sentido que foram sendo impressas em mim constituem-se no terreno
primeiro a partir do qual organizo essa compreenso da formao do
educador. Parto, portanto, de minha experincia, porque no poderia
mesmo partir da experincia vivida pelos outros. Falar de mim, da
minha experincia no processamento das informaes que me
chegaram desde criana, no se constitui, entretanto, um exerccio
autocentrado e narcsico. Mas a partir de mim que compreendo as
experincias dos outros, mesmo sem as t-las vivido. Em sntese, por
que falar de mim? Porque no h conhecimento sem a marca do
sujeito. Por que falar de mim? No decente, normal e srio que,
quando se trata de cincia, do conhecimento e do pensamento, o autor
se apague atrs de sua obra e se desvanea num discurso tornado
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impessoal. Devemos, pelo contrrio, saber que a que a comdia
triunfa. O sujeito que desaparece no seu discurso instala-se, de fato, na
torre de controle (Morin apud Almeida, 2003, p.11-12).
O itinerrio aqui traado, parte das minhas observaes e
inquietaes como professora da rede pblica de ensino, ministrando
aulas para crianas em processo de alfabetizao e em cursos de
formao de professores. Nesta atividade, percebo o distanciamento
existente entre os conhecimentos trabalhados e as histrias e
experincias de vida dos sujeitos envolvidos. Como conseqncia, as
escolas e os to questionados cursos de formao para professores,
vm formando sujeitos cada vez mais incapazes de compreender e
dialogar com o mundo, uma vez que os conhecimentos trabalhados
esto muito distantes de suas vidas. Pensar a educao hoje
ultrapassar o iderio de um conhecimento pronto, acabado e
desvinculado da vida do sujeito. Fruto de uma especializao
exacerbada, o conhecimento cientfico acabou gerando a figura do
especialista. Assim, ao final da formao oficial, cada um domina a sua
parte e desconhece o contexto no qual est inserida a parte que
conhece.
Vivemos um momento histrico no qual urgente e indispensvel
religar saberes, fazer dialogar a cultura cientfica com a cultura
humanstica e, sobretudo, religar o sujeito consigo mesmo. Essa
religao, to insistentemente proposta por Morin, possibilita ao sujeito
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em formao, um leque de possibilidades para que este possa
compreender melhor a si mesmo e ao mundo que o cerca.
Acredito que o papel da escola deva ser o de possibilitar uma
cultura que contribua para o indivduo compreender melhor sua
condio, permitindo-lhe ultrapassar o estado prosaico para viver mais
integralmente, mais poeticamente. O papel da escola deve ser o de
favorecer, como quer Morin, um modo de pensar aberto e livre
(2001a, p.11).
Ultrapassar o estado prosaico na educao significa dizer que
necessrio que a poesia tambm tenha vez na escola. O escritor
francs, Yves Bonnefoy em seu artigo Poesia tambm se ensina na
escola (Bonnefoy apud Almeida, 2003, p.135-139), destaca a
importncia que a poesia exerce na formao do sujeito. Bonnefoy
conta que em sua poca de estudante, ele e seus colegas tinham que, a
cada ano, decorar um poema para declam-lo na escola, sendo essa
uma das condies para ser aprovado. Mas ele lembra que decorar uma
poesia no tem como finalidade nica, a sua repetio. Muito mais que
isso, quando uma pessoa decora um poema, abre janelas para vida. A
poesia abre as comportas do imaginrio e remete o sujeito para outras
dimenses e patamares do conhecimento. Portanto, se eu tivesse que
responder pergunta feita pelo autor possvel ensinar poesia na
escola?, a resposta seria: no s possvel quanto necessrio, uma
vez que a poesia amplia horizontes para alm das janelas do mundo.
por acreditar na fora que tem a poesia, que escrevo boa parte da
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dissertao, em versos. Fao isso para demonstrar que possvel, sim,
ensinar poesia na escola, como tambm se pode escrever um texto
cientifico em versos, dando-lhe mais musicalidade e sentido esttico.
A dissertao tem como objetivo propor a reflexo acerca das
experincias vivenciadas pelos sujeitos que so fundamentais para o
processo de construo de seus conhecimentos. Elas se constituem
numa matriz para o processo de formao, permitindo, mais tarde,
ampliar outros conhecimentos. Como se pode observar, na minha
narrativa, tive oportunidade de mesmo antes de ingressar na escola,
vivenciar situaes e conviver com pessoas como meus avs e Seu
Antnio, senhor que trabalhava na casa de meus pais e lia versos todas
as noites aps o jantar. Essa experincia influenciou muito a minha vida
e meu aprendizado do mundo. A partir das coisas que Seu Antnio me
apresentou em versos, pude estabelecer relaes com elementos do
universo e da natureza, bem como com sentimentos maiores que hoje
compreendo serem os sentimentos do amor, da felicidade, e o sentido
da tica e do respeito. Aquelas experincias, vividas no passado, me
ajudam, hoje, a perceber a inter-relao existente entre universo-
homem / natureza-cultura e me fazem reconhecer que impossvel
separ-los.
Assim como Seu Antnio foi uma matriz de referncia para minha
compreenso do mundo, certamente, cada pessoa, em suas
experincias cognitivas primeiras, teve um seu antnio em suas vidas.
Busco este seu antnio na vida dos narradores que comigo participam
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da fogueira do conhecimento, como concebo essa dissertao. Na
procura dos seus antnios, estarei atenta a situaes, fatos,
acontecimentos e oportunidades que expressam elementos
reordenadores da viso de mundo dos interlocutores que, comigo,
mantm a combusto desse trabalho-fogueira.
A pesquisa se ancora, sobretudo, nas narrativas de experincias
de aprendizagens que contriburam como estruturas primordiais para a
formao dos sujeitos-autores com os quais dialogo e que, aqui,
assumem o lugar de narradores.
Esses narradores so seis professores da Rede Pblica de Ensino
(uma educadora nutricional e cinco concluintes do Curso de Pedagogia
em Regime Especial pela Universidade Estadual do Vale do Acara-
UVA), cujos trabalhos de concluso de curso se constituem em seus
Memoriais de Formao. A minha aproximao com esses professores e,
conseqentemente, com suas narrativas, aconteceu, no caso da
educadora nutricional, pelo acesso a seu texto Os quatro caminhos:
um itinerrio do nfimo ao infinito, e, no caso dos outros cinco
educadores, por ocasio do convite feito pela Orientadora do Trabalho
de Concluso de Curso (TCC), a professora Juvaneide Gerlayne da
Rocha, para participar da banca de avaliao dos referidos trabalhos. Ao
l-los, percebi que tinha encontrado solo frtil para realizao da
pesquisa e resolvi trabalhar com essas narrativas. A seleo das cinco
narrativas tomadas como instrumentos de estudo da pesquisa, foi feita
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pela professora orientadora dos referidos trabalhos, de forma aleatria
e conforme as devidas autorizaes dos professores.
Com base nas narrativas trabalhadas, possvel anunciar e
antecipar, de forma sutil, os operadores cognitivos de cada um desses
narradores. Temos na narrativa de Vera Lcia (educadora nutricional), a
presena de experincias voltadas para culturas diversas: a do seu
bairro pobre e marginal, do convvio com seus avs, com duas senhoras
francesas e em especial com a amiga Saturnina, que segundo Vera,
contribuiu para descortinar as janelas de sua vida; em Maria Zilma
vemos a forte influncia da figura paterna em seu processo educativo e
das experincias vividas por ela, fora da escola, como as novelas de
rdio com seus heris, a presena do ldico nas atividades de jogos e
as histrias em quadrinhos; em Elis Regina, a criao de uma escola
imaginria, o que lhe permitiu a religao entre real e imaginrio; nas
narrativas de Francisca Falco, vemos a forte influncia da utilizao de
folhetos de cordis, da aprendizagem pela oralidade, alm da influncia
de diversos itinerrios em sua vida: Lisieux expressa a forte presena
de elementos da natureza, pelo meio em que vivia, elegendo-o como
objetos de aprendizagem: as conchas do mar e a escrita na areia;
Marta Neves tem, na fora da fantasia e nos contos de fadas, um
acionador cognitivo importante para o desenvolvimento do imaginrio.
Alm das experincias desses educadores, amplio o conjunto das
narrativas sobre o processo de formao, com as experincias
educativas de Edgar Morin, autor de uma vasta obra que tem por meta
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a construo do Pensamento Complexo no mundo. Em Meus Demnios
Morin narra as experincias mais marcantes e decisivas para sua
formao, reveladoras da importncia que teve para o autor, a sua
insero na cultura das humanidades, resultantes da sua relao com a
morte prematura da me, o sentimento de perda, a sua relao com o
cinema e a literatura e com os amigos da Rua Menilmontant. Essa
vivncia subjetiva e artstica contribuiu para sua insero na cultura
cientfica, permitindo-lhe escrever sobre questes e temas de forma
ampliada, contextualizada, complexa.
Tomo ainda uma narrativa do influente pesquisador da cultura, o
norteriograndense Lus da Cmara Cascudo, na qual ele conta como se
processou seus saberes primordiais (livro O Tempo e EU). Est
evidenciada em Cascudo, a importncia que teve a sua primeira
professora e os contos fantsticos a que tinha acesso em sua casa.
Por fim, lano mo do livro O Banquete dos Deuses de Daniel
Munduruku - educador e escritor brasileiro, integrante do povo que tem
o mesmo nome, para utilizar suas experincias, em especial as vividas
com seu av Apolinrio, em suas muitas visitas aldeia, consideras por
ele como fundadoras para seu processo de formao.
Ao longo da dissertao trago outros narradores e suas
experincias: o poeta portugus Cesrio Verde, o escritor francs
Marcel Proust e a educadora brasileira Maria Isaura Queiroz que
tambm so referencias importantes.
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Ainda contaminada pela musicalidade dos versos de Seu Antnio,
uso como artifcio a transformao da prosa em poesia, convertendo em
versos, parte das narrativas escritas em prosa.
Com esse trabalho de investigao-formao, espero contribuir
para o debate e a reflexo sobre as aprendizagens dos sujeitos a partir
de suas prprias experincias, e ampliar os estudos sobre a utilizao
das narrativas de formao no mbito da formao dos professores.
Isso ser possvel, na medida em que consiga transpor para a realidade
dos professores, o exerccio reflexivo da docncia, mediante a
redescoberta de suas vivncias atravs de histrias de si. Quando
potencializadas essas histrias podem transformar suas prticas em
sala de aula, na medida em que identifiquem as bases primordiais de
suas formaes e conseqentes implicaes no exerccio da docncia.
Possibilitar ao professor a atribuio de novos sentidos ao
trabalho escolar e facilitar a reflexo sobre a sua prpria prtica, uma
tarefa importante. Promover elos entre educao e vida, de forma a
torn-las prosaica e mais potica possibilita a formao de sujeitos mais
plenos e capazes de religar saberes diversos e mltiplos.
A dissertao tem como metfora, a fogueira. Como sabemos,
para construir uma fogueira temos que escolher o local adequado, a
lenha apropriada, perscrutar o sentido do vento que animar suas
chamas e decidir o que vamos fazer em torno dela. essa seqncia
articulada de passos que constri o texto. Inspirada em Clarissa Pinkola
Ests, acendo a fogueira e convido pessoas para, em torno dela,
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presentearem-se com narrativas de experincias de vida e
conhecimento. As primeiras Chamas anunciam o combustvel que
alimentar a discusso, ou seja, as idias que perpassam a sua
construo. A Chama Escarlate reanima-se com minhas narrativas de
infncia, primeiras e decisivas experincias de vida. Botando lenha na
fogueira o tempo e o espao para reanimar a fogueira e convidar os
narradores para, em torno dela, narrar suas experincias e compartilhar
com os demais presentes. Nesta tarefa, assumo o lugar de narradora /
mediadora entre as narrativas e as interfaces que elas evocam com o
conhecimento. Em Ressurgindo das cinzas, fao uma proposio de
continuidade dessa atividade pelos educadores, por conceber o
inacabamento do conhecimento, em especial no trabalho com o
conhecimento de si, saber que no se esgota nunca, sendo impossvel e
arrogante arriscar qualquer tipo de concluso. Por ltimo, O lume da
fogueira anuncia os iluminadores das idias a partir das quais se
estrutura a dissertao.
O fogo um elemento que inspira poetas, cantores,
compositores, fsicos, qumicos,no
af de representar sentimentos
como amor, paixo; de realizar e
compreender a combusto de
corpos. Tambm utilizado como
figura emblemtica durante as
festas juninas no nordeste
Imagem 3 - Playing with fire.
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brasileiro, o fogo alimenta as fogueiras em torno das quais tudo
acontece: batiza-se, dana-se, tira-se a sorte, faz-se adivinhaes,
namora-se, vive-se, enfim. No Dicionrio de Smbolos (1992), o fogo
considerado como a metfora dos ritos de passagens e da sabedoria
humana. Gaston Bachelard destaca o amor como a primeira hiptese
cientifica para a reproduo objetiva do fogo (1992, p.442). Antes de
ser filho da madeira, diz ele, o fogo filho do homem. O autor
considera o mtodo da frico como um mtodo natural, sendo possvel
que o homem chegue a ele pela sua prpria natureza. O fogo, diz
Bachelard, surgiu em ns, inesperadamente, antes de ter sido
arrebatado ao cu (1992, p. 442).
Como num ato de arrebatamento do cu e da terra, as chamas
que emanam da fogueira que constru, comportam crepitaes e
movimentos, desejam despertar, em todos que se encontram ao redor
dela, os sentimentos do amor, da paixo, do encantamento e
enamoramento pelo contedo que anuncia, capaz de provocar a
combusto to necessria ao processo de produo do conhecimento e
formao do sujeito.
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Primeiras Chamas: Narrar para construir laos
Tambm fica uma fogueira dentro do meu corao.
Lamartine Babo.
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Contar ou ouvir histrias deriva sua energia de uma altssima coluna de seres humanos interligados atravs do tempo e do espao, sofisticadamente trajados com farrapos, mantos ou com a nudez da sua poca, e repletos a ponto de transbordarem de vida ainda sendo vivida. Se existe uma nica fonte das histrias e um esprito das histrias, ela est nessa longa corrente de seres humanos.
Clarissa Pinkola Ests.
A psicanalista jungiana, Clarissa Ests, diz que, entre seus povos,
as perguntas costumavam ser respondidas com histrias. Uma primeira
histria sempre evocava outra, na qual elas iam se encaixando como se
fosse bonecas Matrichkas. O ato de narrar, de que nos fala Ests, no
se limita a responder perguntas. Ao contrrio, prope a continuidade de
uma histria que est a se desenrolar, de forma que a experincia
narrada se transforma na experincia daquele que a ouve. Como que
para reforar esse argumento, Ests, em seu livro O Dom da Histria,
na tentativa de responder o que constitui o suficiente, o faz contando
histrias que ouvira de seus antepassados, narradores bons e
rsticos, que as contavam em vrias verses, muitas noites junto
lareira. Essa prtica fez com que a histria, sobre o que suficiente
para a vida, se perpetuasse por vrias geraes, atravs da oralidade.
A histria sobre o grande sbio, o Bal Shem Tov com a qual
Clarissa nos presenteia. Conta a histria que o amado Bal Shem Tov
estava morte e mandou chamar seus discpulos...
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Sempre fui o intermedirio de vocs e agora, quando eu me for,
vocs tero de fazer isso sozinhos. Vocs conhecem o lugar na floresta
onde eu invoco a Deus? Fiquem parados naquele lugar e ajam do
mesmo modo. Vocs sabem acender a fogueira e sabem dizer a orao.
Faam tudo isso e Deus vir.
Depois que o Bal Shem Tov morreu, a primeira gerao obedeceu
exatamente s suas instrues, e Deus sempre veio. Na segunda
gerao, porm, as pessoas j se haviam esquecido de como se acendia
a fogueira do jeito que o Bal Shen Tov lhes ensinara. Mesmo assim, elas
ficaram paradas no local especial na floresta, diziam a orao e Deus
vinha.
Na terceira gerao, as pessoas j no se lembravam de como
acender a fogueira, nem do local na floresta. Mas diziam a orao assim
mesmo, e Deus vinha.
Na quarta gerao, ningum se lembrava de como se acendia a
fogueira, ningum sabia mais em que local exatamente da floresta
deveriam ficar, e, finalmente, no conseguiram se recordar nem da
prpria orao. Mas uma pessoa ainda se lembrava da histria sobre
tudo aquilo e a relatou em voz alta. E Deus ainda veio (Ests, 1998,
p.7-9).
As histrias, diferentes dos homens, vivero para sempre, diz
Ests:
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Embora nenhum de ns v viver para sempre, as histrias conseguem. Enquanto restar uma criatura que saiba contar a histria e enquanto, com o fato de ela ser repetida, os poderes maiores do amor, da misericrdia, da generosidade e da perseverana forem continuamente invocados a estar no mundo, eu lhe garanto que ser suficiente (Ests, 1998, p.39).
Dar a palavra aos velhos , tambm, uma forte tradio da
cultura indgena. Por acreditarem que nem todo mundo dono das
palavras, os velhos que fazem uso delas porque sabem coloc-las em
seu devido lugar. Munduruku, em conferncia promovida pelo
Polifnicas Idias, em Natal-RN, contou-nos que entre seu povo, os
velhos, sendo considerados os mais experientes, tm como tarefa
ensinar aos mais moos, obedecendo sempre uma hierarquia na qual
cabe aos avs ensinar aos netos as coisas do esprito. As coisas prticas
da vida, como a caa, a pesca e outros conhecimentos necessrios
sobrevivncia, so ensinadas pelos pais.
As narrativas esto fortemente presentes na tradio indgena.
Atravs das histrias que ouvem dos mais velhos, as crianas aprendem
como surgiu o universo; o respeito pela natureza, a arte de observar os
movimentos dos animais e qual o significado do canto dos pssaros.
Aprendem tambm valores ticos e estticos, tanto quanto o sentido do
sagrado e outros conhecimentos que sero necessrios durante a vida.
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Tambm por suas experincias e por conhecer profundamente os
efeitos medicinais das plantas, na cultura Munduruku, quando uma
mulher est grvida, deve procurar o Paj para se aconselhar sobre a
escolha do nome do beb que vai nascer. De acordo com Munduruku, o
paj prepara um ch feito da combinao de vrias ervas que ele
conhece muito bem e oferece me que dever tomar pouco antes de
dormir. Em seguida, a me mergulha num sono profundo e sonha com
algum elemento sagrado da natureza, como um peixe, um pssaro, um
jacar, um rio, uma pedra... O elemento que aparece no sonho tem
como tarefa convencer a me de que seu filho dever ter o nome dele,
sempre alegando bons motivos. Mas esse sonho s vale se se repetir
por muitas vezes. Ento a me tem certeza de que aquele nome que
deve dar a seu filho e mesmo que ao longo da vida, ele venha receber
outro nome, o que sua me lhe deu ser o seu guia, devendo ser
compartilhado apenas com pessoas muito especiais. Estes ndios
aprendem, desde cedo, que o nome a nica coisa que lhes pertence.
Todas as outras coisas so apenas tomadas de emprstimo, devendo
ser muito bem cuidadas e respeitadas, uma vez que devero ser
devolvidas natureza, de onde vieram. Assim nos contou Munduruku.
Todas estas narrativas esto permeadas de situaes vivenciadas
ou experienciadas pelos sujeitos, contribuindo para a formao ou
transformao de suas identidades e subjetividades.
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ainda Ests quem fala sobre o ato de narrar. Segundo ela,
quando as pessoas se renem em volta de uma fogueira para ouvir e
contar histrias selam laos de amizade e de compromisso para
sempre. Esta prtica, que aproxima os sujeitos e cria laos de
solidariedade, est fortemente presente nos terreiros, alpendres e
caladas do homem sertanejo, o que, muitas vezes, se constitui numa
escola primeira, principalmente para as crianas que participam dessas
rodas e vo, no convvio entre elas e com os adultos, nas trocas de
experincias, construindo conhecimentos que lhes sero teis e
necessrios, durante toda a vida.
Se nas tribos indgenas, como na Munduruku, so os velhos que
tm a palavra por serem mais experientes, na cultura em que viveu
Estes, essa uma tarefa que se delega tambm s crianas e jovens.
Na educao isso muito importante porque o professor lida, no s
com os adultos que narram suas experincias, mas com crianas e
jovens que, igualmente, vivem experincias e podem refletir sobre
muitos aspectos da formao atravs de suas narrativas.
Ests considera a vida de um guardio de histrias, uma
combinao de pesquisador, curandeiro, especialista em linguagem
simblica, narrador de histrias, inspirador, interlocutor de Deus e
viajante do tempo (1989, p.10). Por isso Ests aconselha a pedir aos
velhos resmunges para que contem suas melhores lembranas, s
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criancinhas, seus momentos mais felizes e aos adolescentes, o que mais
assusta suas vidas. E aconselha:
(...) d a palavra aos velhos, passe por toda a roda, force os introvertidos, pergunte a cada pessoa (...) Todos sero aquecidos, sustentados pelo crculo de histrias que criarem juntos (Ests, 1989, p.39).
Historicamente, os humanos sempre sentiram necessidade de
contar histrias, seja para deixar para as geraes futuras, seja pelo
prazer de registr-las e de alimentar o capital cognitivo do sapiens-
demens, variando conforme o tempo e o espao: em rochas, cavernas,
pergaminhos, livros, verbetes, ou, ainda, perpetuando-as, atravs da
oralidade. Seja como for, narrar uma atividade peculiar condio
humana. Para faz-lo, o homem aciona seu imaginrio que comporta a
polifonia das leituras que o sujeito faz dele prprio e do mundo.
(Almeida, 1996, p.232).
O homem habita a terra envolto numa teia de relaes em que
tece, conjuntamente, os elementos mitolgicos/ empricos/ tcnicos/
racionais. A condio humana parasitada, portanto, pela unidualidade
do pensamento, sendo o homem um ser mito-lgico, produto e
produtor da dialgica entre duas estratgias, dois modos de
decodificao do mundo (Almeida, 1998, p.237). Estes dois modos
coexistem, ajudam-se mutuamente. A existncia de um necessita,
permanentemente, da do outro, confundindo-se por vezes, mas sempre
provisoriamente, pois toda renncia ao conhecimento
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emprico/tcnico/racional conduz os humanos morte; toda renncia s
suas crenas fundamentais desintegra a sua sociedade (Morin apud
Almeida, 1998, p.237). No h, portanto, um imaginrio do homem
arcaico e um imaginrio do homem moderno, permanecendo o
paradigma enigmtico do homem unidual.
Sendo a experincia vivida e refletida uma forma de reordenar
conhecimentos, essa experincia tem na narrativa a sua condio
operativa e multiplicadora, pois de nada vale uma experincia que se
insulariza no sujeito isolado. Tudo que no narrado morre com o
sujeito. Ao contrrio, tudo que narrado e partilhado pode se constituir
em elemento potencializador de novas snteses criativas e em elos que
ligam os sujeitos entre si. Desta perspectiva, experincia e narrativa
so pares indissociveis do conhecimento e da cultura.
Josso considera os contos e as histrias da nossa infncia como os
primeiros elementos de uma aprendizagem que sinalizam que ser
humano tambm criar as histrias que simbolizam a nossa
compreenso das coisas da vida (2004, p.43).
Neste sentido, contar histrias desenvolver uma experincia
formadora na medida em que, ao faz-lo, acionamos o nosso
imaginrio, entramos em contato com situaes agradveis ou no, e
estabelecemos relaes com inmeros elementos, que se encontram
dentro e fora de ns mesmos, marcando a nossa presena no mundo e
contribuindo para a construo de novos conhecimentos. Quando
narramos as nossas prprias experincias, acionamos estados de ser
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que estavam adormecidos, guardados em algum lugar de nossas
memrias e que, ao serem narradas, passam por um processo de
renovao, uma vez que tentamos ressignific-las no momento em que
narramos. Este fragmento de Marcel Proust refora bem o argumento.
(...) A maior parte de nossa memria est fora de ns, numa virao de chuva, num cheiro de quarto fechado ou no cheiro duma primeira labareda, em toda parte onde encontramos de ns mesmos o que nossa inteligncia desdenhara, por no lhe achar utilidade, a ltima reserva do passado, a melhor, aquela que, quando todas as nossas lgrimas parecem estancadas, ainda sabe fazer- nos chorar. Fora de ns? Em ns, para melhor dizer, mas oculta a nossos prprios olhares, num esquecimento mais ou menos prolongado (Proust, 1984, p.172).
As experincias formadoras so tanto as que alimentam a
autoconfiana, quanto as que alimentam as dvidas, as questes e as
incertezas. Assim como a histria dos povos pode ser reescrita com a
felicidade ou desgraa, conforme a conhecemos, a histria de nossa
formao e a compreenso de nossos processos de formao e de
construo do conhecimento podem ser transformados por meio da
narrativa.
Com o propsito de trabalhar as narrativas numa perspectiva de
formao do sujeito, comeo por referir a tese de doutorado de Elizeu
Clementino de Souza (2004): O conhecimento de si: Narrativas do
itinerrio escolar e formao de professores. A tese prope a utilizao
da abordagem biogrfica como perspectiva epistemolgica sobre a
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aprendizagem do sujeito a partir de suas prprias experincias, como
uma forma de ampliar os estudos sobre a histria de vida, no contexto
da formao inicial de professores. O autor prope a utilizao dessas
narrativas, numa perspectiva de autoformao, no mbito do estgio
supervisionado, aproveitando a fertilidade e a potencialidade desta
abordagem em projetos de investigao-formao de professores.
Segundo Souza, a escrita da narrativa remete o sujeito para uma
dimenso de auto-escuta de si mesmo, como se estivesse contando
para si prprio suas experincias e aprendizagens que construiu ao
longo da vida, atravs do conhecimento de si (2004, p.72).
O que est em jogo no conhecimento de si no apenas
compreender como se deu o nosso processo de formao, ao longo da
nossa vida, atravs de um conjunto de experincias, mas tomar
conscincia dessa forma de nos reconhecermos a ns prprios como
sujeitos mais ou menos ativos, permitindo, da em diante, encarar o seu
itinerrio de vida, os seus investimentos e os seus objetivos na base de
uma auto-orientao (...) que articula de uma forma mais consciente,
as nossas lembranas, as nossas experincias formadoras, os nossos
sentimentos de pertena (Josso, 2002, p.65).
O trabalho com narrativas de formao consiste em compreender
o sentido da utilizao desta abordagem, como instrumento formativo,
constituindo um novo olhar sobre a identidade e subjetividade do
profissional de educao, para ultrapassar a concepo escolar de
formao. Tomar conscincia do valor das experincias vivenciadas pelo
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sujeito-professor o primeiro passo desse processo. As narrativas, de
acordo com Souza, mobilizam o sujeito atravs de um olhar
retrospectivo e prospectivo sobre si, possibilidades de compreenso de
processos e fenmenos scio-educativos (2004, p.130), em especial
aqueles que esto diretamente voltados para sala de aula e para prtica
docente.
Tambm Matthias Finger (1988) aposta na autobiografia como um
mtodo capaz de promover a formao do sujeito e faz uma crtica
formao que tradicionalmente se pratica, por estar, cada vez mais,
atrelada cincia. Segundo o autor, o projeto da modernidade, no nvel
tcnico-econmico, a viabilizao de uma produo cada vez mais
cientfica; no nvel poltico, tem-se como foco desenvolver uma gesto
cada vez mais racional e, no nvel cultural, difundir, pedagogicamente,
o saber e os contedos cientficos. No entanto, nenhuma informao
tem significado isoladamente. Para compreend-la, necessrio que a
pessoa integre e signifique a informao a um outro saber.
Finger denomina a prtica que investiga esse outro saber, de
mtodo biogrfico, embora saiba que essa metodologia no tem sido
usada na busca de um saber epistemologicamente alternativo. Para o
autor, essa forma de investigao valoriza uma compreenso que se
desenvolve no interior da pessoa, a partir das vivncias experimentadas
ao longo de sua vida. Esse conhecimento no apenas crtico, reflexivo
ou histrico, mas , fundamentalmente, formador. Finger considera que
deveria ser esse saber, a preocupao primordial da pedagogia, pois,
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atravs dele, as pessoas so capazes de elaborar suas identidades. E se
esse tipo de processo de tomada de conscincia que as pessoas
devem ativar para se formarem, necessrio se faz uma reorientao dos
processos de formao.
Morin considera como o grande desafio do sculo XX, a reforma
do pensamento, que visa o desenvolvimento de uma democracia
cognitiva passvel de uma reorganizao do saber, permitindo a
religao do que est separado. Para Morin, tal proposta traz, em seu
mago, um paradoxo. A universidade, instituio que forma os
educadores, conservadora, e tem como funo a memorizao e
ritualizao do patrimnio cognitivo. Alm disso, gera um saber e
cultura que entram nessa herana (Morin, 1997, p.19). Ento
necessrio reformar a instituio (as estruturas universitrias). Porm,
isso impossvel sem a reforma anterior das mentes. Da mesma forma
impossvel reformar as mentes sem antes reformar a instituio.
Para Morin surge a uma impossibilidade lgica: Quem educa os
educadores? A resposta emerge, em grande parte, do exerccio da
reflexividade.
necessrio que eles se auto-eduquem e se eduquem prestando ateno s gigantescas necessidades do sculo, as quais so encarnadas tambm pelos estudantes (Morin, 1997, p.19).
Edgard de Assis Carvalho tambm aposta na necessria educao
dos educadores como fenmeno de mudanas. Para este autor,
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qualquer teoria da mudana nos aspectos scio-histricos e na
educao, traz consigo a necessidade da educao dos educadores. O
processo de formao deve acontecer atravs da fomentao da
identidade entre cincia e arte, cincia e tradio, estimulando a
religao entre razo e sensibilidade. A educao dos educadores
dever reconhecer que a funo escolar, em qualquer nvel em que se
exera, precisa estabelecer uma conexo forte entre presente e
passado de um lado, e entre sociedade e indivduo do outro (Carvalho,
2001, p.102).
Isabel Alarco reafirma a necessidade do professor ser um sujeito
cada vez mais vido por se autoconhecer para se autodesenvolver e diz
que ao estatuto do Professor / narrador / personagem (...) subjazem
conceitos como Aprender e Ensinar, Contar, Refletir, Agir, Criar. Existir
(...) Conscientizar, Julgar, Transformar (Alarco, 1995, p.130).
A escrita de autobiografias constitui-se, dessa perspectiva, um
momento singular para desenvolver a competncia interpretativa e
reflexiva sobre o sujeito e, no caso do professor, sobre o cotidiano
escolar, promovendo uma auto-reflexo que permita o desenvolvimento
de uma prxis mais livre, com menos amarras. Permite, ainda, segundo
Josso,
Explicitar a singularidade e, com ela vislumbrar o universal, perceber o carter processual da formao e da vida, articulando espaos, tempos e as diferentes dimenses de ns mesmos, em busca de uma sabedoria de vida (Josso, 2004, p.9).
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O trabalho com as histrias de vida configura-se como um
processo de conhecimento. Um conhecimento de si, das relaes que o
sujeito estabelece com o seu processo formativo e com as
aprendizagens que construiu ao longo da vida. um processo em que o
sujeito se forma a partir da reflexo que faz sobre as experincias
vividas.
Vale ressaltar que nem todas as experincias vivenciadas pelos
sujeitos causam transformaes profundas em seus processos de
aprendizagens. Josso prope uma distino entre vivncia e
experincia. Segundo a autora vivemos uma infinidade de transaes e
vivncias. Mas estas vivncias s atingem o status de experincias a
partir de um certo trabalho reflexivo que fazemos sobre o que passou e
sobre o que foi observado, percebido e sentido. O conceito de
experincia formadora implica uma articulao entre atividade,
sensibilidade, afetividade e ideao. Articulao que se objetiva numa
representao e numa competncia (Josso, 2004, p.48).
Para que uma experincia seja considerada formadora,
necessrio que ela esteja relacionada com o processo de aprendizagem,
que provoque uma metamorfose no sujeito, ou seja, que essa
experincia represente atitudes, comportamentos, pensamentos, saber-
fazer, sentimentos que caracterizem uma subjetividade e identidades.
As narrativas de formao permitem distinguir experincias
coletivamente partilhadas em nossas convivncias socioculturais e
experincias individuais, experincias nicas e experincias em srie.
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Se essa maneira de compreender as experincias no denota uma
perspectiva absolutamente unitria e sem conexo do indivduo com os
outros, certamente Erwin Schrodinger tem razo quando reflete a
respeito de uma tela comum a partir da qual o ser humano conecta
suas singularidades e subjetividades.
Cada um de ns tem a indiscutvel impresso de que a soma total de suas experincias e reminiscncias forma uma unidade muito distinta da de qualquer outra pessoa. A pessoa se refere a si prpria como Eu. O que esse Eu? (...) penso que ele bem mais que uma coleo de dados singulares (experincias e memrias), nomeadamente, a tela sobre a qual eles esto coletados.
Erwin Shrodinger.
Para pintar um quadro, o artista escolhe, cuidadosamente, todos
os artefatos necessrios arte de criar. Primeiro, uma tela em branco
do tamanho que lhe convm; depois, tintas, pincis, combinaes,
experimentos, e muita, muita imaginao. Tempo pra pensar, pra
sonhar e, enfim, criar. Todos esses ingredientes compem o cenrio
alqumico da sua produo.
Quem nunca pensou ou procurou decifrar as imagens - histrias
tatuadas numa tela, mesmo naquela que aos nossos olhos parea a
mais subjetiva? Conheo uma que, vista de um observador
desavisado, pode parecer uma poro de traos desconexos, algumas
palavras sem sentido e uma menina mal pintada de frente para alguma
coisa que no se sabe bem o qu. Eu, que participei do momento de
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sua criao, no consigo passar diante dessa tela, sem reviver toda a
atmosfera do momento mgico em que o artista plstico natalense,
Pedro Pereira, de posse de seus pincis e tintas, ao som da voz de
Adriana Calcanhoto cantando Esquadros e inspirado em uma pgina
do Dirio de Frida Kahlo, transformou narrativas em imagem. A
experincia, a qual me refiro, foi vivenciada durante o evento
Simposium Po e Circo, promovido pelo Grupo de Estudos da
Complexidade-Grecom-UFRN, que se intitulou Sob o olhar de Frida
Kahlo e tratava das narrativas de vida da artista mexicana.
Reviver aquele momento me faz despertar para o elo que existe
entre experincia/ narrativas/ imaginao/ criao/ conhecimento,
simultaneamente, um processo individual e coletivo. Segundo Almeida,
todo sujeito se modifica a partir de uma experincia de conhecimento,
que subentende o tratamento de informaes que esto a sua volta ou
chegam at ele (2003, p.43). Contar histrias seja tatuando-as em
telas, seja atravs da oralidade ou da escrita, uma forma tanto de
relatar experincias quanto de provoc-las.
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Chama Escarlate:
O conhecimento de si
Fogueira no cho queima a ponta da varinha
da minha infncia.
Tomoko Kimura.
Fogueira... Lembrana longnqua
Crianas gritam alegria.
Hissami.
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Aquecida pelas labaredas mais vermelhas que emanam da
fogueira, comeo a contar minha histria. A histria de como aprendi a
aprender. Como acontece com todos os sujeitos, as experincias da
infncia se constituem em modelos cognitivos primordiais e servem
como base para a construo de uma matriz que me permite ampliar
outros conhecimentos, ao longo da vida.
Vejo-me ainda criana, caminhando de mos dadas com minha
av, embaixo das enormes
rvores que enfeitavam o
caminho da casa da fazenda
at a vazante do aude. Ali,
ela cultivava repolhos,
coentro, cebolinha e
pimentes. A minha av
cultivava pimentes Imagem 6- Caminho. vermelhos, verdes e
amarelos, o que me causava muita admirao, pois at ento, s
conhecia os pimentes verdes que davam mais sabor aos alimentos na
casa de meus pais. Aqueles vermelhos e amarelos instigavam a minha
vontade de prov-los, e foi assim que passei a comer pimentes crus,
recm-colhidos, ainda molhados de orvalho. At hoje, se fechar bem os
olhos, consigo sentir aquele cheiro de terra molhada e de pimentes
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pedindo para ser colhidos e degustados ali mesmo, na horta. Regados,
tambm, claro, pelo carinho e afeto da vov.
Aps os cuidados
dispensados horta,
colhamos tomates, alm
de folhas de alface e
couve, que mais pareciam
grandes leques de
madames, e voltvamos
para casa a fim de
prepararmos as iguarias
para o almoo. Imagem 7- pimentes.
Vov chegava do trabalho com a alegria de quem volta da melhor
das festas. Lavava o rosto suado e as mos calejadas numa bacia de
gata branca, com a gua que minha av, pacientemente, derramava
sobre suas mos, de um cntaro igualmente branco. Depois deste
pequeno ritual, sentvamos mesa e almovamos em silncio.
Silncio este quebrado apenas quando vov decidia contar algum
causo acontecido l no roado, como uma cobra enorme ou muito
venenosa que teria atravessado seu caminho, ou lamentado sobre
aquela bela melancia que teria trazido para casa, se o guaxinim no a
tivesse descoberto primeiro; ou, ainda, como as juritis estavam
cantando quela manh, sinal de que teramos chuva ao fim da tarde.
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s vezes meu av chegava com cara de pouca conversa, cenho
franzido... Decerto a praga da lagarta estava devorando a plantao.
Nestas ocasies, ele no ficava para a cesta, tinha providncias a
tomar, ou a famlia no teria provimentos para o resto do ano.
Eu, menina que era quela poca, aos seis anos de idade, no
sabia que tais experincias e ensinamentos se constituiriam, aos
poucos, nos alicerces da minha formao primeira. Naquela
convivncia, eu, como todas as crianas do mundo, mas de modo
particular, estava sendo iniciada nas primeiras noes de tica, de
respeito natureza; recebia lies de previses do tempo, atravs do
relato de experincias dos adultos que me rodeavam e da observao
direta dos fenmenos naturais. Aprendia a gostar e valorizar as pessoas
pelas suas histrias, ao mesmo tempo to singulares e complexas.
Meu av era afeito caa. Caava tatus, pebas verdadeiros e
aves que passavam a fazer parte do nosso cardpio. Um dia vov
preparou, cuidadosamente, para o almoo, uma espcie de rptil que
meu av caara. Eu havia acompanhado todo o processo de preparao
da caa. Na hora do almoo, todos sentados mesa, minha av me
serviu um naco da carne dourada e cheirosa que eu abandonei no canto
do prato, at o final da refeio. Preocupada, vov perguntou-me a
razo de eu no ter provado a iguaria que me servira. Eu,
envergonhada, respondi que no gostava de comer lagartixa, o que
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rendeu muitos sorrisos mesa e, at hoje, quando nos reunimos e
relembramos os fatos do passado.
Tambm na fazenda do meu av produzia-se queijo de manteiga.
A enorme casa circundada por alpendres, tinha como vizinho prximo, o
curral, onde ficavam as vacas e suas crias, durante o dia. Quando os
ltimos raios de sol se despediam do horizonte, deixando no cu uma
faixa amarelo-ouro, que ofuscava meu olhar, era hora de meu av
voltar do roado e, antes de entrar em casa, ir cumprir a tarefa de
apartar as vacas dos bezerros. Estes passavam a um outro curral, onde
ficariam noite a fio. Assim, garantia-se que os beres das vacas se
enchessem de leite e, quando o sol comeasse a dar sinal do seu
retorno, vov e meu tio adentravam o curral para a ordenha. Nesta
atividade, mantinham um tal movimento em suas mos, de forma que o
leite, ao cair no balde, emitia um som to ritmado que mais parecia
uma sinfonia. Saia Branca era sua vaca de estimao e era
considerada a mais forte e saudvel, por isso era dela que vov enchia
meu copo do leite morninho que eu tomava ali mesmo no curral.
Percebo hoje que encher o meu copo com o leite de Saia Branca era
como uma declarao de amor do meu av a mim. Ele se divertia com
a aurola branca que se formava em torno dos meus lbios rosados e,
em seu sorriso, havia a generosidade de quem se sabe dando o melhor
de si para a pessoa amada.
Mais tarde, o leite levado para casa era colocado para coalhar. A,
seguia-se o processo de decantao. Vov, junto com minhas tias,
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enchia enormes trouxas brancas feitas de saco alvejado e punha para
coar at a ltima gota de soro. No dia seguinte, aquela coalhada se
transformaria numa branca mistura que levada ao fogo, aos poucos, ia
ficando dourada e se transformava em queijo. Terminado o processo,
minha av deitava-o, ainda quente, em tabuleiros de vrios tamanhos.
Uma parte seria consumida pela famlia, o que restasse seria vendido
na cidade para ajudar nas despesas domsticas. O queijo era cozido
num imenso taxo de metal e quando dele era retirado, sobrava uma
crosta que se formava no fundo. Era hora de atacar, hora de raspar o
taxo. O queijo, ainda quente, fazia fios que iam desde a enorme vasilha
at minha boca, de forma que, s vezes, eu ficava entrelaada numa
teia de queijo que grudava nos meus cabelos e na minha pele branca.
Eu era uma menina feliz, cheirosa a queijo, a manteiga e a pimentes
vermelhos.
Mal sabia, naquele ritual de vida simples que aquelas experincias
de criana teceriam teias que estariam presentes em muitos outros
momentos de minha vida. No mais teias feitas de fios de queijo, mas
outras que foram se formando e surgindo como as estruturas e
arqutipos da vida na diversidade das suas relaes, restando-me
continu-las e transform-las, rasgando-as, retirando-lhes os ns e,
porventura, acrescentando-lhes outros, para tec-los diferentemente.
Esta teia, portanto, no uma estrutura fixa e imutvel. Ao contrrio, a
sua estrutura e natureza ntimas residem na versatilidade e
metamorfose das articulaes e formas que se vo gizando, num
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movimento que poderamos designar como uma gnese contnua. E,
assim, enquanto tecemos a teia, ela vai se tecendo e vai nos tecendo
tambm (Cabral & Almeida apud Ferreira, 2002, p.41).
Assim o conhecimento. Ele no algo que est dado. na
relao que com ele estabelecemos, nas experincias vivenciadas ao
longo de nossas vidas, que vamos tecendo as nossas teias de
significados, aos poucos modificando-as e sendo ns mesmos
modificados, a ponto de no sabermos mais identificar aonde tudo
comeou, assim como no sabemos onde vai dar, num entrelaamento
constante, tal qual a teia que a aranha tece sem nenhum compromisso
com o tempo.
Como toda criana, gostava de me fantasiar e era no ba de
roupas da minha tia Elita que encontrava solo frtil para minha
imaginao. As saias de cambraia branca com largos bicos ingleses
eram as peas preferidas para me transformar numa noiva. As flores
para a mo eram colhidas no jardim que ficava na lateral da casa.
Tambm era dentro desse mesmo ba que me escondia, quando fazia
alguma coisa que os adultos consideravam errada, o que,
inevitavelmente, sujava toda a roupa. Minha tia resolveu virar a
fechadura do ba para a parede, acabando com a minha festa. A
inspirao surgia, ento, com os lenis de cama com os quais eu fazia
longos vus, com as camisolas da minha av, os aventais da cozinha e
at com as peles de animais que ornamentavam as cadeiras da sala.
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Tudo compunha uma pea para realizao dos meus desejos e alimento
do meu imaginrio.
Tia Elita, assim como minha me, era costureira e,
freqentemente, as pessoas nos visitavam trazendo pacotes de tecido
que ela transformava em roupas. Eu achava essa atividade muito
mgica. No entendia como um pedao inteiro de pano podia ganhar
tantas curvas e formas. Talvez, influenciada por essa curiosidade, muito
cedo comecei a costurar roupas para bonecas e mais tarde tornei-me
costureira tambm de minhas prprias roupas e de outras pessoas, sem
nunca ter freqentado um curso formal de corte e costura.
Um dia, minha tia anunciou que ia fazer uma boneca de pano pra
mim. Fiquei muito feliz e acompanhei todo o processo de confeco da
boneca. Ela fez cada parte separadamente: o tronco, as pernas, os
braos. cabea ela dedicou uma ateno especial. Bordou o rosto da
boneca: boca vermelha, mas do rosto rosadas com blush, olhos azuis
para combinar com os meus, sobrancelhas marrons e cabelos loiros,
cheios de cachinhos. Aquela boneca foi a mais bonita que tive em toda
a minha infncia. Seus braos e pernas eram mveis, permitindo
qualquer movimento, o que me deixava fascinada. Alm do mais, ela
era enorme, parecendo um beb de verdade e eu podia vestir nela
tantas roupas quanto quisesse.
Os longos perodos vividos na fazenda do meu av eram
justificados pela minha pouca idade para ir escola, uma vez que no
havia na regio, escolas de educao infantil. Era, tambm, uma forma
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de amenizar o trabalho de mame que tinha de cuidar dos meus outros
irmos, todos pequenos. As atenes que me eram dispensadas, alm
de todos os atrativos que tm as casas dos avs, faziam do meu
regresso um evento de poucas alegrias. Quando resolviam que era
chegada a minha hora de retornar casa paterna, era na garupa do
cavalo do meu av que fazia o longo percurso da volta. Lembro-me de
uma dessas ocasies em que acordei logo cedo e vesti um vestido
vermelho de bolinhas brancas em alto relevo que mais pareciam
bolinhas de isopor. Eu adorava aquele vestido de corpo princesa e cinto
branco na altura do quadril. Depois me montaram na garupa do cavalo
e seguimos caminho. Vov havia amarrado um leno em minha cabea
para livrar-me dos malefcios do sol. No tinha um quarto de hora da
nossa sada da fazenda, com o trotar do cavalo, o leno desceu minha
testa cobrindo meus olhos e obrigando-me a escolher entre soltar a
cintura do meu av para ajeit-lo, correndo o risco de cair do cavalo ou
viajar de cabra cega. Fiz a segunda opo e, pelo menos naquele dia,
eu no vi a paisagem no caminho de volta. Paisagem a mim to familiar
naquelas idas e vindas casa dos meus avs.
Penso que, naquela situao, eu escolhi viajar de cabra cega para
poder sentir de outra maneira (aquela que os olhos no vem, mas o
corao e todos os outros sentidos percebem) as sensaes que os
nossos olhos no nos permitem ter ao estarem abertos. Assim, eu
podia me encantar ao distinguir o canto dos pssaros mais suaves,
como o bem-te-vi, o tetu, o rouxinol, do grito do canco, que
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estremecia a estrada. Percebia a aproximao e a travessia das
porteiras quando meu av se inclinava para frente para abri-las e
passar. Ouvia o riacho, sentia o cheiro do mato e imaginava as figuras
de nuvens claras que se formavam no cu. Tambm me divertia
ouvindo o trote do cavalo, criando mentalmente canes que
combinavam com a melodia de suas pisadas ao cho. Assim, entre
sons, cheiros, melodias e imagens, captadas e produzidas pela minha
imaginao, chegamos casa dos meus pais.
Os meus retornos eram sempre marcados por muita festa dos
meus pais e meus irmos. Eu, no entanto, ficava torcendo para que me
mandassem de volta. Como isso no acontecia, levava dias para me
acostumar falta de novidades de minha casa.
Vov tinha uma imensa criao de patos que nadavam conosco no
aude, lado a lado. Eu, nas costas das minhas tias, e eles, livres,
altaneiros, atravessavam longas distncias aquticas, sem o menor
esforo. De volta casa de mame, que no criava patos, mas
galinhas, era com estas que treinava as minhas lies e tcnicas de
mergulho e nado. As coitadas ficavam num grande alvoroo e se
ningum as socorressem, provavelmente eu teria matado muitas
galinhas afogadas. Ficava chateada e no entendia porque as aves da
vov nadavam com tanto prazer e as da minha me tinham tanta
averso gua.
claro que todas essas lies eu aprendi mais tarde quando, na
escola, a professora explicou que a diferena estava em ter um par de
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ps com dedos e um par de ps como nadadeiras. Galinhas, nas suas
condies de galinhas, no podem nadar; enquanto que da natureza
dos patos que eles nadem e possam fazer travessias aquticas que as
galinhas jamais faro, pois galinhas so filhas da terra, e patos,
igualmente filhos da terra, tambm possuem a profundeza das guas
em seus coraes.
Foi, ainda, nessa poca da minha infncia que fiz meus primeiros
contatos com uma outra cultura. A dos cidados do mundo, os ciganos.
Meu pai herdara do meu av, que herdara do meu bisav, o costume de
dar arrancho aos ciganos.
Estes apareciam periodicamente l no stio, montados em mulas
com seus recm-nascidos metidos dentro de uma tipia, que as mes
traziam transpassada em seus ombros. As casas-barracas, prontas para
serem montadas e desmontadas com a maior facilidade possvel, junto
com vesturios e utenslios, eram igualmente transportados nos lombos
das mulas.
Mas, o que mais me impressionava era o mistrio que rondava o
interior das tendas armadas, os longos e coloridos vestidos usados
pelas ciganas, as tatuagens feitas em seus corpos (geralmente o nome
do homem amado), os colares de muitas contas e cores, e suas formas
de falar. Algumas ciganas contavam-nos histrias fantsticas de seu
mundo e de seus saberes.
Uma das histrias que ouvi e que muito me impressionou, dizia
respeito ao surgimento do universo. Contava a cigana que, um dia, os
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Deuses se revoltaram porque no mundo no existiam pessoas normais,
apenas deuses que disputavam entre si o poder. Ento, um grupo
desses deuses resolveu atear fogo no universo, ocasio em que
morreram todos. O mundo virou uma gigantesca bola de fogo, levando
muito tempo para esfriar novamente. A comeou a surgir os animais,
dentre eles os homens, as plantas e tudo que conhecemos hoje, dizia
ela, naquela ocasio. Ficvamos muito confusos porque conhecamos a
histria do dilvio de que fala a Bblia e no sabamos em qual histria
acreditar. Mas a forma misteriosa que a cigana usava para nos
convencer de que a histria era verdadeira, nos fascinava. Ela tambm
contava sobre a perseguio que sofria seu povo por no ter uma ptria
e contava muitas outras histrias diferentes das que,
convencionalmente, se conta para as crianas.
Esse conjunto de histrias ciganas que se confrontavam com as
histrias da Bblia crist, certamente me ajudou a construir uma viso
de mundo na qual valem vrias verses. Creio que a dificuldade que
tenho hoje em aceitar uma s verdade, uma s histria, oriunda de
experincias como essa que acabo de narrar.
Passvamos o dia a observar os movimentos daqueles nmades.
Eles riam muito, deixando mostra seus dentes de ouro; contavam
segredos entre si, em sua lngua; conquistavam pessoas para ler a
mo; alegravam-se com o pouco que tinham. E, quando caa a noite,
acendiam uma fogueira, em torno da qual cantavam e danavam.
Quando eles se iam, deixavam, por longo tempo, suas marcas, nas
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cinzas que restavam da fogueira, nas trempes em que preparavam seus
alimentos ou em algum objeto que deixavam para trs.
Lembro de como sonhei fugir com os ciganos. Pensava que eles
podiam me mostrar um outro mundo, mas agora acho que o que mais
me atraa era aquele estilo de vida, ao mesmo tempo, incerto e livre.
O que aprendi com os ciganos? Aprendi a respeitar a diversidade;
aprendi a criar meus deuses, a acreditar nos mitos; aprendi sobre
outras formas de explicar a origem do universo. Aprendi muito sobre a
vida.
Essa uma forma de dizer da minha experincia com o mundo,
no seio da minha famlia e em contato com a natureza, uma forma de
narrar as minhas experincias de vida, no para me distinguir das
demais pessoas, mas como forma de descoberta e valorizao da minha
singularidade, podendo despertar os mesmos sentimentos a tantos
quantos possam pensar sobre experincias que contriburam,
igualmente, em seus processos de desenvolvimento e formao. Mas a
continuao dessa histria pode ser narrada de uma outra forma. Por
meio de versos.
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Botando lenha na fogueira: Compartilhando experincias
Nesta brasa de letras
que se esfuma a poesia
Traga essa chama que a alma ateia
Nesta fogueira da alma que ao texto ilumina
Traga o verso e nada mais Na calada da noite
Ou com o sol ardente.
No F. Massango.
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Agora, com labaredas j bastante escarlates, em meio s fagulhas
que a fogueira cospe, como que alimentada pela histria que acabara
de ouvir, percebo o vulto de pessoas que vo se aproximando, pouco a
pouco, e se acomodando em torno da fogueira, todos no mais profundo
silncio. So os meus convidados que esto chegando, atendendo ao
convite que os fizera para um encontro, no qual iramos compartilhar
nossas histrias de vida e formao.
Caros colegas profesores,
pesquisadores e cientistas
Convido para um encontro
E ofereo uma pista
Compartilharemos histrias
Ser coisa nunca vista.
As histrias so de vidas
Podendo ser de morte tambm
Fica ao gosto de vocs
Contar o que lhes convm
O importante que sejam
Vivncias que o autor tem.
O local vocs J sabem
Naquele lugar na floresta
Convidei poucas pessoas
Espero que venham depressa
Com uma fogueira queimando
Juro que vai ser uma festa.
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Ao perceber que
escolheram para senta
e anunciando o que va
para no perder o ritmo
Imagem 9- Fogueira Junina. todos j esto acomodados nos lugares que
r junto fogueira, comeo dando as boas vindas
mos tratar nesse encontro, cantando em verso
.
Bem-vindos meus convidados
Que vieram alegrar
Essa noite iluminada
E suas histrias contar
Fiquem todos vontade
Pra podermos comear.
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Hoje cada um de ns
Juntos num mesmo passo
ao contar nossas histrias
Fortaleceremos laos
De amor e amizade
Unidos num grande abrao.
Que as chamas da fogueira
Aquea os coraes
Pra podermos comear
E contar nossas verses
Narrando nossas histrias
de vidas e formaes.
Uma professora me disse
Valha-me Nossa Senhora
Isso tarefa difcil
Penso que quando for minha hora
Com tanta gente importante
Nenhuma palavra sai fora.
Te disse: - Mas que tolice!
No me fale essa asneira
Cada um tem uma histria
E isso no besteira
Compe as nossas vidas
No importando a maneira.
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Porm quero sugerir
Nossa aproximao
Faamos uma rodada
E uma apresentao
Para j saber quem somos
Logo de primeira mo.
Obedecendo ao que manda
As regras de boas maneiras
Morin me sugeriu
Que fosse eu a primeira
A me apresentar agora
J em torno da fogueira.
Eu sou Ftima Arajo
E aqui me sinto bem
Sou professora primria
Tarefa que me convm
Trabalho com formao
De professores tambm.
Depois de me apresentar
No papel de anfitri
Passo a palavra a vocs
Pra se apresentar com af
E pra obedecer roda
Comecemos por Morin.
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Me chamo Edgar Morin
Na vida no me confundo
Pelo pensamento complexo
Tenho um respeito profundo
Sinto-me um contrabandista
Dos saberes deste mundo.
E eu sou Maria Zilma
Professora de criana
Terminei graduao
Ainda me resta esperana
De na nossa educao
Promover muita mudana.
Boa noite, sou Cascudo
E me sinto muito honrado
De pra essa ocasio
Ter sido convidado
Espero que eu consiga
Tambm d o meu recado.
E eu sou Elis Regina
Por favor no se espante
No foi o esprito da cantora
Que apareceu neste instante
Eu sou mesmo professora
No me peam pra que eu cante.
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Eu sou Francisca Falco
Mas todos me chamam Bia
Fao rima e fao versos
Isso tudo que eu queria
Est aqui com vocs
Nesse maravilhoso dia.
O meu nome Lisieux
E venho l de Perobas
Daquela terra belssima
Donde o mar se desdobra
Ser professora primria
o que fao por hora.
Eu sou Marta Neves
Santos do Nascimento
Quero dizer pra vocs
Aqui e nesse momento
Que um grande privilgio
Participar desse intento.
Boa noite meus senhores
E minhas senhoras tambm
Eu me chamo Vera Lcia
E nessa noite aqui venho
Para contar as histrias
E experincias que tenho.
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Sou um ndio brasileiro
E sinto muita alegria
De est aqui com vocs
Nessa noite de magia
S partilhamos o nome
Com pessoas de valia
Daniel Munduruku
Este o meu guia.
Terminada a apresentao
A fogueira a queimar
Uma professora apressada
Comeou logo a falar
Pediu para comearmos
E tratou de anunciar
Que seria eu a primeira
A minha histria contar.
Fiquei um pouco corada
Nervosa, mas concordei
Em comear a narrativa
Aquela era a minha vez
Ajeitei um pouco a voz
E a histria comecei.
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Espere a minha gente
Preste um pouco de ateno
Peo licena agora
Pra lhes contar de antemo
Um pouco da minha histria
E da minha formao.
Nasci de uma famlia simples
De precria formao
Estiveram na escola
Por curtssima durao
Mas no queriam que seus filhos
Passassem tal provao.
Morvamos numa fazenda
L pras bandas do serto
As coisas que l chegavam
Iam de burro ou caminho
E por no haver escola
No fiz alfabetizao.
Fazenda demanda trabalho
Com bois, vacas, pavo
Pato, galinha, jumento
Oh, que grande confuso
E pra d conta de tudo
Tinha que ter um peo.
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Fiz todo esse rodeio
Sem querer ser enfadonho
Mas que quero contar
Como conheci seu Antonio.
A luz do meu candeeiro
O despertador dos meus sonhos.
Imagem 10- Adivinhando Chuva.
Seu Antonio era um senhor
Muito agradvel, contente
Foi contratado por meu pai
Pra d conta do batente
E se isso no bastasse
Ainda alegrava a gente.
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Voc deve t pensando
Que tem a ver o matuto?
Mas lhe falo sem demora
De como ele era astuto
Comprava cordis na feira
Pra de noite ter assunto.
E sempre aps o jantar
Com lua cheia ou no
Fazamos roda no alpendre
Sob a luz de um lampio
Pra ouvir longas histrias
De amor e de paixo
De cangao e ousadia
Da cidade e do serto.
E eu ainda pequena
Menina muito levada
Depois de ouvir tais histrias
Dormia inebriada
Embalada pelo desejo
De ser alfabetizada
Pra roubar aqueles livros
E l-los duma tragada.
O desejo foi crescendo
E a curiosidade latente
Quando seu Antonio saia
Ia at seus aposentos
Pegava os tais cordis
E olhava muito atenta.
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Prestava ateno nas palavras
Ficava a observar
Queria aprender a ler
Tentando adivinhar
Onde que tava escrito
O que ouvi ele contar.
E foi assim eu lhes digo
Que passado pouco tempo
Eu conseguia ler os versos
Cheia de contentamento
No sabia que o destino
Me preparava um tormento.
Alheia a esse processo
Sem saber que eu j sabia
Mame me matriculou
Na escola de dona Maria
E numa de ABC
Eu tinha que ler todo dia.
Acontece que a senhora
Tinha apenas um mtodo s
E se os cordis me animavam
Aquela escola era um n
Mandando eu repetir
O ba- be -bi- b - o bo.
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Sem contar que seu marido
Ficava tambm na sala
E tinha uma cara to vermelha
Como sangue na navalha
Fazia caretas pra mim
Me deixando atrapalhada
Eu fazia as tarefas
Debaixo da mesa sentada.
Mesmo assim no reclamava
Se a aula era uma aflio
Pois fazia da viagem
Uma grande diverso
Brincava com gafanhoto
Calango, ninho de azulo
Tomava banho no riacho
Sem sofrer qualquer sanso.
Aquela escola era um engodo
No dava mais pra agentar
Com um pouco mais de tempo
Chegou a hora de mostrar
Pros meus pais, com muito tento
Que aprendi o b- a- b
E uma noite no alpendre
O cordel eu quis falar.
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Os meus pais ficaram bobos
De orgulho e gratido
Por Maria, a professora
Que me ensinara a lio
No sabiam que muito antes
Eu j prestara ateno
Se s agora eu tava lendo
Foi de mim a deciso.
Esse segredo era s meu
Parece, ningum notou
S sei que dali em diante
Seu Antonio abandonou
O hbito de ler cordel
A mim ele delegou
Eu lia elegantemente
Como a fia de um doutor.
Fui ento pra outra escola
Mais organizada e exigente
L, fazia composio
Sobre bicho e sobre gente
Isso eu fazia bem
Ficava toda contente
E o primeiro lugar da classe
Era meu, meu somente.
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Mas o meu maior barato
Naquela poca da infncia
Era escrever vov
Que se encontrava distncia
E me mandava elogios
Crescendo minha constncia
De escrever sem medo
E com mais perseverana.
Depois eu fiz magistrio
Pra estudar como se faz
Para atender a crianas
E faz-las aprender mais
Mas isso no era tudo
Eu ainda queria mais.
Estudei Pedagogia
Na Universidade Federal
Aprendi novas tendncias
Da Educao atual
Mas precisava saber mais
Eu descobri no final.
Participei de congressos
Na rea da educao
De estudos e seminrios
E cursos de extenso
Tudo para aperfeioar
Toda minha formao.
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Foi ento que decidi
Um projeto organizar
Pra concorrer ao mestrado
E ps-graduao cursar
Consegui ser aprovada
E estou a pesquisar.
No grupo da Complexidade
Onde fui acolhida
Me sinto muito feliz
E tambm agradecida
De estudar as idias
Que se confundem com a vida.
Tenho como orientadora
Maria da Conceio
Que dedica a todos ns
Bastante dedicao
Com ela desenvolvo a pesquisa
De histrias de formao.
De experincias de vida
Partindo logo das minhas
Porque em nossos estudos
Como costurados com linha
Sujeito e objeto
Unidos, juntos caminham.
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E nessa minha pesquisa
Confesso que tenho um plano
Nas narrativas dos outros
Insisto, no abandono
Pra ver se na vida deles
Tambm tem um Seu Antnio.
Estas so experincias que ressignificadas se constituram na
matriz de construo de outros conhecimentos, processo pelo qual
passa todos os humanos conforme suas singularidades e oportunidades
que tiverem na vida. Tomando o Seu Antnio da minha vida,
transformo-o em metfora para reconhec-lo nas histrias
autobiogrficas de meus convidados. No se trata, portanto, de
procurar uma pessoa que foi importante ou decisiva em suas vidas, mas
de identificar situaes ou acontecimentos que os marcaram nas suas
trajetrias de formao, tanto quanto Seu Antnio marcou a minha.
Segundo Souza (2004, p.20), (...) a dimenso formadora das
experincias deixam marcas e imprime reflexes sobre o vivido. Neste
sentido, todas essas experincias, frutos do acolhimento e da polifonia
de idias das pessoas com quem convivi, significativas a ponto de estar
trazendo-as para um trabalho cientfico, influenciaram a minha forma
de escrever e de ler o mundo num estilo mais esttico e mais potico.
Seu Antnio lanava mo de uma poderosa farmacopia de folhetos de
cordis que ele lia pra ns (eu e meus irmos), criando um tecido forte
que enlaava e aquecia nossas noites, espiritual e emocionalmente.
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Seus cordis assumiam vida prpria quando lido e interpretado, tal qual
borboletas livres que criam asas, voando e povoando a nossa
imaginao, despertando estados de ser, marcando a nossa maneira de
estar no mundo e construindo vnculos definitivos.
Mas, todos esto vidos por ouvir a histria do nosso primeiro
convidado, que com seu rosto j vermelho pelo calor das chamas,
prepara-se para falar. E em forma de versos, passo a palavra a Morin.
Agora que terminei
E j dei o meu recado
Passo a palavra ento
A esse nobre convidado
Que vai contar sua histria
Com prazer e muito grado.
Voc que cientista,
Conte-nos! O que contribuiu
Para sua formao
O que foi que lhe instruiu
Para escrever essas coisas
Que o mundo inteiro j viu?
Boa noite, meus colegas
Viajantes desse mundo
Penso que em nossas vidas
Todo mundo tem um rumo
Experincias vividas
Pra na vida dar um prumo.
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Imagem 11- Singularity_cosmos
Eu sou Edgar Morin
Encantado como tal
No separo a minha vida
Da vida intelectual
Por isso lhes conto agora
Meu saber primordial.
Sou dos que tm uma vida
No dos que tm uma carreira
Entre ambas no coloco
Divisrias nem barreiras
Elas esto bem coladas
Como se fosse com cera.
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Na famlia aprendi
A gostar de iguarias
Do azeite e berinjela
Espinafre, quem diria!
Herana dos ancestrais
Que isso tudo comia.
Meu pai no me ensinou
Uma crena ou tradio
Nenhum princpio poltico
E nenhuma religio
Talvez por eu ser filho nico
No seio de uma gerao.
Mas meu pai me transmitiu
Cultura de canonetas
Com ele tambm aprendi
A gostar de operetas
Ele cantava e assobiava
Traviata e Rigoletto.
Aos nove anos de idade
Aprendi o que a morte
Que levou a minha me
Por pura falta de sorte
Levada num vago de trem
Causando na vida um corte.
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Porm, me esconderam tudo
Disseram que fora viajar
E pra casa de uma tia
Me mandaram preu brincar
Dizendo que o meu pai tinha
Com ela ido encontrar.
Dois dias depois do fato
A morte detectei
Com meu pai em minha frente
Confesso logo saquei
Todo de preto, enlutado...
Uma bomba sufoquei.
Jamais quis manifestar
Aquela infinita dor
Escondia o que sentia
Em segredo e com horror
De meu pai e minha tia
E quase ningum notou.
Encontramos na narrativa de Morin, como ele mesmo reconhece
em seu livro Meus Demnios, eventos e situaes que o marcaram
para sempre, como a perda prematura de sua me, quando ele tinha
apenas nove anos de idade, deixando-lhe um buraco negro no fundo da
alma, fazendo com que ele pudesse refletir sobre o que a morte,
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sobre a relao que esta tem com a vida, levando-o a escrever o livro O
Homem e a Morte.
Parti assim para vida