A Fogueira do Conhecimento: religação de saberes e formação

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Sociais Aplicadas Programa de Pós-graduação em Educação Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação, Ciência e Tecnologia Grupo de Estudos da Complexidade A Fogueira do Conhecimento: religação de saberes e formação Maria de Fátima Araújo Natal/RN 2005

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Transcript of A Fogueira do Conhecimento: religação de saberes e formação

  • Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Cincias Sociais Aplicadas

    Programa de Ps-graduao em Educao Ncleo de Estudos e Pesquisa em Educao, Cincia e Tecnologia

    Grupo de Estudos da Complexidade

    A Fogueira do Conhecimento: religao de saberes e formao

    Maria de Ftima Arajo

    Natal/RN

    2005

  • Maria de Ftima Arajo

    A Fogueira do Conhecimento: religao de saberes e formao

    Dissertao apresentada como requisito parcial

    para a obteno do ttulo de Mestre em

    Educao, junto ao Programa de Ps-Graduao

    em Educao da Universidade Federal do Rio

    Grande do Norte, sob a orientao da

    Professora Dra. Maria da Conceio Xavier de

    Almeida.

    Natal/RN

    2005

  • Catalogao da Publicao na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA

    Diviso de Servios Tcnicos Arajo, Maria de Ftima. A fogueira do conhecimento: religao de saberes e formao. / Maria de Ftima Arajo. Natal, 2005. 155 p. il.

    Orientadora: Prof. Dr. Maria da Conceio Xavier de Almeida. Dissertao (Graduao em Pedagogia) Universidade Federal do Rio

    Grande do Norte. Centro de Cincias Sociais Aplicadas. Departamento de Educao.

    1. Educao Tese. 2. Educador - Tese. 3. Formao Tese. 4. Conhecimento Tese. 5. Professor Tese. I. Almeida, Maria da Conceio Xavier de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Ttulo.

    RN/BS/CCSA CDU 371.13 (043.3)

  • Banca Examinadora

    _______________________________________________________ Dra. Maria da Conceio Xavier de Almeida (UFRN)

    (Orientadora)

    Dr. Elizeu Clementino de Souza (UNEB) (Examinador Externo)

    Dra.Wani Fernandes Pereira (UFRN) (Examinador Interno)

    _______________________________________________________ Dr. Jos Willington Germano (UFRN)

    (Suplente)

  • A vov Jlia, vov Neco,

    e a Lucas, meu pequeno prncipe.

  • Uma idia que no perigosa no de todo uma idia.

    Oscar Wilde.

    Brincar condio fundamental para ser srio. Arquimedes.

    Segurar uma caneta estar em guerra.

    Voltaire.

    Fecho meus olhos para ver. Paul Gauguin.

    No sou daqueles que tm uma carreira, mas dos que tm uma vida.

    Edgar Morin.

    Inventar uma nova forma de discurso parece, pois, exigido

    pela nova reflexo tica. Henri Atlan.

    Cada homem carrega a forma inteira da condio humana.

    Montaigne.

    O homem compe-se do que tem e do que lhe falta.

    Ortega y Gasset.

    O dia de amanh ningum usou. Pode ser seu. Pagano Sobrinho.

  • Agradecimentos

    A seu Antonio, mestre soberano que com sua simplicidade e

    sapincia promoveu a minha insero no mundo da literatura e do

    conhecimento. O resto eu aprendi depois.

    A Ceia, grande borboleta polinizadora de nossas idias que me

    ajudou a trilhar o caminho de volta para mim mesma e enxergar nas

    minhas experincias, a matriz de referncia para a escrita dessa

    dissertao.

    A Wani, co-partcipe dessa dissertao, lendo amorosamente meu

    texto e contribuindo com suas idias.

    Aos meus avs, Jlia e Manoel que desde cedo me ensinaram

    com seus exemplos de vida, o sentido pleno do amor, da felicidade e da

    tica.

    Aos meus pais Wilson e Maria que nunca descuidaram da tarefa

    de nos educar: a mim e a meus sete irmos.

    Aos professores da Ps-graduao em Educao pelas suas

    contribuies no campo terico e prtico.

    Aos colegas da ps-graduao em educao pelas trocas

    enriquecedoras e pelo sentimento de solidariedade e companheirismo

    nos momentos de sucesso e de fragilidade.

    A Gil, companheira de tantas jornadas, por colocar em minhas

    mos o material de que necessitava para parte dessa pesquisa.

  • Aos professores-narradores que contriburam com suas narrativas

    de formao.

    A Almira Navarro pela reviso cuidadosa. A Luzia, Vera, Rejane e

    Ana Lcia Arago, pelo apoio e carinho dispensados na hora certa.

    A Djakson Rocha, pelo apoio teraputico contribuindo e

    fortalecendo-me nessa jornada de autoconhecimento.

    A meus irmos, meus sobrinhos, meu filho e meus amigos, pela

    ausncia nem sempre compreendida, mas necessria nesse processo.

    A meu primo Genilson, pelo apoio afetivo e tcnico na

    apresentao final do texto.

    Aos que acreditam que a poesia abre janelas para o mundo.

    A todos que consideram a educao como um meio que possibilita

    a reforma do pensamento e a reforma do sujeito.

  • Resumo

    As narrativas sobre experincias de vida se constituem em aprendizagens significativas no processo de autoformao dos educadores. A formao um fenmeno que extrapola o mbito escolar, incluindo as experincias que servem de matriz para a construo de conhecimento ao longo da vida. Dessa perspectiva, o conhecimento de si, tal como proposto por SOUZA, NVOA e JOSSO, a noo central em torno da qual de desenvolve esta dissertao. A pesquisa tem como foco principal transpor para a realidade dos professores o exerccio reflexivo de sua docncia, mediante a redescoberta de suas vivncias atravs de histrias de si que, potencializadas, pode transformar suas prticas em sala de aula. Tomo como ponto de partida minhas prprias experincias como educadora, assumindo a convico da indissociao entre sujeito e objeto do conhecimento, como prope Edgar Morin para falar da cincia da complexidade. Lano mo tambm das narrativas de formao de seis professores da rede pblica de ensino, reveladoras da construo de conhecimento pautada na coerncia do fazer pedaggico com seu modo de compreender e sentir o mundo. As obras Meus Demnios de Edgar Morin, O Tempo e EU de Lus da Cmara Cascudo e O Banquete dos Deuses de Daniel Munduruku, alargam o escopo das narrativas de experincias que se constituem em matrizes dos processos de formao. O trabalho com narrativas de formao demonstra que, a partir da reflexo do sujeito sobre sua prpria experincia, possvel projetar novas configuraes do conhecimento com base na religao entre vida, idias e prticas pedaggicas. A partir da metfora da fogueira possvel compreender a fora da combusto das experincias de vida na formao docente. Palavras-chave: Educao Formao Complexidade.

  • Resum

    Les rcits sur les expriences de vie se constituent en apprentissages signifiants dans le processus d auto-formation des ducateurs. La formation est un phenomne qui extraple lambiance scolaire, incluant les expriences qui servent de matrice pour la construction de la connaissance au long de la vie. Dans cette perspective, la connaissance de soi, telle quelle propose par SOUZA, NOVOA et JOSSO, est la notion centrale au tour de laquelle se dveloppe cette dissertation. La recherche a comme ide principale transposer pour la realit des professeurs lexercice reflexif de son enseignement, mdiant la redcouverte de ses expriences de vie, a travers des histoires de soi que, potentialiss, peuvent transformer ses pratiques dans la classe scolaire. Je prends comme point de dpart mes propres expriences comme ducatrice assumant la conviction de la indissociation entre sujet et objet de la connaissance, comme propose dgar Morin pour parler de la science de la complexit. Je fais aussi lusage des rcits de six professeurs du rseau publique de lenseigment, rvlateurs de la construction de la connaissance appuye dans la cohrence de la praxis pdagogique avec son mode de comprendre et sentir le monde. Les oeuvres Mes Dmons ddgar Morin, O Tempo e Eu de Luis da Cmara Cascudo et O Banquete dos Deuses de Daniel Munduruku, ont largit le champs des rcits dexpriences que se constituent en matrices des processus de formation. Le travail avec les rcits de formation dmontrent qu partir de la rflection du sujet sur sa propre exprience, il est possible de se projter des nouvelles configurations de la connaissance tenant comme base, la reliaison entre vie, ides, et pratiques pdagogiques. partir de la mtaphore du bcher il est possible de se comprendre la force de combustion des expriences de vie dans la formation des enseignants. Mots-cls : ducation Formation Complexit.

  • Sumrio

    Fagulhas e Imagens Preparando a Fogueira:

    O sujeito em combusto 12 Narrar para construir laos

    Primeiras Chamas:

    Narrar para construir laos 26

    Chama Escarlate:

    O conhecimento de si 42

    Botando lenha na fogueira:

    Compartilhando experincias 55

    Ressurgindo das cinzas:

    O educador como Fnix 140

    O Lume da fogueira: O Lume da fogueira:

    iluminadores 148

  • Fagulhas e Imagens

    Imagem 1- Capa- Fogueira. www. olambelambe.com.br.

    Imagem 2- Foto.Gerlzia Azevedo Alves Fogueira do DEARTE- Natal-RN, junho/2005.

    Imagem 3- Playing with fire. www.burwell.co.uk/ sally/pfire.htm.

    Imagem 4- Render2.www.renton.wednet.edu/.../ BotTbl-Render2.jpg

    Imagem 5- Fogueira. www.olambelambe.com.br.

    Imagem 6- Caminho.www.poemar.com/Belour.htm.

    Imagem 7- Pimentes.www.nouvellesimages.com.

    Imagem 8- Bonfire-3..www.zentropolis.com/ log images 2004.

    Imagem 9- Fogueira Junina, Vandeberg Medeiros. Natal-RN, 2004.

    Imagem 10- Adivinhando Chuva, Vandeberg Medeiros. Natal-RN, 2004.

    Imagem 11- Singularity_Cosmos.wwww.sergecar.club.fr/cours/theorie cours/theorie.

    Imagem 12- Brinquedo_brincadeira. www.festivaldebonecos.com.br/ 2001/exposicoes.htm.

    Imagem 13- Cascudo- outras fotos-31.www.memoriaviva.digi.com.br Imagem 14- Brincando. Nova escola. Abril uol.com.br/brincando.htm. Imagem 16- Jangadas NE Brasil. Ktia Rocha01 www.mundointerior. com.br/ ktia-rocha.htm Imagem 17- Fada madrinha. www celtiquefeu.blogs.sapo.pt/ arquivo/2004. Imagem 18- Preguia2.www.lyceepasteur-ceb-ccslf.com.br/faune.htm Imagem 19- Daniel3.www.omelete.com.br/cinema/artigos/taina2/3jpg Imagem 20- fenix.jpg . www.niwidu.org/praca/4791. Imagem 21- Fenix. www.fractalschlaraffenland.net/ gl10/fenix.htm Imagem 22-FractalFirewww.fractalschlaraffenland.net/gl10/fnix.Htm.

    http://www.burwell.co.uk/sally/pfire.htmhttp://www.mundointerior/http://www.niwidu.org/praca/4791

  • 12

    Preparando a Fogueira: O sujeito em combusto

    A fogueira acesa

    Pessoas contando histrias. Madrugada vai.

    Neila M. Toledo

  • 13

    Esto no centro do debate contemporneo sobre educao,

    questes sobre a Reforma do sistema Educacional, a Reforma da

    Educao, a Reforma do Pensamento e, portanto, a reforma do ensino,

    na perspectiva de contribuir para a autoformao do sujeito. Neste

    sentido a escola se incumbe, segundo Edgar Morin, da funo de

    ensinar a assumir a condio humana, ensinar a viver e ensinar a se

    tornar cidado (Morin, 2001a, p.65). Uma educao que promova a

    necessria Reforma do Pensamento dever ter como pressupostos o fim

    da fragmentao do conhecimento e a necessidade de articular e religar

    saberes, exigindo uma nova postura do sujeito diante do conhecimento.

    Isso implica recusar a ciso entre a cultura cientifica e as humanidades,

    entre saber e fazer.

    Surge da a necessidade urgente de educar os educadores, de

    investir na formao de intelectuais abertos, capazes de refletir sobre a

    cultura em sentido mais amplo; profissionais encorajados a religar suas

    disciplinas e investir em reformas curriculares capazes de rejuntar

    natureza e cultura, homem e cosmo, construindo uma aprendizagem

    que reponha a dignidade da condio humana, hoje esgarada e

    comprometida.

    Para responder a pergunta formulada por Karl Marx em suas teses

    sobre Feuerbach: Quem educar os educadores?, Morin considera que

    existe ainda um grande nmero de professores animados pela crena

    na necessria reforma do pensamento e na regenerao do ensino.

    Segundo ele, estes so educadores que possuem um forte senso de sua

  • 14

    misso, para quem o ensino deve ser encarado como uma tarefa

    poltica por excelncia e deve propiciar a formulao de estratgias para

    a vida, o desenvolvimento de competncias e o domnio de uma tcnica

    e de uma arte.

    A essa mesma pergunta, formulada por Karl Marx, Quem educar

    os educadores?, Gaston Pineau responde apoiando-se nos trs

    mestres de Rousseau: eu, os outros e as coisas. E quem forma o

    formador? O formador forma-se a si prprio, atravs de uma reflexo

    sobre seus percursos pessoais e profissionais que pode ser denominado

    como um processo de auto-formao; o formador forma-se tambm na

    relao com os outros, numa aprendizagem coletiva apelando

    conscincia, aos sentimentos e s emoes - a hetero-formao; o

    formador forma-se atravs das coisas, dos saberes tcnicos, culturais e

    artsticos e da sua compreenso crtica - a eco-formao (Pineau apud

    Josso, 2004, p.16).

    Educar supe, portanto, um processo que inclui formao,

    autoformao e reintroduo do sujeito no conhecimento. Mas no

    basta qualquer conhecimento. Para efeito deste estudo, interessa o

    conhecimento pertinente, aquele que tecido junto, que no privilegia

    a parte em detrimento do todo, que tem uma natureza interativa e

    inter-retroativa entre o objeto do conhecimento e seu contexto. O

    conhecimento pertinente, segundo Morin aquele que se realiza tendo

    por cenrio, o contexto maior do qual parte.

  • 15

    Para Marie-Chrstine Josso, falar de autoformao no significa

    dizer que o sujeito aprende por si s. No um processo em que se

    prescinde do formador. Significa um caminhar com o sujeito em

    formao e ajud-lo a reconhecer sua humanidade singular. Em seu

    processo de formao, o professor desenvolve um novo olhar que

    ultrapassa a concepo escolar de formao, pois pode tomar

    conscincia da enorme quantidade de experincias que cada um vive,

    de onde tira lies e aprende coisas (Josso, 2004, p.9).

    a partir dessa perspectiva que tomamos aqui as narrativas de

    formao como operadores cognitivos capazes de reintroduzir o sujeito

    no conhecimento, ampliando e retroalimentando seus saberes a partir

    da reflexo sobre as experincias que foram fundamentais para seu

    processo de formao.

    Longe de prefigurar o discurso da certeza e da soluo para os

    complexos problemas que envolvem a educao, a dissertao aponta

    para o caminho da incompletude, do inacabamento e da parcialidade do

    conhecimento, uma vez que as idias aqui apresentadas esto

    organizadas a partir da viso de um sujeito-observador que

    compreende o mundo a partir do lugar que ele ocupa, da maneira como

    ele percebe e das informaes que ele julga pertinentes (Almeida,

    2004, p.3). Essa concepo afirma a natureza subjetiva do ato de

    construir conhecimento que emerge da nossa forma de pensar e de

    viver, resultando da, muitas maneiras de traar o itinerrio de uma

  • 16

    idia e de se aproximar dela. somente a partir das experincias

    vividas que o sujeito pode tratar as informaes que lhes chegam, uma

    vez que estamos, ainda e sempre, no domnio das interpretaes, como

    assinala Humberto Eco. Toda organizao do conhecimento tem, pois,

    as marcas (imprintings) e as possibilidades do sujeito. Tomar

    conscincia da simbiose entre viver e conhecer (Henri Atlan, 2002);

    compreender com (Ilya Prigogine, 2001) que a natureza racional e a

    paixo habitam as formas de construo das interpretaes sobre o

    mundo; e, por fim, propugnar pela reintroduo do sujeito no

    conhecimento, constituem juntos os princpios epistemolgicos que

    tecem essa dissertao. Da porque minha experincia como educadora,

    os saberes que fui construindo ao longo dos anos e as marcas de

    sentido que foram sendo impressas em mim constituem-se no terreno

    primeiro a partir do qual organizo essa compreenso da formao do

    educador. Parto, portanto, de minha experincia, porque no poderia

    mesmo partir da experincia vivida pelos outros. Falar de mim, da

    minha experincia no processamento das informaes que me

    chegaram desde criana, no se constitui, entretanto, um exerccio

    autocentrado e narcsico. Mas a partir de mim que compreendo as

    experincias dos outros, mesmo sem as t-las vivido. Em sntese, por

    que falar de mim? Porque no h conhecimento sem a marca do

    sujeito. Por que falar de mim? No decente, normal e srio que,

    quando se trata de cincia, do conhecimento e do pensamento, o autor

    se apague atrs de sua obra e se desvanea num discurso tornado

  • 17

    impessoal. Devemos, pelo contrrio, saber que a que a comdia

    triunfa. O sujeito que desaparece no seu discurso instala-se, de fato, na

    torre de controle (Morin apud Almeida, 2003, p.11-12).

    O itinerrio aqui traado, parte das minhas observaes e

    inquietaes como professora da rede pblica de ensino, ministrando

    aulas para crianas em processo de alfabetizao e em cursos de

    formao de professores. Nesta atividade, percebo o distanciamento

    existente entre os conhecimentos trabalhados e as histrias e

    experincias de vida dos sujeitos envolvidos. Como conseqncia, as

    escolas e os to questionados cursos de formao para professores,

    vm formando sujeitos cada vez mais incapazes de compreender e

    dialogar com o mundo, uma vez que os conhecimentos trabalhados

    esto muito distantes de suas vidas. Pensar a educao hoje

    ultrapassar o iderio de um conhecimento pronto, acabado e

    desvinculado da vida do sujeito. Fruto de uma especializao

    exacerbada, o conhecimento cientfico acabou gerando a figura do

    especialista. Assim, ao final da formao oficial, cada um domina a sua

    parte e desconhece o contexto no qual est inserida a parte que

    conhece.

    Vivemos um momento histrico no qual urgente e indispensvel

    religar saberes, fazer dialogar a cultura cientfica com a cultura

    humanstica e, sobretudo, religar o sujeito consigo mesmo. Essa

    religao, to insistentemente proposta por Morin, possibilita ao sujeito

  • 18

    em formao, um leque de possibilidades para que este possa

    compreender melhor a si mesmo e ao mundo que o cerca.

    Acredito que o papel da escola deva ser o de possibilitar uma

    cultura que contribua para o indivduo compreender melhor sua

    condio, permitindo-lhe ultrapassar o estado prosaico para viver mais

    integralmente, mais poeticamente. O papel da escola deve ser o de

    favorecer, como quer Morin, um modo de pensar aberto e livre

    (2001a, p.11).

    Ultrapassar o estado prosaico na educao significa dizer que

    necessrio que a poesia tambm tenha vez na escola. O escritor

    francs, Yves Bonnefoy em seu artigo Poesia tambm se ensina na

    escola (Bonnefoy apud Almeida, 2003, p.135-139), destaca a

    importncia que a poesia exerce na formao do sujeito. Bonnefoy

    conta que em sua poca de estudante, ele e seus colegas tinham que, a

    cada ano, decorar um poema para declam-lo na escola, sendo essa

    uma das condies para ser aprovado. Mas ele lembra que decorar uma

    poesia no tem como finalidade nica, a sua repetio. Muito mais que

    isso, quando uma pessoa decora um poema, abre janelas para vida. A

    poesia abre as comportas do imaginrio e remete o sujeito para outras

    dimenses e patamares do conhecimento. Portanto, se eu tivesse que

    responder pergunta feita pelo autor possvel ensinar poesia na

    escola?, a resposta seria: no s possvel quanto necessrio, uma

    vez que a poesia amplia horizontes para alm das janelas do mundo.

    por acreditar na fora que tem a poesia, que escrevo boa parte da

  • 19

    dissertao, em versos. Fao isso para demonstrar que possvel, sim,

    ensinar poesia na escola, como tambm se pode escrever um texto

    cientifico em versos, dando-lhe mais musicalidade e sentido esttico.

    A dissertao tem como objetivo propor a reflexo acerca das

    experincias vivenciadas pelos sujeitos que so fundamentais para o

    processo de construo de seus conhecimentos. Elas se constituem

    numa matriz para o processo de formao, permitindo, mais tarde,

    ampliar outros conhecimentos. Como se pode observar, na minha

    narrativa, tive oportunidade de mesmo antes de ingressar na escola,

    vivenciar situaes e conviver com pessoas como meus avs e Seu

    Antnio, senhor que trabalhava na casa de meus pais e lia versos todas

    as noites aps o jantar. Essa experincia influenciou muito a minha vida

    e meu aprendizado do mundo. A partir das coisas que Seu Antnio me

    apresentou em versos, pude estabelecer relaes com elementos do

    universo e da natureza, bem como com sentimentos maiores que hoje

    compreendo serem os sentimentos do amor, da felicidade, e o sentido

    da tica e do respeito. Aquelas experincias, vividas no passado, me

    ajudam, hoje, a perceber a inter-relao existente entre universo-

    homem / natureza-cultura e me fazem reconhecer que impossvel

    separ-los.

    Assim como Seu Antnio foi uma matriz de referncia para minha

    compreenso do mundo, certamente, cada pessoa, em suas

    experincias cognitivas primeiras, teve um seu antnio em suas vidas.

    Busco este seu antnio na vida dos narradores que comigo participam

  • 20

    da fogueira do conhecimento, como concebo essa dissertao. Na

    procura dos seus antnios, estarei atenta a situaes, fatos,

    acontecimentos e oportunidades que expressam elementos

    reordenadores da viso de mundo dos interlocutores que, comigo,

    mantm a combusto desse trabalho-fogueira.

    A pesquisa se ancora, sobretudo, nas narrativas de experincias

    de aprendizagens que contriburam como estruturas primordiais para a

    formao dos sujeitos-autores com os quais dialogo e que, aqui,

    assumem o lugar de narradores.

    Esses narradores so seis professores da Rede Pblica de Ensino

    (uma educadora nutricional e cinco concluintes do Curso de Pedagogia

    em Regime Especial pela Universidade Estadual do Vale do Acara-

    UVA), cujos trabalhos de concluso de curso se constituem em seus

    Memoriais de Formao. A minha aproximao com esses professores e,

    conseqentemente, com suas narrativas, aconteceu, no caso da

    educadora nutricional, pelo acesso a seu texto Os quatro caminhos:

    um itinerrio do nfimo ao infinito, e, no caso dos outros cinco

    educadores, por ocasio do convite feito pela Orientadora do Trabalho

    de Concluso de Curso (TCC), a professora Juvaneide Gerlayne da

    Rocha, para participar da banca de avaliao dos referidos trabalhos. Ao

    l-los, percebi que tinha encontrado solo frtil para realizao da

    pesquisa e resolvi trabalhar com essas narrativas. A seleo das cinco

    narrativas tomadas como instrumentos de estudo da pesquisa, foi feita

  • 21

    pela professora orientadora dos referidos trabalhos, de forma aleatria

    e conforme as devidas autorizaes dos professores.

    Com base nas narrativas trabalhadas, possvel anunciar e

    antecipar, de forma sutil, os operadores cognitivos de cada um desses

    narradores. Temos na narrativa de Vera Lcia (educadora nutricional), a

    presena de experincias voltadas para culturas diversas: a do seu

    bairro pobre e marginal, do convvio com seus avs, com duas senhoras

    francesas e em especial com a amiga Saturnina, que segundo Vera,

    contribuiu para descortinar as janelas de sua vida; em Maria Zilma

    vemos a forte influncia da figura paterna em seu processo educativo e

    das experincias vividas por ela, fora da escola, como as novelas de

    rdio com seus heris, a presena do ldico nas atividades de jogos e

    as histrias em quadrinhos; em Elis Regina, a criao de uma escola

    imaginria, o que lhe permitiu a religao entre real e imaginrio; nas

    narrativas de Francisca Falco, vemos a forte influncia da utilizao de

    folhetos de cordis, da aprendizagem pela oralidade, alm da influncia

    de diversos itinerrios em sua vida: Lisieux expressa a forte presena

    de elementos da natureza, pelo meio em que vivia, elegendo-o como

    objetos de aprendizagem: as conchas do mar e a escrita na areia;

    Marta Neves tem, na fora da fantasia e nos contos de fadas, um

    acionador cognitivo importante para o desenvolvimento do imaginrio.

    Alm das experincias desses educadores, amplio o conjunto das

    narrativas sobre o processo de formao, com as experincias

    educativas de Edgar Morin, autor de uma vasta obra que tem por meta

  • 22

    a construo do Pensamento Complexo no mundo. Em Meus Demnios

    Morin narra as experincias mais marcantes e decisivas para sua

    formao, reveladoras da importncia que teve para o autor, a sua

    insero na cultura das humanidades, resultantes da sua relao com a

    morte prematura da me, o sentimento de perda, a sua relao com o

    cinema e a literatura e com os amigos da Rua Menilmontant. Essa

    vivncia subjetiva e artstica contribuiu para sua insero na cultura

    cientfica, permitindo-lhe escrever sobre questes e temas de forma

    ampliada, contextualizada, complexa.

    Tomo ainda uma narrativa do influente pesquisador da cultura, o

    norteriograndense Lus da Cmara Cascudo, na qual ele conta como se

    processou seus saberes primordiais (livro O Tempo e EU). Est

    evidenciada em Cascudo, a importncia que teve a sua primeira

    professora e os contos fantsticos a que tinha acesso em sua casa.

    Por fim, lano mo do livro O Banquete dos Deuses de Daniel

    Munduruku - educador e escritor brasileiro, integrante do povo que tem

    o mesmo nome, para utilizar suas experincias, em especial as vividas

    com seu av Apolinrio, em suas muitas visitas aldeia, consideras por

    ele como fundadoras para seu processo de formao.

    Ao longo da dissertao trago outros narradores e suas

    experincias: o poeta portugus Cesrio Verde, o escritor francs

    Marcel Proust e a educadora brasileira Maria Isaura Queiroz que

    tambm so referencias importantes.

  • 23

    Ainda contaminada pela musicalidade dos versos de Seu Antnio,

    uso como artifcio a transformao da prosa em poesia, convertendo em

    versos, parte das narrativas escritas em prosa.

    Com esse trabalho de investigao-formao, espero contribuir

    para o debate e a reflexo sobre as aprendizagens dos sujeitos a partir

    de suas prprias experincias, e ampliar os estudos sobre a utilizao

    das narrativas de formao no mbito da formao dos professores.

    Isso ser possvel, na medida em que consiga transpor para a realidade

    dos professores, o exerccio reflexivo da docncia, mediante a

    redescoberta de suas vivncias atravs de histrias de si. Quando

    potencializadas essas histrias podem transformar suas prticas em

    sala de aula, na medida em que identifiquem as bases primordiais de

    suas formaes e conseqentes implicaes no exerccio da docncia.

    Possibilitar ao professor a atribuio de novos sentidos ao

    trabalho escolar e facilitar a reflexo sobre a sua prpria prtica, uma

    tarefa importante. Promover elos entre educao e vida, de forma a

    torn-las prosaica e mais potica possibilita a formao de sujeitos mais

    plenos e capazes de religar saberes diversos e mltiplos.

    A dissertao tem como metfora, a fogueira. Como sabemos,

    para construir uma fogueira temos que escolher o local adequado, a

    lenha apropriada, perscrutar o sentido do vento que animar suas

    chamas e decidir o que vamos fazer em torno dela. essa seqncia

    articulada de passos que constri o texto. Inspirada em Clarissa Pinkola

    Ests, acendo a fogueira e convido pessoas para, em torno dela,

  • 24

    presentearem-se com narrativas de experincias de vida e

    conhecimento. As primeiras Chamas anunciam o combustvel que

    alimentar a discusso, ou seja, as idias que perpassam a sua

    construo. A Chama Escarlate reanima-se com minhas narrativas de

    infncia, primeiras e decisivas experincias de vida. Botando lenha na

    fogueira o tempo e o espao para reanimar a fogueira e convidar os

    narradores para, em torno dela, narrar suas experincias e compartilhar

    com os demais presentes. Nesta tarefa, assumo o lugar de narradora /

    mediadora entre as narrativas e as interfaces que elas evocam com o

    conhecimento. Em Ressurgindo das cinzas, fao uma proposio de

    continuidade dessa atividade pelos educadores, por conceber o

    inacabamento do conhecimento, em especial no trabalho com o

    conhecimento de si, saber que no se esgota nunca, sendo impossvel e

    arrogante arriscar qualquer tipo de concluso. Por ltimo, O lume da

    fogueira anuncia os iluminadores das idias a partir das quais se

    estrutura a dissertao.

    O fogo um elemento que inspira poetas, cantores,

    compositores, fsicos, qumicos,no

    af de representar sentimentos

    como amor, paixo; de realizar e

    compreender a combusto de

    corpos. Tambm utilizado como

    figura emblemtica durante as

    festas juninas no nordeste

    Imagem 3 - Playing with fire.

  • 25

    brasileiro, o fogo alimenta as fogueiras em torno das quais tudo

    acontece: batiza-se, dana-se, tira-se a sorte, faz-se adivinhaes,

    namora-se, vive-se, enfim. No Dicionrio de Smbolos (1992), o fogo

    considerado como a metfora dos ritos de passagens e da sabedoria

    humana. Gaston Bachelard destaca o amor como a primeira hiptese

    cientifica para a reproduo objetiva do fogo (1992, p.442). Antes de

    ser filho da madeira, diz ele, o fogo filho do homem. O autor

    considera o mtodo da frico como um mtodo natural, sendo possvel

    que o homem chegue a ele pela sua prpria natureza. O fogo, diz

    Bachelard, surgiu em ns, inesperadamente, antes de ter sido

    arrebatado ao cu (1992, p. 442).

    Como num ato de arrebatamento do cu e da terra, as chamas

    que emanam da fogueira que constru, comportam crepitaes e

    movimentos, desejam despertar, em todos que se encontram ao redor

    dela, os sentimentos do amor, da paixo, do encantamento e

    enamoramento pelo contedo que anuncia, capaz de provocar a

    combusto to necessria ao processo de produo do conhecimento e

    formao do sujeito.

  • 26

    Primeiras Chamas: Narrar para construir laos

    Tambm fica uma fogueira dentro do meu corao.

    Lamartine Babo.

  • 27

    Contar ou ouvir histrias deriva sua energia de uma altssima coluna de seres humanos interligados atravs do tempo e do espao, sofisticadamente trajados com farrapos, mantos ou com a nudez da sua poca, e repletos a ponto de transbordarem de vida ainda sendo vivida. Se existe uma nica fonte das histrias e um esprito das histrias, ela est nessa longa corrente de seres humanos.

    Clarissa Pinkola Ests.

    A psicanalista jungiana, Clarissa Ests, diz que, entre seus povos,

    as perguntas costumavam ser respondidas com histrias. Uma primeira

    histria sempre evocava outra, na qual elas iam se encaixando como se

    fosse bonecas Matrichkas. O ato de narrar, de que nos fala Ests, no

    se limita a responder perguntas. Ao contrrio, prope a continuidade de

    uma histria que est a se desenrolar, de forma que a experincia

    narrada se transforma na experincia daquele que a ouve. Como que

    para reforar esse argumento, Ests, em seu livro O Dom da Histria,

    na tentativa de responder o que constitui o suficiente, o faz contando

    histrias que ouvira de seus antepassados, narradores bons e

    rsticos, que as contavam em vrias verses, muitas noites junto

    lareira. Essa prtica fez com que a histria, sobre o que suficiente

    para a vida, se perpetuasse por vrias geraes, atravs da oralidade.

    A histria sobre o grande sbio, o Bal Shem Tov com a qual

    Clarissa nos presenteia. Conta a histria que o amado Bal Shem Tov

    estava morte e mandou chamar seus discpulos...

  • 28

    Sempre fui o intermedirio de vocs e agora, quando eu me for,

    vocs tero de fazer isso sozinhos. Vocs conhecem o lugar na floresta

    onde eu invoco a Deus? Fiquem parados naquele lugar e ajam do

    mesmo modo. Vocs sabem acender a fogueira e sabem dizer a orao.

    Faam tudo isso e Deus vir.

    Depois que o Bal Shem Tov morreu, a primeira gerao obedeceu

    exatamente s suas instrues, e Deus sempre veio. Na segunda

    gerao, porm, as pessoas j se haviam esquecido de como se acendia

    a fogueira do jeito que o Bal Shen Tov lhes ensinara. Mesmo assim, elas

    ficaram paradas no local especial na floresta, diziam a orao e Deus

    vinha.

    Na terceira gerao, as pessoas j no se lembravam de como

    acender a fogueira, nem do local na floresta. Mas diziam a orao assim

    mesmo, e Deus vinha.

    Na quarta gerao, ningum se lembrava de como se acendia a

    fogueira, ningum sabia mais em que local exatamente da floresta

    deveriam ficar, e, finalmente, no conseguiram se recordar nem da

    prpria orao. Mas uma pessoa ainda se lembrava da histria sobre

    tudo aquilo e a relatou em voz alta. E Deus ainda veio (Ests, 1998,

    p.7-9).

    As histrias, diferentes dos homens, vivero para sempre, diz

    Ests:

  • 29

    Embora nenhum de ns v viver para sempre, as histrias conseguem. Enquanto restar uma criatura que saiba contar a histria e enquanto, com o fato de ela ser repetida, os poderes maiores do amor, da misericrdia, da generosidade e da perseverana forem continuamente invocados a estar no mundo, eu lhe garanto que ser suficiente (Ests, 1998, p.39).

    Dar a palavra aos velhos , tambm, uma forte tradio da

    cultura indgena. Por acreditarem que nem todo mundo dono das

    palavras, os velhos que fazem uso delas porque sabem coloc-las em

    seu devido lugar. Munduruku, em conferncia promovida pelo

    Polifnicas Idias, em Natal-RN, contou-nos que entre seu povo, os

    velhos, sendo considerados os mais experientes, tm como tarefa

    ensinar aos mais moos, obedecendo sempre uma hierarquia na qual

    cabe aos avs ensinar aos netos as coisas do esprito. As coisas prticas

    da vida, como a caa, a pesca e outros conhecimentos necessrios

    sobrevivncia, so ensinadas pelos pais.

    As narrativas esto fortemente presentes na tradio indgena.

    Atravs das histrias que ouvem dos mais velhos, as crianas aprendem

    como surgiu o universo; o respeito pela natureza, a arte de observar os

    movimentos dos animais e qual o significado do canto dos pssaros.

    Aprendem tambm valores ticos e estticos, tanto quanto o sentido do

    sagrado e outros conhecimentos que sero necessrios durante a vida.

  • 30

    Tambm por suas experincias e por conhecer profundamente os

    efeitos medicinais das plantas, na cultura Munduruku, quando uma

    mulher est grvida, deve procurar o Paj para se aconselhar sobre a

    escolha do nome do beb que vai nascer. De acordo com Munduruku, o

    paj prepara um ch feito da combinao de vrias ervas que ele

    conhece muito bem e oferece me que dever tomar pouco antes de

    dormir. Em seguida, a me mergulha num sono profundo e sonha com

    algum elemento sagrado da natureza, como um peixe, um pssaro, um

    jacar, um rio, uma pedra... O elemento que aparece no sonho tem

    como tarefa convencer a me de que seu filho dever ter o nome dele,

    sempre alegando bons motivos. Mas esse sonho s vale se se repetir

    por muitas vezes. Ento a me tem certeza de que aquele nome que

    deve dar a seu filho e mesmo que ao longo da vida, ele venha receber

    outro nome, o que sua me lhe deu ser o seu guia, devendo ser

    compartilhado apenas com pessoas muito especiais. Estes ndios

    aprendem, desde cedo, que o nome a nica coisa que lhes pertence.

    Todas as outras coisas so apenas tomadas de emprstimo, devendo

    ser muito bem cuidadas e respeitadas, uma vez que devero ser

    devolvidas natureza, de onde vieram. Assim nos contou Munduruku.

    Todas estas narrativas esto permeadas de situaes vivenciadas

    ou experienciadas pelos sujeitos, contribuindo para a formao ou

    transformao de suas identidades e subjetividades.

  • 31

    ainda Ests quem fala sobre o ato de narrar. Segundo ela,

    quando as pessoas se renem em volta de uma fogueira para ouvir e

    contar histrias selam laos de amizade e de compromisso para

    sempre. Esta prtica, que aproxima os sujeitos e cria laos de

    solidariedade, est fortemente presente nos terreiros, alpendres e

    caladas do homem sertanejo, o que, muitas vezes, se constitui numa

    escola primeira, principalmente para as crianas que participam dessas

    rodas e vo, no convvio entre elas e com os adultos, nas trocas de

    experincias, construindo conhecimentos que lhes sero teis e

    necessrios, durante toda a vida.

    Se nas tribos indgenas, como na Munduruku, so os velhos que

    tm a palavra por serem mais experientes, na cultura em que viveu

    Estes, essa uma tarefa que se delega tambm s crianas e jovens.

    Na educao isso muito importante porque o professor lida, no s

    com os adultos que narram suas experincias, mas com crianas e

    jovens que, igualmente, vivem experincias e podem refletir sobre

    muitos aspectos da formao atravs de suas narrativas.

    Ests considera a vida de um guardio de histrias, uma

    combinao de pesquisador, curandeiro, especialista em linguagem

    simblica, narrador de histrias, inspirador, interlocutor de Deus e

    viajante do tempo (1989, p.10). Por isso Ests aconselha a pedir aos

    velhos resmunges para que contem suas melhores lembranas, s

  • 32

    criancinhas, seus momentos mais felizes e aos adolescentes, o que mais

    assusta suas vidas. E aconselha:

    (...) d a palavra aos velhos, passe por toda a roda, force os introvertidos, pergunte a cada pessoa (...) Todos sero aquecidos, sustentados pelo crculo de histrias que criarem juntos (Ests, 1989, p.39).

    Historicamente, os humanos sempre sentiram necessidade de

    contar histrias, seja para deixar para as geraes futuras, seja pelo

    prazer de registr-las e de alimentar o capital cognitivo do sapiens-

    demens, variando conforme o tempo e o espao: em rochas, cavernas,

    pergaminhos, livros, verbetes, ou, ainda, perpetuando-as, atravs da

    oralidade. Seja como for, narrar uma atividade peculiar condio

    humana. Para faz-lo, o homem aciona seu imaginrio que comporta a

    polifonia das leituras que o sujeito faz dele prprio e do mundo.

    (Almeida, 1996, p.232).

    O homem habita a terra envolto numa teia de relaes em que

    tece, conjuntamente, os elementos mitolgicos/ empricos/ tcnicos/

    racionais. A condio humana parasitada, portanto, pela unidualidade

    do pensamento, sendo o homem um ser mito-lgico, produto e

    produtor da dialgica entre duas estratgias, dois modos de

    decodificao do mundo (Almeida, 1998, p.237). Estes dois modos

    coexistem, ajudam-se mutuamente. A existncia de um necessita,

    permanentemente, da do outro, confundindo-se por vezes, mas sempre

    provisoriamente, pois toda renncia ao conhecimento

  • 33

    emprico/tcnico/racional conduz os humanos morte; toda renncia s

    suas crenas fundamentais desintegra a sua sociedade (Morin apud

    Almeida, 1998, p.237). No h, portanto, um imaginrio do homem

    arcaico e um imaginrio do homem moderno, permanecendo o

    paradigma enigmtico do homem unidual.

    Sendo a experincia vivida e refletida uma forma de reordenar

    conhecimentos, essa experincia tem na narrativa a sua condio

    operativa e multiplicadora, pois de nada vale uma experincia que se

    insulariza no sujeito isolado. Tudo que no narrado morre com o

    sujeito. Ao contrrio, tudo que narrado e partilhado pode se constituir

    em elemento potencializador de novas snteses criativas e em elos que

    ligam os sujeitos entre si. Desta perspectiva, experincia e narrativa

    so pares indissociveis do conhecimento e da cultura.

    Josso considera os contos e as histrias da nossa infncia como os

    primeiros elementos de uma aprendizagem que sinalizam que ser

    humano tambm criar as histrias que simbolizam a nossa

    compreenso das coisas da vida (2004, p.43).

    Neste sentido, contar histrias desenvolver uma experincia

    formadora na medida em que, ao faz-lo, acionamos o nosso

    imaginrio, entramos em contato com situaes agradveis ou no, e

    estabelecemos relaes com inmeros elementos, que se encontram

    dentro e fora de ns mesmos, marcando a nossa presena no mundo e

    contribuindo para a construo de novos conhecimentos. Quando

    narramos as nossas prprias experincias, acionamos estados de ser

  • 34

    que estavam adormecidos, guardados em algum lugar de nossas

    memrias e que, ao serem narradas, passam por um processo de

    renovao, uma vez que tentamos ressignific-las no momento em que

    narramos. Este fragmento de Marcel Proust refora bem o argumento.

    (...) A maior parte de nossa memria est fora de ns, numa virao de chuva, num cheiro de quarto fechado ou no cheiro duma primeira labareda, em toda parte onde encontramos de ns mesmos o que nossa inteligncia desdenhara, por no lhe achar utilidade, a ltima reserva do passado, a melhor, aquela que, quando todas as nossas lgrimas parecem estancadas, ainda sabe fazer- nos chorar. Fora de ns? Em ns, para melhor dizer, mas oculta a nossos prprios olhares, num esquecimento mais ou menos prolongado (Proust, 1984, p.172).

    As experincias formadoras so tanto as que alimentam a

    autoconfiana, quanto as que alimentam as dvidas, as questes e as

    incertezas. Assim como a histria dos povos pode ser reescrita com a

    felicidade ou desgraa, conforme a conhecemos, a histria de nossa

    formao e a compreenso de nossos processos de formao e de

    construo do conhecimento podem ser transformados por meio da

    narrativa.

    Com o propsito de trabalhar as narrativas numa perspectiva de

    formao do sujeito, comeo por referir a tese de doutorado de Elizeu

    Clementino de Souza (2004): O conhecimento de si: Narrativas do

    itinerrio escolar e formao de professores. A tese prope a utilizao

    da abordagem biogrfica como perspectiva epistemolgica sobre a

  • 35

    aprendizagem do sujeito a partir de suas prprias experincias, como

    uma forma de ampliar os estudos sobre a histria de vida, no contexto

    da formao inicial de professores. O autor prope a utilizao dessas

    narrativas, numa perspectiva de autoformao, no mbito do estgio

    supervisionado, aproveitando a fertilidade e a potencialidade desta

    abordagem em projetos de investigao-formao de professores.

    Segundo Souza, a escrita da narrativa remete o sujeito para uma

    dimenso de auto-escuta de si mesmo, como se estivesse contando

    para si prprio suas experincias e aprendizagens que construiu ao

    longo da vida, atravs do conhecimento de si (2004, p.72).

    O que est em jogo no conhecimento de si no apenas

    compreender como se deu o nosso processo de formao, ao longo da

    nossa vida, atravs de um conjunto de experincias, mas tomar

    conscincia dessa forma de nos reconhecermos a ns prprios como

    sujeitos mais ou menos ativos, permitindo, da em diante, encarar o seu

    itinerrio de vida, os seus investimentos e os seus objetivos na base de

    uma auto-orientao (...) que articula de uma forma mais consciente,

    as nossas lembranas, as nossas experincias formadoras, os nossos

    sentimentos de pertena (Josso, 2002, p.65).

    O trabalho com narrativas de formao consiste em compreender

    o sentido da utilizao desta abordagem, como instrumento formativo,

    constituindo um novo olhar sobre a identidade e subjetividade do

    profissional de educao, para ultrapassar a concepo escolar de

    formao. Tomar conscincia do valor das experincias vivenciadas pelo

  • 36

    sujeito-professor o primeiro passo desse processo. As narrativas, de

    acordo com Souza, mobilizam o sujeito atravs de um olhar

    retrospectivo e prospectivo sobre si, possibilidades de compreenso de

    processos e fenmenos scio-educativos (2004, p.130), em especial

    aqueles que esto diretamente voltados para sala de aula e para prtica

    docente.

    Tambm Matthias Finger (1988) aposta na autobiografia como um

    mtodo capaz de promover a formao do sujeito e faz uma crtica

    formao que tradicionalmente se pratica, por estar, cada vez mais,

    atrelada cincia. Segundo o autor, o projeto da modernidade, no nvel

    tcnico-econmico, a viabilizao de uma produo cada vez mais

    cientfica; no nvel poltico, tem-se como foco desenvolver uma gesto

    cada vez mais racional e, no nvel cultural, difundir, pedagogicamente,

    o saber e os contedos cientficos. No entanto, nenhuma informao

    tem significado isoladamente. Para compreend-la, necessrio que a

    pessoa integre e signifique a informao a um outro saber.

    Finger denomina a prtica que investiga esse outro saber, de

    mtodo biogrfico, embora saiba que essa metodologia no tem sido

    usada na busca de um saber epistemologicamente alternativo. Para o

    autor, essa forma de investigao valoriza uma compreenso que se

    desenvolve no interior da pessoa, a partir das vivncias experimentadas

    ao longo de sua vida. Esse conhecimento no apenas crtico, reflexivo

    ou histrico, mas , fundamentalmente, formador. Finger considera que

    deveria ser esse saber, a preocupao primordial da pedagogia, pois,

  • 37

    atravs dele, as pessoas so capazes de elaborar suas identidades. E se

    esse tipo de processo de tomada de conscincia que as pessoas

    devem ativar para se formarem, necessrio se faz uma reorientao dos

    processos de formao.

    Morin considera como o grande desafio do sculo XX, a reforma

    do pensamento, que visa o desenvolvimento de uma democracia

    cognitiva passvel de uma reorganizao do saber, permitindo a

    religao do que est separado. Para Morin, tal proposta traz, em seu

    mago, um paradoxo. A universidade, instituio que forma os

    educadores, conservadora, e tem como funo a memorizao e

    ritualizao do patrimnio cognitivo. Alm disso, gera um saber e

    cultura que entram nessa herana (Morin, 1997, p.19). Ento

    necessrio reformar a instituio (as estruturas universitrias). Porm,

    isso impossvel sem a reforma anterior das mentes. Da mesma forma

    impossvel reformar as mentes sem antes reformar a instituio.

    Para Morin surge a uma impossibilidade lgica: Quem educa os

    educadores? A resposta emerge, em grande parte, do exerccio da

    reflexividade.

    necessrio que eles se auto-eduquem e se eduquem prestando ateno s gigantescas necessidades do sculo, as quais so encarnadas tambm pelos estudantes (Morin, 1997, p.19).

    Edgard de Assis Carvalho tambm aposta na necessria educao

    dos educadores como fenmeno de mudanas. Para este autor,

  • 38

    qualquer teoria da mudana nos aspectos scio-histricos e na

    educao, traz consigo a necessidade da educao dos educadores. O

    processo de formao deve acontecer atravs da fomentao da

    identidade entre cincia e arte, cincia e tradio, estimulando a

    religao entre razo e sensibilidade. A educao dos educadores

    dever reconhecer que a funo escolar, em qualquer nvel em que se

    exera, precisa estabelecer uma conexo forte entre presente e

    passado de um lado, e entre sociedade e indivduo do outro (Carvalho,

    2001, p.102).

    Isabel Alarco reafirma a necessidade do professor ser um sujeito

    cada vez mais vido por se autoconhecer para se autodesenvolver e diz

    que ao estatuto do Professor / narrador / personagem (...) subjazem

    conceitos como Aprender e Ensinar, Contar, Refletir, Agir, Criar. Existir

    (...) Conscientizar, Julgar, Transformar (Alarco, 1995, p.130).

    A escrita de autobiografias constitui-se, dessa perspectiva, um

    momento singular para desenvolver a competncia interpretativa e

    reflexiva sobre o sujeito e, no caso do professor, sobre o cotidiano

    escolar, promovendo uma auto-reflexo que permita o desenvolvimento

    de uma prxis mais livre, com menos amarras. Permite, ainda, segundo

    Josso,

    Explicitar a singularidade e, com ela vislumbrar o universal, perceber o carter processual da formao e da vida, articulando espaos, tempos e as diferentes dimenses de ns mesmos, em busca de uma sabedoria de vida (Josso, 2004, p.9).

  • 39

    O trabalho com as histrias de vida configura-se como um

    processo de conhecimento. Um conhecimento de si, das relaes que o

    sujeito estabelece com o seu processo formativo e com as

    aprendizagens que construiu ao longo da vida. um processo em que o

    sujeito se forma a partir da reflexo que faz sobre as experincias

    vividas.

    Vale ressaltar que nem todas as experincias vivenciadas pelos

    sujeitos causam transformaes profundas em seus processos de

    aprendizagens. Josso prope uma distino entre vivncia e

    experincia. Segundo a autora vivemos uma infinidade de transaes e

    vivncias. Mas estas vivncias s atingem o status de experincias a

    partir de um certo trabalho reflexivo que fazemos sobre o que passou e

    sobre o que foi observado, percebido e sentido. O conceito de

    experincia formadora implica uma articulao entre atividade,

    sensibilidade, afetividade e ideao. Articulao que se objetiva numa

    representao e numa competncia (Josso, 2004, p.48).

    Para que uma experincia seja considerada formadora,

    necessrio que ela esteja relacionada com o processo de aprendizagem,

    que provoque uma metamorfose no sujeito, ou seja, que essa

    experincia represente atitudes, comportamentos, pensamentos, saber-

    fazer, sentimentos que caracterizem uma subjetividade e identidades.

    As narrativas de formao permitem distinguir experincias

    coletivamente partilhadas em nossas convivncias socioculturais e

    experincias individuais, experincias nicas e experincias em srie.

  • 40

    Se essa maneira de compreender as experincias no denota uma

    perspectiva absolutamente unitria e sem conexo do indivduo com os

    outros, certamente Erwin Schrodinger tem razo quando reflete a

    respeito de uma tela comum a partir da qual o ser humano conecta

    suas singularidades e subjetividades.

    Cada um de ns tem a indiscutvel impresso de que a soma total de suas experincias e reminiscncias forma uma unidade muito distinta da de qualquer outra pessoa. A pessoa se refere a si prpria como Eu. O que esse Eu? (...) penso que ele bem mais que uma coleo de dados singulares (experincias e memrias), nomeadamente, a tela sobre a qual eles esto coletados.

    Erwin Shrodinger.

    Para pintar um quadro, o artista escolhe, cuidadosamente, todos

    os artefatos necessrios arte de criar. Primeiro, uma tela em branco

    do tamanho que lhe convm; depois, tintas, pincis, combinaes,

    experimentos, e muita, muita imaginao. Tempo pra pensar, pra

    sonhar e, enfim, criar. Todos esses ingredientes compem o cenrio

    alqumico da sua produo.

    Quem nunca pensou ou procurou decifrar as imagens - histrias

    tatuadas numa tela, mesmo naquela que aos nossos olhos parea a

    mais subjetiva? Conheo uma que, vista de um observador

    desavisado, pode parecer uma poro de traos desconexos, algumas

    palavras sem sentido e uma menina mal pintada de frente para alguma

    coisa que no se sabe bem o qu. Eu, que participei do momento de

  • 41

    sua criao, no consigo passar diante dessa tela, sem reviver toda a

    atmosfera do momento mgico em que o artista plstico natalense,

    Pedro Pereira, de posse de seus pincis e tintas, ao som da voz de

    Adriana Calcanhoto cantando Esquadros e inspirado em uma pgina

    do Dirio de Frida Kahlo, transformou narrativas em imagem. A

    experincia, a qual me refiro, foi vivenciada durante o evento

    Simposium Po e Circo, promovido pelo Grupo de Estudos da

    Complexidade-Grecom-UFRN, que se intitulou Sob o olhar de Frida

    Kahlo e tratava das narrativas de vida da artista mexicana.

    Reviver aquele momento me faz despertar para o elo que existe

    entre experincia/ narrativas/ imaginao/ criao/ conhecimento,

    simultaneamente, um processo individual e coletivo. Segundo Almeida,

    todo sujeito se modifica a partir de uma experincia de conhecimento,

    que subentende o tratamento de informaes que esto a sua volta ou

    chegam at ele (2003, p.43). Contar histrias seja tatuando-as em

    telas, seja atravs da oralidade ou da escrita, uma forma tanto de

    relatar experincias quanto de provoc-las.

  • 42

    Chama Escarlate:

    O conhecimento de si

    Fogueira no cho queima a ponta da varinha

    da minha infncia.

    Tomoko Kimura.

    Fogueira... Lembrana longnqua

    Crianas gritam alegria.

    Hissami.

  • 43

    Aquecida pelas labaredas mais vermelhas que emanam da

    fogueira, comeo a contar minha histria. A histria de como aprendi a

    aprender. Como acontece com todos os sujeitos, as experincias da

    infncia se constituem em modelos cognitivos primordiais e servem

    como base para a construo de uma matriz que me permite ampliar

    outros conhecimentos, ao longo da vida.

    Vejo-me ainda criana, caminhando de mos dadas com minha

    av, embaixo das enormes

    rvores que enfeitavam o

    caminho da casa da fazenda

    at a vazante do aude. Ali,

    ela cultivava repolhos,

    coentro, cebolinha e

    pimentes. A minha av

    cultivava pimentes Imagem 6- Caminho. vermelhos, verdes e

    amarelos, o que me causava muita admirao, pois at ento, s

    conhecia os pimentes verdes que davam mais sabor aos alimentos na

    casa de meus pais. Aqueles vermelhos e amarelos instigavam a minha

    vontade de prov-los, e foi assim que passei a comer pimentes crus,

    recm-colhidos, ainda molhados de orvalho. At hoje, se fechar bem os

    olhos, consigo sentir aquele cheiro de terra molhada e de pimentes

  • 44

    pedindo para ser colhidos e degustados ali mesmo, na horta. Regados,

    tambm, claro, pelo carinho e afeto da vov.

    Aps os cuidados

    dispensados horta,

    colhamos tomates, alm

    de folhas de alface e

    couve, que mais pareciam

    grandes leques de

    madames, e voltvamos

    para casa a fim de

    prepararmos as iguarias

    para o almoo. Imagem 7- pimentes.

    Vov chegava do trabalho com a alegria de quem volta da melhor

    das festas. Lavava o rosto suado e as mos calejadas numa bacia de

    gata branca, com a gua que minha av, pacientemente, derramava

    sobre suas mos, de um cntaro igualmente branco. Depois deste

    pequeno ritual, sentvamos mesa e almovamos em silncio.

    Silncio este quebrado apenas quando vov decidia contar algum

    causo acontecido l no roado, como uma cobra enorme ou muito

    venenosa que teria atravessado seu caminho, ou lamentado sobre

    aquela bela melancia que teria trazido para casa, se o guaxinim no a

    tivesse descoberto primeiro; ou, ainda, como as juritis estavam

    cantando quela manh, sinal de que teramos chuva ao fim da tarde.

  • 45

    s vezes meu av chegava com cara de pouca conversa, cenho

    franzido... Decerto a praga da lagarta estava devorando a plantao.

    Nestas ocasies, ele no ficava para a cesta, tinha providncias a

    tomar, ou a famlia no teria provimentos para o resto do ano.

    Eu, menina que era quela poca, aos seis anos de idade, no

    sabia que tais experincias e ensinamentos se constituiriam, aos

    poucos, nos alicerces da minha formao primeira. Naquela

    convivncia, eu, como todas as crianas do mundo, mas de modo

    particular, estava sendo iniciada nas primeiras noes de tica, de

    respeito natureza; recebia lies de previses do tempo, atravs do

    relato de experincias dos adultos que me rodeavam e da observao

    direta dos fenmenos naturais. Aprendia a gostar e valorizar as pessoas

    pelas suas histrias, ao mesmo tempo to singulares e complexas.

    Meu av era afeito caa. Caava tatus, pebas verdadeiros e

    aves que passavam a fazer parte do nosso cardpio. Um dia vov

    preparou, cuidadosamente, para o almoo, uma espcie de rptil que

    meu av caara. Eu havia acompanhado todo o processo de preparao

    da caa. Na hora do almoo, todos sentados mesa, minha av me

    serviu um naco da carne dourada e cheirosa que eu abandonei no canto

    do prato, at o final da refeio. Preocupada, vov perguntou-me a

    razo de eu no ter provado a iguaria que me servira. Eu,

    envergonhada, respondi que no gostava de comer lagartixa, o que

  • 46

    rendeu muitos sorrisos mesa e, at hoje, quando nos reunimos e

    relembramos os fatos do passado.

    Tambm na fazenda do meu av produzia-se queijo de manteiga.

    A enorme casa circundada por alpendres, tinha como vizinho prximo, o

    curral, onde ficavam as vacas e suas crias, durante o dia. Quando os

    ltimos raios de sol se despediam do horizonte, deixando no cu uma

    faixa amarelo-ouro, que ofuscava meu olhar, era hora de meu av

    voltar do roado e, antes de entrar em casa, ir cumprir a tarefa de

    apartar as vacas dos bezerros. Estes passavam a um outro curral, onde

    ficariam noite a fio. Assim, garantia-se que os beres das vacas se

    enchessem de leite e, quando o sol comeasse a dar sinal do seu

    retorno, vov e meu tio adentravam o curral para a ordenha. Nesta

    atividade, mantinham um tal movimento em suas mos, de forma que o

    leite, ao cair no balde, emitia um som to ritmado que mais parecia

    uma sinfonia. Saia Branca era sua vaca de estimao e era

    considerada a mais forte e saudvel, por isso era dela que vov enchia

    meu copo do leite morninho que eu tomava ali mesmo no curral.

    Percebo hoje que encher o meu copo com o leite de Saia Branca era

    como uma declarao de amor do meu av a mim. Ele se divertia com

    a aurola branca que se formava em torno dos meus lbios rosados e,

    em seu sorriso, havia a generosidade de quem se sabe dando o melhor

    de si para a pessoa amada.

    Mais tarde, o leite levado para casa era colocado para coalhar. A,

    seguia-se o processo de decantao. Vov, junto com minhas tias,

  • 47

    enchia enormes trouxas brancas feitas de saco alvejado e punha para

    coar at a ltima gota de soro. No dia seguinte, aquela coalhada se

    transformaria numa branca mistura que levada ao fogo, aos poucos, ia

    ficando dourada e se transformava em queijo. Terminado o processo,

    minha av deitava-o, ainda quente, em tabuleiros de vrios tamanhos.

    Uma parte seria consumida pela famlia, o que restasse seria vendido

    na cidade para ajudar nas despesas domsticas. O queijo era cozido

    num imenso taxo de metal e quando dele era retirado, sobrava uma

    crosta que se formava no fundo. Era hora de atacar, hora de raspar o

    taxo. O queijo, ainda quente, fazia fios que iam desde a enorme vasilha

    at minha boca, de forma que, s vezes, eu ficava entrelaada numa

    teia de queijo que grudava nos meus cabelos e na minha pele branca.

    Eu era uma menina feliz, cheirosa a queijo, a manteiga e a pimentes

    vermelhos.

    Mal sabia, naquele ritual de vida simples que aquelas experincias

    de criana teceriam teias que estariam presentes em muitos outros

    momentos de minha vida. No mais teias feitas de fios de queijo, mas

    outras que foram se formando e surgindo como as estruturas e

    arqutipos da vida na diversidade das suas relaes, restando-me

    continu-las e transform-las, rasgando-as, retirando-lhes os ns e,

    porventura, acrescentando-lhes outros, para tec-los diferentemente.

    Esta teia, portanto, no uma estrutura fixa e imutvel. Ao contrrio, a

    sua estrutura e natureza ntimas residem na versatilidade e

    metamorfose das articulaes e formas que se vo gizando, num

  • 48

    movimento que poderamos designar como uma gnese contnua. E,

    assim, enquanto tecemos a teia, ela vai se tecendo e vai nos tecendo

    tambm (Cabral & Almeida apud Ferreira, 2002, p.41).

    Assim o conhecimento. Ele no algo que est dado. na

    relao que com ele estabelecemos, nas experincias vivenciadas ao

    longo de nossas vidas, que vamos tecendo as nossas teias de

    significados, aos poucos modificando-as e sendo ns mesmos

    modificados, a ponto de no sabermos mais identificar aonde tudo

    comeou, assim como no sabemos onde vai dar, num entrelaamento

    constante, tal qual a teia que a aranha tece sem nenhum compromisso

    com o tempo.

    Como toda criana, gostava de me fantasiar e era no ba de

    roupas da minha tia Elita que encontrava solo frtil para minha

    imaginao. As saias de cambraia branca com largos bicos ingleses

    eram as peas preferidas para me transformar numa noiva. As flores

    para a mo eram colhidas no jardim que ficava na lateral da casa.

    Tambm era dentro desse mesmo ba que me escondia, quando fazia

    alguma coisa que os adultos consideravam errada, o que,

    inevitavelmente, sujava toda a roupa. Minha tia resolveu virar a

    fechadura do ba para a parede, acabando com a minha festa. A

    inspirao surgia, ento, com os lenis de cama com os quais eu fazia

    longos vus, com as camisolas da minha av, os aventais da cozinha e

    at com as peles de animais que ornamentavam as cadeiras da sala.

  • 49

    Tudo compunha uma pea para realizao dos meus desejos e alimento

    do meu imaginrio.

    Tia Elita, assim como minha me, era costureira e,

    freqentemente, as pessoas nos visitavam trazendo pacotes de tecido

    que ela transformava em roupas. Eu achava essa atividade muito

    mgica. No entendia como um pedao inteiro de pano podia ganhar

    tantas curvas e formas. Talvez, influenciada por essa curiosidade, muito

    cedo comecei a costurar roupas para bonecas e mais tarde tornei-me

    costureira tambm de minhas prprias roupas e de outras pessoas, sem

    nunca ter freqentado um curso formal de corte e costura.

    Um dia, minha tia anunciou que ia fazer uma boneca de pano pra

    mim. Fiquei muito feliz e acompanhei todo o processo de confeco da

    boneca. Ela fez cada parte separadamente: o tronco, as pernas, os

    braos. cabea ela dedicou uma ateno especial. Bordou o rosto da

    boneca: boca vermelha, mas do rosto rosadas com blush, olhos azuis

    para combinar com os meus, sobrancelhas marrons e cabelos loiros,

    cheios de cachinhos. Aquela boneca foi a mais bonita que tive em toda

    a minha infncia. Seus braos e pernas eram mveis, permitindo

    qualquer movimento, o que me deixava fascinada. Alm do mais, ela

    era enorme, parecendo um beb de verdade e eu podia vestir nela

    tantas roupas quanto quisesse.

    Os longos perodos vividos na fazenda do meu av eram

    justificados pela minha pouca idade para ir escola, uma vez que no

    havia na regio, escolas de educao infantil. Era, tambm, uma forma

  • 50

    de amenizar o trabalho de mame que tinha de cuidar dos meus outros

    irmos, todos pequenos. As atenes que me eram dispensadas, alm

    de todos os atrativos que tm as casas dos avs, faziam do meu

    regresso um evento de poucas alegrias. Quando resolviam que era

    chegada a minha hora de retornar casa paterna, era na garupa do

    cavalo do meu av que fazia o longo percurso da volta. Lembro-me de

    uma dessas ocasies em que acordei logo cedo e vesti um vestido

    vermelho de bolinhas brancas em alto relevo que mais pareciam

    bolinhas de isopor. Eu adorava aquele vestido de corpo princesa e cinto

    branco na altura do quadril. Depois me montaram na garupa do cavalo

    e seguimos caminho. Vov havia amarrado um leno em minha cabea

    para livrar-me dos malefcios do sol. No tinha um quarto de hora da

    nossa sada da fazenda, com o trotar do cavalo, o leno desceu minha

    testa cobrindo meus olhos e obrigando-me a escolher entre soltar a

    cintura do meu av para ajeit-lo, correndo o risco de cair do cavalo ou

    viajar de cabra cega. Fiz a segunda opo e, pelo menos naquele dia,

    eu no vi a paisagem no caminho de volta. Paisagem a mim to familiar

    naquelas idas e vindas casa dos meus avs.

    Penso que, naquela situao, eu escolhi viajar de cabra cega para

    poder sentir de outra maneira (aquela que os olhos no vem, mas o

    corao e todos os outros sentidos percebem) as sensaes que os

    nossos olhos no nos permitem ter ao estarem abertos. Assim, eu

    podia me encantar ao distinguir o canto dos pssaros mais suaves,

    como o bem-te-vi, o tetu, o rouxinol, do grito do canco, que

  • 51

    estremecia a estrada. Percebia a aproximao e a travessia das

    porteiras quando meu av se inclinava para frente para abri-las e

    passar. Ouvia o riacho, sentia o cheiro do mato e imaginava as figuras

    de nuvens claras que se formavam no cu. Tambm me divertia

    ouvindo o trote do cavalo, criando mentalmente canes que

    combinavam com a melodia de suas pisadas ao cho. Assim, entre

    sons, cheiros, melodias e imagens, captadas e produzidas pela minha

    imaginao, chegamos casa dos meus pais.

    Os meus retornos eram sempre marcados por muita festa dos

    meus pais e meus irmos. Eu, no entanto, ficava torcendo para que me

    mandassem de volta. Como isso no acontecia, levava dias para me

    acostumar falta de novidades de minha casa.

    Vov tinha uma imensa criao de patos que nadavam conosco no

    aude, lado a lado. Eu, nas costas das minhas tias, e eles, livres,

    altaneiros, atravessavam longas distncias aquticas, sem o menor

    esforo. De volta casa de mame, que no criava patos, mas

    galinhas, era com estas que treinava as minhas lies e tcnicas de

    mergulho e nado. As coitadas ficavam num grande alvoroo e se

    ningum as socorressem, provavelmente eu teria matado muitas

    galinhas afogadas. Ficava chateada e no entendia porque as aves da

    vov nadavam com tanto prazer e as da minha me tinham tanta

    averso gua.

    claro que todas essas lies eu aprendi mais tarde quando, na

    escola, a professora explicou que a diferena estava em ter um par de

  • 52

    ps com dedos e um par de ps como nadadeiras. Galinhas, nas suas

    condies de galinhas, no podem nadar; enquanto que da natureza

    dos patos que eles nadem e possam fazer travessias aquticas que as

    galinhas jamais faro, pois galinhas so filhas da terra, e patos,

    igualmente filhos da terra, tambm possuem a profundeza das guas

    em seus coraes.

    Foi, ainda, nessa poca da minha infncia que fiz meus primeiros

    contatos com uma outra cultura. A dos cidados do mundo, os ciganos.

    Meu pai herdara do meu av, que herdara do meu bisav, o costume de

    dar arrancho aos ciganos.

    Estes apareciam periodicamente l no stio, montados em mulas

    com seus recm-nascidos metidos dentro de uma tipia, que as mes

    traziam transpassada em seus ombros. As casas-barracas, prontas para

    serem montadas e desmontadas com a maior facilidade possvel, junto

    com vesturios e utenslios, eram igualmente transportados nos lombos

    das mulas.

    Mas, o que mais me impressionava era o mistrio que rondava o

    interior das tendas armadas, os longos e coloridos vestidos usados

    pelas ciganas, as tatuagens feitas em seus corpos (geralmente o nome

    do homem amado), os colares de muitas contas e cores, e suas formas

    de falar. Algumas ciganas contavam-nos histrias fantsticas de seu

    mundo e de seus saberes.

    Uma das histrias que ouvi e que muito me impressionou, dizia

    respeito ao surgimento do universo. Contava a cigana que, um dia, os

  • 53

    Deuses se revoltaram porque no mundo no existiam pessoas normais,

    apenas deuses que disputavam entre si o poder. Ento, um grupo

    desses deuses resolveu atear fogo no universo, ocasio em que

    morreram todos. O mundo virou uma gigantesca bola de fogo, levando

    muito tempo para esfriar novamente. A comeou a surgir os animais,

    dentre eles os homens, as plantas e tudo que conhecemos hoje, dizia

    ela, naquela ocasio. Ficvamos muito confusos porque conhecamos a

    histria do dilvio de que fala a Bblia e no sabamos em qual histria

    acreditar. Mas a forma misteriosa que a cigana usava para nos

    convencer de que a histria era verdadeira, nos fascinava. Ela tambm

    contava sobre a perseguio que sofria seu povo por no ter uma ptria

    e contava muitas outras histrias diferentes das que,

    convencionalmente, se conta para as crianas.

    Esse conjunto de histrias ciganas que se confrontavam com as

    histrias da Bblia crist, certamente me ajudou a construir uma viso

    de mundo na qual valem vrias verses. Creio que a dificuldade que

    tenho hoje em aceitar uma s verdade, uma s histria, oriunda de

    experincias como essa que acabo de narrar.

    Passvamos o dia a observar os movimentos daqueles nmades.

    Eles riam muito, deixando mostra seus dentes de ouro; contavam

    segredos entre si, em sua lngua; conquistavam pessoas para ler a

    mo; alegravam-se com o pouco que tinham. E, quando caa a noite,

    acendiam uma fogueira, em torno da qual cantavam e danavam.

    Quando eles se iam, deixavam, por longo tempo, suas marcas, nas

  • 54

    cinzas que restavam da fogueira, nas trempes em que preparavam seus

    alimentos ou em algum objeto que deixavam para trs.

    Lembro de como sonhei fugir com os ciganos. Pensava que eles

    podiam me mostrar um outro mundo, mas agora acho que o que mais

    me atraa era aquele estilo de vida, ao mesmo tempo, incerto e livre.

    O que aprendi com os ciganos? Aprendi a respeitar a diversidade;

    aprendi a criar meus deuses, a acreditar nos mitos; aprendi sobre

    outras formas de explicar a origem do universo. Aprendi muito sobre a

    vida.

    Essa uma forma de dizer da minha experincia com o mundo,

    no seio da minha famlia e em contato com a natureza, uma forma de

    narrar as minhas experincias de vida, no para me distinguir das

    demais pessoas, mas como forma de descoberta e valorizao da minha

    singularidade, podendo despertar os mesmos sentimentos a tantos

    quantos possam pensar sobre experincias que contriburam,

    igualmente, em seus processos de desenvolvimento e formao. Mas a

    continuao dessa histria pode ser narrada de uma outra forma. Por

    meio de versos.

  • 55

    Botando lenha na fogueira: Compartilhando experincias

    Nesta brasa de letras

    que se esfuma a poesia

    Traga essa chama que a alma ateia

    Nesta fogueira da alma que ao texto ilumina

    Traga o verso e nada mais Na calada da noite

    Ou com o sol ardente.

    No F. Massango.

  • 56

    Agora, com labaredas j bastante escarlates, em meio s fagulhas

    que a fogueira cospe, como que alimentada pela histria que acabara

    de ouvir, percebo o vulto de pessoas que vo se aproximando, pouco a

    pouco, e se acomodando em torno da fogueira, todos no mais profundo

    silncio. So os meus convidados que esto chegando, atendendo ao

    convite que os fizera para um encontro, no qual iramos compartilhar

    nossas histrias de vida e formao.

    Caros colegas profesores,

    pesquisadores e cientistas

    Convido para um encontro

    E ofereo uma pista

    Compartilharemos histrias

    Ser coisa nunca vista.

    As histrias so de vidas

    Podendo ser de morte tambm

    Fica ao gosto de vocs

    Contar o que lhes convm

    O importante que sejam

    Vivncias que o autor tem.

    O local vocs J sabem

    Naquele lugar na floresta

    Convidei poucas pessoas

    Espero que venham depressa

    Com uma fogueira queimando

    Juro que vai ser uma festa.

  • 57

    Ao perceber que

    escolheram para senta

    e anunciando o que va

    para no perder o ritmo

    Imagem 9- Fogueira Junina. todos j esto acomodados nos lugares que

    r junto fogueira, comeo dando as boas vindas

    mos tratar nesse encontro, cantando em verso

    .

    Bem-vindos meus convidados

    Que vieram alegrar

    Essa noite iluminada

    E suas histrias contar

    Fiquem todos vontade

    Pra podermos comear.

  • 58

    Hoje cada um de ns

    Juntos num mesmo passo

    ao contar nossas histrias

    Fortaleceremos laos

    De amor e amizade

    Unidos num grande abrao.

    Que as chamas da fogueira

    Aquea os coraes

    Pra podermos comear

    E contar nossas verses

    Narrando nossas histrias

    de vidas e formaes.

    Uma professora me disse

    Valha-me Nossa Senhora

    Isso tarefa difcil

    Penso que quando for minha hora

    Com tanta gente importante

    Nenhuma palavra sai fora.

    Te disse: - Mas que tolice!

    No me fale essa asneira

    Cada um tem uma histria

    E isso no besteira

    Compe as nossas vidas

    No importando a maneira.

  • 59

    Porm quero sugerir

    Nossa aproximao

    Faamos uma rodada

    E uma apresentao

    Para j saber quem somos

    Logo de primeira mo.

    Obedecendo ao que manda

    As regras de boas maneiras

    Morin me sugeriu

    Que fosse eu a primeira

    A me apresentar agora

    J em torno da fogueira.

    Eu sou Ftima Arajo

    E aqui me sinto bem

    Sou professora primria

    Tarefa que me convm

    Trabalho com formao

    De professores tambm.

    Depois de me apresentar

    No papel de anfitri

    Passo a palavra a vocs

    Pra se apresentar com af

    E pra obedecer roda

    Comecemos por Morin.

  • 60

    Me chamo Edgar Morin

    Na vida no me confundo

    Pelo pensamento complexo

    Tenho um respeito profundo

    Sinto-me um contrabandista

    Dos saberes deste mundo.

    E eu sou Maria Zilma

    Professora de criana

    Terminei graduao

    Ainda me resta esperana

    De na nossa educao

    Promover muita mudana.

    Boa noite, sou Cascudo

    E me sinto muito honrado

    De pra essa ocasio

    Ter sido convidado

    Espero que eu consiga

    Tambm d o meu recado.

    E eu sou Elis Regina

    Por favor no se espante

    No foi o esprito da cantora

    Que apareceu neste instante

    Eu sou mesmo professora

    No me peam pra que eu cante.

  • 61

    Eu sou Francisca Falco

    Mas todos me chamam Bia

    Fao rima e fao versos

    Isso tudo que eu queria

    Est aqui com vocs

    Nesse maravilhoso dia.

    O meu nome Lisieux

    E venho l de Perobas

    Daquela terra belssima

    Donde o mar se desdobra

    Ser professora primria

    o que fao por hora.

    Eu sou Marta Neves

    Santos do Nascimento

    Quero dizer pra vocs

    Aqui e nesse momento

    Que um grande privilgio

    Participar desse intento.

    Boa noite meus senhores

    E minhas senhoras tambm

    Eu me chamo Vera Lcia

    E nessa noite aqui venho

    Para contar as histrias

    E experincias que tenho.

  • 62

    Sou um ndio brasileiro

    E sinto muita alegria

    De est aqui com vocs

    Nessa noite de magia

    S partilhamos o nome

    Com pessoas de valia

    Daniel Munduruku

    Este o meu guia.

    Terminada a apresentao

    A fogueira a queimar

    Uma professora apressada

    Comeou logo a falar

    Pediu para comearmos

    E tratou de anunciar

    Que seria eu a primeira

    A minha histria contar.

    Fiquei um pouco corada

    Nervosa, mas concordei

    Em comear a narrativa

    Aquela era a minha vez

    Ajeitei um pouco a voz

    E a histria comecei.

  • 63

    Espere a minha gente

    Preste um pouco de ateno

    Peo licena agora

    Pra lhes contar de antemo

    Um pouco da minha histria

    E da minha formao.

    Nasci de uma famlia simples

    De precria formao

    Estiveram na escola

    Por curtssima durao

    Mas no queriam que seus filhos

    Passassem tal provao.

    Morvamos numa fazenda

    L pras bandas do serto

    As coisas que l chegavam

    Iam de burro ou caminho

    E por no haver escola

    No fiz alfabetizao.

    Fazenda demanda trabalho

    Com bois, vacas, pavo

    Pato, galinha, jumento

    Oh, que grande confuso

    E pra d conta de tudo

    Tinha que ter um peo.

  • 64

    Fiz todo esse rodeio

    Sem querer ser enfadonho

    Mas que quero contar

    Como conheci seu Antonio.

    A luz do meu candeeiro

    O despertador dos meus sonhos.

    Imagem 10- Adivinhando Chuva.

    Seu Antonio era um senhor

    Muito agradvel, contente

    Foi contratado por meu pai

    Pra d conta do batente

    E se isso no bastasse

    Ainda alegrava a gente.

  • 65

    Voc deve t pensando

    Que tem a ver o matuto?

    Mas lhe falo sem demora

    De como ele era astuto

    Comprava cordis na feira

    Pra de noite ter assunto.

    E sempre aps o jantar

    Com lua cheia ou no

    Fazamos roda no alpendre

    Sob a luz de um lampio

    Pra ouvir longas histrias

    De amor e de paixo

    De cangao e ousadia

    Da cidade e do serto.

    E eu ainda pequena

    Menina muito levada

    Depois de ouvir tais histrias

    Dormia inebriada

    Embalada pelo desejo

    De ser alfabetizada

    Pra roubar aqueles livros

    E l-los duma tragada.

    O desejo foi crescendo

    E a curiosidade latente

    Quando seu Antonio saia

    Ia at seus aposentos

    Pegava os tais cordis

    E olhava muito atenta.

  • 66

    Prestava ateno nas palavras

    Ficava a observar

    Queria aprender a ler

    Tentando adivinhar

    Onde que tava escrito

    O que ouvi ele contar.

    E foi assim eu lhes digo

    Que passado pouco tempo

    Eu conseguia ler os versos

    Cheia de contentamento

    No sabia que o destino

    Me preparava um tormento.

    Alheia a esse processo

    Sem saber que eu j sabia

    Mame me matriculou

    Na escola de dona Maria

    E numa de ABC

    Eu tinha que ler todo dia.

    Acontece que a senhora

    Tinha apenas um mtodo s

    E se os cordis me animavam

    Aquela escola era um n

    Mandando eu repetir

    O ba- be -bi- b - o bo.

  • 67

    Sem contar que seu marido

    Ficava tambm na sala

    E tinha uma cara to vermelha

    Como sangue na navalha

    Fazia caretas pra mim

    Me deixando atrapalhada

    Eu fazia as tarefas

    Debaixo da mesa sentada.

    Mesmo assim no reclamava

    Se a aula era uma aflio

    Pois fazia da viagem

    Uma grande diverso

    Brincava com gafanhoto

    Calango, ninho de azulo

    Tomava banho no riacho

    Sem sofrer qualquer sanso.

    Aquela escola era um engodo

    No dava mais pra agentar

    Com um pouco mais de tempo

    Chegou a hora de mostrar

    Pros meus pais, com muito tento

    Que aprendi o b- a- b

    E uma noite no alpendre

    O cordel eu quis falar.

  • 68

    Os meus pais ficaram bobos

    De orgulho e gratido

    Por Maria, a professora

    Que me ensinara a lio

    No sabiam que muito antes

    Eu j prestara ateno

    Se s agora eu tava lendo

    Foi de mim a deciso.

    Esse segredo era s meu

    Parece, ningum notou

    S sei que dali em diante

    Seu Antonio abandonou

    O hbito de ler cordel

    A mim ele delegou

    Eu lia elegantemente

    Como a fia de um doutor.

    Fui ento pra outra escola

    Mais organizada e exigente

    L, fazia composio

    Sobre bicho e sobre gente

    Isso eu fazia bem

    Ficava toda contente

    E o primeiro lugar da classe

    Era meu, meu somente.

  • 69

    Mas o meu maior barato

    Naquela poca da infncia

    Era escrever vov

    Que se encontrava distncia

    E me mandava elogios

    Crescendo minha constncia

    De escrever sem medo

    E com mais perseverana.

    Depois eu fiz magistrio

    Pra estudar como se faz

    Para atender a crianas

    E faz-las aprender mais

    Mas isso no era tudo

    Eu ainda queria mais.

    Estudei Pedagogia

    Na Universidade Federal

    Aprendi novas tendncias

    Da Educao atual

    Mas precisava saber mais

    Eu descobri no final.

    Participei de congressos

    Na rea da educao

    De estudos e seminrios

    E cursos de extenso

    Tudo para aperfeioar

    Toda minha formao.

  • 70

    Foi ento que decidi

    Um projeto organizar

    Pra concorrer ao mestrado

    E ps-graduao cursar

    Consegui ser aprovada

    E estou a pesquisar.

    No grupo da Complexidade

    Onde fui acolhida

    Me sinto muito feliz

    E tambm agradecida

    De estudar as idias

    Que se confundem com a vida.

    Tenho como orientadora

    Maria da Conceio

    Que dedica a todos ns

    Bastante dedicao

    Com ela desenvolvo a pesquisa

    De histrias de formao.

    De experincias de vida

    Partindo logo das minhas

    Porque em nossos estudos

    Como costurados com linha

    Sujeito e objeto

    Unidos, juntos caminham.

  • 71

    E nessa minha pesquisa

    Confesso que tenho um plano

    Nas narrativas dos outros

    Insisto, no abandono

    Pra ver se na vida deles

    Tambm tem um Seu Antnio.

    Estas so experincias que ressignificadas se constituram na

    matriz de construo de outros conhecimentos, processo pelo qual

    passa todos os humanos conforme suas singularidades e oportunidades

    que tiverem na vida. Tomando o Seu Antnio da minha vida,

    transformo-o em metfora para reconhec-lo nas histrias

    autobiogrficas de meus convidados. No se trata, portanto, de

    procurar uma pessoa que foi importante ou decisiva em suas vidas, mas

    de identificar situaes ou acontecimentos que os marcaram nas suas

    trajetrias de formao, tanto quanto Seu Antnio marcou a minha.

    Segundo Souza (2004, p.20), (...) a dimenso formadora das

    experincias deixam marcas e imprime reflexes sobre o vivido. Neste

    sentido, todas essas experincias, frutos do acolhimento e da polifonia

    de idias das pessoas com quem convivi, significativas a ponto de estar

    trazendo-as para um trabalho cientfico, influenciaram a minha forma

    de escrever e de ler o mundo num estilo mais esttico e mais potico.

    Seu Antnio lanava mo de uma poderosa farmacopia de folhetos de

    cordis que ele lia pra ns (eu e meus irmos), criando um tecido forte

    que enlaava e aquecia nossas noites, espiritual e emocionalmente.

  • 72

    Seus cordis assumiam vida prpria quando lido e interpretado, tal qual

    borboletas livres que criam asas, voando e povoando a nossa

    imaginao, despertando estados de ser, marcando a nossa maneira de

    estar no mundo e construindo vnculos definitivos.

    Mas, todos esto vidos por ouvir a histria do nosso primeiro

    convidado, que com seu rosto j vermelho pelo calor das chamas,

    prepara-se para falar. E em forma de versos, passo a palavra a Morin.

    Agora que terminei

    E j dei o meu recado

    Passo a palavra ento

    A esse nobre convidado

    Que vai contar sua histria

    Com prazer e muito grado.

    Voc que cientista,

    Conte-nos! O que contribuiu

    Para sua formao

    O que foi que lhe instruiu

    Para escrever essas coisas

    Que o mundo inteiro j viu?

    Boa noite, meus colegas

    Viajantes desse mundo

    Penso que em nossas vidas

    Todo mundo tem um rumo

    Experincias vividas

    Pra na vida dar um prumo.

  • 73

    Imagem 11- Singularity_cosmos

    Eu sou Edgar Morin

    Encantado como tal

    No separo a minha vida

    Da vida intelectual

    Por isso lhes conto agora

    Meu saber primordial.

    Sou dos que tm uma vida

    No dos que tm uma carreira

    Entre ambas no coloco

    Divisrias nem barreiras

    Elas esto bem coladas

    Como se fosse com cera.

  • 74

    Na famlia aprendi

    A gostar de iguarias

    Do azeite e berinjela

    Espinafre, quem diria!

    Herana dos ancestrais

    Que isso tudo comia.

    Meu pai no me ensinou

    Uma crena ou tradio

    Nenhum princpio poltico

    E nenhuma religio

    Talvez por eu ser filho nico

    No seio de uma gerao.

    Mas meu pai me transmitiu

    Cultura de canonetas

    Com ele tambm aprendi

    A gostar de operetas

    Ele cantava e assobiava

    Traviata e Rigoletto.

    Aos nove anos de idade

    Aprendi o que a morte

    Que levou a minha me

    Por pura falta de sorte

    Levada num vago de trem

    Causando na vida um corte.

  • 75

    Porm, me esconderam tudo

    Disseram que fora viajar

    E pra casa de uma tia

    Me mandaram preu brincar

    Dizendo que o meu pai tinha

    Com ela ido encontrar.

    Dois dias depois do fato

    A morte detectei

    Com meu pai em minha frente

    Confesso logo saquei

    Todo de preto, enlutado...

    Uma bomba sufoquei.

    Jamais quis manifestar

    Aquela infinita dor

    Escondia o que sentia

    Em segredo e com horror

    De meu pai e minha tia

    E quase ningum notou.

    Encontramos na narrativa de Morin, como ele mesmo reconhece

    em seu livro Meus Demnios, eventos e situaes que o marcaram

    para sempre, como a perda prematura de sua me, quando ele tinha

    apenas nove anos de idade, deixando-lhe um buraco negro no fundo da

    alma, fazendo com que ele pudesse refletir sobre o que a morte,

  • 76

    sobre a relao que esta tem com a vida, levando-o a escrever o livro O

    Homem e a Morte.

    Parti assim para vida