A Flecha Sumilla
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A Flecha: Projeto de conquista e naturalização da violência contra os nativos
A “colonização” de Rondônia reproduz o processo de conquista do período colonial. Na cidade de
Ariquemes (Amazônia brasileira), foi implantado na década de 1980, o Projeto Burareiro que visava
“assentar” 600 famílias sem-terra expulsas, do Sul e Sudeste, pelos latifundiários. Os agentes
públicos, sob a ditadura militar, assentavam colonos em troca de votos, estratégia pensada para
manutenção do poder na base do clientelismo. O novo curral eleitoral foi sobreposto à área indígena
do povo Uru-eu-wau-wau. Os superintendentes do Instituto de Colonização e da Fundação do Índio
promoveram a violência ao oficializar a invasão das terras indígenas.
O médico, congressista e escritor Confúcio Moura, em seu romance A flecha narra em prosa a
tragédia real do seringueiro Francisco Prestes que ganhou repercussão nacional devido à morte de
seus dois filhos e do rapto do caçula Fábio. Moura reatualiza o poema épico Muhuraída de
Henrique Wilkens, publicado no final do séc. XVIII, e que demonizava o povo Mura, bem como
reproduz os estereótipos criados sobre os indígenas desde então. Em sua narrativa a violência
praticada pelo conquistador é menor, banalizada e apresentada como acidental, enquanto a defesa
do território, feita pelos nativos, é resultante de uma pretensa crueldade oriunda da natureza má dos
povos nativos.
Nesse sentido a escritura regional legitima o massacre e promove uma inversão política absurda ao
transformar o indígena em invasor. Todavia, mais absurdo ainda é constatar que essa obra foi
editada por uma editora universitária, adotada como cânone da literatura regional e requisito para
ingresso dos estudantes na única universidade pública da região. Publicada com recursos públicos,
essa obra de ideologia das elites latifundiárias foi lançada sem a menor preocupação crítica, visando
atender a preceitos e interesses privados dos mais mesquinhos e sem qualquer princípio estético ou
ético. Só para ilustrar o leitor sobre a sua qualidade estética, nesta obra os antropólogos, numa
licença poética, “escavam”.
Moura ao colocar o jogo social da “conquista” em narrativa literária, visava escamotear a violência
do contato como uma consequência natural da expansão capitalista. Daí em sua narrativa, os
conquistadores não praticam violência, ela é instrumentalizada na expansão da fronteira. Todavia,
faz uma inversão ao dotar esses povos de uma violência superior aos invasores, sua resistência
indígena é retratada enquanto violência premeditada, cruel e astuta.
A demonização dos indígenas se tornou útil desde então e segue até os dias atuais legitimando a
expansão capitalista sobre suas terras. A expansão é vista como algo natural, inexorável e a
resistência indígena como algo extemporâneo que não estava no roteiro da conquista, é algo
inesperado, um empecilho que já não deveria se encontrar lá. “Aqueles que vieram antes não os
exterminaram? Porque eles ainda estão aqui?” Perguntam os fazendeiros.
ESTRUTURAÇÃO DA TRAMA
Poderia se dizer que a novela de Moura se divide em quatro atos: invasão das terras indígenas,
conflito com os Uru eu waw waw, vingança e acomodação. Os pontos mais altos e tensos de
suspensão da tragédia são o conflito e a vingança. Bem como a legitimação ocorre na vingança e
na acomodação. Vamos a eles:
A INVASÃO DAS TERRAS INDÍGENAS
A cena principal, que motiva toda a trama, se dá com Dirceu, Fábio e Zézinho, o caçula, brincando
numa praia paradisíaca à beira do rio cercado por uma aura de inocência. Na cena há garças brancas
e peixes saltando das águas sob um céu azul e limpo, como um filme hollywoodiano em quadros de
slowmotion, que mascaram a invasão das terras Uru-eu-waw-waw. Os astutos indígenas quebram o
encanto da cena de forma planejada e com requintes de crueldade. A violência dos índios se
manifesta quando supostamente flecham anjos indefesos, pois se tratam, na narrativa, de assassinos
frios e meticulosos a imolar dois jovens inocentes para um Deus bestial qualquer.
No capítulo seguinte Chico Neco, o seringueiro é idealizado como pai herói, e tem a missão de
salvar os filhos flechados e resgatar o filho caçula das garras do mal. Ele, aos poucos, vai
conquistando sentidos sobre humanos, sua visão, olfato e audição são ampliados por quilômetros e
seu tato está à flor da pele. Neco passa por inúmeras provações e perigos na viagem, cachoeiras e
corredeiras, em seu percurso para sair das terras “inimigas” e salvar Fábio em agonia.
A viagem de fuga se configura como uma maldição, Chico Neco se desdobra para salvar a vida de
Fábio. O herói Neco não tem saída, a perspectiva da morte é inexorável, ou arrisca descer a
cachoeira e ser imolado junto de seu filho agonizante ou fica ali e assiste a sua morte. Ele resolve
arriscar a vida pelo filho.
Em seguida o seringal se enche de solidariedade, mascarando as relações de espoliação de classes.
Os seringalistas se transformam em “amigos” e protetores de Fábio, o único encontrado vivo. A
solidariedade se personifica entre seringalistas e seringueiros ajudando a atravessar a canoa por uma
perigosa cachoeira, dentro dela um rapaz de 17 anos agonizando e com o peito crivado de flechas.
O apelo emotivo se consubstancia no esforço, que transcende as diferenças entre classes sociais,
para salvar o filho de Neco: “Até as crianças (chibolitos) ajudaram a atravessar a canoa”.
Paradoxalmente na vida real, a família Prestes era superexplorada pelos seringalistas e comerciantes
locais.
Dirceu é o segundo personagem mais trágico. Não queria estar naquelas terras indígenas, não queria
saber de terra e de roças, porém como o pai as havia “ganho” do governo, ele tinha a obrigação de
ajudar o pai a “humanizá-las”. Ingênuo, com seus 20 anos, já esperava um filho de Margarida, e
desejava se estabelecer como subalterno naquela selva em construção. Esse quadro faz crescer ainda
mais a culpa cristã de Chico Neco, aumentando também o apelo dramático e a tragédia envolta em
sua morte. Em nome da propriedade da terra sua vida foi tragada.
Zézinho, o caçula, também não era para estar ali, foi para lá para dar sossego à mãe na cidade.
Zezinho representa o prazer do contato com a natureza amazônica. O rio era o seu lugar, como a um
boto gostava de nadar e pescar, e era pouco afeito as brincadeiras comuns aos outros meninos de
sua idade.
PUNIÇÃO E VINGANÇA
A vingança é fundamental e tratada de forma calculista: para resgatar um menino era necessário
“liquidar” uma tribo inteira. Essa equação é como uma operação financeira de câmbio, na qual o
“nosso” é igual o extermínio de todo um povo.
Ocorrem duas expedições punitivas, em que os brancos ao mesmo tempo que tem razão e estão
revoltados, também tem medo dos Uru eu waw waw. Movidos pelo desejo de vingança e resgate de
“Zézinho”, tiram sua coragem da raiva; não são calculistas e sim movidos pela dor. Por matarem
índios sem importância, não necessitam de explicação, ao passo que o drama dos conquistadores é
justificado milimetricamente no texto. Os índios escapam à vingança porque eram feiticeiros e
conheciam os segredos da magia. O índio é o “Outro”, o inimigo, e a obra é um elogio ao racismo e
ao preconceito, editada em pleno século XXI por uma editora universitária como se fosse publicada
no final de 1780.
Numa churrascaria, o ex-padre Alfredo, Capitaõ Silvio, Doutor Felipe e Ovídio discutem a questão
agrária na Amazônia. O ex-padre Alfredo é visto com desconfiança pelo Capitão Sílvio, Presidente
da Empresa colonizadora que o classifica de comunista. Doutor Felipe, advogado e especulador
imobiliário, defende a grande propriedade privada como única forma de crescimento econômico. E
Ovídio defende a manutenção da estrutura fundiária desigual do país por meio da conquista das
terras indígenas.
Em contrapartida os indígenas são tomados como covardes e frios, seres cruéis que se organizaram
num grande grupo para matar dois “anjos” indefesos. Os estereótipos e preconceitos são destilados
de forma simples e direta, fazendeiros contratam “matadores” paraguaios, descritos por Moura
como “gente feia, magra e com feições de índio”. Para o médico Doutor Constâncio Moreira,
narrador em primeira e terceira pessoas, o caboclo é “ignorante e atrasado”, daí permanecer na
pobreza. A natureza é rica, entretanto o índio é um “estúpido” que não sabe explorá-la. Na fala do
Dr. Constâncio, alter ego de Moura, o ribeirinho deve sair do “miserê” em que vive.
Os estereótipos e clichês se prolongam em todo o curso narrativo, e são mais apropriados e dignos
de uma conversa de botequim. Os ataques dos índios são descritos com ênfase, enquanto o massacre
real de uma tribo inteira em Guajará Mirim na fronteira com a Bolívia pelo seringalista Manoel
Lucindo sequer é mencionado pelo personagem Manoel Lucídio. Mais uma vez justifica-se a ação
vingativa real de Lucindo, que inclusive na vida real foi o primeiro a ser julgado e sentenciado no
país por genocídio.
O mateiro “Sapecado” é enfático, “Para que índio quer terra?” e “Índio é na bala!”. Essa passagem
retoma os clichês criados em outra narrativa, As botas do diabo, pelo escritor alemão Kurt
Falkenburger. Nesta o seringalista obriga um casal Karipuna a beber querosene para entreter e
deleitar Reginald Wire, um engenheiro inglês da Estrada de Ferro Madeira Mamoré.
Porém, ao narrar como um pequeno grupo do povo Uru-eu-waw-waw flechou os dois rapazes e
sequestrou o filho caçula de Neco, a cena descrita beira a requintes de sangue-frio e perversidade no
ataque aos inocentes, esvaziando os índios de sentimentos. Ora os índios são humanos ao vingar a
morte de seus entes, ora eles são demasiadamente frios a ponto de planejar a morte de meninos
indefesos. Outra contradição se dá quando o narrador conta como os rapazes foram alvejados e
mortos instantaneamente, e ao mesmo tempo, a morte de um rapaz torna-se uma chacina.
Em seguida Josiel e Élio, dois madeireiros invadem as terras dos Uru, Josiel é morto à flechadas e
Élio escapa com vida, este é o motivo principal para a vingança. Este caso é narrado com comoção
nacional e colocado a favor da legitimação da conquista. Aos poucos o médico Constâncio Moreira
justifica a vingança contra os índios e legitima-a.
Apesar do relato ser hiper-realista, Moura carrega nos sentimentos, nos sentidos positivos e
humanizados dos usurpadores enquanto vítimas da conquista. Ameniza a responsabilidade do pobre
seringueiro Bertolino que “atira a esmo para testar sua arma, e inocentemente mata o chefe da
tribo!” O assassinato do líder do povo Uru eu waw waw é retratado de forma banal como se se
matasse a um pássaro. Esta morte, considerada insignificante pelos conquistadores, seria o motivo
da violência por parte dos índios.
ACOMODAÇÃO E LEGITIMAÇÃO DA CONQUISTA
A tragédia de Lica e Chico pode ser entendida como a tragédia do contato. Lica, por seu lado
também amaldiçoa as populações indígenas, que se transformam numa excrecência a ser eliminada.
Os indíos passam a ser como zumbis, mortos-vivos que, para poder sobreviver fisicamente, devem
morrer culturalmente e se transformar em peões de fazenda, em espoliados e alcoólatras miseráveis
sobrevivendo de serviços mal pagos nas periferias da Amazônia. Neste sentido, a novela de Moura
revela o projeto desenvolvimentista frustrado do Centro sul reproduzindo-se na Amazônia com a
mesma desigualdade e violência do resto do país.
O final da trama é distópico, todos têm um fim trágico. Egídio, filho mais velho, vira um drogadicto
e passa a viver do tráfico, inclusive levando Ilca a assumir a responsabilidade e ser condenada a
muitos anos de cadeia. Já Bahiano Maia, o sertanista que participou da missão de contato com os
Uru e os defendia, foi assassinado. Todos os Uru eu waw waw se tornam desajustados que já não
possuem as ferramentas para viver nesta nova sociedade desigual e violenta.
A violência passa a ser a nova realidade, a maldição da fronteira. A Amazônia enquanto promessa
de um mundo melhor e como salvação para a falência do projeto desenvolvimentista do Centro-sul
não se concretiza; torna-se apenas uma utopia decaída do Centro-sul em sua segunda edição. Neste
sentido, o texto de Moura não deixa saídas mas somente desajuste e mais violência a ser
multiplicada nas relações sociais.
O desencaixe sócio-cultural é a síntese da violência em sua narrativa. A utopia do Eldorado se
converte em uma distopia. Todos os personagens retornam desiludidos aos seus estados de origem;
tanto Guerra, como Ilca, Dema, Joaquim, Alfredo Kuntz e Celina levam consigo as pragas que
devoraram o seu cacaual e os levaram à falência. Levam de volta os sonhos não realizados, mais
uma vez a narrativa vitimiza os algozes. E o povo Uru é um de seus suplícios, invertendo uma vez
mais os papéis, a exemplo do romântico Joaquim Manoel de Macedo.
Só há uma vitória nesta novela trágica, a do mercado, o latifúndio venceu e o agronegócio dominou.
A utopia da pequena propriedade redentora tomada dos indígenas virou água. Concretiza-se a utopia
da direita reacionária, que logrou extinguir os movimentos sociais e implantar uma cadeia produtiva
de agronegócio para exportação de madeira, carne e soja. A única saída proposta por Moura é o
extrativismo para exportação já que a riqueza natural deve estar a serviço do lucro para erradicar a
“pobreza” dos poucos povos tracionais.
CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
Na narrativa, os índios são desqualificados por não se submeterem ao trabalho pesado de derrubada
das árvores e de abertura de picadas. Os Uru eu waw waw são animalizados e tomados como
irracionais que não se pode “domesticar”. A narrativa naturaliza o extermínio das populações
indígenas e simbolicamente os estigmatiza como o Outro cuja memória é apagada e denegrida para
legitimar a conquista.
A morte real dos filhos de Prestes é estandardizada como modelo de sacrifício humano, ritualizada e
valorizada de modo central neste romance. Neste momento, mais exatamente nas páginas 90 e 91,
os rapazes são transformados em mártires da conquista, legitimando a mesma, pagando com sua
vida pela violência “acidental” anterior do personagem Alfredo, um seringueiro que trabalhava
invadindo as terras indígenas.
Os corpos dos filhos de Chico são ritualizados e enterrados em clima de grande comoção, revolta e
desejo de vingança. O cacique Uru, ao contrário, apenas apodreceu como animal no meio da mata.
A narrativa reproduz estereótipos coloniais quando apresenta os índios como ferozes e feiticeiros
maus que amaldiçoam aqueles com quem tem contato, imagem criada por Wilkens em 1780 e que
insiste em perdurar no século XXI. O personagem Delson, farmacêutico, sempre lembra à família
de Neco que todo o infortúnio pelo qual passaram e passam até o último instante da vida é fruto
direto da maldição dos Uru eu waw waw.
Para o padre salesiano Vitor Hugo, quando um seringueiro era flechado, servia de mártir ritual da
conquista. Entretanto, não se dava a menor importância às chacinas que dizimavam uma tribo
inteira somente numa manhã. As chacinas são tratadas como banais e corriqueiras, como se fossem
o mal necessário para a sobrevivência dos conquistadores ocidentais. Neste sentido, A Flecha
legitima toda a violência praticada contra os povos nativos, reproduzindo a literatura criada no
século XVIII em A Muhuraída ou o triunfo da fé, na qual os povos pré-colombianos são
demonizados e devem ser convertidos à fé cristã, ou se não fosse possível, deveriam ser extintos por
serem a encarnação do mal e do demônio.
O seringueiro Chico Neco, personagem central e alter ego do seringueiro Francisco Prestes, um
sujeito mudo, introvertido, e pouco ligado à família, ganha ares de pai exemplar e preocupado com
os filhos. De repente todo o enredo se transforma em terror e violência e os personagens são
humanizados pela dor. A suposta humanização entra em processo no modo pelo qual a conquista é
valorizada: como se “conquistar” a selva amazônica tomando-a de seus legítimos donos fosse uma
espécie de civilização de si mesmo, e como se tal fato dignificasse os invasores e os honrasse como
os legítimos conquistadores. A dor desonera o massacre das costas dos pioneiros.
No momento em que é interessante ser escritor por conveniência é um humanista, na hora que
convém ser jornalista escreve de forma objetiva e esvaziada, telegrafada, como se reproduzisse as
notícias dos jornais da época.
A fazenda de gado se impôs e o local em que os meninos foram flechados agora é pisoteado por
bois. A tragédia dos Neco caiu no esquecimento. Neste sentido, Moura revela que só possuem
direito à memória as novas elites, exóticas e arrivistas, sem eira nem beira, que vieram conquistar a
região. Estas, como não possuem identidade alguma com a região, transformam-na em mercadoria e
a dessacralizam para usufruto do agronegócio que venceu.