A Filosofia de Santo Agostinho Paraclitus.com.Br-A_filosofia_de_Santo_Agostinho

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paraclitus.com.br http://www.paraclitus.com.br/2013/veritas/filosofia/a-filosofia-de-santo-agostinho/ Apostolado Spiritus Paraclitus A filosofia de Santo Agostinho Uma das maiores personalidades da história universal, Santo Agostinho f oi um grande retórico, um grande f ilósof o e um grande santo da Igreja. Sua obra, ao mesmo tempo vasta e prof unda, exerceu e exerce muita inf luência em toda a cultura ocidental. A sua vida, muito conhecida, torna-o inteligível também para muitos não- cristãos. Retórico, homem do mundo, carnal, f ez um longo esf orço para encontrar a chave da inquietação que o devorava. Primeiro maniqueu, depois platônico, f inalmente convertido, num célebre momento que ele mesmo contou com um gênio inimitável. Depois da conversão, e sem pretendê-lo, é ordenado sacerdote. Chega ao episcopado da mesma maneira. E desde esse momento, no meio de muitas vicissitudes críticas, carrega sobre si grande parte da responsabilidade da Igreja; assim, por exemplo, no auge da heresia de Pelágio ouem f ace do cisma dos donatistas. No momento da sua morte, é todo um símbolo. Morre em Hipona quando os vândalos sitiavam a cidade. Com ele, morre a cultura antiga e nasce outra nova. Porque Santo Agostinho f oi um homem do seu tempo. Versado em todas as artes clássicas, f oi sempre um retórico de grande habilidade, jogando com as palavras num malabarismo que conseguia sempre escapar à superf icialidade. Diríamos que o seu pensamento é tão prof undo que supera as habilidades do retórico. Inicialmente, escreve f ilosof ia, porém mais tarde dedica as suas f orças à pregação, sem descuidar uma enorme correspondência. Escreve também muitos tratados teológicos, de exegese bíblica, etc. Não citaremos aqui as obras teológicas; limitar-nos-emos às de caráter f ilosóf ico: Contra Acadêmicos, crítica do ceticismo; De beata vita, sobre a f elicidade; De ordine, sobre a origem do mal: os Coliloquia, um apaixonado diálogo consigo mesmo sobre a imortalidade da alma; De immortalitate animae; De quantitate animae, sobre a mesma questão; De magistro, sobre a educação com um enf oque psicológico. Santo Agostinho não construiu um sistema f ilosóf ico completo, ainda que as idéias básicas se mantenham constantes e acusem um claro predomínio platônico. Ele mesmo nos conta que começou a ler uma obra de Aristóteles e não pôde prosseguir. Talvez o tenha af astado o estilo entrecortado, desencarnado, a f alta dessa alma que Santo Agostinho buscava em tudo. Santo Agostinho não parece f eito para encerrar a realidade em categorias. A sua ref lexão parte sempre da vida: das coisas que se passam ao seu redor, das idéias dominantes, dos ataques contra a f é, da interioridade da sua alma. A BUSCA DA VERDADE A f ilosof ia agostiniana é uma constante busca da verdade, que culmina na Verdade, em Cristo. É um movimento incessante, uma paixão, e, precisamente, a paixão principal: o amor. “Amor meus, pondus meum”, o amor é o peso que dá sentido à minha vida. Verdade e Amor.“Fizeste-nos, Senhor, para Ti e o nosso coração estará inquieto enquanto não descansar em Ti”, diz nas Conf issões. Essa “passionalidade” da f ilosof ia agostiniana não é em nenhum momento irracionalismo ou voluntarismo. Se incita a ter f é para entender, também anima a entender para crer melhor. Nada nos pode f azer duvidar da possibilidade de chegar à verdade. Nada valem os argumentos céticos. Si f allor, sum: se me engano, é uma prova de que sou, diz, antecipando-se, num contexto muito dif erente, a Descartes. E com mais clareza: “Sabes que pensas? Sei. Ergo verum est cogitare te, logo é verdade que pensas”. A verdade está no interior do homem. “Não queiras sair para f ora; é no interior do homem que habita a verdade”. E há verdades constantes, inalteráveis, para sempre. Dois mais dois serão sempre quatro. Santo Agostinho tenta esclarecer de onde pode vir essa verdade. Não das sensações, diz, porque essas são e não são, são mutáveis, ef êmeras. Tampouco do espírito humano, que, por prof undo que seja, é limitado. Essas verdades eternas só podem ter por autor Aquele que é eterno: Deus. São ref lexos da verdade eterna, que nos ilumina e nos permite ver.

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Aposto lado Spiritus Paraclitus

A filosofia de Santo Agostinho

Uma das maiores personalidades da história universal, Santo Agostinhof oi um grande retórico, um grande f ilósof o e um grande santo da Igreja.Sua obra, ao mesmo tempo vasta e prof unda, exerceu e exerce muitainf luência em toda a cultura ocidental.A sua vida, muito conhecida, torna-o inteligível também para muitos não-cristãos. Retórico, homem do mundo, carnal, f ez um longo esf orço paraencontrar a chave da inquietação que o devorava. Primeiro maniqueu,depois platônico, f inalmente convertido, num célebre momento que elemesmo contou com um gênio inimitável. Depois da conversão, e sempretendê- lo, é ordenado sacerdote. Chega ao episcopado da mesmamaneira. E desde esse momento, no meio de muitas vicissitudes crít icas,carrega sobre si grande parte da responsabilidade da Igreja; assim, porexemplo, no auge da heresia de Pelágio ouem f ace do cisma dosdonatistas. No momento da sua morte, é todo um símbolo. Morre emHipona quando os vândalos sit iavam a cidade. Com ele, morre a culturaantiga e nasce outra nova. Porque Santo Agostinho f oi um homem doseu tempo. Versado em todas as artes clássicas, f oi sempre um retóricode grande habilidade, jogando com as palavras num malabarismo queconseguia sempre escapar à superf icialidade. Diríamos que o seu pensamento é tão prof undo que superaas habilidades do retórico. Inicialmente, escreve f ilosof ia, porém mais tarde dedica as suas f orças àpregação, sem descuidar uma enorme correspondência. Escreve também muitos tratados teológicos, deexegese bíblica, etc. Não citaremos aqui as obras teológicas; limitar-nos-emos às de caráter f ilosóf ico:Contra Acadêmicos, crít ica do ceticismo; De beata vita, sobre a f elicidade; De ordine, sobre a origem domal: os Coliloquia, um apaixonado diálogo consigo mesmo sobre a imortalidade da alma; De immortalitateanimae; De quantitate animae, sobre a mesma questão; De magistro, sobre a educação com um enf oquepsicológico. Santo Agostinho não construiu um sistema f ilosóf ico completo, ainda que as idéias básicas semantenham constantes e acusem um claro predomínio platônico. Ele mesmo nos conta que começou a leruma obra de Aristóteles e não pôde prosseguir. Talvez o tenha af astado o estilo entrecortado,desencarnado, a f alta dessa alma que Santo Agostinho buscava em tudo. Santo Agostinho não parecef eito para encerrar a realidade em categorias. A sua ref lexão parte sempre da vida: das coisas que sepassam ao seu redor, das idéias dominantes, dos ataques contra a f é, da interioridade da sua alma.

A BUSCA DA VERDADE

A f ilosof ia agostiniana é uma constante busca da verdade, que culmina na Verdade, em Cristo. É ummovimento incessante, uma paixão, e, precisamente, a paixão principal: o amor. “Amor meus, pondusmeum”, o amor é o peso que dá sentido à minha vida. Verdade e Amor.“Fizeste-nos, Senhor, para Ti e onosso coração estará inquieto enquanto não descansar em Ti”, diz nas Conf issões. Essa “passionalidade”da f ilosof ia agostiniana não é em nenhum momento irracionalismo ou voluntarismo. Se incita a ter f é paraentender, também anima a entender para crer melhor. Nada nos pode f azer duvidar da possibilidade dechegar à verdade. Nada valem os argumentos céticos. Si f allor, sum: se me engano, é uma prova de quesou, diz, antecipando-se, num contexto muito dif erente, a Descartes. E com mais clareza: “Sabes quepensas? Sei. Ergo verum est cogitare te, logo é verdade que pensas”. A verdade está no interior do homem.“Não queiras sair para f ora; é no interior do homem que habita a verdade”. E há verdades constantes,inalteráveis, para sempre. Dois mais dois serão sempre quatro. Santo Agostinho tenta esclarecer de ondepode vir essa verdade. Não das sensações, diz, porque essas são e não são, são mutáveis, ef êmeras.Tampouco do espírito humano, que, por prof undo que seja, é limitado. Essas verdades eternas só podemter por autor Aquele que é eterno: Deus. São ref lexos da verdade eterna, que nos ilumina e nos permite ver.

Nisso consiste o que depois f icou conhecido como “doutrina da iluminação”; porém, desde já é precisodizer que Santo Agostinho não a apresenta nunca como uma “teoria”, mas como uma comprovação. Já nof inal da sua vida, diz nas Retractationes que o homem tem em si, enquanto é capaz, “a luz da razãoeterna, na qual vê as verdades imutáveis”. Como em Platão, conhecer verdadeiramente é estar em contatocom o mundo inteligível. Porém, Santo Agostinho nunca dirá que vemos as verdades em Deus, mas queparticipamos da luz da razão eterna. Não se deve ignorar, por outro lado, que essa solução para o temado conhecimento corre o risco de não distinguir de f orma adequada o conhecimento natural doconhecimento sobrenatural. Mas essa é uma questão que só será levantada mais tarde, na Idade Média.

A BUSCA DE DEUS

Em Santo Agostinho, não existem provas f ormais para demonstrar a existência de Deus. Ainda que toda asua obra seja uma espécie de it inerário em direção a Deus. Tudo f ala de Deus; basta abrir os olhos. Ele éintimior intimo meo, mais íntimo ao homem que a própria intimidade humana. As coisas f alam-nos todo otempo de Deus. Perguntamos-lhes: “Sois Deus?” E respondem: “Não, f omos f eitas. Continua a buscar”. Def orma retórica – retórica de grande qualidade –, encontramos aí a prova da existência de Deus pelacontingência das realidades humanas. A mutabilidáde exige o imutável; os graus de perf eição exigem o Serperf eito. Em Santo Agostinho, como em outros f ilósof os de inspiração platônica, está claramentef ormulado o que será a quarta via de São Tomás de Aquino. Qual é o melhor nome para Deus? O que se lêno Êxodo: “Aquele que é”. “Non aliquo modo est, sed est est” (Conf issões). Santo Agostinho dará comf reqüência a Deus o nome de Bem, de Amor, porém não desconhece que antes de tudo Ele é; e porque é oque é, é Amor, Bem, Inf inito. São Tomás de Aquino não precisará modif icar nada de substancial nestametaf ísica agostiniana. Como exemplo das dezenas de textos agostinianos, temos este, das Conf issões:“Eis que o céu e a terra são; e dizem-nos em altos brados que f oram f eitos, pois modif icam-se e variam.Porque, naquilo que é sem ter sido f eito, não há coisa alguma agora que antes não houvesse: que isso émodif icar-se e variar. O céu e a terra clamam também que não se f izeram a si mesmos: somos porquef omos f eitos; não éramos antes que f ôssemos, de modo a termos podido ser por nós mesmos. Bastaolhar para as coisas para ouvi- las dizer isso. Tu, Senhor, f izeste essas coisas. Porque és belo, elas sãobelas; porque és bom, são boas; porque tu és, elas são.” Esta últ ima af irmação (quia est: sunt enim)signif icava a def init iva superação por parte de Santo Agostinho do essencialismo platônico. Deus é causado ser das coisas, porque é o Ser por essência. Se a f órmula de Santo Agostinho não é essa, a idéia é.

O MUNDO, CRIAÇÃO DE DEUS

Outro texto das Conf issões situa de f orma inequívoca a metaf ísica da criação: “Que eu ouça e entendacomo no princípio f izeste o céu e a terra. Moisés escreveu isso; escreveu-o e ausentou-se. Daqui, ondeestava contigo, passou a estar contigo, e por isso não o podem ver meus olhos. Se estivesse aquipresente, eu o agarraria, lhe rogaria e, por Ti, lhe suplicaria que me explicasse essas coisas [...]. Porém,como saberia que estava a dizer-me a verdade? A própria verdade, que está no interior da minha alma, eque não é grega, nem latina, nem bárbara, nem necessita dos órgãos da boca ou da língua, nem do ruídode sílabas, me diria: Moisés diz a verdade, e eu, no mesmo instante, com toda a segurança lhe diria:Verdade é o que me dizes”. Voltemos à questão anterior. Deus é Aquele que é; as coisas são criadas. Deusé quem lhes deu o ser. Por quê? Por pura bondade. “Porque Deus é bom, somos.” A razão da criação é abondade de Deus. Deus não pode ter, no seu querer, outro f im que não o seu próprio ser. Só em relação asi mesmo pode querer mais. A criação é gratuita. Não há nada preexistente. Santo Agostinho acaba com asdúvidas de Orígenes e com o universo grego, eterno. Deus cria todas as coisas do nada. E todo o criado écomposto de matéria. Santo Agostinho, que durante tanto tempo não conseguiu conceber uma substânciaespiritual, não deixa de atribuir uma certa materialidade mesmo às criaturas espirituais, aos anjos. Aabsoluta imaterialidade só cabe a Deus. Em Deus estão as idéias exemplares de todas as coisas, que sãoas f ormas. Ao criar, essas idéias f icam limitadas pela matéria, mas, ao mesmo tempo, nessa matéria jáestão os germes de tudo o que será: as rationes seminales. Santo Agostinho retoma aqui uma doutrina deorigem estóica e, ao mesmo tempo, f az uma concessão ao “materialismo” que prof essou durante anos,embora talvez seja melhor empregar o termo de “corporeismo”.

O ENIGMA DO HOMEM

“O homem que se espanta é ele mesmo grande maravilha”. “E dirigi-me a mim mesmo e disse: Tu quem és?E respondi-me: Homem. E eis que tenho à mão o corpo e a alma, um exterior e o outro interior. Porém,melhor é o interior”. “O homem é um ser intermediário entre os animais e os anjos”. “Nada encontramos nohomem além de corpo e alma; isso é todo o homem: espírito e carne”. Essas são apenas algumas dasnumerosas ref erências que poderíamos dar sobre esta questão crucial. São os dois grandes temasagostinianos: “Deus e o homem”. “Que te conheça a ti e que me conheça a mim mesmo”. É o f amosoprincípio dos Soliloquia: “Quero conhecer Deus e a alma. Nada mais? Absolutamente nada mais”. Tambémnesta questão Santo Agostinho trai a inf luência do platonismo. O homem é uma alma que usa um corpo;ou, uma alma racional, que se serve de um corpo terrestre e mortal; ou, “uma alma racional que tem umcorpo”. Tudo indica que, para Santo Agostinho, o homem é a alma. E, contudo, há textos que parecem f ugirao platonismo: “Porque o homem não é só corpo ou apenas alma, mas o que é constituído de alma e decorpo. Esta é a verdade: a alma não é todo o homem, mas é a melhor parte do homem; nem todo o homemé o corpo, mas a porção inf erior do homem; quando as duas estão juntas, temos o homem” (A Cidade deDeus). A questão ainda está sujeita a discussão, mas exagerou-se demais o platonismo de SantoAgostinho neste particular. De qualquer f orma, Santo Agostinho supera a desvalorização do corporal, tãoessencial no platonismo e no neoplatonismo. O corpo é matéria, criação de Deus, e por isso, bom. Não é ocárcere nem o túmulo da alma: “Não é o corpo o teu cárcere, mas a corrupção do teu corpo. O teu corpo,Deus o f ez bom, porque Ele é bom”. Também aqui poderíamos multiplicar os textos: “Todo aquele que quereliminar o corpo da natureza humana desvaira”. E de f orma inequívoca, numa obra tardia, o Sermão 267:“Perversa e humana f ilosof ia é a dos que negam a ressurreição do corpo. Alardeiam serem grandesdepreciadores do corpo, porque crêem que nele estão encarceradas as suas almas, por delitos cometidosem outro lugar. Porém, o nosso Deus f ez o corpo e o espírito; de ambos é o criador; de ambos orecriador”. Examinemos uma dif iculdade classicamente agostiniana. Deus é o criador da alma, mas como acriou? Com os nascimentos surgem constantemente homens, isto é, corpo e alma. Será que as almasestão nas “razões seminais”, na matéria, e são transmitidas pelos pais, na geração? Santo Agostinhoassim o pensou por certo tempo, mas depois recusou que algo espiritual pudesse surgir da matéria.Pensou na criação imediata por Deus de cada alma, mas esse início no tempo de algo espiritual nãocombinava com o que ainda restava de platonismo nele. Acabou conf essando que não sabia o que dizer.Era mais um elemento desse enigma que é o homem. Fica claro que a alma é imortal, porque conhece asverdades imortais e eternas. Que conheçamos o que seja a verdade e que nunca deixará de sê- lo é, paraSanto Agostinho, evidente. Como pode morrer ou desaparecer o que é a sede do indestrutível? A alma serásempre um mistério. Muitas outras realidades sobre as quais pensamos também o são. O tempo. É f amosoo dito agostiniano: “Se ninguém mo pergunta, sei; mas se quero explicá- lo a quem mo pergunta, não o sei”.Depois de uma análise do passado, do presente e do f uturo – até hoje não superada –, Santo Agostinhoconcluí: “Não se diz com propriedade «três são os tempos: passado, presente e f uturo»; talvez f osse maisapropriado dizer: «presente das coisas f uturas, presente das coisas passadas, presente das coisaspresentes». Porque essas três presenças têm algum ser na minha alma, e é somente nela que as vejo. Opresente das coisas passadas é a memória; o presente das coisas presentes é a contemplação; opresente das coisas f uturas é a expectação” (Conf issões). O tempo é, assim, distensio animi, “umaespécie de extensão da nossa alma”. É preciso ler ao menos esse livro XI das Conf issões para captar otom da f ilosof ia agostiniana: incerta às vezes, nada dogmática, em diálogo constante com Deus.

A COMPLEXIDADE DA HISTÓRIA

A Cidade de Deus é mais uma das grandes obras universais que Santo Agostinho legou à humanidade. Maspoucos escritos têm sido tão mal lidos, tão mal interpretados. A oposição entre Cidade de Deus e Cidadeterrena f oi vista como oposição entre Igreja e Estado. Nada mais f also. O texto célebre não deixa lugar adúvidas. Dois amores criaram duas cidades: o amor próprio, que leva ao desprezo de Deus, a terrena; oamor de Deus, que leva ao desprezo de si mesmo, a celestial. Ou: “Dividi a Humanidade em dois grandesgrupos. Um é o daqueles que vivem segundo o homem; o outro, o dos que vivem segundo Deus. Damosmisticamente a esses dois grupos o nome de cidades, que quer dizer sociedades de homens”. A provaf undamental de que essa divisão não é equivalente à divisão Igreja-Estado é a af irmação taxativa de quena Igreja podem existir homens que, na realidade, pertencem à cidade terrena; e, inversamente, entre as

pessoas que ainda estão f ora da Igreja podem-se encontrar predestinados à cidade celestial. Por outrolado, essas duas “cidades” acham-se misturadas, imbricadas. A “peneira” será f eita só no f inal de cadahistória pessoal e no f inal da história de todo o gênero humano. Enquanto transcorre o tempo, com assuas variações, “porque não em vão são tempos”, a história é complexa. Não existe uma “lei da história”,não conhecemos o f uturo. Só Deus conhece o f inal; o homem move-se às apalpadelas no campo dahistória. A história f orma como que um belo poema, no qual intervêm Deus e o homem. O f inal só seráconhecido quando soar a últ ima nota. Em uma palavra: a concepção de história é, em Santo Agostinho,uma concepção aberta. O seu “providencialismo” não é uma af irmação de “teocracia”. Não se pode extrairda f ilosof ia- teologia da história de Santo Agostinho argumentos para o césaro-papismo ou para qualqueroutra conf usão do religioso com o polít ico. A importância desta f ilosof ia- teologia da história ressalta maisquando se tem em conta que em toda a história da f ilosof ia será preciso esperar Hegel para encontraroutra concepção igualmente global e completa (embora em Hegel ela tenha um sentido panteísta).

Fonte: “História básica da f ilosof ia”, Editora Nerman, São Paulo, 1988, págs. 70-74.Tradução: Peter Pelbart