A FILOSOFIA DA ESPERANÇA EM GABRIEL MARCEL

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5/27/2018 AFILOSOFIADAESPERANAEMGABRIELMARCEL-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/a-filosofia-da-esperanca-em-gabriel-marcel 1/16  1 A Filosofia da Esperança segundo Gabriel Marcel José André de Azevedo Mestrado em Filosofia pela UNIOESTE, campus Toledo/PR Palavras-chave Gabriel Marcel – Metafísica – Esperança – Homo Viator  - Existencialismo Resumo Em Homo Viator: prolégomènes a une métaphysique de l’esperance , de 1944, Marcel dedica um capítulo ao estudo da esperança intitulado  Esquisse d’une phénoménologie et d’une métaphysique de l’esperance. Falar de uma fenomenologia e de uma metafísica da esperança, mesmo em forma de esboço, é apelar a certa experiência ontológica que se faz presente naquele que vivencia tal situação. Dessa forma, o ponto de partida, a arché da esperança, não  pode ser uma definição conceitual (de cujo conteúdo de nada adiantaria para a profundidade dessa experiência). Por isso, descrever as estruturas mesmas da esperança não é, em certo sentido, descrever “a esperança”, mas a experiência do “eu espero”. O início da descrição será a compreensão de que a esperança se situa no quadro da provação, visto que a provação não somente corresponde à atitude de esperança, como constitui para ela uma verdadeira resposta do ser. Ora, o desespero não se detém nos sintomas e nem nas manifestações, mas num  processo de capitulação ante certo factum, isto é, o aceitar ou não a situação e conferir-lhe um sentido. Inserem-se na discussão temas metafísicos interessantíssimos: liberdade, tempo,  paciência, amor e comunhão ontológica. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Gabriel Marcel (1889-1973), partindo de um contexto de crítica ao racionalismo e ao cientificismo - profundamente arraigados no pensamento ocidental a partir do século XIX -,  propõe uma Filosofia do Concreto, ou seja, uma perspectiva do pensar filosófico acerca das estruturas que ordenam a existência como encarnação. O existir que aqui se vislumbra é o sentido último da experiência não só do homem concreto, vindo a restituir-lhe o seu devido  peso ontológico, mas um nível de experiência mais amplo, desde onde a natureza e as coisas ganham significado. É sob esse aspecto que a encarnação  é reconhecida como o dado central da metafísica. A encarnação não é um dado apenas humano; ela transcende o mundo  puramente físico, conferindo-lhe um estatuto singular.  No que confere à concepção de homem, Marcel a caracteriza como homo viator , isto é, o humano é um viandante, um ser itinerante, inacabado, ainda por se fazer. Em seu caminhar depara-se com um mundo quebrado, onde o ter  prevalece sobre o  ser , levando os humanos a isolarem-se e, consequentemente, autoconsumirem-se na solidão e no desespero. E é exatamente neste contexto – o do beirar a solidão desoladora – que Marcel entoa um hino à

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    A Filosofia da Esperana segundo Gabriel Marcel

    Jos Andr de Azevedo Mestrado em Filosofia pela UNIOESTE, campus Toledo/PR

    Palavras-chave Gabriel Marcel Metafsica Esperana Homo Viator - Existencialismo Resumo Em Homo Viator: prolgomnes a une mtaphysique de lesperance, de 1944, Marcel dedica um captulo ao estudo da esperana intitulado Esquisse dune phnomnologie et dune mtaphysique de lesperance. Falar de uma fenomenologia e de uma metafsica da esperana, mesmo em forma de esboo, apelar a certa experincia ontolgica que se faz presente naquele que vivencia tal situao. Dessa forma, o ponto de partida, a arch da esperana, no pode ser uma definio conceitual (de cujo contedo de nada adiantaria para a profundidade dessa experincia). Por isso, descrever as estruturas mesmas da esperana no , em certo sentido, descrever a esperana, mas a experincia do eu espero. O incio da descrio ser a compreenso de que a esperana se situa no quadro da provao, visto que a provao no somente corresponde atitude de esperana, como constitui para ela uma verdadeira resposta do ser. Ora, o desespero no se detm nos sintomas e nem nas manifestaes, mas num processo de capitulao ante certo factum, isto , o aceitar ou no a situao e conferir-lhe um sentido. Inserem-se na discusso temas metafsicos interessantssimos: liberdade, tempo, pacincia, amor e comunho ontolgica.

    CONSIDERAES INICIAIS

    Gabriel Marcel (1889-1973), partindo de um contexto de crtica ao racionalismo e ao

    cientificismo - profundamente arraigados no pensamento ocidental a partir do sculo XIX -,

    prope uma Filosofia do Concreto, ou seja, uma perspectiva do pensar filosfico acerca das

    estruturas que ordenam a existncia como encarnao. O existir que aqui se vislumbra o

    sentido ltimo da experincia no s do homem concreto, vindo a restituir-lhe o seu devido

    peso ontolgico, mas um nvel de experincia mais amplo, desde onde a natureza e as coisas

    ganham significado. sob esse aspecto que a encarnao reconhecida como o dado central

    da metafsica. A encarnao no um dado apenas humano; ela transcende o mundo

    puramente fsico, conferindo-lhe um estatuto singular.

    No que confere concepo de homem, Marcel a caracteriza como homo viator, isto

    , o humano um viandante, um ser itinerante, inacabado, ainda por se fazer. Em seu

    caminhar depara-se com um mundo quebrado, onde o ter prevalece sobre o ser, levando os

    humanos a isolarem-se e, consequentemente, autoconsumirem-se na solido e no desespero. E

    exatamente neste contexto o do beirar a solido desoladora que Marcel entoa um hino

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    esperana, nica postura capaz de fazer-nos galgar em comunho os montes e altos pncaros

    de nossa jornada.

    Em sua obra Homo Viator: Prolgomnes a une mtaphysique de lesperance (obra

    que rene algumas de suas conferncias e palestras), Marcel dedica um captulo ao estudo da

    esperana intitulado Esquisse dune phnomnologie et dune mtaphysique de lesperance 1.

    Para o pensador francs, falar de uma fenomenologia e de uma metafsica da esperana,

    mesmo em forma de esboo, apelar a certa experincia ontolgica que se faz presente

    naquele que vivencia tal situao.

    Assim, o ponto de partida, a arch da esperana, no pode ser uma definio

    conceitual (cujo contedo, segundo Marcel, de nada adiantaria para a profundidade dessa

    experincia). Descrever as estruturas da esperana no , em certo sentido, descrever a

    esperana, mas, sim, a experincia do eu espero. Para Marcel, por si s a natureza da

    esperana de difcil definio e eis, portanto, o caminho escolhido por ele: partir de anlises

    fenomenolgicas e metafsicas das experincias existenciais do eu espero; tal metodologia

    assumida visa, tambm, rechaar qualquer tentativa de confundir a esperana com questes

    psicolgicas de otimismo, desejo e crena.

    O que esperana? Como se estrutura? Qual sua relao com o desespero? Trata-se

    ela de algo ad extra ou ad intra, dom ou esforo? Que relao possui com o tempo? Somos

    livres para esperar ou condicionados por situaes? So estas e outras questes que nos

    propomos a apresentar no presente artigo, o qual se apresenta estruturado em duas partes

    distintas, porm, interligadas: a primeira apontar algumas estruturas que possibilitam o

    humano viver em esperana e, a segunda, abarcar tais estruturas a partir de uma anlise

    metafsica.

    J antecipando a compreenso da esperana como uma postura ativa de sada de si

    mesmo e como uma exigncia ontolgica de fluidificao da existncia em oposio

    petrificao do ser e autofagia espiritual -, esperamos, pois, que tal estudo proporcione, ao

    leitor e ao autor, tufos de esperana e de comunho ontolgica.

    1 AS ESTRUTURAS DA ESPERANA

    Marcel inicia o texto Esboo de uma fenomenologia e metafsica da esperana

    constatando que tal estudo tomaria um rumo equivocado se discursasse sobre uma definio

    1 O texto em questo datado de fevereiro de 1942; foi dedicado a Henri Pourrat e trata-se de uma conferncia

    pronunciada em Scholasticat de Fouvire.

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    conceitual; o caminho mais vivel, assim, trata-se de apelar a certa experincia que se faz

    necessrio supor presente naquele a quem se dirige (MARCEL, 1944, 39) e esta experincia

    justamente a do eu espero. O que o filsofo francs quer alertar, logo de incio, que a

    busca de uma filosofia da esperana no se trata de uma anlise de um puro conceito, mas de

    uma experincia concreta, que visa revelar o peso ontolgico do ato de esperar.

    Para, ento, analisar a esperana como uma exigncia ontolgica, presente em todo ser

    humano, Marcel utilizar-se- de um interessante modus operandi: seu ponto de partida ser o

    de uma marca negativa, isto , partir de um eu espero degradado (Cf. MARCEL, 1944, 39);

    esse binmio esperana-desesperana nos remete ao binmio, caracterstico do filsofo

    parisiense, ser-ter 2. Tal abordagem nos antecipa uma primeira estrutura da esperana: ela se

    situa no mbito do ser e, por este motivo, uma resposta ontolgica tentao do desesperar.

    O incio de suas consideraes se apresenta com um exemplo cotidiano: um convite a

    um amigo (no caso, Jacques) para almoar 3; neste exemplo aponta dois elementos que sero

    analisados como uma contraposio esperana: desejo e crena. Estes elementos so

    situaes que no vislumbram uma atitude de esperana, mas, simplesmente, indicam um

    ponto de indiferena, ou seja, so situaes exteriores ao nosso ser, so situaes em que

    somos capazes de dissociar o nosso eu da questo em si; no fundo, so um clculo de

    oportunidades e probabilidades. Quando, porm, estou atravessando uma prova 4, o eu espero

    se orienta a uma salvao, o desespero solicita um ponto de apoio, o ser exige uma resposta,

    que, no caso, a esperana. Em tal situao, no h um ponto de indiferenciao, pois em

    casos semelhantes, impossvel, com toda evidncia, dissociar o eu espero de um

    determinado tipo de situao com respeito ao qual ele , na realidade, aferente (MARCEL,

    1944, 40). Estando, pois, privado da luz (trevas) e submerso na priso (cativeiro), a [...]

    esperana se situa no quadro da provao, visto que no somente lhe corresponde, mas

    tambm constitui para ela uma verdadeira resposta do ser (MARCEL, 1944, 40).

    Paradoxalmente falando, para que a esperana se estruture necessrio se faz uma

    experincia de cativeiro, experincia mais pura e genuna de sofrimento. E aqui ousamos 2 Gabriel Marcel, ao abordar a questo da existncia, prope duas chaves de leitura: ser e ter; a primeira se

    estrutura no campo do mistrio, ou seja, daquilo que no pode ser objetivado e, dessa maneira, coisificado; a segunda aponta os dados do problemtico, do espao-temporal, do objetivado e, consequentemente, pode ser tratado como coisa.

    3 Espero que Jacques chegue pela manh para almoar e no depois de meio-dia: que quer dizer isto seno que o desejo, pois me apraz que Jacques fique comigo o maior tempo possvel? Eu tenho razo para pensar que efetivamente ser assim: sei que ele no pensa em voltar para sua oficina e que poder, pois, tomar o trem pela manh, etc. (MARCEL, 1944, 39).

    4 Os termos prova, provao, factum, cativeiro, priso ou trevas so utilizados por Marcel para designar um sofrimento perpassado, o qual pode gerar uma atitude de desespero.

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    afirmar que a situao sem sada que estrutura, ou melhor, invida a uma resposta ontolgica:

    a esperana. Quando, por outro lado, um sofrimento se transforma numa experincia de

    cativeiro? Quando podemos afirmar que tal factum opera em ns a medida da esperana?

    Para analisar esta questo, Marcel aplica na experincia do sofrimento uma categoria

    metafsica importantssima: a durao (ou se preferirmos: a temporalidade). Diante desse

    cativeiro, que mediado e perpassado pela questo da temporalidade, aparece uma primeira

    resposta do ser, que anseia por deixar a catividade: a agudez da conscincia.

    Na verdade, pode ocorrer que, arrancando-me de mim mesmo, esse sofrimento d lugar ao fato de que eu alcance uma conscincia bastante aguda, que sem ele esta integridade aguda que agora aspiro a reconquistar no se apresente. assim, por exemplo, para o enfermo em quem a palavra sade despertar uma riqueza de harmnicas geralmente insuspeitas pelo homem so. (MARCEL, 1944, 41).

    Marcel reconhece que este anseio por libertao, gerado pelo cativeiro e pela agudez

    da conscincia, estrutura-se numa dialtica e a mesma tem por composto a esperana: Tudo o

    que se pode dizer que essa dialtica tem por resultado o surgimento da situao fundamental

    qual a esperana tem a misso de responder como a um pedido de socorro (MARCEL,

    1944, 42).

    A esperana, entretanto, seria apenas e exclusivamente gerada em situaes de provas

    e sofrimentos? Como explicar, ento, a esperana da mulher grvida e do adolescente

    apaixonado, que espera o amor acontecer? Gabriel Marcel, ento, afirma esquivando-se,

    claro, do sentido platnico e espiritualista tradicional, ou seja, profundamente dualista que

    h um aspecto geral da humanidade ou, se preferirmos, uma solidariedade mtua: estamos

    todos mergulhados em uma situao de cativeiro e, consequentemente, anelosos por

    esperana, a qual no se nos d como problema, quer dizer, no se nos oferece enquanto

    enfrentamos uma realidade e a consideramos como um espetculo, como algo a ser

    simplesmente observado, seno que participamos dela e estamos implicados neste processo; a

    esperana, ento, se nos d como mistrio 5. Ao analisar o fenmeno da esperana pela tica

    do mistrio, Marcel afirma que nela h algo de humilde, tmido e casto e o filsofo se depara

    5 Gabriel Marcel em suas obras, como j assinalamos anteriormente, apresenta-nos um binmio de compreenso

    da realidade: mistrio e problema. Problemtico tudo aquilo que est para ser resolvido, que pode ser objetualizado, passvel de ser decomposto em conceitos, o conforme investigao cientfica. Por outro lado, o aspecto misterioso (que aqui no se pode confundir com esoterismo, superstio, misticismo ou religiosidade) a anlise prpria metafsica, quer dizer, o campo do ser, o qual no pode ser mediatizado nem comunicado. Para Marcel, vale ainda ressaltar, o ser no um objeto perante ns; ns somos ser, participamos no ser, de sorte que nos inclumos na pergunta que colocamos. impossvel, ento, separar as perguntas O que o ser? e Quem sou eu? A questo do ser comporta, pois, um envolvimento existencial.

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    com uma enorme dificuldade: a humildade, o pudor e a castidade lhe turvam o pensamento

    raciocinante e no permitem sua reduo a conceitos. Na realidade, o que Marcel nos afirma,

    categoricamente, o fato de que no devemos e no podemos coisificar a esperana, torn-la

    algo longe da experincia mais cotidiana possvel, como uma espcie de qualidade de um

    possvel eu puro, imaginada no mais profundo idealismo.

    Dito isto, o pensador postula alguns extremos que devemos evitar na tarefa de

    descrever a esperana: o primeiro seria uma fsica da esperana (no se pode confundir a

    esperana apenas em seus aspectos materiais, como o caso da sade, por exemplo, visto que

    a experincia aponta que a esperana capaz de sobreviver a uma runa quase total do

    organismo); e o segundo, um exagero espiritual da esperana (pode-se, sim, sustentar que a

    esperana coincide com o princpio espiritual, porm, deve-se cuidar para no acreditarmos

    que dela podemos dar conta a partir de pr-disposies psicolgicas, que so sempre

    imaginadas a posteriori). Por conseguinte, somente podemos construir uma filosofia da

    esperana a partir do mbito do mistrio. Nessa categoria, afirma-se que somente pode haver

    esperana onde intervm a tentao de desesperar, visto que a esperana o ato pelo qual esta

    tentao ativa ou vitoriosamente superada.

    Ora, discorremos sucintamente sobre a estrutura prpria da esperana (anelo de sada

    do cativeiro, ou seja, uma resposta ontolgica ao ser) e sobre o fato de que h uma situao

    humana comum de aspirao a esta mesma esperana. De que esperana, porm, se trata

    propriamente? Qual exatamente o seu objeto?

    A esperana possui, segundo Marcel, um nisus 6 prprio, que aquele de transcender

    os objetos ou as situaes particulares, ou seja, a esperana no se fixa em uma situao

    especfica, mas lana-se alm e se estrutura no ser. Para enfatizar esta ideia de forte carter

    metafsico -, Marcel distinguir eu espero de eu espero que, afirmando que a esperana no

    pode se identificar com um espero que, pois tal postura condicionaliza o ato de esperar,

    roubando-lhe a pureza e a limpidez. Ao afirmar que a estrutura da esperana a do eu espero,

    Marcel questiona-se sobre quem esse eu que espera e nos remete a outro texto de sua

    autoria7, onde o eu, na sua relao com o prximo, pode ser contemplado como aliado ou

    adversrio. Ora, a relao do eu com o espero no pode corroborar a atitude de adversidade,

    6 Do latim: esforo. 7 Trata-se do texto Moi et Autri, dedicado Senhora Jeanne Vial. Conferncia pronunciada no Instituto Superior de Pedagogia, em Lyon, aos 13 de dezembro de 1941. MARCEL, G. (1944). Homo Viator: prolgomnes a une mtaphysique de lesperance. Paris: Aubier. p. 11-35.

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    estabelecida, s vezes, entre eu e o prximo. Esta nuana, todavia, entre eu e o prximo e eu

    espero torna-se mais plausvel a partir da anlise entre esperana e otimismo. Vejamos:

    O otimismo uma convico que no desce ao fundo das coisas,8 superficial,

    perifrico, trata-se de um habitus. Ao contrrio: quando afirmamos eu espero, no fazemos

    uma afirmao perifrica, mas mergulhamos em nossas prprias estruturas e encontramos ali

    a profundidade de nosso prprio eu e suas estruturas constitutivas. O otimismo, em

    subsequncia, mergulha superficialmente no eu particular e se apresenta como um simples

    observador de fatos; j aquele que diz eu espero aparece-se a si mesmo implicado em um

    processo e imbricado nas relaes eu-prximo-mundo-encarnao. Dessa maneira, o eu est

    numa espcie de simbiose na postura de esperana, apresenta-se como uma relao

    profundamente visceral entre o que somos e o que esperamos.

    Aps as constataes importantssimas vistas acima, necessrio se faz uma descrio

    do desespero, ninho e tero da esperana. Afirma Marcel que para a anlise do ato de

    desesperar no podemos fixar-nos nos sintomas e muito menos em suas manifestaes (o que

    seria uma descrio psicolgica do desespero e, por isso, problemtica). O que ele pretende

    observar a essncia da desesperao, que sucintamente pode ser definida como uma captao

    ante um certo factum, posto pelo juzo (MARCEL, 1944, 49).

    O que, por outro lado, Marcel compreende por capitulao e, consequentemente, no-

    capitulao? A capitulao a aceitao do desespero e, consequentemente, da derrota:

    Capitular, no sentido estrito do termo, no somente, e talvez no em absoluto, aceitar a sentena emitida ou reconhecer o inevitvel como tal. declarar-se derrotado na presena dessa sentena e desse inevitvel. , no fundo, renunciar a seguir sendo o mesmo, estar fascinado pela ideia da prpria destruio at ao ponto de antecipar-se-lhe. Aceitar talvez, ao contrrio, manter e manter-se, quer dizer, salvaguardar a prpria integridade. No porque saiba que estou condenado a no sanar desta enfermidade ou a no sair desta priso abandonar-me-ei quer dizer: consentirei em ser desde j a coisa de desprezo que faa de mim, no final das contas, minha enfermidade ou meu cativeiro. fascinao que ameaaria exercer sobre mim a imagem desta coisa, oponho ao contrrio, a vontade de ser o que sou. Assim, pode ser que, por sua aceitao de algo inevitvel, a cuja antecipao me recuso com todas as minhas foras, encontre o meio de consolidar-me interiormente, de provar-me a mim mesmo minha realidade e, ao mesmo tempo, de transcender esse factum ante o qual me foi proibido fechar os olhos. (MARCEL, 1944, 51).

    8 Marcel faz questo de afirmar o termo coisas, dando-nos a entender que o otimismo situa-se no mbito do

    problemtico.

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    Como exemplo de pessoa que no capitula diante do sofrimento, Marcel cita o estico;

    entretanto, o mesmo permanece fechado em si mesmo, torna-se firme, mas no irradia; vive

    como se no percebesse o prximo e estabelece-se sem relaes, num eterno e fortalecido

    solipsismo, ensaiando sempre o mergulho nas guas narcissticas. Sendo a no-capitulao

    estica no um ato de esperana, mas um ato de rgido suicdio, como contrapor a questo

    da esperana diante das alternativas de capitulao e no-capitulao? Nesse contexto, a

    esperana, conforme a descrio marceliana, assumir um aspecto paradoxal: ela possui algo

    que sobrepassa infinitamente a no-aceitao; uma no-aceitao que se apresenta diante do

    factum de maneira positiva (e, por isso, distingue-se da rebelio). Como se estrutura este

    paradoxo de uma no-aceitao positiva? Como no tornar a no-capitulao rgida, fechada

    e, na terminologia de Marcel, crispada? O pensador parisiense utilizar-se-, ento, de dois

    argumentos para esmiuar a questo da no-aceitao como ato de esperana: o primeiro

    argumento ser de ordem psicolgica (o medo) e o segundo de ordem metafsica (o tempo).

    Assim se refere no tocante ao primeiro argumento:

    [...] a crispao ou a rigidez, qualquer que seja o nvel orgnico ou espiritual em que se as considere, supe sempre a presena de um mesmo fator fsico que seno exatamente o medo, ao menos uma reao ao medo que pertence mesma ordem que ele, uma concentrao sobre si mesmo, cuja essncia provavelmente uma certa impacincia. (MARCEL, 1944, 52).

    O medo, ento, diante de certo factum de ordem natural, isto , consequncia de

    um posicionamento. Tal medo, por ser um fechamento sobre si mesmo e uma crispao diante

    da no-capitulao, gera, de maneira desmedida, a impacincia. E justamente aqui Marcel

    utiliza-se de seu segundo argumento para a no crispao, um elemento inovador na anlise

    metafsica da esperana: a categoria tempo: Se introduzirmos o dado pacincia na no-

    aceitao, aproximamo-nos prontamente da esperana (MARCEL, 1944, 52).

    Introduzir a categoria tempo no confronto com a provao apresentar uma outra

    postura do eu: um eu que no se centra em si mesmo, mas que se torna paciente, que afugenta

    o medo, que no se crispa, que no se desespera e, nesse sentido, embebido de esperana,

    podendo, assim, transcender o factum e viver a condio de liberto. Deixemos o prprio

    Marcel falar:

    Parece, pois, que existe uma conexo secreta e raramente discernida entre a maneira em que o eu se centra ou no sobre si mesmo e sua reao durao, mais precisamente temporalidade, quer dizer, ao fato de que no real haja lugar para a troca. (MARCEL, 1944, 52).

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    Nossa mente racionalista, sistemtica e lgica poderia perguntar-se: Mas no estamos

    longe das estruturas metafsicas da esperana? No estamos nos afastando da esperana

    propriamente dita?. Gabriel Marcel dir que no, visto que a categoria tempo/pacincia aqui

    inserida possibilita que se trate do factum como um eu menor, um eu por educar e

    governar e, dessa maneira, a esperana consistir em tratar primeiro a prova como parte

    integrante de si mesmo e, por sua vez, como que destinada a reabsorver-se e transmutar-se no

    seio de um determinado processo criado.

    Diante do exposto, poderamos, ainda, objetar: A pacincia, aqui apresentada e

    analisada, mergulhada na questo tempo, apresenta-se como pura passividade. Marcel

    discordar:

    A pacincia, em aparncia e se somente se consulta a etimologia, simplesmente um deixar fazer ou um deixar estar, porm, por pouco que se leve adiante a anlise, descobre-se que este deixar fazer ou esse deixar estar, porque se situa alm da indiferena e porque implica um sutil respeito de durao ou da cadncia vital prpria do outro, tende a exercer sobre este ltimo uma ao transformadora anloga que, s vezes, recompensa a caridade. (MARCEL, 1944, 54).

    Abordamos os aspectos da esperana e, de maneira geral, a analisamos como

    subjetividade, postura individual e, at mesmo, como defesa. H, todavia, uma relao

    intersubjetiva no ato de esperar? Para a filosofia de Marcel sim, pois, esperar, de certa

    maneira, sempre esperar diante de um tu e, por isso, talvez, o melhor sinnimo para eu

    espero seria eu tenho esperana em ti.

    A esperana, com toda evidncia, tem alcance no somente sobre o que est em mim, sobre o que pertence ao domnio de minha vida interior, seno especialmente sobre o que se apresenta como independente de minha ao possvel e singularmente de minha ao sobre mim mesmo; eu espero o retorno do ausente, a derrota do inimigo, a paz que devolver ao meu pas as liberdades das quais foi despojado. Se for lcito diz-lo, como se deu a entender acima, a esperana um poder de fluidificao. (MARCEL, 1944, p. 56).

    H de se estender novamente, na anlise da esperana, ainda uma observao sobre a

    categoria tempo. Para Marcel, uma anlise fria do tempo diante de um factum escamotear a

    dinamicidade da vida, que se apresenta como impulso ou ardor de viver. O termo ardor to

    pouco habituado nas discusses filosficas apresenta-se como uma forte metfora do existir

    humano; e algumas metforas so to fortes que podemos consider-las como verdadeiras

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    categorias concretas. assim, por exemplo, a abordagem metafsica do existir, em Marcel,

    como chama.

    Sobre esta chama, que a vida, exerce-se propriamente a ao malfica da desesperao. Poder-se-ia dizer tambm que o ardor solubiliza o que sem ele chegaria a ser sempre impossibilidade de existir. Est volto at certa matria do devir pessoal e tem por funo consumi-la; ali, ao contrrio, onde intervm o malefcio, essa chama se desvia da matria que seu alimento natural para atacar-se a si mesmo. o que se expressa admiravelmente quando se diz que um ser se consome. Desde este ponto de vista, a desesperao pode ser assimilada a uma verdadeira autodevorao espiritual. (MARCEL, 1944, 59).

    Na percope acima, Marcel sintetiza, de maneira admirvel, em que consiste a postura

    de desesperao: uma autofagia, processo em que o ser se consome a si mesmo, prende-se em

    si mesmo e, crispando-se, petrifica-se diante da existncia (a qual se trata de um processo de

    fluidificao). Autoconsumir-se, ento, petrificar-se, deixar-se olhar pelas medusas da

    existncia; porm, os esperanosos, os quais possuem o corao lquido, amoldam-se s

    exigncias do ser.

    Diante de tal argumento, recorramos seguinte situao: um filho que no retorna

    casa de seu pai. A postura de um corao lquido, isto , a postura de fluidificao e de

    heterocomunho (em oposio autoconsumao) traria novamente o filho ao pai? No

    podemos afirmar categoricamente que sim, porm, tal postura instaura um novo modo de

    engajar-se diante do factum, o qual trar, com certeza, clarividncia para a abordagem do

    prprio factum.

    Toda essa abordagem, entretanto, da esperana poderia estar ameaada se, porventura,

    utilizssemos o seguinte argumento:

    Porm, de imediato surge uma objeo que devemos abordar de frente e que, na aparncia, pode arruinar os fundamentos de toda teoria metafsica da esperana. Essa objeo consiste em pr em questo o valor da crena implcita na esperana. Basta, dir-se-, com que eu deseje ardentemente um determinado acontecimento para que me o represente com uma extrema nitidez, para que o realize na imaginao e para que, de imediato e, por isso mesmo -, creia que se produza efetivamente. Se assim , no h que reconhecer que a esperana implica uma iluso, cujo mecanismo descobre imediatamente a reflexo crtica? (MARCEL, 1944, 59-60).

    Temos que nos perguntar, agora, em que condies possvel salvar a esperana, quer

    dizer, reconhecer-lhe um valor que esta crtica acima no ataca, no destri e no joga por

    terra. Como ainda salvaguardar o carter ontolgico da esperana? Gabriel Marcel, mais uma

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    vez, surpreende-nos e aponta-nos um interessante argumento: como j foi visto no incio de

    nosso estudo, descrever a esperana por intermdio de conceitos , de certa maneira,

    construir castelos na areia e a sada apresentada pelo pensador francs analisar o ato de

    esperar; ora, novamente Marcel apresenta-nos uma contundente diferenciao entre esperar e

    esperar que, onde o esperar o ato de no condicionalizao da esperana.

    Sem dvida, teremos que recordar aqui a distino [...] entre esperar e esperar que. Quanto mais tende a esperana a reduzir-se ao fato de fixar o olhar ou de hipnotizar-se com uma determinada imagem, tanto mais irrecusvel deve ser considerada a objeo que se tem formulado. Ao contrrio, quanto mais a esperana transcende a imaginao, de modo que eu me proba tratar de imaginar o que espero, tanto mais possvel parece refeita efetivamente essa objeo. (MARCEL, 1944, 60).

    O fato de que a estrutura metafsica da esperana o esperar (visto que o esperar que

    se utiliza de artifcios psicolgicos de projeo e instinto de defesa) se intensifica por um

    outro elemento importantssimo: a liberdade. E tanto esta como a esperana supem a ao

    soberana do juzo.

    Consideremos, por exemplo, o caso do enfermo: manifesto que fixa sua tenso interior na ideia de que se curar em um prazo determinado, expe-se a desesperar se a cura no se cumpre na data assinalada. A funo prpria do juzo consistir, no fim, em estabelecer que, ainda quando esse prazo passe sem que a cura tenha tido lugar, dever ficar, contudo, um espao para a esperana. Esta aparece unida ao uso de um mtodo de superao mediante o qual o pensamento se eleva por cima das representaes e das formulaes nas quais primeiro tende a tentao de suspender-se. Porm, indubitvel que no exemplo considerado no se trata exclusivamente de uma questo de datas. A ideia mesma da cura suscetvel pelo menos em um determinado registro espiritual, de purificar-se e transmutar-se. Em princpio, o enfermo estava propenso a exclamar tudo est perdido para mim se no me curo, identificando ingenuamente cura e salvao. Desde o instante em que esteja no j reconhecendo abstratamente, seno compreendido desde o fundo de si mesmo, quer dizer, desde o instante em que tenha visto que tudo pode no estar perdido tambm a cura no se produz, totalmente evidente que sua atitude interior com respeito cura ou a no-cura se ter transformado profundamente: ter reconquistado esta liberdade... (MARCEL, 1944, 61-62).

    Outra estrutura imprescindvel da esperana a questo do amor, pois, segundo

    Marcel, amar a algum estabelecer relaes de espera, de pacincia, de reciprocidade e de

    troca.

    Amar a um ser esperar dele algo indefinvel, imprevisvel; , por sua vez, dar-lhe, de certo modo, o meio pelo qual poder responder a esta espera. Por paradoxal que possa parecer, esperar , em certo modo, dar; porm, o inverso no menos

  • 11

    verdadeiro: no esperar mais contribuir a ferir de esterilidade ao ser de quem j no se espera nada; , pois, de alguma maneira, priv-lo, retirar-lhe por antecipao o que , exatamente, seno uma possibilidade de inventar ou de criar? Tudo permite pensar que no se pode falar de esperana seno onde existe interao entre o que d e o que recebe, esta comutao que o selo de toda vida espiritual. (MARCEL, 1944, 66-67).

    At aqui apresentamos algumas estruturas que nos permitem abordar ontologicamente

    a esperana: o esperar ao invs de esperana propriamente dita; o desespero; a diferenciao

    entre esperana, otimismo, desejo e crena; a esperana como uma resposta ontolgica ao ser;

    a temporalidade; a liberdade (e juntamente a esta faculdade a questo da vontade) e o amor.

    Vejamos, ento, como todas essas estruturas se renem na expresso de Marcel em um

    rosto e nos possibilitam falar de uma metafsica da esperana.

    2 A FILOSOFIA DA ESPERANA

    A primeira caracterstica, ento - aps estabelecermos os fundamentos de uma

    metafsica da esperana -, que a esperana possui o seu pudico silncio, isto , no se arvora

    ela em impor-se, mas se apresenta de maneira clida e penetrante, envolta no ns (comunho)

    e no mbito do mistrio.

    [...] reconhecer que essencialmente silenciosa e pudica, que est como que afetada por um ndice de inviolvel timidez, salvo quando se desenvolve no registro do ns, quer dizer, do fraternal. Mantemo-nos com nossa comum esperana, porm esta lhe repugna expressar-se ante os que no participam dela, como se ela fosse verdadeiramente e talvez o seja, com efeito um segredo. Se no um desafio, talvez tenha, contudo, certa conscincia de aparecer com gestos de desafio ou de provocao aos olhos daqueles que pretendem estar estabelecidos sobre certa terra firme da experincia: sempre se tem visto que... ou o contrrio: nunca se tem visto que.... A esperana, com uma desenvoltura escandalosa, no admite como verdadeiros esses acertos. E, na verdade, com que direito faria? Parece que a esperana est ligada sempre a certo pudor, a certa virgindade com respeito existncia: prprio das almas que no foram emboloradas pela vida. (MARCEL, 1944, 68).

    Lembremo-nos que apresentamos, de incio, um caminho metodolgico decisivo

    proposto por Marcel ao esboar uma fenomenologia e metafsica da esperana: o fato de no

    assumirmos uma deciso conceitual de esperana, mas analisarmos a experincia da

    esperana, ou seja, o eu espero. O prprio Marcel, porm, reconhecer que tal anlise por este

    vis desde um ponto de vista do conhecimento objetivo pode parecer vazia de sentido,

    pois pode haver uma mancha ou um desbotamento ligado noo de experincia

  • 12

    (MARCEL, 1944, 68) e isso se deve ao fato de que a noo de experincia em si mesma

    ambgua. Tal ambiguidade assim se apresenta: por um lado h uma experincia inventariada,

    em nome da qual se enunciam os juzos em si e, por outro, uma experincia em vias de

    formao. A primeira pr-estabelecida, dada a priori, formalizada, instituda; a segunda

    livre, sem grilhes, fluidora e tabula rasa da primeira. neste tipo de experincia no

    apodtica que se aninha a esperana e , concomitantemente, o regrar dessas experincias. A

    esperana sendo, ento, esta experincia que no se presta a uma contabilidade dos

    possveis, desinteressa-se no bom sentido do termo do como da existncia; nela no h

    uma busca da tcnica, pois no separa a considerao dos fins com a dos meios.

    E por a estoura o que h nela de profundamente a-tcnico, pois o pensamento tcnico, por definio, no separa nunca a considerao dos fins com a dos meios. Um fim no existe para o tcnico se no se v aproximadamente o meio para realiz-lo. Isto no certo por outra parte, preciso assinal-lo, acerca do inventor ou do investigador que disse: deve haver um meio, um caminho e que complementa: Encontrei-o!. O que espera, simplesmente diz: Encontrar-se-!. Ao esperar, no creio no sentido preciso desta palavra , porm, apelo existncia de certa criatividade no mundo ou tambm a recursos reais colocados disposio dessa criatividade. Ali, ao contrrio, onde meu esprito tem sido deflorado pela experincia inventariada, recuso-me a apelar a essa criatividade, nego-a; tudo fora de mim e talvez tambm em mim (se sou lgico) me aparece como simples repetio. Chegamos, pois, a esta importante concluso: perde-se de vista o especfico da esperana quando se pretende julg-la e conden-la desde o ponto de vista de uma experincia constituda, cujos ensinamentos indubitavelmente decisivos ela desconheceria com uma insolente ingenuidade. A verdade de fato que a esperana est complicada na trama de uma experincia em formao ou, em outra linguagem, de uma aventura em curso. Isto est em contradio no somente com um empirismo autntico, seno com certa dogmtica que, no obstante, reclama para si a experincia e querer fazer valer seus direitos sobre ela, desconhece profundamente sua natureza assim como o cientificismo se ope cincia captada em sua vida, em seu devir criador. (MARCEL, 1944, 69-70).

    Ora, se a constituio da esperana se estabelece no em uma experincia constituda,

    bvio percebermos aqui uma relao original entre conscincia e tempo. Se ela a

    esperana transcorresse numa experincia instituda ou seja: pronta, definida, acabada, a

    priori -, o tempo nada mais seria do que uma ilustrao ou confirmao suplementar, um

    martelar de segundos que simplesmente ordenam e contabilizam os momentos do script e

    das atuaes dos atores, tolhendo, visceralmente, a liberdade daqueles que vivenciam as

    experincias. A vida se estabeleceria apenas como representao e no como encarnao;

    instituir-se-ia ela no plano do eu-eu, mas nunca no tu-tu, na comunicao plena e aberta e,

    segundo Marcel, seria uma conscincia de vida que no comunica realmente e cada um

  • 13

    discute com o outro seno certa ideia, certo 9 do outro (MARCEL, 1944, 71); em

    outras palavras: isso seria o habitat do desespero. O tempo, nesta situao, apresenta-se como

    um tempo fechado, como priso, como kronos, como um devorador inveterado. J a esperana

    que se embasa nas experincias no institudas e, por isso, livre proporciona uma relao

    temporal baseada no no devorar (kronos), mas no comungar a vida (kairos, o tempo da

    graa); o tempo aberto o espao em que brota, na conscincia, a fluidez da prpria

    existncia.

    Tudo nos prepara, pois, para reconhecer que a desesperao, em certo sentido, a conscincia do tempo fechado ou, mais exatamente, do tempo como priso enquanto que a esperana se apresenta como aberta atravs do tempo; tudo tem lugar como se o tempo, em lugar de fechar-se sobre a conscincia, deixa passar algo atravs de si. Desde este fato de vista pode-se destacar alguma vez o carter proftico da esperana. Indubitavelmente no se pode dizer que a esperana v o que vir; porm, afirma como se o visse; pode-se dizer que extrai sua autoridade de uma viso velada que lhe dado propor, porm, sem gozar dela. Poder-se-ia dizer tambm que, se o tempo , por essncia, separao e uma perptua disjuno de um com respeito a si mesmo, a esperana tem, pelo contrrio, a reunio, o recolhimento, a reconciliao; porm, isso e somente isso como uma memria do futuro. (MARCEL, 1944, 71-72).

    Mesmo introduzindo na conscincia a noo de tempo aberto, corremos um grande

    perigo na construo do edifcio da filosofia da esperana: a decepo, que nada mais do

    que a tentao de encadear, de certo modo, por antecipao, a realidade que se gesta no tempo

    aberto; como j dissemos acima, trata-se da tecnizao da esperana. Ora, quando isso

    acontece, estabelece-se uma relao contratual no ato de esperar: eu tenho direitos e, por

    isso, reivindico; surge o credor e o reivindicador e, infelizmente, o dom dado transforma-se

    em direito institudo.

    Aqui aparece em sua originalidade e, eu acrescentaria, em sua pr-excelncia, a relao que expressa as palavras ter esperana em. Parece que uma filosofia centrada sobre o contratual est exposta a desconhecer o valor dessa relao. Agregarei, contudo, que aqui, como em qualquer parte, certo declive, certa degradao, tende inevitavelmente a produzir-se; ter esperana em pode chegar a ser esperar de e, logo, descontar, quer dizer, contar com e, finalmente, pretender ou reivindicar. As dificuldades perpetuamente renascentes com as que choca uma filosofia da esperana procedem, em grande parte, do fato de que tendemos a substituir uma relao inicial, por sua vez pura e misteriosa, por relaes ulteriores, mais inteligveis, sem dvida, porm, ao mesmo tempo, cada vez mais deficientes quanto ao contedo ontolgico. (MARCEL, 1954, 74-75).

    9 Do grego: imagem, dolo, simulacro, fantasma.

  • 14

    De tudo o que foi dito, pode-se levantar uma objeo: a filosofia da esperana no

    estaria sendo estabelecida numa relao puramente subjetiva? Gabriel Marcel dir que no. O

    fato de vivenciarmos solidariamente como j assinalamos uma situao de cativeiro faz-

    nos perceber uma ontolgica intersubjetividade e a esperana est ligada sempre a uma

    comunho, por interior que esta possa ser (MARCEL, 1944, 81). Se o ato de esperar ,

    talvez, a comunho mais ontolgica entre os humanos, podemos nos inquirir se o desespero e

    a solido no so, no fundo, rigorosamente idnticos, se no so eles o reverso do amor e da

    fidelidade, visto que tolhem no humano a capacidade de abertura. No fundo, a solido e o

    fechamento pois que estamos mergulhados numa situao de cativeiro so a grande

    tentao da humanidade.

    Contra esse conjunto de tentaes somente h um recurso que se apresenta sob um duplo aspecto: recurso comunho, recurso esperana. Se verdade que a prova humana suscetvel de especificar-se ao infinito e de afetar as formas inumerveis que revestem aqui abaixo a privao, o exlio ou o cativeiro, no menos certo que, por um processo simtrico tambm inverso, cada um de ns, desde as humildes formas de comunho que a experincia oferece aos mais deserdados, pode remontar-se por vias que lhe so prprias at que na esperana pode ser considerada indiferentemente como o pressentimento e a emanao. (MARCEL, 1944, 81).

    Afirmando que somente a abertura e a comunho so capazes de retirar o humano da

    solido e do desespero, Marcel diz-nos brilhantemente:

    Espero em ti para ns: tal , talvez, a expresso mais adequada e mais elaborada do ato que o verbo esperar traduz de maneira todavia confusa e obscura. Em ti para ns: entre esse tu e esse ns, que somente a reflexo mais insistente chega a descobrir no ato de esperana, qual , pois, o lao vivo? No h que responder que Tu s, em certo modo, o fiador da unidade que me liga a mim mesmo, ou melhor, um ao outro, ou ainda: uns aos outros? Mais que um fiador que assegura ou confirma desde fora uma unidade j constituda: o cimento mesmo que a fundamenta. (MARCEL, 1944, 81).

    A construo do edifcio da metafsica da esperana se apresenta slida e embasada.

    Entretanto, um ltimo questionamento comum ao pensamento objetivista pode se

    apresentar: Esperar depende de ns? Sou eu quem cria o desespero e, consequentemente, a

    esperana?. Num primeiro impulso seriamos levados a responder afirmativamente a tais

    questes; porm, se assim procedssemos, incorreramos no mbito psicolgico, respaldando

    a capacidade de ressignificao que o humano pode conferir diante do factum. Como nosso

    objetivo sem desmerecer as anlises psicolgicas uma fenomenologia metafsica da

  • 15

    esperana e a mesma se situa no mbito do mistrio, somos levados a dizer, juntamente com

    nosso autor, que sim e que no. Tal paradoxo deixemos o prprio Marcel esclarecer na longa,

    mas precisa citao que segue:

    [...] que posio deveremos tomar sobre a questo de saber se ela depende de ns ou se, ao contrrio, o fruto de uma disposio inata, seja uma graa autntica e, em ltimo termo, o sinal de uma assistncia sobrenatural? Guardar-me-ei de aventurar-me aqui no terreno teolgico. Porm, na perspectiva da reflexo filosfica parece que igualmente verdadeiro e, por conseguinte, igualmente falso, dizer que a esperana depende ou que no depende de mim. Com efeito, o sentido dessa pergunta se obscurece quando alcana ao que mais intimamente eu mesmo. Depende de mim estar enamorado ou possuir tal faculdade criadora? Por certo que no, pois justamente no depende de mim ser o que sou; admitiremos, ao contrrio, sem referncia s controvrsias filosficas sobre o livre arbtrio que no tem nada que ver aqui, que de mim depende cumprir tal iniciativa, fazer tal viagem, tal visita, tal gesto, etc., que outro em meu lugar tambm poderia fazer. Chega-se, assim, comprovao paradoxal de que o que depende de mim o que j no est aderido a mim mesmo, o que, em certo modo, exterior (ou indiferente) a mim mesmo. necessrio acrescentar, contudo, que um dom, qualquer que seja, nunca pura e simplesmente recebido por um objeto que teria que fazer-lhe lugar em si mesmo. A verdade mais que um dom ou um chamado ao qual se trata de responder; como se fizesse levantar em ns uma colheita de possveis, entre os quais teramos que escolher ou, mais exatamente, atualizar, os que melhor concordariam com a solicitao que nos tem sido dirigida desde dentro e que, no fundo, no seno uma mediao entre ns e ns mesmos. Dessa observao geral seria necessrio partir para reconhecer que , por sua vez, verdadeiro e falso dizer que esperar depende de ns. Na raiz da esperana h algo que nos literalmente oferecido, porm, podemos recusar esperana como ao amor; e, sem dvida, tambm podemos renegar a esperana, como podemos renegar e degradar nosso amor. Aqui e ali o papel do 10 parece ser ele de dar nossa liberdade a ocasio de exercitar-se e de implantar-se como no poderia faz-lo se estivesse abandonada a si mesma hiptese, por demais, talvez contraditria. Assim, pode-se compreender porque legtimo considerar a esperana como uma virtude: toda virtude uma especificao de certa fora interior e viver em esperana obter de si mesmo a fora de permanecer fiel nas horas de obscuridade ao que, nas origens, foi talvez somente uma inspirao, uma exaltao, um impulso. Porm, sem dvida, essa fidelidade no pode ser praticada seno graas colaborao, cujo princpio e ser sempre o mistrio mesmo entre uma boa vontade que , depois de tudo, a nica contribuio positiva de que somos capazes e as iniciativas cujo centro reside fora de nosso alcance, nessa zona onde os valores so graas. (MARCEL, 1944, 84-85).

    Do que foi analisado, convm acrescentar que Gabriel Marcel apresenta-nos slidos

    argumentos a favor de uma metafsica da esperana, onde a prpria esperana , como foi

    dito, viver em esperana e, com as seguintes belssimas palavras de Marcel, encerramos o

    nosso estudo sobre o tema:

    10 Do grego: Dom, carisma, talento, virtude, qualidade inerente ou doada.

  • 16

    Poder-se-ia dizer que a esperana essencialmente a disponibilidade de uma alma bastante e intimamente comprometida em uma experincia de comunho para cumprir o ato transcendente oposio da vontade e do conhecimento pelo qual ela afirma a perenidade vivente, da qual essa experincia oferece, por sua vez, a roupa e as primcias. (MARCEL, 1944, 90-91).

    CONSIDERAES FINAIS

    No sendo passiva, a esperana est, portanto, profundamente arraigada ao ato do

    amor. Amar a um ser , segundo Marcel, esperar dele algo indefinvel, imprevisvel; , de

    certo modo, o meio pelo qual poder responder a esta espera.

    Assim, esperar , paradoxalmente falando, dar e receber e somente se pode falar de e

    experienciar a esperana onde existe interao entre o que d e o que recebe. Na anlise

    fenomenolgica e metafsica da esperana, bem como na anlise das causas e da essncia do

    desespero, Marcel frisa que a raiz de muitas situaes trgicas a ausncia de um modo de

    ser, tecido na comunho amorosa com o outro. Identificando desespero com solido, o

    filsofo francs sustenta que a nica sada para a construo de uma civilizao nova e

    esperanosa somente se torna possvel no horizonte da comunho, da fidelidade e do amor.

    Por fim, como Marcel, acreditamos que a esperana essencialmente a

    disponibilidade de uma pessoa comprometida em uma experincia de comunho; da que eu

    espero em ti para ns a expresso mais adequada do ato que o verbo esperar traduz de uma

    maneira confusa e velada. Esperar , ento, o lugar onde o desespero no a ltima palavra.

    BIBLIOGRAFIA

    MARCEL, G. (1944). Homo Viator: prolgomnes a une mtaphysique de lesperance. Paris: Aubier.