A Figura Do Autor Em O Castelo Dos Destinos Cruzados

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Marina de Mello F. R. Domingues

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Marina de Mello F. R. Domingues

Rio de Janeiro

2012

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A Figura do Autor em O Castelo dos Destinos Cruzados

Este trabalho pretende comentar a complexa construção da imagem do Autor no

livro O Castelo dos Destinos Cruzados, de Italo Calvino. Sem a intenção de esgotar o

tema, torna-se interessante confrontar as imagens do livro com a noção de autor herdada

do Romantismo e difundida pelo senso comum.

O livro de Calvino é constituído por ter três partes: a primeira é uma rede de

histórias, intitulada O Castelo; a segunda possui a mesma estrutura, é chamada A

Taverna; e a terceira é um paratexto, nomeado Nota. As duas primeiras partes começam

com o final de uma travessia por um denso bosque e a chegada a um lugar seguro; em O

Castelo, é interessante notar que o narrador demonstra incerteza sobre o espaço em que

se encontra, não sabendo se é um castelo ou uma taverna, ou ainda, se é um castelo que

virara taverna ou uma taverna que virara castelo:

De fato, as duas impressões contrastantes podiam perfeitamente referir-se a um único objeto: fosse que o castelo, havia muitos anos visitado apenas como lugar de pousada, se tivesse aos poucos degradado a estalagem, e os castelões acabassem por se ver relegados à condição de taverneiros, embora conservando ainda os gestos de sua hospitalidade gentílica; ou fosse que uma taverna, como amiúde se vê nas imediações dos castelos para dar de beber aos soldados e cavaleiros, tivesse invadido – estando o castelo havia tempos abandonado – as antigas salas senhoriais para nelas instalar seus bancos e barris, e o fausto daquele ambiente – conjugado ao ir-e-vir de hóspedes ilustres – lhe fosse conferindo uma imprevista dignidade, a ponto de povoar a fantasia a imaginação do taverneiro e de sua mulher, que acabaram se acreditando soberanos de uma corte ostentosa. (CALVINO, 1991, p. 12)

O parágrafo acima exemplifica e antecipa um processo e uma tendência

recorrentes no livro: o movimento interpretativo do narrador, que se configura como a

única fonte de conhecimentos para o leitor sobre este mundo fictício; e a tendência dos

elementos possuírem duas ou mais identidades e significações.

A questão da interpretação do lugar é deixada para trás pelo narrador, quando

entra em cena outro problema: tanto ele, quanto os outros personagens desejam contar

suas histórias, no entanto, percebem, ao tentar falar, que perderam a voz durante a

travessia pelo bosque. A solução adotada foi utilizarem cartas de tarô para realizar seus

relatos. Dessa forma, cabe ao narrador interpretar as sequências de cartas postas sobre a

mesa, desvendando e informando à nós, leitores, sobre as aventuras das personagens.

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Como o narrador não está relatando fatos vividos1 ou originados unicamente de

sua imaginção, nem mesmo se tratam de histórias que lhe foram contadas, em verdade,

ele está contando a leitura que está executando; comportando-se realmente como um

leitor, esperando pelos acontecimentos futuros da narrativa: “esperávamos impacientes

uma outra carta mais explicativa” (CALVINO, 1991, p. 20) ou “esperávamos que essas

interrogações fossem esclarecidas pela carta seguinte (...) Não nos restava senão arriscar

conjecturas” (CALVINO, 1991, p. 21). Além disso, demonstra a importância das pistas

que o personagem (no momento em que conta sua história, narrador) lhe dê:

Porém, o olhar desconsolado que o narrador deitava àquela carta não nos deixava dúvida quanto ao desfecho (...) Era a mímica – a bem dizer, um tanto enfática – do narrador que assim nos convidava a esperar a carta seguinte como uma revelação. (CALVINO, 1991, p. 22)

Essa conjugação de tarefas – interpretar e contar – acumuladas pelo narrador

produz um interessante efeito na estrutura da obra: leitor e narrador caminham juntos e

participam do processo interpretativo, separados apenas pelo tipo de leitura; o narrador

lê as cartas, o leitor lê o livro. Assim, é perceptível em O Castelo dos Destinos

Cruzados que o narrador não assume uma posição de guia para os leitores, buscando

facilitar a leitura do texto:

De fato, a tarefa de decifrar as histórias uma por uma fez-me negligenciar até aqui a peculiaridade mais saliente de nosso modo de narrar, ou seja, que cada relato corre ao encontro de outro relato e, enquanto um dos convivas dispõe sua fileira, outro comensal no outro extremo da mesa avança em sentido oposto, de modo que as histórias contadas da esquerda para a direita ou de baixo para cima podem ser igualmente lidas da direita para a esquerda ou de cima para baixo, e vice-versa, tendo-se em conta que as mesmas cartas apresentando-se numa ordem diversa não raro mudam de significado, e a mesma carta de tarô serve ao mesmo tempo a narradores que partem dos quatro pontos cardeais. (CALVINO, 1991, p. 63)

A demora em explicar o método de narrar demonstra sua falta de preocupação

em guiar o leitor pela história. Além disso, a formulação de hipóteses interpretativas

sugere que seu interesse é o de se manter próximo aos leitores:

A primeira interpretação dessa sequência que nos vinha à mente, insistindo em atribuir à fonte de uma aura voluptuosa (...). (E assim surgia uma outra interpretação possível: que a fonte podia ser uma pia de

1 Nesse ponto, é relevante ressaltar que o narrador afirma ter perdido sua história: “E a minha história, onde está? Não consigo distingui-la entre as outras, tão intricado se tornou seu entrelaçamento simultâneo” (CALVINO, 1991, p. 63).

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água benta.) A hipótese mais plausível que me ocorreu (e, como a mim, creio que igualmente aos outros silenciosos espectadores) era que aquela carta representasse a Fonte da Vida. (CALVINO, 1991, p. 28)

Essa breve análise do narrador, cuja história foi esquecida e que também é leitor

e, portanto, intérprete, é pertinente ao tema deste trabalho na medida em que, a partir do

capítulo Também Tento Contar A Minha, o narrador assume a identidade de escritor.

Nesse capítulo, não há o relato das aventuras e dos perigos enfrentados pelo narrador até

quando ele finalmente chega na taverna, mas a afirmação de que “foi exatamente o fio

negro que brota da ponta desse cetro de dez réis a estrada que me trouxe até aqui”

(CALVINO, 1991, p. 127). Desse modo, foi a tinta da caneta que desenhou sua entrada

no bosque da ficção2, adotando a metáfora criada por Umberto Eco para o texto

narrativo.

O conteúdo desse capítulo difere muito dos outros, pois nele a interpretação que

é feita das cartas está voltada para o trabalho do escritor. Aparece o Rei de Paus, como

aquele que é o escritor pois não foi reclamado por outrem e está segurando um

cetro/caneta; o Dois de Ouros, com uma belíssima digressão sobre significados; o

Valete de Copas, símbolo da força interna do escritor; o Diabo que, segundo o narrador,

deveria ser a carta mais comum em seu ofício; o Mago, o escritor como um “ilusionista

que dispõe sobre a banca de feira um certo número de figuras e, deslocando-as,

reunindo-as ou trocando-as, obtém um certo número de efeitos” (CALVINO, 1991, p.

132) .

Além das interpretações e digressões sobre o ato de escrever literatura, o

narrador evoca as imagens do “Marquês tão diabólico que foi chamado de divino, que

incitou a palavra a explorar os confins negros do pensável” (CALVINO, 1991, p. 129),

do “ grande pastor de almas e intérprete de sonhos, Sigismundo de Viena” (idem) e de

Édipo, que tem sua história recontada pelas cartas do tarô. Em outros capítulos, o

narrador também recorre às imagens de personagens já conhecidos, tais como Helena de

Tróia, Fausto, Parsifal. A diferença entre o uso neste capítulo e os outros está na função

2 “um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existe num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a deireita de determinada árvore e, a cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direção.” (Eco, Umberto, Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção, p. 12) É interessante perceber a coincidência entre a movimentação pelo bosque, demonstrada pela citação anterior, e o movimento de narração/leitura explicado pelo narrador de Italo Calvino na citação que se encontra na página dois desse trabalho.

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que tais figuras desempenham na narrativa, pois, quando encontradas no discurso do

escritor, ajudam a construir a figura do Autor.

Assim, quando o narrador estava responsável pelo desvendamento e narração

das histórias dos outros personagens, sua companhia era os leitores; a partir, contudo, do

momento em que se identifica como escritor, ele passa a se acercar dos autores. E à sua

voz somam-se as deles: “e eu? E esse tanto ou quanto de particularmente pessoal que eu

pensava aí meter?” (CALVINO, 1991, p. 130). Nesse ponto, é interessante perceber

como essa imagem difere da figuração do autor como gênio que cria, segundo Schlegel,

sua obra de arte a partir do nada. Ao assumir influências e inserir referências aos

autores, mitos e personagens da tradição, Italo Calvino afasta o escritor da ideologia do

Romantismo, que difundia a ideia de autor como causa criadora, gênese da significação.

Há, ainda, no final do capítulo, uma curiosa mudança no material trabalhado

pelo narrador, ao invés de utilizar imagens das cartas, ele troca-as por pinturas e evoca

as figuras de são Jerônimo, santo Agostinho e são Jorge. Ele mesmo afirma que procura

reconhecer à si próprio não apenas em são Jerônimo ou no leão que o acompanha, mas

nos dois juntos, na pintura, em tudo. E propõe que “a palavra escrita tem sempre

presente a anulação da pessoa que escreveu ou daquela que lerá” (CALVINO, 1991, p.

133), essa afirmação parece sintetizar a dinâmica do narrador do livro em questão que

ora é leitor, ora é autor.

As palavras que encerram o capítulo do narrador como escritor parecem ir de

encontro à ideia da escrita como uma terapia, algo que exprime e resolve a

singularidade e subjetividade de um sujeito empírico: “Assim consegui pôr tudo em

seus lugares. Na página, pelo menos. Dentro de mim continua tudo como dantes”

(CALVINO, 1991, p. 137). A separação entre página e dentro de mim sugere uma

diferença entre os domínios do escritor e do sujeito empírico, destoando da imagem que

define a obra como reflexo da subjetividade individual do autor.

A terceira parte do livro, a Nota, configura-se como um paratexto. Agora, à

margem do bosque, o autor Italo Calvino acende as luzes do Castelo (posto que a

Taverna permanece ainda meio obscura) e expõe o método de criação de que se valeu

para escrever o livro. A intenção não é estudar o método, mas compreender o que

significa esse movimento de exposição de sua técnica pela parte do autor.

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Calvino trabalhou, assim como o narrador de seu texto, com as cartas de tarô,

montando o mosaico de histórias, seguindo o modo de leitura já explicitado na página

dois desse trabalho. A construção das histórias que compõem a primeira parte do livro

foi realizada com sucesso, formando o que ele mesmo denominou como “quadrado

mágico”. Contudo, nA Taverna, Italo Calvino não conseguiu harmonizar a necessidade

de uma regra condicionadora de encaixe das cartas com a criação de narrativas

interessantes e de qualidade. Dessa forma, a segunda parte do livro não é regida pelo

mesmo método que o primeiro: os narradores não seguem um percurso regular, há

cartas que se repetem na mesma história e cartas que aparecem em todas as narrativas;

de acordo com o próprio autor, a publicação de A Taverna dos Destinos Cruzados

aconteceu principalmente para libertá-lo.

Acredito que a Nota do autor seja de extrema importância para a compreensão

do livro como um todo e para tratar do tema desse trabalho, uma vez que demonstra

como a leitura que o autor faz das cartas de tarô – e, portanto, a escritura das histórias –

afasta-se de qualquer tipo de hermetismo ou busca por significados ocultos. É possível

encontrar, na verdade, o trabalho do escritor ilusionista, meticuloso, cerebral que

combina e embaralha destinos, produzindo vertigens. Encontramos a resposta da

pergunta que o narrador nos lança em dado momento do percurso: “será apenas

resultado do acaso, este desenho, ou talvez algum de nós o estará pacientemente

estruturando?” (CALVINO, 1991, p. 117)

Além disso, na terceira parte do livro, é notável a interessante correspondência

entre as funções do narrador e Italo Calvino: “essa obstinação maníaca de completar, de

encerrar, de dar vida aos relatos” (CALVINO, 1991, p. 67). Tal combinação produz um

efeito espelhado entre texto e paratexto, que multiplicam e potencializam as imagens

trabalhadas: cruzando as figuras do narrador com a entidade autoral, o narrador com o

sujeito empírico, o narrador com o leitor... Obtém-se a vertigem de todos os destinos

cruzados.

Italo Calvino, ao optar pelas figurações do autor comentadas ao longo desse

trabalho, fragmentou a ideia do autor-sujeito sobre a qual fala José Luís Jobim em seu

texto O Autor Como Sujeito. Na ficção de Calvino, a caracterização do autor como

indiviso não vigora, menos ainda se conferirmos a ele a função de gênio criador ou

indivíduo privilegiado, e o poder de propriedade. Como vimos, parte das narrativas do

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livro não foram criadas livremente, mas sim seguindo regras de um método rígido e,

portanto, não se configuram como a expressão única da subjetividade do autor; além

disso, a publicação de A Taverna dos Destinos Cruzados é muito mais um ato de

liberdade, do que uma tentativa de assegurar a propriedade do texto.

Se, nas propostas da ideologia do Romantismo, o autor é, nas palavras de Jobim,

“como um gênio, como aquele que cria a obra, tal qual Deus criou o mundo”, dono de

uma subjetividade cujo potencial criativo não conhece limites, temos, em O Castelo dos

Destinos Cruzados, um autor multifacetado, que perdeu sua própria história,

prestidigitador, racional; não é tal qual Deus criador, pois é humano, mas é como um

santo (são Jerônimo, são Jorge), por desempenhar uma obra admirável.

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Referências bibliográficas

CALVINO, Italo. O Castelo dos Destinos Cruzados. São Paulo: Companhia das Letras,

1991.

ECO, Umberto. Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção. São Paulo: Companhia das

Letras, 1994.

JOBIM, José Luís. O Autor Como Sujeito. In: ______. A poética do fundamento:  ensaios de teoria e história da literatura. Rio de Janeiro: EdUFF, 1996.