A Festa Dos Eres
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8/3/2019 A Festa Dos Eres
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
INSTITUTO DE ARTES
A Festa dos Erês
Bruno Abreu
Arte e Antropologia II
RIO DE JANEIRO
2011
8/3/2019 A Festa Dos Eres
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Sair do lugar comum e partir para uma experiência de pesquisa em campo,
tocando com as próprias mãos a matéria de estudo, é uma experiência interessante.
O local, uma casa humilde na zona norte do Rio de Janeiro, já revela um
aspecto importante acerca do objeto de estudo. O terreiro é ao mesmo tempo residência
para a Mãe-de-santo, seu marido e filho e também lar para as entidades espirituais que
encontram passagem para o mundo físico através dos filhos e filhas-de-santo que ali se
reúnem. Essa característica familiar é marcante nas relações hierárquicas das religiões
afro-brasileiras. Ao cruzar os portões do terreiro fica claro o entrecruzamento da vida
cotidiana daquela família com as práticas religiosas. Um pequeno altar posto no jardim
contém alguns utensílios cuja construção formal deixa claro, até mesmo para os
visitantes menos atentos, que são objetos religiosos. Existe também um pequeno quarto
onde estátuas de santos católicos, representações de exus e malandros coexistem sem
problemas. Mas a noite é de festa e qualquer observação pretensamente analítica, ou
distanciada, é completamente esmagada pelo som grave dos atabaques. A dança já
começou e a Mãe e o Pai-de-santo estão de tal maneira envolvidos no ritual que aquela
residência parece deixar de ser um local privado e tornar-se local público, de convívio,
onde os participantes da festa podem circular livremente por suas dependências. É
importante ressaltar que este terreiro apresenta uma particularidade. Normalmente
haveria ou uma Mãe-de-santo ou um Pai-de-santo, porém, neste terreiro o casamento
uniu e tornou comuns as obrigações religiosas do casal.
A noite é para a festa das crianças, os Erês, e os iniciados no rito da
Umbanda dançam ao som dos atabaques. A dança consiste em um constante movimento
giratório e de uma gesticulação relativa a cada divindade. São algumas horas praticando
esses movimentos, onde cada Orixá recebe seu canto de homenagem ao passo que os
filhos-de-santo parecem se dirigir ao transe ritual. No entanto a chegada do Pai-de-
Santo da Mãe-de-Santo daquele terreiro faz com que a dança pare, alguns o reverenciam
de joelhos e outros o cumprimentam enquanto segue seu caminho até uma cadeiradecorada e posicionada de maneira a dar a seu ocupante uma clara posição de
superioridade hierárquica. Foi-me dito posteriormente que o Pai-de-santo dele
(consequentemente Avo-de-santo da senhora daquele terreiro) havia morrido e ritos
festivos não poderiam ser realizados em seu próprio terreiro. A partir daí é este homem,
imbuído naquele contexto social, de uma autoridade sobrenatural que passa a comandar
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os cantos e danças em homenagem aos Orixás. O ritual prossegue desta forma por mais
alguns minutos até que os Filhos-de-santo, guiados por Mãe Ângela, se dirigem ao local
reservado para que os Erês tomem seus corpos e venham ao mundo para brincar. Os
iniciados, homens e mulheres, adultos, velhos e jovens, entregam seus corpos para que
sejam cavalgados pelos espíritos. Os vários Erês que saem da sala se dirigem ao centroda cerimônia cantando e dançando, usam roupas coloridas, carregam brinquedos e
adereços infantis e, resguardados pelas Equedes, brincam, comem e distribuem doces e
frutas aos presentes durante a festividade que prossegue até a madrugada. É um tipo de
cerimônia cuja forma aberta e, até certo ponto livre, permite que aqueles adultos,
imbuídos pelo espírito infantil dos Erês, celebrem a brincadeira sem culpa. Quase tudo
será permitido e quase nada será negado aquelas crianças.
É a partir desta experiência impressionante que realizo uma breve análise
acerca da relação instrumental que a Umbanda apresenta quando pensamos na
“sobrevivência”, através da adaptação, de uma cultura afro-brasileira.
Trazidos a força para a colônia portuguesa, os escravos africanos tiveram
que adaptar, em segredo, suas mais diversas práticas culturais a uma sociedade que nem
sequer lhes considerava seres humanos. A “religião original” africana não pôde ser
completamente refeita. A estrutura social fora desmembrada e relações familiares e
tribais foram perdidas. O culto aos antepassados que sustentou a ordem social tribal e
que consistia o cerne da religião africana deu lugar ao culto das divindades mais
diretamente ligadas as forças naturais, os Orixás. As diversas práticas rituais foram
transformadas pela necessidade do segredo em referências identitárias de ligação entre a
ancestralidade étnica comum a cada povo e a vida cotidiana. Subjugados pelo Estado e
pela Igreja os escravos tiveram que abdicar de qualquer prática religiosa pública que
não fosse a Católica oficial. Os terreiros aos poucos se tornaram ilhas onde as formas
culturais de origem africana eram exercidas, ao menos minimamente, em coletividade.
Fora deste espaço era o catolicismo do senhor que regia as relações morais e éticas na
sociedade brasileira que se formava.Essas práticas religiosas que, mesmo secretas, foram os meios mais
efetivos, apesar de não serem evidentemente os únicos, de manutenção de uma
identidade cultural negra (escrava) e que, após algumas gerações, se constituiu, a partir
da miscigenação de filhos e netos de escravos, uma das bases da cultura popular
brasileira apresentam uma característica importante: o hibridismo. Elementos indígenas
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e Orixás de diferentes regiões do continente africano sincretizados a santos católicos
europeus criam um imaginário popular capaz de sustentar ao mesmo tempo o
julgamento moral católico e a possibilidade de uma intervenção mágica concreta
mediante o sacrifício ritual.
Nascida no rio de janeiro cerca de 1920, a Umbanda surge quando éacrescida a essa multiplicidade de influências, kardecismo francês. Às práticas africanas
de culto dos Orixás são incorporadas as idéia de “comunicação com os espíritos dos
mortos através do transe” (Prandi, 1996) e de prática da caridade. Ainda segundo
Reginaldo Pradi:
A Umbanda que nasce retrabalha os elementos religiosos incorporados à cultura
brasileira por um estamento negro que se dilui e se mistura no refazer das classes sociais, numa
cidade que, capital federal, é branca, mesmo quando proletária; culturalmente européia; que
valoriza a organização burocrática da qual vive boa parte da população residente; que premia o
conhecimento pelo aprendizado escolar em detrimento da tradição oral e que já aceitou o
kardecismo como religião(...)”
É exatamente essa forma que advém da interação entre o kardecismo
praticado pela classe média intelectualizada e o candomblé praticado, inicialmente, por
grupos fechados de negros e mulatos, que possibilita analisar essa prática religiosa
como modelo de ação onde o hibridismo é a ferramenta encontrada pelos “populares”
para lidar com força das culturas de massa e hegemônica. No entanto, sua formulação
sincrética relatada a partir do ponto de vista da história não é capaz de explicar o
hibridismo que pode ser encontrado quando nos defrontamos concretamente com a
complexidade do rito. Os Erês, entidades menores comumente associadas a espíritos de
crianças indígenas a despeito de sua origem ancestral ligada a mata, escolhem
brinquedos e adereços do universo da cultura de massa como, por exemplo, carrinhos e
bonecas.
Já não é mais considerado minimante científico tomar qualquer prática de
cultura popular sobre o prisma folclórico tradicional que a entende como algo imutávelconstituída por uma essência ancestral comum. Portanto ao considerar a pesquisa
histórica a cerca das religiões afro-brasileiras apenas como ponto de partida, pretendo
ressaltar que, para a maior parte dos envolvidos nestas práticas, o que está em jogo é a
experiência no tempo presente. Não existe, no caso da Umbanda, uma relação
dogmática direta e detalhada estabelecida por uma autoridade histórica e centralizadora
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que precisa ser seguida pelos adeptos. O processo de construção de um terreiro, que
ocorre a partir de uma tradição oral, é por sua própria natureza suporte para o acumulo
de novas práticas e interpretações.
O processo hibrido no qual se forma a umbanda não é homogêneo e
mesmo se considerarmos dois terreiros em um mesmo bairro será possível perceber algumas distinções como, por exemplo, o centro que visitei permite que os Erês,
cavalgando os corpos dos iniciados, saiam às ruas próximas para realizar suas
travessuras, no entanto essa prática não é usual e sua realização dependerá do grau de
aceitação que essa religião, de certa maneira ainda marginalizada frente a uma maioria
cristã (católica ou evangélica) dispõem da vizinhança. Pode parecer óbvio afirmar que
este culto religioso está em constante transformação, porém esse estado de constante
mutação é ainda mais evidente quando se analisa a festa dos Erês. No terreiro de Mãe
Ângela as crianças utilizam para sua diversão brinquedos, roupas e acessórios vendidos
em lojas de departamento. A relação ao menos no campo de uma estética formalista do
culto com a cultura de massa também pode ser observada na decoração do local. Se um
dos Erês daquele terreiro gosta de balas, outro de balões de borracha, outro ainda
prefere carrinhos todos esses elementos serão encontrados na decoração.
Esta ferramenta de construção de identidades, com o seu caráter
aglutinador representa uma tecnologia social cuja eficácia não só foi capaz de manter
traços negros na cultura geral como, em especial na cidade do Rio de Janeiro, tornar
esses traços marca maior da cultura de massa, agindo não como características do
pequeno número de grupos praticantes, mas sim como representações da "cultura
carioca". Essa transformação ocorre com mais força em termos de visibilidade (ou
publicidade) do que em números de adeptos. À medida que apresenta ao iniciado uma
ampla gama de possibilidades para a construção de sua personalidade a partir das
influências de Orixás e espíritos menores como os Erês, a Umbanda torna-se uma
religião de grande apelo popular na sociedade fragmentada do início do século XXI.
Para além de um espaço de "sobrevivência" da cultura negra afro- brasileira o terreiro se torna um local de convívio onde, ao menos durante a realização
dos rituais, diferenças de classe, gênero ou origem étnica são relativizadas em favor de
uma interação, inerente aquela prática, por parte das entidades que fazem uso dos
corpos dos iniciados.
Tomando mais uma vez a experiência que tive na festa dos Erês para
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pensar como a complexa articulação de identidades, que torna capaz uma mulher de 50
anos assumir a postura social de uma criança, pode funcionar como alternativa a
moralidade dualística das religiões cristãs. Apesar de cristãos evangélicos representam
segundo as estatísticas oficiais uma fração muito maior da população brasileira a
contribuição para a cultura, no sentido de uma cultura geral veiculada pelos meios decomunicação, do candomblé e da Umbanda parece ser mais substancial. Os muitos
elementos simbólicos sejam objetos, canções e adereços oriundos dessas duas religiões
que escapam ao campo restrito do terreiro e adquirem legitimidade (mesmo que em
alguns casos apenas no campo da cultura) se tornam operadores de uma reestruturação
da relação do que é popular e do que é hegemônico. Empresários, artistas e a classe
média intelectualizada de maneira geral são capazes de encontrar nas religiões afro-
brasileiras uma "realidade espiritual" que seja capaz de lidar de maneira satisfatória com
uma sociedade plural, heterogenia e em constante transformação.
Acredito que produção de objetos nos dos terreiros de umbanda e candomblé,
por representar a parte tangível da imensa pluralidade observada na construção da
personalidade do iniciado, seja concentrada em atos de apropriação do tipo sincrético,
justificados a partir de sua própria tradição, que unem objetos de uma "estética negra"
ou na reprodução de formas tradicionais atribuídas mais diretamente a origem africana,
como as vestimentas ritualísticas. Estátuas de santos católicos dotadas de pequenos
enxertos simbólicos característicos dos orixás são vistas em toda parte do terreiro de
Mãe Ângela.
Portanto a Umbanda, mesmo de um ponto de vista relativamente superficial,
revela que alguns mecanismos sociais criados por grupos minoritários de cultura
popular se revelam tão eficientes que são capazes romper as barreiras impostas pela
cultura chamada hegemônica e, em grande parte graças aos meios de promoção da
cultura de massa, e dar a praticas rituais, como o canto aos orixás, um lugar social
proeminente. Sem deixar de lado os importantes valores históricos que liga essa religião
a África que foram responsáveis pela formação dos terreiros, é seu hibridismo que permite aos adeptos aplicar soluções da vida prática para solucionar problemas de
ordem espiritual e soluções espirituais diretamente a problemas da vida prática. A
Umbanda se apresenta como um constante processo de hibridação que possibilita os
iniciados de cada terreiro se apropriarem de formas culturais heterogenias e objetos da
cultura de massa disponíveis nos vários circuitos que perpassam suas vidas.
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BIBLIOGRAFIA:
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair
da modernidade. IV Edição , EDUSP: São Paulo 2003.
PRANDI, Reginaldo. As religiões negras do Brasil: para uma sociologia dos
cultos afro-brasileiros. Revista USP (p.64-83). São Paulo 1996.