A Festa Dos Eres

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 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JAN EIRO CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES INSTITUTO DE ARTES A Festa dos Erês Bruno Abreu Arte e Antropologia II RIO DE JANEIRO 2011

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

INSTITUTO DE ARTES

A Festa dos Erês

Bruno Abreu

Arte e Antropologia II

RIO DE JANEIRO

2011

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Sair do lugar comum e partir para uma experiência de pesquisa em campo,

tocando com as próprias mãos a matéria de estudo, é uma experiência interessante.

O local, uma casa humilde na zona norte do Rio de Janeiro, já revela um

aspecto importante acerca do objeto de estudo. O terreiro é ao mesmo tempo residência

 para a Mãe-de-santo, seu marido e filho e também lar para as entidades espirituais que

encontram passagem para o mundo físico através dos filhos e filhas-de-santo que ali se

reúnem. Essa característica familiar é marcante nas relações hierárquicas das religiões

afro-brasileiras. Ao cruzar os portões do terreiro fica claro o entrecruzamento da vida

cotidiana daquela família com as práticas religiosas. Um pequeno altar posto no jardim

contém alguns utensílios cuja construção formal deixa claro, até mesmo para os

visitantes menos atentos, que são objetos religiosos. Existe também um pequeno quarto

onde estátuas de santos católicos, representações de exus e malandros coexistem sem

  problemas. Mas a noite é de festa e qualquer observação pretensamente analítica, ou

distanciada, é completamente esmagada pelo som grave dos atabaques. A dança já

começou e a Mãe e o Pai-de-santo estão de tal maneira envolvidos no ritual que aquela

residência parece deixar de ser um local privado e tornar-se local público, de convívio,

onde os participantes da festa podem circular livremente por suas dependências. É

importante ressaltar que este terreiro apresenta uma particularidade. Normalmente

haveria ou uma Mãe-de-santo ou um Pai-de-santo, porém, neste terreiro o casamento

uniu e tornou comuns as obrigações religiosas do casal.

A noite é para a festa das crianças, os Erês, e os iniciados no rito da

Umbanda dançam ao som dos atabaques. A dança consiste em um constante movimento

giratório e de uma gesticulação relativa a cada divindade. São algumas horas praticando

esses movimentos, onde cada Orixá recebe seu canto de homenagem ao passo que os

filhos-de-santo parecem se dirigir ao transe ritual. No entanto a chegada do Pai-de-

Santo da Mãe-de-Santo daquele terreiro faz com que a dança pare, alguns o reverenciam

de joelhos e outros o cumprimentam enquanto segue seu caminho até uma cadeiradecorada e posicionada de maneira a dar a seu ocupante uma clara posição de

superioridade hierárquica. Foi-me dito posteriormente que o Pai-de-santo dele

(consequentemente Avo-de-santo da senhora daquele terreiro) havia morrido e ritos

festivos não poderiam ser realizados em seu próprio terreiro. A partir daí é este homem,

imbuído naquele contexto social, de uma autoridade sobrenatural que passa a comandar 

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os cantos e danças em homenagem aos Orixás. O ritual prossegue desta forma por mais

alguns minutos até que os Filhos-de-santo, guiados por Mãe Ângela, se dirigem ao local

reservado para que os Erês tomem seus corpos e venham ao mundo para brincar. Os

iniciados, homens e mulheres, adultos, velhos e jovens, entregam seus corpos para que

sejam cavalgados pelos espíritos. Os vários Erês que saem da sala se dirigem ao centroda cerimônia cantando e dançando, usam roupas coloridas, carregam brinquedos e

adereços infantis e, resguardados pelas Equedes, brincam, comem e distribuem doces e

frutas aos presentes durante a festividade que prossegue até a madrugada. É um tipo de

cerimônia cuja forma aberta e, até certo ponto livre, permite que aqueles adultos,

imbuídos pelo espírito infantil dos Erês, celebrem a brincadeira sem culpa. Quase tudo

será permitido e quase nada será negado aquelas crianças.

É a partir desta experiência impressionante que realizo uma breve análise

acerca da relação instrumental que a Umbanda apresenta quando pensamos na

“sobrevivência”, através da adaptação, de uma cultura afro-brasileira.

Trazidos a força para a colônia portuguesa, os escravos africanos tiveram

que adaptar, em segredo, suas mais diversas práticas culturais a uma sociedade que nem

sequer lhes considerava seres humanos. A “religião original” africana não pôde ser 

completamente refeita. A estrutura social fora desmembrada e relações familiares e

tribais foram perdidas. O culto aos antepassados que sustentou a ordem social tribal e

que consistia o cerne da religião africana deu lugar ao culto das divindades mais

diretamente ligadas as forças naturais, os Orixás. As diversas práticas rituais foram

transformadas pela necessidade do segredo em referências identitárias de ligação entre a

ancestralidade étnica comum a cada povo e a vida cotidiana. Subjugados pelo Estado e

 pela Igreja os escravos tiveram que abdicar de qualquer prática religiosa pública que

não fosse a Católica oficial. Os terreiros aos poucos se tornaram ilhas onde as formas

culturais de origem africana eram exercidas, ao menos minimamente, em coletividade.

Fora deste espaço era o catolicismo do senhor que regia as relações morais e éticas na

sociedade brasileira que se formava.Essas práticas religiosas que, mesmo secretas, foram os meios mais

efetivos, apesar de não serem evidentemente os únicos, de manutenção de uma

identidade cultural negra (escrava) e que, após algumas gerações, se constituiu, a partir 

da miscigenação de filhos e netos de escravos, uma das bases da cultura popular 

 brasileira apresentam uma característica importante: o hibridismo. Elementos indígenas

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e Orixás de diferentes regiões do continente africano sincretizados a santos católicos

europeus criam um imaginário popular capaz de sustentar ao mesmo tempo o

  julgamento moral católico e a possibilidade de uma intervenção mágica concreta

mediante o sacrifício ritual.

  Nascida no rio de janeiro cerca de 1920, a Umbanda surge quando éacrescida a essa multiplicidade de influências, kardecismo francês. Às práticas africanas

de culto dos Orixás são incorporadas as idéia de “comunicação com os espíritos dos

mortos através do transe” (Prandi, 1996) e de prática da caridade. Ainda segundo

Reginaldo Pradi:

A Umbanda que nasce retrabalha os elementos religiosos incorporados à cultura

 brasileira por um estamento negro que se dilui e se mistura no refazer das classes sociais, numa

cidade que, capital federal, é branca, mesmo quando proletária; culturalmente européia; que

valoriza a organização burocrática da qual vive boa parte da população residente; que premia o

conhecimento pelo aprendizado escolar em detrimento da tradição oral e que já aceitou o

kardecismo como religião(...)”

É exatamente essa forma que advém da interação entre o kardecismo

 praticado pela classe média intelectualizada e o candomblé praticado, inicialmente, por 

grupos fechados de negros e mulatos, que possibilita analisar essa prática religiosa

como modelo de ação onde o hibridismo é a ferramenta encontrada pelos “populares”

 para lidar com força das culturas de massa e hegemônica. No entanto, sua formulação

sincrética relatada a partir do ponto de vista da história não é capaz de explicar o

hibridismo que pode ser encontrado quando nos defrontamos concretamente com a

complexidade do rito. Os Erês, entidades menores comumente associadas a espíritos de

crianças indígenas a despeito de sua origem ancestral ligada a mata, escolhem

 brinquedos e adereços do universo da cultura de massa como, por exemplo, carrinhos e

 bonecas.

Já não é mais considerado minimante científico tomar qualquer prática de

cultura popular sobre o prisma folclórico tradicional que a entende como algo imutávelconstituída por uma essência ancestral comum. Portanto ao considerar a pesquisa

histórica a cerca das religiões afro-brasileiras apenas como ponto de partida, pretendo

ressaltar que, para a maior parte dos envolvidos nestas práticas, o que está em jogo é a

experiência no tempo presente. Não existe, no caso da Umbanda, uma relação

dogmática direta e detalhada estabelecida por uma autoridade histórica e centralizadora

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que precisa ser seguida pelos adeptos. O processo de construção de um terreiro, que

ocorre a partir de uma tradição oral, é por sua própria natureza suporte para o acumulo

de novas práticas e interpretações.

O processo hibrido no qual se forma a umbanda não é homogêneo e

mesmo se considerarmos dois terreiros em um mesmo bairro será possível perceber algumas distinções como, por exemplo, o centro que visitei permite que os Erês,

cavalgando os corpos dos iniciados, saiam às ruas próximas para realizar suas

travessuras, no entanto essa prática não é usual e sua realização dependerá do grau de

aceitação que essa religião, de certa maneira ainda marginalizada frente a uma maioria

cristã (católica ou evangélica) dispõem da vizinhança. Pode parecer óbvio afirmar que

este culto religioso está em constante transformação, porém esse estado de constante

mutação é ainda mais evidente quando se analisa a festa dos Erês. No terreiro de Mãe

Ângela as crianças utilizam para sua diversão brinquedos, roupas e acessórios vendidos

em lojas de departamento. A relação ao menos no campo de uma estética formalista do

culto com a cultura de massa também pode ser observada na decoração do local. Se um

dos Erês daquele terreiro gosta de balas, outro de balões de borracha, outro ainda

 prefere carrinhos todos esses elementos serão encontrados na decoração.

Esta ferramenta de construção de identidades, com o seu caráter 

aglutinador representa uma tecnologia social cuja eficácia não só foi capaz de manter 

traços negros na cultura geral como, em especial na cidade do Rio de Janeiro, tornar 

esses traços marca maior da cultura de massa, agindo não como características do

  pequeno número de grupos praticantes, mas sim como representações da "cultura

carioca". Essa transformação ocorre com mais força em termos de visibilidade (ou

 publicidade) do que em números de adeptos. À medida que apresenta ao iniciado uma

ampla gama de possibilidades para a construção de sua personalidade a partir das

influências de Orixás e espíritos menores como os Erês, a Umbanda torna-se uma

religião de grande apelo popular na sociedade fragmentada do início do século XXI.

Para além de um espaço de "sobrevivência" da cultura negra afro- brasileira o terreiro se torna um local de convívio onde, ao menos durante a realização

dos rituais, diferenças de classe, gênero ou origem étnica são relativizadas em favor de

uma interação, inerente aquela prática, por parte das entidades que fazem uso dos

corpos dos iniciados.

Tomando mais uma vez a experiência que tive na festa dos Erês para

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 pensar como a complexa articulação de identidades, que torna capaz uma mulher de 50

anos assumir a postura social de uma criança, pode funcionar como alternativa a

moralidade dualística das religiões cristãs. Apesar de cristãos evangélicos representam

segundo as estatísticas oficiais uma fração muito maior da população brasileira a

contribuição para a cultura, no sentido de uma cultura geral veiculada pelos meios decomunicação, do candomblé e da Umbanda parece ser mais substancial. Os muitos

elementos simbólicos sejam objetos, canções e adereços oriundos dessas duas religiões

que escapam ao campo restrito do terreiro e adquirem legitimidade (mesmo que em

alguns casos apenas no campo da cultura) se tornam operadores de uma reestruturação

da relação do que é popular e do que é hegemônico. Empresários, artistas e a classe

média intelectualizada de maneira geral são capazes de encontrar nas religiões afro-

 brasileiras uma "realidade espiritual" que seja capaz de lidar de maneira satisfatória com

uma sociedade plural, heterogenia e em constante transformação.

Acredito que produção de objetos nos dos terreiros de umbanda e candomblé,

  por representar a parte tangível da imensa pluralidade observada na construção da

 personalidade do iniciado, seja concentrada em atos de apropriação do tipo sincrético,

 justificados a partir de sua própria tradição, que unem objetos de uma "estética negra"

ou na reprodução de formas tradicionais atribuídas mais diretamente a origem africana,

como as vestimentas ritualísticas. Estátuas de santos católicos dotadas de pequenos

enxertos simbólicos característicos dos orixás são vistas em toda parte do terreiro de

Mãe Ângela.

Portanto a Umbanda, mesmo de um ponto de vista relativamente superficial,

revela que alguns mecanismos sociais criados por grupos minoritários de cultura

  popular se revelam tão eficientes que são capazes romper as barreiras impostas pela

cultura chamada hegemônica e, em grande parte graças aos meios de promoção da

cultura de massa, e dar a praticas rituais, como o canto aos orixás, um lugar social

 proeminente. Sem deixar de lado os importantes valores históricos que liga essa religião

a África que foram responsáveis pela formação dos terreiros, é seu hibridismo que  permite aos adeptos aplicar soluções da vida prática para solucionar problemas de

ordem espiritual e soluções espirituais diretamente a problemas da vida prática. A

Umbanda se apresenta como um constante processo de hibridação que possibilita os

iniciados de cada terreiro se apropriarem de formas culturais heterogenias e objetos da

cultura de massa disponíveis nos vários circuitos que perpassam suas vidas. 

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BIBLIOGRAFIA:

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair

da modernidade. IV Edição , EDUSP: São Paulo 2003.

PRANDI, Reginaldo. As religiões negras do Brasil: para uma sociologia dos

cultos afro-brasileiros. Revista USP (p.64-83). São Paulo 1996.