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A Fenomenologia no Oeste do Paraná: Retrato de uma Comunidade

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Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Claudinei Aparecido de Freitas da Silva

Libanio Cardoso José Francisco de Assis Dias

(Organizadores)

A Fenomenologia no Oeste do Paraná: Retrato de uma Comunidade

Primeira Edição E-book

Toledo - PR 2018

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Copyright 2018 by Organizadores EDITORA:

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL:

Dr. José Aparecido Pereira - PUCPR Dr. José Beluci Caporalini – UEM

Dra. Lorella Congiunti – PUU – Roma REVISÃO FINAL:

Prof. Ademir Menin Prof. Luciana Bovo Andretto

CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Editora Vivens Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados aos Organizadores.

Editora Vivens: Conhecer é Poder! Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro

Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (45) 3056-5596 http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

A fenomenologia no oeste do Paraná: retrato

F339 de uma comunidade. / organizadores

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens ... [et

al.]. – 1. ed. e-book – Toledo, PR:

Vivens, 2018.

438 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN: 978-85-92670-53-5

1. Fenomenologia - filosofia. I. Título.

CDD 22. ed. 100

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SUMÁRIO PREFÁCIO ................................................................................ 11 I O “CONCEITO DE TEMPO” NAS CONFISSÕES DE AGOSTINHO: UMA INTERPRETAÇÃO SEGUNDO A FENOMENOLOGIA DE HEIDEGGER Ademir Menin ............................................................................... 15 II BERGSON E O RETORNO À EXPERIÊNCIA Adeilson Lobato Vilhena................................................................23 III UM OLHAR SOBRE O FENÔMENO DA AFASIA: MERLEAU-PONTY, LEITOR DE GOLDSTEIN .Andrinea Cordova da Rosa ........................................................... 41 IV EXISTÊNCIA E LINGUAGEM: UMA ANÁLISE FENOMENOLÓGICA DO ROMANCE DE VIDAS SECAS Camila Pacheco Gomes ..................................................................55 V COMPREENSÃO ACERCA DA INQUIETUDE E ANGÚSTIA NA OBRA O HOMEM PROBLEMÁTICO DE GABRIEL MARCEL Cleyton Francisco Oliveira Araújo .................................................. 65 VI DO CONCEITO DE LIBERDADE: PARALELOS ENTRE AS FILOSOFIAS DE DESCARTES E SARTRE Cristiane Picinini ........................................................................ ...83

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VII OS FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA DE W. DILTHEY Eduardo Henrique Silveira Kisse.................................................. 101 VIII APÓS A ANGÚSTIA: SOBRE PROPRIEDADE E IMPROPRIEDADE NA ANALÍTICA EXISTENCIAL DE HEIDEGGER EzildoAntunes Roberto S. Kahlmeyer-Mertens......................................................123 IX A FENOMENOLOGIA NO PROJETO DA HERMENÊUTICA DA FACTICIDADE EM MARTIN HEIDEGGER Flávia Neves Ferreira ................................................................... 139 X O MOVIMENTO DO CORPO-PRÓPRIO E O MOVIMENTO DESTE CORPO COM SOFTWARES DE GEOMETRIA DINÂMICA José Milton Lopes Pinheiro Maria Aparecida Viggiani Bicudo Adlai Ralph Detoni......................................................................157 XI O EXISTENCIALISMO ATRAVÉS DA LITERATURA SARTRIANA Josieli Aparecida Opalchuka ........................................................ 181 XII MISTÉRIO DA ENCARNAÇÃO: REFLETINDO COM GABRIEL MARCEL E MERLEAU-PONTY Katyana Martins Weyh ................................................................ 195 XIII O FUNDAMENTO DA FILOSOFIA POR MAX SCHELER Leila Rosibeli Klaus ..................................................................... 213

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XIV O INCONSCIENTE NA OBRA DE MERLEAU-PONTY Litiara Kohl Dors ........................................................................ 231 XV O LOGOS COMO DISCURSO MOSTRADOR: UM DIÁLOGO ENTRE HEIDEGGER E ARISTÓTELES Luana Borges Giacomini .............................................................. 247 XVI A COMPREENSÃO HEIDEGGERIANA DO FÊNOMENO RELIGIOSO NA PRELEÇÃO – INTRODUÇÃO À FENOMENOLOGIA DA RELIGIÃO Marcelo Ribeiro da Silva Roberto S. Kahlmeyer-Mertens......................................................261 XVII DIFERENTES COMPREENSÕES DO FENÔMENO DO ESPAÇO: HEIDEGGER E MILTON SANTOS Maria Lucivane de Oliveira Morais Roberto S. Kahlmeyer-Mertens......................................................275 XVIII HEIDEGGER E A GÊNESE DA INDICAÇÃO FORMAL Neusa Rudek Onate Roberto S. Kahlmeyer-Mertens......................................................293 XIX NOTAS SOBRE A NOÇÃO DE SITUAÇÃO EM GABRIEL MARCEL Paulo Alexandre Marcelino Malafaia .......................................... 309 XX A GESTALT COMO ONTOLOGIA DA CARNE EM MERLEAU-PONTY Renato dos Santos ........................................................................ 343

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XXI SOBRE O DESESPERO EM KIERKEGAARD Rômulo Gomes dos Santos ............................................................ 365 XXII A MUDANÇA DA VERDADE E O DESENCADEAR DO HUMANISMO Thiago Ehrenfried Nogueira ......................................................... 399 XXIII A CRÍTICA DE HUSSERL AO PSICOLOGISMO E SUA IMPORTÂNCIA PARA A ORIGEM DA FENOMENOLOGIA Vitória Brito................................................................................ 415

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PREFÁCIO Retrato de uma comunidade

O projeto da fenomenologia como um fazer de rigor, já

na aurora do século XX, foi concebido como um empreendimento coletivo. Isto não se deveria – em absoluto – à presumida falta de vigor ou de motivação por parte de seu iniciador, Edmund Husserl, que, desejando fazer vulto com a força do número, apostaria no argumento da coletividade. Foi apenas por reconhecer o extenso rol de tarefas que, doravante, competiriam à fenomenologia, que Husserl prezou pelo trabalho cooperativo, reunindo em comunidade toda uma plêiade de pesquisadores interessados em familiarizar-se com tal método, ganhar sua atitude e, enfim, operar uma filosofia fenomenológica.

Nos decênios que se seguiram àquele marco inaugural, entre Göttingen e Munique, e a meio caminho entre uma escola e um movimento, o que indubitavelmente vemos é um modo de pensar moldado por muitas mãos. Desta sorte, as potencialidades reveladas pela fenomenologia ofereceram um renovo ao pensamento atual, a ponto mesmo de podermos afirmar, sem favor algum, que a fenomenologia é matriz influente na cunhagem daquilo que hoje se usa chamar de filosofia contemporânea. Evidência disto é a ampla difusão desse modo de pensar tanto em terreno filosófico quanto em outras áreas do saber e, ainda, seu real contributo ao pensamento filosófico, constituindo subsídio à apropriação de seus novos problemas e à retomada dos antigos, e incrementando o pensamento de autores filósofos e pesquisadores comprometidos em haver-se com o que, afinal, é filosoficamente digno de questão.

É a indicação de que as pesquisas fenomenológicas se perfizeram em comunidade, desde sua primeira hora, que nos

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faz crer que um empreendimento de estudos acerca dessa matéria, mesmo hoje, no Brasil, em muito se beneficiaria desse formato. Assim, nossa reunião de docentes pesquisadores versados em fenomenologia com seus aprendizes nessa matéria e a colaboração de todos aqueles que desejariam se somar a tal empreendimento, muito mais do que um projeto temático no seio de uma instituição de ensino superior ou mesmo de um grupo de trabalho interinstitucional, compreende o cultivo de uma cultura fenomenológica na qual estaríamos, nos moveríamos e nos ateríamos à coisa do pensamento. Compreender esse ponto é crucial, pois deixa patente o quanto uma comunidade como a em apreço põe-se acima de vínculos formais e exigências burocráticas de formatação; isso porque um grupo amalgamado em torno a uma cultura filosófico-fenomenológica deve constituir, antes de tudo, uma comunidade promovida pelo firme propósito de difundir a fenomenologia como instrumento de um filosofar consistente e fidedigno.

Ao editarmos, portanto, um livro intitulado A Fenomenologia no Oeste do Paraná, julgamos trazer a público o registro de alguns traços característicos de uma comunidade fenomenológica em consolidação. Os esforços (desenvolvidos mais intensivamente nos últimos cinco anos) por firmar na UNIOESTE um trabalho de pesquisa em fenomenologia (e que acabaram por resultar, também na nucleação dos estudos de fenomenologia no Programa de Pós-Graduação em Filosofia dessa instituição), no ano de 2017, foram coroados com a realização de um tríplice evento acadêmico no campus de Toledo-PR da UNIOESTE.

Do referido evento, integrado pelo II Encontro Nacional de Fenomenologia; V Encontro do GT de Fenomenologia da ANPOF e pela X Jornada de Metafísica e Conhecimento do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNIOESTE, é proveniente a maioria dos textos que o presente livro compendia. Coligidos em sua forma mais elaborada, os escritos aqui

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Prefácio

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consignados constituem capítulos e informam, em caráter técnico-científico, o atual estado das pesquisas dos discentes de pós-graduação (mestrado e doutorado), de diversas instituições de ensino e pesquisa do Paraná e de outros estados do país, que tomaram parte naquela atividade acadêmica.

Recolha dos trabalhos apresentados durante o dia 5 de julho de 2017, a presente edição – que não se pretende como caderno de atas ou livro de anais – enfeixa em capítulos tais escritos sem fazer distinção entre temas e pensadores estudados, graus acadêmicos, vinculações institucionais ou filiação a orientadores. Elencados segundo a imparcial ordem alfabética, a única identidade considerada aqui – a mesma que justifica a presença desses articulistas na presente publicação – foi a vinculação ao trabalho fenomenológico sério e o ímpeto de cooperar com a divulgação desse modo de pensar em âmbito regional e nacional.

Ao fim deste prefácio – sem conceder que um demorado parágrafo final adie por mais tempo a leitura – aproveitamos para penhorar nossos agradecimentos ao GT de Fenomenologia da ANPOF, que, além de apoiar as iniciativas de pesquisa em fenomenologia desenvolvidas na UNIOESTE, serve de referência ao padrão de excelência por nós pretendido. Somos gratos ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNIOESTE – PPGFIL, que, sempre se comprazendo em ver o crescimento e a intensificação das pesquisas nessa matéria na UNIOESTE, mostra-se incansavelmente solícito em apoiar e fomentar as iniciativas de seus pesquisadores de fenomenologia. Ao fim, registramos gratidão à Editora Vivens, que, além de acolher de bom grado este título entre os de seu catálogo, muito agregou com a dedicação de atenção e de zelo em todas as etapas da edição.

Os organizadores

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I

O “CONCEITO DE TEMPO” NAS CONFISSÕES DE AGOSTINHO: UMA INTERPRETAÇÃO

SEGUNDO A FENOMENOLOGIA DE HEIDEGGER

Ademir Menin

Martin Heidegger (1889-1976) foi um filósofo que

dedicou toda a sua produção filosófica à incessante busca pelo sentido do ser. Nesse intuito, procura embasamento em pensadores do passado que já tinham enfrentado tal problema, verificando as respostas conseguidas por eles. Como a busca pelo sentido do ser envolve o secular problema filosófico do conceito de tempo, Heidegger passa em revista autores como Aristóteles e Agostinho, os quais fazem as suas reflexões direcionadas a explicar essa componente da vida humana. A leitura fenomenológica feita por Heidegger, em relação a esse tema, o leva a individuar em Agostinho uma importante posição, pois tal filósofo, o qual é também considerado um dos Padres da Igreja pela sua força de pensamento no intuito de dar bases filosófica ao cristianismo, falando do tempo na perspectiva da criação e da história da salvação cristã, explica esse conceito a partir de uma percepção interna ao sujeito.

Desde os primórdios da sua “carreira” filosófica, Heidegger procura desenvolver reflexões que possam ajudar a explicar tal problemática. O seu método é aquele da fenomenologia, herdado de seu mestre Edmund Husserl e desenvolvido de maneira nova através da aplicação de uma terminologia própria e inovadora, o que permitiu ao filósofo certa liberdade em trilhar estradas novas e destacar-se no

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estudo fenomenológico da ontologia, o que era latente na cultura filosófica do seu tempo.

Comentando o Livro XI das Confissões de Agostinho, Brachtendorf relata as principais fontes que influenciaram Heidegger em relação ao estudo do ser e, consequentemente, do tempo. Agostinho foi aquele que estendeu a reflexão sobre o tempo até à compreensão do mesmo como a essência mesma do homem. Essa seria uma explicação inédita na história da ontologia, pois a resposta à problemática do tempo torna-se uma questão “espiritual” e não mais “material” (BRACHTENDORF, 2013, p. 140).

Segundo Heidegger, a reflexão acerca do sentido do ser parou em Aristóteles, ou seja, o filósofo grego teria sido o último a debruçar-se sobre essa questão de maneira exaustiva, por quanto possa ser exaustiva para nós hoje a resposta a tal problema deixada por Aristóteles e discípulos peripatéticos e transmitida através dos séculos. Todo o esforço do filósofo grego impresso nos seus escritos que compõem a sua obra Metafísica, além das reflexões sobre o tempo na Física, deu a Heidegger a oportunidade de formular reflexões sobre toda a problemática da vida humana e do sentido do ser. Tais reflexões sobre a filosofia aristotélica ocupam Heidegger por muito tempo, como ele mesmo atesta. A conclusão de tal meditação filosófica sobre a questão do tempo é que o estagirita não vai além do tempo material, cronológico, externo ao ser humano quando fala do movimento do cosmos na sua obra Física. Heidegger procura algo a mais sobre esse problema: quer entender como é que o tempo é vivido pelo ser humano nas suas experiências internas, como fenômeno da consciência e se esse elemento contém algo que possa ajudar na busca pelo sentido do ser. Não encontrando essa solução em Aristóteles, o jovem Heidegger aprofunda a sua busca e volta-se em direção a outras fontes, na tentativa de encontrar algo que o auxilie em tal árdua tarefa. Nesse ponto é preciso evidenciar a importante característica do professor

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de Freiburg enquanto pesquisador, o qual não descarta nenhuma possibilidade histórica na tentativa de trazer esclarecimentos à preocupação hodierna em relação ao problema acima apontado; serve-nos como exemplo de pesquisador que procura avançar na busca pela verdade sem destruir o que já foi construído no passado e contido na memória da Humanidade.

Na sua obra Fenomenologia da vida religiosa, Heidegger se concentra no estudo da vida religiosa como importante fonte de explicação do fenômeno humano enquanto ser que busca continuamente um sentido para o próprio “estar nesse mundo”. As suas reflexões nos levam a um período histórico-filosófico geralmente pouco considerado, ou seja, o neoplatonismo e o agostinismo. Com o advento do cristianismo, a reflexão filosófica ficou bastante “teologizada”, o que levou a uma certa repulsa por parte da filosofia moderna a esse específico período da história da filosofia. Porém, Heidegger, com a sua aguçada capacidade reflexiva e não descartando nenhuma hipótese de solução do problema, adentra-se na reflexão sobre uma história de vida, sobre uma autobiografia de um autor cristão preocupado com uma reflexão apologética ao cristianismo, mas que, para o nosso filósofo, traz uma chave de leitura extremamente interessante sobre aquele que é o seu problema central: a busca pelo sentido do ser.

Dessa forma, Agostinho incide fortemente na reflexão heideggeriana sobre o ser, mas de modo específico sobre o problema do tempo, encontrado principalmente no XI Livro da obra Confissões do bispo de Hipona. Heidegger, fazendo uma leitura de tal obra, propõe uma “tradução” em chave fenomenológica das reflexões agostinianas sobre o tempo; tal tradução pode ser estendida a toda a obra referida de Agostinho, a qual é uma tentativa de explicar a própria vida humana a partir de um fenômeno em particular: a vivência e a experiência da consciência de uma pessoa preocupada em

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explicar a si própria o sentido da existência humana nesse mundo.

O que está em jogo no fato de o ser-aí humano ter arranjado um relógio antes de possuir relógios de bolso e relógios solares? Disponho eu do ser do tempo e me considero a mim junto ao agora? Sou eu mesmo o agora e o meu ser-aí o tempo? Ou, enfim, é tempo mesmo que em nós arranja o relógio? Santo Agostinho levou a questão até este ponto no livro XI de suas Confissões, ao questionar se o espírito mesmo é o tempo. E Santo Agostinho deixou a questão por aqui (HEIDEGGER, 1997, p. 15).

Entre outras coisas, essa leitura heideggeriana das Confissões reafirma a unidade da obra mesma, enquanto existe certa tendência, por parte de alguns estudiosos, de descartar os últimos quatro livros da obra como sendo uma descontinuidade em relação à autobiografia do santo proposta nos primeiros nove livros. Segundo o ponto de vista de Heidegger, os livros de X a XIII são a verdadeira conclusão da obra, a qual é toda centrada no homem, ou mais propriamente, na história de vida de um homem em particular, Agostinho, o que se torna muito significativo para o estudo fenomenológico da experiência humana.

Sempre ligado ao problema do tempo, Heidegger analisa as reflexões agostinianas expostas principalmente no capítulo X das Confissões, vale dizer, o problema da memória. A partir dessa questão, tem-se mais claramente a confirmação da tese heideggeriana de que o tempo deve ser lido em chave fenomenológica como uma experiência da consciência. O tempo não existe enquanto um ente em si mesmo, como o havia proposto Aristóteles, mas enquanto experiência interna do Dasein. A memória não é um passado existente por si, mas uma capacidade humana de trazer, para o presente, experiências vividas na consciência e gravadas no interior do próprio ser. Do mesmo modo, o futuro não existe, mas pode

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ser vivido antecipadamente através de projeções que o próprio ser estende em direção ao porvir com boas probabilidades de realização, auxiliado pelas suas capacidades mnemônicas de experiências já vividas pela consciência.

Portanto, tratando-se da experiência de vida de Agostinho enquanto ser humano encarnado em uma específica realidade existencial, como o próprio autor das Confissões relata, inaugurando um gênero literário inédito na época, tem-se uma leitura fenomenológica da vida humana, ou seja, das experiências afloradas da consciência. A partir da própria vivência, Agostinho tenta explicar a si próprio o sentido mesmo da vida humana:

A questão acerca do que é o tempo levou nossa observação para o ser-aí, se por ser-aí se entende o ente em seu ser que conhecemos como vida humana; este ente em seu ser cada vez (Jeweiligkeit) de seu ser, o ente que cada um de nós mesmo é, que atinge a cada um de nós no enunciado fundamental: eu sou (HEIDEGGER, 1997, p. 17).

Essa chave de leitura é tomada por Heidegger

enquanto é de suma importância para o método fenomenológico: parte-se de uma experiência de vida concreta, daquilo que está mais próximo ao ente (Dasein), pois só esse pode ser o ponto de partida para toda a busca pela explicação do sentido da vida.

Na interpretação de Heidegger, a reflexão de Agostinho do ser humano em relação ao tempo é uma visão fenomenológica, pois o tempo é visto a partir de uma vivência interna, a partir da consciência. Essa experiência “espiritual” do tempo vivida pelo homem Agostinho, cheio de angústias e dúvidas em relação à vida, é vista por Heidegger como a solução ao problema do tempo. Esse conceito de tempo não cronológico, mas psicológico, é uma interpretação única na filosofia antiga e medieval, pois se tem pela primeira vez em Agostinho o conceito do tempo não como um ente em si, mas

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como uma componente radicada no próprio ser humano, ou no Dasein, como diria Heidegger alguns séculos mais tarde.

Além do mais, Heidegger não vê o início do tempo com a criação de Deus ex nihilo, como em Agostinho, pois para ele o tempo deve ser visto a partir da própria temporalidade; precisa-se entender o tempo a partir do próprio tempo e não a partir da eternidade. Porém, a característica comum entre os dois pensadores, é que ambos entendem essa componente da vida humana como uma experiência interna, ou seja, uma vivência da consciência. Dessa forma, não existem tempos, mas unicamente o momento presente fugaz, o qual, ajudado pela memória e pela projeção para o futuro, torna todas as experiências do sujeito presentes à consciência. A metáfora agostiniana do “palácio da memória” (Confissões X, 8) adquire grande importância na compreensão dessa dinâmica da consciência humana.

Em conclusão, na visão de Heidegger, o tempo é uma componente estrutural do ser. Não é um existente em si, mas uma estrutura que sobrevive juntamente com o próprio ser. Neste ponto, a mudança de rota impressa por Heidegger em relação à pergunta pelo tempo adapta-se otimamente a esta reflexão: não mais “o que é o tempo?”, mas “quem é o tempo?”. A resposta a esse questionamento pode-se encontrar juntamente com a resposta à própria pergunta pelo sentido do ser. REFERÊNCIAS

AGOSTINHO. A doutrina cristã. São Paulo: Paulus, 2002, Col. Patrística.

___________. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos; A. Ambrósio de Pina. 9.ed. Petrópolis RJ: Vozes, 1988.

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AUGUSTINE, Confessions – Books IX-XIII. Trad. William Watts. Cambridge: Harvard University Press, 1997.

BRACHTENDORF, J. Confissões de Agostinho. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo, SP: Loyola, 2013.

BROWN, P. Santo Agostinho: uma biografia. Trad.: Vera Ribeiro, Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2017.

CONRAD-MARTIUS, H. El Tiempo. Trad. Antonio Rodriguez-Huescar. Madrid: Revista de Occidente, 1958.

COSTA, M. R. N. 10 lições sobre Santo Agostinho. 3 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

COSTA, V. Heidegger. Trad.: Y. M de Campos Teixeira da Silva, São Paulo: Ed. Ideias & Letras, 2015.

GILSON, É. Introduction a l'étude de Saint Augustin. Paris: Vrin, 1929.

HEIDEGGER, M. Il concetto di tempo. A cura di Franco Volpi. Milano: Adelphi, 2017.

___________. Ontologia – Hermenêutica da facticidade. Trad. Renato Kirchner. Petrópolis: Vozes, 2012.

___________. Ser e Tempo. Trad. Fausto Castilho (edição bilíngue alemão/português). Campinas: UNICAMP; Petrópolis: Vozes, 2012.

___________. História da filosofia – De Tomás de Aquino a Kant. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2009.

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___________. Fenomenologia da vida religiosa. Trad. Enio Paulo Giachini; Jairo Ferrandin, Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

___________. O conceito de tempo. In: Cadernos de tradução. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: USP, 1997, n˚ 2, p. 7-39.

KAHLMEYER-MERTENS, R. S. 10 lições sobre Heidegger. Petrópolis-RJ: Vozes, 2015.

KIRCHNER, R. Heidegger: da filosofia fenomenológica à fenomenologia da religião. Numem: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 17, n. 2, pp. 135-168, jul./dez. 2014.

NOVAES, M. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho. São Paulo: Discurso Editorial, 2007.

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II

BERGSON E O RETORNO À EXPERIÊNCIA

Adeilson Lobato Vilhena Bergson, no Ensaio, sugere dissipar a confusão

estabelecida pelos parâmetros científicos que tinham como pretensão exteriorizar a consciência, campo das vivências puras. As questões levantadas pelo filósofo francês são genuinamente ontológicas, já que preconiza a ideia da experiência mesma naquele campo como “vivência do real”. Assim, o que requer Bergson é que um olhar atento às vivências interiores seja priorizado. Dessa forma, diz-nos Tsukada (1995, p. 38): “A intuição opõe-se às doutrinas provenientes da inteligência [...] E essas doutrinas são o determinismo, o paralelismo psicofisiológico, o mecanismo e o finalismo radical no evolucionismo, ideia do nada e de desordem”. Essa oposição é necessária porque aquelas doutrinas obstruem, com conceitos intelectuais, o campo de tais vivências ou, melhor, deformam a realidade em sua essência em prol do espaço.

Bergson está preocupado em explorar, via intuição, os graus mais profundos da consciência. Ele, contudo, não hesitou em se posicionar contra o associacionismo e determinismo psicológico que buscavam constantemente ornamentar a consciência de fragmentos provenientes do campo sensível. O que está em questão é a eliminação da duração e seu caráter de liberdade. Pelo menos é isso que nos faz entender quando diz:

Mas, ao invadir a série dos nossos estados psicológicos, ao introduzir o espaço na nossa concepção da duração,

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corrompe na própria fonte, as nossas representações da mudança exterior e interior, do movimento e da liberdade (BERGSON, 1988, p. 55).

O sentido de uma experiência real em Bergson,

portanto, aparecerá mediante os entraves metodológicos por ele encontrados nas ciências psicológicas. Gillouin (1928, p. 65-66), acerca disso, corrobora esse posicionamento:

O erro inicial do determinismo psicológico, gerador de muitos outros, consiste, pois, em substituir sem cessar ao fenômeno concreto, que se passa no espírito, a reconstituição artificial que dá uma filosofia superficial. Uma psicologia que se limita a um procedimento aos

moldes da linguagem se encontra longe de possibilitar uma experiência fenomênica de realidades interiores.

Não é aleatório o embate de Bergson com os paradigmas psicológicos de orientação positivista, já que ele concebe a psicologia como sendo bem mais que uma mera ciência que vê a consciência como algo que pode ser mensurado. Para nosso autor, a psicologia “[...] é tão-somente uma abertura à ontologia, trampolim para uma ‘instalação’ no Ser [...]”, nota Deleuze (1999, p. 6) referindo-se à concepção bergsoniana. O problema que se segue é que a psicologia, sendo germinada pela antiga metafísica, também não se acercou dos fenômenos reais, quer dizer, da essência daquilo que realmente constitui o acontecer. Bergson pensa uma psicologia nos seus aspectos mais originários. Trata-se de uma psicologia que viabilize a experiência no campo da consciência, sem que, no entanto, fosse interpolada pela cultura do pensamento metafísico e associacionista. Assim, portanto, um retorno à experiência mesma das coisas é operado primeiramente, em Bergson, por um viés psicológico, não no sentido estrito de uma psicologia técnica, de um psicologismo que põe em risco o sentido vivo do que

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Bergson e o retorno à experiência

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se apresenta no interior da consciência. A relação de Bergson com a psicologia é descrita de uma forma coesa por Diamantino Martins (1946, p. VIII): “A descida bergsoniana às profundidades psicológicas não se opera através de convulsões violentas, mas de sondagens friamente analisadas, fenomenologicamente”.

Essa descrição faz ver que o tratamento de Bergson com os dados da consciência se mostra, sem dúvida, diferenciado, pois, não se enquadrando a um psicologismo qualquer, sua visão busca tocar as reais manifestações dos estados de consciência, que, por via intuitiva, contém a experiência da concretude e do dinamismo que compõem o todo de nossa personalidade.

Na espreita dessa questão está o próprio sentido de vitalidade, na qual Bergson busca integrar a experiência humana, visto que há uma estreita relação de uma consciência particular com a consciência da vida enquanto tal. Digamos de outro modo, a descida à nossa própria consciência será operada mediante uma psicologia originária que, por sua vez, desempenhará o papel de portal à experiência de nosso ser. Mediante o contato consigo mesmo, como em um despertar da consciência, a experiência, que era subjetiva, se amplia a uma experiência de um ser em geral, ou seja, da experiência de uma consciência que se encontra subjacente ao próprio pulsar vital. Enriquecendo essa discussão, Bento Prado nos faz ver a relação bergsoniana com o ser:

Visando “reintegrar o homem no circuito vital”, Bergson empresta ao ser uma dimensão além do mero ser pensado. É como se a profundidade deixasse de ser, como para Lachelier, indicativa da atividade do pensamento, e passasse a indicar a espessura da experiência em sua superabundância (PRADO JÚNIOR, 1988, p. 203).

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A rica contribuição de Prado Júnior tonaliza o sentido de experiência que perpassa a obra bergsoniana. A “superabundância” da experiência ali expressada põe em foco o ser-ele-mesmo, fenômeno que o filósofo francês insiste em constatar pelo uso significativo da intuição. Não obstante, trata-se do ser pensado, isto é, a apropriação do ser pela atividade intuitiva que permite vivê-lo em sua mais pura manifestação, sem deixar de levar em conta que seu terreno é, em estreito sentido, o universo da consciência.

Desse modo, o caminho para pensar a dimensão mais original da consciência é, portanto, o intuitivo. Uma psicologia filosófica essencialmente intuitiva é, no pensar de Bergson, a que possibilita a abertura do real. Trata-se da via de habitação na casa do ser, que, por conseguinte, nos instala em seu interior e nos intima a vivenciá-lo em sua inteireza, de coincidir com os fenômenos reais da consciência. Dessa forma, é possível pensar a inexaurível experiência como abertura para uma reflexão no coração do pensamento bergsoniano que reluz traços muito próximos de uma fenomenologia, já que as realidades que se passam no interior da consciência devem ser vividas, experimentadas naquilo que elas possuem de próprio: o tempo, a duração e a mobilidade. Tais realidades são puros acontecimentos, possibilidades reais que jorram em um rio de liberdade.

Segue-se daí que a justa conexão entre o ato intuitivo e o ser, expressa o sentido real da experiência, isto é, sua autenticidade cintila uma afeição ao terreno pré-reflexivo de maneira que o ser se qualifica como habitação de um pensamento imediato. Trilhando esse raciocínio, trazemos aqui a conveniente exposição de Prado Júnior que indica o ser como ponto de partida do pensamento filosófico. Assim nos faz ver que

Esse ponto de partida será a experiência do Ser, que se dá como horizonte de toda reflexão: a filosofia não tem de

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construir o Ser ou fundá-lo em não sei que base originária. Ele é o lugar onde nós ‘existimos, vivemos e circulamos’ (PRADO JÚNIOR, 1988, p. 204).

Disso conclui-se que a expressão mais originária da

filosofia se fundamenta na experiência constada no ser-ele-mesmo. Não se trata, pois, de atribuir uma significação ao ser, mas de interagir com ele e de perceber sua intrínseca vitalidade, que, cada vez mais, se amplia na medida em que nele nos inserimos. Ou, se preferimos um termo mais expressivo, dizemos que o mistério do ser se faz conhecido uma vez que o habitamos pelo ato intuitivo.

Em resumo, o estatuto ontológico da intuição, como acima evidenciamos, estreita-se com o significado da experiência ─ experiência essa que se efetiva mediante a dissolução do campo da aparência sensível, mas que abre o real como acontecimento próprio e na contramão do conhecimento puramente intelectivo. Sobre isso, nota o filósofo: “Desfazendo o que essas necessidades fizeram, restabeleceríamos a intuição em sua pureza primeira e retomaríamos o contato com o real” (BERGSON, 2006a, pp. 215-216). Deleuze (1999, p. 18) acrescenta: “A intuição nos leva a ultrapassar o estado da experiência em direção às condições da experiência”. No sentido bergsoniano, a experiência encontra-se em uma profundidade ontológica, haja vista que é perpassando o interesse da razão especuladora que o contato com o real se torna possível. Novamente se posiciona Bergson (2006a, p. 215):

Seria ir buscar a experiência em sua fonte ou, melhor, acima dessa virada decisiva em que ela, infletindo-se no sentido de nossa utilidade, torna-se propriamente experiência humana.

Em outras palavras, entende-se que, mediante a

conciliação da intuição com a duração, brota o sentido da

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experiência. Aqui, em termos bergsonianos, nos aproximamos de um âmbito que possui como expressividade a ideia de "manifestação", que, em linhas gerais, se traduz por um acontecer real em sua base mais profunda. Deve-se, entretanto, levar em conta que é, pois, por um contato íntimo com a essência das coisas que Bergson formula o princípio de uma conexão com o real. Trata-se de uma exploração no âmbito mesmo dos fenômenos vivos que emanam das profundidades do ser. A intuição é, portanto, o que possibilita a experiência viva e concreta; por intermédio dela o real se abre e deixa-se conhecer. Se podemos falar de uma descrição mais efetiva do real em Bergson, é, no entanto, por via intuitiva que tal condição se torna possível. Martins corrobora esse entendimento:

Temos, pois, Bergson de posse do método da intuição, debruçado, a interrogá-la sobre a torrente da sua vida interior; será a sua atitude em face da vida e do universo. O que lhe interessa não é a vida vivida, é o viver; não são os pensamentos, é o pensar; não são as coisas criadas, é o ato mesmo de criar; não é o verso do poeta ou o risco do artista, é a própria inspiração, é o gesto sentido interiormente pelo desenhista; não são, numa palavra, as coisas feitas, é o fazer das coisas, é o devir, mas o devir sentido interiormente (MARTINS, 1946, p. 25).

O intérprete percebe que a intuição representa, na

filosofia bergsoniana, uma abordagem simplesmente descritiva da realidade externa tornando, sua filosofia vaga e cega. Pelo contrário, o norte que se delineia a partir da proposta de Bergson, revigora o sentido do acontecimento no que toca o que é mais essencial na realidade. Desse modo, observa-se que é uma tentativa de superação de qualquer presunção filosófica ou científica de objetivar ou “coisificar” o sentido do vital.

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Pelo gesto acenado, desde já chama a atenção o quanto o pensamento de Bergson se mostra permeado de traços fenomenológicos, pois sua abordagem aponta para um acontecer revestido sempre de possibilidade. Isso implica dizer que aquele gesto não opera por uma forma analítica e descritiva, mas sim, pela esfera da sensação e da vivência.

Isso realoca Bergson do simples plano teórico para situá-lo no campo dimensional das manifestações livres do real. É na liberdade desses acontecimentos que o enfoque bergsoniano se centra e os vivencia. Nesse sentido, talvez não seja forte demais dizer que a filosofia de Bergson se equipara a um diário pessoal no qual ele confessa suas experiências mais íntimas na torrente do real: “Bergson não define; descreve. Quer fazer ver; quer fazer experimentar o que ele experimenta” (MARTINS, 1946, p. 27).

Sob esse prisma, a intuição bergsoniana se delineia, primeiramente, por meio de uma descrição de acontecimentos interiores. Bergson caracteriza esse conjunto de acontecimentos, como vimos, com o termo duração (durée). É precisamente em vista da duração que a intuição, enquanto método será por Bergson engendrada. Ele a configura como um providente método pelo qual abrimos uma fissura na crosta que se solidificou sobre nossa consciência, impedindo de acessarmos o real. Ora, descer às profundezas de nossa consciência é, todavia, o caminho trilhado pela intuição filosófica. De outra maneira, trata-se de realizar um contato muito próprio com tudo aquilo que nos constitui como pessoa, tal como a sucessão de nossos estados interiores, que se interpenetram, sustentando o que vem a ser chamado de "eu". Para isso, o filósofo descreve:

O que encontro por baixo desses cristais bem recortados e desse congelamento superficial é uma continuidade de escoamento que não é comparável a nada daquilo que vi escoar-se. É uma sucessão de estados, cada um dos quais

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anunciando aquilo que a ele se segue e contendo aquilo que o precede. A bem dizer, só constituem estados múltiplos quando já os ultrapassei e me volto para trás para observa-lhes o rastro. Enquanto os experimentava, estavam tão solidamente organizados, tão profundamente animados por uma vida comum que eu não saberia dizer onde um deles acaba, onde o outro começa. Na realidade, nenhum deles começa nem acaba, mas prolongam-se todos uns nos outros (BERGSON, 2006b, p. 189).

O retorno à experiência evidencia-se amplamente,

como podemos observar, quando atravessamos as cortinas que encobrem a integridade das manifestações que se passam no interior de nossa consciência. Ali, o encontro com as realidades que pulsam não pressupõe a postura de um espectador em relação ao espetáculo. Pelo contrário, o espectador é convidado a fazer parte da cena. A experiência relatada por Bergson é de uma vivacidade ímpar que vem afirmar-se como duração. Trata-se de um contato conosco mesmos, o escoar completo de nossa existência, que constantemente se faz afirmando sua liberdade.

Para tornar mais preciso o movimento do pensamento intuitivo em relação à vivência da duração, tomamos como exemplo a imagem1 do elástico apresentado por Bergson. Nessa descrição, o autor nos convida a pensar tal imagem distendida e a fixarmos nossa atenção não na linha enquanto

1 Mesmo tendo consciência de que a representatividade da intuição por determinada imagem, por si mesma, é estranha à proposta bergsoniana de método, já que a ideia de imagem logo nos remete à noção de algo empírico, não sendo, pois, suficiente para descrever o sentimento original que temos de nossa duração. Há, no entanto, aquelas, como nota Bergson, que podem auxiliar-nos na compreensão da realidade pretendida: “Nenhuma imagem substituirá a intuição da duração, mas muitas imagens diversas, tomadas de empréstimo a ordens de coisas muito diferentes, poderão, pela convergência de sua ação, dirigir a consciência para o ponto preciso no qual há uma certa intuição a apreender" (BERGSON, 2006b, p. 192).

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linha, mas sim, em sua ação enquanto contração, ou seja, em percepcionar seu estender-se. Da mesma maneira, podemos ter a experiência da duração: a contração de seus estados múltiplos que se interpenetram incessantemente. Ali estaríamos de posse, via intuição, do estado de atualização, de seu prolongamento essencial. Bergson, em vista disso, ajuíza:

Libertemo-nos por fim do espaço que subtende o movimento para só levar em conta o próprio movimento, o ato de tensão ou de extensão, enfim, a mobilidade pura. Teremos dessa vez uma imagem mais fiel de nosso movimento na duração (BERGSON, 2006b, p. 191).

Em linhas gerais, entende-se que a duração,

inicialmente vinculada ao impulso que conduz à contração, ao mesmo tempo é criação: trata-se de um fazer-se constantemente. A intuição, por outro lado, se insere naquele fazer-se não perdendo de vista a riqueza cromática peculiar à duração, isto é, vivem-se as multiplicidades que se conjugam no ato de criação, pois,

[...] ao passo que me reinstalo na duração por um esforço de intuição, percebo imediatamente de que modo ela é unidade, multiplicidade e muitas coisas mais (BERGSON, 2006b, p. 196).

Indiscutivelmente, a intuição enriquece a filosofia

bergsoniana, isto é, brinda-a com um brilho de inovação na medida em que experienciar significa intuir, ou seja, a intuição é, portanto, uma maneira de penetração na duração: “Nela penetraremos, no entanto, e só pode ser por meio de uma intuição”. E, para aqueles que se questionam, sobre a validade de um conhecimento, absoluto, Bergson argumenta, ainda, em favor da intuição: “Nesse sentido, um conhecimento interior, absoluto, da duração do eu pelo próprio eu é possível” (BERGSON, 2006b, p. 196).

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No Ensaio, Bergson nos apresenta a duração, bem como abre caminho possível para a intuição filosófica. Já logo no início da segunda parte da introdução de O Pensamento e o Movente, ele declara ter chegado à intuição: “Essas considerações iniciais sobre a duração pareciam-nos decisivas. Gradualmente, fizeram-nos erigir a intuição em método filosófico” (BERGSON, 2006b, p. 27). Assim, a intuição teorizada por ele, como já aludido, privilegia, em primeiro lugar, os estados interiores. É exatamente nesse domínio que temos posse de uma experiência singular de nosso estado de alma. Torna-se necessário esclarecer que o singular aqui referenciado é constituído de acontecimentos múltiplos, ou seja, uma totalidade heterogênea formada numa fluidez ininterrupta de acontecimentos passados aliados ao presente. Descreve o filósofo:

A intuição de que falamos, então, versa antes de tudo sobre a duração interior. Apreende uma sucessão que não é uma justaposição, um crescimento por dentro, o prolongamento ininterrupto do passado num presente que avança sobre o porvir. É a visão direta do espírito pelo espírito. Nada mais de interposto; nada de refração através do prisma do qual uma das faces é espaço e a outra é linguagem. Ao invés de estados contíguos a estados, que se tornarão palavras justapostas a palavras, eis a continuidade indivisível e, por isso mesmo, substancial do fluxo da vida interior (BERGSON, 2006b, p. 29).

Nessa perspectiva, a duração talvez seja o conceito

que melhor expressa o sentido da experiência, pois se trata de uma conjugação de acontecimentos (prolongamentos ininterruptos) que nos sustenta como existentes privilegiados, na medida em que vivenciamos a heterogeneidade que nos constitui como absoluto. Quer dizer: temos posse de nosso “eu” manifestado pela totalidade da qual nos tornamos existentes. A intuição na qualidade de uma atividade do

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pensamento (espiritual) nos insere em nossa própria substancialidade, tornando-nos participantes do plano fenomenal, cuja posse é, em si, já uma abertura para a totalidade em geral.

Apesar de a intuição ser a chave que possibilita acesso à realidade em si, é a duração que se apresenta como o absoluto, o que nos faz ver como esses dois termos ─ intuição e duração ─ estão intimamente conjugados na filosofia bergsoniana. É na duração, por meio da intuição, que a experiência, em sua base estreitamente originária, se torna possível. Bergson, contudo, ao reconstituir a metafísica em novas bases, visa, com seu projeto, identificar o princípio de identidade na duração, ou seja, conceber a duração como condição existencial na qual sua manifestação já conjuga à heterogeneidade concreta do eu. Bergson exemplifica isso com a analogia de uma melodia, cujas partes são ininterruptas:

É, dizíamos, a continuidade indivisível e indestrutível de uma melodia onde o passado entra no presente e forma com ele um todo indiviso, o qual permanece indiviso e mesmo indivisível a despeito de tudo aquilo que a ele se acrescenta a cada instante ou, melhor, graças àquilo que a ele se acrescenta (BERGSON, 2006b, p. 79).

A vivência desse “eu” revela o quanto estamos

submersos na totalidade, isto é, mostra que participamos do acontecer fenomênico em geral. Numa palavra, a intuição de nós mesmos nos leva a intuirmos o elã da totalidade presente em nós. Fica patente, portanto, que esse movimento operado por Bergson de transição da intuição de uma consciência particular à intuição de uma consciência em geral permite afastar certo risco possível de a teoria desembocar num solipsismo.

Digamos, no entanto, que, do real, na qualidade de movimento absoluto, traduzido por duração, dele se exclui

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toda ideia de justaposição e, consequentemente, de exterioridade. Devemos, contudo, entender que, de fato, a intuição possui significação mais em função do tempo que do espaço. A intuição sugerida por Bergson, nessa acepção, é o que nos põe imediatamente na qualidade pura daquele acontecer. Bergson vitaliza o sentido de duração, uma vez que apresenta a intuição como forma de acesso que não comporta mediação. Não se trata de uma descrição por descrição, mas é o sentido mesmo da vivência que, naquele âmbito, vem a ser enaltecido.

O método intuitivo se propõe, em estreito sentido, servir de abertura ao real, isto é, proporciona a experiência mesma das coisas. Desse modo, o projeto bergsoniano se encaminha, de uma maneira significativa, para certo desnudamento da realidade, no sentido de que ela se mostre enquanto tal. Assim, entendemos que “[...] tal é a intuição que temos do espírito quando afastamos o véu que se interpõe entre nossa consciência e nós mesmos” (BERGSON, 2005, pp. 295-296). A dimensão da intuição assume aqui um caráter desvelador: “afastar o véu” soa como o movimento de deixar vir, ou seja, aponta para o significado muito próximo de uma alethéia, na qual a verdade apareceria em sua nudez. Trata-se de uma condição transcendental. Cabe, porém, esclarecer que esse gesto transcendental não implica um desligamento da imanência. Pelo contrário: consiste em uma maior inserção para se experienciar o que tem de mais vivo na realidade.

O real, na perspectiva bergsoniana, escapa, inteiramente, ao que aparenta ser sob um prisma teórico-conceitual, difuso, por exemplo, na metafísica tradicional ou até mesmo no cientificismo moderno. De outra maneira, nossa percepção da realidade, em larga medida, é orientada para o plano da aparência pura e simples, estático, em sua mais comum definição. Isso porque nossa atenção é permeada pela rigidez racional de lidar com o que é utilitário.

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O real, em sua totalidade, é descrito por Bergson da seguinte forma:

O que é real não são os “estados”, simples instantâneos tomados por nós novamente ao longo da mudança; pelo contrário, o fluxo é a continuidade de transição, é a própria mudança. Essa mudança é indivisível, ela é mesmo substancial (BERGSON, 2006b, p. 10).

Em outras palavras, a mudança, em sentido estrito, é

vislumbrada pelo intuicionista francês como a própria natureza das coisas. Assim, a empresa de Bergson, como restabelecimento da experiência real, enraíza-se, então, no solo movente mediante a intuição, a fim de que se vivencie a fluidez substancial na qual estamos, essencialmente, submergidos. Fechar os olhos para a mutabilidade que nos envolve é atender aos apelos evasivos da inteligência, que, por sua natureza, volta sua atenção à estaticidade. Ora, uma filosofia que se oriente na busca do fundamento do existir deve, portanto, tirar o véu que encobre o real, lançando-nos no burburinho do movimento, pois “[...] a realidade, intuída em sua essência, se mostra como puro movimento; puro porque, quando intuímos, nosso pensamento se move junto com o ser” (ROSSETTI, 2004, p. 54). Há aqui, noutros termos, uma absolutização do movimento como substrato da realidade.

A coisa mesma, em sua estrutura ontológica, mostra-nos Bergson, é puro movimento. A questão, porém, é que o acesso a esse movimento se opera pelo ato de intuição, de maneira que essa já segue o curso da mobilidade das coisas.

O movimento da intuição operado por Bergson tem uma estrema relevância, uma vez que não se trata, tão somente, de indicar que, por detrás do que aparece, existe uma essência, mas sim, estabelecer condições de maneira tal que o próprio ser se mostre e quem o perceba o vivencie em sua

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pureza. A intuição configura-se, a esse modo, como condição necessária à aparição do real. Isto é: a manifestação do fenômeno encontra-se vinculada ao esforço intuitivo de ter contato com a natureza viva das coisas, uma vez que, em sentido amplo, pensamos tendo como parâmetro o espaço objetivo, deixando, pois, de perceber a própria realidade em sua manifestação. Bergson, entretanto, busca desconstruir o “repertório conceitual” produzido por uma racionalidade estreita que nos impede de ver o próprio brotar do real. É em vista disso que ele se posiciona: “Despertemos a crisálida. Restituímos ao movimento sua mobilidade, à mudança sua fluidez, ao tempo sua duração” (BERGSON, 2006b, p. 11).

A abertura do real, em larga medida, parece apresentar certa peculiaridade fenomenológica na filosofia de Bergson. É que o significado da intuição se acopla com a ideia de experiência, pois, ao dizer que o processo da realidade é o movimento, afirma-se também que se trata de um fluxo constante, sentido e vivenciado de maneira direta em nós mesmos, nos termos de uma duração. A duração em si pode ser vista como o conjunto das manifestações reais. Quer dizer: o real, neste caso, se doa à atitude intuitiva, deixando-se ver e vivenciar. A intuição, como já evidenciado, torna-se uma maneira pela qual habitamos, por meio de um estilo muito próprio, a heterogeneidade da duração. De uma forma sintética, diríamos que é por intermédio da intuição que se dá a experiência do acontecer vital, o fazer-se, o jorrar da criação no caminho da liberdade. Assim, a experiência, simplesmente subjetiva, torna-se uma experiência fenomenológica no que possibilita sentir a totalidade em sua imediatez: atualização do passado, isto é, se reveste do presente.

Assim, a intuição atingiria o absoluto e dele teria um conhecimento sem vestígios de fragmentações. Melhor dizendo, a totalidade original se abre em sua pureza, pois, sendo a intuição um modo de conhecimento desinteressado, o movimento operado ali, em última análise, não é só do

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sujeito em relação ao objeto, isto é, não há estreitamente passividade da parte da realidade inquirida. Muito pelo contrário, deve se levar em conta suas manifestações próprias, de modo que se entenda que a abertura, ali observada, é um processo necessário para aquilo que se chamará de fusão entre intuição e realidade.

No que compete a essa fusão, a totalidade se manifesta em sua imediatez sem as interpolações intelectivas que, de antemão, visam um objeto de seu interesse, ou seja, uma busca prática e utilitária que obstrui o fluxo real da consciência. Diferentemente, a pura duração é perceptível, uma vez que se desconstrói o que corriqueiramente encobre as vivências puras, tornando, portanto, oculto, sob o véu da inteligência, o real. É nessa medida que a intuição possibilitará a abertura do real, ultrapassando o formalismo da inteligência, para coincidir com o próprio acontecer.

Conhecer via intuição implica ter uma experiência real da duração em seus aspectos originários. Para tanto, a superação de uma noção de espaço objetivo que se põe como obstáculo dessa relação é, sem dúvida, a tarefa de filosofia da intuição. A abordagem bergsoniana não poupou esforços de se ocupar dessa premissa secular, enfatizando o empecilho que ela representa à experiência concreta.

A intuição é, portanto, o meio de ultrapassar o ideal naturalista do espaço homogêneo, mas, por ela, nossa percepção das coisas não é apenas percepção espacial; tal percepção é o que nos possibilita uma experiência concreta da duração. É sob esse prisma que a experiência da duração, em estreito sentido, atinge seu mais alto grau, tornando-se propriamente uma experiência por excelência, já que suas qualidades são, em alta medida, perpassadas pelo ato intuitivo; ato esse vivido em sua intensidade própria ao incluir o devir, que consiste na alma das coisas.

O que está no rastro desse raciocínio é a ideia fundamental de experiência que norteia o sentido da vivência

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autêntica da duração, ou seja, a experiência de seus aspectos mais elementares, os que compõem, tanto o eu, como o fundamento ontológico da existência. É assim que o tempo se faz mobilidade. Digamos de outra forma, a abertura nos permite a percepção da torrente da vida como tal. Trata-se, enfim, de coincidir nossa duração com a duração do existir em geral, intuir os graus mais profundos do acontecer vital.

A possibilidade de ver na experiência da consciência, fruto da filosofia intuitiva, certos elementos que indiquem um solipsismo não surte efeito na filosofia de Bergson, justamente pelo fato de a experiência do real não se limitar a uma experiência subjetiva. O foco se concentra mesmo no real como totalidade na qual a experiência de uma duração pessoal naquilo que ela tem de absoluto é, antes de mais nada, uma abertura para pensar o todo da existência e sua manifestação mais eminente. Assim, a intuição passa a constituir um novo modelo operante de se fazer filosofia em tudo o que ela tonaliza o que se entende por experiência vivida.

Com base no que foi visto, mesmo que tenhamos consciência de que o trabalho de Bergson se centra na reabilitação da metafísica como um “chão concreto”, vale observar que elementos próprios da fenomenologia são, por ele, frequentemente, trabalhados por vias intuitivas, comportando, assim, a experiência originária da duração.

Levando em consideração aquela relação, observamos que, em Bergson, encontramos a necessidade de a consciência vivenciar a si mesma, de ultrapassar os quadros intelectuais, tornando exequível, por um esforço intuitivo, ter contado com sua multiplicidade. Uma espécie de redução é visível na teoria bergsoniana já no Ensaio quando Bergson descreve:

Mas, à medida que se escava abaixo desta superfície, à medida que o eu volta a si mesmo, também os seus estados de consciência cessam de se justapor para se penetrarem,

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fundirem conjuntamente, e cada qual se colorir com a cor de todos os outros (BERGSON, 1988, p. 115).

Uma espécie de esvaziamento intelectual (suspensão

do juízo) para ter contato com a realidade mesma da consciência é, em última instância, o ponto de partida da intuição bergsoniana. Dizendo de outra maneira, uma consciência que volte a si mesma configura um campo fenomenal no qual a multiplicidade de acontecimentos manifesta o todo indivisível do eu. É nesse sentido que podemos acercar-nos de um esforço de ver, na filosofia bergsoniana, no ato da intuição encontrar a duração, uma espécie de epoché aos moldes husserlianos.

Lembremos que a menção sobre uma possível fenomenologia em Bergson tem, de momento, como propósito apenas incitar o leitor a reconhecer que, na abordagem da duração bergsoniana, há mais que uma simples exposição de conceitos. Há, sim, uma experiência fundamental uma vez que o papel da intuição é levado a cabo de maneira significativa. O que nosso trabalho até aqui realizado põe à mostra, é a possibilidade aberta no sentido de se traçar um roteiro que nos parece promissor, ou seja, de redimensionar a obra de Bergson via uma “perspectiva fenomenológica”, quanto ao estatuto do real. Há um certo “retorno” bergsoniano “às coisas mesmas”, ou melhor, um retorno à experiência do real.

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___________. A evolução criadora. Trad. Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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III

UM OLHAR SOBRE O FENÔMENO DA AFASIA: MERLEAU-PONTY, LEITOR DE GOLDSTEIN1.

Andrinea Cordova da Rosa

Este ensaio pretende explorar a abordagem de

Merleau-Ponty acerca do estudo relativo ao sintoma afásico. A este propósito, trazemos, à tona, a importante figura do neurologista alemão Kurt Goldstein (1878-1965) que realizou um contributo significativo no estudo clínico acerca dos distúrbios de linguagem.

Silva (2012, p. 135), reconhecendo o caráter valorativo da obra de Goldstein, observa que esta “[...] parece projetar não só com relação às pesquisas clínicas de início de século, mas, sobretudo, no contexto da tradição fenomenológica emergente, um contributo decisivo”.

O legado goldsteiniano é creditado também por Duane Davis (2015) ao afirmar que, Goldstein figura, por meio de suas pesquisas, como um “subversivo”, pois lançou um olhar para algo que não era “pensando” pelas neurociências e medicina em relação às patologias do Século XIX2. Neste período, quando se fala em consciência ainda o faz sob uma ótica eminentemente biológica.

1 As traduções de língua estrangeira são de responsabilidade da autora desse artigo. 2 No artigo de Silva (2012) intitulado “A Estrutura do Sentido: Goldstein e Merleau-Ponty”, o autor versa sobre a influência da Gestalt na literatura merleau-pontyana, e também sobre a compreensão dos distúrbios de linguagem a partir dos estudos clínicos de Kurt Goldstein, contrapondo-se ao localizacionismo, concepção do fisiologista Paul Broca (1824-1880), modelo vigente para a neuropatologia na literatura médica do final do século XIX.

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No cenário de pesquisas científicas, alcança destaque, sobretudo entre os franceses, a teoria de Paul Broca (1824-1880). Segundo ele, a patologia afásica está relacionada à lesão no córtex cerebral que afetaria a linguagem, resultando em uma disfunção e dificuldade em nomear objetos, ou relacionar categorias. Esta posição clínica ficou conhecida como teoria da localização cerebral. A doutrina tem o intuito de legitimar que nossa consciência pode ser explicada por meio de seu funcionamento cerebral tal qual se explicam os eventos físicos; numa palavra, cada região corresponde a uma função específica. Nessa perspectiva, o cérebro nada mais se apresenta como um centro localizador de ações que afetam o corpo. Os psicólogos experimentais, e até mesmo os neuropsiquiátras, agiam dentro de uma tendência calcada nesse ideal de cientificidade. Sob esta ótica, a ciência tinha a palavra última em relação aos eventos internos e externos. Conforme tal concepção, para empregar uma metáfora que se tornou usual, o cérebro pode ‘excretar emoção’ da mesma forma que o fígado secreta a bílis. A consciência se define como uma substância que eu posso simplesmente examinar, dissecar: ela se torna, em rigor, objeto de um experimento.

Ao abordar tal temática, Silva esclarece que, Numa experiência como a dos transtornos afásicos, a inferência clínica desse postulado não poderia ser outra: a cada lesão no córtex cerebral, há a produção direta e imediata de uma disfunção linguística. Assim, via de regra, a classificação de um distúrbio como a afasia corresponderia precisamente a uma determinada área cortical funcional. A linguagem nada mais é do que uma operação fisiológica, puramente motora, de sorte que o surgimento do sintoma se associa diretamente à alteração do setor ou da região cerebral correspondentemente afetada (SILVA, 2012, p. 137).

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Merleau-Ponty, no entanto, alerta que esse paradigma cientificista acarreta o prejuízo de continuar cindindo o homem em sua totalidade. Dessa maneira, Goldstein e seus estudos promissores ensaiam uma “releitura” da afasia, evidenciando que os “sintomas” afásicos precisavam ser interpretados em relação à história de vida do sujeito; história essa marcada a partir de fenômenos clínicos a serem melhor observados, para além dos métodos tradicionais em voga.

É com este acento que, o “olhar sobre o fenômeno da afasia” é formulado, partindo da perspectiva teórica de Merleau-Ponty, de que a linguagem deve ser “entendida não apenas como discurso, mas como o próprio poder de significar” (SCHALCHER, 1986, p. 6). Esta significação levou Merleau-Ponty a dedicar especial atenção aos trabalhos de Goldstein, em particular, porque este influenciou uma leitura “existencial” do corpo e de sua expressão por meio da fala3 “na contramão das teorias intelectualistas e empiristas” (SILVA, 2012, p. 136).

A base da refutação das teorias clássicas de compreensão da linguagem é enunciada por Merleau-Ponty na sua obra Fenomenologia da Percepção. Nesta, Merleau-Ponty aponta que um dos primeiros modelos explicativos da linguagem é oriundo do empirismo. Segundo essa versão,

a constituição da linguagem se encontra estreitamente vinculada aos estímulos neurofisiológicos, caracterizando-se apenas como um fenômeno físico-sonoro associado ao cérebro (SILVA, 2012, p. 136).

Ainda, de acordo com Silva (2012, p. 137):

3A este propósito, o capítulo intitulado Le Corps Comme Expression et la Parole da obra Phénoménologie de la perception é particularmente importante para esta compreensão.

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nessa medida, se toda percepção é a ressonância, na consciência, de uma excitação sensorial, as palavras nada mais são do que traços cerebrais resultantes dessas excitações vistas ou ouvidas.

Outro modelo é o intelectualismo, que compreende à

linguagem em “sua função operatória consistindo em traduzir as ideias, de sorte que o sentido das palavras se vincula aos estados da consciência” (SILVA, 2012, p. 137).

Sobre este tema, Goldstein (1961 apud Silva 2012, p. 135) afirma “[...] os estudos médicos clássicos escamoteiam a natureza da linguagem, e, consequentemente, os transtornos patológicos dela decorrentes”. Corroborando tal posição, observa Merleau-Ponty (1945, pp. 224-225):

No que concerne à própria fala, o intelectualismo mal difere do empirismo e não pode, tanto quanto este dispensar-se de uma explicação pelo automatismo. [...] é mais uma vez por um mecanismo fisiológico ou psíquico que se fará isso, já que a palavra é um invólucro inerte. Portanto, ultrapassa-se tanto o intelectualismo quanto o empirismo pela simples observação de que a palavra tem um sentido.

O que está em jogo aqui, é o limite teórico tanto do

empirismo quanto do intelectualismo, acerca da compreensão do fenômeno da linguagem. Dessa maneira, elucida Merleau-Ponty, estes dois modelos escamoteiam o caráter de significação existencial da linguagem, pois, “ela é apenas um fenômeno articular, sonoro, ou a consciência desse fenômeno. Em qualquer caso, a linguagem é apenas um acompanhamento exterior do pensamento” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 206).

Malgrado a efetividade das teorias emergentes (principalmente a psicologia científica), Merleau-Ponty identifica, nas pesquisas de Goldstein, um avanço na

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compreensão da subjetividade e do próprio caráter normal e patológico. Sobre o legado goldsteiniano, Silva (2009) aponta que,

Goldstein não deixa de compreender uma exigência fenomenológica de fundo: a de definir as relações entre a fisiologia e a vida, suspendendo-se os prejuízos mecanicistas e vitalistas. O mérito da obra goldsteiniana está em reconstruir uma pesquisa psiquiátrica capaz de explorar tais relações, pois só se compreende a verdadeira essência do organismo por meio da experiência vivida em sua significação carnal. Não se pode ignorar que toda a dimensão do vivido só adquire sentido sobre o fundo do mundo percebido (SILVA, 2009, p. 39).

Ao abordar o tema da percepção para Merleau-Ponty,

Silva (2009b, p. 128) esclarece que:

Na realidade, em nosso campo perceptivo, “sensação” e “percepção” não mais se distinguem, pois nunca temos sensações parciais, mas o que “sentimos” e “percebemos” é um fenômeno de organização, isto é, um sistema de configurações, uma totalidade, uma forma ou estrutura.

A relação de figura e fundo ou o princípio mesmo de

totalidade da Gestalt são partilhados por Goldstein (1961, p. 18) ao elucidar que “se o corpo fosse apenas as somas de partes que fora possível estudar separadamente, não haveria dificuldade em combinar conhecimento às partes e construir uma ciência da totalidade”. O autor enfatiza que essa maneira de compreender o ser humano é equivocada, já que “o organismo não é apenas a soma de suas partes” (GOLDSTEIN, 1961, p. 18).

Por meio de um “novo olhar” fenomenológico do comportamento afásico, via o contributo de Goldstein, Merleau-Ponty incorporou na sua leitura do corpo e da

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linguagem, o conceito de estrutura (Gestalt), influência esta que abre outra perspectiva mais promissora no que diz respeito ao princípio de integralidade. Trata-se de conferir estatuto ao conceito de “carne”, postulado pelo filósofo anos mais tarde, para além do discurso hegemônico relativo ao esquema sujeito/objeto da teoria do conhecimento moderna. Merleau-Ponty realiza uma espécie de releitura de Gestalt porque não apenas as partes compõem o todo, mas o todo e as partes estão imbricados. Nas palavras de Goldstein (1961, p. 19) “o organismo [...] constitui uma unidade”.

Dessa forma, Merleau-Ponty também visa ultrapassar a concepção dicotômica de sujeito e objeto, que de certa maneira ainda era uma prerrogativa da Gestalttheorie. Assim, a compreensão da vida e do comportamento passa a ser de uma vivência mais “carnal” do ser humano em intimidade com seu corpo. Nas palavras de Silva (2010, p. 107): “seu corpo é sua consciência. Mais que isso: é o signo mais palpável que anuncia outra corporeidade numa só tessitura”. A tessitura do vivido abre um campo de pesquisa fecundo sobre esta leitura do existir que pode ser percebida por meio da linguagem; linguagem esta que expressa uma “intenção” do sujeito no mundo e para o mundo.

Na leitura de Silva (2009), Merleau-Ponty reconhece a necessidade de refletir sobre o homem, lhe concedendo um papel mais ativo e promissor, capaz de traçar outros contornos, outros sentidos:

Vimos que, ao flagrar, nas teorias clássicas, limites ontológicos, Merleau-Ponty acredita encontrar na psicologia contemporânea uma expectativa teórica mais promissora no tocante à natureza da percepção, da corporeidade e, nesse horizonte, de um sentido novo da razão (SILVA, 2009, p. 65).

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Com a cisão entre o corpo e a alma, instalada por conta da ênfase no espírito, comenta Silva (2009, p. 29),

Temos, em primeira mão, o ideal de um duplo corte entre a região de “estados internos” e um “mundo exterior de objetos”. Nessa medida, a consequência não poderia ser outra: ao mutilar a experiência por meio daquela cisão, o kantismo termina por subtrair a própria consciência “desencarnando-a” do mundo ao qual se dirige, sem se pronunciar acerca de seu relacionamento com ele.

Na compreensão de Merleau-Ponty (1945), foi

necessário um novo movimento na filosofia, que sempre se interessou pelo comportamento humano e suas relações, possibilitando a compreensão do sujeito para além de um “eu puro”. Em suas palavras:

A aquisição mais importante da fenomenologia foi sem dúvida ter unido o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção do mundo ou da racionalidade [...] o mundo fenomenológico não é o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem umas nas outras; ele é, portanto, inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência dos outros na minha (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 26).

Há, segundo Merleau-Ponty, uma intencionalidade

que redescobrimos a propósito da sexualidade4 em ato;

4 Digno de menção, o conceito de Freud sobre a sexualidade começa a emergir como um “saber” que não se pode mais negar o aspecto subjetivo e afetivo que envolve a conduta humana, e por sua peculiaridade se expressa no corpo. Freud elucida que a sexualidade, na verdade, deve ser

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intencionalidade que não é produto da consciência pura de um suposto eu transcendental, mas a que emerge como um movimento operante nas profundezas de minha relação com o mundo. Trata-se, portanto, de um segundo nível de intencionalidade, fenomenologicamente mais sofisticado, qual seja, a intencionalidade corporal em que o corpo passa a ser a sede intencional; sentido esse, inclusive, que Husserl teria entrevisto lá nas Idées II (1982)5. A sexualidade não parte de um ego puro e sim da relação do homem com o outro e com o mundo, como uma troca contínua de um fluido energético.

Para Merleau-Ponty, a linguagem envolve uma unidade, integralidade do organismo e o meio, com trocas e intercâmbios, pois “o que há de original nesta tese goldsteiniana é a emergência de outro estatuto antirrealista no qual a significação comportamental escape a toda inferência causal ou analítica” (SILVA, 2009, p. 39). É o que

[...] Goldstein descobre em suas pesquisas clínicas [...] ao mostrar que a linguagem não se reduz categoricamente, mas prefigura uma significação existencial, isto é, exprime uma experiência pré-lógica pela qual o sujeito se engaja no mundo (SILVA, 2009, p. 99). Nessa direção, Silva (2012) afirma que o legado de

Goldstein e Merleau-Ponty no estudo da afasia desconstrói a teoria localizacionista, pois esta patologia é “também um problema de pensamento uma vez que, do ponto de vista

compreendida como psicosexualidade, satisfação mental, uma energia que move o comportamento humano por meio da pulsão. Este tema é abordado na obra de FREUD, S. Psicanálise silvestre. In: Cinco lições de psicanálise: Leonardo da Vinci e outros trabalhos. Tradução Paulo Dias Corrêa. Rio de Janeiro: Imago. Editor, 1996b, pp. 207-213. (Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 11). 5 Veja também, a propósito, o instrutivo ensaio de Merleau-Ponty, Le philosophe et son ombre, inserido em Signes (1960).

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fisiológico, a região do córtex cerebral permanece inteiramente ilesa” (SILVA, 2012, p. 139). A afasia é “uma perturbação do espírito-pensamento e comportamento” (SILVA, 2009, p. 142) Isto posto, a teoria de fisiológica de Paul Broca (1824-1880) não se revela efetiva na compreensão ontológica e fenomênica da afasia.

Sobre este tema, Silva (2012, p. 142) compreende que

[...] o trabalho de Goldstein ganha realce pelas descrições particularmente brilhantes da sintomatologia do paciente, descrições que sugerem fortemente ser a afasia algo muito diverso de como a concebiam os defensores das teorias das funções cerebrais.

Goldstein (1961) afirmou que a afasia é um fenômeno

que “afeta” todas as dimensões existenciais do ser, ou seja, de sua relação consigo, com o outro e com o mundo, com seu sintoma. Esta análise encontra respaldo, pois Goldstein, quando observava os pacientes afásicos, entendeu que os sintomas sofrem interferências da personalidade do paciente, assim como do meio social no qual este está inserido. Nessa perspectiva, o sujeito afásico precisa ser compreendido “em sua totalidade6”, pois este ser “total” desvela reações sintomáticas de seu existir, de seu significado mais arraigado na vivência mundana.

O autor prossegue enfatizando que o século XX foi particularmente fecundo para as pesquisas biológicas; porém, tal perspectiva, vista como “a crescente racionalização e

6 GOLDSTEIN, K. La naturaleza humana a la luz de la psicopatología. Trad. Eva I. de Dietrich. Buenos Aires, Paidós, 1961. Esta obra traz a referência à compreensão do ser humano e seu organismo como um todo, com clara menção da relevância desse em sujeitos com patologia, ou em pessoas saudáveis. Por isso, este aspecto aqui estudado tornou-se um ponto nevrálgico na obra clínica de Goldstein, ou seja, quando existe a patologia esta necessita ser compreendida na totalidade do sujeito, quer dizer, nas relações dele consigo mesmo, na relação com o mundo e com o outro.

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sistematização criou um estado caótico que levou o homem a tomar uma existência cada vez mais inadequada a sua natureza” (GOLDSTEIN, 1961, p. 13).

Goldstein chama a atenção para a necessidade de um novo “olhar para a afasia”; olhar que a coloca em sintonia com a vivência do sujeito acometido. Afinal, “são muitas as manifestações patológicas que somente se tornam compreensíveis à luz de sua origem social e que somente podem ser eliminadas levando em conta essa origem” (GOLDSTEIN, 1961, p. 16). Neste sentido, Silva destaca que,

Ao reconhecer, no âmbito da experiência intersubjetiva, uma práxis mais viva da linguagem, aquém de sua acepção instrumental, Goldstein parece fornecer ao fenomenólogo muito mais que uma mera curiosidade psicológica. Aí a experiência clínica é indissociável de uma filosofia radicalmente autocrítica, consciente e encarnada (SILVA, 2012, p. 153).

Corroborando, Merleau-Ponty afirma, O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão projeto no mundo; o sujeito é inseparável de seu mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta. O sujeito é ser-no-mundo e o mundo permanece ‘subjetivo’ já que sua textura e suas articulações são desenhadas pelo movimento de transcendência do sujeito (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 506).

Nesta passagem, o que Merleau-Ponty está apontando

é o fato de que não há separação entre subjetivo e objetivo, entre sujeito e mundo. O humano é e está imerso em suas relações sociais, isto é, em sua relação com o outro. A importância das relações intersubjetivas e da compreensão de quem é o sujeito afásico, torna fecunda a perspectiva goldsteiniana, já que: “o afásico não é alguém que não fala

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mais, mas é alguém que fala menos ou simplesmente de outra forma. Ele é até capaz de se recordar de uma palavra nessa situação e não noutra” (SILVA, 2012, p. 139).

A partir do trecho acima, se pode inferir que afasia envolve uma forma de o sujeito ser no mundo, isto é, que inclui seus pensamentos e suas experiências: “o que o doente perde não é certo estoque de palavras, mas, a maneira de usá-las” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 222).

Silva (2012, p. 141) elucida que:

[...] Goldstein promove a descoberta capital de que o sintoma afásico é tão somente a mudança estrutural do sistema fonemático; tal distúrbio manifesta um estado de esvaziamento da linguagem, à medida que ela deixa de ser, no fundo, estruturada.

De acordo com Silva (2012), tal perspectiva de

interpretação do sintoma afásico se apresenta como algo inovador na leitura da afasia e de sua forma de expressão no sujeito.

Reafirmando esta perspectiva, Silva (2012, p. 149) esclarece que Goldstein amplia a compreensão para o estudo da linguagem na medida em que “redescobre um sentido interior ao comportamento”. Isto se refere a uma “teoria existencial da afasia”. Nas palavras de Merleau-Ponty,

Quer os autores saibam ou não, eles procuram formular o que chamamos de uma teoria existencial da afasia, ou seja, uma teoria que trata pensamento e linguagem objetiva como duas manifestações da atividade fundamental pelo qual o homem projeta em direção a um “mundo”. (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 222)

Sob esse prisma, “há, na estrutura do comportamento

afásico, um mundo linguístico a ser interpretado” (SILVA 2012, p. 149-150). O sentido do comportamento (do qual a

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fala é englobada) precisa ser entendido como um processo dinâmico, conforme descreve:

Ele, enquanto devir, se constrói no contato com a contingência, em meio aos fenômenos. Movimento de transcendência, ele se transfigura como um sentido encarnado, ou seja, se inscreve na estrutura do acontecimento, imanente em cada comportamento [...]. É assim que uma fenomenologia do comportamento se institui também como uma teoria do sentido. Ela deixa entrever que todo ato se manifesta numa só unidade total (SILVA, 2012, p. 151).

A interpretação da linguagem, do comportamento, é

algo que se manifesta ou revela para além do verbal, além do falado. Segundo os termos de Merleau-Ponty, “o próprio sentido da coisa se constrói sob nossos olhos, um sentido que nenhuma análise verbal pode esgotar e que se confunde com a exibição da coisa em sua evidência” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 433).

Desta forma, pensa-se que haja entre Merleau-Ponty e Goldstein um contributo para o estudo da linguagem, em especial, da afasia, ao postularem que esta se desvela como um fenômeno de expressão do sujeito corporal.

REFERÊNCIAS DAVIS,H.D. Psychology as Science with Attitude. pp. 11-26. In: SILVA, F. A. C. (Org.) Kurt Goldstein Psiquiatria e Fenomenologia. Série Estudos Filosóficos, n. 15. Cascavel: Edunioeste, 2015.

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(Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 11).

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___________. A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Trad. Diogo Falcão Ferrer. Lisboa: Centro de Filosofia Universitas Olisiponensis, 2008 (Phainomenon Clássicos de Fenomenologia).

___________. Meditações cartesianas e Conferências de Paris. Trad. Pedro M. S. Alves. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

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___________. Phénoménologie de la perception.Paris: Gallimard, 1945.

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___________. Resumé de cours: Collège de France (1952-1960). Paris: Gallimard, 1968.

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___________. “O corpo em cena” In: DAMIANO, A; CARDOSO, W. (Org.). Corporeidade e educação: tecendo sentidos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010, pp. 93-112.

___________. “A estrutura do sentido: Goldstein e Merleau-Ponty”, inTrans/Form/Ação, Marília, v. 35, n° 3, pp. 133-156, set./dez. 2012.

SCHALCHER. M.G.F. Fenomenologia e linguagem em Merleau-Ponty: a questão da afasia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1986. [Dissertação de mestrado].

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IV

EXISTÊNCIA E LINGUAGEM: UMA ANÁLISE FENOMENOLÓGICA DO ROMANCE DE VIDAS

SECAS

Camila Pacheco Gomes A proposta desse trabalho é de realizar uma

interpretação do romance de Graciliano Ramos (1938) Vidas Secas, em especial, o personagem Fabiano, por meio do olhar fenomenológico de Martin Heidegger e de Merleau-Ponty. A pretensão é de explorar como se dá o sentido da existência do personagem e o sentido de ser-no-mundo-com-os-outros.

Um dos pontos a serem discutidos parte da luz do não dito, isto é, a voz do silêncio de Fabiano, caracterizando a condição “humana” de um contexto que consiste não apenas na aridez de uma terra seca, mas sim, na “angústia” causada pela secura de uma linguagem em tentar expressar o que se sente.

O exercício de pensar sobre o romance Vidas Secas é que a vida, em especial a do personagem que discursaremos, é compreendida como sendo “seca” de sentido. Ela é “seca” porque o ser-aí (Dasein) está lançado no mundo, mundo esse repleto de conflitos. Trata-se de revelar um modo de ser mais apropriado para que a existência lhe faça sentido, ou seja, Fabiano tem o desafio de compreender sua existência e o seu sentido. Dessa forma, podemos dizer que se trata de um ser lançado no mundo, um mundo que já existe e no qual suas escolhas estão atreladas à temporalidade.

Graciliano Ramos, em sua obra Vidas Secas, descreve Fabiano como aquele que não sabe se relacionar com “outros seres”. O personagem apresenta uma inquietação, na qual

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ousamos dizer, que se trata de uma “angústia” em tentar compreender a si e aos outros. Suponhamos que sua compreensão enquanto ser-no-mundo é tida como imprópria e aflita por não entender o que a realidade do mundo lhe diz. Assim, retratamos essa hipótese com uma parte do romance: “Por isso admira a mulher, Sinhá Vitória, pois a linguagem do mundo, o sentido das coisas, não era um problema para ela” (FELINTO, 2003, pp. 129-139).

Diante desse contexto, resgatamos a ideia do projeto de uma nova ontologia de Heidegger, na qual o objetivo era retomar a questão do sentido do ser que permaneceu esquecida durante séculos. O grande equívoco para o filósofo era que a filosofia tradicional procurou explicar por meio de “determinações”, o que é o ser e o que é o ente. Para o autor, existe uma condição fundamental distinta entre ente e ser, apontando para uma distinção ontológica (HEIDEGGER, 2008).

Ainda em Heidegger (2008), o ser-aí (Dasein) tem por condição fundamental saber ser finito, saber que sua vida um dia vai findar, caminhando para a compreensão como um ser-para-morte. Ressaltamos aqui, partes do referido romance, sob a hipóteses do início da angústia do personagem. O Personagem é comparado com o mesmo nível de sentido (compreensão) que o da sua cadela “Baleia”, um membro da família cujos “grunhidos” podemos interpretar como expressão de linguagem que se assemelham com as falas de outros seres-no-mundo (RAMOS, 2004, pp. 19-22).

Assim, Heidegger (2008) apresenta o modo de ser do ser-aí como sendo a “nossa existência” nos permitindo questionar sobre o sentido do ser. Esse pensar fenomenológico nos guiará no questionamento sobre o sentido da existência, entendendo que não é possível compreender o ser-aí da mesma forma como compreendemos outros seres vivos e objetos. Diante da

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interpretação de Heidegger, o existir faz parte do que somos enquanto ser-aí (Dasein), denominando de ontologia.

Seguindo com a interpretação do referido romance, Ramos (2004) descreve que Fabiano ignorava o que realmente sentia, sobrevivia ao flagelo da seca, não sendo capaz de dar sentido a suas experiências:

A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes, utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopeias. Na verdade, falava pouco. “Admira as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas (RAMOS, 2004, pp. 19-22).

Para um dos comentadores do referido romance,

Felinto (2003), Fabiano carregava consigo um sentimento de ser “explorado” e enganado, porém sentia dificuldades em explicar essa “exploração”. Era desprovido de “pensamento” decorrente ao cenário que vivia, de uma vida de miséria e pela monopolização das relações de poder dos proprietários da região. Em decorrência do contexto, sua linguagem era “pobre”, sua noção de mundo era fragmentada e um tanto “fantasiosa” ao ponto de muitas vezes se confundir como um animal: “Os seus pés duros quebravam espinhos e não

sentiam a quentura da terra. Montado confundia‑se com o

cavalo, grudava‑se a ele” (FELINTO, 2003, pp. 129-139). A respeito de uma linguagem “pobre”, Merleau-Ponty

(2006) contribui afirmando que, a linguagem nos ultrapassa, não apenas porque o uso da fala sempre supõe um grande número de pensamentos, mas ainda por uma outra razão, porque esses pensamentos, em sua atualidade, jamais foram “puros pensamentos”, porque neles já havia excesso do

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significado sobre o significante e o mesmo esforço do pensamento pensado para igualar o pensamento pensante.

Dessa forma, Heidegger propõe uma investigação acerca das condições de possibilidade, sendo uma dessas a linguagem, caracterizada como a condição desse mostrar-se pela linguagem. Sob a luz da discussão da linguagem, caminhamos sob uma investigação fenomenológica no romance Vidas Secas, com o propósito de compreender as possibilidades de existência por meio da linguagem.

Explicando sobre a condição de possibilidades, Heidegger apresenta a linguagem como sendo a condição próxima à fala. A fala é um existencial igualmente originário à disposição e à compreensão. Tal articulação se dá pela posição prévia, como um fenômeno proveniente da facticidade do ser-aí, proveniente do caráter de ser sempre mundano. Deste modo, a fala igualmente originária, compreende toda disposição, portanto a fala precede a interpretação (HEIDEGGER, 2008, p. 223).

A fala é um existencial, porque é a fala do ser-aí. Essa compreensão e disposição não só estão sempre articuladas em uma fala, como já estão articuladas numa linguagem. Não há nada compreendido que esteja fora da linguagem:

A articulação da compreensão pela fala que se pronuncia na linguagem se dá pelo conceito e a articulação da disposição se dá no tom, no ritmo da fala, no modo de dizer, ou ainda na fala poética (HEIDEGGER, 2008, p. 225).

A linguagem não é uma coisa que possui atributos; as

palavras não possuem atributos como o de sentido e de referência: “Dos significados brotam palavras. As palavras, porém, não são coisas dotadas de significados” (HEIDEGGER, 2008, p. 224). Antes de vir à palavra, à linguagem, os significados já devem ter sidos articulados pela

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fala. A linguagem não deve ser compreendida como a transposição de opiniões ou desejos, mas como a articulação da compreensão e disposição já compartilhadas.

Ao mostrar a precedência da fala, Heidegger apresenta a linguagem por meio de uma das possibilidades inerentes à própria fala e à escuta. A escuta em sentido originário é a articulação da compreensão e da disposição pela fala que se expressa na linguagem: “Assim como a articulação verbal está fundada na fala, a percepção acústica funda-se na escuta” (HEIDEGGER, 2008, p. 226).

Ao contrário da fala, o que escutamos na escuta é a articulação da fala que pode se mostrar na linguagem, nos remetendo à remissão com sentido. Outrossim ocorre quando escutamos a fala do outro, o que se escuta não são as palavras presentes, mas o sentido, aquilo sobre o que se fala. Por isso a linguagem tem que ser compreendida como o ôntico da fala e não como um ente no modo de ser da essência, mostrando a relação que a linguagem possui com a fala. O silêncio é uma possibilidade da fala, porém deve ser compreendido de forma autêntica para não ser confundido com o não dito daquele que apenas deseja dizer ou com daquele que pouco diz e não deseja dizer. O silêncio sempre já se deu no mundo fático e possui sua remissão: ele se remete onticamente ao ontológico do ser-aí, à pura possibilidade. O fenômeno do silêncio, portanto, mostra a fala como anterior à linguagem (HEIDEGGER, 2008, p. 227).

Contextualizando com o romance de Vidas Secas acerca da linguagem, propomos compreender e explicar o sentido do não dito de Fabiano. Assim arriscamos a dizer que o silêncio do personagem se mostra vazio, vazio esse por não saber o que dizer, pela falta das “palavras”, ou seja, a falta do que dizer.

Dessa forma, Felinto (2003) comentador do romance Vidas Secas, contribui afirmando que, “se Fabiano soubesse se expressar, resolveria seu problema”. O fato de não saber

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expressar o que se sente, nos remete à hipótese de uma “angústia” em explicar aquilo que não se sabe, não encontrando as “palavras” para explicar o sentido de sua existência. O autor nos propõem a refletir que, se existe um sentido para o ser-aí, esse não será encontrado na existência e sim na linguagem. Entretanto, a linguagem por si só não é capaz de explicar o sentido para o ser-no-mundo, pois essa não permite a compreensão do mundo.

Embora Fabiano admire os outros seres que saibam se expressar, que saibam “falar”, o personagem se sente incomodado com esse mundo em que os seres possuem uma condição prévia que é o falar. Percebe que não faz parte desse “mundo”, pois seu mundo é outro, e aqui suponhamos que o personagem possa estar se referindo ao mundo dos “animais”. Seu mundo é seco, como sua existência. Portanto, é nessa condição que o romance expõe a secura da vida tendo o ser-aí, como um ser inadaptado ao mundo.

Contudo, Merleau-Ponty trata da questão da passagem do mundo do silêncio para o mundo cultural na Fenomenologia da percepção, primeiramente, descrevendo como o corpo próprio situado no mundo, através da experiência perceptível, apreende a realidade, ou seja, explica a existência de uma comunicação entre o corpo e as coisas (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 425).

No decorrer da fala, enquanto palavra, é que o silêncio primordial se rompe no seu desejo de manifestar-se e “transforma as coisas em si mesmas, transformando-as em coisas ditas”. E, por sua vez, a fala falada ou fala constituída possibilita as mediações intersubjetivas (DUPOND, 2010, p. 103).

Para Merleau-Ponty (2006), a compreensão da problemática da linguagem, considera necessário um retorno à sua origem ou recuperação de seu movimento expressivo primário, onde, a uma só vez, ela ultrapassa e limita o sentido esboçado na percepção. A percepção é o sentido que inaugura

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a abertura para o mundo; como a projeção de um ser para fora de si, a linguagem prossegue esta abertura de mundo na medida em que retoma, transforma e prolonga as relações de sentido iniciadas na percepção.

Ainda com o autor acima, o silêncio não é mudez, nem ausência de voz, muito menos o negativo do dito, mas sim o que engendra dentro de si, interiormente, uma linguagem. Segundo Merleau-Ponty, “são as próprias coisas, do fundo do silêncio, que deseja conduzir à expressão” (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 16).

Nessa discussão de linguagem sob a luz da fenomenologia, resgatamos partes do romance Vidas Secas, aonde podemos observar que Fabiano não apresentava condições de pensar sobre seu sentido, sobre o sentido de sua existência, tão pouco de compreender o mundo em que vive, por meio de sua linguagem.

Dessa forma Merleau-Ponty contribui com seu pensamento acerca da linguagem:

O que então exprime a linguagem, se ela não exprime pensamentos? Ela representa, ou antes, ela é tomada de posição do sujeito no mundo de suas significações. O termo “mundo” não é aqui uma maneira de falar: ele significa que a vida “mental” ou cultural toma de empréstimo à vida natural as suas estruturas, e que o sujeito pensante deve ser fundado no sujeito encarnado (2006, p. 262).

O romance de Graciliano Ramos, Vidas Secas, nos

permite discutir o personagem, caracterizando-o como um ser que não compreende as palavras e que tem “medo” delas.

Fabiano, falava pouco e admirava as palavras compridas e difíceis do pessoal da cidade. Às vezes tentava reproduzir algumas, mas em vão, sabia, no entanto, que elas eram inúteis e perigosas (FELINTO, 2003, pp. 129-139).

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Diante da angústia em compreender aquilo que sente ou ter que falar daquilo que pensa, o personagem Fabiano em Vidas Secas, experiencia, sem saber explicar o vazio de uma vida sem sentido, tanto é que repete, no decorrer do romance, que é um “bicho”, considerando sua cadela “Baleia” como “mais esperta do que ele próprio”. Na busca por explicar o que é, e o que sente, Fabiano admira os outros seres que sabem “falar”, que sabem expressar o que se sente. Assim, retrata no romance, que admira “Sinhá vitória”, assim como também o “Seu Tomás da Bolandeira” (FELINTO,2003, pp. 129-139).

A fenomenologia viabiliza essa interpretação de Vidas Secas, na qual podemos dizer que o romance está repleto de um silêncio, o qual diz muito para o personagem em questão: sua vida era comparada à aridez da terra à sua volta. Assim, suponhamos dizer que a “seca” não era apenas a condição de “vida”, mas também, a condição de sua existência. A seca do sertão representava o seu modo de ser enraizado em sua linguagem. Entretanto seria a angústia que o “assombrava” nessa tentativa em explicar o sentido de sua existência, como o mundo e com os outros. REFERÊNCIAS

DUPOND, P. Vocabulário de Merleau-Ponty. Tradução Cláudia Berlender. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. (Coleção vocabulário dos filósofos).

FELINTO, M. Prefácio. In: RAMOS.G. Vidas Secas. 89. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003, pp. 129-139.

HEIDEGGER, M. A essência da verdade. In: Marcas do Caminho. Tradução de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008a, 495p

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___________. A essência do fundamento. In: Marcas do Caminho. Tradução de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008b, 495 p.

___________. Introdução à metafísica. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.

___________. Ser e Tempo. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, 598p.

___________. Sobre o problema do ser. O caminho do campo. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Duas Cidades, 1969.

INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Tradução de Luísa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

___________. O olho e o espírito. Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

___________. O visível e o invisível. Tradução de José Artur Giannotti e Armando Mora d’Oliveira. São Paulo: Perspectiva, 1984.

OLIVEIRA, M. A. D. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001.

RAMOS, G. Vidas Secas. 93.ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

VOLPI, F. La question du lógos dan l’articulation de la facticité chez jeune Heidegger, lecteur d’Aristóteles. In:

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Heidegger 1919-1929: de l’herméneutique de la facticité à la métaphysique du Dasein. Paris: Vrin, 1996.

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V

COMPREENSÃO ACERCA DA INQUIETUDE E ANGÚSTIA NA OBRA O HOMEM

PROBLEMÁTICO DE GABRIEL MARCEL

Cleyton Francisco Oliveira Araújo

INTRODUÇÃO No presente trabalho, pretendemos refletir e procurar

compreender os temas da inquietude em conexão com a angústia na obra O homem problemático (1955) do filósofo francês Gabriel Honoré Marcel (1889-1973). Não temos a pretensão de apreender, analisar e explicar esta importante obra deste proeminente filósofo em sua totalidade, pois necessitaria deter-se em importantes assuntos e perspectivas que orbitam em torno desta obra: fenomenologia heideggeriana, existencialismo, teologia cristã (especificamente agostiniana e, não menos importante, a teologia reformada de Karl Barth), discussão crítica com os modelos políticos soviéticos e norte-americanos e, neste contexto macro político, o problema da Guerra Fria. Enfim, estes assuntos precisariam de um enfoque cuidadoso e um trabalho amplo para uma melhor compreensão desta obra, como também, do pensamento geral de Gabriel Marcel.

Diante dessas considerações, nossas aspirações são mais modestas. Embora os assuntos acima mencionados se entrelaçam com as temáticas e os objetivos de nossa pesquisa, não os aprofundaremos, pois acreditamos que seria necessária uma pesquisa mais completa, por exemplo, uma pesquisa monográfica. Semelhantemente, embora reconheçamos a importância da análise da biografia de Gabriel Marcel,

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relacionado intimamente com esta obra, não iremos descrever uma biografia do referido filósofo francês e a sua relevância para o cenário acadêmico filosófico.

Isso se deve pela natureza intrínseca da pesquisa1 e, também, por nossos objetivos meramente propedêuticos. Tematizaremos, crítica-reflexivamente o problema da inquietude no homem em relação com a angústia, conforme descrito e refletido por Marcel na segunda parte deste livro, das páginas 73-170. E, mais especificamente, trataremos os seguintes capítulos: I (Inquietude. Ansiedade. Angústia), II (o inquieto como carrasco de si mesmo), III (o inquieto condenado pelos sábios), IV (a inquietude na perspectiva evangélica).

Por fim, é importante entender que, especificamente na segunda parte desta obra de Marcel, o tema central é a inquietude e como ela se torna emancipador e libertador nas experiências do indivíduo no mundo. A seguir, desdobraremos os capítulos acima mencionados em conexão vital com o tema da inquietude.

5.1 INQUIETUDE, ANSIEDADE E ANGÚSTIA: DISTINÇÕES TERMINOLÓGICAS

Neste capítulo, Marcel pretende definir

conceitualmente o significado de inquietude, ansiedade e angústia. Procura estabelecer aproximações e diferenças conceituais entre estes termos e refletir também causas patológicas e distúrbios destes “problemas” e, principalmente, aponta o locus existencial, da inquietude e angústia. Abaixo, temos uma descrição científica, dessas situações psicológicas:

Na inquietude - nos diz - a sensação física domina em forma quase exclusiva, embora na linguagem corrente se

1 De ser objetiva e curta.

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use às vezes a palavra em um sentido moral e psíquico. No entanto, não existe na inquietude a sensação de constrição, de algo que o oprime. Na angústia, pelo contrário, intervém uma sensação de opressão do epigástrio, acompanhada de grande dificuldade para respirar e tristeza excessiva. Em um outro sentido, somente a ansiedade tem um estado de turbação, agitação e outro de mal-estar opressivo na região precordial (LITTRÉ apud MARCEL, 1956, p. 75).

Aqui temos uma descrição fisiológica dos referidos estados psicológicos: as suas reações físicas no organismo humano. Também temos as distinções entre eles: inquietude seria, nesta compreensão, uma dificuldade fundada na moralidade e emoções humanas, sendo que a angústia com reações mais agressivas no âmbito fisiológico (dificuldade para respirar, aperto, opressão do epigástrio e etc.) e a ansiedade corresponde a uma turbação, agitação e inconstância profunda mental, e “um mal-estar opressivo na região precordial” (LITTRÉ apud MARCEL, 1956, p. 75). Temos aqui definições clássicas no horizonte empírico-científico.

Marcel segue discorrendo acerca disso, e traz importantes descrições patológicas dos referidos “distúrbios”, na história da psicologia e psiquiatria:

No fim do século XIX, Brissaud tratou de introduzir uma distinção precisa: segundo ele, a angústia seria um fenômeno físico, a ansiedade, pelo contrário, um fenômeno puramente psíquico, e muitas vezes concomitantes, e em certos casos podem produzir-se separadamente. A angústia, devo dizer no século XIX, apresentado no congresso de Médicos e neurológicos ‘é uma turbação física que se traduz por uma sensação de inseguridade indefinível’. Esta distinção, assim formulada, deveria ser retomada por numerosos psiquiatras franceses [...] O que se pode afirmar acerca do ansioso é que ele tem reações muito mais vivas que o angustiado. Retorce as

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mãos, se desespera, se atormenta, enquanto que angústia é “uma dor que não se pode chorar”. O ansioso, mas combativo, se debate contra a desgraça do perigo; o angustiado está sobrecarregado por uma emoção que o paralisa. A ansiedade está como envenenada por uma incerteza (MARCEL, 1956, p. 76).

Marcel faz aqui uma pequena reconstrução histórica

de como era tratada a angústia e a ansiedade. Observamos que as comunidades científicas os diferenciavam: o primeiro como um problema físico com as suas peculiares reações orgânicas e o segundo, como um problema agudo, uma experiência traumática, cuja causa localiza-se na mente e cujas reações exteriorizam-se em comportamentos desiquilibrados

Embora Marcel não negue as descrições científicas e, realmente, qualquer observador poderá constatar tais declarações nos comportamentos dos ansiosos e angustiados, para o nosso pensador francês, tais explicações cientificistas não cobrem e não explicam satisfatoriamente e globalmente os fenômenos da inquietude e da angústia.

Ele concorda com o psiquiatra espanhol López Ibor: Quando em sua obra sobre a angústia vital declara que a angústia e a inquietude para ele são um e o mesmo fenômeno. Contudo, logo teremos que reconhecer que convém distinguir direções e orientações diversas, de maneira que a inquietude mesma, por exemplo poderá considerar-se tanto como paralisante, até esterilizante, tanto como fecunda e, em certo modo, criadora (MARCEL, 1956, pp. 78-79).

Na filosofia existencial, a angústia e a inquietude, como vimos na citação, transcendem os significados e as causas psicofísicos da ciência. Isto se orienta tanto por um atento observador ou por descrições fenomenológicas e, principalmente, pela apreensão existencial do indivíduo frente

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a si mesmo no trato com estas questões. Conceitos científicos não abarcam e nem explicam a totalidade dos fenômenos da inquietude e da angústia no indivíduo. E, além disso, estas não possuem somente “sintomas” negativos. Elas apontam uma realidade nova, uma experiência que pode ser libertadora, criativa e fundante no mundo. E, paradoxalmente, podem paralisar, esterilizar e ser efetivamente patológicas e destrutivas. Angústia e inquietude, com suas diferenças e semelhanças, descrevem este homem que já é “lançado no mundo” (HEIDEGGER apud MARCEL, 1956, p. 133), que procura descobrir-se e conhecer-se. Neste contexto, a angústia e a inquietude, aparecem como algo positivo, pedagógico e filosoficamente (especialmente na filosofia e na ontologia existencial) fundantes nas experiências do homem (MARCEL, 1956).

Marcel comenta também que a sociedade e a religião observam estes fenômenos com suspeitas, tratando-os com preconceito e encarando-os, em uma perspectiva religiosa, como “um sinal de um espírito satânico” (MARCEL, 1956, p. 79). Da mesma forma que a perspectiva da filosofia existencial transcende as análises reducionistas científicas dos fenômenos psíquicos, a teologia cristã transcende as superstições e preconceitos sociais atrelados à inquietude e à angústia. Afinal, as escrituras sagradas dos cristãos apontam que a inquietude acompanhara vividamente as experiências religiosas dos profetas, dos apóstolos e do fundador do cristianismo: Jesus. E ela é vista, em seu contexto mais profundo e paradoxal, como um “sinal do divino” na experiência espiritual do crente: observamos isso, de uma maneira mais detida em Paulo, em suas epístolas, e em Santo Agostinho, em suas Confissões.

Ambos os horizontes acima mencionados (filosófico-existencial e teológico-cristão) serão aprofundados na perspectiva marceliana. É importante encerrar esta seção, ratificando o aspecto positivo da inquietude e assim, com esta

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citação, preparando o leitor para o teor filosófico deste tema nas próximas seções2: “Por uma perspectiva diferente chegará, pelo contrário, a uma saudável inquietude como condição de todo o progresso, de toda criação autêntica” (MARCEL, 1956, p. 79). Na seção a seguir, detalharemos, descreveremos e refletiremos este fenômeno da inquietude em sua condição dialética e paradoxal da existência humana.

5.2 O INQUIETO COMO CARRASCO DE SI MESMO

Neste capítulo, Marcel descreve, utilizando fontes

psicanalíticas (na maioria das vezes em uma perspectiva crítica) e exemplos práticos da vida comum, como o indivíduo lida com a sua inquietude. O foco neste capítulo é a inquietude e, perifericamente, a angústia, como um instrumento que aprisiona, “aperta” e cria inimizade interna no indivíduo, ou seja: a inquietude como inimiga do sujeito e, por conseguinte, tal indivíduo como inimigo de si.

O título do capítulo aponta para esta realidade: a inquietude como um “carrasco”, um cruel executor, que está sempre pronto para condenar. Marcel emprega este título inspirado na comédia de Terêncio intitulada O carrasco de si mesmo. A inquietude como torturador da alma é o foco e os objetivos das descrições de Marcel no referido capítulo.

O pensador francês nos diz o seguinte, acerca deste carrasco: “E na forma mais ativa nos convertemos em nosso inimigo. Esta possibilidade somente pode estar profundamente arraigada em nossa estrutura” (MARCEL, 1956, p. 82). Em outros termos: carrasco aqui é uma metáfora para o meu próprio “eu”, pensamentos e vontades não conformadas com os ideais que traço para a minha existência.

Marcel rechaça que esta inquietude seja causada ou tenha semelhanças conceituais com a dúvida ou com a

2 Especificamente, a IV seção “A inquietude na perspectiva evangélica”.

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introversão. Para Marcel, ambos os comportamentos não são essencialmente inquietude. Eles tornam-se tal quando acompanhados e aprofundados pelo processo de angústia. Ele cita, por exemplo, casos de céticos que estão confortavelmente em seu estado de “ceticismo” sem serem perturbados por questões metafísicas ou religiosas (MARCEL, 1956).

Quanto à introversão, nosso autor nos diz o seguinte: “quer dizer ao fato de que um ser volte para si mesmo e não para a realidade exterior” (MARCEL, 1956, p. 83). Ou seja, este enclausurar-se do introvertido, a negação da realidade exterior, segundo Marcel, favorece a inquietude, mas a causa, psicologicamente, pode ser explicada por inúmeros fatores (sua própria personalidade, traumas, etc.). A inquietude e a angústia são “companheiras” e “carrascos” que torturam e criam horizontes para mais patologias mentais. Ele também cita a insônia, que tem inúmeras causas: biológicas, sociais, comportamentais e psicológicas: este problema pode provocar e trazer consigo a inquietude. Em suma: os exemplos acima citados, não são, a priori, inquietude e angústia. Eles, porém, podem tornar-se inquietude, no sentido negativo do termo, aprisionando e criando um ambiente mental perturbador e doentio ao existente. Como nos diz Marcel:

Tudo ocorre realmente como se os pensamentos angustiosos aproveitassem, para impor-nos, nossa inação deixando o campo livre. Por demais, esta é uma forma, em certo modo, mitológica de expressar-se; e depois de todos esses pensamentos angustiosos não tem uma existência independente de nós, mesmo ordinariamente reprimidos pelas necessidades da vida (MARCEL, 1956, p. 83).

Nos exemplos citados e em outros tipos de situações

de distúrbio, a inquietude acompanha o indivíduo de uma perspectiva profundamente negativa quando processada por

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pensamentos angustiosos. Tais pensamentos, segundo a citação acima, são independentes do processo psíquico do indivíduo, em outros termos: é impossível o sujeito livrar-se deles, pois eles tornam-se parte constitutiva de si. Estes males, por mais que duramente reprimidos “pelas necessidades da vida”, não deixam o indivíduo tranquilo, torturando-o e fazendo de si mesmo o seu maior algoz.

Marcel utiliza um outro termo para referir-se à inquietude: alienação. Ele traz uma citação muito interessante, acerca desta palavra:

Emprego a propósito o termo ‘alienar’ que raramente se usa neste contexto. Pelo que deve tomar-se em sua acepção etimológica rigorosa. Alienar é tornar estrangeiro. Pois o inquieto tende a tornar-se estrangeiro mesmo para aqueles que são mais próximos; entre eles e ele se abre um intervalo nada mais intransitável (MARCEL, 1956, p. 84).

O inquieto, consciente e, mais, inconscientemente,

tornar-se quase indiferente àquelas pessoas que são mais próximas dele (parentes, amigos, etc.). Tornar-se um “estrangeiro”, com uma linguagem e comportamentos diferentes do seu anterior círculo social. Na verdade, ocorre aqui uma transformação, uma mudança: o inquieto tornar-se “estranho” a si próprio e aos outros. Por isso empreguei o termo “anterior círculo social”, pois isto, de fato, interna e, em muitos casos, externamente, já se tornou concreto; houve uma mudança, uma certa ruptura de relacionamentos e um processo de transformação social, de identidade ou de personalidade. Com certeza, nesta perspectiva, isto pode se tornar nocivamente patológico.

Inquietude, portanto, nestes contextos e em outros3, são sentimentos negativos que provocam comportamentos e

3 Marcel discute neste capítulo, a questão dos traumas na infância e critica ostensivamente a posição freudiana de estruturas da consciência e

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pensamentos patológicos e destrutivos para a personalidade do indivíduo: falta de segurança pessoal, complexo de inferioridade, perca da dignidade própria, etc. Estes contextos emocionais e comportamentais, longe de ser humildade4ou uma virtude, causam inúmeros prejuízos ao indivíduo, ao círculo familiar e social. Inquietude pode ser, como vimos neste capítulo, um carrasco e também uma libertadora. Ela é paradoxal e, essencialmente, longe de ser apreendida por processos lógicos ou explicações psicológicas (KIERKEGAARD, 2010). Pode ser descrita e observada (ARAÚJO, 2016), mas ela sustenta-se como um verdadeiro paradoxo, assim como é a vida. A seguir continuaremos descrevendo e refletindo acerca deste caráter dialético da inquietude em Marcel. E, mais especificamente, analisando a postura crítica dos sábios em relação à nossa temática.

5.3 A INQUIETUDE CONDENADA PELOS SÁBIOS

Neste capítulo, Marcel faz uma breve reconstrução

histórica do pensamento clássico acerca da inquietude e como na antiguidade, especialmente os epicureus e os estoicos lidavam com a inquietude. Também ele faz uma conexão interessante do pensamento estoico com a doutrina filosófica de Spinoza.

Marcel introduz, de maneira geral, a percepção dos sábios da antiguidade acerca de nosso tema:

Não deve surpreender-nos, então, que os sábios estejam de acordo em condená-la (a inquietude). Até poderia dizer que o objetivo principal da sabedoria tal como foi definida em todos os tempos consiste em exorcizar, por completo, a inquietude (MARCEL, 1956, p. 90).

subconsciência. Para uma compreensão mais aprofundada deste assunto, ver as seguintes pp. 85-87. 4 Marcel discute esta questão nas pp. 83-86.

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Marcel chama a atenção ao fato que os sábios da antiguidade procuravam, através de exercícios intelectuais e contemplativos, incentivar e produzir uma eliminação completa da inquietude em si, nos seus discípulos e na ordem social. Eram proclamadores da ataraxia, que em grego significa ausência de conflitos e turbação interior, pois o telos da existência era justamente esse: uma vida harmônica, plenamente desenvolvida, livre das distrações de sentimentos “inferiores”, como a inquietude (MARCEL, 1956).

Nesta perspectiva clássica, a inquietude está intimamente ligada aos desejos, sentimentos e medo. No estoicismo, tais consecuções humanas eram secundárias e, sobretudo, um empecilho para o homem chegar à ataraxia5e ao pleno desenvolvimento racional. Inquietude, e consigo os demais sentimentos, eram marginalizados e antagônicos a este ideal antropocêntrico greco-romano.

Este modo de pensar racional alinha-se à escola filosófica estoica (Epiteto, Marco Aurélio, Sêneca, etc.). E também, na perspectiva epicurista, Epicuro afirmava categoricamente, que a inquietude provocada pelo sentimento da morte, das punições da alma após à morte e do pensamento religioso geral do seu tempo, eram formas perversas e destruidoras. E que o ideal da existência humana era o prazer, a experiência da alegria e o gozo temporal. Inquietude é sinônimo de espanto e torpor, contrário ao objetivo central da existência: felicidade, prazer e contentamento na finitude. Marcel, nos afirma o seguinte: “Epicuro, por exemplo, considerava como o ideal ao qual todo ser racional deveria se inclinar” (1956, p. 90). Diferentemente do estoicismo, cuja preferência era a cognitio ou pura razão, o epicurismo

5 Para os pensadores céticos, epicuristas e estoicos, completa ausência de perturbações ou inquietações da mente, concretizando o ideal tão caro à filosofia helênica da tranquila e serena felicidade obtida através do domínio ou da extinção de paixões, desejos e inclinações sensoriais.

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compreendia que os prazeres e sentimentos humanos eram dimensões desta vida racional. Portanto, de acordo com as suas compreensões, ambas as correntes de pensamento procuravam e pregavam incisivamente contra a inquietude e afirmavam a possibilidade de uma existência livre deste grande mal.

Após estas considerações, Marcel concentra-se, em linhas gerais, no pensamento de Espinoza, comparando-o ao estoicismo. Vejamos isto, no pensamento abaixo:

Poderia dizer-se, que uma filosofia racionalista cujo exercício é a ideia de uma ordem eterna ou de uma necessidade imanente no universo, não poderia deixar de adotar frente à inquietude uma posição em todo idêntica ao que acabo de definir. Neste sentido a atitude de um Espinoza pode considerar-se exemplar, porque ninguém tomou ainda mais as consequências extremas da afirmação desta ordem e esta necessidade. No quarto livro da Ética - que continua o terceiro que se refere às afeições, digamos em uma linguagem contemporânea: às paixões - tratou da servidão humana: mas o que é esta servidão senão quando nos deixamos extraviar pela imaginação? Pelo que, aqui também, a partir do momento em nos elevamos ao verdadeiro conhecimento nos liberamos de toda essa confusão interior da qual somos presos [...] sem cairmos nas armadilhas que nos tende a imaginação (MARCEL, 1956, p. 96).

Esta descrição marceliana do estoicismo em conexão com a filosofia de Spinoza é de difícil detalhamento pelo teor propedêutico de nossa pesquisa, exigindo uma compreensão e análise mais acurada de todas as implicações contidas no pensamento de Espinoza em comparação temática com o estoicismo, tal como pretende Gabriel Marcel. O foco principal desta citação é simples e é coerente com os capítulos anteriores, bem como com o atual do homem problemático, ou

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seja, que a inquietude é algo maléfico (em Spinoza esta é acompanhada da instabilidade da imaginação) e que é possível, através da purificação racional, eliminar esta desordem ou distúrbio imaginativo e das paixões inferiores da existência. A ideia da ordem eterna e da necessidade imanente do universo, são, digamos, parceiras para a eliminação da angústia no interior do indivíduo. A referida purificação racional em Spinoza promete a liberdade e tal purificação vem necessariamente mediante o conhecimento, pela cognitio, por um processo intelectualizante. Não podemos deixar de esclarecer que esta tradição filosófica é influenciada por René Descartes e que tem a sua fundamentação mais radical no idealismo alemão, especialmente em Hegel e Fichte (ARAÚJO, 2016).

Observamos que tais escolas de pensamento racionalistas menosprezam, em absoluto, a inquietude e, juntamente com ela, os sentimentos, as paixões. Elas são descritas como obstáculos para a liberdade e felicidade humana. Obviamente a posição de Marcel é contrária às referidas escolas e ele toma como exemplo a tradição cristã.

5.4 A INQUIETUDE NA PERSPECTIVA EVANGÉLICA

Após as descrições naturalistas e de diversas escolas

de pensamento filosófico que colocam a inquietação como algo meramente negativo ou patológico e que a mesma precisa ser eliminada ora por processos científicos (terapias e medicamentos) ou por um processo de ataraxia, purificação racional via conhecimento, etc., Marcel reflete a inquietude na perspectiva cristã, mais especificamente, no contexto dos evangelhos da literatura neotestamentária bíblica.

Marcel nos afirma o seguinte acerca da consciência cristã acerca da inquietude:

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Digo em certo modo para expressar que é não somente normal, senão necessário e até altamente desejável que experimente como ponto de partida uma profunda turbação ligada ao fato metafísico de que em razão do pecado não é tal como deveria ser [...]. Nestas condições, nos vemos obrigados a comprovar que para uma consciência cristã o juízo de valor sobre a inquietude não pode ser o mesmo que para um estoico ou um epicurista (MARCEL, 1956, p. 99).

Desta citação podemos formular algumas questões

para o nosso entendimento acerca da inquietude: porque para a consciência cristã a inquietude é relevante? E, porque, conforme a citação acima, ela é tão desejável, compreensão oposta ao naturalismo, estoicismo, epicurismo e idealismo em geral?

Realmente estas perguntas são pertinentes e relevantes para a compreensão do assunto em si da inquietude e também auxilia em uma compreensão dêitica, preliminar, do cristianismo, no âmbito cristológico e soteriológico.

Marcel responde a estas perguntas de um modo satisfatório neste capítulo. Ele cita textos bíblicos dos evangelhos6 que revelam o aspecto positivo da inquietude. E, de que maneira ela é positiva? Quando o cristão tem consciência de seu pecado. Esta consciência, longe de ser um processo abstrativo ou racional, aponta o indivíduo como um pecador diante de Deus, que o mesmo pecado o distancia da divindade e, paradoxalmente, de si. Esta percepção, como vimos na citação acima, provoca uma certa turbação e agitação interior no “crente”.

Este processo, que é acompanhado de sofrimento, não pode ser acusado de patológico ou uma experiência primitiva, rudimentar e inferior nas experiências humanas?

6 Parábola do fariseu e do publicano (LUCAS: 18), parábola do filho pródigo (LUCAS: 15) e o texto de MATEUS 6:25.

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Para Marcel não, pois ela justamente aponta, além dos aspectos éticos que o pecado fere, indica um conflito necessário e saudável que todo ser humano deveria ter. Esta inquietação que o cristão tem em relação ao pecado mostram, paradoxalmente, virtudes cristãs: humildade e um desejo íntimo e profundo por mudanças. A inquietação, visto neste âmbito, é realmente um estímulo para um indivíduo passar por uma transformação moral-religiosa profunda.

A transformação, desejada e exigida pelas escrituras sagradas dos cristãos é exigente e, de certa maneira, impossível (Cf. ROMANOS: 7). Este indivíduo, com esta consciência, percebe a sua completa inadequação em atender às reivindicações divinas de uma humanidade tal como ela é no segundo Adão7, ou seja, em Jesus Cristo. E surge um novo problema: como alcançar ou apreender este tipo existencial de ser, ou melhor, de tornar-se cristão? Aqui emerge novamente a inquietude. E para Marcel, esta é positiva, como a primeira que citamos.

Este tipo de inquietude, conforme descrevemos acima, aponta para a teologia da graça, ou conforme cunhada pelo protestantismo histórico, para a sola gratia e sola fides. A inquietude torna-se, portanto, uma possibilidade real para o salto em direção a uma experiência religiosa e existencial autêntica com a divindade (KIERKEGAARD, 2010). Neste processo que, inicialmente é caracterizado por aflição, sofrimento e autocrítica, a inquietude desdobra-se em um processo que levará o cristão a um relacionamento misterioso, (que, em si, escapa a qualquer explicação e análise racional), paradoxal e íntimo com o Cristo da fé (BULTMANN, 2001). A graça, apreendida mediante a fé, traz consigo paz. Contudo, não é uma ataraxia, purificação e eliminação completa da inquietude. A inquietude continuará ali, presente nesta

7 ROMANOS: 4, Paulo retrata Cristo como o segundo Adão, ou seja, uma nova humanidade.

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caminhada do cristão como um sinal e estímulo para um relacionamento mais íntimo com Deus, consigo mesmo e com o próximo, possibilitando formas de crescimento intelectual, espiritual, físico, social e ecológico. Esta inquietude é um desejo ardente para que a parusia8 se cumpra nas experiências do indivíduo neste instante temporal (HEIDEGGER, 2014).

Inquietude, no contexto cristão, pode ser compreendido também como uma insatisfação saudável de si: a percepção que, no paradoxo Absoluto (KIERKEGAARD, 2010), podemos passar por constantes transformações que nos direcionará a uma nova criação e nova humanidade. Esta insatisfação não é deprimente e nem destrutiva, pelo contrário, ela é motivadora para um crescimento contínuo do cristão em sua relação com Deus, consigo, com o próximo e com a criação (MOLTMANN, 2004).

Insatisfação contra o orgulho típico do naturalismo e racionalismo, que pretendem abarcar a realidade através do cogito ou da empiria. Inquietude contra o farisaísmo que julga e pretende ser superior às demais religiões. Podemos aplicar este tipo de farisaísmo, denunciado por Marcel neste capítulo9, as religiões, ditas “evangélicas”, que julgam e condenam as minorias e os movimentos sociais que defendem as causas LGBTS, as causas feministas, das classes sociais minoritárias em geral, também as ongs ambientais, etc. Sem falar do preconceito feroz, destas “religiões”, que literalmente apedrejam e demonizam as religiões de matizes africanas10. Esta ausência de inquietude e excesso de “certezas” deste neo-

8 Termo teológico que designa o segundo retorno ou advento de Cristo à terra (cf. I TESSALONICENSES 4:13-18) 9 Farisaísmo que, semelhante ao naturalismo, racionalismo e idealismo, vê como “satânico” toda e qualquer forma de inquietude. 10 Candomblé, etc.

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farisaísmo evangélico11, nos faz lembrar o que Kierkegaard afirma que a ausência da consciência cristã do pecado, leva indubitavelmente ao desespero, que é uma alienação e degeneração de si: uma perda radical e irreversível da personalidade (KIERKEGAARD, 2010).

Os ensinamentos de Jesus e a teologia cristã da salvação pela graça encaminha o indivíduo à humildade, contrição; uma renovada insatisfação em relação ao seu ego e, ao mesmo tempo, uma persistente vontade de tornar-se um autêntico seguidor do Messias dos marginalizados, pecadores e desamparados. Um cristão inquieto, tem um misto de paz e angústia, pois ele carrega em seu “DNA” espiritual a essência do seu mestre: o paradoxo.

Paradoxos não são apreendidos cognitivamente e sim experimentados, vivenciados. A experiência fática da vida, expressão heideggeriana apresentada no livro Fenomenologia da vida religiosa, é o telos da existência e da religião cristã: religião, em seu sentido etimológico mais estrito, significa ligação com Deus, mediante o Deus-homem, o paradoxo absoluto, que é carne, que é pessoa e que nos aponta radicalmente para a terra e para vida. “E o verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade”12. A inquietude nos impulsiona para o salto em direção à vida, para relações concretas consigo mesmo, com o próximo e, enfim, com este mundo ao qual já estamos lançados e inseridos (MARCEL, 1956).

11 Cujo termo é, em si, uma enorme contradição, pois é impossível haver qualquer harmonia entre o farisaísmo e evangelho, pois a natureza do último é essencialmente abertura para a vida, perdão e justificação do pecador. 12 João 1:14

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REFERÊNCIAS

ARAÚJO, C. F. O. Angústia como possibilidade de liberdade segundo Kierkegaard. Toledo, 2016. Orientador Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens. Dissertação (mestrado em filosofia). Universidade Estadual do Oeste do Paraná-Campus Toledo, 2016.

BULTMANN, R. Crer e Compreender. Tradução de Walter O. Schlupp, Walter Altmann, Nélio Schneider.São Leopoldo: Sinodal, 2001.

HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa. Tradução de Enio Paulo Giachini, Jairo Ferrandin, Renato Kirchner. Petrópolis-RJ: Vozes; Bragança Paulista-SP: Editora Universitária São Francisco, 2014.

MARCEL, G. H. El hombre problemático. Buenos Aires- Argentina: Sudamerica, 1956.

MOLTMANN, J. Teologia da esperança. Trad. Juliano Borges de Melo. São Paulo: Teológica, 2004.

KIERKEGAARD, S. A. O conceito da angústia: uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário. Trad. Álvaro Luiz Montenegro Valls. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

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DO CONCEITO DE LIBERDADE: PARALELOS ENTRE AS FILOSOFIAS DE DESCARTES E

SARTRE

Cristiane Picinini Muitos filósofos se ocuparam com os conceitos de

liberdade e consciência, o que não é diferente com René Descartes, pai da filosofia moderna, cuja obra, na verdade, demarca a centralidade desses conceitos para os séculos seguintes. De fato, há que resgatar ou criticar esses conceitos cartesianos, que deixaram seus resquícios na construção da fenomenologia e da contemporaneidade filosófica em geral. Partiremos, no entanto, da questão cartesiana sobre Deus, visto que consciência e liberdade dependem, em sua filosofia, da concepção da divindade.

Em Descartes, a concepção de Deus está vinculada à de ideia. Ideias são um modo do pensamento. Psicologicamente, todas as ideias se equivalem, visto que importa mais serem formações do pensamento individual, do que qualquer consideração sobre seu conteúdo. Formalmente, porém, as ideias são distintas umas das outras:

Se consideradas simplesmente como modos de pensamento, não há desigualdade entre minhas ideias – todas parecem advir de meu interior. Mas se as considerarmos como representantes de coisas diferentes, há entre elas grandes diferenças (DESCARTES, 1995, p. 77).

Deve-se atentar para o movimento realizado por Descartes. Muito se fala a propósito da “súbita” passagem de

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uma filosofia baseada no cogito, das primeiras Meditações, para uma “recaída” no ateísmo das Meditações finais. Mas o movimento da obra cartesiana em questão – as Meditações sobre a filosofia primeira (1641) – deve ser pensado à luz dessa distinção entre pensamento e ideia. Todos pensamos e nosso pensamento é de ordem individual. As ideias que se formam para mim deveriam concernir a mim e não tenho porque pressupor que outros as compartilhem, sendo até de estranhar que haja tanta repetição neste mundo. Mas ocorre que, para Descartes, é somente enquanto evento psicológico, somente enquanto pensamento, desligado da consideração de seu conteúdo, que as ideias concernem a mim exclusivamente. Mas quanto aos objetos nelas representados, e que as distinguem umas das outras enquanto apontam para sua ligação com o que não somos nós mesmos, as ideias não podem ser atribuídas a um pensamento individual. Elas têm, ou algumas delas têm, ligação e dependência para com o mundo. Não somos os criadores daquilo que representamos nas ideias, e mesmo que elas ocorram como parte de “nosso” pensamento, não podemos ser os criadores de tudo quanto nelas se represente. Isto será decisivo no caso de ideias que representam o que nos ultrapassa. De fato, as ideias, enquanto representações, ou seja, em relação a seu conteúdo específico, são distintas. Esse conteúdo significa a “realidade objetiva” de cada uma. Sua realidade formal é a de serem formas do pensamento, não importando o conteúdo; mas sua realidade objetiva aponta para a distinção do “objeto” representado em cada uma, o que justamente as distingue. E era por essa distinção que, dizíamos, o percurso das Meditações não parece ser o de um recuo do cogito frente à retomada do ateísmo substancialista. Pois, há em nós uma ideia, a de infinito, que é formalmente semelhante a qualquer outra, mas que é objetivamente distinta, e de um modo tal que sua causa (a causa desse teor objetivo) não pode ser nenhum movimento de meu pensamento, nem posso eu mesmo sê-la, nem o cogito.

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Assim, a ideia de infinito, associável à noção de um Deus eterno e perfeito, é a que contém maior realidade objetiva, comparada com todas as demais, mas justamente o teor “infinito” do objeto dessa ideia aponta para uma causa da representação, que deve, segundo a tese expressa na terceira Meditação, conter mais realidade em sua causa que em si mesma como efeito dessa realidade: [...] “deve haver ao menos tanta realidade na causa quanto em seu efeito” (DESCARTES, 1973, p. 111). Então, se tenho as ideias de infinito, eternidade e perfeição, estas não podem ter provindo de qualquer ser finito e imperfeito, nem podem provir de uma outra ideia minha, pois sou finito, nem de uma causa exterior que não seja infinita, eterna, perfeita. O que tem mais realidade não pode decorrer do que tem menos. A ideia que tenho em mim precisa vir, pois, de um ser poderoso, que é sua causa e que deve conter tanta realidade efetiva e perfeição quanto a ideia contém realidade objetiva.

Compreendendo que estas ideias não estão em mim no sentido de decorrerem do meu intelecto, mas que atuam como efeito da existência de algo perfeito, conclui-se que não existo sozinha, nem como causa de meu ser. Se pudesse criar tais ideias em mim e por mim, tudo proviria de mim mesma. Descartes, porém, não defende nenhuma absolutização da consciência representadora; marca fundamental disso, que ao mesmo tempo comprova ser impossível limitar ao pensamento a substância causadora da ideia de infinito, é que, fosse a “mente” causa de tudo que há, não haveria engano, erro, nem razão para dúvida – e o cartesianismo se mede pela imperfeição manifestada na dúvida. Ora, se não me criei, se não sou perfeito e imutável, se me engano, e se ainda assim tenho presente a ideia do infinito, então existe uma substância causadora dessa ideia em mim; existe, pois, o Deus que se mostrará como aquele do qual eu e as demais coisas dependemos. E o inverso é válido: se há este Deus que é perfeito e criador de todas as coisas, então temos que excluir

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desta perfeição o engano, porque toda possibilidade de engano concerne ao imperfeito. Associamos as ideias de infinitude, resolvida pela bondade e infinitude de Deus, à de representação, que sugere consciência, ego, cogito, sob os limites de um conhecimento imperfeito; e essas duas ideias se ligam ao conceito de substância, que mostra como o cogito é e como Deus é, simultaneamente.

Recordemos um ponto importante. Se, em geral, tomamos a filosofia de Descartes como dividida entre duas grandes regiões de ser, duas substâncias – res cogitans e res extensa – é o próprio Descartes quem afirma que somente a Deus cabe, rigorosamente, o título de substância. Deus é causa suprema e substância enquanto tal. Ele dá ser e sustenta o ser, em todas as conexões entre as substâncias “derivadas”. Ele concedeu ao homem suas capacidades, seja a de errar, a de duvidar, seja a de acertar, quando guiado pelo que é claro e distinto e sem atribuir certezas onde não há. Diante disso, o ser do homem não pode ser vítima de uma angústia de fundo; se existe angústia, erro, crime, engano, ilusão, elas se devem ao saber do homem, que não trilhou o caminho correto. Claro que não somos livres para fazer tudo o que quisermos, mas somos livres para bem conduzir nossa razão, guiados pela clareza.

Todo esse processo conceitual, observável nas Meditações Metafísicas de Descartes, permite reunir a noção de substância (propriamente dita, ou seja, Deus), aquela que, enquanto causa objetiva de ideias, provoca ou permite representações – aos problemas que interessam a esta investigação, os quais dizem respeito à liberdade humana, ao ser do homem. Pensemos: já que existe um Deus perfeito e criador das coisas, como pode ter criado um ser que se engana e que, portanto, é imperfeito? Por que deixou o erro existir? Concedeu-nos poder suficiente para discernir entre verdadeiro e falso? O homem é uma substância em meio a uma cadeia de substâncias que pertencem a Deus?

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Ontologicamente, a liberdade pode ser pensada a partir da substancialidade? Uma substância caracterizada como sujeito pensante, como res cogitans, encontra sua liberdade apenas no conhecimento? A moral depende, então, do intelecto e se submete à consciência, ao saber? – Assim, a compreensão cartesiana de Deus incide sobre sua ideia de liberdade, porque determina o homem como substância (que será composta pela res cogitans e pela res extensa, pensamento e corpo); substância essa finita, imperfeita, mas toda pensada do ponto de vista de um saber absoluto, suprema, ou seja, a de um Deus verossímil que não me deixa iludir por representações falsas.

Segundo Descartes, Deus é perfeito e cria as coisas da maneira mais perfeita possível, não cabendo julgamento sobre esta perfeição, porque não conhecemos os pensamentos e a inteligência de Deus. Alguns exemplos de suas perfeitas criações são as faculdades do entendimento e da vontade; se estas são motivo de erro, não se trata de que em si mesmas sejam imperfeitas, mas de que, como culpa do homem, o uso perfeito não seja escolhido. O entendimento nos faz discernir entre bem e mal, e a vontade é o que indica a liberdade de ação, que Descartes denomina de livre-arbítrio.

O problema de liberdade cartesiana está voltado a Deus e para a vontade. Deus reconhece a liberdade do homem na liberdade para o uso da vontade. Por isso a liberdade, a ideia de livre-arbítrio, está relacionada ao erro:

Ora, se me abstenho de formular meu juízo sobre uma coisa, quando não a concebo com suficiente clareza e distinção, é evidente que o utilizo muito bem e que não estou enganado; mas, se me determino a negá-la ou a assegurá-la, então não me sirvo como devo de meu livre-arbítrio; se garanto o que não é verdadeiro, é evidente que me engano, e até mesmo, ainda que julgue segundo a verdade, isto não ocorre senão por acaso e eu não deixo de falhar e de utilizar mal meu livre arbítrio; pois a luz natural nos ensina que o conhecimento do entendimento deve

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sempre preceder a determinação da vontade. É neste mau uso do livre arbítrio que se encontra a privação que constitui a forma do erro. A privação, digo, encontra-se na operação na medida em que procede de mim; mas ela não se acha no poder que recebi de Deus, nem mesmo na operação na medida em que ela depende dele. Pois não tenho certamente nenhum motivo de me lastimar pelo fato de que Deus não me deu uma inteligência mais capaz, ou uma luz natural maior do que aquela que dele recebi, posto que, com efeito, é próprio do entendimento finito não compreender uma infinidade de coisas e próprio de um entendimento criado o ser finito (DESCARTES, 1973, p. 120).

Mesmo tomando a liberdade do homem como intrinsecamente relacionada à possibilidade do erro, podemos pensá-lo como um ser despojado de Deus, porque seus erros decorrem de sua liberdade, dada por Deus, ser perfeito que lhe permitiu discernir, fazer julgamentos, tomar decisões e ser responsável pelas consequências. Isto nos parece mostrar uma ambiguidade no conceito cartesiano de liberdade: por um lado, Descartes admite o poder de compreender e julgar que a liberdade lhe é própria; e outra que deseja proteger a autonomia do homem do sistema de ideias religiosas. Sartre partilha desta mesma ideia.

Procedamos, brevemente, a um contraponto entre o cristão Descartes e o ateu Sartre, no intuito de distinguir melhor a relevância dos conceitos ligados ao de liberdade, em Descartes. Observemos o plano mais geral da filosofia de Sartre, para o mencionado contraponto.

Para Sartre, a liberdade é condição essencial da existência humana; estamos condenados a ela desde o momento em que somos lançados no mundo. Primeiro exercemos nossa liberdade, depois construímos nossa essência. Ela não é responsabilidade de Deus – ao contrário, permanece única e exclusivamente atrelada a nós mesmos.

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Para Sartre, somos um projeto lançado, aquilo que se projeta para a vida, aquilo que ainda não é, mas que deseja ser. Tomar decisões para traçar nosso caminho não é simplesmente uma sucessão de mudanças, uma casualidade na vida de uma substância, mas sim o ser mesmo desse puro “projeto”; nisso nos deparamos com a contingência, conceito central para a concepção sartriana da liberdade. Se ser livre é ser projeto, se o projeto só tem sentido em meio a possibilidades, se a pluralidade de possíveis instaura desde sempre a contingência da decisão, então a escolha decide mais que uma questão pontual, pertencendo ao modo de ser do homem.

A contingência se determina, pois, como feixe de possibilidades. Há inúmeros caminhos possíveis, e eu o sei também porque conheço outros que já abriram diferentes caminhos. Tenho possibilidades de escolha para traçar minha vida, meu caminho. Prestes a tomar uma decisão, porém, me dou conta de que escolher Y implica não escolher X, e me angustio. A angústia é necessária para que meu projeto perceba sua existência e sua liberdade. Pode acontecer de um indivíduo simplesmente aceitar os caminhos que lhe aparecem, sem querer percorrer outros, achando que aquilo que ele chama de liberdade é suficiente. É provável que a angústia de ter tantas possibilidades diante de si não o afete. Vejamos agora, porém, como a liberdade sartriana tem bases cartesianas, mesmo que para fazer o movimento contrário:

O homem é livre porque não é si mesmo, mas presença de si. O ser que é não poderia ser livre. A liberdade é precisamente o nada que é tendo sido no âmago do homem e obriga a realidade humana a fazer-se em vez de ser. Para a realidade-humana, ser é escolher-se: nada lhe vem de fora, ou tampouco de dentro, que ela possa receber ou aceitar. Está inteiramente abandonada, sem qualquer ajuda de nenhuma espécie, à insustentável necessidade de fazer-se ser até o mínimo detalhe. Assim a liberdade não é um ser: é o ser do homem, ou seja, seu nada de ser. Se começássemos por

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conceber o homem como algo pleno, seria absurdo procurar nele depois momentos ou regiões psíquicas em que fosse livre: daria no mesmo buscar o vazio em um recipiente que previamente preenchemos até a borda. O homem não poderia ser ora livre, ora escravo: é inteiramente e sempre livre, ou não o é (SARTRE, 2008. p. 545).

Presente a si mesmo, isto é, sendo marcado por um abismo ontológico (ele se volta e aparece diante de si mesmo, como se fossem dois) o homem é livre justamente por isso. Algo que simplesmente “é algo”, determinado, pronto, fechado, não pode ser livre porque não se faz presente para si mesmo, não lida consigo mesmo. A verdade do ser humano, segundo afirma Sartre, é a do Para-si, não a do Em-si; “tendo sido” o centro nadificado desse ente, o nada de ser, do Para-si, atua no homem definindo seu ser como necessidade de “fazer”, completar-se, escolher. Ele não tem um exterior ou um interior em que buscar ajuda: a realidade do homem é a do Para-si, inteiramente vazio, frente ao Em-si, coeso, fechado, que deve ser atravessado para que dele o homem recolha algum ser e determinação. Por fim, diz Sartre, que esse nada “no âmago” do homem é a raiz de sua liberdade, porque se ele fosse um ser substancial, não haveria espaços psíquicos para a liberdade. Como isso ocorre para um ser situado, isto é, fático, já arremessado para junto do mundo que é em si?

Minha liberdade consiste no poder de fazer escolhas. Alguns podem perguntar: que tipo de liberdade é essa que me obriga a escolher? Ora, nesta concepção de liberdade não estamos vinculados a nenhuma religião ou crença; não seguimos nenhuma tradição, fazemo-nos guias, colocando-nos no poder de decisão. Eu construo minha essência sozinha; adapto-me ao meio, podendo exercer minha liberdade no respeito ou desrespeito às leis e ao Estado, comportando-me de maneira X, recusando a maneira Y, diante da sociedade, do outro, das concepções (mesmo a de Deus), diante de mim

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mesmo. Isso já é suficiente para esclarecer a amplitude e centralidade da concepção. Tomando a liberdade como contingência, como movimento que não pode parar, um devir constante de escolhas e responsabilidades, Sartre chama a atenção para a relação entre liberdade e vontade:

Uma tendência bastante comum, com efeito, visa assemelhar os atos livres e os atos voluntários, e a restringir a explicação determinista ao mundo das paixões. É, em suma, o ponto de vista de Descartes. A vontade cartesiana é livre, mas existem as “paixões da alma”. Descartes tentará ainda uma interpretação fisiológica dessas paixões. Mais tarde, buscar-se-á instituir um determinismo puramente psicológico. As análises intelectualistas que um Proust, por exemplo, tentou realizar do ciúme ou do esnobismo podem servir de ilustração a esta concepção do “mecanismo” passional. Seria necessário então conceber o homem como simultaneamente livre e determinado [grifo nosso]; e o problema essencial seria o das relações entre esta liberdade incondicionada e os processos determinados da vida psíquica: de que modo tal liberdade irá dominar as paixões, como irá utilizá-las em seu próprio benefício? Uma sabedoria que vem da antiguidade – a sabedoria dos estóicos – ensinará a acordar com as próprias paixões para que se possa dominá-las; em suma, irá aconselhar o homem a se conduzir em relação à afetividade como o faz com respeito à natureza em geral, quando obedece a fim de melhor controlá-la (SARTRE, 2008, p. 545).

Descartes estabelece uma moral provisória com o intuito de seguir algumas regras para a obtenção da verdade. Para ele, o homem deve possuir a vontade de sempre usar sua razão da melhor forma possível, a fim de exercer a sabedoria que por natureza lhe possa caber. Somente assim exercerá sua liberdade. Mesmo diante das paixões da alma, que podem persuadi-lo e levá-lo ao erro, o homem pode aprender a dominá-las a fim de revertê-las em seu próprio benefício. Sob

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este ponto de vista, podemos perceber o espaço que está entre a liberdade e a subjetividade, pois liberdade é interesse, esforço, intenção, decisão referente ao julgar bem. Portanto, a vontade deve sempre estar propensa à liberdade de melhor escolher para si mesmo, para poder suportar as paixões.

O antecedente moderno da liberdade sartriana é a posição central do Eu, associado a pensamento e vontade, em Descartes. É com ele que aparece um Eu como fundamento, em que a subjetividade se determina pelo cogito. O entendimento desse Eu, que pensa, faz com que a liberdade esteja inteiramente ligada a ele. Os objetos são, portanto, objetos que provêm de um âmbito exterior (a extensão) mediados eventualmente entre um sujeito e outro. Eis o caminho pelo qual a determinação cartesiana da subjetividade, ligada ao cogito, influenciou vários filósofos na construção de suas teorias, incluindo Sartre. Isso tudo, justamente porque o cogito, o Eu, torna-se um sujeito próprio, específico, em relação ao qual todas as demais coisas se determinam como tais. É claro que, aos olhos de Sartre, a dimensão existencial do homem é muito maior do que na teoria cartesiana.

Embora ambos concordem que a consciência subjetiva é uma atividade exclusivamente humana, em Descartes ela é, propriamente, o foco de toda representação e lugar de toda escolha (porque sede do pensamento, vontade, imaginação, etc), enquanto que em Sartre o problema inicial será passar do ser da consciência irrefletida (meramente representacional, imaginante, volitiva e passional, diríamos, a partir de Descartes) para a consciência refletida, rumo ao conhecimento reflexivo fundamentado nela. Com isso, há a rejeição do Ego como mera consciência1; o enigma permanece

1 [...] dado que o ego (cogitum) assegura definitivamente o “...minimum quid... quod certum sit et inconcussum” (AT VII, 24, 12-13), dado, pois, que, sob o império da subjetividade já transcendental, todo outro conhecimento certo dependerá do ego pensante como uma de suas cogitationes, são os outros espíritos concebíveis em geral e acessíveis ao

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sendo como se dá a autoconsciência e qual seu modo de ser. Sartre, herdeiro da tradição fenomenológica, percebe que conceber a consciência em dependência da substancialidade implicaria impedir o movimento de alcance próprio à primeira. Porque se não há ego, há individualidade, particularidade, mas se houver somente um eu consciente, somos ainda animais, que compreendem e operam um mundo através de imaginação e algum entendimento, mas não um si mesmo. A consciência é pessoal porque é reenvio de si mesma, ou seja, o que ela denomina de presença de si mesma é consciência irrefletida. Mas essa consciência não implica necessariamente consciência de si mesma, porque:

Dizer que a consciência é consciência de alguma coisa significa que não existe ser para a consciência fora dessa necessidade precisa de ser intuição reveladora de alguma coisa, quer dizer um ser transcendente. [...] Estamos no plano do ser, não do conhecimento; não se trata de mostrar que os fenômenos do sentido interno presumem a existência de fenômenos objetivos e espaciais, mas que a consciência implica seu ser um ser não consciente e transfenomenal (SARTRE, 2008, p. 34, grifo nosso).

Sartre se preocupa em ressaltar que não há nenhum conteúdo imediato na consciência; ela é pura liberdade, bem ao contrário do que se passa na teoria cartesiana, que defende o inatismo e Deus como fonte suprema do ser consciente. Ambos concordam que a realidade da subjetividade humana não existe originalmente como algo exterior a si mesma, porque para a experiência consciente é necessário um conhecimento de si próprio, mas tais razões limitam a

ego em particular? Dito de outro modo: o ego, assegurado de uma primazia metafísica e epistemológica indestrutível, admite outros “sujeitos” que não estejam submetidos a ele como outros tantos “objetos”? (MARION, 2010, p. 171).

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compreensão humana. Vejamos como Descartes mostra o caminho que segue da capacidade de auto compreensão até o cogito:

Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir sem eles? Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns: não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu penso ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito (DESCARTES, 1973, p. 92).

Descartes ainda complementa:

[...] O pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo, isto é certo; Mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso, pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Nada admito agora que não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa; isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida. Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa. E o que mais? Excitarei ainda a minha imaginação para procurar saber se não sou algo mais. Eu não sou essa reunião de membros que se chama

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o corpo humano; não sou um ar tênue e penetrante, disseminado por todos esses membros; não sou um vento, um sopro, um vapor, nem algo que posso fingir e imaginar, posto que supus que tudo isso não era nada e que, sem mudar essa suposição, verifico que não deixo de estar seguro de que sou alguma coisa (DESCARTES, 1973, pp. 93-94).

Como se vê a partir das citações, quando Descartes

quer dizer quem é o homem e estabelecer a subjetividade do cogito, afirma que a “coisa existente” que somos é “pensante”, não porque não haja o corpo, estreitamente unido à alma, mas porque o corpo, o ar que respira, as imagens que lhe ocorrem e as paixões de que é vítima, podem passar, sem que passe o entendimento puro, pensável sem eles. Uma meditação sobre a liberdade, nesses termos, certamente depende do entendimento, da razão, mais que da imaginação e da sensibilidade. Fazer o uso de nossa liberdade, significa fazer o uso autônomo da razão. Não há problemas ontológicos com a liberdade, porque a consciência é oposta ao mundo físico, ou seja, eu existo como mente, e há as demais coisas distintas de mim, que são os objetos. Para Descartes, a consciência é um campo que implica identidade, reconhecendo-se, portanto, como sujeito que pensa, o que significa que a experiência consciente é fundamental para obter autoconhecimento.

Sartre admite que a consciência seja capaz de conhecer a si mesma. O problema que aponta é o de não haver pensamentos contidos a priori em minha consciência; esta é mais do que simplesmente conhecimento representador, já que não pode ser, portanto, substância. Consciência é intencionalidade: é o espaço da transcendência; deseja ser, está lançada para, projetando-se a algo, que ainda não tem substância alguma:

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O erro ontológico do racionalismo cartesiano foi não ver que, se o absoluto se define pela primazia da existência sobre a essência, não poderia ser substância. A consciência nada tem de substancial, é pura “aparência”, no sentido de que só existe na medida que aparece. Mas, precisamente por ser pura aparência, um vazio total (já que o mundo inteiro se encontra fora dela), por essa identidade que nela existe entre aparência e existência, a consciência pode ser considerada o absoluto (SARTRE, 2008, p. 28).

Há aqui uma quebra de paradigmas entre o dualismo

corpo-mente. Para que haja consciência (mente), é preciso que haja objetos com os quais nos relacionamos e que preenchem nossa consciência de conhecimento:

Uma mesa não está na consciência sequer a título de representação. Uma mesa está no espaço, junto à janela, etc. A existência da mesa, de fato, é um centro de opacidade para a consciência; seria necessário um processo infinito para inventariar o conteúdo total de uma coisa. Introduzir essa opacidade na consciência seria levar ao infinito o inventário que a consciência pode fazer de si, convertê-la em coisa e recusar o cogito (SARTRE, 2008, p. 22).

Isso mostra que o ser-para-si é consciência e,

portanto, liberdade, diferente, porém dependente da relação para se projetar no mundo, do ser-em-si2. O que incomoda Sartre é que a consciência, estabelecida por Descartes no “penso, logo existo”, já estaria alcançando a verdade de si

2 Para se compreender como a consciência do homem se materializa nas escolhas intencionais é preciso compreender o que, exatamente, Sartre chama de “em-si” e “para-si”. A expressão “em-si” é utilizada por Sartre, para designar tudo o que existe, exceto a consciência humana, chamada, por ele, de “para-si”. Todas as coisas que existem são resultados objetivos, chamados “em-si”; por sua vez toda a representação não objetiva designada pela consciência do homem é a parte denominada de “para-si”. (VILAS BÔAS DA SILVA, 2013. p. 97)

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mesma, não haveria necessidade do subjetivismo. Pois no cogito descobrimos, além de nós mesmos, a existência do outro, pois quando me reconheço enquanto ser, tenho capacidade suficiente para reconhecer o outro enquanto tal.

A consciência sartriana é pura intencionalidade, um vir a ser, ação diante da liberdade, constitui-se a partir daí. Antes disso, a consciência é nada. Nessa perspectiva, assim como todo saber é, afinal, intuição, a ação “é por princípio intencional”3, diz Sartre. Se a intencionalidade da consciência não permite antecipar a compreensão enquanto conteúdo, também os resultados e consequências do mundo da ação não podem ser antecipados de maneira determinada. Para que a ação seja propriamente ação, porém, deve ser pressuposto um espaço de liberdade, sem o qual seríamos máquinas ou fantasmas de inconsciência. Parece sumamente relevante, para Sartre, que o agente “esteja consciente” do propósito de um comportamento e livremente o escolha (mesmo que por “dolo eventual”) para que este seja considerado “ação”:

O fumante desastrado que, por negligência, fez explodir uma fábrica de pólvora não agiu. Ao contrário, o operário que encarregado de dinamitar uma pedreira, obedeceu às ordens dadas, agiu quando provocou a explosão prevista: sabia, com efeito, o que fazia, ou se, preferirmos, realizava intencionalmente um projeto consciente (SARTRE, 2008, p. 536).

Se agora retornamos a Descartes, logo nos deparamos

com o contraste: nenhuma análise sobre um agente

3 [...] agir é modificar a figura do mundo, é dispor de meios com vistas a um fim, é produzir um complexo instrumental e organizado de tal ordem que, por uma série de encadeamentos e conexões, a modificação efetuada em um dos elos acarrete modificações em toda a série e, para finalizar, produza um resultado previsto (SARTRE, 2008, p. 536).

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consciente, embora tanto pese sobre o cogito, o ego; nenhuma palavra é sobre a liberdade.

O que mais pesa, aqui, é a liberdade que Descartes atribui a Deus. Isto impede, segundo Sartre, a autonomia própria à consciência. Duvidar é estar diante do livre-arbítrio, o qual, se compreendido radicalmente, deveria permitir ao homem recusar a noção de Deus. Talvez Deus tenha sido a tentativa de fuga diante da angústia da liberdade, própria de um ser que é, ao mesmo tempo, crença e consciência dela e que também está lançado no mundo e se torna responsável por ele. Arriscamos dizer que tal proposta, a da existência de um Deus responsável, em última instância, por nosso ser e nosso destino, pode corresponder ao que Sartre chama de má-fé. Teria mesmo pensado Descartes que a liberdade humana se reduz a exercer o livre-arbítrio, designando a Deus a liberdade que funda a verdade? Para Sartre, essa fuga pela religião, depois de afirmar a autonomia do cogito e do desejo de criar um método que fundasse a ciência, é algo paradoxal. O existencialista acredita que Descartes se deixou submergir diante da ordem estabelecida pela ciência dogmática e pelo sistema de valores cristãos. REFERÊNCIAS DESCARTES, R. Meditações metafísicas. Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1973. [Col. Os Pensadores].

MARION, J.-L. Cuestiones cartesianas. Trad.: Pablo Pavesi. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2010.

SARTRE, J.-P. O Existencialismo é um humanismo. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural. Trad. Rita Correia Guedes, Luis Prado Júnior, 1987.

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SARTRE, J.-P. O ser e o nada. Ensaio de uma ontologia fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão. 16. ed. Petrópolis, RJ: Vozes 2008.

SILVA, A. M. V. B. A concepção de liberdade em Sartre. Disponível em: http://www.marilia.unesp.br/#!/revistas-eletronicas/filogenese/edicoes-anteriores/2013---volume-61/.

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VII

OS FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA DE W. DILTHEY

Eduardo Henrique Silveira Kisse

O tema do presente artigo é a filosofia da vida de

Wilhelm Dilthey (1833-1911). Seu objetivo é primeiramente mostrar que ela seja a parte mais fundamental da sua filosofia bem como quais sejam suas principais motivações. Em seguida, também se tentará entender as conclusões mais imediatas dessa filosofia da vida. A importância de se discutir esse tema reside no fato de Dilthey hoje ser lido muito mais como um hermeneuta. Entretanto será mostrado ao longo do presente artigo que os textos sobre hermenêutica desempenham um papel secundário no âmbito de sua filosofia, cuja base não é a hermenêutica, mas a filosofia da vida mesma.

De fato, a nomenclatura de hermeneuta lhe foi dada por Heidegger (1889-1976) e Gadamer (1900-2002). Não é que Dilthey não tenha escrito nada sobre hermenêutica, mas ela não é fundamental como muitos pensam. Aliás, não somente ele não possui nenhum escrito sistemático sobre o tema, como ele se encontra apenas no final de todo o seu pensamento. Em sua principal obra, A Introdução às Ciências Humanas (GS I), por exemplo, ele nem ao menos fala em hermenêutica. Na sua segunda obra principal, A Construção do Mundo Histórico nas Ciências Humanas (GS VII), ela aparece apenas muito brevemente e apenas no final.

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7.1 PHILOSOPHIE DES LEBENS E LEBENSPHILOSOPHIEN

Resta então tratar daquilo que é mais fundamental.

Mas aqui cabe uma pergunta. Será que aquilo que se entende por filosofia da vida em Dilthey é o mesmo que se entende pelo mesmo nome com Schopenhauer, Nietzsche ou Bergson? Sim, por um lado. Não, por outro. Observa-se que Dilthey descreve seu sistema com o nome Philosophie des Lebens (GSVIII, S.175-185), que quer dizer “filosofia da vida” em português. Mas em alemão também se usa Lebensphilosophie, que também traduzimos por “filosofia da vida”. Dilthey se via em muitas instâncias próximo dos outros filósofos da vida, mas se distanciava de um modo muito sutil deles, o que tornava sua filosofia digna de uma outra nomenclatura. Vejamos primeiro o que aproxima as duas filosofias para então termos base suficiente para saber o que as diferencia.

Caracterizar a filosofia da vida é uma tarefa complexa, pois ela, como o conceito de vida mesmo, é muito ampla e, em muitos casos, indeterminada. Podemos entender vida como um conceito biológico num sentido cósmico ou individual; como algo exclusivamente humano; como cultura; como processo cognitivo; como processo pré-racional etc. Mesmo a filosofia da vida pode ser entendida de diversas maneiras: filosofia de vida da vovó; filosofia da empresa; meditação transcendental; reflexão sobre o sentido da vida e as primeiras e últimas coisas, vitalismo, reflexão sobre a experiência de si mesmo e do mundo etc.1 Essa última forma é aquela da qual trataremos aqui.

Mesmo essa forma não consegue ser tratada de maneira muito unitária. Não existe, por exemplo, uma Escola da Filosofia da Vida tal como existe a Escola de Frankfurt.

1 Cf. KOZLJANIC ̌, R. J. Lebensphilosophie. Eine Einführung. Stuttgart, 2004, p. 16.

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(Uma exceção é o próprio Dilthey, que deixou uma Escola Diltheyana com Georg Misch, Friedrich Bollnow e Herman Nohl.) Entretanto existem sim certas características que possam ser apontadas como comuns a seus integrantes. Uma delas é o distanciamento da filosofia de cátedra. Infelizmente o presente texto não dispõe de espaço suficiente para discutir com detalhes como a filosofia da vida se opõe à filosofia mais amplamente praticada nas universidades na época de Dilthey, mas podemos mencionar o fato da academia se basear no pensamento de Kant, contra quem as filosofias da vida falam. Uma outra característica que separa as filosofias da vida da de cátedra é uma linguagem menos rebuscada e muito mais popular ou também poética, como no caso de Nietzsche, que escreve em aforismos, ou também uma rejeição da predileção pela lógica, pela teoria do conhecimento e pelas ciências da natureza em detrimento de uma proximidade à experiência humana. As filosofias da vida opunham a vida humana ao intelectualismo praticado nas universidades.2

Analisando essas características das filosofias da vida, vemos que Dilthey tem uma grande proximidade com elas, especialmente porque ele escreve contra Kant. Mas também podemos dizer que ele parte de Kant para, então, superá-lo. Agora é necessário que tentemos explicar Kant para que possamos ver como Dilthey se opõe a ele. Essa explicação não pretende ser minuciosa, mas apenas suficiente para um posterior entendimento de como Dilthey constrói sua filosofia a partir da de Kant. É sabido que Dilthey não se opõe somente a Kant, mas também ao pensamento cristão voltado somente para uma imaterialidade, ao empirismo, ao positivismo, entre outros, tal como mostram Bollnow3 e

2 Cf. ALBERT, K. Lebensphilosophie. Von den Anfängen bei Nietzsche bis zu ihrer Kritik bei Luckács. Freiburg in Breisgau, München, 1995, p. 9. 3 Cf. BOLLNOW, O. F. Dilthey. Eine Einführung in seine Philosophie. 4ª edição. Schaffhausen, 1980, p. 11 ff.

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Misch4. Entretanto aqui trataremos especialmente de Kant, pois ele é aquele a quem Dilthey mais se direciona. O pensamento lógico puro é uma das motivações que aparecem na introdução à sua principal obra:

Nas veias do sujeito cognoscente, que Locke, Hume e Kant construíam, não corria sangue real, mas o suco diluído da razão como uma mera atividade de pensamento. A lida histórica e psicológica com o homem em seu todo me levaram a, na multiplicidade de suas forças, colocar na base mesmo da explicação do conhecimento e de seus conceitos (conceitos tais como mundo exterior, tempo, substância, causa) esse ser que, querendo e sentindo, representa [...].

E Dilthey segue: O método do seguinte ensaio é com isso o seguinte: eu mantenho cada componente do pensar abstrato e científico do presente junto a toda a natureza humana tal como a experiência, o estudo da linguagem e da história a revelam, e busco seu contexto (GS I, p. XVIII).

Ou seja, Dilthey não tem como objetivo anular a

filosofia de Kant, mas apenas apontá-la como insuficiente para tratar do homem, que não é apenas ser pensante, mas volitivo e sensitivo. Vejamos então como Kant desenvolve sua filosofia.

Sabe-se que Kant marca a metafísica de sua época por sua tentativa de renová-la. Ela se encontrava num indiferentismo resultante da eterna disputa entre o apriorismo, segundo o qual os sentidos não são fonte confiável para o conhecimento certo, e o empirismo, para o

4 Cf. MISCH, G. Vorbericht des Herausgebers. In: Die Geistige Welt. Einleitung in die Philosophie des Lebens. Erste Hälfte: Abhandlung zur Grundlegung der Geisteswissenschaften. Georg Misch (Ed.), Gesammelte Schriften. Vol. V, 7ª edição. Stuttgart, Göttingen, 1968, p. LII.

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qual tudo o que for independente da experiência não pode ser fundamento para o conhecimento. O que Kant apresenta para a superação desse indiferentismo é uma análise por vias racionais da razão. É a razão se julgando a si mesma.5

Para isso, Kant se vale de condições a priori do conhecimento, isto é, das condições segundo as quais nós conhecemos, mas que são anteriores à experiência. Nós podemos conhecer o objeto segundo essas condições prévias, na medida em que elas servem de base para que o sujeito represente o objeto. Isso é o modelo de conhecimento das ciências da natureza, como a matemática, por exemplo, que apenas reconhecem nas coisas aquilo que se intui a priori nelas. Mas aquilo que permanecer fora do alcance das condições a priori permanece fora das nossas possibilidades de conhecimento, pois apenas podemos conhecer as aparições que nos chegam por meio dos sentidos, sendo aquilo para além da experiência o que não podemos conhecer, pois permanece incondicionado. Esse incondicionado é a coisa em si, que não é passível de conhecimento.6

Isso não quer dizer, entretanto, que todo conhecimento possível seja vindo da experiência. Experiência significa para ele uma elaboração da matéria bruta das impressões em conhecimento, uma transformação da multiplicidade da sensibilidade na unidade do entendimento. Entretanto existem conhecimentos que trabalham puramente com conceitos que não tenham qualquer objeto correspondente na experiência.7

5 Cf. KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft. Wilhelm Weischedel (Hrsg.). Frankfurt, 1ª edição, 1974, p. A X-XII. 6 É interessante notar que a palavra alemã para incondicionado, das Unbedingte, traz consigo a coisa, das Ding, e a negação, Un. Neste sentido, o incondicionado é o não coisificado, aquilo que não se coisificou pelas condições a priori do entendimento humano. 7 Cf. Ibidem, B1, 2.

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Mas isso também não quer dizer que a sensibilidade não desempenhe qualquer papel. A parte da Crítica da Razão Pura que trata da relação entre entendimento e sensibilidade é a estética transcendental, que é menos uma teoria do gosto e mais uma teoria da percepção. A matéria do conhecimento nos chega por meio da sensibilidade, mas ainda como fenômeno, e é pensada pelo entendimento, fazendo surgir conceitos. Aquilo que ordena a “multiplicidade das aparições em determinadas relações”8 é a forma. Então, Kant separa na aparição a matéria do conhecimento da forma na qual ela é ordenada. Mas aquilo no que a matéria é ordenada não pode ser aparição, de tal modo que a forma deva ser dada a priori. A estética transcendental tem como tarefa isolar a sensibilidade, e assim trabalhar apenas com a intuição não empírica e, então, atingir a meta da crítica. Em seguida, resta apenas a forma pura da aparição, que é a única que consegue entregar a sensibilidade a priori. As “formas puras da intuição sensível como princípios a priori do conhecimento”9 são o espaço e o tempo.

7.2 FILOSOFIA DA EXPERIÊNCIA

Apesar de todo esse esforço, Dilthey diz que Kant não

proporcionou qualquer avanço à metafísica, pois sua própria filosofia permanece longe de uma fundamentação. Ainda, a filosofia de Kant à sua época (representada por Sigwart e Lotze no texto Experiência e Pensamento. Um estudo sobre a lógica da teoria do conhecimento do século 19 (GS V, pp. 74-89)), parte da pressuposição de uma separação da forma da matéria do conhecimento, que Dilthey procurará superar. Aqui vale a pena lembrar que essa separação é originada do logismo que, segundo Dilthey, é a separação do ato de pensamento do

8 Ibidem, pp. B33, 34/A19, 20. 9 KANT, a. a. O., S. B37/A22, 23.

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contexto como um “apanhado de diferentes formas de juízos e conclusões e de sentenças de pensamento”10.

Pode-se entender o problema do logismo da seguinte maneira: a realidade não está baseada na síntese das representações, mas por meio de operações lógicas. A multiplicidade das sensações encontra sua unidade no ato do juízo por meio do entendimento. Mas como acontece a conexão de sensação e pensamento? Essa junção, essa harmonia é uma pressuposição teleológica, pois a natureza seria organizada de um tal modo que nós pensaríamos esse pensamento. (GS V, p. 75)

Neste sentido é correto afirmar que a filosofia kantiana é, do início ao fim, uma lógica formal. Essa lógica formal é fundamentada na multiplicidade de sensações e no curso de pensamento, que não é arbitrário, pois é subsumido à natureza. (GS V, p. 80-81) Assim, Dilthey conclui que Kant não desenvolve uma nova metafísica, mas apenas repete ou continua as anteriores. A teoria do conhecimento kantiana pressupõe um contexto teleológico da natureza do nosso pensamento que remete à ideia de Deus em Aristóteles ou S. Tomás de Aquino11 como um “vínculo substancial” (GS V, p. 81). Isso dito de outro modo: o logismo depende da pressuposição da multiplicidade de sensações isoladas unificadas por um ente.

Mas então, qual é a solução que Dilthey oferece para esse problema? Ele declara que existe uma forma de pensamento que precede a dualidade de forma e matéria e de sujeito e objeto. Essa forma de pensamento existe antes mesmo do pensamento formado por juízos e é chamada de

10 DILTHEY apud MISCH, Ibidem, p. LXI. 11 Para mais informações sobre a ideia de Deus como apoio à metafísica, cf.: Tengelyi, L.: Welt und Unendlichkeit. Zum Problem phänomenologischer Metaphysik. Freiburg/München: Karl Alber, 2014. Besonders der erste Teil, pp. 25-168.

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pensamento calado (schweigendes Denken).12 (Ele é chamado assim, porque serve de solo para o pensamento em palavras e juízos.) O pensamento calado é o primeiro na vida e está por toda parte onde ela se encontra. Como ele se encontra de um modo subjetivo, faz-se necessário que seja objetivado para que se tenha acesso a ele. (Com relação à objetivação, vale dizer que ela leva ao problema das ciências humanas, pois será nelas que o conteúdo do pensamento calado encontrará expressão.) Por agora, é importante saber que a lógica de Dilthey está fundada na vida, não em abstrações. Com isso, ele encontra solução para o problema do logismo porque, para Kant, a lógica precede o ato do entendimento, mas para Dilthey, a experiência é primeira.13

Um outro ponto por meio do qual Dilthey procura superar o intelectualismo e o dualismo kantianos é na questão sobre a realidade do mundo exterior. No texto Contribuições à Solução da Pergunta da Origem da nossa Crença na Realidade do Mundo Exterior (GS V, pp. 90-138), Dilthey explica como surge o nosso contato mais primeiro com o mundo exterior ao eu. Essa pode parecer uma questão aleatória para se discutir esse tema, mas ela faz parte daquele projeto anunciado na Introdução: uma antropologia que trate o homem como um todo, não apenas como um ser intelectual. De fato, ao tratar da realidade do mundo exterior, Dilthey começa analisando o homem em sua totalidade, incluindo também em seu contexto instinto, vontade e sentimento. O homem possui o instinto que o impulsiona, fazendo surgir sua vontade. A partir da vontade, surge o movimento para a sua supressão. Daí surge a experiência de satisfação ou resistência. Essa experiência de resistência existe já em embriões, que encontram resistência no útero da mãe, fazendo com que eles

12 Cf. Ibidem, p. LXI. 13 Cf. Ibidem, p. LXII.

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já tenham consciência de um exterior que é independente deles, ainda que de forma muito obscura. (GS V, p. 96-99)

Poderíamos pensar com isso que Dilthey se refere somente ao tato como único sentido capaz de experimentar a resistência do mundo exterior. De modo diverso, um outro exemplo que ele dá é uma tentativa de se ler um livro e ser interrompido por um “barulho indesejado” (GS V, p. 102) vindo da janela. É o homem como um todo que encontra resistência do mundo exterior, que exerce sobre ele uma pressão constante. E, quando, a partir da vontade, surge um impulso de movimento e, da inibição desse movimento, se experimenta não satisfação, mas sofrimento por conta de uma resistência, o impulso não simplesmente desaparece. Ao invés disso, ele continua. A volição, por exemplo, não pode simplesmente terminar com a representação de uma doença. Ela “exerce sobre a minha sensação de vida uma pressão constante” (GS V, p. 132). Isso significa que o mundo exterior está sempre presente para o eu, que constantemente encontra a sua resistência, de tal modo que sempre exista a experiência de um ser exterior independente do eu.

Daí pode-se concluir que a consciência do exterior independente de mim não é dada imediatamente. Quando o movimento é suprimido, surge o sentimento de resistência e, a partir de então, a consciência de um exterior independente de mim. Por um lado, aquilo que me é independente aparece na sensação de resistência a partir de uma experiência de resistência imediata. Por outro, a realidade do mundo exterior surge “não dos dados da nossa consciência” (GS V, p. 104). Mas a experiência de resistência, que é dada mediatamente, está contida na consciência da resistência, que é dada imediatamente. Por isso, o homem não consegue simplesmente, por meio da experiência externa, atingir a

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essência de si mesmo. E as pessoas aparecem nesse sistema de modo diferente que o das coisas.14

Os objetos podemos experienciar por meio de resistência, mas as pessoas por simpatia. Nós experienciamos a existência das outras pessoas por meio da conclusão de uma analogia, no que a expressão de uma pessoa seja a mesma que eu teria na mesma situação. Nós reconhecemos as outras pessoas não como objetos para o propósito das nossas vontades, mas como fim em si (GS V, p. 111).

O importante a se observar desse tratado é que Dilthey consegue demonstrar que a filosofia não começa do pensamento lógico, mas sim de um nível muito mais profundo, que também é constituído por vontade e sentimento. Nisso, ele supera a separação kantiana de pensamento e experiência, já que tudo se inicia com vontade e sentimento por meio do esquema de impulso e resistência, sendo que mesmo a separação de sujeito do objeto surge depois. Com isso Dilthey se concentrará mais no conceito de experiência.

Sobre experiência, Dilthey escreve mais aprofundadamente em Primeiros Projetos para Teoria do Conhecimento e Lógica das Ciências Humanas (antes de 1880) (GS XIX, pp. 1-57), texto no qual ele declara que já Descartes começava sua filosofia de forma errada, pelo ego. Como já vimos, a filosofia não começa pelo pensamento, mas sim pela experiência. Mesmo a crítica de Kant, que pretendia pensar o pensamento (o pensamento examina o pensamento), falha nesse sentido, pois o pensamento não pode ser a pedra de toque de si mesmo, servindo-se com seus próprios parâmetros. Assim, é necessário que se busque uma outra base última da filosofia, pois toda ciência necessita de uma. Ela não pode se servir da sentença da fenomenalidade, da qual Kant se

14 Cf. Ibidem, pp. LX-LXI.

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serviu, segundo a qual tudo o que podemos conhecer são fenômenos em sentido empírico.

Essa sentença foi declarada pela primeira vez por Berkeley e refere-se ao conhecimento da realidade por meio dos fenômenos como aquilo que nos chega por meio dos sentidos, mas Dilthey diz que: “O real é aquilo efetivo na minha totalidade psíquica” (GS XIX, p. 17). Para além disso, explica Lessing em maiores detalhes da seguinte forma.

A “sentença da fenomenalidade”, enquanto princípio não derivável da filosofia, quer dizer então que a consciência de mundo original e prática com sua – não examinada numa lida primária – suposição de uma diferenciação de eu e mundo, de um modo mais concreto, de uma diferenciação de um mundo de objetos encontrado exteriormente ao eu, mundo esse que é dado exteriormente a esse eu, é substituída na reflexão filosófica pelo conhecimento de que os objetos do mundo exterior são apenas constituídos por fatos da consciência subjetivos. As pessoas e os objetos que vêm de encontro ao eu e ao mundo são somente dados ao eu como fatos da consciência.15

Em uma palavra, o que Lessing diz sobre a sentença

da fenomenalidade é que ela é o conhecimento exclusivo da reflexão filosófica de que o mundo que é dado exteriormente ao eu é construído por esse eu como fatos da consciência. Ou seja, o mundo com seus objetos e pessoas aparece apenas como aquilo que se dá na consciência.

Isso quer dizer que a realidade não é apenas representações. Além disso, o intelecto sozinho não é capaz de determinar o objeto. O objeto é determinado primeiramente pela vontade e pelo sentimento, para apenas

15 LESSING, H.-U. Die Idee einer Kritik der historischen Vernunft. Wilhelm Diltheys erkenntnistheoretisch-logisch-methodologische Grundlegung der Geisteswissenschaften. Freiburg (Breisgau), München, 1984, p. 194.

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depois entrar o intelecto em ação. Por exemplo: carro pode ser meio de transporte, como também objeto de estudos de mecânica. De qualquer modo, carro pode ser visto, sentido ou cheirado. Ele pode ser percebido de diferentes modos, mas, ao final, ele não é apenas percepção, mas sim a completa experiência do objeto (GS XIX, p. 20).

Assim, experimentamos mais do que simples representações, de um modo tal que tudo do que tenhamos consciência seja o que experimentamos não somente pelos sentidos. “O real é o objeto da experiência. Como experiência indicamos o processo na consciência por meio do qual o real se abre à consciência” (GS XIX, p. 23). Por isso, Dilthey afirma que toda a filosofia é Filosofia da Experiência. Tudo é experiência: tanto os sentidos como ideias inatas; todas estas coisas são “fenômenos da consciência” (GS XIX, p. 25).

Aquilo que se encontra para fora do experimentado na nossa consciência chama-se abstração. Por isso, Dilthey diz que “Kant se movimenta em alta abstração e, em medida crescente” (GS XIX, p. 43), também o Neokantismo.

Como continuação da filosofia transcendental kantiana16, Dilthey desenvolve uma filosofia que se inicia não do ponto fixo de um sujeito rígido e morto, mas da “vida na totalidade de suas forças”17, ou seja, do ponto de vista da experiência.

Apesar de Dilthey ter o ponto de início na experiência, ele não se encontra de acordo com os empiristas. Daí o famoso bordão diltheyano: Empiria e não empirismo. “O

16 Apesar de Bollnow falar sobre uma apropriação transcendental-filosófico em Dilthey, ele menciona isso apenas em prol de uma didática mais clara. Dilthey não procede transcendental-filosoficamente, mas como a filosofia transcendental. Nesse sentido, ele não pode ser comparado a Kant, já que a filosofia transcendental é ahistórica. Cf. BOLLOW, O. F. Dilthey. Eine Einführung in seine Philosophie. 4ª edição Schaffhausen, 1980, pp. 18-20. 17 Ibidem, p. 26.

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pensamento principal da minha filosofia é que, até agora ainda não se fundamentou a experiência total, plena e não distorcida ao filosofar, e, como consequência, também a realidade toda e por completo.”18 Ou seja, até então a experiência sempre foi restrita à experiência dada pela via dos sentidos.

O erro dos empiristas e de Kant foi ter pensado os fatos da consciência como subsumidos a conceitos que vigem no mundo exterior e que não partem da consciência mesma. Tudo aquilo que afeta a consciência é experiência, de tal modo que a diferenciação kantiana de experiência e consciência não faça sentido.

Por outro lado, também não é porque a filosofia não se inicia pelo mundo exterior que tudo é criação da consciência (GS XIX, p. 66).

O mundo exterior aparece, enquanto fato psíquico, tão imediato e seguro quanto qualquer volição ou sentimento. Enquanto vivência, os dois (volição ou sentimento) têm a mesma validade e existem sem que necessite haver o dualismo de sujeito e objeto. A coisa em si está no ato psíquico, dentro do qual o objeto exterior imediato é visto. Dilthey encontrou a coisa em si na vivência, mas Kant não o conseguiu, pois era ainda dependente do mundo dos sentidos (GS XIX, p. 70). E a certeza daquilo que experimentamos em vivências é tão forte que a suposição de que os nossos sentidos e o mundo exterior sejam apenas uma imagem que desaparece no âmbito dos fatos da consciência. Como os fatos da consciência são anteriores aos juízos que produzimos numa ciência, os fatos psíquicos não são passíveis de dúvida, pois eles não surgem da verdade, mas são a realidade mesma. Verdade seria aqui a junção de uma realidade à outra (GS XIX, p. 86). E assim, Dilthey consegue inaugurar uma teoria do conhecimento que comece não do exterior, mas da riqueza do homem e da sua

18 DILTHEY apud BOLLNOW, Ibidem, p. 22.

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realidade vivida, no que ele parte do todo da sua alma e ainda reserva espaço para o pensamento.

Essa psicologia que parte do homem em sua totalidade é mais profundamente trabalhada em outro texto chamado Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica (GS V, pp. 90-138). Nele, Dilthey contrapõe a sua psicologia à psicologia explicativa, muito em voga na sua época. A psicologia explicativa, cujo método deriva das ciências da natureza, procura trabalhar seu objeto por meio de hipóteses e relações causais.19 Dilthey vê nisso um problema, pois esse método parte de uma força externa ao homem. A psicologia diltheyana não procura explicar o homem por fora, mas por dentro. Acontece que “ver por dentro” aqui não significa direcionar o olhar para dentro, mas sim já partir da interioridade, já se encontrar na coisa mesma. É aquilo que Plessner chama de cognitio circa rem e cognitio rei.20 Por ser a ciência que trata daquilo por trás de que não se possa estar, ela é a base não somente da sua filosofia da vida, mas também das ciências humanas.

Sobre essa psicologia pode-se ainda perguntar se ela necessita de uma fundamentação numa teoria do conhecimento. Mas, como vimos, a teoria do conhecimento diltheyana se baseia numa psicologia. Do problema dessa

19 Para melhor entender a psicologia explicativa, cf. DILTHEY, GS XI, Wilhelm Scherer, pp. 236-253. Nesta redação sobre seu amigo de infância, Dilthey descreve como eles se distanciaram cientificamente na maturidade, por conta do método adotado pelo germanista positivista, apesar de ainda terem mantido a amizade de longa data e o respeito mútuo. 20 PLESSNER, H. Macht und menschliche Natur. Ein Versuch zur Anthropologie der geschichtlichen Weltansicht. In: Gesammelte Schriften. Band V. Günter Dux; Odo Marquard; Elisabeth Ströker (Ed.) com a cooperação de Richard W. Schmidt; Angelika Wetterer; Michael-Joachim Zemlin. 1ª edição. Frankfurt am Main, 2003, p. 180; PLESSNER, H. Die Stufen des Organischen und der Mensch. Einleitung in die philosophische Anthropologie. 2ª edição ampliada em prefácio, posfácio e registros. Berlin, 1965, p. 20.

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circularidade vemos surgir uma terceira ciência: a auto-reflexão (Selbstbesinnung), que possui a tão procurada certeza, pois nela sujeito e objeto são o mesmo.21 Na auto-reflexão, descarta-se a construção de hipóteses, pois já sempre se está num campo familiar, no campo onde todos desde sempre já se encontram, nas vivências. Essa ciência é tão certa, que ela serve de base para as duas outras, das quais ela surgiu, a saber psicologia e teoria do conhecimento. Sendo tão fundamental, ela pode ser chamada não somente de auto-reflexão, mas também de filosofia da vida.22

Essa auto-reflexão é a refinada diferença entre Dilthey e as outras filosofias da vida, tal como ele a apresenta num texto tardio, intitulado A Cultura do Presente e a Filosofia (GS VIII, pp. 190-206). Todos os filósofos da vida se sentem muito próximos dela, mas apenas Dilthey a pensa como movimento. “Carlyle, Schopenhauer, Nietzsche, Richard Wagner, Tolstoi” (GS VIII, p. 196) bem como “Ruskin e Maeterlinck” (GS VIII, p. 197) veem a vida como todos os outros metafísicos como algo fixo, porque eles tinham a intenção de encontrar um indeterminado para as suas filosofias. Todas as filosofias da vida pensavam a vida como uma unidade universalmente válida que fosse imutável. “A história as contradiz” (GS VIII, p. 198). Pode até ser que a vida seja uma unidade, mas ela é então uma unidade que se move na história. Por isso, ela não é uma unidade indeterminada, mas determinada historicamente.

A historicidade é uma crítica que Dilthey dirige a todas as outras filosofias da vida, especialmente a Nietzsche, do modo como vemos especialmente no A Consciência Histórica e as Concepções de Mundo (GS VIII, pp. 5-168), quando Dilthey critica o conceito de vontade de poder: “Nada mais ridículo do que um filósofo poder admirá-lo como o próprio

21 LESSING, H.-U. Wilhelm Dilthey. 2011, pp. 88-92. 22 Cf. IDEM. Die Idee einer Kritik der historischen Vernunft, 1984, p. 270.

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propósito da natureza com nós homens e seu ápice!” (GS VIII, p. 21) O erro que Dilthey aponta é o fato de a vontade de poder ter seu início não no homem mesmo, mas na natureza. É o mesmo conceito de vontade que em Schopenhauer, que não se inicia no homem, mas é uma vontade da natureza ou do cosmos e que se expressa no homem; sendo o homem apenas uma de suas formas. Apesar disso, Dilthey ainda elogia Nietzsche como o “filósofo mais profundo contemporâneo” (GS VIII, p. 229).

Ou seja, não basta saber que a vida é o último inalcançável ponto. Tem que se saber o que fazer com esse último solo e como se mover nele. Nesse sentido, o estudo da história é igual ao estudo da vida, visto pelo ponto de vista do todo da humanidade. Assim declara Dilthey:

Cada ciência humana é ou apresentação da realidade ou ela é constituída de abstrações que contêm apenas partes do real. Ela é igual a uma ponte que leva por sobre a poderosa correnteza […] A vida é essa correnteza […], infundada etc. Enquanto essa relação não for vista e usada claramente, surge a falsa abstração, que quer construir a partir das abstrações, ou o ódio contra ela, que flui para o factual, o técnico.23

Ou seja, também a história, que é essa correnteza que

o homem sempre é, precisa de uma ponte segura para que seu estudo seja igualmente seguro. Sem isso, tudo é abstração desvinculada da vida. No entanto isso vale não somente para o estudo da história, mas também para a filosofia.

Então, aqui podemos colocar a seguinte pergunta: como Dilthey consegue passar da vida psíquica para a história? Isto é, como ele consegue passar do individual para o universal?

23 Ibidem, p. XVII.

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7.3 VIDA E HISTÓRIA Na verdade, essa é uma pergunta mal colocada, pois

essa ponte da vida psíquica para a história não é atravessável, já que vida já é sempre história. Aqui não se tratra de uma vida que se junta a outras e forma um encadeamento ou de uma sequência de fatos no tempo que causam outros, mas de um contexto primeiro. Aqui também não se trata de relação causal. A intencionalidade husserliana serve aqui como um bom exemplo. Nela, consciência necessariamente tem um objeto do qual ela é ciente. Isto significa que a estrutura da vida anímica não é causada pelas vivências, mas originária do contexto de vivências. Ela está já e desde sempre em relação aos significados do contexto do qual ela é expressão.24

Pensar a vida como isolada de seu contexto é abstração. No vocabulário diltheyano, abstração significa um ser que foi retirado da vivicidade. O fato de não se poder pensar em vida como um conceito isolado, nos leva a crer que ela se encontre sempre num mundo humano. Aliás, os dois conceitos são tão próximos que Dilthey fala muitas vezes em vida e história com um mesmo sentido. Então, ao invés de se perguntar como essa passagem ocorre, deve-se reconhecer que o individual necessariamente é parte do todo, fora do qual ele pode ser pensado apenas como abstração.25

Mas afinal, qual é o papel da história na filosofia de Dilthey? Essa pergunta não deve ser entendida como a pergunta por algo que é acrescentado à vida. Devemos entendê-la muito mais em sua ineludibrialidade. Dizer que a vida é fluida, significa que ela não é comportada por conceitos fixos e atemporais, pois ela mesma se move no tempo. Nesse sentido, conceitos como ser, substância e eu são secundários

24 GADAMER, H.-G. Wahrheit und Methode. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. In: Gesammelte Werke. Vol. 1. 6ª edição. Tübingen, 1999, pp. 229. 25 Ibidem, p. 48.

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para Dilthey, pois são conceitos imutáveis e fixos. A historicidade do homem não é algo que lhe foi posteriormente acrescentado, mas é ele já e desde sempre. Historicidade é a vida na sua totalidade, não somente na casca.26 Não por acaso o Conde de York diz sobre isso que o homem não é, ele vive; e Bollnow afirma em primeira pessoa: “Eu não apenas tenho […], eu sou história”.27 Essa substituição do pensar fixo pelo fluido da história faz com que Dilthey trabalhe conceitos que não sejam rígidos como os da natureza, que pensam postumamente a vida, mas que surjam da vida mesma. Mas como Dilthey poderia usar conceitos da vida, se eles, também como ela, são mutáveis? Isso é uma pergunta que também vale para as categorias da vida.

Dilthey divide as categorias em duas: as formais e as reais.

As categorias formais são os conceitos gerais, puramente lógicos, que são abstraídos a partir dos desempenhos formais do pensamento e que vigem para toda realidade do mesmo modo.28

Mas as categorias da vida, as reais, são estranhas ao

conhecimento da natureza. Elas são aquelas que “em seu conteúdo dizem algo sobre seu objeto”29. O que diferencia Dilthey de Kant aqui é que as categorias de vida não são entendidas como formas subjetivas. Mesmo assim elas seguem Kant bem de perto, já que são também transcendentais, na medida em que não são entendidas como formas subjetivas, mas partindo da coisa mesma. Em Kant elas são dadas a priori e são transpostas para uma substância estranha, mas em Dilthey elas são não formas que abrangem

26 Ibidem, p. 36. 27 Ibidem, p. 26. 28 Ibidem, p. 40. 29 Ibidem.

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a vida (isso seria como o pensamento por detrás da vida), mas estruturas da vida mesma. Alguns exemplos de categorias da vida são: vivência, a temporalidade da vida, a unidade da vivência, força, significado etc. Não é possível determinar quantas elas sejam, pois elas se modificam como a vida mesma. Isso não quer dizer, entretanto, que Dilthey falhe em sua filosofia.

A indeterminação é uma acusação comum e erroneamente direcionada a Dilthey. Também quanto ao seu vocabulário e à incompletude de sua obra se fala muito, como se isso fosse uma fraqueza da economia de seu trabalho ou método errado. A palavra “vivência”, que é central para a sua filosofia, é muitas vezes criticada por nunca ter sido categoricamente definida por ele. Além disso, muitos de seus textos permaneceram incompletos. Entretanto isso está longe de ser um lado negativo. Ele não levou sua tarefa até o fim, pois se tratava de uma tarefa que não pode ser levada até o fim. Trata-se aqui de uma filosofia cuja conceitualidade permanece sempre incompleta e provisória. Quando um conceito procura abarcar algo que seja constante fluxo, o conceito não consegue determinar isso, mas sim ele tem que se movimentar de acordo com a natureza de seu objeto.30 De acordo com isso, os conceitos e categorias da vida têm que se modificar com o andar da história no passo do momento histórico. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa não pôde, por conta disso,

apresentar todos os conceitos e consequências da história no âmbito da filosofia da vida à exaustão. Mas isso não se configura como um insucesso, porque a meta entendida já havia sido atingida, a saber, a compreensão da relação entre a

30 LESSING, H.-U., Die Idee einer Kritik der historischen Vernunft, 1984, p. 16.

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vida psíquica e a história e o papel dessa última na filosofia da vida de Dilthey. O sucesso da pesquisa reside na compreensão de como a filosofia da vida é a base primeira da obra de Dilthey e no modo como ele tira consequências dessa fundamentação.

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Do qual: Erfahren und Denken. Eine Studie zu erkenntnistheoretischen Logik des 19. Jahrhunderts. pp. 74-89.

Beiträge zur Lösung der Frage vom Ursprung unseres Glaubens an die Realität der Außenwelt und seinem Recht. pp. 90-138.

Ideen über eine beschreibende und zergliedernde Psychologie. pp. 139-240.

Gesammelte Schriften. Vol. VIII. Editado por Bernhard Groethuysen. 5ª edição inalterada. Stuttgart; Göttingen, 1977.

Do qual: Das geschichtliche Bewusstsein und die Weltanschauungen. pp. 5-168.

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Gesammelte Schriften. Vol. XI. Editado por Erich Weniger. 3ª edição inalterada. Stuttgart; Göttingen, 1965.

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Do qual: Frühe Entwürfe zur Erkenntnistheorie und Logik der Geisteswissenschaften (vor 1880). pp. 1-57.

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BOLLNOW, O. F. Dilthey. Eine Einführung in seine Philosophie. 4ª edição. Schaffhausen, 1980.

KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. Wilhelm Weischedel (Hrsg.). 1. edição. Frankfurt, 1974.

GADAMER, H.-G. Wahrheit und Methode. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. In: Gesammelte Werke. Vol. 1. 6ª edição. Tübingen, 1999.

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KOZLJANIC ̌, R. J. Lebensphilosophie. Eine Einführung. Stuttgart, 2004.

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PLESSNER, H. Die Stufen des Organischen und der Mensch. Einleitung in die philosophische Anthropologie. 2ª edição apliada em prefácio, posfácio e registros. Berlin, 1965. S. 20.

___________. Macht und menschliche Natur. Ein Versuch zur Anthropologie der geschichtlichen Weltansicht. In: Gesammelte Schriften. Vol. V. Günter Dux; Odo Marquard; Elisabeth Ströker (Ed.) com a colaboração de Richard W. Schmidt; Angelika Wetterer; Michael-Joachim Zemlin. Primeira edição. Frankfurt am Main, 2003.

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VIII

APÓS A ANGÚSTIA: SOBRE PROPRIEDADE E IMPROPRIEDADE NA ANALÍTICA EXISTENCIAL

DE HEIDEGGER

EzildoAntunes Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

O presente texto foi elaborado em decorrência da

defesa da Dissertação de Mestrado a qual foi intitulada como: Após a angústia: Sobre propriedade e impropriedade na analítica existencial de Heidegger. A referida dissertação é o resultado das questões levantadas a partir do projeto de pesquisa acolhido pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste. O projeto em questão tinha como tema central a angústia tal como descrita na obra Ser e Tempo do filósofo alemão Martin Heidegger. Essa temática inscrita no projeto dividiu-se pelo menos em três grandes questões, as quais deram suporte para que chegássemos hoje nesse constructo, a saber, a) Em que medida a angústia é necessária para o ser-no-mundo? b) Qual a relação entre angústia e decadência? c) O que se pode esperar para além da angústia?

Das três perguntas colocadas acima, não retirando o peso temático que as duas primeiras possuem, a que deu fôlego e sustentação para nossa pesquisa foi exatamente essa última, isto é, o propósito maior de nosso trabalho além das descrições preliminares dos temas da analítica existencial, era exatamente apresentar de forma pontual o que se dá após o momento ontológico da angústia.

Assim, como já mencionado, transitamos por variados temas que formam o corpus da ontologia fundamental de

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Heidegger, principalmente no subprojeto desta que é exatamente, a analítica do ser-aí. Para que chegássemos então em uma resposta razoável à nossa questão inicial, percorremos o solo fenomenológico com o qual Heidegger antes tinha se preocupado.

De primeira mão, podemos dizer que um marco importante de nossa pesquisa foi encontrar uma nova nomenclatura ao ente que cada um de nós é, isto é, encontrar um ‘conceito’ para além das denominações paradigmáticas que o homem tinha recebido. Falando com as palavras de Heidegger, “Designamos com o termo ser-aí esse ente que cada um de nós mesmos sempre somos e que, entre outras coisas, possui em seu ser a possibilidade de questionar.” (p. 42-43). Adjunto a isso, isto é, para além da simples nomenclatura, percebemos nas linhas de Ser e Tempo, que este ente que salta ao conceito de animal racional, por exemplo, é um ente privilegiado, justamente por apresentar-se em seu existir com uma tríplice constituição, a saber, ser um ente de compreensão, de existencialidade e ente de poder-ser.

Explicando de forma mais detalhada o que se afirma acima, cita-se agora essa tríplice constituição de forma hifenada (existencialidade-compreensão-poder-ser) para reafirmar a congruência destas na estrutura constitutiva do ser-aí. Pode-se dizer que, na existencialidade que é exatamente a ‘constituição’ desse ente que existe está o poder-ser enquanto ente de possibilidades, que só pode ser um ente de possibilidades na medida em que compreendendo o mundo, compreende a si mesmo e ao compreender a si mesmo se projeta para fora de si.

Atrelado a esses achados, pudemos ainda compreender com Heidegger qual a concepção de mundo que ora nos é apresentada na obra de 1927. A tríplice constituição desse ente só pode ser concretizada se este se movimentar a partir de um mundo ao qual desde sempre este ente é. O que estamos dizendo é que, para além dessa caracterização prévia

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que fizemos do ente existente, Heidegger ainda marca o ser-aí como ser-no-mundo. Essa forma hifenada da escrita de Heidegger indica também um salto no conceito de mundo até então preconizado pelos que até então se aventuraram na descrição ontológica do ‘homem’, a saber, não há primeiro um reconhecimento do ‘eu’ (sujeito) para depois o conhecimento do ‘mundo’ (objeto), mas o que há é o ser-aí. Ente em um mundo. Ente jogado no mundo. Ente existindo no mundo fático.

Neste caso, e, para caracterizar o ser-no-mundo, é preciso desvencilhar-se da multiplicidade de conceitos que a palavra “mundo” denota. Assim, Heidegger apresenta pelo menos quatro1 diferentes significações para aclarar qual a relação estabelecida do ser-no-mundo com cada uma delas.

Em primeiro lugar encontramos a conotação do mundo como ôntico, o qual pode ser entendido como a totalidade dos entes que estão no interior do mundo físico; em seguida é apresentado por Heidegger o mundo com o termo ontológico que, resumidamente é a possibilidade de encontrar o ser dos entes que estão no mundo. Neste sentido, pode-se falar da naturalidade da natureza, por exemplo. Em terceiro lugar, Heidegger apresenta o conceito de mundo que pode ser compreendido como ôntico-existenciário, isto é, indicando o ‘contexto em que’ cada ser-aí se movimenta existencialmente – mundo próprio.

Por fim (e em destaque), nos é apresentado o conceito existencial-ontológico, isto é, a mundanidade do mundo. Isso quer dizer que cada ser-no-mundo traz consigo a possibilidade de identificar a estrutura do mundo como mundo de modo próprio.

1 Para não se tornar exaustivo suprimimos a citações no que diz respeito às quatro diferentes significações. Elas, portanto, fazem parte do § 14, nº 65, que na tradução aqui utilizada, encontram-se na p. 112.

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Mas como se dá essa existência inicialmente? Após ser ‘lançado’ em um mundo, como o ser-aí se movimenta? A reposta para essas questões foi o que fizemos ainda no primeiro capítulo de nossa dissertação, isto é, caracterizar como se apresenta em existência esse ente privilegiado. Dizendo com Heidegger, é na ocupação cotidiana que este ente vai dar seus primeiros passos de existência. Ser-aí, portanto, vai estar sempre em lida com os variados entes intramundanos que se achegam de variadas partes. Dentre esses variados tipos de entes que vêm ao encontro do ser-no-mundo, destacamos aquilo que Heidegger chama de entes à mão, isto é, os utensílios que o ser-aí faz uso para desenvolver seus projetos existenciários.

Por meio da existência, o ser-aí se projeta em um mundo fático que a ele compreensivamente se descerra; o ser-aí, assim, é tocado por múltiplos entes que lhe vêm ao encontro, cada um num sentido específico e desse modo, o ser-aí nunca reage de forma a requerer uma lida categorial com cada ente, mas requer sempre um uso dos mesmos, de modo que ao entrar em contato com todos os objetos aí (limite do mundo fático) dados, o ser-aí estabelece sempre uma relação de manuseio destes entes. É o que se pode ler na obra2 de Lévinas, Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger, onde ele escreve:

As coisas no meio das quais o ser-aí existe são, ante do mais, objetos de cuidados, de solicitude (Das Besorgte); elas oferecem-se à mão, convidam ao manuseamento. Elas servem para qualquer coisa: machados para rachar madeira, martelo para martelar o ferro, punhos para abrir portas, as casas para nos abrigar, etc. Em sentido lato, são utensílios (Zeuge) (LÉVINAS, 1967, p. 80).

2 São dois estudos publicados na Revue Philosophique, um em 1940 sobre a obra de Edmund Husserl na sua totalidade, e outro, mais antigo, em 1932, sobre Martin Heidegger.

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A partir da utilização destes, o ser-aí vai cada vez mais compreendendo a estrutura do mundo enquanto tal. Isso acontece porque um utensílio que se presta para tal finalidade, não aparece isolado no campo existencial ao qual o ser-aí se projeta. Os utensílios desenvolvem uma co-pertença, isto é, na medida em que o ser-aí faz uso de um deles, uma miríade de outros utensílios entra em cena formando assim uma rede referencial de amplo alcance. É nesse contexto que o ser-aí entra em contato com a significância, isto é, entra em contato (em abertura) com a possibilidade de trazer à tona a mundaneidade do mundo.

Nesse sentido, percebe-se que o próprio mundo como mundo pode estar ligado ao uso que fazemos dos utensílios, isso porque de uma simples referência, pode-se reportar a totalidade das coisas. Sendo assim, pode-se dizer que é o mundo como (Umwelt), isto é, onde o ser-aí está ambientado, o mundo à sua volta vem à tona quando de repente, na ocupação, o ser-aí se cerca de uma gama de utensílios que, do uso de um deles, se abarca um todo estrutural e isso pode ser compreendido como a mundanidade (Weltlichkeit) do mundo, a estrutura ontológica do mundo, compreendida como significância.

É neste primeiro modo de existir, que, como indicamos em nosso trabalho, é possível perceber a forma decadente do existir do ser-aí vir a lume. Como isso ocorre? É justamente quando o ser-aí perde de vista, por causa da lida constante com os demais entes, a sua característica de ente de poder-ser, isto é, ele existe nivelando-se aos entes com os quais trava relações cotidianas. Desta forma o ser-aí distancia-se de si mesmo, ou seja, não existe levando em consideração sua caracterização essencial que é ser um ente de poder-ser.

Isso tem início quando o ser-aí se encontra em sua cotidianidade mediana enlevado demais com seus afazeres. Mas o que de fato é essa cotidianidade mediana?

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Se fizermos o uso desavisado desses termos, corremos o risco de cair em erros de interpretação no que diz respeito à dinâmica existencial dos ser-aí. Ao entrar em contato com o termo cotidianidade, parece vir à tona um modo de ser definido, o qual seja, o como ‘vive’ o ser-aí todos os dias, ou ainda como os dias vão se passando (em somatório) de forma comum e pacata nos simples afazeres do ser-aí. Ao contrário disso, cotidianidade (Alltäglichkeit) é um modo de ser em que estão em jogo todos os comportamentos desenvolvidos a partir da existência fática do ser-aí.

Em outras palavras, cotidianidade “[...] significa claramente aquele modo de existir que o ser-aí observa ‘todo dia’.” (INWOOD, 2002, p. 25). Diz-se “mediana”, pois, tomado pela cotidianidade, o ser-aí interpreta a si mesmo como um ente simplesmente dado, perdendo assim seu caráter de ente de poder ser. Assim, falamos de cotidianidade mediana, pois não se interpreta o ser-aí a partir de um modo diferente e determinado de existir, mas ao contrário, como bem explica Heidegger (2009): “Deve-se, ao invés, descobri-lo pelo modo indeterminado em que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ele se dá.” (p. 87). Essa marca de indeterminação e indiferença do modo de existir do ser-aí, no entanto, segundo Heidegger, não é uma ameaça ou uma postulação negativa, mas um traço constitutivo do ser desse ente. Assim escreve Heidegger (2009): “Denominamos esta indiferença cotidiana do ser-aí de medianidade” (p. 87).

Acompanhando esse primeiro modo de existir em decadência ao qual se movimenta ser-aí, ainda há outra marca substancial em sua existência, a saber, o co-ser-aí = o outro. Longe de um viés antropológico-social, Heidegger apresenta o se (das Man) = impessoal, que executa de forma ditatorial uma influência direta na existência do ente privilegiado. Em que medida isso afeta o ser-aí como um todo?

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Respondendo diretamente essa pergunta, evidenciamos que o que acontece é exatamente o deixar de ser-si-mesmo, para ser aquilo que o impessoal cobra. Impessoal neste sentido, não é exatamente um ente ou um grupo determinado, mais é ‘o que todo são’. Isto é, falando com Heidegger:

[...] nos divertimos e entretemos como impessoalmente se faz; lemos, vemos e julgamos sobre literatura e arte como impessoalmente se vê e julga; também nos retiramos das ‘grandes multidões’ como impessoalmente se retira; achamos ‘revoltante’ o que impessoalmente se considera revoltante (HEIDEGGER, 2009, p. 184).

Sendo assim, não há como escapar da tutela que o

impessoal impõe ao ser-aí. Achamos assim, o segundo ponto em que se completa a forma decadente em que existe o ser-aí. Além de se nivelar aos entes com os quais está sempre em lida, ainda tem a força do impessoal fazendo-o distanciar-se de sua marca mais essencial, isto é, a de ser um ente de possibilidades. Temos anunciado aqui a forma imprópria de existir.

Parece isso ser fatal para o ser-aí? Parece ser esta a única condição pela qual deve sustentar sua existência? Por sorte, ao apresentar a configuração desse ente de poder-ser, Heidegger insere uma outra característica fundamental do mesmo, que é exatamente a de que esse ente é sempre tomado por tonalidades afetivas. As tonalidades afetivas são estruturas que matêm o ser-aí situado no mundo, isto é, o ente de poder-ser existe sempre afinado com o mundo que é o seu. Dentre tantas tonalidades afetivas, Heidegger elege em Ser e Tempo exatamente a angústia como tonalidade afetiva fundamental. Por que ela é fundamental?

Especificamente por três motivos: a) A angústia retira da frente do ser-aí todos os mobilizadores ocupacionais (entes,

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o outro ser-aí). Isso significa dizer que o mundo com tudo o que ele abarca está ali em sua concretude, mas como sinaliza Werle (2003): “o ser-aí não encontra sossego em nenhum deles”; b) A angústia ocasiona o encontro do ser-aí consigo mesmo. Explicando de outra maneira, como não há mais nada para um em virtude de, isto é, nada há para a lida, o ser-aí se confronta consigo mesmo. Como escreve Heidegger (2009): “Somente continua presente o puro ser-aí no estremecimento deste estar suspenso onde nada há em que se apoiar” (p. 122). c) A angústia serve como uma ‘sacudida’ existencial para o ser-aí, no sentido de que este pode, após passada a crise da angústia, reestruturar seus projetos de sentido enquanto ente ek-sistente.

Parece aqui, com esta última indicação, encontrarmos uma das respostas para a nossa questão inicial: o que se dá após o momento ontológico da angústia? É exatamente a possibilidade do ser-aí retomar sua existência na propriedade, isto é, existir de forma cuidadosa e autêntica.

No entanto, essa é apenas uma das possibilidades. Num outro viés, pode ser que aconteça que o ser-aí continue num ‘desviar-se’ de si mesmo e escolha em liberdade ser dragado ainda mais em sua cotidianidade mediana, isto é, se refugiar mais intensamente na malha utensiliar do mundo e ser ainda mais influenciado pelo impessoal.

Aqui parece cairmos numa cilada em que o ente angustiado ficaria refém de uma decisão que lhe ‘definiria’ o como sua existência poderia ser a partir da angústia. Nos desvencilhando dessa cilada, é que no capítulo terceiro de nossa dissertação apresentamos o cuidado como aquela estrutura que daria o suporte para que o ser-aí compreendesse o que seria existir em propriedade. O que estamos dizendo aqui é que, não necessariamente todo o ser-aí que se angustia escolhe pelo cuidado como forma de existência própria, mas o que deixamos como saldo de nossa pesquisa é que escolher

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existir de forma cuidadosa é a forma mais própria e originária de existir.

É por esse motivo que, como já prenunciamos, o terceiro capítulo vai tratar de caracterizar o cuidado. Como diz-nos Heidegger: “Em sua essência, o ser-no-mundo é cuidado”. Assim, a partir da antiga fábula de Higino apresentada em Ser e Tempo, indicamos o cuidado no viés pré-ontológico em que se destaca a seguinte frase: “Como, porém, foi Cuidado quem primeiro o formou, ele (o humano) deve pertencer ao cuidado enquanto viver” (p. 266).

Essa chave é muito importante, pois assevera para nós a característica temporal como haste essencial na existência do ente de poder-ser. No entanto, isso é complementado por Heidegger no sentido de dizer como dever ser essa existência no tempo. A frase que parece dar sentido ao todo existencial do ente de poder-ser é esta: “Os caracteres ontológicos fundamentais desse ente são existencialidade, facticidade e decadência” (p. 258).

Parece estar aqui o grande achado da proposta de Heidegger no que diz respeito à caracterização geral do ser-aí. Partindo da frase de Heidegger temos o como existe esse ente. Esse como é sempre perpassado pelo cuidado, ou seja, é a estrutura possível que mantem sempre o ser-aí se movimentando na existencialidade fática-decadente. Assim, fazendo uso das palavras de Heidegger (2009), pode-se dizer que:

A totalidade existencial de toda a estrutura ontológica do ser-aí deve ser, pois, apreendida formalmente na seguinte estrutura: o ser do ser-aí diz anteceder-a-si-mesmo-no-já-ser-em-(no mundo)-como-ser-junto-a (os entes que vêm ao encontro dentro do mundo). Esse ser preenche o significado do termo cuidado, aqui utilizado do ponto de vista puramente ontológico-existencial. Fica excluída dessa significação toda tendência ôntica [...] (pp. 259-260).

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Embora excluindo a tendência ôntica a qual se refere Heidegger, podemos trazer o cuidado com pelo menos três diferentes denominações, as quais apresentaremos de forma didática a seguir:

a) Encontra-se o termo alemão Sorge. Nesse termo

está impresso o que há de mais fundamental na existência do ser-aí. Sorge pertence única e exclusivamente ao ser-aí, no sentido de que o modo de ser básico do ser-aí é que em seu ser está em jogo o seu próprio ser. É o “cuidado de si mesmo” não no sentido de um voltar-se para si excluindo os outros aspectos que formam o todo existencial do ser-aí. Heidegger no § 41 enfatiza isso quando escreve: “O cuidado não indica, portanto, primordial ou exclusivamente, uma atitude isolada do eu consigo mesmo” (p. 260). Isso significa dizer que mesmo parecendo ter um peso maior em relação às outras formas, o cuidado enquanto tal deve ser tomado não como modo de ser a parte do todo estrutural do ser-aí, mas sim, deve apresentar-se como o próprio ser do ser-aí que envolve os outros demais modos não tomando inteira responsabilidade enquanto modo de ser, mas se envolvendo como uma espécie de espelhamento dos demais modos.

b) A outra esfera em que cuidado pode ser entendido, e que é uma derivação do primeiro, é exatamente o termo alemão Besorge; o modo em que, na maioria das vezes, o ser-aí está disposto, ou seja, mantendo-se em ocupação. Besorge, portanto diz respeito ao ser-junto-a, em que pautado sempre pela circunvisão, o ser-aí desenvolve as mais variadas lidas no mundo ao qual fora lançado. Mas, não se pode tomar Bersorge como simplesmente uma práxis passiva do

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ser-aí em seu mundo, mas sim, como uma investida que tomando os utensílios mais próximos (à mão), o ser-aí encontra a significância do mundo numa rede de remissões manifestada a partir do projeto que este ente escolheu.

c) E fechando a tríade das formas em que cuidado pode ser apreendido, ainda se tem Füsorge. Esse termo refere-se exatamente ao modo com que o ser-aí está relacionado com o outro ente que possui a mesma estrutura existencial, a saber, o outro ser-aí. Nesse sentido, ser-aí é preocupação (= solicitude) com o outro (Mitdasein).

Mesmo apresentando a tríade da concepção de

cuidado, ainda devemos manter Sorge como elemento central e ao mesmo tempo em conexão com os demais. Nesse sentido não se pode falar do cuidado exclusivamente como Sorge (cuidado), sem que Besorge (ocupação) e Füsorge (preocupação) estejam presentes. É assim que entende Biemel (apud INWOOD, 2002):

Ocupação e preocupação são constitutivas de cuidado, de tal forma que quando usamos simplesmente o termo ‘cuidado’ sempre nos referimos a ele, e nas nossas explicitações concretas o compreendemos, como cuidado ocupado-preocupado [besorgend-füsorgende Sorge], onde com cuidado queremos dizer, em um sentido enfático, que nesta ocupação e preocupação como cuidado, o próprio ser que cuida [das sorgende Sein] está em questão (p. 26-27).

Porém, entrelaçado a tudo isso ainda como já

anunciado a partir da fábula, a temporalidade, isto é, bem resumidamente é aquela estrutura onde o tempo é o ‘lugar’ do possível, o qual assume a forma de uma linha existencial no qual ser-aí se equilibra pautado (em possibilidade) pela orientação do cuidado.

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Explicando de forma mais enfática, não é preciso realizar uma leitura exaustiva na produção filosófica de Heidegger, para dar-se conta que o tempo é um tema central em filosofia, haja vista que já em 19243, o filósofo ilustrava seu interesse sobre o tema. Amadurecendo o tema como âncora para os propósitos da constituição da ontologia fundamental e dos caracteres constituintes do ser-aí, o tempo passa a ganhar destaque quando se transformará em temporalidade, que com seus ekstases se envolve intimamente com as ‘atividades’ do ser-aí. Além disso, mais tarde Heidegger volta à temática do tempo como que numa inversão daquilo que ora dera impulso para o seu percurso como pensador, não do tempo, mas da verdade do ser. O Heidegger tardio como já anunciado antes se ocupa não mais com Ser e Tempo, mas inscreve uma nova leitura: Tempo e ser.4

Acompanhando essa exposição, a saber, a valorização da temática do tempo, Heidegger se afasta do conceito vulgar de tempo e acrescenta:

O fundamento ontológico originário da existencialidade do ser-aí é a temporalidade. A totalidade das estruturas do ser do ser-aí articuladas no cuidado só se tornará existencialmente compreensível a partir da temporalidade (HEIDEGGER, 2009, p. 307).

Nota-se que há uma preocupação de Heidegger, em

se distanciando do conceito vulgar de tempo, reafirmar a necessidade de uma articulação dessas estruturas (partes) onde a ideia de ‘unidade ekstática’ está presente.

3 Conferir Der Begriff der Zeit (1924), mas publicada apenas em 1989. Essa obra pode ser encontrada traduzida para a língua portuguesa por Irene Borges-Duarte (2003). 4 Veja-se Zeit und Sein, (1962). Essa obra pode ser encontrada traduzida para a língua portuguesa por Ernildo Stein (2000).

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A estas ‘partes’ Heidegger nomeia de “ekstases temporais”; é na ocorrência da temporalização em que a essência desta é unidade desses ekstases. Atrelado a esses ekstases, pode-se visualizar os caracteres fundamentais do ente de poder ser, a saber, a tríplice configuração do cuidado enquanto tal: existencialidade, facticidade e decadência.

Podemos dizer que a existência do ser-aí em sua totalidade está vinculada ao cuidado e este por sua vez se origina na temporalidade. Dizendo de outra forma, ser-aí enquanto ente existente é marcado pelo traço temporal no qual os ekstases temporalizam-se não em justaposição, mas em conexão recíproca onde a partir dessa conexão, a temporalidade é constituída. É somente a partir dessa conexão recíproca entre os ekstases que se pode tomar conta que o ser-aí não é fixo em um ‘pedaço’ de tempo, como, por exemplo, no presente, em que se (re) memora apenas o que ora ocorreu e enlevado nas ocupações, o ser-aí projeta pouca coisa para o futuro.

Em co-pertença, os ekstases configuram a temporalidade em que o vigor de ter sido (passado fático) do ser-aí está de certa forma impresso no que é atual (presentificação decadente) em que o ser-aí se movimenta. Assim, como também o porvir (possibilidade existencial) se presentifica porque o ser-aí que se projeta a partir daquilo que está impresso no presente do que já fora, o impele para que, do atual no qual se projeta, o ser-aí possa alcançar o futuro.

É dessa enigmática relação entre os ekstases que não se pode tomar a temporalidade como conceito de tempo vulgar, muito menos tentar denominá-la objetivamente, pois como bem explica Heidegger (2009):

A temporalidade não ‘é’, de forma alguma, um ente. Ela nem é. Ela se temporaliza. [...] Ela, sobretudo, não é um ente que só sai de dentro de si. Mas a sua essência é temporalização na sua unidade dos ekstases (p. 413).

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Assim não há como elevar um desses ekstases como

sendo o principal ou primordial entre eles. Eles, em unidade recíproca, dão ‘corpo’ à temporalidade e esta por sua vez é a residência do cuidado enquanto o modo possível de ser do ser-aí.

Assim, finalizando essa apresentação podemos indicar três pontos determinantes no constructo de nossa dissertação.

1º) A angústia tem um valor fundamental na economia de Ser e Tempo, pois parece ser o divisor de águas no que diz respeito ao modo que o ser-aí existe;

2º) A partir da angústia, o ser-aí pode recorrer na incúria, isto é, revigorar e ter para si o modo impróprio de existência ou curar-se, isto é, ressignificar seus projetos de sentido e existir de forma própria;

3º) O cuidado é sim o que pode mostrar definitivamente para o ser-aí qual é seu modo mais próprio e originário de existência, tendo a temporalidade como estrutura possibilitadora do cuidado.

Para finalizar, recorro à epígrafe que utilizei na dissertação e, como aprendi durante o processo de redação do texto do trabalho, uma epígrafe não pode ser perfumaria, nem ornamento decorativo, mas deve resumir aquilo que está em jogo na temática de um trabalho. É por isso que cito novamente aqui a frase do filósofo francês Jean Beaufret que usei como epígrafe:

A angústia [...] consiste, sem mais, em reconduzir energicamente o homem ao encontro consigo mesmo. Cabe a ele depois definir uma motivação que lhe permita cientemente orientar-se pelo labirinto do praticamente possível.

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REFERÊNCIAS:

BEAUFRET, J. Introdução às filosofias da existência: de Kierkegaard a Heidegger. Trad. e notas: Salma Tannus Muchail. São Paulo: Duas Cidades, 1976.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback; posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Trad. Luísa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

LÉVINAS, E. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Trad. Fernando Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1967.

WERLE, M. A. A Angústia, o nada e a morte em Heidegger. Artigo publicado na Revista de Filosofia TRANS/FORM/AÇÃO da Universidade Estadual Paulista. 2003. Disponível: http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/transformacao/article/view/848.

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IX

A FENOMENOLOGIA NO PROJETO DA HERMENÊUTICA DA FACTICIDADE EM

MARTIN HEIDEGGER

Flávia Neves Ferreira CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em Freiburg, no período pós-guerra, Martin

Heidegger esforça-se para erigir seu próprio caminho filosófico. Em meio ao debate entre a teoria do conhecimento do neokantiano Rickert e a fenomenologia transcendental de Husserl, o filósofo alemão reformula questões vinculadas à história da filosofia, buscando construir uma filosofia enquanto ciência originária.

Nas preleções que ocorrem entre 1919/1920, Heidegger dedica-se à ciência originária da vida, o que vai dar origem em 1920/1921 ao problema da experiência da vida fática. Portanto, Heidegger, ao partir da experiência da vida fática, passa a trabalhar numa concepção própria de fenomenologia e faz uma distinção de sua fenomenologia em relação à de Husserl. Assim, a interpretação fenomenológica em Heidegger, conduz a uma importante visão hermenêutica da vida enquanto tal. Nesta perspectiva, ocorre a constituição do projeto da hermenêutica da facticidade que, posteriormente, transpõe a fenomenologia hermenêutica do ser-aí e, nessa medida, a constituição da ontologia fundamental.

No decorrer das preleções, o embate das ideias de Heidegger com as de seus antecessores e com a própria tradição da história da filosofia, nos revela que uma nova

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posição filosófica está sendo tomada. Esta nova atitude filosófica, identificada, inicialmente, como ciência originária, em seguida como hermenêutica da facticidade, permite ao jovem Heidegger indicar uma apropriação originária da tradição.

A tradição filosófica respaldava-se por um conhecimento interessado nos modelos de sujeito-objeto. Em oposição a este molde, Heidegger se empenha em retornar com a filosofia ao solo no qual ela teve a sua origem e para o qual ela jamais devia ter se deixado desviar: a vida fática. A facticidade expressa nossa determinação mais própria, ou seja, denota o modo de ser de nossa existência. Desse modo, Heidegger pretende elaborar uma filosofia ‘científica’ que se baseie no rigor do método fenomenológico e que parta do acesso hermenêutico ao “caráter do ser” do fenômeno concreto, que é o próprio existir humano.

A partir destas breves considerações, pode-se consolidar a temática deste trabalho, que se refere ao projeto desenvolvido pelo jovem Heidegger da hermenêutica da facticidade sob as bases do método fenomenológico. O que nos interessa do projeto filosófico heideggeriano, nesse seu primeiro período em Freiburg (1919-1923), é a continuidade do método fenomenológico - herdado de Husserl -, mas que Heidegger o desdobra para a experiência fática da vida e insere o elemento hermenêutico.

9.1 A FENOMENOLOGIA: DE HUSSERL A HEIDEGGER

O método investigativo que dá sustentação ao

pensamento pelo qual Martin Heidegger percorre em suas obras é a fenomenologia. Esse método, como propõe antecipadamente Husserl, pretende conquistar uma ciência

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A fenomenologia no projeto da hermenêutica...

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eidética1, ou seja, a elaboração de uma ciência universal das essências puras que sirva de fundamento racional para coordenar as ciências particulares.

A fenomenologia husserliana surge na tentativa de romper com a lógica dualista sujeito-objeto e propor uma saída entre o dogmatismo e o relativismo. O projeto fenomenológico visa à elaboração de uma ciência universal das essências puras que sirva de fundamento racional para coordenar as ciências particulares. A fenomenologia busca, portanto, ser uma doutrina da essência do conhecimento a priori, desligando-se de qualquer referência empírica. Como pontua Husserl: “a fenomenologia, que não pretende ser nada mais do que uma doutrina de essências da alma pura, conduz, se pensarmos até o fim, a todas as ciências a priori em geral” (HUSSERL, 2001, p. 30).

Um dos focos da fenomenologia é conhecer de forma rigorosa a essência dos fatos e das coisas. E como se tem acesso a esse conhecimento? O dado fundamental para este acesso será aquilo que se mostra à consciência. Esse “mostrar-se” à consciência, Husserl denomina de evidência ou intuição, o filósofo explicita: “na evidência, a coisa ou o fato não é somente “vista”, de maneira distante inadequada: ela própria está presente diante de nós, e o sujeito que julga tem dela uma consciência imanente” (HUSSERL, 2001, p.28, grifo do autor). Isso quer dizer que a evidência ou intuição é uma experiência que o sujeito tem com o próprio objeto. Nesse sentido, a fenomenologia husserliana se configura como transcendental, na medida em que seu interesse se dirige para a consciência enquanto tal, desconsiderando qualquer forma de conhecimento que se estabeleça pela ciência objetiva.

Ademais, partindo do conceito de intencionalidade – que designa o caráter das relações puras e transcendentais da

1 Husserl (1996) elucida que a ciência eidética se ocupa das essências, desse modo, a fenomenologia pretende ser uma doutrina de essências puras.

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consciência com os seus objetos –, Husserl (1996) procede a uma análise pré-teórica sobre as coisas, visando intuir diretamente o que está na experiência, através da consciência transcendental, que se refere à máxima ‘deixar aparecer a coisa mesma’.

Desse modo, a fenomenologia fundamenta-se naquilo que é dado à consciência. Mas o que é consciência? Apoiando-se na interpretação agostiniana do tempo do “livro XI” das Confissões, Husserl (2001) entende a consciência como um fluxo contínuo, no qual há protensão (espera pelo futuro), atenção (intui o presente) e retenção (recorda-se do passado). Aliada a essa dimensão, a consciência é também intencional.

Nessa direção, o filósofo devolve a unidade do conhecimento ao proclamar o princípio de intencionalidade, o qual enuncia que a consciência é sempre consciência-de-alguma-coisa e está sempre num movimento de transcendência em direção ao objeto. Nas palavras do filósofo,

todos os vividos que têm em comum essas propriedades eidéticas também se chamam ‘vividos intencionais’, uma vez que são consciência de algo, eles são ditos ‘intencionalmente referidos’ a esse algo (HUSSERL, 2006, p. 89).

Pode-se dizer que a intencionalidade é a maneira

como a consciência se relaciona com seus objetos no interior das nossas vivências. Husserl (2006) indica que a consciência-objeto está sempre numa correlação; assim, o conhecimento dos entes está ligado a atos intencionais da consciência fenomenológica. A análise fenomenológica da intencionalidade nos permite compreender o caráter transcendental dos atos de consciência e os campos fenomenais que desde sempre se dão como correlatos noemáticos à consciência. O objeto aparecendo tal como é

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manifestado evidencia o que há de mais essencial em si mesmo. Assim, o modo como a consciência intencional atua é o que propicia a percepção dos objetos.

Se a noção de intencionalidade é central para a Fenomenologia, ela não pode se transformar num simples campo psicofísico. Ao contrário, é restaurando a intencionalidade como ato intencional da consciência que a fenomenologia pode perceber os fenômenos e compreendê-los. Nesse sentido, Husserl (2006) critica o modo como As ciências humanas se apropriaram do método das ciências naturais. Ele afirma que a atitude natural faz o homem olhar o mundo de maneira ingênua.

Lévinas (1997, p. 80) elucida que: [...] a atitude natural é muito menos caracterizada pelo realismo do que pela ingenuidade desse realismo, pelo facto do espírito se encontrar sempre aí perante o objeto já feito, sem se interrogar sobre o sentido da sua objetividade, isto é, sem a apreender na evidência em que ela se constitui.

Então, o primeiro passo do método fenomenológico

consiste em abster-se da atitude natural por meio da redução fenomenológica. A noção de redução está justamente relacionada com a superação do modo natural e imediato de apreensão dos objetos em geral. A fenomenologia husserliana trata, portanto, de suspender o comportamento natural da consciência e, assim, descrever os seus campos intencionais.

Embora a fenomenologia de Husserl surja na tentativa de romper com a lógica dualista sujeito-objeto, Heidegger a vê no âmbito idealista que permanece na Psicologia Descritiva. Ao passo que, para conhecer, faz-se necessário descrever a experiência e, na medida em que a descreve, conserva-se a seção sujeito-objeto. Nessa direção, Heidegger (2000) abandona qualquer modo de investigação essencialmente teorético, seccionado em disciplinas e

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reduzido a disputas abstratas e vazias. Procura, então, afastar-se do ideal da fenomenologia transcendental, direcionando-se ao solo da experiência da vida fática.

Os cursos de 19192 ajudam-nos a entender o que é a fenomenologia para Heidegger; como ela deve se dirigir com rigor ao seu objetivo, e o que ele pretende com esse método em sua investigação. O traço desse momento é marcado pelo propósito de se construir uma ciência originária (Urwissenschaft), ou melhor, uma fenomenologia enquanto ciência pré-teorética.

Ao se ocupar com o problema da visão de mundo, do conhecimento e da psicologia, assim como da relação entre verdade e valor, Heidegger (2000) realiza uma crítica radical que se dirige principalmente à atitude teorética levada a cabo pelas ciências. Esta crítica não perfaz todas as ciências teoréticas, mas refere-se à conexão entre filosofia e visão de mundo, entre a dicotomia sujeito e objeto, a fixação da teoria do conhecimento nos objetos e até na metodologia das ciências. Segundo ele, esses pressupostos ocultam o solo originário da filosofia e a teoria perde contato com sua própria origem. Não se trata de trocar ou substituir o primado do teórico pelo primado do prático, mas de sair do círculo da teoria do conhecimento que transforma tudo em sujeito-objeto.

Nesse sentido, Sá (2012, p. 18) explicita que o problema da relação sujeito-objeto em Heidegger foi colocado de um modo completamente novo e livre de ensaios que até agora surgiram e que pretende voltar-se para uma metafísica autêntica, isto é, desenvolvê-la a partir do seu solo originário.

Mas, afinal, qual é o solo originário da filosofia? Se a seção sujeito-objeto encobre a sua própria origem, que origem

2 Cf. HEIDEGGER, M. Towards the Definition of Philosophy (Freiburg Lecture-Courses 1919). Trad. Ted Sadler. The Atholone Press, 2000.

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é esta? Heidegger aponta que o resgate deste solo originário se dá no âmbito da vivência, da experiência, da própria vida. Para Heidegger, é somente na base do pré-teorético, ou seja, na relação entre o como as coisas se dão e o como estas são intuídas, que a ciência originária se constitui.

Dessa maneira, quando nós agimos determinando diferenças específicas, determinando nossas experiências de modo específico, nós estamos tratando a vida como um objeto. Aqui é que paira o equívoco apontado por Heidegger em relação a Husserl e as ciências teoréticas. Segundo ele, a vida tem que ser conhecida na própria vida e não tornando-a um objeto. Desse modo, toda a experiência vivida se dá antes de qualquer significação teorética. Por isso, Heidegger utiliza-se da fenomenologia, uma vez que ela se mostra como a ciência mais próxima da vida, na medida em que ela se põe sobre um terreno pré-teorético, “do qual tem origem o próprio teórico” (HEIDEGGER, 2000, p. 98, trad. nossa). Assim, a ciência como ciência originária é a própria fenomenologia.

O que se pode observar é que o desenrolar do pensamento heideggeriano ocorre, em grande parte, num embate com a fenomenologia husserliana. Heidegger vê no trabalho de Husserl que a tese da consciência pura, elemento central da investigação fenomenológica, deve alcançar uma diferenciação entre os entes e dar uma resposta à questão do ser. Deve-se, em parte, diferenciar-se o ser enquanto consciência ou intencionalidade e aquilo que se dá a conhecer ou transcendente. Dessa forma, a redução deverá expor a distinção entre o ser destes entes (SEIBT, 2011). Todavia, Heidegger constata que Husserl prioriza a distinção entre intencionalidade e transcendente, mas sem antes esclarecer o sentido do ser da intencionalidade. Além disso, para Heidegger o sujeito transcendental precisa ser deslocado para a existência em sua facticidade.

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9.2 A HERMENÊUTICA DA FACTICIDADE O que foi visto até o momento é que Heidegger

utiliza-se da fenomenologia como base para seus constructos filosóficos. Todavia, ele vê na tese husserliana uma reflexão fenomenológica ainda presa à tradição filosófica. Sob este alicerce ele visa superar a dicotomia sujeito-objeto e aponta que o conhecimento só pode ser compreendido em um horizonte não teorético, mas originário e fáctico.

Posto isto, questiona-se: como deve ser constituída a ciência originária que se ajuste o mais possível ao âmbito pré-teórico? A ciência originária, portanto, “[…] will not be a science of separate object-domains, but of what is common to them all, the science not of a particular, but of universal being” (HEIDEGGER, 2000, p. 21). Além de Heidegger atestar que a dicotomia sujeito e objeto é um problema para o conhecimento, ele insiste em afirmar que os conceitos teoréticos parecem incapazes de dar conta da nossa experiência vivida.

A teorização tende a des-vivificar a experiência, impedindo de lançar o olhar para um ‘dar-se mais originário das coisas’ no mundo circundante. Isso significa dizer que ao inserir a perspectiva teorética no processo de explicitação de minha experiência, o caráter imediato de minha vivência se desvanece, por isso há uma des-vivificação, visto que acontece uma objetivação daquilo que eu vejo e vivencio.

Conforme pontua Heidegger (2000, p. 95), “[…] these theorizations are restricted to a particular sphere of reality. I call it the specific level boundedness of the steps in the process of de-vivification”. A des-vivificação é ligada a níveis (level boundedness), porque envolve uma generalização que ocorre com o seguimento de alguns passos e cada passo que se dá alcança-se um nível maior de generalidade, como por exemplo:

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[...] o vermelho é uma cor, a cor é uma qualidade sensível; ou a alegria é um afeto, o afeto é uma vivência. Ao que parece, é possível continuar: as qualidades em geral, a vivência, o gênero, a espécie, a essência são objetualidades [...] aqui temos um rompimento: o trânsito de “vermelho” para “cor” e de “cor” para “qualidade sensível” é generalização e aquele que vai de “qualidade sensível” para “essência” é formalização (HEIDEGGER, 2014, p. 54).

A diferença entre formalização e generalização já fora

apresentada por Husserl (1996) nas Investigações Lógicas. No entanto, Heidegger caracteriza a generalização como modo de ordenar e circunscrever a experiência, enquanto a formalização tenta esboçar um campo no qual a experiência possa ser concretizada. Estes dois modos de definição nada mais são do que atitudes teoréticas mediante as quais as coisas são ordenadas. É a partir dessa abordagem que Heidegger apresenta, na preleção do semestre de 1919, o conceito de teorização formal3.

De modo geral, Heidegger mostra que o comportamento teorético a partir do qual somos direcionados para os objetos e por intermédio do qual nos desligamos do mundo circundante, não nos permite compreender a vida. Posto isto, vai tornando-se cada vez mais evidente que o passo decisivo o qual nos permite superar o dualismo, idealismo e realismo é a recondução à vida. Aqui, não há mais sujeito transcendental, mas um sujeito compreendido na sua vivência e historicidade.

Essa vivência é o modo como eu mesmo me aproprio das coisas, não como uma coisa que eu coloco como objeto, mas no sentido de compreendê-las no ‘dar-se assim como elas são e se dão’. Embora a vivência se mostre como um modo a partir do qual nós mesmos nos apropriamos das coisas, são as

3 Nas preleções seguintes, o termo ‘teorização formal’ é substituído pelo conceito de ‘indicação formal’ (formale Anzeige).

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coisas, por outro lado, que se apropriam também de nós, na medida em que não somos sujeitos livres e autônomos em relação às coisas. É importante entender a ambiguidade que reside nesta perspectiva: na medida em que não há objeto, também não há sujeito. Ambos se volatilizam na medida em que estão atados, reunidos, juntos enquanto o que se mostra como a própria constituição da existência.

Por conseguinte, eu as compreendo como algo completamente novo, um evento (Er-eignis), conforme afirma Heidegger (2000, p. 58) “characterization of the lived experience as event [Er-eignis] – meaningful, not thing-like”. O evento é a significação, no qual as coisas se mostram com sentidos. Isso significa dizer que as vivências são eventos enquanto elas vivem do que lhes é próprio e é somente assim que vive a vida. A partir desta experiência particular, o caráter de todas as experiências pode ser trazido à plena compreensão intuitiva.

Nas palavras de Heidegger (2000, p. 59):

The living out of ex-perience is not a thing that exists in brute fashion, beginning and ceasing to be like a process [Vorgang] passing by before us. The ‘relating to’ is not a thing-like part, to which some other thing, the ‘something’, is attached. The living and the lived of experience are not joined together in the manner of existing objects. From this particular experience, the non-thingly character of all experiences whatsoever can be brought to full intuitive understanding.

Percebe-se que a investigação inicial de Heidegger

trata do estudo da vivência e da possibilidade de pensá-la não como coisa entre coisas. Nessa direção, a pergunta: “How are we to arrive at the essential elements for a full determination of the idea of philosophy as primordial Science?” (HEIDEGGER, 2000, p. 12) se apresentará como o problema da intuição e expressão do originário.

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É desse modo que Heidegger estabelece o elemento ‘intuição hermenêutica’: “[…] we have gone into the aridity of the desert, hoping, instead of always knowing things, to intuit understandingly and to understand intuitively” (HEIDEGGER, 2000, p. 55). O que é, pois, a intuição hermenêutica? Como Heidegger conduz tal questão? A solução para este tema está na estrutura da intencionalidade. Para Heidegger, a própria vida se intui expressando e se expressa intuindo; aqui a intencionalidade não tem em vista algo além dessa relação, mas essa relação é a fundação mesma no que nela se relaciona. Uma vez que a vida é um experimentar a si, quando esta experimenta as coisas, ela mostra a si mesma.

Dessa forma, quando o filósofo alemão fala de um intuir hermenêutico, refere-se ao conteúdo que ‘eu experiencio’, a maneira de experimentar. Podemos reconhecer que a intuição fenomenológica é a experiência da experiência, enquanto a intuição hermenêutica é a compreensão da vida, ou melhor, é o como me aproprio das vivências assim como elas se dão: “[…] phenomenological intuition is the experience of experience. The understanding of life is hermeneutical intuition” (HEIDEGGER, 2000, p. 188).

A partir dessa análise, pode-se entender que o método fenomenológico é um método intuitivo, na medida em que o fenomenólogo permite que o fenômeno mostre a si mesmo, isto é, ele deixa-se guiar por aquilo que se manifesta à intuição. Assim, o conhecer não é aplicar novos conhecimentos às coisas, mas corresponder ao que se mostra assim como se mostra.

De todo o exposto é possível depreender que a intuição hermenêutica é a capacidade de se apropriar da vivência sem reduzi-la ao nível do objeto. Heidegger chama a vivência de simpatia vital (Lebenssympathie) que remete ao um intuir que é o intuir da própria vida sobre si mesma, ou seja, a

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intuição hermenêutica permanece no sentido da absoluta simpatia pela vida. A simpatia tem um sentido de compartir, de uma compaixão, ela é um ‘partilhar com a vida’. A intuição hermenêutica, conforme reconhece Hermann (2000, p. 96), não se refere a “[...] uma reflexão da vida, mas o compreender da vida”. A intuição hermenêutica nada mais é do que nosso conhecimento à vida e nela se exclui qualquer posição teorética-objetivante e transcendente.

No semestre de inverno subsequente, correspondente aos anos 1921-1922, Heidegger se propõe a tarefa de explicar a essência da filosofia. Ele identifica que existem impasses na definição do filosofar e apresenta como solução o método da indicação formal. Ressalta-se que o indício ou indicação formal já havia sido mencionado na preleção anterior, explicitado como “[...] o emprego de um sentido que guia a explicação fenomenológica” (HEIDEGGER, 2014, p. 52).

Segundo explicita o filósofo, a indicação formal é o método de realização e a modalidade de referência ao ‘objeto’ no que se refere à tarefa de definição da filosofia e também em como os conceitos são definidos. Nessa direção, ele afirma que existem diferentes modos de definição de acordo com as diferentes maneiras a partir das quais os fenômenos podem ser apreendidos. Tais modos de definição podem, segundo Heidegger (2011, p. 18), ser “[...] indicados formalmente como modos de apreensão”. Estas maneiras de apreensão do fenômeno são determinadas pelo próprio fenômeno, conforme os três momentos fundamentais do método indicativo-formal:

1) Pelo “que” originário, que é experimentado nele (conteúdo); 2) Pelo “como” originário, em que é experimentado (referência); 3) Pelo “como” originário, no qual o sentido referencial é realizado (realização) (HEIDEGGER, 2014, p. 58).

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Como, então, o fenômeno se manifesta? Segundo

Heidegger, o fenômeno como indício formal ocorre conforme as três direções de sentido supracitadas anteriormente. O conteúdo refere-se ao próprio fenômeno da experiência, ‘o que’ é experienciado na experiência; a referência é o como está intencionando, é o modo pelo qual está sendo apreendido o fenômeno; e a realização consiste no modo específico que acontecem as experiências. Nesta ocasião, notamos que Heidegger indica outra perspectiva na estrutura da intencionalidade ao apresentar a indicação formal. Em objeção a Husserl, ele afirma que o tipo de ligação entre predicado e sujeito não é constituído pela correlação entre noesis e noema (consciência e objeto), mas que esta relação é também constituída pelo modo de determinação do horizonte fático no qual os entes se mostram.

Heidegger, portanto, descreve, a partir da indicação formal, os procedimentos necessários para a determinação do fenômeno de acordo com uma metodologia que consiga superar a mera objetificação teorética. Assim, o conteúdo da compreensão é determinado pelo fenômeno em si e não por uma atitude teorética.

Por meio da indicação formal, Heidegger aborda a facticidade em vista do horizonte intencional constituinte do campo de manifestação dos fenômenos. Aqui, o fenômeno nada mais é do que a vida, ou melhor, a experiência fática da vida. Como vimos, Heidegger apresenta os fenômenos através da estrutura da intencionalidade, na qual o sujeito-objeto não fica em mundos divididos. Conforme o filósofo explica, a vida acontece no conteúdo do fenômeno, na relação entre sujeito-objeto e na realização dessa relação (HEIDEGGER, 2014).

Mas, afinal, o que almeja a hermenêutica fenomenológica da vida fática? Heidegger explica que ela não pretende avançar na compreensão dos objetos teóricos de

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nossa experiência cotidiana, mas busca explicitar a maneira como já sempre compreendemos nossos comportamentos intencionalmente voltados para os objetos do mundo circundante, inclusive os objetos dados na esfera do teorético.

Segundo o filósofo: A hermenêutica tem como tarefa tornar acessível o ser-aí próprio em cada ocasião [...] configura-se ao ser-aí como uma possibilidade de vir a compreender-se e de ser essa compreensão – sendo que tal compreensão se origina na interpretação e refere-se a um como do ser-aí mesmo (HEIDEGGER, 2013, p. 21).

É possível inferir que o empenho de Heidegger por

compreender a facticidade da vida é o que propiciará a constituição da sua hermenêutica fenomenológica, a qual vem evidenciar que o ser-aí já sempre compreende a si. Ele compreende a si mesmo, porque ele já está desde sempre num mundo, nas palavras do filósofo: “ser-aí (vida fática) é ser num mundo” (HEIDEGGER, 2013, p. 86, grifo do autor). Ressalta-se que a compreensão não é uma faculdade cognitiva e não remete à distinção entre o sujeito que conhece e objeto conhecido, mas “a própria existência sabe-se antes de qualquer reflexão introspectiva e torna possível esta última” (LEVINAS, 1997, p. 86).

A hermenêutica não é uma interpretação textual ou uma metodologia para as ciências do espírito, ela refere-se a uma relação fundamental entre o compreender e o existir. Não que a atuação fática da vida surja de modo consciente e que se dedique a emitir significações, mas a consciência é sempre um encontrar-se na relação entre intuído e intencionado4.

4 “Este ‘encontrar-se’ não se determina de maneira lógico-transcendental a partir das relações imanentes à consciência pura, mas se constrói historicamente a partir de decisões de pensamento que vão determinando

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O que se pode perceber é que a realização originária da situação fática não implica numa suspensão de toda mediação teórica e nem numa imersão irrefletida de tal situação. Pelo contrário, a realização originária ocorre quando deixamos as significações imergirem no horizonte originário de sua constituição. É nessa imersão que Heidegger vê nas vivências um papel fundamental, uma vez que estas ocorrem a partir de uma inserção efetiva do ser-aí na experiência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se constatar que a partir do método

fenomenológico, a apreensão dos fenômenos se dá, conforme eles mesmos se mostram. Nessa direção, Heidegger empreende uma hermenêutica da facticidade, porque esta permite o acesso ao ser desses fenômenos, ou ainda, uma interpretação da vida fática a partir dela mesma.

Observamos, portanto, que a fenomenologia é importante para Heidegger justamente porque propicia conhecer o ser-aí enquanto ser-aí. Ela é um método pertinente para termos acesso à descrição do Dasein em sua vida fática. Verificamos, desse modo, que o ponto de partida de toda investigação fenomenológica e da própria filosofia, segundo o jovem Heidegger, deve ser a vida fática. Nesse sentido, a indicação formal aparece como um caminho para tratar a questão do ser do ser-aí em seu horizonte fático, e a hermenêutica da facticidade, é a auto compreensão de ser-aí na sua própria forma de ser, ou seja, na própria existência.

É imperioso ressaltar que o projeto da hermenêutica da facticidade não foi consumado no âmbito do pensamento heideggeriano. Diante de tal fato, qual então seria o propósito

o que se mostra ou não como dotados de sentido. As coisas se mostram tal como são, quando o ser-aí cognoscente se coloca efetivamente no interior da experiência do horizonte mundano” (CASANOVA, 2012, p. 49).

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de apresentar esta temática? Pois bem, primeiramente destaca-se que a não consumação de tal projeto é absolutamente consciente (consciente no sentido de intencional) em Heidegger que, paulatinamente, vai convertendo a noção de que

não é a compreensão que inaugura o início fático de um acontecer, mas o próprio acontecer fático que, enquanto acontecimento que a apropria, determina sempre inicialmente esta mesma compreensão (SÁ, 2012, p. 16).

Desse modo, a nova filosofia enquanto ciência

originária proposta por Heidegger nos anos 20, começa a se afastar do projeto mobilizador da sua filosofia – dando lugar a outro início da filosofia – o que significaria, sobretudo, o seu fim e a sua ultrapassagem, o qual não se assenta numa supremacia do pensar, mas precisamente no seu retraimento e na sua assunção como pertença do próprio ser.

Em síntese, o que se quer dizer é que a não consumação do projeto inicial heideggeriano traz como pano de fundo uma constatação fundamental para a obra deste filósofo, a saber: cada passo que se dá a um novo início de uma filosofia é, na verdade, sempre um reiniciar-se que nunca cessa. Conforme explicita Sá (2012, p. 22), o projeto heideggeriano possui uma dupla negação, ou seja, “nem um início radical na história nem a abertura da verdade da história, mas a confrontação com o modo como na história a verdade sempre se lhe furta e subtrai”.

Por fim, estudar o método fenomenológico hermenêutico da vida fática em Martin Heidegger é uma maneira de repensar a filosofia, ou seja, é uma abertura para perguntas originárias do que constitui a própria tarefa do filosofar. O filósofo alemão no ímpeto de sua radicalidade nos ensina a indagar sobre os conceitos e regressar as experiências imediatas nos quais os conceitos surgem. Além disso, pensar

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o que a fenomenologia é para Heidegger implica tomar uma postura ontológica frente aos fenômenos na sua concretude e facticidade que se capta na existência, na relação entre ser e mundo, no qual o ser do ser-aí é um estar-no-mundo.

REFERÊNCIAS

CASANOVA, M. A. Compreender Heidegger. 3ª Ed. Vozes: Petrópolis, 2012.

HEIDEGGER, M. Towards the Definition of Philosophy (Freiburg Lecture-Courses 1919). Trad. Ted Sadler. The Atholone Press, 2000.

___________. Interpretações fenomenológicas sobre Aristóteles; introdução à pesquisa fenomenológica. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

___________. Ontologia: (hermenêutica da faticidade). Trad. Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

___________. Fenomenologia da Vida Religiosa. Trad. Enio Paulo Giachini, Jairo Ferrandin, Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2014.

HUSSERL, E. Investigações Lógicas. 6ª. Investigação. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

___________. Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. São Paulo: Madras Editora Ltda, 2001.

___________. Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica. São Paulo: Ideias & Letras, 2006.

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LEVINAS, E. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

SÁ, A. F. de. Da Destruição Fenomenológica à Confrontação: Heidegger e a Incompletude da Ontologia Fundamental. LusoSofia: Covilhã, 2008.

___________. Ciência Hermenêutica da Facticidade: Heidegger e o Projeto de Uma Filosofia Científica. Ekstasis: revista hermenêutica e fenomenologia. Lisboa, 2012.

SEIBT, C. L. Elementos da crítica do jovem Heidegger a Kant e Husserl. Acta Scientiarum Human and Social Sciences. Maringá, v. 33, n. 2, pp. 161-164, 2011.

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X

O MOVIMENTO DO CORPO-PRÓPRIO E O MOVIMENTO DESTE CORPO COM SOFTWARES

DE GEOMETRIA DINÂMICA

José Milton Lopes Pinheiro Maria Aparecida Viggiani Bicudo

Adlai Ralph Detoni INTRODUÇÃO

Pesquisas que focam a região de inquérito das

tecnologias informáticas na Educação Matemática, dentre as quais a de Powell e Alqahtani (2015) e Silva e Penteado (2009), evidenciam que o conhecimento matemático constituído em ambientes informatizados é foco de muitos estudos. Compreender esse conhecimento e os modos pelos quais ele se constitui é uma tarefa complexa, até porque isso incide sobre o solo mutável e imprevisível em que está a Matemática sendo realizada por alunos em ambientes de ensino e de aprendizagem com tecnologias informáticas.

Percebemos que muitas pesquisas envolvendo Matemática e tecnologias informáticas como, por exemplo, a de Richit (2005) e Pinheiro (2013) têm focado a Geometria. Entendemos que esse direcionamento tem ocorrido, em parte, pelo recente desenvolvimento de softwares voltados para o ensino e aprendizagem de Geometria, especialmente os que promovem o ambiente denominado Geometria Dinâmica. Alguns desses softwares são: Cabri Geometrie, Geoplan, Régua e Compasso, Cinderela, Geogebra.

Richit (2005) descreve a Geometria Dinâmica ambientada no computador, ou equipamento similar com sua

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potencialidade, como aquela que permite construir, explorar e conhecer propriedades de uma figura geométrica expressa na interface de um software, por meio do movimento de objetos pertencentes à figura, e estudar as implicações gráficas e/ou algébricas desse movimento. A Geometria Dinâmica é assim chamada por abrir possibilidades tais quais as de mover, arrastar, transladar e possibilitar atentar-se às implicações desses atos e refletir sobre elas.

Nas pesquisas evidenciadas acima, percebemos que o dinâmico creditado à Geometria Dinâmica é posto como característica intrínseca e inseparável dos softwares. No entanto, entendemos que esse dinâmico é correlato à intencionalidade humana de mover-se, movendo. Se dirigido o dinamismo ao software, sem considerar o sujeito movente, teríamos apenas uma interface computacional vazia de movimento, pois este não acontece por si e pelo software sem a ação intencional do sujeito.

Compreendemos, então, que o movimento em softwares de GD é uma possibilidade que se atualiza por um sujeito que intenciona o movimento. Compreender como se dá a presença do sujeito nessa atualização é um dos focos deste estudo.

Entendemos que, em nossas realizações, seja no mundo tecnológico ou fora dele, trazemos, na atualização de nossos atos, nossas experiências, nossos modos de ser e estar com o que nos circunvizinha.

Implicamos neste estudo a concepção de corpo-próprio desenvolvida por Merleau-Ponty. O corpo-próprio é entendido como Leib, corpo com movimento intencional. Nele, estão compreendidas todas as experiências vivenciadas, sendo ele, também, ponto zero para novas experiências. Ele realiza e se realiza em movimento, assumindo perspectivas

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diversas e pondo-se em movimento no mundo-vida1 que incessantemente vai se configurando junto às também incessantes configurações e reconfigurações deste corpo (MERLEAU-PONTY, 2011).

O sujeito realizador do movimento é entendido por nós como corpo-próprio, pois trata-se do sujeito em carne e osso, com sua materialidade carnal e espiritual. Buscando compreender como se constitui a presença do corpo-próprio e o movimento desse corpo em ambientes de GD, articulamos a seguinte pergunta: como se realiza o movimento do corpo-próprio na atualização das possibilidades dinâmicas presentes em softwares de Geometria Dinâmica?

Essa pergunta tem como fundo o movimento intencional realizado pelo corpo-próprio. Quando um movimento é solicitado pelas tarefas postas em um ambiente de Geometria Dinâmica, esse corpo realiza as possibilidades nele delineadas. Com o estudo bibliográfico que realizamos, entendemos que o corpo-próprio e o ambiente de GD se constituem nesse fundo (o movimento), ou seja, eles se constituem no movimento e em movimento. Por isso, no tópico que segue, trazemos nossa compreensão de corpo-próprio constituída junto a estudos de Merleau-Ponty (2011), em que esse corpo é ele mesmo movimento intencional.

1 [...] lugar de nossas vivências, lugar onde “somos com os outros”, cujo significado é o de nunca sermos indivíduos separados do mundo e, portanto, dos outros (sujeitos individuais, coletivos, instrumentos, ciberespaço, etc.) Nele, “somos sempre com”, isto é, tornamo-nos, vimos a ser, estando com, agindo sobre e abraçando o que nos chega pela percepção, construindo-nos com a matéria/forma que nos expõe pelos nossos atos intencionais, conforma-nos em um movimento estruturante, marcando nossos estilos, configurando os nossos modos de ser, por sermos (o mundo e nós mesmos) aquela matéria-forma do que está no horizonte de nossa compreensão (BICUDO, 2010, p. 131).

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10.1 O MOVIMENTO DO/NO CORPO-PRÓPRIO Quando assumimos aqui a concepção de corpo-

próprio, queremos deixar claro que nossas compreensões acerca do movimento são as da fenomenologia husserliana, uma vez que as ideias de Husserl são assumidas e desenvolvidas em uma dimensão da Psicologia e da Filosofia por Merleau-Ponty. Essas ideias são importantes para que compreendamos a sinestesia2 e a motricidade na complexidade do movimento intencional do corpo-vivente. Essas ideias dizem de um todo global que abrange os conteúdos sensoriais e sinestésicos.

O movimento do corpo-próprio é discutido por Merleau-Ponty em sua obra Fenomenologia da Percepção sob a ótica da motricidade e da percepção. O filósofo (2011) entende que a motricidade é a intencionalidade original humana de se movimentar, de pôr-se em movimento. Entendemos, nessa obra, que a percepção é um modo em que a motricidade se realiza e é realizadora. O sujeito-encarnado se move, movendo-se e atenta-se ao que se mostra nesse movimento de perceber, e atenta-se aos modos pelos quais pode dar-se conta do movimento, constituindo o próprio ato de perceber e o percebido enlaçado na percepção.

Buscando compreender o movimento do corpo-próprio, Merleau-Ponty se dedica a investigar pessoas portadoras de patologias motoras. Na Fenomenologia da Percepção, ele expõe relatos das experiências realizadas com essas pessoas e, lançando um olhar interrogador a suas patologias, articula suas compreensões sobre a constituição de

2 A Sinestesia contempla todo o “eu movo”, o “eu faço”, que estão interligados na unidade universal, onde a paralisação sinestésica é um modo do “eu faço”. Diz do movimento; não se trata da Cinestesia, que diz de um corpo somático que contempla os “órgãos da percepção” [...] (olhos, mãos, ouvido, etc.) (HUSSERL, 2012, pp. 85-86).

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movimentos realizados por “sujeitos normais”, não portadores das patologias estudadas.

Merleau-Ponty (2011) evidencia o caso de uma pessoa que não apresenta conhecimento de seu corpo como uma unidade. Por exemplo, para realizar o movimento de pegar um objeto, antes, ela precisa localizar em seu corpo o seu braço, seu antebraço e sua mão, ou seja, no ato, seu corpo é um conjunto de fragmentos que devem ser localizados e ordenados objetivamente e de forma mediada por um esquema. Isso leva Merleau-Ponty (2011) a articular ideias sobre o conhecimento original (sem mediação) que tem um “sujeito normal” de seu corpo. No ato de pegar, ele tem a posse indivisa de seu corpo, que

projeta em torno de si um certo ‘meio’, enquanto suas ‘partes’ se conhecem dinamicamente umas às outras, e seus receptores se dispõem, de maneira a tornar possível, por sua sinergia, a percepção do objeto (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 312).

Merleau-Ponty (2011) afirma que a percepção é um

ato que nos dá as coisas do mundo como presença, no instante do agora em que o ato de perceber se realiza. Não nos dá as coisas percebidas de forma imediata, mas, gradativamente, através de perspectivas tomadas pelo corpo-próprio que, em movimentos intencionais, busca a percepção do todo junto às percepções diversas e distintas do que vai se mostrando em cada ato de perceber.

São as diferentes perspectivas assumidas pelo corpo-próprio em movimento que trazem à percepção peculiaridades e nuanças qualitativas que dizem do todo do objeto percebido. Por isso Merleau-Ponty (2011) chama o corpo-próprio, também, de ponto zero de visada, que permite adentrar o mundo e compreendê-lo, estando sempre em situação de lançar fios condutores sensíveis às nuanças mais

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simples que este mundo doa, fios que permitem sentir o mundo e sentirmo-nos nele.

A percepção e o que ela enlaça se atualizam no movimento constante em que o corpo-próprio se projeta em direção ao mundo, configurando-se em movimento e configurando o mundo com esses movimentos. O movimento trata-se, portanto, de um fazer criador em que o corpo-próprio, ao se situar em diferentes pontos de visada e em diferentes olhares que perpassam o mundo, percebe sentidos que se mostram e atribui significados a isso que se mostra. No movimento desse corpo, podemos “fazer a leitura, com lentes sensíveis dos aspectos visíveis e invisíveis do Ser, do conhecimento e da cultura. As significações que surgem, o sentido, são, em última instância, significações vividas” (NOBREGA, 2008, p. 147).

Merleau-Ponty (2011) e Husserl (2012) enfatizam que, da perspectiva que nos lançamos ao mundo que se doa em possibilidades de percepções, deparamos, junto às coisas, com faces que se mostram e as percebemos, sendo que outras faces são vistas quando o corpo-próprio assume outras perspectivas das quais pode vê-las.

A busca pelo que a priori não se mostra é possível, pois o sujeito da percepção, o corpo-próprio, é ele mesmo dinâmico. Ele pode experienciar uma diversidade de objetos e pode experienciar um mesmo objeto em diversos modos de mover-se; pode ir em sua direção com ou sem uma teorização que o subentenda; pode realizar a variação do mesmo na imaginação; pode intuitivamente antever suas faces que não se mostram ou pode ir até o mesmo para tocá-lo, vê-lo, senti-lo.

O ato de perceber se funda na experiência do corpo-próprio, que, em Merleau-Ponty (2011), é entendido como um campo sinestésico criador de sentidos. A percepção sinestésica é a regra que nos permite perceber sentidos

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preenchendo e sendo preenchidos por/em um fundo que se movimenta, que se expande e produz movimento.

O corpo-próprio, como campo sinestésico, move-se e faz do mundo seu solo de realizações, faz o mundo também sinestésico. Merleau-Ponty (2011), estabelecendo analogia com a Física, diz que o movimento desse corpo é centrífugo, pois ele adentra e provoca uma expansão do mundo, ao mesmo tempo em que ele mesmo se realiza, expandindo-se. Esse movimento pode ser percebido e compreendido por quem a ele se voltar, ou seja, o próprio movente ou outrem. Essa expansão não só provoca mudança, mas é ela mesma mudança. Nessa perspectiva, Ales Bello e Mangarano (2012, p.202) enfatizam que todo movimento se constitui enquanto mudança.

Compreendemos assim que todo movimento realizado atualiza um fundo que também é móvel. O fundo de um movimento é dinâmico e o dinamismo desse fundo é sempre abertura ao movimento, ou seja, o “fundo do movimento não é uma representação associada ou ligada exteriormente ao próprio movimento, ele o anima e o mantém a cada momento” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 159). Cada

movimento e cada objeto convidam à realização de um gesto, não havendo, pois, representação, mas criação, novas possibilidades de interpretação das diferentes situações existenciais (NOBREGA, 2008, p. 142).

Quando o corpo-próprio se movimenta, seu

movimento traz a presença do outro: das coisas, dos objetos, dos ruídos, das pessoas. Entendemos em Husserl (2006) que isso evidencia a coexistência entre aquele que move e o que é movido, entre o móvel e o movente; o mundo que nos circunda está para todos aí, ao mesmo tempo em que todos nós estamos nele. Estou eu e as coisas no mundo e com o mundo; não sou diante delas um sujeito objetivado; não as possuo em pensamentos e ideias que racionalmente me darão seus

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segredos, mas me lanço a eles, os vivencio; enveredo-me no mistério que cada um mostra, que me afeta, provoca e faz-me movimentar. Sou eu com as coisas; sou parte delas e elas parte de mim e o meu olhar as percorre e as habita.

Sobre isso, Merleau-Ponty (2011) afirma que, o engajamento do corpo-próprio, via motricidade, constitui uma linguagem que, no ato perceptivo, afeta o outro, alguém que se volta ao movimento realizado e que, por sua vez, atribui significados ao que vê. A comunicação traz à situação de compreender e ser compreendido o eu e o outro, ou seja, a comunicação está entrelaçada à percepção do outro, com o qual o sujeito compartilha o mundo. Nesse mundo, conforme diz Bicudo (1997, p.84), “o que existe, em qualquer modalidade que seja, tem seus modos de dar-se à experiência, e o sujeito tem suas variações subjetivas de perceber-se e de realizar sínteses perceptivas comunicadas, de acordo com as peculiaridades, aos outros sujeitos”.

Por exemplo, quando me deparo com um grupo de amigos do outro lado da rua, um complexo fundo de possibilidades de significados solicita minha manifestação gestual. Concretizo um aceno, porém esse movimento está nesse generoso fundo de atribuições possíveis de significado. Mesmo ao longe, os amigos comungam desse fundo, de onde o simples gesto é interpretado por eles na grandeza significativa que a comunicação exige.

Embora o percebido possa ser comunicado e com isso tornar-se percebido também pelo outro, Merleau-Ponty (2011) e Husserl (2006) assumem que, dadas as perspectivas variadas, a diversidade de situações e posições em que se está inserido no tocante à percepção, ao meio social, ao meio sociocultural, histórico ou religioso, a percepção nos abre uma infinidade de aspectos perceptíveis, dados pela subjetividade de cada um, levando a compreensões diversas, que dependem de ações individuais e coletivas.

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O movimento do sujeito-encarnado, a percepção desse movimento pelo outro e por ele mesmo permitem-lhe estar e dar-se conta de estar vivenciando um mesmo mundo que o outro também está vivenciando. As perspectivas que se mostram a cada movimento, a cada olhar, ao olhar de cada um, permitem percepções diversas que, pela linguagem, pela troca de informações, constituem uma compreensão mais abrangente do mundo e das coisas que nele estão presentes.

Merleau-Ponty (2011) entende que a experiência motora do corpo-próprio é o modo pelo qual habitamos o mundo e as coisas nele presentes. Nessa experiência, as configurações do objeto percebido vão se modificando ao mesmo tempo em que o corpo-próprio se põe em movimento, movendo-se. Entendemos que, nessa configuração que se mostra no entrelaçamento entre o movimento, seu realizador e o que ele abarca, o conhecimento humano vai-se constituindo.

De acordo com Merleau-Ponty (2011), a constituição do conhecimento se dá em primeiro momento pelos atos sensórios, dentre os quais o ato de ver e tocar. Atos esses que, nessa concepção, não podem ser substituídos pelos atos de se pensar vendo e se pensar tocando, visto que não

é o sujeito epistemológico que efetua a síntese, é o corpo que, quando sai de sua dispersão, se ordena, se dirige por todos os meios para um termo único de seu movimento, e quando pelo fenômeno da sinergia, uma intensão única se concebe nele (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 312).

Isso possibilita dizer que a experiência do movimento

de perceber, ou o movimento de perceber o movimento, se dá no agora, ou seja, no instante de sua ocorrência e que a intencionalidade na percepção não é o ato de refletir sobre. Porém, perceber consiste em, com a ajuda dos sentidos, tornar algo presente a si, trazendo-os de seus lugares num

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horizonte de mundo e decifrando-os de forma a colocar seus detalhes nos horizontes perceptivos que lhes convenha (MERLEAU-PONTY, 2011).

O movimento do corpo-próprio, a intencionalidade de pôr-se em movimento e a mudança que se realiza no mundo e no sujeito realizador da mudança constituem um solo sobre o qual tecemos, no tópico que segue, nossas compreensões sobre o sujeito que se move com softwares de Geometria Dinâmica e percebe a realização de seus movimentos se expondo em interfaces3: a que se materializa na tela computacional – na qual a expressão do movimento se realiza - e as interfaces que, quando tocadas, tornam-se parte do corpo-próprio realizador do movimento, o mouse e o teclado, por exemplo. Dizemos sobre o movimento do corpo-próprio que, pondo-se em movimento, preenche, atualiza e faz-se realizar no dinamismo posto como possibilidade programada em interfaces de Ambientes de GD.

10.2 O MOVIMENTO DO CORPO-PRÓPRIO EM AMBIENTES DE GEOMETRIA DINÂMICA

Ao focarmos o movimento do corpo-próprio na dimensão

do mundo-vida, foi-se mostrando um horizonte de possibilidades em que visamos os modos pelos quais esse movimento se atualiza em softwares computacionais, mais especificamente em softwares de Geometria Dinâmica.

3 Interface designa, “ao pé da letra, algo que se coloca no encontro de duas faces, que se volta para ambos os lados que se encontram, caracterizam uma fronteira” (FIGUEIREDO, 2014, p. 138). A interface do software de GD se “volta” para o lado de sua programação à medida que é capaz de gerar, sob alguns comandos/regras, figuras e possibilidade de movimento e se volta para o lado do sujeito que realiza ações nela e se põe atento às implicações das mesmas. Assim, as interfaces agem como mediadoras que atuam entre dois polos: a programação do software e a pessoa que a ele se direciona.

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Entendemos que esses softwares manifestam uma amplitude de possibilidades de movimento e percepção de mudança que, ao serem realizadas pelo sujeito-movente na interface comunicacional, expandem-se e são expandidas em uma dialética constante em que o computador abre possibilidades de movimento em um campo de realizações possíveis. Nessas realizações, há uma modificação naquele que realiza o movimento e, por sua vez, no modo de efetuar o movimento no próprio campo de possibilidades presentes na lógica do software. Agimos com o computador disparando intencionalmente “comandos que se atualizarão em tarefas específicas, efetuadas com a materialidade disponível pelo programa com o qual está operando” (BICUDO, 2014, p. 60).

Em toda figura construída na interface de um software de GD, está subentendida a possibilidade do movimento, em especial a possibilidade de retirar essa figura de sua posição inicial, destinando-a a outra posição. Em GD, tem-se o deslocamento da figura sem que se fixe sua posição inicial. Ela se mostra, ao ser movida, conforme evidenciado por Pinheiro (2013), como um objeto flutuante, que pode não deixar expresso na interface o rastro4 do percurso intencionado pelo sujeito que a move. Isso se diferencia do movimento realizado em construções com régua e compasso, nas quais a transformação de posição fixa a posição inicial A e a posição final A’ da figura deslocada. Em ambos os casos, se não houver um pensamento e intencionalidade de movimento, o deslocamento se definirá a partir desse sistema de posicionamento (inicial e final), mas, é preciso voltar-se a aspectos epistemológicos do movimento e às compreensões que possam emergir do mesmo.

4 Existe em alguns softwares de GD a possibilidade de habilitar rastro na figura, o que evidencia o percurso que a mesma realiza quando incidido sobre ela um movimento qualquer.

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Os objetos dispostos na interface do software são presenças que se manifestam enquanto potência, que “significa característica do que é potente, do que tem força para ser, do que traz em si as potencialidades para tornar-se” (BICUDO, 2010, p. 125). Essa potência está imbricada na presença do sujeito junto ao software. Ao se movimentar, ele realiza movimento, produzindo mudança e percepção de mudança, seja na interface do software, seja em si mesmo como o realizador do movimento. O ato de mover os objetos na interface do software é o disparador da atualização. Ele transforma a intenção de um movimento no próprio movimento:

O ato é o que atualiza a potência, abrangendo o movimento para fazer avançar o acontecer. Ele inclui uma certa operação e é entendido pela mudança. Esse movimento é importante na filosofia aristotélica, porque significa “levar a cabo, a efeito” o que existe potencialmente, enquanto existe potencialmente. Com esse movimento, o ser passa da potência de ser ao ato de ser. Assim, a mudança de um objeto é passagem de um estado de potência ou potencialidade (modo de ser potencial) a um estado de ato ou atualidade (modo de ser atual) (BICUDO, 2010, p. 125).

Desse modo, entendemos que o corpo-próprio que

habita a interface é quem faz com que ela se expanda, transformando-a e transcendendo as intenções do realizador da programação e/ou do responsável pelo que foi programado por esse realizador. Com isso, articulamos nossa compreensão de que a geometria do software, só pode ser caracterizada como dinâmica na presença do corpo-próprio que intenciona o movimento em movimento; seu potencial dinâmico se atualiza, deixa de ser potencialmente movimento para ser movimento realizado.

Esses movimentos se expõem quando o sujeito-movente intenciona movimentos junto ao que Figueiredo

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(2014) chama de interfaces físicas, o mouse e o teclado, por exemplo. É no encontro entre a solicitação do movimento e a realização do movimento que a Geometria Dinâmica acontece e é na intencionalidade de atentar-se ao que essa realização mostra na interface do software que ela pode ser estudada e compreendida. Assim, entendemos que não há Geometria Dinâmica bem como não há Geometria se não houver o Ser movente. Mesmo o programador estabelecendo regras que sustentam movimentos diversos possíveis, esses serão apenas possibilidades de movimento se não houver o corpo-próprio, o ponto zero de todo e qualquer movimento.

Pinheiro (2013) evidencia que a interface do software de GD, quando preenchida por uma atividade que solicita ações diversas, provoca um querer avançar e faz aflorar nos alunos a curiosidade, a vontade de clicar, de mover, de estender-se ao que a interface lhes mostra, enfim, de mover-se. Nessa perspectiva, Bicudo (2014) afirma que o sujeito age com a interface, com o computador, mas ele

o faz acionando comandos; porém, já está distante da ação simples e mecânica, pois com a racionalidade binária entrelaçam-se modos de ele ser ao estar com os outros e com o mundo; entrelaçam-se expectativas, sentimentos,

modos de compreender-se e ao mundo (BICUDO, 2014, p. 63). A realização do movimento em softwares de GD pode

ser entendida, com o auxílio de Merleau-Ponty (2006), como uma configuração da motricidade do corpo-próprio, que, estando intencionalmente movendo-se, move-se, define, como interpretam esse filósofo Bicudo e Kluth (2010, p. 133): “o lugar que está por meio da tarefa, do que intenciona efetuar, e das situações específicas, delineadas por sua unidade harmônica com o mundo-horizonte”.

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Junto às ações do corpo-próprio, um fundo sinestésico vai-se constituindo e constituindo a interface do software; novos preenchimentos se mostram e o sujeito que move, movendo-se, percebe-se nesse ato, percebe o movimento e o que o mesmo lhe traz à percepção: conhecimentos já explicitados e culturalmente materializados, configurações, desconfigurações, variantes, invariantes, ou simplesmente a expressão do movimento realizado.

No espaço cibernético em que a GD é trabalhada, o fundo sinestésico acima mencionado contempla todo o aparato tecnológico e suas possibilidades que potencializam o movimento. Esse fundo é dinâmico. O movimento possível com software faz vibrar constantemente novos tons e perspectivas junto ao mesmo, que também fazem vibrar as figuras que se renovam ao sujeito que as movimenta ao também movimentar-se. Enfim, o movimento faz vir à percepção novas faces e, também, novas interfaces.

Com o software de GD, o sujeito-movente intenciona um movimento ao responder a solicitações postas por atividades a serem realizadas e, ao atualizar esse movimento, configuram-se novas interfaces (modos de a geometria se mostrar distintos dos que se expõem em livros didáticos e dos praticados em espaços não cibernéticos) com preenchimentos. As novas interfaces, que assim se constituem, se dispõem ao movimento, estados de potência de ser, de tornar-se existência:

A existência dá-se com a atualização do que já está em potência. Assim, o atual é o que se apresenta como realidade, ainda que em dimensões de atualizações individualizadas, isto é, em casos específicos em relação à potência (BICUDO, 2010, p. 125).

Cada movimento junto à interface do software de GD

define novas experiências: de focar, de desfocar, de mover, de

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arrastar. Essas experiências deixam um rastro sinestésico no corpo-próprio do (ou dos) sujeito (ou sujeitos) em atividade motora e também na interface do software. A sinestesia que abarca o corpo-próprio-software de GD, evidencia os modos pelos quais a motricidade humana enlaça o núcleo de movimentos e de fazimento de sentidos de movimentos, conduzindo à constituição de conhecimento geométrico que se dá no encontro entre o corpo-próprio e o que está disponível na interface da GD.

Em pesquisas como a de Alves e Soares (2003), que versam sobre Geometria Dinâmica, há o destaque à possibilidade de softwares de GD de “arrastar” figuras ou objetos que a constituem. É destacado, também, o estudo da figura em movimento, visando identificar invariantes na mesma. Pinheiro (2013) enfatiza que o conjunto dos invariantes de uma figura é o que constitui a estrutura que permite compreendê-la e distingui-la de outras figuras. São propriedades sem as quais a mesma não pode ser definida e, no dinamismo do software, as invariâncias são acolhidas e se fazem emergir à atentividade do sujeito.

Voltar-se intencionalmente à interface presentificada na tela do computador e aos objetos geométricos que nela podem ser movidos, faz com que possa se manifestar também o que não varia nesses objetos geométricos5. A percepção dos invariantes não se daria se o sujeito-movente que arrasta o mouse também não intencionasse a ação realizada em um movimento constante que, a cada momento, lança-o em novas possibilidades de movimento, modificando suas compreensões sobre o que está realizando, bem como suas compreensões sobre o que se mostra nessa realização.

5 Também compreendidos como entes geométricos, termo usado em manuais de geometria para designar objetos que, em suas definições, fecham-se em ideias acabadas e irrefutáveis.

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No movimento da figura construída em softwares de GD, intencionado pelo sujeito-movente, as propriedades preestabelecidas em sua construção se preservam. Nesse contexto, a ideia de movimento é inseparável da ideia de invariantes isométricos; o que não varia no desenho só se mostra quando ele está em um movimento que intencionamos realizar, ou seja, é a sua variação realizada pelo sujeito-encarnado que pode vir a mostrar seus invariantes.

A figura em movimento que se presentifica na interface sustentada pelo programa do software de GD pode ser vista, da perspectiva fenomenológica, como manifestação da intencionalidade humana de se movimentar, movimentando. A interface

fornece a impressão de que o desenho está sendo deformado continuamente em todo processo de arrastar, enquanto mantém as relações que foram especificadas como essenciais da construção original (SILVA; PENTEADO, 2009, p. 1069).

Esse ato de arrastar que nos dá invariantes e também

variantes pode ser coordenado; o sujeito realiza movimentos atendendo às solicitações que ele mesmo coloca em suspensão. Trata-se, por um lado, de movimentos precisos, cautelosos, que podem doar à percepção alguma informação intencionada. O movimento desarticulado, acelerado, também caracteriza uma coordenação do movimento que pode, em muitos casos, validar uma intuição e ir ao encontro do compreendido no ato da percepção inicial de possíveis invariantes. Na ação de arrastar um objeto geométrico na interface do software de GD, o corpo-próprio se coordena e coordena seu movimento com a tecnologia informática envolvida.

Ao estudar os textos aqui citados que versam sobre GD e ao retomar reflexivamente nossas experiências em

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laboratório com nossos alunos, realizando o trabalho com Geometria Dinâmica, demo-nos conta de que os atos iniciais deles perante uma atividade consistem de imediato em realizar movimentos com o mouse e atentar para as implicações dos mesmos na interface do software. Em nossas pesquisas já iniciadas, experienciamos que são poucos os alunos que inicialmente pensam em um movimento antes de realizá-lo. Entendemos que o pensar se realiza junto ao movimento, um anima o outro. Por isso, compreendemos que essa postura inicial de nossos alunos se materializa em atos perceptivos, que, segundo Merleau-Ponty (2006), constituem uma síntese prática na qual o ato de realizar um movimento é distinto do ato de pensar na realização desse mesmo movimento. Esse segundo ato, para Merleau-Ponty (2006), realiza-se em sínteses reflexivas, nas quais se avalia, faz-se juízo antes de efetivar o movimento.

Na síntese prática que sustenta os primeiros movimentos realizados com softwares de GD, destacamos experiências perceptivas que privilegiam o tato, a visão e a sinestesia. As experiências táteis permitem, por exemplo, modos diferentes de tocar o mouse: apoiando toda a mão sobre o mesmo, clicando com o indicador ou outro dedo, realizando uma força adequada para pressionar os botões, movendo o mouse etc. A experiência possibilita a visualização do objeto se modificando e o movimento do mouse que promove essa modificação. As sinestésicas permitem espacializar, ou seja, ocupar o espaço que abarca o movimento e sua expressão. Sinestesicamente me movimento enquanto movimento o mouse, percebo-me como realizador desse movimento e também do movimento que se evidencia na interface do software de GD.

Aqui falamos desses sentidos de modo separado; no entanto, no ato de mover o mouse, intuindo mover um ponto expresso na interface do software, por exemplo, experiências táteis, visuais e sinestésicas se entrelaçam. Toco o mouse sem

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direcionar o olhar, mas este já foi direcionado anteriormente na mesma ação. Posso ver sem abrir os olhos e executar tarefas, por compreender o que preciso fazer e por haver uma memória encarnada. Os atos de tocar e ver são abarcados por um fundo sinestésico; eles mesmos são movimentos que se dão em movimento, ou seja, eles constituem experiências sinestésicas. Munir-se de uma ferramenta, portanto, não quer dizer se apossar de algo complementar e exterior; Merleau-Ponty nos mostra, em sua Fenomenologia da Percepção, como o cego e sua bengala formam uma só corporeidade, num todo perceptivo indiviso.

Perceber o movimento dos objetos geométricos, analisar as implicações desse movimento e compreender o que se mostra nele perfaz um modo de apreender conhecimentos diversos estando com softwares de GD (PINHEIRO, 2013). Entendemos com Merleau-Ponty (2011) que, nesse processo de compreensão, os atos perceptivos são anteriores aos “atos reflexivos” de julgamento e de análise6. Assim, com esse filósofo, entendemos também que na percepção se funda todo saber humano. Ela é “o primado” de todo conhecimento. Por exemplo, como já foi aqui discutido, invariantes se mostram em ambientes de GD e são compreendidos quando o corpo-próprio se põe em movimento, realizando movimento; trata-se de pegar o mouse, clicar sobre o objeto e arrastá-lo, estando sempre atento a ele. Nesse ato perceptivo, o sujeito-movente não está preocupado em criar procedimentos e regras para o movimento do mouse, não busca descrever o movimento percebido. Ele pode perceber invariantes, mas não busca de imediato fazer uma asserção, caracterizando-os. Não busca descrever convergências ou divergências entre invariantes, apenas lança-

6 Entendemos que no ato perceptivo estamos constantemente julgando e analisando, porém estamos em um nível de análise e julgamento distinto do que as ciências propõem para verificações e demonstrações.

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se ao movimento de vê-los convergindo ou divergindo com o movimento realizado.

A percepção se dá no agora. Descrever e analisar o percebido são realizações de um momento posterior ao momento em que a percepção aconteceu. Esses atos são voltados ao que a percepção mostrou, ou seja, são voltados ao mundo das realizações perceptivas. É do solo mundano das realizações perceptivas que emergem compreensões iniciais que, em um processo mediado pela linguagem, vão sendo discutidas, articuladas e estruturadas. Dessa forma, ao se refletir sobre o percebido, conhecimentos mais abrangentes, mais articulados vão sendo constituídos. Desse modo constituem-se todos os conhecimentos, do senso comum aos científicos.

10.3 APRESENTANDO COMPREENSÕES

Neste artigo, especialmente no segundo tópico,

expressamos compreensões que nos permitem dizer da interrogação como se realiza o movimento do corpo-próprio na atualização das possibilidades dinâmicas presentes em softwares de Geometria Dinâmica. Essas compreensões são apresentadas de modo mais aprofundado na tese de doutorado que vem sendo realizada pelos autores deste texto, nas posições de orientando, orientadora e coorientador.

Evidenciamos que o corpo-próprio se movimenta e que seu movimento é o atualizador do programa do software que se mostra como potência de ser dinâmico. Tal atualização é realizada em atos do sujeito-encarnado, corpo-vivente, junto às interfaces físicas ao sustentar e animar o movimento expresso na interface do software de GD.

Tendo como sustentação essas compreensões que dizem da realização e da atualização do movimento junto a softwares de GD, é preciso avançar em estudos que focam o como se dá a percepção dessa atualização. Para isso é preciso

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investigar situações em que sujeitos de pesquisa se põem nesse movimento e pedir que os mesmos relatem como o percebem e como se percebem sendo eles seus realizadores. 7

Dos estudos realizados, compreendemos que, na estada com o mundo que se abre na interface do software, o sujeito-movente vai em direção aos objetos disponíveis à percepção, compreende de imediato sua estrutura com auxílio do movimento de seu corpo e, com isso, o objeto regula diretamente seus movimentos. “Esse diálogo do sujeito com o objeto, essa retomada pelo sujeito do sentido esparso no objeto e pelo objeto das intenções do sujeito que é a percepção fisionômica, dispõe em torno do sujeito um mundo que lhe fala de si mesmo e instala no mundo seus próprios pensamentos (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 185).

Estar em ação, ser movente é uma condição que também traz o sentido humano da vontade de estar com o que o circunvizinha, de ocupar-se com aquilo que no mundo a ele se disponibiliza. Essa ocupação acaba trazendo, ao movente, significação das coisas e dos outros, que se articulam como sementes de compreensões que, nos atos intencionais da consciência e respectiva expressão e comunicação intersubjetiva, vão se articulando como conhecimento. Estando com o software, os manuais são comandos para se habitar o horizonte que a tela informacional permite.

Estudar o corpo-próprio-com-GD é, antes de tudo, estudar o modo de ele se espacializar, que, para Merleau-Ponty, é o modo de ir ao mundo, tendo o sujeito uma posse absoluta de seu corpo, compreendendo-o enquanto móvel e movente. Esse modo de espacializar-se também acontece no mundo tecnológico, no mundo da Geometria Dinâmica. A compreensão de que sou corpo móvel e movente leva a entender melhor a unidade do movimento do corpo-próprio junto ao mouse e à expressão desse movimento na interface do

7 Essa investigação está sendo por nós realizada no âmbito do projeto.

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software. Portanto, não são dois movimentos. É movimento uno. Entretanto, expresso em espaços distintos: o espaço em que estou com minha escrivaninha sobre a qual está meu computador e o espaço que se abre à exploração na interface do software de Geometria Dinâmica.

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XI

O EXISTENCIALISMO ATRAVÉS DA LITERATURA SARTRIANA

Josieli Aparecida Opalchuka

Sartre, enquanto leitor da história da filosofia, toma a

fenomenologia husserliana como ponto de partida para a sua teoria. Para o autor, a dualidade entre ser e aparecer já não tem mais âmbito na filosofia, pois tudo o que aparece é o fenômeno e neste o ser e aparecer não são mais distintos, mas se dão de maneira concomitante e isso só é possível por um modo da consciência, a saber, a intencionalidade. Como em Husserl, essa consciência não é empírica, como o cogito cartesiano, pois a consciência não é uma res-cogitans (coisa pensante) e nem necessária de uma res-extensa, tampouco uma res-divina, e é neste ponto que a fenomenologia tanto difere do neocartesianismo: a consciência é pura, transcendental, afetada pelas reduções e inclui toda a afirmação da existência de um mundo real. Já a intencionalidade caracteriza-se por ser sempre consciência de algo, ou consciência de si mesmo, isto é, a consciência não está presa a um objeto ou ao sujeito, ela é o projetar-se, o movimento.

Temos na tradição, Descartes afirmando “eu sou, logo, existo”. As implicações dessa afirmação dizem respeito à permanência do “eu” fora da dinâmica do existir, porque o eu cartesiano é substancial. O “eu” não emerge do corpo, pois, sua existência não depende deste para existir. Descartes propõe, em sua filosofia, três tipos de substâncias: o pensamento, a extensão e a divina. Com isso, dá origem à famosa dualidade entre corpo e mente, porque pensa essas

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noções como substanciais, existentes por si mesmas (como aquilo que subjaz ao existir):

O que sou eu então? Sou uma coisa que pensa. O que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente (DESCARTES, 2009, p. 163).

Percebemos aqui, que para o autor, existe algo anterior

à existência, na medida em que, primeiro há o eu penso, depois o existo. O pensamento, em Descartes é uma manifestação do espírito, que já é anterior à dinâmica do existir. É o pensamento que ganha diversas formas, as quais são atribuídas por ele próprio. O pensamento seria, então uma “coisa que pensa” e só conseguimos o diferenciar pelo uso da razão. Nas palavras de Descartes:

Noto que o pensamento é um atributo que me pertence: só ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isso é certo, mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso; pois talvez poderia ocorrer que, se eu cessasse de pensar, cessaria ao mesmo tempo de ser ou de existir (DESCARTES, 2009, p. 162).

Quando o filósofo afirma que o pensamento não pode

ser separado do eu, significa dizer que não há existência sem o atributo do pensamento. Deste modo, existe uma relação de dependência entre a existência do eu e as substâncias apontadas por Descartes, a saber, a coisa pensante, a coisa extensa e a coisa divina. Com essas afirmações podemos perceber que, a existência só se dá caso essas substâncias acompanhem tal dinâmica previamente, de modo que estas, subjazem toda e qualquer relação com o mundo. Isto é, os pensamentos são desdobramentos do “atributo” pensamento: só há existência porque o pensamento acompanha (subjaz) o eu, desde sempre.

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Ainda seguindo o modo tradicional de operar, temos o criticista Immanuel Kant, dizendo na introdução à Dialética transcendental: “Verdade ou aparência não se encontram no objeto na medida em que ele se dá na intuição e sim no juízo a seu respeito, na medida em que é pensado” (KANT apud HEIDEGGER, 2012, p. 285). Podemos entrever, por meio dessa citação, que aquilo que se pode dizer dos entes se dá desde o juízo, porque antes de tudo, o modo como concebemos as coisas conta com as estruturas subjetivas; sem elas não seria possível julgar um fenômeno.

O filósofo alemão não nega que a origem do conhecimento é a experiência, mas diz a existência de certas condições a priori que possibilitam o conhecer. São essas condições que viabilizam as impressões sensíveis se converterem em conhecimento, isto é, são elas que permitem dizer algo acerca de determinado fenômeno. Devido a isso, o sentido de algo não se encontra intrínseco no objeto, mas o sujeito é quem julga tal objeto desde tais condições que possibilitam o julgamento.

O enfoque transcendental do pensamento kantiano se opera como uma espécie de revolução copernicana na filosofia. Isto porque, anteriormente, acreditava-se que o conhecimento era regulado pelo objeto; agora, a partir da abordagem kantiana, “toda nossa intuição nada mais é do que a representação do fenômeno; que as coisas que intuímos não são em si mesmas tal como as intuímos” (KANT, 1994, p. 78).

O modo como o sujeito percebe o mundo se dá através das nossas “lentes” cognitivas. Com isso, tudo aquilo que proferimos acerca de um fenômeno se deve às categorias do entendimento de uma subjetividade. Nas palavras de Kant: “por intermédio, pois, da sensibilidade são-nos dados objetos e só ela nos fornece intuições; mas é o entendimento que pensa esses objetos e é dele que provêm os conceitos” (KANT, 1994, p. 61).

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Após essa breve exposição acerca da filosofia cartesiana e kantiana, podemos perceber que, em ambos os casos, há um pensamento que buscar fundamentar a origem do real, seja em Descartes com a postulação da substância pensante, seja em Kant com as estruturas subjetivas. Em ambos os casos, tais noções são previamente dadas no sujeito, isto é, acompanham seu “existir”. A efetivação do “real” se dá desde tais noções; estas são anteriores porque possibilitantes.

A grande virada proposta pelo existencialismo é a inversão da premissa “a essência precede a existência” pelo seu oposto “a existência precede a essência”. Isso se dá, justamente, por que não há nada subjacente ao homem, já que este é mais um fenômeno. Além disso, o pensamento não pode ser concebido como na filosofia cartesiana pois “o primeiro passo de uma filosofia deve ser, portanto, expulsar as coisas da consciência e restabelecer a verdadeira relação entre esta e o mundo” (SARTRE, 1999, p. 22). A verdadeira relação é a de transcendência1, através do modo intencional da consciência. Já em relação a Kant que, como dissemos anteriormente, coloca a consciência como refratora de uma natureza organizada através das estruturas subjetivas, de diferente modo Sartre aponta a consciência como projetada sobre uma realidade fática e é por meio dela que se projetam os sentidos na dinâmica do existir (consciência intencional).

Para entender melhor esta dinâmica supracitada, nos apoiaremos em dois conceitos-chave na fenomenologia sartriana, a saber: o ser-para-si e o ser-em-si. Nas palavras de Souza:

1 “Para Sartre, a existência humana sempre transcende ou se move para além (nega, ou niilifica, para usar o termo de Sartre) desses fatos sobre nossas circustâncias. Somos sempre livres para pensar outras possibilidades, outros tipos de vidas, e para negar a situação dada na qual presentemente estamos” (REYNOLDS, 2014, p. 89).

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É o Para-si que, sendo presença a si e não si, vazio de ser, nada de ser procura, por isso mesmo, seu “si” nas lonjuras. Sendo assim, só ao Para-si, homem, é própria a atribuição de significado e a alteridade, o estabelecimento de relações entre ele e outro para-si, entre ele e um em-si, e mesmo entre dois ou vários Em-si. “somos nós que colocamos essa árvore em relação com aquele pedaço de céu; [...] A cada um dos nossos atos, o mundo nos revela uma face nova”. Somente a realidade humana, por ser presença a si, nada de ser, falta, é que pode estabelecer relações com o que é pleno de si, desvendando, nesse processo, o mundo e si-mesmo, como não sendo aquilo que percebe (2008, pp.78-79).

O homem se descobre através de seus atos, porque é

desvendador, detector de ser. Por detrás deste desvendamento (embora nada há por detrás) o que há é sempre o desejo de ser em-si-para-si. Em outras palavras, o para-si é o desejo do fundamento enquanto ser e não enquanto nada. Deste modo, “O homem é o Vazio que quer ser preenchido sem deixar de ser vazio, é o Nada que busca também Ser, é Existência que se quer também Essência – enfim, é a busca de uma síntese impossível” (SOUZA, 2008, p. 80).

Todavia nos parece impossível caracterizar o homem, seja por sua racionalidade, pelo contexto ou circunstância na qual está inserido, ou qualquer outra coisa que o seja, já que a princípio, ele é nada (pura possibilidade de ser). Desta forma,

[...] não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro principio do existencialismo (SARTRE, 1987, p. 6).

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Porque pura possibilidade de ser, originariamente, o homem não é nada para além dessa possibilidade (Nada). Lançado no mundo, o sujeito vem a se tornar aquilo que é através das possibilidades contingentes do seu existir. Para que ele se construa enquanto homem é necessário que a todo momento ele escolha. Isso implica em decisão, porque o homem é aquilo que ele escolhe ser na dinâmica da existência. Percebemos aqui, um ponto fundamental na fenomenologia sartrena: a responsabilidade que o homem carrega de sua existência. Pois, se existir é escolher-se a todo momento, isso carrega o peso da responsabilidade desta escolha (decisão).

Lançado no mundo, sem o amparo de Deus ou de algo que o governe, o homem está fadado à sua própria responsabilidade no mundo, e só o é porque é livre. Quando dizemos que a existência precede a essência, não se pode explicar nada no mundo desde uma referência definitiva, isto é, não há espaço para o determinismo. O homem é liberdade na medida em que originariamente é pura possibilidade. Nessa medida, se Deus não existe, não podemos encontrar valores prontos, os quais legitimem a conduta do sujeito no mundo, isto é, não há nenhuma justificativa acerca da conduta de todo e qualquer homem no mundo, porque não há onde amparar nossas ações. Devido a todas essas afirmações, Sartre nos dirá que o “homem está condenado a ser livre”, pois, lançado no mundo é responsável por si mesmo em toda e qualquer ação. Deste modo:

o primeiro passo do existencialismo é de por todo homem na posse do que ele é, de submetê-lo à responsabilidade total de sua existência. Assim quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens (SARTRE, 1987, p. 6).

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Essa escolha, não só por si, mas por todos os homens, implica em que toda a ação resulte numa consequência que afeta não só o sujeito, mas a toda a humanidade porque o homem é um ser-em-relação. Portanto, a responsabilidade por nossa escolha abarca a humanidade como um todo, porque nossas ações refletem nessa totalidade. É neste ponto que Sartre rebate uma das críticas ferrenhas ao existencialismo. A subjetividade da qual trata, não é aquela que se encerra no sujeito, mas diz respeito à “impossibilidade em que o homem se encontra de transpor os limites da subjetividade humana” (SARTRE, 1987, p. 6).

Neste aspecto, o existencialismo procura apreender, primeiramente a si mesmo, sem intermédio de qualquer coisa, pois é nessa apreensão que está a verdade que permite o conhecimento. Isto é, a característica fundamental que distingue o homem dos demais entes é essa apreensão de si mesmo, enquanto consciência projetiva. Assim,

Através do penso, contrariamente à filosofia de Descartes, contrariamente à filosofia de Kant, nós nos apreendemos a nós mesmos perante o outro, e o outro é tão verdadeiro para nós quanto nós mesmos. Assim, o homem que se alcança diretamente pelo cogito descobre também todos os outros, e descobre-os como sendo a própria condição de sua existência. Ele se dá conta de que só pode ser alguma coisa (no sentido em que se diz que alguém é espirituoso, ou é mau ou é ciumento) se os outros o reconhecerem como tal (SARTRE, 1987, p. 15).

E é justamente neste aspecto que conseguimos

perceber um valor universal, na própria individualidade, pois cabe a todos os homens o limite da condição humana que é a de ter que estar no mundo e de ter de ser (escolher) a todo instante. Deste modo, a liberdade nos define, pois, em nos escolhendo, conjuntamente escolhermos toda a humanidade.

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É do fato de nos reconhecermos enquanto pura possibilidade que advém a angústia.

A partir de agora, adentraremos no ponto em que será possível pensar a relação entre a filosofia sartriana com a sua literatura. Tal noção diz respeito à angústia ou desamparo. Isso significa que há uma lida do sujeito com sua própria condição. Para o autor a arte é a salvação da contingência, isto é, é ela que nos arrebata da condição humana e nos possibilita compreender ou se alienar perante o mundo.

A literatura nos permite tratar de questões filosóficas (trataremos aqui sempre do existencialismo/fenomenologia), pois essas partem da lida com o real, da subjetividade para alcançar o universal. Esse movimento só é possível nessa ruptura com a metafísica tradicional, pois:

Esse conceito de metafísica, que é o da tradição filosófica, excluí toda a outra manifestação da verdade, visto que só esse aspecto objetivo é possível. Nessa metafísica não há lugar para o relativo, o subjetivo e o histórico. Assim, “seria absurdo imaginar um romance aristotélico, spinozista ou mesmo leibniziano, já que nem a subjetividade, nem a temporalidade tem lugar real nessa metafísica”. Há, no entanto, outro modo de considerar a metafísica, que é o da fenomenologia [...] na medida que retém o aspecto subjetivo e dramático da experiência, ela contesta a si mesmo. “quanto mais vivamente um filósofo sublinhar o papel e o valor da subjetividade, mais ele será levado a descrever a experiência metafísica em sua forma singular e temporal”. É por isso que a fenomenologia recorre ao romance: já que ela anuncia o histórico e o temporal, o subjetivo, ela necessita descrever esse modo de ser no mundo; porém, como conserva a necessidade de representar noções, ela precisa recorrer ao romance, o qual consegue descrever sua subjetividade (SOUZA, 2008, p. 63).

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Podemos observar que, para o autor, há uma interdependência entre a filosofia e a literatura, no momento em que ambas se apresentam como momentos necessários da compreensão e condição humana. A filosofia, aponta para as noções e os universais, conceitualizando e descrevendo o próprio homem, enquanto a literatura aponta para subjetividade, retratando o homem de modo imediato e singular. Há sempre uma oscilação e retorno entre o subjetivo e o objetivo. O tema da literatura engajada, de maneira geral, se mostra em sua relevância, pois perpassa todo pensamento sartreano, apontando para as fronteiras da filosofia e a imanência desta no mundo.

Ao falarmos em literatura, faz-se relevante clarificar a escolha do autor ao eleger a literatura dentre todas as outras artes, para engajar-se. Tal exposição aparece logo no início de sua obra Que é a literatura? Nela Sartre, ao ser acusado de querer engajar as demais artes (pinturas, esculturas e música) e de odiar a poesia, esclarece o porquê de escolher a literatura e porque apenas esta é passível de engajamento. Em primeira instância, Sartre coloca que não só a forma da arte é que é diferente, mas também sua matéria, já que enquanto umas expressam-se com cores e notas, outras o fazem através de palavras. A música, a pintura, a arquitetura, não são linguagens, nem signos, já que não remetem a nada que lhe seja exterior. Quando o artista usa determinada cor, o faz pois a cor em si já é uma coisa em máximo grau; o mesmo ocorre com a melodia, por exemplo. Quando o artista se expressa, por exemplo, ao pintar o céu, ou ao fazer uma melodia mais alegre ou mais sombria, a transforma antes em um objeto imaginário e isto ocorre, pois o artista não deseja traçar, esboçar ou imitar os signos. Cada escolha é resultado de uma tendência ou sentimento mais profundos. Porém, os artistas, ao escolherem determinada cor ou melodia, que já são coisas por si mesmas (possuindo algo como um sentido), quando a criam [na tela, ou na música], “suas emoções se embaralham

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e se obscurecem; ali ninguém será capaz de identificá-las com clareza” (SARTRE, 2015, p. 16). Desta forma, ao não conter em si o critério de clareza, nem de correspondência com o mundo fático, e por que “não se pintam significados, não se transformam significados em música” (SARTRE, 2015, p.17) que não se pode exigir destes artistas um engajamento.

Por outro lado, há de se fazer uma diferenciação entre a prosa (literatura) e a poesia, já que ambas são expressadas através das palavras. Porém, para Sartre, “na verdade, a poesia não se serve de palavras; eu diria antes que elas as servem” (SARTRE, 2015, p. 19). Isto ocorre porque o poeta não pretende nomear o mundo, pois o essencial para ele é a coisa mesma. Desta forma,

Na verdade, o poeta se afastou por completo da linguagem-instrumento; escolheu de uma vez por todas a atitude poética que considera as palavras como coisas e não como signos. Pois a ambiguidade do signo implica que se possa, a seu bel-prazer atravessá-lo como a uma vidraça, e visar através dele a coisa significada, ou voltar o olhar para a realidade do signo e considerá-lo como objeto; o poeta está aquém. Para o primeiro, as palavras são domésticas; para o segundo, permanecem em estado selvagem. Para aquele, são convenções úteis, instrumentos que vão se desgastando pouco a pouco e são jogados fora quando não servem mais; para o segundo, são coisas naturais que crescem naturalmente sobre a terra, como a relva e as árvores (SARTRE, 2015, p. 19).

Além disso, na lida usual com as palavras (falantes,

literatos), se está sempre em situação com as palavras, operando-as desde dentro, de maneira que esta lhe é tão comum que mal tem consciência dela e desta forma lida as coisas ao seu redor através da nomeação dessas, o objeto já lhe aparece com seu respectivo designativo. Já o poeta lida de forma diversa, pois a linguagem lhe aparece como exterior,

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como algo entre ele e a coisa mesma. O que lhe afeta primeiro é, justamente, a coisa (objeto) e depois volta-se a esse outro gênero de coisa, que é a palavra. Através da atitude poética, “as palavras não lhe servem de indicadores que o lancem para fora de si mesmo, para o meio das coisas. Em vez disso, considera-as como uma armadilha para capturar uma realidade fugaz” (SARTRE, 2015, p. 20). Toda a estrutura sintática da palavra, bem como seu aspecto fisíco (sua métrica) representa ao poeta um rosto carnal. Então, “em suma, a linguagem inteira é, para ele, o Espelho do mundo” (SARTRE, 2015, p. 20). E além disso, cada palavra-coisa criada, representa um microcosmo e por isso não é mais significado, mas sim, substância.

Através do exposto, percebemos que não é admissível que se peça engajamento poético, já que a mesma não se preocupa com o mundo fático. Mesmo que as emoções, a raiva e a paixão estejam à origem do poema, não se exprimem através dele, já que as palavras as apoderam e as transformam, e dessa forma extravasam o que o sucitou. Entre o poeta e o literato, não há nada mais de comum além de ambos expressarem-se através da escrita pois,

a arte da prosa se exerce sobre o discurso, sua matéria é naturalmente significante: vale dizer, as palavras não são, de início, objetos, mas designações de objetos. Não se trata de saber se elas agradam ou desagradam por si próprias, mas sim se indicam corretamente determinada coisa no mundo ou determinada noção [...]. Estamos na linguagem como em nosso corpo; nós a sentimos espontaneamente ultrapassando-a em direção a outros fins (SARTRE, 2015, p. 27).

E é a “estes outros fins” que a literatura pode ser

engajada, quando se sente a necessidadade de se comunicar algo, de se exprimir e tentar fazê-lo do modo mais concreto e

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detalhado possível, de arrebatar e ao mesmo tempo imergir o homem em sua condição.

É importante frisar que a relação entre a filosofia e a literatura é intrínseca, porém não é uma relação de superioridade de uma sobre a outra, nem de simplificação de seus conteúdos. Deste modo,

É justamente por saber que apenas a prosa é capaz de ser a ambiguidade que o homem é – tanto por sua linguagem como por ser irreal que a parte do real e a ele se volta - que Sartre lhe dá o papel de compreender a realidade humana com todos os seus paradoxos: se a fenomenologia pode descrever a ontologia da angústia e da liberdade do homem, apenas a literatura é capaz de empreender o esforço para compreender o indíviduo, de descrever o homem como universal concreto. A fenomenologia indica a ambiguidade, a literatura é essa ambiguidade (SOUZA, 2008, p. 66).

A ambiguidade é possível na arte literária de modo a

descrever a totalidade da complexidade e paradoxos na qual a condição humana se encontra. Além disso, isto é possível por ser, a literatura, obra imaginária. Diferentemente, a filosofia, embora possa comportar a ambiguidade, lida com conceitos, o que a torna, em certa medida mais objetiva (não sendo linguagem cientifica, ainda assim), e desta forma, torna as ambiguidades conscientes, deixando de retratá-las de forma imediata.

Em seus romances (ou ficções metafísicas, conforme nos diz Simone de Beauvoir), Sartre retrata a busca dramática do ser humano pela liberdade. A maioria de seus personagens estão diretamente ligados a essa questão, e são construídos de modo a revelar isto. Embora a questão não seja de fato resolvida/dissolvida em sua literatura, esta será vivenciada de maneira intensa pelos personagens e teorizada em suas obras filosóficas.

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Grande parte dessas questões são evidenciadas, além da obra literária premiada, A náusea, na trilogia Caminhos da Liberdade, composta pelas obras Idade da Razão, Sursis e Com a morte na alma. Para apontar brevemente dos temas que são levantados através da vivência dos personagens na trilogia, que há especulação quanto a ser uma autobiografia sartriana, na Idade da Razão, a subjetividade e o conceito de engajamento são retratados constantemente; já em Sursis a questão da alteridade e da história se confrontam, pois há uma urgência em relação ao contexto (de guerra) na qual os personagens são lançados; e para finalizar, Com a morte na alma o cenário já é na própria guerra e aqui as questões que podemos abordar são de como o heroismo, as circustâncias e as consequências de nossas ações implicam na liberdade. Com isso vemos, como o autor consegue fazer com que literatura e filosofia caminhem lado a lado, numa relação de complementaridade.

REFERÊNCIAS

DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. Tradução de César Augusto Battisti. Curitiba: SEED – PR, 2009.

KANT, I. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

SARTRE, J.-P. Com a morte na alma: Caminhos da liberdade. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

___________. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 1999.

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___________. O existencialismo é um humanismo; A imaginação; Questão do método; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; traduções de Rita Correria Guedes, Luiz Roberto Salinas Forte, Bento Prado Junior. – 3.Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

___________. A idade da razão: Os caminhos da liberdade. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

___________. A imaginação. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. Rio de Janeiro: Difel, 1980.

___________. A náusea. Tradução de Antônio Coimbra Martins. Belo Horizonte: Edições Tapir, 1964.

___________. Que é a literatura. Tradução de Carlos Felipe Moisés. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

___________. Sursis: Caminhos da liberdade. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

SOUZA, T. M. de. Sartre e a literatura engajada: Espelho crítico e Consciência infeliz. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

REYNOLDS, Jack. Existencialismo. Tradução de Caesar Souza. 2.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

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XII

MISTÉRIO DA ENCARNAÇÃO: REFLETINDO COM GABRIEL MARCEL E

MERLEAU-PONTY

Katyana Martins Weyh PREÂMBULO

No âmbito da filosofia contemporânea existem dois

pensadores que contribuíram muito para o debate acerca de temas caros à metafísica e à fenomenologia, tais como a questão da existência, da percepção, do ser e da corporeidade. Esta última é a que mais nos interessa e a qual vamos abordar de maneira mais focal em nosso trabalho. A questão da corporeidade apareceu nas discussões filosóficas muito antes do debate contemporâneo; no entanto, pretendemos abordar essa temática em um viés fenomenológico e inovador a partir dos filósofos franceses Gabriel Marcel e Merleau-Ponty.

Neste trabalho ensejamos mostrar ao leitor que tais filósofos se distanciam e criticam a tradição moderna e, principalmente, a ideia de que o pensamento exerce primazia sobre o corpo. A dicotomia sujeito-objeto compreendida através dos clássicos pressupostos deterministas e causalistas também são combatidas na medida em que nossos filósofos não adotam uma corrente racionalista ou empirista, mas sim compreendem o corpo em uma perspectiva fenomenológico-existencial.

Desse modo, distante do pensamento subjetivista/objetivista da modernidade, tais autores compreendem o corpo de maneira diferenciada, na medida em que ambos reconhecem na experiência do corpo um

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estatuto ontológico. Portanto, não se pensa mais o corpo como algo determinado ou ideal, mas como a experiência do próprio real. Uma descrição mais detalhada a respeito da filosofia fenomenológica e da noção de corpo para cada pensador é o que veremos na sequência do trabalho.

12.1 MISTÉRIO DA ENCARNAÇÃO: REFLETINDO COM GABRIEL MARCEL E MERLEAU-PONTY

Gabriel Marcel (1889-1973) foi um filósofo francês

que se dedicou ao pensamento fenomenológico-existencial, opondo-se ao idealismo ainda muito vigente em sua época. Marcel viveu em período de guerra e durante esse momento trágico surgiram pensamentos originais e que vieram a contribuir muito à tradição fenomenológica, que se fortaleceu com seu pensamento. As ideias de Marcel, mesmo aquelas que apareceram em sua juventude, nos mostram a crítica do pensador ao “espírito de abstração”, que instaurava um caráter completamente determinista ao sujeito, em que se pretendia abstrair o sentido último do ser e da experiência, levando em consideração o ideal e esquecendo-se do real.

Essa vertente filosófica tentava apreender o ser, para, a partir disso, defini-lo. Marcel acreditava que esse era um grande equívoco, pois o ser não pode ser apreendido, tampouco definido. Se o ser é definido, ele torna-se, inevitavelmente, objeto. Ora, é exatamente essa prerrogativa que o autor visa desconstruir. Não devemos buscar por uma definição fechada acerca do ser, não devemos nem mirar em uma definição, pois o que se trata trata-se, quando muito, de aproximar-se, já que não o abarcamos, mas sim somos tomados, invadidos e circundados pelo ser. A esse movimento, Marcel chama “participação”, pois a nossa relação com o ser pode ser somente de proximidade e nunca de apropriação.

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A nossa participação com o ser não se dá “de modo direto, mas indiretamente, isto é, mais se aproximando do que, de saída, apreendendo num ato único, puramente intuitivo”1. Assim, o ser não pode ser determinado e nem dito, tampouco pensado enquanto substância, representação ou objeto. O ser só pode ser compreendido como2 “aquilo do qual o pensamento participa”3. Desse modo, segundo a ideia de Marcel, o filósofo não deve pretender esgotar, ou mesmo capturar o ser, pois o ser deve sempre ser perseguido, mas jamais capturado. Não temos/possuímos o ser, apenas nos aproximamos e participamos dele.

Marcel chama a atenção para o modo como a prática científica (e, em grande medida, também a tradição filosófica) deixou-se absorver por uma atitude meramente curiosa em relação ao ser, de modo que os cientistas e filósofos iniciavam suas investigações a partir de um centro imóvel que pretendia apropriar-se de um objeto. Nesses casos, não apenas os cientistas, mas também os filósofos buscavam apreender e determinar o ser, tornando-o objeto de estudo. Há, nesse modo de pensar, uma carência do “espírito de inquietude”, pois a metafísica ficou estagnada em seu próprio pensamento na medida em que analisava o mundo desde a dicotomia sujeito-objeto.

Além disso, alguns filósofos parecem operar de modo muito semelhante aos cientistas na medida em que se mostram como um espectador-observador, que descreve teoricamente o seu objeto de estudo, partindo da interpretação e da explicação. O equívoco da metafísica, aos olhos de Marcel, foi colocar-se em uma situação semelhante em relação aos fenômenos e à investigação epistemológica,

1 SILVA, 2015b, p. 131. 2 As traduções dos textos de Gabriel Marcel utilizados neste artigo foram realizadas pelo Prof. Dr. Claudinei Aparecido de Freitas da Silva. 3 MARCEL, 1961, p. 70.

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pois conduziram a investigação filosófica aos moldes objetivos e deterministas da ciência.

Devemos tomar cuidado para não cair no equívoco de afirmar que os cientistas estavam errados. Não há problema em interpretar os fenômenos aos moldes da ciência, desde que isso seja feito pelos cientistas. O grande equívoco é o fato de os filósofos incorporarem o espírito cientificista (filósofos se tornaram especialistas, uma prática que é comum nas ciências naturais) e acabarem por estudar uma região dos fenômenos, ou seja, se debruçarem em um domínio particular, delimitando seu pensamento filosófico. Esse é um problema, pois Marcel acredita que o filósofo

deve se envolver mais pessoalmente na pesquisa, uma vez que o seu ser, o seu conhecer, o seu querer são conduzidos diretamente para a questão. Ele não pode mais se tornar indiferente ao lugar desde onde se situa. Sem esse real engajamento, ou seja, sem esse despertar instintivamente ontológico de princípio, qualquer passo do filósofo se tornará um recuo a um nível sectário e, portanto, indigente de questionamento.4

Diante disso, percebemos que Marcel é contrário à

ideia da simples curiosidade quando se trata da reflexão filosófica e, devido a isso, desconstrói a metafísica vigente por acreditar que o filósofo tem real importância no pensamento metafísico e não pode se deixar guiar pelos métodos científicos para orientar sua reflexão. A partir disso, entendemos que o filósofo que se compreende enquanto um metafísico, não deve proceder como o cientista que tenta apreender o fenômeno e demonstrá-lo, mas sim, deve compreender o fenômeno em sua mostração e o descrever em seu acontecimento.

4 SILVA, 2014, p. 166.

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Diferente da perspectiva científica, a metafísica não é uma simples curiosidade, mas sim uma inquietação que não se esgota no objeto. Ela vai muito além dele. A inquietação do filósofo (pelo menos é assim que deveria ser) não se contenta com algo que é definido, estagnado, muito pelo contrário. A inquietação do filósofo é com relação àquilo que não podemos apreender do todo, mas que podemos apontar, nos aproximar e participar, mas sem ter de delimitar, determinar e concluir. A reflexão metafísica deve mirar o ser, justamente aquele que pode ser compreendido, mas jamais descrito de modo claro e distinto. O ser metafísico, embora evidente por si mesmo é “não claro e não distinto”, na medida em que não se deixa apreender nem pela filosofia e nem pela ciência.

Para Gabriel Marcel, o mundo não pode ser compreendido nessa visão determinista (pelo menos não quando se trata de filosofia). Compreendemos que o homem não pode ser sujeito, e só a partir do momento em que se compreender de outro modo que não o da condição de sujeito (objetificado, estagnado), é que poderá compreender sua abertura para a aproximação e participação com o ser. Diante dessa liberdade, o filósofo está com o campo aberto para refletir acerca de sua condição humana. Diante disso, os filósofos não devem se contentar tão somente com o espírito curioso, pois tornam-se pensadores dogmáticos, fechados, determinados e deterministas.

A filosofia deve sempre estar aberta, acenando e apontando para o ser, mas nunca o capturando. Assim, podemos ver a preocupação de Marcel com o modo de filosofar dos homens, e o modo como ele acredita que o filósofo deveria estar sempre inserido em uma atitude inquieta5, movida pelo thaumázein6, em que há a necessidade incessante de mover-se em direção ao ser. Entendemos que a

5 Cf. SILVA, 2015a. 6 Do grego “espanto, admiração, perplexidade”.

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ideia de filosofar de Marcel é completamente diferente daquela em que há a pretensão de apreender o ser. Para o filósofo, o filosofar deve sempre estar relacionado à atitude inquieta que pressupõe uma constante busca em direção ao ser. Ora, é essa filosofia que Marcel vai denominar de “filosofia concreta”.

Nesse modo de fazer filosofia há sempre uma forma de pensamento que não se distancia do mundo, dos outros e da própria existência. A filosofia concreta não deve ser compreendida em um sentido empírico (algo dado, objetivado), mas como uma filosofia do real, capaz de restituir a própria essência da experiência e da realidade, pois “o concreto traduz o sentido de uma experiência verdadeiramente real”7. A tarefa da filosofia concreta é denominada por Marcel como participação ontológica, ou seja, a tarefa de conquistar o ser não no sentido de apreensão e sim de aproximação e participação.

A respeito da participação ontológica, Gabriel Marcel vai além desse debate quando afirma que a participação se mostra “essencialmente” como mistério, “escapando a todo método de análise que a converteria em objeto”8. Desse modo, o filósofo insere em sua filosofia a questão do mistério e do problema, enfatizando-a como reflexão como central em seu pensamento. Para Marcel, tal distinção não pode ser renunciada e a partir dela é que podemos compreender a questão da corporeidade. Nas palavras do filósofo:

Com efeito, parece que entre um problema e um mistério ocorre essa diferença essencial: um problema é alguma coisa que eu encontro; que eu encontro inteiramente diante de mim, mas que eu posso, por isso mesmo, identificar e reduzir. Por outro lado, um mistério é alguma coisa em que estou eu-mesmo engajado e que, consequentemente, só é

7 SILVA, 2015c, p. 131. 8 MARCEL, 1961, p. 65.

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pensável como uma esfera onde a distinção entre o em mim e o diante de mim perde a sua significação e o seu valor inicial.9

Diante dessa passagem, podemos compreender que

os objetos estão no domínio do problema, enquanto que há um outro âmbito, o âmbito da experiência concreta do real onde há o mistério, que diz respeito ao ser. O problema está relacionado à solução/resolução de problemas, geralmente no âmbito da ciência, pois está em um nível técnico, científico, uma vez que o problema eu possuo ou então me aproprio. Com relação ao problema, eu sempre estou de posse do objeto (assim também acontece com a compreensão de corpo na ciência, “eu tenho um corpo”). Isso faz com que o problema seja compreendido em um plano de atitude impessoal. Já o mistério não deve ser compreendido como um segredo ou em sentido religioso, mas sim como um enigma, (algo real, que se dá hic et nunc10, que se revela, que se mostra). O mistério é uma presença viva, que me afeta, que tem um valor importante para mim e, por isso, eu não posso ser imparcial com o mistério, porque já sempre sou/estou tocado por ele.

O objeto, no âmbito do problema, requer do observador que este o analise de modo preciso, rigoroso e imparcial, de modo que essa análise técnica seja condicionada por noções como as de causa e efeito. O cientista opera com as coisas e as determina, mesmo que tenha a pretensão de ser neutro frente ao seu objeto de estudo e análise. Seu foco é imediato e utilitário; no entanto, o problema pode ser compreendido também pela metafísica, na medida em que “se impõe ostensivamente como um ideal da mais absoluta posse intelectual. Ora, é nessa postura ostensiva, contemplativa, por excelência, que está a origem do “saber absoluto” como

9 MARCEL, 1935, pp. 169-170. 10 Aqui e agora.

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regime “criteriológico” do “problemático”.11” Nesse caso, se a metafísica se colocar no âmbito do problema, ela opera tal como a ciência, do mesmo modo que antes foi descrito o movimento de apreensão do ser, em que o cientista e, por vezes o filósofo, se coloca na condição de pura curiosidade frente aos fenômenos.

Além disso, na esfera do problema estamos lidando com a posse, com o “ter” em relação aos objetos. Nesse âmbito, o “ter” significa a apropriação mais acirrada dos objetos e é a partir disso que ele se enquadra em uma categoria de coisa dada no mundo que pode ser dividida, calculada, fragmentada, decomposta. A posse controla o objeto, pois o cientista que se coloca nessa condição de posse pode analisar teoricamente o fenômeno, sem se inquietar com sua existência real. Ele, apenas, adota a postura da mais pura curiosidade no sentido de resolver o problema em meio às suas pesquisas objetivas.

Gabriel Marcel não concorda que a metafísica e os fenomenólogos pensem de tal maneira, uma vez que no plano objetivo do ter, o problema é resolvido na medida em que se compreende um sujeito e objeto. Este é um pensamento completamente fechado em si mesmo. Já no mistério há sempre a busca por aquilo que ainda há de se compreender, mas não de se analisar e descrever, como pronto e acabado.

O mistério “é fundamentalmente o que dá vida à

experiência, ou seja, o que a transborda tornando‑a inexaurível”12. Devido a isso, Marcel acredita que o mistério do ser se transcende ao invés de se dar por satisfeito em conhecer, uma vez que ele está no âmbito da experiência concreta jamais se reduzindo ao determinismo científico e nem metafísico, pois escapa e resiste ao modelo irredutível do problema.

11 SILVA, 2014, p. 167. 12 SILVA, 2015a, p. 339.

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O mistério, enquanto experiência do real, necessita que o filósofo se aproxime e esteja engajado nele, para que se possa ter uma postura inquieta e compreender que o ser não pode ser reduzido a um problema. Já “problema” é um termo que está inteiramente carregado de um sentido científico e envolto de uma teoria que busca (embora as vezes não perceba isso) suprimir o real sentido da questão do ser.

À vista disso, Marcel dá um salto e faz um giro ontológico, a fim de mostrar que o ser está no âmbito do mistério e que o problema é relacionado ao objeto e não ao ser. Mais do que isso, Marcel dá um passo a mais ao afirmar que o corpo também pertence ao âmbito do mistério e, portanto, não pode ser possuído ou apreendido. Para o filósofo, a corporeidade não deve ser compreendida no plano da objetividade, uma vez que

“Não tenho meu corpo”, mas antes, “estou” ou “sou meu corpo próprio”: “meu corpo não é algo que eu tenho, eu sou meu corpo. O sentido dessa frase não pode ser elucidado senão negativamente. Dizer que sou meu corpo significa, antes de tudo, que eu não estou em condições de definir um tipo de relação qualquer que uniria estes dois termos, eu, de um lado, e meu corpo, de outro [...]. Isto é o que eu tenho em vista quando falo de um mistério da encarnação num sentido que não tem absolutamente nada de teológico.13

Compreendemos então que é no próprio mistério que

o corpo se desvela “aqui e agora” e assim o corpo se mostra como um ser fenomenológico. A experiência corporal, carnal, se mostra como o ser, em uma experiência de aproximação e de participação em que eu não posso ter o meu corpo, porque ele não é um objeto, mas eu sou o meu corpo (o mistério do ser se mostra também enquanto mistério da encarnação).

13 MARCEL, 1959, pp. 250-251.

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Quando Marcel fala em encarnação não significa um corpo estritamente físico, uma vez que “aqui, não se trata de um sentir orgânico, psicológico ou energético, mas, originariamente, ontológico”14, concreto. O mistério da encarnação, portanto, é um horizonte privilegiado do ser em que não mais se pensa em ter um corpo, mas ser o próprio corpo. A tarefa filosófica, então, é de compreender o corpo e não de analisá-lo, como se pode ver nas palavras do autor:

Todo existente me aparece como que prolongando meu corpo numa direção qualquer – meu corpo enquanto que é meu, isto é, não objetivo. Meu corpo é, nesse sentido, cada vez mais, o existente-modelo e mais profundamente ainda o signo dos existentes. O mundo existe para mim, no sentido forte da palavra existir, na medida onde eu mantenho com ele relações do tipo daquelas que eu mantenho com meu próprio corpo – quer dizer, à medida que eu sou encarnado [...]. Aqui convém dizer que meu corpo está em simpatia15 com as coisas […], ou seja, as coisas existem para mim na medida em que as vejo enquanto prolongamentos de meu corpo.16

Entendemos que a relação do ser e do próprio corpo

é uma relação de copertinência, e não mais uma relação dual no modelo sujeito-objeto. Não podemos mais pensar em uma relação de sobreposição. Aqui “ser corpo” é uma relação justaposta em que um é prolongamento e complemento do outro. Por isso, não podemos importar as mesmas características da anatomia ou da ciência para descrever o corpo vivo, pois enquanto sou meu corpo o compreendo em seu sentido fenomenológico, enquanto experiência vital.

14 SILVA, 2015a, p. 343. 15 Simpatia: Symphaticus: Sym: estar junto, Páthos: passividade, afecção (no sentido ontológico), paixão, “doença”. 16 MARCEL, G., 1927, pp. 261, 265, 273.

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Diante do posicionamento filosófico de Gabriel Marcel, especialmente aquele que diz respeito ao corpo, pretendemos agora encontrar uma possível relação de suas teses com o pensamento de Merleau-Ponty (1908-1961), outro pensador francês que se dedicou à temática do corpo no seio da fenomenologia. Em sua filosofia, o corpo tem um espaço central e que se mostra articulado com o seu pensamento fenomenológico-existencial. Merleau-Ponty compreende na experiência da carnalidade um estatuto ontológico e segue algumas intuições de Gabriel Marcel ao que diz respeito ao estatuto do corpo próprio.

O filósofo apresenta a temática do corpo em uma das suas principais obras, a saber: Fenomenologia da Percepção, em que nos mostra que a percepção não é um ato puramente espiritual, ou uma associação de ideias. Para Merleau-Ponty, a percepção não é fragmentária, parcial, nem um ato intelectual ou uma operação da consciência. Para o pensador há uma unidade de sensação e percepção. Portanto, sensação e percepção são uma só coisa.

Merleau-Ponty foi fortemente influenciado pela psicologia da Gestalt, a qual ele compreende como a “nova psicologia”. A Gestalt introduz a desconstrução das teses behavioristas e associacionistas (velha psicologia) em voga. Merleau-Ponty, a partir da visão estrutural ou formal da Gestalt, compreende que a divisão sensorial é uma separação artificial, arbitrária e dogmática e entende que nossa percepção corporal não é isolada, mas sim que nossas sensações se “cruzam”, se “entrelaçam”. O que ocorre é um envio mútuo de uma função para outra17.

O filósofo se interessou por essa psicologia da forma, uma vez que ela compreende que há uma visão mais ampla do mundo, uma visão do conjunto, do todo. Há uma certa significação intimamente inerente à ideia de estrutura, que se

17 MERLEAU-PONTY, 1999.

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contrapõe às teses behavioristas e associacionistas, assim superando o dualismo psicofísico, a lógica disjuntiva entre o eu e o entro, entre o em-si e para-si, entre sujeito e objeto. A psicologia da Gestalt tenta não isolar um conhecimento do outro, nem uma sensação da outra, mas tenta pensar a percepção de uma maneira mais integrada, de maneira total, de modo que minha percepção não é compreendida de modo parcial, isolada, mas sim na sua totalidade, é uma concepção ampla, e, em última instância, uma percepção holística.18

Embora Merleau-Ponty tenha sido muito influenciado por tais ideias, ele tece uma crítica à psicologia da Gestalt. Ele, por exemplo, se opõe ao isomorfismo, na medida em que acredita que o todo está na parte como a parte está no todo, e não que o todo é mais do que as somas das partes. A psicologia da Gestalt tenta fugir de um psicologismo; no entanto, Merleau-Ponty acredita que ainda há um resquício de objetivismo nessa teoria. Nesse sentido, o filósofo segue a ideia de que é preciso ir além do plano rudimentar e

18 Conforme SILVA, 2015d: Merleau-Ponty foi fortemente influenciado por Goldstein na medida em que este também critica a modernidade, especialmente a ciência, e acredita que há de se preencher as lacunas do pensamento moderno. A partir dessa ideia, Goldstein propõe uma nova metodologia, a saber: uma compreensão holística do indivíduo. Essa nova metodologia tinha o intuito de analisar, não mais de um modo decomposto, mas sim atento ao todo do organismo, analisando, portanto, de modo global e completo o ser em questão. Assim, para Goldstein, o modo mais correto e apropriado de olhar para o homem é sempre compreendendo-o como um sistema em que tudo deve ser analisado. O todo do homem, portanto, é aquilo que compreende seu ser enquanto existe com os outros em um mundo. Essa abordagem holística muito tem a ver com o modo de compreender o mundo por meio da lei de figura-fundo da psicologia da Gestalt, em que o processo de interação do organismo com o mundo requer um equilíbrio que só pode acontecer se houver a compreensão de todo o sistema.

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objetivista, e, por isso, é necessário ultrapassar e superar a psicologia da Gestalt.19

O filósofo pensa na relação entre o todo e as partes na mesma relação de copertinência que Gabriel Marcel compreende a relação do ser e do corpo no âmbito do mistério. Para Merleau-Ponty, o corpo deve ser compreendido como um enigma em que ele se apresenta como “vidente e visível, quer dizer, “ele se vê vendo, toca-se tocando, é visível e sensível para si mesmo”20. Percebemos que Merleau-Ponty se distancia da clássica dicotomia sujeito-objeto na medida em que um é sobreposto ao outro. Quando o filósofo fala em o olho se ver vendo, o visível e o invisível, a ideia não é mais a de separar causa de um lado e efeito do outro, ou sujeito e objeto. A ideia aqui é compreender esse movimento como uma co-existência, como uma comunhão, como nos mostra o próprio Merleau-Ponty:

O enigma consiste em meu corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, pode também se olhar, e reconhecer no que vê então o “outro lado” de seu poder vidente. Ele se vê vidente, ele se toca tocante, é visível e sensível para si mesmo. É um si, não por transparência, como o pensamento, que só pensa seja o que for assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento – mas um si por confusão, por narcisismo,

19 Muito embora não compreenda que psicologia e filosofia possam ser separadas, pois “há entre filosofia e psicologia uma coesão íntima, de modo que é, sob esse critério, que entre elas não haverá diferença. Se há alguma distinção aí a ser ponderada, ela será apenas uma diferenciação de graus de ingenuidade ou de explicitação, já que se trata, antes, de um só saber” (SILVA, 2012, p. 135). Desse modo, Merleau-Ponty acredita que não dá para separar psicologia e filosofia, embora elas guardem, cada uma, suas especificidades. O filósofo se importa com as imbricações entre filosofia e psicologia e nega a ideia de que o filósofo deve se colocar em um patamar acima do cientista ou como se fosse um guardião do saber. 20 SILVA, 2011, p. 169.

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inerência daquele que vê ao que ele vê, daquele que toca ao que ele toca, do senciente ao sentido – um si que é tomado portanto entre coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um futuro.21

Vemos que o filósofo critica a ideia moderna da lógica

binária que separa a mente do corpo e que acredita que o pensamento exerce supremacia em relação à corporeidade e apresenta o seu sujeito não como um eu puro ou um sujeito substancial, mas um sujeito enquanto corpo próprio, enquanto “carne e osso”. Essa metáfora da carnalidade expressa a ideia de que a reflexão não é mais sobre uma consciência, mas sobre o corpo como totalidade. Não há mais a ideia de um pensamento/alma/espírito superior ao corpo e este deve ser compreendido através de uma noção fenomenológica/heurística. Isso porque nos encontramos sempre encarnados, vivendo a experiência de ser o nosso corpo.

Diante disso é possível compreender que Merleau-Ponty concorda com Gabriel Marcel com relação ao corpo estar no âmbito do ser e não do ter, do mistério e não do problema, na medida em que afirma que “eu não estou diante de meu corpo, estou em meu corpo, ou antes sou meu corpo”22. Merleau-Ponty nos mostra que somos no mundo enquanto sujeitos encarnados em uma existência dinâmica, em uma existência engajada no mistério da encarnação. Nessa perspectiva, não há mais divisão/cisão entre sujeito-objeto, ser-mundo, homem-natureza, alma-corpo, sensação-percepção, mas há uma comunhão entre ambos os fenômenos, pois

[...] a relação do sujeito e do objeto não é mais esta relação de conhecimento de que falava o idealismo clássico e no

21 MERLEAU-PONTY, 2004, p. 15. 22 MERLEAU-PONTY, 1999, pp. 207-208.

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qual o objeto aparece sempre como construído pelo sujeito, mas uma relação de ser segundo a qual, paradoxalmente, o sujeito é seu corpo, seu mundo e sua situação, vindo, de certa forma, a se permutar23.

Ou seja, o sujeito é seu corpo no mundo e se mostra

na comunhão em que é tanto sujeito para si e objeto para o outro na medida em que há um “recruzamento” entre um e outro. Assim, o sujeito encarnado só pode compreender-se enquanto um corpo vivo na medida em que vive esta comunhão ele mesmo no mundo real, no mundo vivido.

Compreendemos que Merleau-Ponty e Gabriel Marcel apresentam o corpo de modo fenomenológico, no âmbito do ser e, portanto, do mistério. Desse modo, fica evidente a proposta de que o corpo tem em si mesmo um estatuto ontológico-existencial e “ser o próprio corpo” é compreender-se enquanto ser vivo no mundo.

REFERÊNCIAS MARCEL, G. Journal métaphysique. Paris: Gallimard, 1927.

___________. Être et avoir. Paris: Aubier/Montaigne, 1935.

___________. Présence et immortalité. Paris: Flammarion, 1959.

___________. Fragments philosophiques (1909-1914). Paris/Louvain: Vrin/Nauwelaerts, 1961.

23 Segundo Merleau-Ponty (1996, p. 89) conforme citado por Silva (2011, p. 173)

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MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Trad Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

___________. Présence et immortalité. Paris: Flammarion, 1959.

___________. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

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SILVA, C. A. de F. da. A mordedura do real: Gabriel Marcel e o gesto transcendental. In: FERRER, D. F.; UTTEICH, L. C. (Org.). A filosofia transcendental e a sua crítica: idealismo, fenomenologia e hermenêutica. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra/Coimbra University Press, 2015, pp. 323-355.

___________. Entre o “ser” e o “ter”: a hiperfenomenologia de Gabriel Marcel. pp. 162-178. In Origens e caminhos da fenomenologia. Rio de Janeiro: Booklink, 2014.

___________. Estrutura do sentido: Goldstein e Merleau-Ponty. Trans/Form/Ação, Marília, v. 35, n. 3, pp. 133-156, 2012.

___________. Gabriel Marcel e a teoria da participação ontológica. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea. Brasília, vol 3, nº 2, 2015b.

___________. Intuição e dialética: Gabriel Marcel, no limiar da ontologia pp. 115-133. In Fenomenologia, religião e psicanálise. São Paulo: ANPOF, (Coleção XVI Encontro ANPOF), 2015c.

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___________. Kurt Goldstein: psiquiatria e fenomenologia. Cascavel, PR: Edunioeste, 2015d.

___________. O transcendental encarnado: Merleau-Ponty e a nouvelle ontologie. Revista Kriterion. Belo Horizonte, n.123, 2011.

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XIII

O FUNDAMENTO DA FILOSOFIA POR MAX SCHELER

Leila Rosibeli Klaus

Da Essência da Filosofia sintetiza toda a futura intenção

filosófica de Scheler. A ideia de homem enquanto filósofo e o método da atitude espiritual irão prevalecer em todas as suas demais obras. Ao ler este breve texto, que faz parte do volume V das Obras Completas, será possível vislumbrar as principais teses do autor, que serão mais bem expostas em cada temática individual durante seus escritos até 1928. Neste texto de 1917, Scheler introduz pontos de vista e críticas que se sustentarão durante todo o seu empreendimento filosófico. Os princípios aqui formulados também podem ser encontrados em obras subsequentes, seja na teoria dos sentimentos ou na sua teoria acerca da antropologia filosófica. Scheler (1874-1928) escreveu sua filosofia com vistas a uma investigação marcada pela busca do sentido fundamental para diferentes temas filosóficos. Seu modo de pensar pode ser caracterizado, sobretudo, a partir de uma palavra: essencialidade. Para ele, era mister encontrar a essência da ética, a essência da sociedade, a essência do homem e, como não haveria de faltar, a essência da filosofia. A inquietação que conduziu Scheler a pensar sobre a essencialidade filosófica despontava da ideia a partir da qual a própria filosofia teria que ser capaz de justificar a si própria. Da Essência da Filosofia é um breve texto da primeira fase dos escritos de Scheler, no qual a questão a ser respondida é sobre o significado da filosofia. Esse objetivo não pode ser baseado a partir de uma certa analogicidade com qualquer espécie de teoria já consolidada. Também, é igualmente

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rejeitado qualquer intento de fundamentação da filosofia através da história da filosofia. Permanece o compromisso de definir a filosofia sem recorrer a sistemas teóricos pré-estabelecidos. Todas as disciplinas filosóficas, a história da filosofia, a filosofia da mente, a filosofia da lógica, a filosofia ética e assim por diante, necessitam ter para si, antes de mais nada, a ideia unitária da essência própria da filosofia. Reivindica-se, desse modo, a autoconstituição e o autoconhecimento1 da filosofia. A filosofia jamais pode ser fundamentada, mas sim fundante:

quer tudo isto dizer que ela não pode pressupor como verdadeiros nem o conhecimento histórico (portanto, também não o conhecimento da história da filosofia), nem qualquer conhecimento das chamadas “ciências” ou de uma só delas, nem o modo de conhecimento (e conteúdos individuais) da mundividência natural, nem ainda o conhecimento da Revelação, por mais que todos estes modos e matérias de conhecimento se situem, por um lado – lado esse que ela própria indaga na sua autoconstituição – no domínio dos objetos de que ela se deve ocupar (por exemplo, a essência do conhecimento da história, a essência da ciência histórica da filosofia, a essência do conhecimento da Revelação, a essência da mundividência natural)2.

Quando a filosofia se determina a partir de si mesma

sem conjecturas procedentes de quaisquer outras áreas do saber, ela é autônoma. Fundamentar a si mesma, provar autenticidade, demonstrar clareza, construir método e, acima de tudo, atingir quando possível compreensão e saber é uma tarefa espinhosa que requer cuidado a fim de não se basear em teorias já anteriormente dadas e recorrer, com concebível

1 Os termos grifados em itálico são os originais do autor. 2 SCHELER, Da Essência da Filosofia, p. 3.

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descuido, a explicações de negação para o que se teria enquanto aquilo que não é filosofia.

Com o objetivo de desvencilhar-se de todos os conhecimentos do tipo filosóficos que elucidavam a questão “o que é filosofia?”, Scheler respalda sua leitura acerca da filosofia em si mesma tomando como ponto de partida a questão relativa a atitude filosófica. Para se ter filosofia, alguém há de executar um comportamento, um posicionamento e uma conduta distintivamente filosófica. Por isso, o método a ser percorrido, a partir do qual a filosofia poderia ser compreendida a partir de si mesma, é o complexo cenário a ser esclarecido. Qual é a estratégia capaz de guiar aquele que deseja alcançar a essência da filosofia? Com legitimidade e indubitabilidade, qual a metodologia habilitada a responder a respeito da fundamentação da filosofia? Por fim, o que lança ou incita o homem à prática filosófica? Assumir a tarefa de trazer respostas ou afirmações filosóficas para a própria filosofia requer, antes de mais nada, uma tomada de posição acertada. Iniciar uma investigação tão singular, que rejeita todo e qualquer dado pré-evidenciado ou qualquer associação com conteúdos pré-declarados, demanda um método único jamais pensado.

Scheler nos apresenta nesse breve, ensaio a origem pela qual a filosofia toma a si mesma sem o auxílio das ciências em vigência no início do século XX. A psicologia, a antropologia empírica, a etnologia, a biologia ou a teologia poderiam, se assim fosse de seu interesse, definir o que compete à filosofia, isto é, se a ela pertence algum saber autêntico de análise ou de verificabilidade. Não cabe às ciências de constatação auxiliar na busca da essencialidade filosófica. Poderia acontecer, pode-se pensar, que tais áreas do saber empírico especificassem por uma via negativa aquilo que não pode ser tido como filosofia. No entanto, esta demonstração é desprovida de sentido quando já sabemos de antemão que a filosofia não pode ser explicitada por analogia

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ou, neste caso, por comparação negativa, com qualquer conhecimento definido. Não é preocupação das ciências da natureza e do homem questionar o cerne da filosofia. Apenas a filosofia possui um interesse por si mesma. Ela é quem necessita de explicação e de fundamentação perante si mesma e perante as demais áreas de conhecimento, principalmente quando as ciências da natureza se sobrepõem às investigações do tipo metafísicas pertencentes à filosofia. Aquilo que confere legitimidade às ciências práticas ou exatas não pode e não é nem similar ao campo de análise filosófico. Parece-nos, portanto, que a filosofia jamais promover-se-á entre as ciências em geral; ademais, em tempo algum ela poderá assenhorar-se de posição científica. A filosofia é singular e, por assim dizer, solitária. Ela pode trazer conhecimentos de outras áreas a fim de constituir seus próprios, no entanto o contrário dificilmente se dará, e mesmo quando compartilhar de saberes empíricos, apresentará a necessidade de estruturar e argumentar com seus próprios conceitos disponíveis, edificar novos conceitos e, para todos eles fornecer uma particularidade diferente das ciências gerais e empíricas, a saber, um princípio inato ou um apriorismo.

A preocupação que impulsiona Scheler a escrever a favor de uma essencialidade filosófica é bem compreendida quando temos em mente o contexto da época. Além de as ciências empíricas ou naturais ocuparem o centro de aquisição de conhecimento, havia as correntes teóricas que não defendiam quaisquer indagações ou dilemas do tipo filosóficos como a corporeidade, a divindade, o universo, o homem, a liberdade, entre outros. Para os neopositivistas, o parâmetro de conhecimento científico do mundo desvinculava-se de todos aqueles problemas insolúveis da filosofia. Os estruturalistas afirmavam que a filosofia não possuía um objeto e um método propriamente digno para a obtenção de conhecimento. Ora, defronte a críticas, a filosofia do século XX precisou questionar radicalmente a si mesma,

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as suas tarefas e os seus limites. Ela viu-se obrigada a uma autocompreensão reflexiva. Scheler, por sua vez, não fez outra coisa ao perguntar-se acerca da essencialidade da filosofia. À medida que o homem pensa sobre si mesmo, sobre o mundo, sobre os outros e sobre Deus, a filosofia existirá, pois sempre achar-se-ão problemas especificamente filosóficos ao passo que o homem vive e reflete.

Para Scheler, a filosofia jamais perderá seu posto de conhecimento, uma vez que ela é capaz de proporcionar ao homem aquele rompimento tão significativo para com todo o mundo natural. O olhar de admiração ou interrogação são inerentes ao homem e, consequentemente, toda a teorização filosófica permanece soberana em face da ciência. No entanto, a maneira pela qual a filosofia deve ser executada carece de um método próprio a ser percorrido. A sua autoconstituição advém de uma atitude básica pessoal. Tal atitude deve proceder sem precedentes empíricos ou sem precedentes de qualquer tipo. Simultaneamente, a atitude aqui requerida para a autoconstituição da filosofia não pode dispor de um domínio próprio de objetos de conhecimento. Por mais que busquemos a essência da filosofia a partir de um método – da atitude espiritual –, Scheler nos adverte que ela (a essência) “existe todavia tão independentemente dessa atitude como a estrela que surge diante do telescópio, e que não percepcionamos a olho nu”3. O apriorismo scheleriano é um traço constante nas suas obras, aqui ele aparece para nos lembrar que a essencialidade filosófica sempre esteve presente, porém cabe ao filósofo o acesso necessário até esta essência.

O alcance à essência da filosofia depende exclusivamente de objetos pertencentes unicamente à atitude espiritual. Descartamos aqui todo o grupo de objetos empiricamente constituídos e verificados. Cabe ao método

3 Ibidem, p. 6.

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objetos que são estritamente ligados à atitude espiritual do filósofo. O autor que executará a atitude filosófica “não é um ente qualquer, mas o caso especial de alma humana”4: o filósofo. Aqui Scheler nos lembra como Platão enfatizou nos seus diálogos acerca da atuação, exclusivamente do filósofo, na busca do essencial fundamento da filosofia e de todas as coisas possíveis. O filósofo seria a condição para que toda a efemeridade do não-ser particular em geral fosse deixada de lado para ascender às mais puras formas de todo o essencial daquelas coisas sensíveis. Na teoria platônica5, o filósofo precisa dispor de um núcleo gerador capaz de incitá-lo ao nível das essencialidades e verdades. Para Platão, o eros – amor fundamental – seria esse propulsor, que quando despertado impulsionaria o filósofo na direção das formas perfeitas. O eros é a forma mais pura e suprema que eleva o filósofo a partir do ser imperfeito para o ser perfeito (inteligível). Todavia, por mais que a teoria platônica nos forneça a concepção da atitude pela qual a essencialidade pode ser captada, há, imprescindivelmente, uma oposição entre a vida sensível e tudo que a ela corresponde para com a esfera ordenada e espiritual. O filósofo, para Platão, é constituído pelo ato de resistência diante das vontades do corpo, das emoções, dos prazeres e das opiniões.

Scheler não adota a doutrina platônica como fundamento para a sua ideia de atitude filosófica, por um lado ele apenas concorda com Platão no que diz respeito ao ato total no núcleo da pessoa enquanto essencialmente amor; já por outro lado, ele discorda da teoria platônica pelo fato que nela não há conhecimento subjetivo, ou seja, conhecimento pelos sentidos do homem. A acepção racionalista de teoria do conhecimento de Platão ordena que se deve superar a natureza corpórea até o seu extremo. Embora tenha o eros

4 Ibidem, p. 7. 5 Ver diálogo Fedro de Platão.

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como o firmamento capaz de impulsionar o filósofo para a esfera da essência, Scheler critica o racionalismo de Platão, que apenas considera como conhecimento o que não é subjetivismo. Contudo, o que resta da visão platônica é aquilo que servirá de guia para o alcance da essência da filosofia, a saber, há um ato fundante diferente de todos os atos naturais que possibilita a apreensão do princípio da filosofia: este ato é por essência amor.

A tese que Scheler sustenta é que a atitude pela qual a essência da filosofia é captada parte de um “acto determinado pelo amor de participação do núcleo de uma pessoa humana finita no essencial de todas as coisas possíveis. E um homem do tipo essencial do ‘filósofo’ é um homem que adopta esta posição perante o mundo e na medida em que a adopta”6. Assim, a atitude espiritual encontra-se no essencial de todas as coisas na vida finita e não em uma esfera transcendental incorpórea. Esta atitude espiritual, que definirá a essência da filosofia, é uma teoria para alcançar o conhecimento genuinamente filosófico e o conhecimento das coisas em geral. A filosofia não é outra coisa que conhecimento. Na medida em que o filósofo participa das essências por meio do conhecimento, a essência originária ou a filosofia é independente. Isso significa que a filosofia não precisa participar do conhecimento; a atuação entre filósofo e filosofia é governada pelo que é essencial da essência originária e não pela essencialidade do objeto cognoscível. Ora, Scheler parece criticar a relação ser-objeto, pois o ser pode cingir para além do que é objeto, isto é, o filósofo pode ir para além daquilo que é conhecimento: ele pode agir enquanto essencialmente realizador de atos. Aqui revela-se uma das ideias centrais para a filosofia de Scheler: o conhecimento não parte do ser para com um objeto determinado, mas sim há uma participação do homem na essencialidade originária enquanto ser-ato. Dessa forma,

6 SCHELER, Da Essência da Filosofia, pp. 8-9.

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ocorre uma efetivação de atos por parte do homem e não mais o conhecimento de objetos. Além disso, se pretendemos buscar a essência da filosofia a partir do conhecimento, este, como já vimos, depende da forma mais pura de inteligibilidade: o ato de amor.

Assim, a ideia de homem racional que busca acima de tudo conhecimento é substituída pela ideia de homem enquanto possuidor de um núcleo pessoal de atos de amor. Portanto, a investigação acerca da essência da filosofia nos conduziu a uma atitude espiritual de elevação a partir de um ato de amor e não a partir de um método racional. A participação do homem em um ser, que por si mesmo é um ser de atos, denomina-se de correalização de atos. O homem – filósofo –, quando exerce o ato de amor, transforma o princípio da filosofia não como sendo mais racional, mas como uma forma essencial de participação na essência originária. Esta essência originária é independente de qualquer tipo de conhecimento, isto é, ela existe de modo a priori. A filosofia, por sua vez, é livre dessa essência originária ou de conteúdo objetivo da essência originária. Isso significa que o caráter filosófico da filosofia é autônomo. Durante algum tempo a filosofia obteve uma certa limitação objetiva, pois o seu conhecimento não dependia apenas de si mesma, mas de outras dimensões do conhecimento. Por exemplo, na antiguidade a ideia de filosofia girava em torno da fé e das ciências, ora atendendo à fé de forma espontânea e ora respondendo às ciências na qualidade de ciência primeira e soberana para com as demais. Na Idade Média a filosofia precisava responder aos desígnios da fé se quisesse manter-se enquanto investigadora de conhecimentos. Na modernidade, contudo, a filosofia transformou-se em uma vassala da ciência e o seu domínio de investigação restringiu-se a formas empíricas e relativas, com exceção das ciências puras como a matemática e a lógica. Ademais, na Idade Moderna a filosofia foi, basicamente, pensamento positivista, ou seja, ela era as

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ciências particulares que questionavam os saberes em busca de conhecimento não contraditório. Sua preocupação baseava-se na imposição de pressupostos científicos para a obtenção de conhecimento. No entanto, Scheler parece trazer à luz a filosofia como autônoma e livre, colocando-a numa posição de soberania e insubmissão. A filosofia não se acha mais entre as ciências ou no campo da fé.

A posição religiosa pessoal de Scheler não interferiu na sua ideia de filosofia autônoma da fé. Mesmo ele convertendo-se do judaísmo ao catolicismo, a sua teoria acerca da filosofia não subordinava esta à fé. A filosofia dedicar-se-ia livremente à fé e “só como ‘livre serva’ da fé é que a filosofia pode conservar a dignidade de rainha das ciências, e tornar-se-á necessariamente servidora, inclusive escrava e concubina das ‘ciências’, se ousar comportar-se como senhora da fé”7. Porém, a filosofia de forma alguma é considerada por Scheler como uma parte da fé; a filosofia possui seu próprio método e justifica-se pela sua clareza e inteligibilidade de teor unicamente filosófico. Sabe-se, portanto, que a filosofia precisa obter sua essência ou sua autonomia perante nada mais do que si mesma, sem aliança com as ciências e sem comprometimentos fideístas. Para tanto, a atitude filosófica que conduzirá o filósofo a participar da essência da filosofia e, simultaneamente, da essência originária, é um ato de impulso da pessoa. A essência da filosofia percorreu até o momento um método reconhecido enquanto ato de amor. Este ato caracteriza-se por situar-se na pessoa que é, por sua vez, o núcleo no qual todo o homem pode descobrir-se em atividade com as capacidades superiores. É peculiar da filosofia que não apenas uma esfera pensante ou racional do homem exerça a atividade espiritual filosófica, mas sim a esfera factual e a esfera espiritual do homem. Todas as capacidades espirituais do homem devem

7 Ibidem, p. 17.

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ser aplicadas na busca de conhecimentos filosóficos, de modo que, enquanto que “as ciências exigem respectivamente a aplicação e o exercício de funções parciais específicas do espírito, por exemplo maior reflexão ou arte de observação, mais pensamento discursivo ou intuitivo-inventivo, etc.”8, a filosofia engloba todo o universo material do espírito humano.

Com o ato de impulso alcança-se conhecimento universal, desde que o homem unifique o seu centro pessoal com o essencial sem mediações, quer dizer, que aglomere todas as intuições, que serviam parcialmente às ciências9, e todas as atitudes da consciência. O conhecimento aqui obtido não é resultado de investigação de temática ou de teor particular, mas antes, sobretudo, é conhecimento adquirido por intuições puras e sem forma. Scheler determina as intuições independentemente de ter, simultaneamente, os seus dados particulares já objetivados. O apreender espiritual é puro no sentido de captar a essência do intuído sem enquadrá-la nessa ou naquela configuração específica, isto é, a intuição é livre de reflexão teorética, pois ela visualiza o todo sem integração com formas de intuições ou atos de apreensões particulares. Portanto, há uma compreensão das diversas essências do ser apenas a partir do centro de uma pessoa, que é caracterizada pela relação ser e ato e não pela relação ser e objeto10.

Visto que o homem que realiza o conhecimento filosófico não é o banal homem psicofísico11, nem aquele

8 Ibidem, p. 29. 9 Scheler em uma nota enfatiza a afirmação que não existe a ciência, mas apenas ciências. 10 Scheler critica a filosofia da vivência, já que esta aceita como conhecimento apenas aquela cognição dada pelo objeto e jamais reconhece que se adquire conhecimento de uma vivência circunstancial do tipo sentimental (emocional). 11 Aquela ideia de homem que, segundo Scheler, apoiava-se em conceitos naturais e conceitos psíquicos, concebendo ao homem inteligência prática e nenhum conhecimento do tipo essencial.

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homem que costumeiramente classificamos enquanto moralmente correto, o conhecimento filosófico é o resultado apenas do impulso do homem espiritual que se relaciona cognitivamente com o domínio da essência originária. Quando o homem se impulsiona para além do mundo fático, há uma união imediata entre o seu ser e o ser essencial. À vista disso, a finalidade do homem é constituir-se enquanto análogo ou correspondente de atos de todas as essências possíveis. Concomitantemente, todas as essencialidades necessitam transladar para a pessoa. Percebe-se aqui uma dupla transição, porque o homem como pessoa se espiritualiza e acessa as essências do ser na mesma medida e ordem em que o ser e suas essências se efetivam ou se concretizam na pessoa. A ideia de homem que neste ponto se depreendeu nos mostra como a influência do catolicismo no pensamento de Scheler é marcante, dado que o homem almeja sair do mundo que o circunda para participar das essências e, consequentemente, do ser absoluto – Deus.

[...] na medida em que – como se verá – a ideia de um concreto centro pessoal (infinito) de actos, enquanto correlato de todas as possíveis essencialidades, se identifica com a ideia de Deus (ou com uma determinação fundamental desta ideia), a tentativa do impulso do homem espiritual total é sempre, ao mesmo tempo, uma tentativa do homem para si mesmo se transcender como ser natural já acabado, para se divinizar a si mesmo ou se tornar semelhante a Deus (Platão)12.

O impulso é uma tentativa de desconexão do homem

para com o mundo psicológico e biológico em direção ao ser essencial e à ideia de Deus.

Sabemos qual é a posição particular de conhecimento que se deriva do impulso, entretanto o que origina o ato de

12 SCHELER, Da Essência da Filosofia, p. 32.

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impulso? Para Scheler, o homem vive de fato no mundo com outros homens e com objetos. É o mundo naturalmente constituído como o conhecemos. O ato do impulso, que deslocaria este homem pessoal para a essência, parte deste mundo natural, orgânico e psicologicamente estabelecido. O termo que Scheler atribuiu a este mundo assim fundado é mundividência natural. Neste mundo o homem participa das mais variadas formas de vida, por exemplo a social, a divina, a científica etc. Toda a configuração do mundo natural integra o mundo circundante que “constitui o sistema das formas naturais do existir (coisas, acontecimentos, intuição natural do espaço e do tempo), a que corresponde o sistema das formas naturais de percepção, de pensamento e linguagem (são entendimento humano e linguagem popular)”13. O mundo circundante abrange tanto um indivíduo em especial quanto toda a humanidade em geral. A mundividência natural, por sua vez, comporta a mundividência científica, ou seja, nesse mundo circundante, que toda a variedade humana, animal e vegetal vive, é possível realizar todos os tipos de ciências14.

Porém, a atitude filosófica e, respectivamente, a mundividência filosófica não surgem quando o homem engrandece o seu conhecimento natural, mesmo que este conhecimento possua validade universal, como no caso das leis da física. O impulso para a atitude filosófica requer uma propensão distinta dos estímulos que conduzem os homens para o conhecimento científico. O conhecimento filosófico é diverso do conhecimento do mundo circundante, que é relativo e limitado a um contexto explicativo. Pode-se dizer que as ciências estão presas à vida sem questioná-la em si mesma. A atitude filosófica e a essência da filosofia, por outro lado, são opostas a toda e qualquer experiência cognitiva já

13 Ibidem, pp. 34-35. 14 Para Scheler, é possível investigar fenomenologicamente o mundo natural a partir da fenomenologia da mundividência natural.

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pré-estabelecida. Se é claro que o impulso, que ascende para o ser do mundo, não advém de formas científicas, qual seria, então, a sua origem? De acordo com a estrutura de pensamento do nosso filósofo, o impulso depende dos atos morais básicos e da desvinculação do homem para com toda a forma de vida psíquica. Os atos morais básicos já ocuparam toda a obra O formalismo da Ética e a Ética material dos valores15 em 1913 a 1914, todavia em Da Essência da Filosofia, Scheler desenvolve a viabilidade da busca do conhecimento filosófico a partir dos atos morais já expostos na sua teoria ética.

Estes actos morais – e só eles – conduzem a pessoa espiritual, enquanto sujeito de possível participação no ser mediante o conhecimento, para lá da esfera do mundo circundante do ser ou além da direção da relatividade do ser em geral, e introduzem-na na esfera mundana do ser, portanto da direção do ser absoluto16.

Enquanto o homem impulsiona-se para a esfera do ser

absoluto, as ideias naturalistas, biológicas e religiosas, comuns à mundividência natural, desvanecem-se. Na medida em que o homem executa o ato de amor em direção ao valor moral supremo e ao ser absoluto, anula-se no seu interior toda relatividade do ser pertencente ao mundo circundante17. Também, através da humilhação, o homem abandona o orgulho natural e estabelece o princípio moral que o levará ao conhecimento filosófico. Ao mesmo tempo, o homem adquire autodomínio, anulando a sua camada de traços psíquicos e eliminando aquela ganância ou concupiscência natural. De acordo com o autodomínio, o homem pode se adequar

15 Esta obra está traduzida para o espanhol com o título Ética. 16 SCHELER, Da Essência da Filosofia, p. 37. 17 Importante lembrar que a obra Confissões de Santo Agostinho é muito presente no pensamento de Scheler, principalmente, no que diz respeito ao conceito de ascensão para o ser absoluto.

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moralmente numa escala que se limita entre o nulo e a perfeição.

Em vista disso, o conhecimento filosófico exige três etapas de atos morais pelos quais se assegura o conhecimento da essência. O ato de amor, no qual todos os demais atos se encontram, garante uma independência para com toda a relatividade do mundo natural; o ato de humildade move o homem para a essencialidade das coisas do mundo, ou seja, é um movimento em direção ao conteúdo quididativo da mundividência filosófica; o ato de autodomínio fornece conhecimento intuitivo em oposição ao mero opinar ou ‘achar algo sobre alguma coisa’. O que existe entre as três atitudes morais e os tipos de direções diferentes de conhecimento18 não é nada do tipo acidental ou relativo à experimentação e à psique. Mas antes, uma vinculação essencial entre o plano moral e o teórico. O ato de humildade, entre os atos morais, é que de fato liberta o homem da mundividência natural e de tudo o que com ela se corresponde enquanto coisas casuais opostas às suas essências. O mundo natural ofusca o mundo das essências puras, pois ele baseia-se em relações factuais, instintivas, relativas e limitadas. Entre o ato de amor, o ato de humildade e o ato de autodomínio, apenas este último apresenta uma função a mais, a daquela de condição moral para alcançar o conhecimento filosófico: o ato moral de autodomínio abre cenário para o conhecimento científico.

O autodomínio, ao controlar os pseudossaberes (opiniões sem embasamento teórico) e as pulsões, traz à tona aspiração racional e com esta a ciência. No entanto, a ciência delimita-se a partir do ser circunstancial e, por isso, relativo e

18 O conhecimento filosófico pode se convergir para três tipos distintos e independentes de conhecimento entre si: para o conhecimento do ser absoluto, para o conhecimento evidente da essência ou conhecimento indutivo da existência e para a adequação de conhecimento.

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casual19. A ciência não realiza o conhecimento de essência por mais que o pressuponha. Além disso, a ciência procura conhecer os objetos existentes, que são por natureza dominados e variados sob a liderança racional humana que é delimitada psicofisicamente. De mais a mais, a ciência sempre estará necessariamente vinculada a dois fatores fundamentais, a saber, a ambição ou desejar do homem e suas especificidades referentes à vida orgânica, psicológica e biológica. Esses dois fatores são responsáveis por aniquilar os atos de amor e humildade em face da totalidade de existências finitas e limitadas. O homem que pretende fazer ciência precisa apoderar-se de um ato moral da mesma forma que o filósofo precisa impulsionar-se pelos atos morais básicos para conquistar conhecimento filosófico. O ato do cientista caracteriza-se por uma vontade de dominação e por uma vontade de ordenação, esta origina-se daquela. A meta do cientista é conhecer os princípios da natureza e, a partir disso, “o autodomínio em função de uma possível dominação do mundo, e não a humildade e o amor, é que constitui seu ethos fundamental”20.

De um lado o cientista, que é movido pelo amor ao conhecimento das coisas em geral; de outro lado, o filósofo, que é despertado pelo amor ao ser – essência – dos próprios objetos. A meta da atitude filosófica é o conhecimento de essência do objeto, afastando a inclinação para todo o objeto contingente. Portanto, o tipo de objetos que se volta para a posição cognoscitiva filosófica é antagônico do tipo de objetos das ciências. Todo o percurso até agora estudado de nada servirá se deixarmos para trás as evidências de que o filósofo intui a fim de realizar os valores básicos e chegar às essências. Scheler é satisfatoriamente sistemático ao

19 A filosofia, no que lhe diz respeito, não compatibiliza com nenhuma contingência e relatividade próprias das ciências. 20 SCHELER, Da Essência da Filosofia, p. 40.

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estabelecer quais evidências a essência da filosofia necessita instaurar para servirem de alicerce para o discernimento filosófico. Primeiramente, a essência da filosofia delimita a evidência em forma lógica de juízo de que algo é absoluto; posteriormente, de que este algo absoluto é inteiramente absoluto e não o é por dependência ou por junção com outro algo ou outro ser. Assim, se reconhece que há um ente absoluto, não por meio da razão, nem da lógica, mas sim em vista de um discernimento imediatamente intuitivo. O ser absoluto precisa revelar-se acima de qualquer ser relativo quando o homem discerne filosoficamente. Ainda, a terceira evidência em forma de juízo funda-se no traço de que todo ente apresenta imprescindivelmente um ser da essência e um ser da existência.

Portanto, a cada essência de algo corresponde igualmente uma existência qualquer, e a cada existência uma determinada essência – embora o conhecimento de essência seja de todo diverso do conhecimento de existência, diverso na evidência e no alcance da validade, e também na sua apreensibilidade para nós21.

O conhecimento da existência é limitado e diferente do

conhecimento da essência no que diz respeito à sua clareza, acessibilidade e conhecimento. A essência de um objeto ou de um ato é a priori no sentido de não depender da existência do objeto ou da experiência da existência do objeto. O conhecimento da essência, seja de um objeto ou de um ato, é totalmente diferente do conhecimento da existência. Conhecer a essência é, por si só, um conhecer filosófico; não é de modo algum casual, mas sim evidente e cumpre as três evidências para o conhecimento filosófico. O objeto físico de uma ilusão contém essência tanto quanto a própria ilusão, porque o que imaginamos corresponde a objetos existentes

21 Ibidem, p. 46.

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que contém em si a mesma essência. Apesar disso, o ser absoluto não deixa depender a sua essência de alguma existência. Visto que o ser absoluto não é contingente, ele diverge conceitualmente de qualquer ente possível; a essência do ser absoluto é a priori na forma mais legítima de se encontrar. A separação entre ser de essência e ser de existência se dá apenas no ente relativo e ôntico, isto é, tal separação não ocorre no nosso entendimento, mas apenas no ser dos próprios objetos empíricos. Por conseguinte, se a separação ocorre somente em um ente relativo, o conhecimento deste ente é dependente de um sujeito que conhece. E para conhecer é evidente que a existência decorre necessariamente da essência.

A filosofia é essencialmente evidente e com isso entende-se que ela não pode se propagar ou se anular por método indutivo. Ela também é legitimamente a priori para todo o existente casual, de modo a apresentar essencialidade para todo o tipo de exemplo (parte separada da vivência). A natureza do conhecimento filosófico é a relação do ser absoluto para com todo o ser objetivo possível, é um conhecimento que adentra a dimensão do ser absoluto. Ao final, podemos fixar o que aqui foi demonstrado pela seguinte relação: o homem, ao desempenhar a atitude espiritual, promove uma transição metafísica para o plano ontológico enquanto ser absoluto – Deus. Esta atitude espiritual do tipo metafísica é uma participação que possibilita o conhecimento do espírito infinito, o qual se caracteriza por ser a estrutura essencial do mundo e do homem. Por tudo o que Scheler nos estabeleceu, vale destacar que a filosofia, antes servidora de outros tipos de conhecimento, conquistou sua própria constituição, sua autonomia e seu princípio. Ela não depende de nenhuma cosmovisão e pode existir sem a atitude espiritual. A essência da filosofia, que não resulta do filosofar por ser a priori, é compreendida pela atitude espiritual do filósofo. Esta atitude é o inverso de todo tipo de saber

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racional, uma vez que é ato de amor. O impulso que conduz o filósofo a partir do ato de amor é originado pela atitude moral, que é antes do conhecimento de objetos, pois o valor moral é antes de todo conhecimento objetivável. Por fim, o impulso moral filosófico rompe com a esfera dos valores vitais e torna possível o conhecimento filosófico por meio de um ato de amor da pessoa para com o valor e ser absoluto.

REFERÊNCIAS

SCHELER, M. Da essência da Filosofia. Trad. Artur Morão. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/schelermax da essencia da filosofia.pdf. Acesso em: 18/08/2014.

___________. Ética. Trad. Hilario Rodrígues Sanz. Madrid: Caparrós, 2001.

___________. Der Formalismus in der Ethik und die materielle Wertethik. Gesammelte Werke; Band 2. Bonn: Bouvier, 2000.

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XIV

O INCONSCIENTE NA OBRA DE MERLEAU-PONTY

Litiara Kohl Dors

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo abordar a

interpretação apresentada por Merleau-Ponty acerca da problemática freudiana do inconsciente, visto que a psicanálise fora tematizada pelo filósofo desde seus trabalhos iniciais como La structure du comportment (1942) e a Phénoménologie de la perception (1945), perpassando boa parte da obra do autor e atingindo o ápice de seu desenvolvimento em seus cursos ministrados no Collège de France entre 1954 e 1955, sob o título de L’institution la passivité, onde o tema do inconsciente mais propriamente toma efetivamente corpo.

14.1 O INCONSCIENTE À LUZ DE UMA FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO: RELEITURA DE FREUD

Antes de entrarmos propriamente nessa releitura

crítica de Merleau-Ponty, convém indicar brevemente um registro. Trata-se de indicar, apenas, o estatuto programático do tema do inconsciente nos primeiros trabalhos de Freud. Assim, ao desenvolver a teoria do inconsciente, Freud efetua uma descrição do sistema psíquico nos moldes de um “aparelho”, muito próximo ao modelo termodinâmico apresentado pela física. Em seu texto de 1915, intitulado O inconsciente, ele procura descrever três sistemas fundantes do

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aparelho psíquico, sendo eles: consciente, pré-consciente e inconsciente. A comunicação entre esses três sistemas se daria através de um jogo de forças ou energia psíquica que transitam entre um e outro, resultando, muitas vezes, nas neuroses e patologias psíquicas que o próprio Freud descreveu. Em resumo, no início da obra freudiana, o inconsciente é então descrito como um lugar hipotético no psiquismo, onde estariam localizados os traumas, desejos e pensamentos dolorosos do sujeito. Estes, por sua vez, ao surgirem à consciência, necessitavam passar por um intenso processo de luta com forças contrárias, situadas no sistema pré-consciente e consciente – a repressão.

Muito embora apresente interessantes pontos de convergência com Freud, como veremos adiante, Merleau-Ponty busca mostrar que há certo equívoco do psicanalista ao desenvolver a dinâmica do inconsciente, uma vez que, nos escritos clínicos sobre o tema, o inconsciente é compreendido por Freud como um “lugar” no interior do psiquismo em que ficariam guardados os segredos dos quais o sujeito em nada teria consciência; porém, o próprio Freud, na apresentação de seus casos clínicos como em O caso Dora e Gradiva, parece entrar em contradição ao mostrar que os conteúdos inconscientes apresentados por suas pacientes eram, sim, conhecidos por elas, sendo que elas apenas não sabiam que sabiam.

É a partir deste viés que Merleau-Ponty desenvolve a teoria do inconsciente sob outra perspectiva; perspectiva tal em que a experiência inconsciente passa a ser compreendida como parte integrante e essencial da própria percepção. É nessa direção que já, em La structure du comportment é possível observar uma tendência de Merleau-Ponty em associar o conceito freudiano de inconsciente a uma certa teoria da

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percepção1, como bem se pode notar na transcrição que segue:

Isso que nós chamamos inconsciente é somente uma significação despercebida: às vezes não compreendemos a nós mesmos, nem o sentido verdadeiro de nossa vida, não porque uma personalidade inconsciente esteja ao fundo de nós, regendo nossas ações, mas porque compreendemos nossos estados de experiências sob uma perspectiva que não lhes é adequada (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 237).

O filósofo pretende apresentar, desde o início, a

concepção de um inconsciente que não se encontra em outro lugar senão na própria forma como se estrutura à percepção. Quer dizer, os fatos inconscientes seriam aqueles que escapam à percepção do indivíduo tornando assim despercebidos certos aspectos afetivos que, em grande medida, seriam causa de incômodo e desconforto ao sujeito2. O trecho acima mostra ainda que Merleau-Ponty apresenta uma interpretação muito própria acerca da teoria do inconsciente, que como já dito, tende a ser traduzida como uma espécie de “baú” de fatos recônditos ou uma “caixa preta”, no interior da psique, ou seja, de segredos ocultos que regem grande parte de nossos atos, sem que deles possamos nos apropriar. Tal concepção de um inconsciente resguardado ao fundo do sujeito aparece,

1 Cf. MANZI FILHO, 2009. 2 O termo “sujeito”, aqui empregado, recebe outra chave de leitura na obra de Merleau-Ponty que, dados os limites do texto, não exploraremos. Merleau-Ponty desconstrói completamente a ideia de sujeito ou subjetividade à luz da experiência do corpo; por isso, o fenomenólogo, por vezes, fala em uma consciência encarnada ou numa consciência perceptiva no intuito de chamar a atenção para a dimensão sensível e carnal da reflexividade. A tentativa de Merleau-Ponty se apresenta justamente no sentido de escapar a qualquer pensamento de oposição entre sujeito e objeto.

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já nos textos iniciais, como algo descabido ao autor, marcando certo distanciamento a essa perspectiva inicial freudiana.

Quando em 1945, Merleau-Ponty escreve a Phénoménologie de la perception, a crítica que o filósofo apresenta à concepção cartesiana de consciência e à dualidade entre o corpo e o espírito, atrelada a uma noção de consciência mais arraigada ao corpo, aparecem como indícios de uma nova perspectiva ontológica que então começava a nascer no pensamento do filósofo. A “consciência perceptiva” é aquela que não se separa do corpo e seus sentidos e que, portanto, contradiz qualquer noção de dualidade ou de sobreposição entre corpo e alma.

A aproximação com a psicanálise freudiana se esboça justamente pelo fato de que, apesar das raízes naturalistas do pensamento de Freud, este mostra, a partir dos estudos sobre a histeria, que o corpo é portador de vários sentidos. Ao procurar as causas dos sintomas apresentados pelas histéricas, que eram aquelas que se manifestavam mediante o sofrimento do corpo, o sofrimento psíquico acerca dos traumas, pensamentos e desejos proibidos, Freud acaba por mostrar que corpo e espírito não podem ser compreendidos à maneira de instâncias separadas, como propunha o dualismo cartesiano.

Chama a atenção, ainda, de Merleau-Ponty, o alargamento efetuado por Freud da noção de sexualidade e de instinto, compreendidos como fatores existenciais e não contingenciais. Sobre esta questão, o filósofo afirma:

No próprio Freud, o sexual não é o genital, a vida sexual não é um simples efeito de processos dos quais os órgãos genitais são o lugar, a libido não é um instinto, quer dizer, uma atividade naturalmente orientada a fins determinados, ela é o poder geral que o sujeito psicofísico tem de aderir a diferentes ambientes, de fixar-se por diferentes experiências, de adquirir estruturas de conduta. É a

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sexualidade que faz com que o homem tenha uma história (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 219).

Ao afirmar que a libido pode ser orientada para

objetos distintos, Freud reedita e aprofunda a noção de instinto, uma vez que a psicanálise não mais compreende o instinto enquanto uma simples força que resulta da estrutura biológica orgânica, noção esta situada acerca de uma compreensão primordialmente mecanicista. Na experiência humana, o direcionamento da energia instintiva a um determinado objeto é influenciado pelas vivências passadas, pela história de cada homem em particular, não estando reduzido a uma simples descarga de energia ou necessidade imediata de satisfação. Da mesma maneira, a esfera sexual não pode ser reduzida ao genital.

Compartilhando dessa noção mais ampla acerca da sexualidade, Merleau-Ponty passa a considerá-la sob a ótica da afetividade, ou seja; a sexualidade permanece como uma “atmosfera” ou um fluxo que perpassa todas as esferas de nossa existência sem permanecer encerrada em uma série de relações causais, como propunha a psicologia clássica. O filósofo bem ilustra este pensamento na passagem que segue:

Existe osmose entre a sexualidade e a existência, quer dizer, se a existência se difunde na sexualidade, reciprocamente a sexualidade se difunde na existência, de forma que é impossível determinar, para uma decisão ou para uma dada ação, a parte da motivação sexual e a parte das outras motivações, é impossível caracterizar uma decisão ou um ato como “sexual” ou “não-sexual” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 234).

O corpo adquire um novo estatuto na obra do

filósofo: o corpo próprio ou fenomenológico é aquele que ultrapassa os limites comparáveis às relações de causa e efeito

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da mecânica para compreender-se como “ser” portador e formador de sentidos.

Não é por acaso que Merleau-Ponty trava, na Phénoménologie de la perception, um importante diálogo com a psicanálise. Essa primeira e contundente abordagem dá-se na primeira grande parte do livro dedicada ao tema do corpo, no capítulo V intitulado “O corpo como ser sexuado”. Merleau-Ponty já traça, nessas primeiras formulações, os rumos os quais deveria seguir a sua nova ontologia que terá nos escritos tardios uma atenção programática melhor delineada. Ao colocar o corpo na esfera do ser, o filósofo desbanca qualquer tentativa de redução da consciência à concepção idealista vinculada à ideia de uma razão pura, uma vez que o corpo passa a ser compreendido como elemento fundante da experiência humana na concretude do mundo; onde somente mediante a experiência sensível é que se podem erigir significações.

O fato é que muito embora a teoria freudiana tenha situado o corpo e a sexualidade em um novo patamar no campo da subjetividade, ela não deixa de apresentar resquícios de uma psicologia causalista, uma vez que as situações conflitivas do indivíduo em um momento presente estariam necessariamente associadas a complexos e traumas situados no passado. A dualidade no pensamento freudiano também se deixa entrever na maneira como psicanaliticamente se conduz a apresentação do inconsciente, preservando, ainda, certo “resíduo” cartesiano ao efetuar uma separação entre consciência e inconsciente. Estaria ele introduzindo, no interior da psique, sob o nome de inconsciente, um segundo sujeito pensante?

É visando superar essa dualidade que Merleau-Ponty recorre aos postulados da Psicologia da Forma, ou Gestalttheorie, escola essa que assenta as bases da percepção na configuração entre figura e fundo. Noutros termos, para os representantes desta corrente psicológica, haverá sempre um

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fundo de totalidade indissociável sobre o qual um fenômeno se manifesta. Daí se segue a importância estratégica com a qual Merleau-Ponty cada vez mais se aproxima desse novo aporte teórico-metodológico, ou seja, pensar o inconsciente, significa considerá-lo como elemento integrado à consciência perceptiva. Isso significa que, para o fenomenólogo francês, não há mais separação entre consciência e inconsciente. Aliás, este último, agora, se apresentaria como o fundo do qual se destacam os elementos para nossa percepção. É seguindo esse modelo que Merleau-Ponty pode, então, afirmar que “o inconsciente não é uma segunda consciência, mas uma vivência não tematizada” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 300) e, ainda, que o inconsciente “trata-se de algo que tem figura para a consciência, mas que ela se recusa a nomear” (MERLEAU-PONTY, 2016, p. 149).

O que, a bem da verdade, Merleau-Ponty traz à tona é que a vivência inconsciente está aí, situada no campo perceptivo do sujeito, como uma presença que se manifesta nos atos, nas expressões corporais e nos afetos, mas diante da qual o indivíduo simplesmente se deixa levar, recusando-se a prestar-lhe os contornos que a dotariam de forma e maior nitidez. Diante deste movimento operado pela percepção, poderíamos nos perguntar: Então, o que é que conduz o sujeito da percepção à escolha dos elementos que serão melhor tematizados ou não? Essa questão, outra vez, nos remete à convergência de Merleau-Ponty com Freud, pois não se pode deixar de compreender o homem como ser dotado de história, de cultura e de afetividade. São, portanto, os elementos afetivos, da história individual e cultural que se configuram de modo a dar forma à percepção.

A relação que Merleau-Ponty estabelece entre o inconsciente e a Psicologia da Forma, se apresenta em um trabalho relativo à publicação das notas tomadas em cursos ministrados por ele entre os anos de 1947 e 1948 em Lyon.

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Em uma dessas passagens, podemos encontrar a afirmação de que:

Todo conhecimento, diz a psicologia da forma, é a percepção de uma figura sobre um fundo. Ele deve se rodear de um halo de não conhecido ou, ao menos, conhecido com uma margem de desatenção, que não é um suplemento, mas um elemento essencial. Devido ao fato de que o objeto é uma figura, errou-se na análise do conhecimento ao considerá-lo como se ele estivesse desprovido de um fundo. É preciso rodear o conhecimento com uma luva de consciência que não põe o objeto enquanto objeto. Isso é o vivido não denominado, o que Freud chama incorretamente de inconsciente (MERLEAU-PONTY, 2016, p. 150).

A consciência, portanto, não está apenas e unicamente

atrelada ao objeto visado, mas sim, ela se projeta em direção a um determinado campo – ou um fundo perceptivo – em que o objeto se põe em relevo e do qual não poderia estar dissociado. Assim, ao visar o objeto, a consciência abarca também o seu entorno que não é abertamente declarado ou apropriado por ela, mas que figura como elemento essencial de significação ao objeto em questão. Torna-se claro através dessa passagem anterior, que Merleau-Ponty elabora a compreensão do inconsciente, não mais como instância psíquica separada da consciência, como propôs Freud. O inconsciente, nessa reelaboração merleau-pontyana, é parte de uma configuração, o fundo não-percebido que contextualiza o aparecimento do fenômeno. Assim, como propõe Silva (2009, p.68) “razão e desrazão se conjugam mutuamente, sem se sobreporem hierarquicamente”.

Novamente chamamos a atenção para a questão de que a noção de consciência que se esboça na fenomenologia de Merleau-Ponty supera, pelo menos em grande parte, os limites das filosofias idealistas, visto que o autor assume uma

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posição diante da importância do corpo como “veículo do ser no mundo” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 97). A experiência corporal e sensível é o que permite ao homem entrar em contato com os fenômenos e, portanto, não deve ser relegada ao segundo plano, na opinião do filósofo. Esse aspecto nos remete a propósito da experiência psicológica. É sob esse ângulo aqui visado que podemos citar o exemplo apresentado por Merleau-Ponty no Capítulo V da Phenomenologie de la Perception, aonde ele descreve o caso de uma moça a quem os pais proíbem de ver o rapaz a quem ela ama e que acaba por perder a fala. O filósofo procura ir além de uma interpretação puramente freudiana acerca da situação que, segundo ele, se limitaria a colocar em questão a fase oral do desenvolvimento da sexualidade.

De acordo com a interpretação merleau-pontyana a sexualidade se amplia para além da perspectiva freudiana, assumindo uma dimensão existencial de afetividade, ou seja, aos olhos do filósofo, “se a emoção escolhe exprimir-se pela afonia, é porque a fala é, dentre todas as funções do corpo, a mais estreitamente ligada à existência em comum ou, como diremos, à coexistência” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 222). A recusa a falar não se trata de uma escolha deliberada da paciente como eu posso escolher apertar a mão de um amigo ou me recusar a comer um alimento do qual não gosto. Assim, uma vez que Freud poderia interpretar a afonia como um sintoma causado pelos fenômenos inconscientes reprimidos da moça, esboçando assim um posicionamento causalista, Merleau-Ponty busca mostrar que a recusa a falar não se trata da causa, mas da própria configuração existencial, da maneira de ser no mundo, que se manifesta a partir da proibição de coexistir com aquele que ama. A paciente, portanto, não toma distanciamento dos seus desejos, mas torna-se a expressão deles, que neste contexto, se resume à recusa de falar.

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14.2 O INCONSCIENTE CARNAL: PREÂMBULO É nos cursos proferidos entre 1954 e 1955 no Collège

de France publicados sob o título de L’institution / La passivité no formato de notas que o filósofo elabora a compreensão da constituição de um fundo subjetivo ou de uma Passividade sedimentadas através dos fenômenos sociais, culturais, individuais que perpassam a história de cada vivente. Esse fundo de passividade não fixado pela percepção é o matiz de nossas escolhas e atos diante dos acontecimentos.

Nesta obra, o filósofo francês apresenta críticas em relação à filosofia husserliana da consciência constituinte, mostrando que a existência do mundo é anterior à consciência. Utiliza-se do termo instituição para mostrar que há um sentido histórico e uma ordem cultural atrelados ao mundo, da qual a efetuação não pode ser definida por limites de “interior” ou “exterior”. Em função disso, as várias possibilidades de manifestação singular e social do sujeito encontram-se aderidas a esta questão histórica. A instituição pode ser sempre reativada, visto que o que é esquecido não desaparece sem deixar traços, permanecendo latente. Merleau-Ponty define que:

Nomeamos instituição estes eventos de uma experiência que lhe fornecem dimensões duráveis, a partir dos quais uma série de outras experiências terão sentido, formarão uma sucessão pensável ou uma história – ou também os eventos que depositam em mim um sentido, não como sobrevivência ou resíduo, mas chamando uma continuação, exigindo um futuro. (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 61)

A instituição encontra-se intimamente relacionada ao

sentido de passividade, pois esta última é compreendida como este fundo significativo, aonde a instituição se sedimentou e no qual a percepção germina. Como bem mostra Ayouch

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(2009, p. 84) “a instituição retoma uma passividade que Merleau-Ponty nomeia ‘inconsciente’. Em vista disso, num sintoma, a história sedimentada ‘é contida como uma instituição presente, e não como memórias retiradas’, numa passividade sempre suscetível de ser reativada”.

Ora, é ainda em L’institution / La passivité que a obra de Freud irá emergir com mais força no pensamento de Merleau-Ponty, onde o filósofo mais propriamente passa a refletir sobre os casos clínicos freudianos, em especial, sobre Gradiva e o Caso Dora, chamando a atenção, mediante esses estudos, para certos aspectos fenomenológicos da teoria de Freud. A propósito do Caso Dora, Merleau-Ponty afirma sobre o inconsciente que este é “um princípio que seleciona o que, para o sujeito, será coisa ou fundo, o que, para ele, existirá” (MERLEAU-PONTY, 2003, pp. 243-247). Sob esse prisma, ao efetuar uma análise do discurso de Dora, o filósofo aponta para os atos da paciente enquanto decisão, ou seja; o relato de Dora mostra que ao agir de tal ou qual maneira, Dora já contava com um “fundo de verdade” para o qual ainda não havia voltado sua percepção, mas que, contudo, estava lá. Conforme bem aponta Manzi Filho (2009) aos olhos de Merleau-Ponty:

Freud estaria dizendo algo como: o inconsciente [...] simplesmente se deixa levar, ceder, fornecer as associações concordantes, mas quando é revelado, o sujeito se apercebe

de como já estava lá (FILHO, 2009, p. 46). Esse posicionamento diante do estatuto do corpo

reorienta, radicalmente, a formulação de um novo princípio ontológico: a reversibilidade. Merleau-Ponty a descreve no intuito de mostrar que o corpo assume simultaneamente uma posição ativa e passiva em seu contato com o mundo; ou seja, ao mesmo tempo em que toca, é tocado; ao mesmo tempo que vê, é visto. Isso significa que os sentidos dos fenômenos

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não se encontram encerrados no interior de uma consciência pura, nem tampouco a verdade se encontra no interior das próprias coisas. Em outras palavras, significa que a verdadeira união do homem com as coisas se dá diretamente por meio da percepção, não necessitando da intermediação do pensamento, como pretendia Descartes (1996, p. 105)3, por exemplo, ao afirmar que toda visão se define como “pensamento de ver”. Daí a questão fundamental: o que propriamente funda o fenômeno da reversibilidade, em última análise?

A resposta a essa pergunta tem na formulação da noção de carne sua figuração mais radical e decisiva. Ou seja: a formulação do conceito de reversibilidade conduz, nos últimos escritos de Merleau-Ponty, ao desenvolvimento da metáfora da “carne” em substituição àquilo que, de início, havia sido chamado de “consciência perceptiva”. Essa mudança de perspectiva ocorre porque no momento em que o filósofo descreve a carne como “o quiasma, entrelaço ou entrecruzamento reversível do mundo” (CHAUÍ, 2002, p. 57) procurando, pois, mostrar que ela se constitui na ligação entre

3 Nas Meditações Metafísicas, Descartes apresenta o exemplo do pedaço de cera que, recém retirado da colmeia, apresenta certas características sensíveis ao tato, à visão e ao paladar; contudo, ao ser aquecido, o pedaço de cera mudaria de estado, apresentando características diferentes de seu início. Diante disso, Descartes conclui que os sentidos podem nos enganar, pois nada poderiam demonstrar de indubitável acerca da verdade sobre o pedaço de cera e questiona-se: “Ora, qual é esta cera que não pode ser concebida senão pelo entendimento ou pelo espírito? Certamente é a mesma que vejo, que toco, que imagino e a mesma que conhecia desde o começo. Mas o que é de notar é que sua percepção, ou a ação pela qual é percebida, não é uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação e jamais o foi, embora assim o parecesse anteriormente, mas somente uma inspeção do espírito, que pode ser imperfeita e confusa, como era antes, ou clara e distinta, como é presentemente, conforme minha atenção se dirija mais ou menos às coisas que existem nela e das quais é composta” (DESCARTES, 1996, §13, p. 105).

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o homem e a natureza não havendo nenhuma sobreposição ou hierarquias entre um e outro4.

A metáfora da “carne” desponta nas obras finais do filósofo, justamente como uma tentativa de mostrar que há permeabilidade entre o ser e as coisas. Significa dizer que não há como conhecer o mundo separando, cindindo, provocando rupturas entre sujeito conhecedor e objeto conhecido. Em Le Visible et l’Invisible o autor afirma que

O que há de indefinível no quale, na cor, nada mais é que uma maneira breve, peremptória de produzir num único algo, num único tom de ser, visões passadas, visões vindouras, e aos cachos. Eu, que vejo, também possuo minha profundidade, apoiado neste mesmo visível que vejo e, bem o sei, se fecha atrás de mim (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 132).

O que o autor busca aqui esboçar é que a interpretação

que se forma a partir da visão, é resultado do entrelaçamento entre as experiências passadas, a história de cada homem em particular, suas frustrações e suas expectativas, que se sedimentou em seu ser. Quer dizer que o significado que consagramos ao mundo não se encontra, nem unicamente no mundo nem no interior do sujeito, mas sim, nesta fusão entre um e outro que nasce a partir da percepção.

Ao empregar a ideia de “carne” como metáfora de união, mas também de diferenciação5, entre o homem e o

4 Convém mencionar que, nas primeiras obras do filósofo, o homem ainda possuía papel privilegiado diante da natureza por ser, de certa forma, aquele que fornece o sentido. Nos últimos escritos, Merleau-Ponty muda de posição, e passa a afirmar que a natureza é também produtora de sentidos uma vez que a interpretação humana permanece ligada aos significados que a natureza a ela oferece. 5 Devemos esclarecer que a metáfora da “carne” não se trata de uma ideia de um psiquismo alargado, onde tudo estaria unido a tudo, sem que houvesse diferenciação. A “carne” é o “quiasma” entre as coisas, contudo,

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mundo, Merleau-Ponty visa outro alcance teórico cuja ontologia reconfigura outro debate com a psicanálise e, de passagem, com a própria ideia de inconsciente. Significa, sobretudo, mostrar mais uma vez que o corpo é portador aqui de uma nova amplitude, o corpo habita e é habitado pelo espírito, assim como o mundo faz morada no homem e o homem no mundo. A “carne” é, portanto, “o tecido comum de que somos feitos” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 257). Ou, ainda:

[...] a carne de que falamos não é a matéria. Consiste no enovelamento do visível sobre o corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente, atestado, sobretudo quando o corpo se vê, se toca vendo e tocando as coisas, de forma que, simultaneamente, como tangível, desce entre elas como tangente, domina-as todas, extraindo de si próprio essa relação, e mesmo essa dupla relação, por deiscência ou fissão de sua massa (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 189).

Podemos compreender, portanto, que o corpo é

concebido enquanto um prolongamento da “carne” do mundo, a ligação que possuímos com as coisas e que nos permite, então, habitá-las; ou ainda, ser com as coisas, já que a “carne” é, em sentido estrito, o “ser de entremeio ou entre-dois, um interser” (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 293).

Ao se referir à carne, Merleau-Ponty procura mostrar que há um fundo de não-diferenciação entre o homem e a natureza, um espaço de comunhão ou de “promiscuidade”, como bem descreve ele, que permite ao homem a interpretação dos fenômenos sem que deles tenha que tomar distanciamento. Isso, porém, não significa que o homem se diluiria na natureza, perdendo-se de si mesmo e de sua individualidade; há sim as diferenças, mas elas sempre

sua estrutura ainda permite que haja, simultaneamente, diferenciação e união.

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emergem de um campo de não-diferenciação. Ora, é sob essa perspectiva, cujo tratamento mais aprofundado não desenvolveremos aqui, que a problemática do inconsciente recebe um novo estatuto. O inconsciente passa a ser descrito à luz da ideia de carne, isto é, como uma ordem originária de experiência, o campo de abertura pelo qual homem e natureza, o eu e outrem se tecem por relações sensíveis de um só co-pertencimento ao mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir, brevemente, apenas buscamos situar

um primeiro nível da investigação acerca da releitura operada por Merleau-Ponty no tocante à questão do inconsciente. Esse caminho passa, inevitavelmente, por uma retomada crítica da psicanálise em sua versão freudiana, mas permeada pelas descobertas da Psicologia da Forma. Ela ganhará maior relevo nas obras finais de Merleau-Ponty com o desenvolvimento de uma nova ontologia, chamada pelo filósofo de ontologia da “carne” e nos seus escritos sobre a Instituição/Passividade, aonde o autor, com maior profundidade, desenvolve uma análise sobre dois importantes casos clínicos de Freud – Gradiva e O caso Dora na tentativa de mostrar a perspectiva de um inconsciente “impensado” em Freud, mas que se inscreve ali, nas próprias análises clínicas freudianas sobre suas pacientes.

REFERÊNCIAS AYOUCH, T. “A instituição entre a fenomenologia e psicanálise: afeto, teoria e historicidade”. In: Revista AdVerbum, v.4, nº 2, pp. 78-94, 2009.

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CHAUI, M. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

DESCARTES, R. Meditações metafísicas. Trad. Bento Prado Jr. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1996.

MANZI FILHO, R. “O caso Dora segundo Merleau-Ponty”. In: Revista Brasileira de Psicanálise. nº 1, Vol. 43, pp. 145-151, 2009.

MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945. Em português: Fenomenologia da percepção. Trad. C. A. R. Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

___________. L’institution / La passivité: notes de cours au Collége de France (1954-1955). Paris: Belin, 2003.

___________. La structure du comportement. Paris: PUF, 2002.

___________. Maurice Merleau-Ponty: a união da alma e do corpo em Malebranche, Biran e Bergson. Trad. S. R. Filho; T. Martins.: Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

___________. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1964. Em português: O visível e o invisível. Trad. J. A. Giannoti e A. M. Oliveira. São Paulo: Perspectiva, 1992.

___________. Psicologia e pedagogia da criança: Curso da Sorbonne (1949-1952). Trad. I. C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

SILVA, C. A. F. A carnalidade da reflexão: ipseidade e alteridade em Merleau-Ponty. São Leopoldo, RS: Nova Harmonia, 2009.

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XV

O LOGOS COMO DISCURSO MOSTRADOR: UM DIÁLOGO ENTRE HEIDEGGER E ARISTÓTELES

Luana Borges Giacomini

A lida com o sentido é um acontecimento possível ao

homem porque este ente habita o logos em seu mais alto nível. Em seus escritos, Aristóteles pensa o logos como um acontecimento próprio do homem. Höffe esclarece que “Aristóteles [...] vê o ente com relação ao logos, tendo em vista, em mesma medida, a razão e a sua articulação, a linguagem e o seu sentido, a iluminação das estruturas fundamentais da realidade” (HÖFFE, 2008, p.162). O logos mostra o ente tal como ele é e por que é.1 Isso significa que é função do logos trazer o ente à luz. Esse trazer o ente à luz coloca o homem numa posição linguística especial.

Tal posição pode ser melhor clarificada através dos níveis da linguagem listados por Aristóteles como: phônê, dialéktos. O nível (phônê), diz respeito à voz enquanto possibilidade de comunicar dor e prazer. Em De Anima, o filósofo a define como o som de um ser animado que ocorre mediante a ajuda de órgãos que possuem a função de significar algo. Segundo esta análise, os animais poderiam emitir sons com “significado” de dor ou prazer. O falar articulado (dialéktos), por sua vez, ainda não é característico do

1 “Aristóteles não conhece a filosofia da linguagem como uma disciplina própria, ao lado da lógica, da retórica e da poética, ao lado da filosofia da natureza, da ética e da política. [...] A sua crítica da linguagem encontra nele não apenas a práxis filosófica correspondente, mas também importantes axiomas, apresentados sobretudo nas Refutações sofísticas (HÖFFE, 2008, p. 162).

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ser humano, a alguns pássaros corresponde essa capacidade. Podemos pensar o dialéktos ao lado daquilo que Heidegger diz como assinalar. Na alínea a. do § 44, o fenomenólogo busca explicitar o caráter da verdade enquanto adequação, isto é, quando o logos se manifesta enquanto apophansis. Lá ele diz que o assinalar ainda não diz a verdade enquanto adequação porque “assinalar é uma relação entre o sinal e o assinalado, mas não uma concordância” (HEIDEGGER, 2012, p. 23). Isto significa que a relação neste caso é meramente indicativa. Ainda nas palavras de Heidegger: “palavras isoladas ou composições de palavras como ‘essa lâmpada’, ou ‘está acesa’ não podem ser nem verdadeiras nem falsas (HEIDEGGER, 2008, p. 48). Heidegger, assim como Aristóteles compreende que somente o homem possui o nível mais elevado do logos. “Os seus elementos, as palavras, diferenciam-se de meros sons afetivos pelo fato de que esses últimos têm o seu significado a partir da natureza, e aqueles primeiros através do acordo” (HÖFFE, 2008, p. 164). Isso significa que vogais e consoantes podem combinar-se em sílabas, palavras, proposições. Há mais que uma mera indicação porque há a possibilidade do acordo, de uma síntese. Afinal:

As expressões linguísticas contam como sinais (symbola), que são definidos através de quatro momentos: através da escrita, do som, das afecções da alma e das coisas. A menor unidade para verdadeiro e falso é formada pelo ‘discurso declarativo’ logos apophantikos (HÖFFE, 2008, p. 164).

O logos apophantikos seria aquele logos que possibilita ao

homem conhecer as coisas, e é nessa medida que a racionalidade do homem se deve ao fato dele habitar o logos. Essa afirmação pode se tornar mais clara se analisarmos o que significa phantasía logistikê, a saber, a representação discursiva. Nas palavras de Cassin,

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[...] phantasía constitui a faculdade-pivô entre a aisthêsis, esta “sensibilidade” que todos os seres vivos possuem, e uma faculdade de terceiro tipo – que deriva de uma terminologia complexa, mas que podemos provisoriamente designar como dianóia -, a qual “não pertence a qualquer animal que não possua também o logos”, portanto, pertence apenas aos homens (CASSIN, 1999, p. 161).

Seguindo a leitura que Cassin faz acerca da phantasía, a

maioria dos animais brutos possui tal faculdade. Todavia, nestes animais ela opera segundo a sensibilidade e não ao logos. Em outras palavras ela é estética e não logística. Toda representação é discursiva ou sensitiva. A sensitiva é aquela, portanto, que os demais animais (que não são homens) possuem em comum.

Não obstante, a representação discursiva é aquela que se abre para o juízo. A sensibilidade é condição necessária para a representação, já a representação, por sua vez, é condição necessária para o juízo (compreendido tanto como ciência, opinião). Além disso, Aristóteles esclarece porquê não podemos reduzir à opinião o fato da phantasía, diferentemente da sensação, poder ser verdadeira ou falsa. Nas palavras do filósofo “toda opinião implica em convicção, a convicção implica o discurso; ora, há animais brutos que têm a possibilidade de imaginar, mas nenhum dispõe da discursividade” (De Anima 428a 22-24). Podemos entrever a partir de tal citação, que o homem possui um caráter único que o distingue dos demais seres na medida em que a phantasía (faculdade pivô) ocorre nele enquanto phantasía logistikê. O modo de operar desta faculdade, portanto, abre a possibilidade, única ao homem, do juízo/proposição.

A fim de elucidar o caráter da sentença proposicional (possibilidade única do homem) Aristóteles afirma em De interpretatione:

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Embora toda sentença tenha significado, ainda que não como um instrumento da natureza, mas, como observamos, por convenção, nem todas as sentenças podem ser classificadas como proposições. Chamamos de proposições somente as que encerram verdade ou falsidade em si mesmas. Uma prece, por exemplo, é uma sentença, porém não encerra nem verdade nem falsidade (ARISTÓTELES, 2005, p. 84).

O filósofo de Estagira e Heidegger, ao compactuar

desta interpretação, nos dizem que para haver proposição é necessário que algo seja mais do que uma mera indicação. Para que o discurso mostre a verdade ou falsidade de algo, é preciso reunir duas coisas, ou mais, sob um mesmo aspecto. Sobre isso, Heidegger afirma que “todo discurso, todo falar tem significação, isto é, todo ato de exprimir um desejo, um pedido, uma indagação, uma ordem, uma enunciação significa algo. Nem todos esses discursos, porém, são logos [...]” (HEIDEGGER, 2009, p.48). Isto porque, como já dissemos, o discurso como logos é um discurso mostrador e essa mostração implica em dizer acerca da falsidade ou validade de algo. Ele possui o caráter formal de algo enquanto algo (etwas als etwas). O discurso como logos tem a função interna de comunicar algo a respeito do ente. “Mostrador é somente aquele logos, junto ao qual sucede a algo ser falso ou verdadeiro” (HEIDEGGER, 2009, p. 49).

Na alínea b. do § 72 de Ser e Tempo, Heidegger discute a tradução da palavra grega logos. Lá, ele nos diz que “as interpretações diversas e arbitrárias da filosofia posterior

2 Devemos ressaltar que “a finalidade fundamental, que orienta o curso da investigação, é a de colher o lugar originário da verdade e de determinar, em virtude de tal captação, a estrutura fundamental do logos. Como se sabe, trata-se de uma tarefa que empenha Heidegger nos parágrafos centrais de Ser e Tempo (sobretudo nos §7 B, 33 e 34) onde a questão é afrontada e resolvida no contexto da analítica existencial” (VOLPI, 2013, p. 71).

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encobrem constantemente o sentido próprio de fala, que é bastante claro” (HEIDEGGER, 2012, p. 71). A decorrência disso é a interpretação de tal palavra por razão, juízo, conceito. A tradução do logos por enunciado, e consequentemente o enunciado como juízo, encobre seu significado básico. Isto significa que o logos aqui, não é primeiramente o juízo (pensado como uma “ligação”)3. Nas palavras de Volpi (2013):

[...] com base numa leitura do primeiro capítulo do De interpretatione, integrada na referência ao terceiro livro do De anima, Heidegger colhe e determina o caráter do logos como aquela atitude “descobridora” da vida humana consciente, do ser-aí, mediante a qual na linguagem e na palavra consciência acede ao ente e o torna manifesto (p. 71).

Quando Heidegger nos diz que a tradução literal de

logos por juízo encobre o sentido originário do termo, é porque, de modo originário, ele é um deixar ver aquilo sobre o que se discorre de tal modo que é nele que reside a possibilidade do juízo. “A fala ‘deixa e faz ver’ a partir daquilo sobre o que fala. A fala autêntica é aquela que retira o que diz daquilo sobre que fala, de tal maneira que, em sua fala, a comunicação falada revele e, assim, torne acessível aos outros, aquilo sobre que fala” (HEIDEGGER, 2012, p. 72). Esta seria a estrutura do logos como apophansis. Nas palavras do fenomenólogo:

E somente porque a função do logos como apophansis reside no deixar e fazer ver algo mostrando é que ele pode ter a forma estrutural de syntesis. Síntese não diz aqui ligação e

3 “A definição de verdade como correspondência tem a função de precisar a questão do acesso às realidades exteriores à consciência. ‘Ter acesso às coisas exteriores’ significa ter destas coisas uma representação verdadeira. Ora, uma representação é verdadeira se ela corresponde à coisa mesma representada. Ela corresponde se ela se conforma a esta coisa” (LANDIM FILHO, 1992, p. 123).

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combinação de representações, manipulação de ocorrências psíquicas, combinações a respeito das quais surgiria, posteriormente, o ‘problema’ de como, sendo algo interno, poderiam concordar com dados físicos externos. O syn possui aqui um significado puramente apofântico e indica deixar e fazer ver algo como algo, na medida em que se dá em conjunto com outro (HEIDEGGER, 2012, p. 72, grifo do autor.)

O logos enquanto apophansis é um deixar e fazer ver. “O

discurso apofântico é precisamente um dos modos através dos quais se acede ao ente e se o descobre” (VOLPI, 2013, pp. 72-73). Basicamente, o logos em sua estrutura apofântica descobre o ente na medida em que predica algo de tal. Ele revela um aspecto do ente visado e o deixa vir à luz através de tal (através do aspecto revelado). Sobre isso, Heidegger afirma que “o enunciado é um ser para a própria coisa que é. O que se verifica através da percepção? Somente que é o próprio ente que se visava no enunciado” (HEIDEGGER, 2012, p. 288). Como é o caso das categorias que são predicadas da substância, em Aristóteles. O que se diz no enunciado, se diz acerca da substância, ou seja, aquilo que ela é tanto de modo acidental como essencial. A diferença é que, em Heidegger, tudo aquilo que se predica do ente, no âmbito da estrutura do como hermenêutico, é acidental e não essencial. Isto se deve ao fato de que o sentido do ente sempre se mostra num determinado contexto de aparecimento (facticidade). No caso de Aristóteles, nós temos a substância como o “sujeito” último de atribuição, na medida em que tudo aquilo que se diz, se diz a parti dela. Todavia, Aristóteles considera que é possível falar acerca desta substância de modo essencial, quando enunciamos aquilo que ela é de modo não acidental. Isto só é possível porque o estagirita considera uma verdade subjacente em tal substância e é nessa medida que dizer a substância de modo essencial é dizer algo que a substância não pode não ser. O ponto crucial do debate de Heidegger com

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Aristóteles, neste sentido, concerne o ao fato de que o fenomenólogo pensa todos os entes como aqueles que se desencobrem, se mostram, através da lida que se mantém com tais. Essa descoberta se dá em meio à facticidade, em meio àquilo que “atribui” o sentido aos entes de antemão. A noção de facticidade, na fenomenologia de Heidegger quebra com a ideia da subjacência do sentido dos entes. Isto porque o sentido nunca subjaz o ente na medida em que ele só se mostra em um contexto de aparecimento, e é este contexto que condiciona o sentido do ente. Isto é, na medida em que o contexto nos diz o modo de ser deste ou daquele ente, que o ser-aí compreende e lida com tal. Em outras palavras, é necessária a mostração (enquanto descobrimento daquilo que pré-compreendemos) deste algo para que o enuncido acerca de tal seja possível. Portanto, o logos em sua estrutura apofântica revela o ente desde o seu estar manifesto no mundo, isto é, já presentificado, mas não ao modo da subjacência e sim da facticidade, da circunstancialidade do mundo.

Devemos ressaltar que segundo Heidegger4, Aristóteles jamais defendeu a tese de que o “lugar” originário da verdade fosse o juízo. Ao contrário disso, o filósofo afirma o logos como aquele modo de ser do ente que nós mesmos somos. É porque o homem é logos que ele oscila tanto no descobrimento quanto no encobrimento (verdade e falsidade). Aristóteles5 não teria condições de estender o conceito do logos para o puro pensamento pelo fato de não ter pensando essa dupla possibilidade como aquilo que ocorre no homem de modo extraordinário. Isto é, como aquilo que

4 Ser e Tempo. 5 Segundo Volpi, “nesse período de confronto de Heidegger com Aristóteles é prevalentemente caracterizado pelo esforço de se apropriar positivamente das determinações fundamentais da ontologia aristotélica e em particular da sua compreensão do fenômeno de verdade, para utilizá-las na análise dos momentos estruturais do ser-aí” (VOLPI, 2013, p. 70).

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torna possível o encobrimento do seu ser mais próprio bem como a possibilidade da descoberta de seu “ethos” originário. Quando Aristóteles pensa os entes como subsistentes ele não os interroga como estes sendo pura possibilidade do desvelamento e sim daquilo que os subjaz: a essência. É nesta medida que na filosofia de Aristóteles o sentido não é interrogado como pura possibilidade do desvelamento, mas, sim, daquilo que é “interno” que “dá forma” aos entes. Pensar numa essência por detrás do ente, é pensá-lo como presente, é perder de vista aquilo que torna possível sua mostração ao modo fenomenológico. Isto porque ela (a mostração) se deve exclusivamente àquilo que o sustenta enquanto tal, aquilo que dá ser aos entes é aquilo que o subjaz. Neste caso se perde de vista o caráter de desvelamento do ser-aí como pura abertura ao ente, e consequentemente da facticidade que o ser-aí sempre conta em sua lida consigo mesmo e com os entes intramundanos.

15.1 A ESTRUTURA DO COMO HERMENÊUTICO E A COMPREENSÃO-PRÉVIA

A possibilidade da adequação reside na mostração

prévia dos entes no horizonte de sentido que é o ser-aí. Somente a partir deste aparecimento primário dos entes que o fenômeno da verdade tido como adequação pode se tornar manifesto. A estrutura do como hermenêutico indica a pré-compreensão de ser que o ser-aí mantém com as coisas. Essa pré-compreensão elucida o fato de que aquilo que se mostra no mundo, se mostra como alguma coisa, num determinado contexto de aparecimento. Esse contexto é um acontecimento possível somente ao ente que nós mesmos somos. É pelo fato do contexto mostrar o ente como algo (com um determinado sentido), que ele é um acontecimento exclusivo àquele ente que é o âmbito de sentido [ser-aí]. Portanto, aqui já podemos perceber o movimento

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heideggeriano de caracterizar o problema sujeito-objeto como um pseudoproblema. Isto porque não podemos falar de contexto/sentido, distanciados daquilo que instaura tal acontecimento. Contexto é algo que ocorre somente em ser-aí, portanto, o fenomenólogo chama a atenção para o fato de que não podemos mais pensar o sentido daquilo que se mostra como um acontecimento ‘separado’ daquele que é possibilidade de tal: âmbito de sentido. Em termos gerais, é isso que o fenomenólogo nos indica ao caracterizar o ser-aí como ser-no-mundo e que este diz respeito a um único fenômeno.

Quando dizemos que o modo de ser da concordância tem o caráter da relação de algo com algo, é por que esta mostra como o ente se comporta. É nesta manifestação do ente que reside a possibilidade do enunciado enquanto adequação e consequentemente sua verificação. Só podemos dizer como o ente se comporta, isto é, revelar um aspecto seu porque há o prévio (a pré-compreensão daquilo que se encontra diante de nós) sendo possibilidade desta verificação. Portanto, a possibilidade da verificação do enunciado reside na pré-compreensão do ser-aí e esta pré-compreensão diz respeito ao aparecimento mais imediato dos entes no nosso campo de sentido. A este aparecimento imediato Heidegger denomina como hermenêutico6. A partir de agora, nossa investigação buscará caracterizar o como hermenêutico

6 “Heidegger individua a condição do poder-ser-verdadeiro ou falso da predicação na estrutura do logos, ou seja, no fato de constituir uma synthesis ou dihairesis, no seu ligar ou associar. Uma vez feito isto, Heidegger se interroga, portanto, sobre qual seja a estrutura unitária e o fundamento do qual esta dúplice determinação brota. A resposta a esta interrogação vem à luz através da interpretação de Met. IV, 7 e VI, 4, não tanto de De int. I, no curso da qual Heidegger chega a identificar a unidade fundamental com a estrutura do “enquanto” (als), que se acha na base da predicação, e que por sua vez é fundada naquele “enquanto” originário (hermenêutico) que é a estrutura do compreender como determinação do ser-aí” (VOLPI, 2013, p. 73).

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enquanto o ethos primário da manifestação do ente e possibilidade de todo e qualquer enunciado, a saber, do logos em sua estrutura apofântica.

Como já dissemos, o logos apofântico é o lugar da enunciação o que implica em predicação (dizer algo acerca de algo). O como hermenêutico, por sua vez, concerne ao modo como os entes se apresentam de modo “imediato” na compreensão de ser do ser-aí. Porque é imediato e antepredicativo, qualquer enunciação é algo posterior a este aparecimento primário. Tal aparecimento se dá desde uma malha de significações que se deve à facticidade. O aí do ser-aí aponta para o âmbito fático, isso significa que este ente é sempre “junto” ao fático. Como já dissemos, a estrutura do como hermenêutico diz respeito à manifestação primária do ente em nosso campo de sentido. O modo como se dá esse aparecimento se deve à facticidade do mundo, ao modo como essencialmente somos junto ao mundo. Heidegger nos esclarece esse movimento na medida em que, usando o exemplo do giz, diz que só podemos enunciar acerca deste porque somos junto a tal (na medida em que somos “familiarizados” com o modo do giz se mostrar). Em Introdução à filosofia ele fala:

[...] não chegamos primeiramente ao giz por meio do caminho do enunciado e do contexto relacional ao qual esse enunciado está supostamente atrelado, mas, inversamente, somente na medida em que já estamos junto ao giz, na medida em que já nos mantemos junto a ele, ele pode ser um objeto possível no enunciado (HEIDEGGER, 2009, p. 69).

Através desta citação, Heidegger deixa claro que a

possibilidade do enunciado reside na pré-compreensão que mantemos com os entes. Só podemos falar de algo porque esse algo essencialmente se deu junto a nós de antemão. Estar

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junto a um ente é estar familiarizado com o modo que os entes se mostram (é ser na facticidade).

Os entes que se mostram se mostram num determinado contexto de aparecimento. E como já dissemos, o contexto de aparecimento diz respeito à facticidade. Heidegger introduz essa noção de facticidade como o lugar a partir do qual o sentido de algo se mostra como tal. A noção de facticidade carrega um teor demasiado crítico com relação à noção de substância, isto é, com relação à subjacência do sentido no ente. Nas palavras do filósofo:

[...] o encontro com os outros não se dá numa apreensão prévia em que um sujeito, de início já simplesmente dado, se distingue dos demais sujeitos, nem numa visão primeira de si, onde então se estabelece o referencial da diferença (HEIDEGGER, 2012, p. 175). A subjacência não faz sentido na fenomenologia

heideggeriana, porque o caráter do ser-aí enquanto ser-no-mundo inviabiliza o pensamento acerca de duas instâncias fundamentais separadas (no caso ser de um lado e mundo de outro). O acontecimento do ser-no-mundo se apresenta como um único fenômeno. E é por isso que tanto aquilo que é o ente e o dito acerca do ente é um acontecimento só. Porque o que se mostra no enunciado é o ente visado e este “visado” não é separado do ente que enuncia (no caso o ser-aí):

O enunciado é um ser para a própria coisa que é. O que se verifica através da percepção? Somente que é o próprio ente que se visava no enunciado. Alcança-se a confirmação de que o ser que enuncia é para o que está sendo enunciado o mostrar de um ente. Confirma-se que ele descobre o ente para o qual ele é. Verifica-se o ser-descobridor do enunciado. Cumprindo a verificação, o conhecimento

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remete unicamente ao próprio ente (HEIDEGGER, 2012, p. 288).

Isso significa que os entes vêm ao encontro a partir do

mundo em que o ser-aí essencialmente está situado, isto é, o mundo fático. O ser-aí é abertura e estar aberto implica de modo imediato o mundo e consequentemente estar junto aos entes. Estar junto aos entes, está na base de toda a enunciação, o que significa que essa “conexão” originária é possibilidade de qualquer adequação, de qualquer verdade ou falsidade que se diga do mundo. Na compreensão de ser do ser-aí, já “subsiste” uma compreensão dos outros, e a este acontecimento Heidegger denomina pré-compreensão. Ao ser-aí é possível a enunciação, porque este é o único ente que se movimenta numa pré-compreensão dos entes, isto é, compreende previamente o sentido dos entes de algum modo. Para elucidar esse acontecimento, Heidegger nos dá o seguinte exemplo:

Quando realizamos, por exemplo, uma ação para a qual não damos absolutamente nenhuma atenção, uma ação tal como a de abrir uma porta, o que fazemos diariamente muitas vezes, essa ação implica segurar a maçaneta. Se já não compreendêssemos de antemão o que significa uma coisa de uso – instrumentos, automóvel, utensílio destinado à escrita, à medição, isqueiro, ou seja, o utensílio em geral, não estaríamos em condições de fazer o uso da maçaneta enquanto tal (HEIDEGGER, 2008, p. 205).

Através desta passagem, podemos perceber, então,

que seria impossível tomar algo, e consequentemente o utilizar de determinado modo, caso não o compreendêssemos essa coisa como algo para... É por este motivo que não apreendemos o que é um utensílio por meio do uso de tal, de modo diferente, o que acontece é que “[...] só podemos nos deparar com entes desse gênero porque e na medida em que

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compreendemos algo assim como utensílio” (HEIDEGGER, 2008, p. 206). Isto significa que o sentido, o ser para... já é compreendido de antemão. O ser-aí já traz consigo uma dada compreensão no âmbito do como hermenêutico, e é esta que torna possível uma lida específica com o ente.

Através desta indicação, Heidegger quer chamar a atenção para o fato de que dizer acerca de algo de modo a caracterizá-lo tanto em sua falsidade ou validade é um acontecimento possível somente àquele ente que pode representar porque é junto às coisas. A enunciação é um acontecimento possível somente ao ser-aí, e isto Aristóteles assinalou, ou melhor, pré-intuiu fenomenologicamente quando disse que o logos em seu mais alto nível é possível somente ao homem. E aquilo que Aristóteles estava pensando enquanto substância (ousiai sensíveis), Heidegger, através de sua crítica, assinala seu acontecimento no âmbito do como hermenêutico, o modo como as coisas se mostram na facticidade, isto é, no contexto de mostração. É nessa medida que o sentido está na coisa, mas não a subjaz, isto é, a coisa se mostra com um sentido porque este sentido é circunstancial/fático. O sentido, portanto, depende do contexto em que esta coisa está “inserida”, ou melhor dizendo, do mundo em que o ser-aí é e se mantém. Seguindo esta reflexão, o sentido necessariamente não pode ser essencial à coisa, mas sim, circunstancial (transitório). O sentido, nestes moldes, é condicionado pela facticidade. REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Órganon: Da interpretação. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2005.

CASSIN, B. Aristóteles e o logos. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

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HÖFFE, O. Aristóteles. Trad. Roberto Hofmeister Pich. Porto Alegre: Artmed, 2008.

HEIDEGGER, M. Parmênides. Tradução de Sérgio Mário Wrublevski. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.

___________. Introdução à filosofia. Tradução de Marco Antonio Casanova. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

___________. Ser e Tempo. Tradução revisada e apresentação de Marcia Sá Cavalcante Schuback; posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

LANDIM FILHO, R. F. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

VOLPI, F. Heidegger e Aristóteles. Tradução de José Trindade dos Santos. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

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XVI

A COMPREENSÃO HEIDEGGERIANA DO FÊNOMENO RELIGIOSO NA PRELEÇÃO – INTRODUÇÃO À FENOMENOLOGIA DA

RELIGIÃO

Marcelo Ribeiro da Silva Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

INTRODUÇÃO

Em outubro de 1920, na universidade de Freiburg, o

jovem Martin Heidegger, professor assistente de Husserl, proferiu a preleção Introdução à Fenomenologia da Religião, tratando a respeito do modo pelo qual a filosofia pode se ocupar com o fenômeno religioso. No decorrer do discurso, Heidegger teceu uma proposta de consideração fenomenológica da experiência religiosa, através da qual é possível entrever sua compreensão do fenômeno religioso a germinar no solo de suas discussões com a Filosofia da Religião e a Fenomenologia de Husserl.

Esta pesquisa aspira percorrer o caminho da compreensão do fenômeno religioso orientado por Heidegger; isso significa, perpassar suas discussões com a Filosofia da Religião, entender sua preocupação com a vida fática e seu acesso pela via fenomenológica-religiosa, até, por fim, chegar aos umbrais do fenômeno religioso.

16.1 A FILOSOFIA DA RELIGIÃO EM QUESTÃO

Na preleção “Introdução à Fenomenologia da

Religião” é notável as fortes considerações do filósofo a

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respeito da Filosofia da Religião. Ele constantemente retoma esse tema na sua arguição e com isso faz perceber que sempre é importante tê-lo diante dos olhos, para evitar rápidas aproximações ou confusões conceituais com o caminho fenomenológico e introduzir progressivas advertências em relação a ela.

Não é sem propósito que esse assunto é retomado com insistência, pois questionar a Filosofia da Religião significa considerar o problema religioso a partir de sua colocação filosófica, ou seja, a partir daqueles pressupostos via os quais a religião é tematicamente abordada.1

Heidegger, na realidade, ingressou numa discussão filosófica de grande envergadura e efervescência no seu tempo. Desde 1880 a Ciência da Religião e a Filosofia da Religião defrontavam-se com importantes pesquisas de cunho antropológico e etnológico sobre as religiões. Esses estudos compreendiam um giro teórico no sistema conceitual-religioso consolidado, sobretudo por desenrolar a pergunta sobre o objeto primário da religião.2

Relevante para o posicionamento crítico de Heidegger foram as interpretações filosóficas da questão partindo de uma perspectiva neokantiana. Rudolf Otto, por exemplo, converteu o sagrado em objeto da religião, mas continuou a tratar dessa questão como já se tratava do conceito de Deus, enquadrando-o no esquema racional-irracional, ou seja, Otto continuava “[...] a tratar o sagrado como uma ‘categoria

1 Cf. HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014, p. 68. 2 Cf. CASALE, C. La interpretación fenomenológica de Heidegger de la escatologia paulina (I). Teologia y Vida. Santiago, n. 3, v. 49, 2008, pp. 400-401.

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avaliativa’ e como um ‘noema teórico’”3. Sobre isso, Heidegger afirmou:

Atualmente é comum atuar com a oposição do par categorial racional e irracional. A filosofia da religião atual está orgulhosa de sua categoria do racional e crê ter assegurado com ela o acesso à religiosidade. Porém, com esses dois conceitos não se consegue nada enquanto não se conhecer o sentido do racional.4

Nestes termos, problematiza-se a Filosofia da Religião

quanto a seu modo de acesso à religiosidade: é possível aceder ao sagrado pela racionalização? A religiosidade pode ser compreendida através de uma teoria das religiões? Um conceito de religião que reclama a existência de Deus por vias de uma Metafísica ou teleologia transcendental fundamenta-se na experiência? Das fissuras reveladas na problematização, lança-se uma advertência heideggeriana destruidora: “[...] e tudo o que se diz ser pertinente a toda e qualquer religião é apenas um jogo estético com coisas incompreendidas”5.

O que motiva o posicionamento do pensador é a constatação de que a Filosofia da Religião se conformou aos conceitos filosóficos, quando, impreterivelmente, deveria ter se arraigado na religião - seu locus filosófico deveria ser a própria religião. A motivo do desencontro não é outro do que o modo como a Filosofia se acerca da religião, como um objeto de conhecimento.6 Com isso, ela é reduzida a um objeto real da Filosofia e a possibilidade de acesso a

3 GREISCH, J. L’arbre de vie et l’arbre du savoir: Le chemin phénomenologique del ’herméneutique heideggeriene (1919-1923). Paris, 2000, p. 195. 4 HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa. p. 71. 5 Ibidem. 6 Cf. Ibidem, 31.

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religiosidade mesma se vê obstruída, de modo que “[...] não se chega a ver como a filosofia deva ocupar-se da religião”7.

16.2 A FENOMENOLOGIA DA RELIGIÃO

A problematização heideggeriana da Filosofia da

Religião tornou notória a fragilidade do edifício conceitual que a tradição filosófica criou a respeito da experiência religiosa. Por força daquele fascínio teorético a que se sujeitou a Filosofia, acabou por se ofuscar aquele modo próprio de se ocupar da religião e, ademais, perdeu-se a familiaridade com aquele solo originário de onde promana a religião.

O entendimento da questão exposta implicou na premência de repensar o modo como se apreende a religiosidade; o novo adviria pela renúncia do uso do instrumental objetivante da tradição filosófica e a recondução da experiência religiosa ao solo das preocupações filosóficas.8

A propósito, esse projeto do pensador firmar-se-ia numa tarefa muito mais ampla e fundacional: no interesse de acessar a vida fática, de romper com o primado do teorético e captar a vida em seu significado, ou seja, dar oportunidade para que a dimensão pré-teórica da vida emerja, àquela descoberta já central em suas lições de 1919.9 Heidegger, nesse sentido, não tinha “[...] como objetivo a religião em sua totalidade, nem tão pouco a experiência de Deus, mas se centra na experiência originária da religiosidade [...] que se ressalte a vida fática”10.

7 Ibidem. 8 Cf. ESCUDERO, J. A. El joven Heidegger y los pressupostos metodológicos de la Fenomenologia Hermenêutica. Thémata: Revista de Filosofia. Sevilla, n. 44, 2011, p. 215. 9 Cf. Ibidem, pp. 214-219. 10 CASALE, C. La interpretación fenomenológica de Heidegger de la escatologia paulina (I), Teologia y Vida. p. 406.

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De que modo poder-se-ia apreender a vida em sua originareidade? Por uma via originária de acesso: a compreensão fenomenológica-religiosa.11 O caminho fenomenológico seria um modo pré-teórico de investigar o viver fático, pois nele “não se coloca como meta o ideal de uma construção teórica, mas a originareidade do absolutamente histórico em sua irrepetibilidade12.

No caso, enquanto na consideração teórica-objetiva o acesso a algo é, na realidade, “[...] uma introjeção do que deve ser compreendido”13 e uma conformação a um complexo temático onde o “abstraído continua sendo atendido, independentemente daquilo de que é abstraído”14, na consideração fenomenológica acolhe-se o que se manifesta em seu próprio aparecimento, sem lhe forçar qualquer lógica que não seja sua própria forma de articulação.15

Assim, na Fenomenologia os conceitos são definidos no curso da compreensão fenomenológica: enquanto se busca a experiência fática da vida, desperta-se aquela conceitualidade mais originária, que pertence ao sentido fático da religião mesma.16 Por isso, Heidegger sugere que “[...] é preciso que se examine a religião em sua realidade factual”17, e também assegura: “[...] do presente vivo vão surgindo as tendências de compreensão”18.

11 Cf. HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa. p. 61. 12 Cf. Ibidem, p. 79. 13 Ibidem, p. 74. 14 Ibidem, p. 77. 15 Cf. Ibidem, p. 21. 16 Cf. Ibidem, p. 71. 17 Ibidem, p. 31. 18 Ibidem, p. 70.

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16.3 O FENÔMENO RELIGIOSO No caminho percorrido até o momento, tratou-se de

forma indireta do fenômeno religioso. Aconteceu que em cada uma das considerações sobre a fenomenologia, o fenômeno era também indicado em seu modo de ser para a investigação, ou seja, o modo desde o qual a fenomenologia poderia tomá-lo em consideração, isto é, no seu aparecer como filosoficamente relevante. Algo já não se integraria na caracterização de propriedades constatáveis ou na conformação a classes de objetos, mas demandaria mostrar-se a partir de si mesmo e enquanto si mesmo, isso Heidegger denominou fenômeno.19

Na interpretação heideggeriana, o fenômeno indica “um modo de ser, de estar aí do ente [...] que se mostra em um modo concreto de ser”20, cuja demanda é um tipo de trato que o permita comparecer filosoficamente na sua originariedade, a qual, por sua vez, é pré-teórica. O trato próprio da fenomenologia é sugerido por Heidegger como: “toda experiência – como experimentar enquanto o que experimenta - pode ‘ser assumido no fenômeno’”21, isso quer dizer, ocupar-se com o que é decisivo, com a compreensão da totalidade de sentido do fenômeno, seu logos, sua articulação de sentido.22

A atenção fenomenológica recai, portanto, na compreensão de sentido. Uma consideração teórica não faz justiça ao fenômeno porque dirige-se unilateralmente ao seu

19 Cf. LÓPEZ, F. de L. El concepto de fenómeno en el joven Heidegger. Acta fenomenológica latino-americana. Lima: Pontifícia Universidade Católica del Perú; Morelia: Universidade Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, 2009, v. 3, p. 385. 20 Cf. LÓPEZ, F. de L. El concepto de fenómeno en el joven Heidegger. Acta fenomenológica latino-americana. p. 385. 21 HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa. p. 58. 22 Cf. Ibidem.

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conteúdo, forçosamente por vias de um sentido referencial teórico e encobrindo o sentido relativo à sua realização.23 Para compreender o fenômeno, Heidegger ressalta a unidade de três direções de sentido: o ‘que’ da experiência (sentido de conteúdo), tomado em um modo específico de consideração (sentido de referência) e pelo modo em que essa referência é exercida, efetuada (sentido de realização).24

O fundamental dessa consideração heideggeriana é a proposição do fenômeno como uma unidade de conteúdo e ato que é impossível de ser acessada sem conjugar o teor da experiência, seu modo de experimentar e sua motivação, ou seja, sem compreendê-la segundo suas direções de sentido.25 Nessa via, abre-se uma possibilidade genuína de consideração de um fenômeno religioso, uma via em que se relança a pergunta sobre a religião, não ancorada em material dogmático ou na história da religião, mas em “seu nexo de acontecimento”26.

Em duas teses Heidegger consegue condensar as determinações fundamentais do fenômeno religioso. São teses acerca da religiosidade cristã, mas, em vistas a acessar à realidade factual do fenômeno religioso, não seu conteúdo dogmático. São elas: 1) “A religiosidade cristã originária consiste na experiência cristã originária da vida e ela mesma é uma tal”27.

O fenômeno religioso é uma experiência da vida em

sua originariedade, por ele se elucida a vida em seu mistério, por ele a vida que aparentemente nos é tão próxima e comum

23 Cf. Ibidem, 59. 24 Cf. LÓPEZ, F. de L. El concepto de fenómeno em el joven Heidegger. Acta fenomenológica latino-americana. p. 385. 25 Cf. Ibidem, p. 384. 26 HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa. p. 83. 27 Ibidem, p. 72.

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se deixa tocar em sua estranheza e extraordinariedade.28 Na experiência da religiosidade transparece a paradoxia da vida e, por suas sendas, torna-se possível saltar ao caráter originário da vida em sua facticidade.29

Nesses termos, compreende-se que a índole da experiência originária da vida não é da ordem objetual e que as tentativas de o conformar a uma esfera espiritual, na realidade esconde a gravidade de uma ação violenta em que o fenômeno é forçadamente submetido a uma lógica temática, que faz dele “um conteúdo doutrinal separado e ressaltado epistemológico-objetivamente”30.

A ocupação cognoscitiva emudece o fenômeno religioso. Deus e a experiência que o homem faz dele não podem ser acessados por esse esquema que se acerca do fenômeno sem considerá-lo em sua facticidade31; por isso Heidegger afirma: “O método teológico está fora de nossas considerações. É pela compreensão fenomenológica que se abre um novo caminho para a teologia”32.

Ou seja, ao fenômeno religioso o acesso se dá entranhando-se em sua própria facticidade, voltando-se para o caminho de sua originariedade, de seu modo próprio de ser e sempre de novo surpreendente. Desconsiderá-lo em sua dimensão experiencial e fática é atravancar a radical experiência do viver que o caracteriza.

28 Cf. FERNANDES, M. A. Fenomenologia da facticidade da vida religiosa cristã desde o Novo Testamento: mundo, si-mesmo, temporalidade. Revista Brasileira de Filosofia da Religião, Brasília, v. 2, n. 2, dez. 2015, pp. 16-17. 29 Cf. Ibidem, p. 17. 30 HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa. p. 101. 31 Cf. GRUPILLO, A. Fenomenologia da vida religiosa: história e método na interpretação das epístolas paulinas do jovem Heidegger. Numem: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 17, n. 2, jul./dez., 2014, p. 78. 32 HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa, p. 61.

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2) “A experiência fática da vida é histórica. A experiência cristã vive a temporalidade como tal”33

O fenômeno religioso não se dá de modo definitivo,

de uma vez, mas está sujeito à situação histórica. Ele é histórico não como um objeto que “tem a propriedade de ocorrer no tempo [...] um objeto sujeito à mudança temporal”34, mas enquanto historicidade que se dá na dinâmica da existência humana.

Com efeito, o tempo não é uma ocorrência objetiva, um fluxo em que a vida se verte indistintamente. O tempo “é experimentado desde a historicidade da existência humana. [...] a existência humana é tempo, e sua marca maior é a finitude”35. Na experiência cristã “o tempo se fez curto” (1Cor 7,29), o dia é assumido como o último, o tempo é instante da decisão entre o ganhar-se ou o perder-se para a salvação, entre viver a temporalidade ou ser absorvido por ocupações que a vida oferece.36

Assim, o fenômeno religioso não oculta a temporalidade da existência humana, mas a demanda, pois só pela temporalidade ele se desvela no seu modo de ser. Ela é a determinação sem a qual qualquer tentativa de compreensão do fenômeno religioso são aproximações fracassadas, que falam a partir da comparação com eventos objetivos, mesmo de uma literatura universal, mas insuficientes para acessar aquela urgência e autenticidade imprescindíveis do fenômeno religioso.37

33 Ibidem, p. 72. 34 HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa. p. 33. 35 FERNANDES, M. A. Fenomenologia da facticidade da vida religiosa cristã desde o Novo Testamento: mundo, si-mesmo, temporalidade. Revista Brasileira de Filosofia da Religião. p. 30. 36 Cf. HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa. p. 92. 37 Cf. Ibidem, p. 73.

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Em síntese, a facticidade e o fenômeno religioso estão imbricados: o fenômeno religioso é uma experiência genuína da facticidade, pois dele ainda promana o frescor originário da vida em seu mistério de ser, e, por outro lado, a facticidade é o locus originário do fenômeno religioso, as considerações que se lançam sobre o fenômeno religioso sem atentar para sua facticidade o emudecem.

Ainda, cabe tomar nota de uma referência de Heidegger sobre a relação entre o exercício de compreensão e o incompreensível do fenômeno religioso:

O peculiar da compreensão fenomenológica é que pode entender o não compreensível, justamente ao deixar isso radicalmente sem tocar, em sua incompreensibilidade. Isso só é compreensível quando se tiver entendido que a filosofia não tem nada a ver com a consideração científica objetiva e subjetiva.38

Essa afirmação de Heidegger coroa seu exercício

filosófico de compreensão do fenômeno religioso, ao contar com o incompreensível da experiência religiosa; ao acená-la, mas sem retê-la, o filósofo garante ao fenômeno religioso poder ser em seu modo próprio de ser incompreensível e compreensível, ou seja, compreensível em sua facticidade e balbuciado em sua incompreensibilidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo procurou realizar um percurso de

compreensão do fenômeno religioso, um trabalho de aproximação daquele empreendimento heideggeriano que acessou a experiência religiosa através da fenomenologia. Por sua consideração, Heidegger trouxe à luz a articulação de sentido da qual a religiosidade promana: o fenômeno religioso

38 Ibidem, p. 116.

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é uma experiência originária da vida e vive a temporalidade da existência humana.

Do exercício fenomenológico de Heidegger, ainda duas observações sintéticas: a fenomenologia é capaz de transpassar o abismo interposto pela racionalização entre o pensamento e a vida fática, ela consegue adentrar no fenômeno articulando-o em uma forma de compreensão que o vincula com o sentido da própria experiência; depois, o fenômeno religioso guarda consigo uma exemplar atitude filosófica, pensa o próprio ser na originareidade da vida.39 REFERÊNCIAS CASALE, C. La interpretación fenomenológica de Heidegger de la escatologia paulina (I). Teologia y Vida. Santiago, n. 3, v. 49, 2008, pp. 399-429.

ESCUDERO, J. A. El programa filosófico del joven Heidegger. Em torno a las lecciones de 1919. La ideia de la filosofia y el problema de la concepción del mundo. Eidos: Revista de Filosofia de la Universidade del Norte, Barranquilla, n. 7, pp. 10-27, ago. 2007.

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FERNANDES, M. A. Fenomenologia da facticidade da vida religiosa cristã desde o Novo Testamento: mundo, si-

39 Cf. CASALE, C. La interpretación fenomenológica de Heidegger de la escatologia paulina (I), Teologia y Vida. p. 406.

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mesmo, temporalidade. Revista Brasileira de Filosofia da Religião, Brasília, v. 2, n. 2, pp. 14-34, dez. 2015.

GREISCH, J. L’arbre de vie et I abre du savoir: Le chemin phénomenologique de l’herméneutique heideggeriene (1919-1923). Paris: Editions du Cerf, 2000, 335p.

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XVII

DIFERENTES COMPREENSÕES DO FENÔMENO DO ESPAÇO: HEIDEGGER E

MILTON SANTOS

Maria Lucivane de Oliveira Morais Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

INTRODUÇÃO

Martin Heidegger, ao publicar Ser e Tempo em 1927,

dedicou-se à tarefa de resgatar o ser do esquecimento em que a metafísica tradicional o havia lançado ao tomar o ser pelo ente e o ente pelo ser. Para isso, precisou “destruir” teses como o fato de que o ser é o conceito mais universal, indefinível e evidente por si mesmo. Não tinha o objetivo de negar séculos de estudos, mas apontar os fatores que possibilitaram a tomada de determinadas concepções para delas se afastar e/ou retirar indicações que tornassem possível construir sua ontologia fundamental1.

1 Tal tarefa contou com dois subprojetos apresentados em Ser e Tempo: a hermenêutica da facticidade e a analítica existencial. De forma sucinta, pode-se afirmar que a hermenêutica tem como propósito a tarefa de esclarecer o modo como compreendemos e questionamos o sentido do ser. É uma forma de abordar, interrogar e explicitar que torna acessível o próprio ser-aí. A analítica existencial, por sua vez, corresponde à via de acesso à questão do ser, por meio da descrição fenomenológica do ente que compreende o ser a partir de seus traços ontológicos existenciais. Torna evidente os existenciais do ser-aí analisando-os suficientemente para, em seguida, avançar na questão do ser. Consolida uma etapa preparatória para a construção da ontologia fundamental proposta por Heidegger.

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Para compreender o sentido do ser apresentou em sua obra diversos existenciais2, dentre os quais se encontra o espaço, que foi tratado na forma de espacialidade. Por meio dele, é possível refletirmos sobre a existência do ser-aí que é sempre e na maioria das vezes lançado no mundo no qual realiza seu projeto existencial.

Este filósofo foi um dos pensadores mais importantes do século XX, influenciou e têm influenciado diversas ontologias regionais, dentre as quais, está a geografia que, em meio aos seus objetos de estudo, discute o espaço como um de seus conceitos mais importantes.

Entre os geógrafos brasileiros de maior relevância para a construção da Geografia Crítica e para a compreensão de novas formas sobre o modo como o espaço foi pensado a partir da década de 70, está Milton Santos, cuja compreensão muito se difere de Heidegger.

Assim, o objetivo geral desse artigo é promover uma breve análise das compreensões sobre o espaço tecidas por Milton Santos e Martin Heidegger. Com base nas referências bibliográficas disponíveis podemos nos questionar: A interação entre o pensamento de Heidegger e Milton Santos traria contribuições ao pensamento geográfico? Permitiria a construção de uma ontologia do espaço? Mesmo como visões distintas, seria possível repensar a visão que a Geografia produz do espaço a partir do pensamento filosófico heideggeriano?

Tais questionamentos têm inquietado um número cada vez maior de estudiosos brasileiros e também possibilitaram o delineamento das breves reflexões apresentadas a seguir que não se dispõem a dar respostas conclusivas ao problema do espaço e o modo como compreendê-lo, mas incitar ainda mais a discussão por meio de alguns apontamentos.

2 Estruturas ontológicas engendradas na dinâmica da existência.

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17.1 MILTON SANTOS E O ESPAÇO Milton Santos, um dos geógrafos brasileiros de grande

relevância nacional e internacional, faleceu em 2001, mas deixou uma vasta obra dedicada ao estudo do espaço, ao modo como ele se articula para o homem, como é delineado ao longo do tempo nas distintas sociedades, entre outras temáticas.

As discussões em torno da compreensão sobre o que é o espaço, historicamente foram permeadas por várias terminologias como espacialidade e espacialização, considerando-o não apenas como um sistema de coisas, mas uma realidade relacional, na qual coisas e relações estão juntas. Essa grande variabilidade de acepções torna árdua a compreensão sobre o que ele é ou o que representa realmente (SANTOS, 2014).

As definições clássicas da Geografia, nas quais o espaço é retratado como resultado da interação entre o homem e a natureza bruta e/ou uma mistura entre a sociedade e o meio ambiente, estão ultrapassadas. As novas correntes críticas e humanísticas do pensamento geográfico alertam que ele deve ser considerado como um:

[...] conjunto indissociável, de que participam, de um lado, certo arranjo de objetos geográficos, naturais e objetos sociais, e, de outro a vida que os preenche e os anima, ou seja, a sociedade em movimento. O conteúdo (da sociedade) não é independente da forma (os objetos geográficos), e cada forma encerra uma fração do conteúdo. O espaço, por conseguinte, é isto: um conjunto de formas contendo cada qual frações da sociedade em movimento. As formas, pois, têm um papel na realização social (SANTOS, 2014, p. 31). O espaço é, portanto, uma instância da sociedade, pois

contém e é contido pelas demais instâncias, assim como, cada

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uma delas o contém e é por ele contida como, por exemplo, a economia e a cultura-ideológica. Como a essência do espaço é social, ele não pode ser transformado por coisas, objetos geográficos, naturais e artificiais oriundos da natureza, mas apenas pelo homem que nele habita.

Segundo Santos (2014a, p. 12): O espaço é tudo isso, mais a sociedade: cada fração da natureza abriga uma fração da sociedade atual. Assim, temos, paralelamente de um lado um conjunto de objetos geográficos distribuídos sobre um território, sua configuração geográfica ou sua configuração espacial e a maneira como esses objetos se dão aos nossos olhos, na sua continuidade visível, isto é, a paisagem; de outro lado, o que dá vida a esses objetos, seu princípio ativo, isto é, todos os processos sociais representativos da sociedade em um dado momento.

O espaço constitui uma totalidade, a exemplo da

própria sociedade que lhe dá vida. Entretanto, sua análise pode ser realizada em partes a partir de vários critérios, tais como: elementos, funções, usos, interações, realidade empírica, população etc. Estes, acrescidos da dimensão temporal ou histórica, possibilitarão a compreensão de uma escala ainda mais ampla, a mundial, uma vez que o comportamento dos subespaços do mundo desenvolvido comumente é determinado pelas necessidades das nações que comandam o sistema mundial. A análise parcial do espaço possibilita a sua compreensão global (SANTOS a, 2014).

Frente à atual organização da sociedade, permeada pela técnica, globalização, expansão de multinacionais, reorganizações dos territórios em face ao capital, transformações nas relações sociais, políticas e econômicas, o espaço toma para si uma importância fundamental “[...] já que a natureza se transforma, em seu todo, numa forma produtiva” (SANTOS, 2014, p. 32).

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A abrangência do processo produtivo em diferentes lugares faz surgir seletividades e hierarquias de utilização, permeadas pela concorrência entre os diferentes agentes que habitam o espaço, dividindo-o, classificando-o, vendendo-o a partir de seus potenciais, funções estratégicas para a reprodução do capital.

As especializações na utilização do espaço originário de intervenções naturais ou culturais, políticas e técnicas, possibilitaram uma redescoberta da natureza ou ao menos sua revalorização, ao serem transformadas para suprir as necessidades humanas.

Nas primeiras décadas do século XXI, o uso intensivo de técnicas que não consideram os sistemas locais de recursos naturais e humanos, foram sobrepostas a realidades econômicas e sociais diferentes. Como resultado, houve a criação de distorções e desigualdades em todos os lugares, com combinações particulares em virtude da complexidade da vida social, causando diferentes impactos sobre cada sociedade.

Nesse cenário, o espaço mais do que nunca passou a ser compreendido como elemento fundamental da aventura humana que o habita, transforma, explora, executa diversas ações essenciais para sua existência. Para Santos (2014, p.41-42):

A questão do espaço habitado pode ser abordada, segundo um ponto de vista biológico, pelo reconhecimento da adaptabilidade do homem, como indivíduo, às mais diversas altitudes e latitudes, aos climas mais diversos, às condições naturais mais extremas. Uma outra abordagem é a que vê o ser humano não mais como um indivíduo isolado, mas como um ser social por excelência. Podemos assim acompanhar a maneira como a raça humana se expande e se distribui, acarretando sucessivas mudanças demográficas e sociais em cada continente (mas também, em cada país, em cada região e

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em cada lugar). O fenômeno humano é dinâmico, e uma das formas de revelação desse dinamismo está, exatamente, na transformação qualitativa e quantitativa do espaço habitado.

Se em um passado longínquo a natureza era hostil,

intocada e explorada para atender apenas necessidades de sobrevivência humana, a partir da Revolução Industrial seu quadro orgânico natural foi substituído por uma “vasta anarquia mercantil” devido às especulações em torno do uso do solo e a determinação de seu valor que trava uma luta sem “trégua entre os diversos tipos de capital que ocupam a cidade e o campo” (SANTOS, 2014, p. 48).

Enquanto as primeiras relações com a natureza estiveram permeadas pelo senso de medida, na atualidade, o homem utiliza-se do saber científico e das intervenções tecnológicas sem considerá-lo, causando danos irreversíveis a natureza e ao próprio espaço em que habita. Ao mesmo tempo, subverte as relações “do homem com o meio, do homem com o homem, do homem com as coisas, bem como, as relações das classes sociais entre si e as relações entre as nações” (SANTOS, 2012, p. 16).

O espaço tal como se apresenta não pode mais ser compreendido unicamente a partir das dimensões da geometria clássica, afinal nele se materializam um conjunto de fatores que o organizam com vistas ao capital instalado – o “mundo como espaço se torna espaço global do capital” (SANTOS, 2012, p. 23). Desde meados século XVI, período inicial do capitalismo, evidencia-se a efetivação de um movimento no qual o espaço se torna global sendo permeado pelos princípios de unidade e de diversidade, até alcançar seu ápice no período tecnológico, no qual cada nação parece encontrar seu destino na forma de Estado.

Em cada Estado-nação, o espaço é visto como algo potencialmente utilizável pelo homem, servindo às suas

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necessidades e sendo, portanto, uma mercadoria universal por excelência. Para agregar-lhe maior valor, o homem pensa, estrutura, constrói e o manipula aprofundando as diferenças entre as classes sociais instaurando “um movimento aparentemente paradoxal: o espaço que une e separa os homens. Isso vale para a totalidade do espaço, mais particularmente para as cidades” (SANTOS, 2012, pp. 32-33).

Para Santos (2014, p. 80) o espaço é o: [...] resultado da soma e da síntese, sempre refeita da paisagem com a sociedade por meio da espacialidade. A paisagem tem permanência, e a espacialidade é um momento. A paisagem é coisa: a espacialização é funcional e o espaço é estrutural. A paisagem é relativamente permanente, enquanto a espacialização é mutável, circunstancial, produto de uma mudança estrutural ou funcional. A paisagem concede a história que será escrita sobre ela ou modifica-se para acolher uma nova atualidade, uma inovação. A espacialização é sempre o passado ainda que recente. O espaço é igual à paisagem mais a vida nela existente: é a sociedade encaixada na paisagem, a vida que palpita conjuntamente com a materialidade. A espacialidade seria um momento das relações sociais geograficizadas e o momento da incidência da sociedade sobre um determinado arranjo espacial. A espacialização não é o resultado do movimento apenas da sociedade, porque depende do espaço para se realizar.

Nesse sentido, a sociedade é, desde sempre,

dependente do espaço pré-existente. A ação humana irá transformar a paisagem em espaço, permitindo sua espacialização que, por sua vez, se relaciona com as relações sociais. A própria espacialização precisa do espaço, cujos fenômenos e objetivos não se transformam no mesmo lapso de tempo, velocidade ou direção, mas acompanham as

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transformações da sociedade, para atender às novas necessidades da estrutura social vigente. Há, portanto, um círculo sem fim permeado pelo tempo, afinal “a sociedade é atual, mas a paisagem, pelas suas formas, é composta de atualidades de hoje e do passado” (SANTOS, 2012, p. 59).

Tais reflexões mostram o espaço de forma truncada, pois ao mesmo tempo em que ele se mundializa, também aparece de forma fragmentada, sendo “humanamente desvalorizado, reduzido a uma função”. A forma como esse território é utilizado divide e separa os homens em função do capital e da própria dinâmica do mercado que modela a sociedade (SANTOS, 2014b, p. 62).

Tendo como referência essa breve análise sobre o espaço a partir do pensamento de Milton Santos, é possível que pensemos como Heidegger interpreta e atribui novos sentidos ao espaço e a espacialidade.

17.2 MARTIN HEIDEGGER E O ESPAÇO

As compreensões heideggerianas sobre o espaço

apresentadas brevemente nesse subitem tomam como referência a obra Ser e Tempo de 1927. De maneira fenomenológica/existencial, o espaço pensado como espacialidade, é tratado como um existencial do ser-aí. É nele que são executadas todas as dimensões de sua vida, permitindo-lhe projetar-se e concretizar sua própria rede de acontecimentos. Assim:

Ao atribuirmos espacialidade ao ser-aí, temos evidentemente que conceber este “ser-no-espaço” a partir do seu modo de ser. Em sua essência, a espacialidade do ser-aí não é um ser simplesmente dado e, por isso, não pode significar ocorrer em alguma posição do “espaço cósmico” e nem estar à mão em algum lugar. Ambos são modos de ser desse ente que vêm ao encontro dentro do mundo. O ser-aí está e é “no” mundo, no sentido de lidar

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familiarmente na ocupação com os entes que vêm de encontro dentro do mundo (HEIDEGGER, 2013, p. 158).

O ser-aí é, desde sempre, lançado de maneira abrupta

no espaço, sem que tenha qualquer determinação natural e, enquanto ser histórico, tem no mundo sua orientação. Por isso, a expressão “ser-no-mundo” aponta para uma rede de significados articulados que, por sua vez, dão sentido à existência, absorvendo-o em uma rede de pré-compreensões que orientam os possíveis e diferentes modos de ser.

O espaço não é compreendido de maneira tradicional, como apenas uma base física que pode facilmente ser descrita e conceitualizada, afinal é sobre ele que a existência humana se realiza, o ser-aí toma consciência de si, compreende-se como abertura/possibilidade, mergulha em sua vida fática, estabelece sentido para sua existência, bem como, possibilita a sensação de pertencimento e identidade.

Para Heidegger (2013, p. 110), o espaço é construído atrelado à existência e à temporalidade que lhe atribuem distintas configurações ao passo que possibilitam ser-(estar)-no-mundo, experimentando-o existencialmente, organizando e criando novos espaços.

O espaço é um existencial do ser-aí, cujas significações dão sentido a este ente e, portanto, não pode ser pensado de maneira meramente utilitária, dissociada do ser-aí, como se ele fosse uma coisa e o espaço outra no qual simplesmente se projeta, como pensa Santos (2014). É nele que o ser-aí “[...] significa-se a si mesmo, dá-se originariamente a compreender o seu ser e poder-ser quanto ao seu ser-no-mundo” (FRANCK, 1998, p. 62). O ser-aí é espacial a partir de seu ser-no-mundo e em conformidade com o seu sentido ontológico: a temporalidade que também determina e deixa determinar o ser do espaço.

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Em virtude disso, Heidegger (2013, p. 110) se mostra contrário à visão tradicional de espaço que simplesmente elenca:

[...] tudo o que se dá no mundo: casas, árvores, homens, montes, estrelas. Podemos relatar a “configuração” desses entes e contar o que neles e com eles ocorre. Mas é evidente que tudo isso permanecerá um “ofício” pré-fenomenológico que, do ponto de vista fenomenológico, não pode ser relevante. A descrição fica presa aos entes, é ôntica. O que, porém se procura é o ser. Em sentido fenomenológico determinou-se a estrutura formal do fenômeno como o que mostra enquanto ser e estrutura do ser.

Nesse tipo de análise as relações delineadas pelo ser-

aí não são pensadas de maneira desvinculada do mundo, da forma como age o ser-no-mundo e da temporalidade. Tem-se apenas a descrição de um conjunto de entes que estão “dentro” do mundo que, por sua vez, também é compreendido como um ente à mão do ser-aí para que lhe faça uso.

Heidegger toma uma posição contrária a isso em várias passagens de Ser e Tempo, na medida em que descreve os existencias constitutivos do ser-aí, tais como: ser-no-mundo, ser-em, ser-junto, mundanidade do mundo, entre outros.

O ser-aí como ser-em aponta justamente para a unicidade que lhe é própria, “relativa ao seu estar no mundo, e o modo de estar espacial partilhado com os demais entes intra-mundanos considerados “destituídos de mundo” – que é um simples estar “dentro de” (SARAMAGO, 2008, p. 76).

O espaço desempenha um papel fundamental para delinear o sentido do ser, e o papel que o aí desempenha na dimensão espacial da existência permitindo-lhe tornar-se consciente de que é um ser de possibilidades capaz de

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autocompreender sua existência, a espacialidade por meio dos entes que compõem sua lida cotidiana em seu espaço de ação e as regiões para além dele.

De forma originária, o ser-aí é ser-no-mundo, afinal é no mundo que seu ser se torna acessível, pois

[...] mergulhado na compreensão e orientado pela ocupação cotidiana, se move em contextos significativos já prévia e parcialmente descobertos por uma pré-interpretação do mundo que o circunda (SARAMAGO, 2008, p. 58).

O ser-aí interpreta a si mesmo por meio do espaço no

qual desde sempre e na maioria das vezes é bruscamente lançado. Por isso, ele não pode ser pensado apenas como algo imediato e utilitário, no qual estão dispostos múltiplos entes, sendo constituído por dimensões fisicamente determinadas, marcado pelas ações empreendidas pelo ser-aí no decorrer de sua existência que o tornam familiar e habitável.

Para Heidegger,

[...] o espaço se revela na existência, no que existe mundo, que existe ser-aí. E isso, só ocorre porque a compreensão do espaço do ser-aí é simultânea à compreensão de seu próprio ser.

O ser-aí é abertura que desencobre o espaço, “[...]

trazendo-o à luz em seus modos de manifestação, e assim, os demais entes tornam-se, então próximos ou distantes, no que são espacialmente encontrados” (SILVA, 2007, p. 126).

O mundo para o ser-aí é compreendido como o espaço em que ele se realiza fenomenológica e existencialmente, de acordo com suas orientações e projetos a serem concretizados. O ser-aí não se encontra dentro ou fora do mundo porque ele o espacializa vivendo uma experiência originária em relação ao mundo. Por isso, para se

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referir a esse fenômeno, Heidegger utiliza a expressão espacialidade3. Enquanto os demais entes estão apenas dispostos no mundo, sendo destituídos de mundo, o ser-aí abre o mundo, os espacializa, libera estes entes fazendo uso deles.

O ser-aí é espacial por natureza, afinal é “[...] um ente que funda todos os seus comportamentos em relação aos entes em geral em um comportamento originário em relação ao mundo” (CASANOVA, 2009, p. 92). O espaço é continuamente construído em associação à existência humana, com múltiplas especificidades que, também, são resultados da temporalidade a que o ser-aí está sujeito, possibilitando a vivência de significados específicos ao habitar, ou seja, ao ser-(estar)-no-mundo.

O espaço em Ser e Tempo é espacialidade que implica no modo como o ser-aí sempre experiencia o espaço, um existencial do ser-aí, ou seja, seu elemento constitutivo ontológico-existencial. O espaço constitui o ser-aí, lhe é próprio e, permite experimentar o mundo espacialmente. O mundo também é um espaço constitutivo do ser-aí, seu local de realização.

Espaço e mundo são compreendidos por Heidegger como nuances de um mesmo fenômeno, parecendo mostrar camadas desse fenômeno, no qual a existência ocorre fazendo emergir o caráter ontológico-existencial testemunhado pelo ser-aí que sou, o ser que é possibilidade, a existência que é minha e os diferentes modos do ser.

O filósofo não se dispõe a compreender como os entes se dão no contexto do mundo, mas mostrar como os entes se mostram em sua estrutura fundamental, a partir da forma como estão no mundo fenomenológicamente

3 Todas as vezes em que a palavra espaço aparece em meio às discussões ontotológico-existenciais, estará apontando para a espacialidade, ou seja, essa experiência originária do ser-aí em relação ao mundo pensada por Heidegger.

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constituído. O mundo é o próprio aparecer dos entes, que não existem sem o mundo; ao mesmo tempo, a existência se opera a partir de diferentes modos de ocupação.

17.3 INTERFACES DO PENSAMENTO HEIDEGGERIANO E DE MILTON SANTOS

Quando o espaço é tratado de forma desvinculada do

ser-aí, difunde-se uma reflexão superficial, ou seja, derivada e pautada no plano ôntico, incapaz de ilustrar a relação que permeia a cotidianidade do ser-aí e o espaço que lhe é constitutivo e fundamental (BOLLNOW, 2008). Essa situação muitas vezes permeia o pensamento de Milton Santos como pode ser evidenciado no primeiro subitem, por mais profundo e crítico que seja.

Essa redução a uma extensão física permite à razão compreender o espaço por meio de relações ideais de proximidade, distância, de orientação, formas de ocupação, reflexo do capital, dos recursos disponíveis aos seres-aí que o modelam, etc.

Desse modo, como destaca Casanova (2017, p. 222): Ao dizer, por exemplo, que um objeto se encontra à direita, à frente a 45 graus, a 100 metros de distância ou mesmo a duas horas de carro em um movimento retilíneo uniforme a 80 km/hora, o que estou dizendo agora é que o espaço pode ser pensado a partir de tais dimensões, uma vez que a extensão permite a localização ideal dos pontos (corpos) no interior da assíntota espacial.

Tal descrição aponta para o fato de que os entes estão

simplesmente posicionados no espaço, havendo uma ordem interna que os organiza e permite o deslocamento do ser-aí. Embora isto seja uma vivência comum em sua cotidianidade,

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contudo, o movimento espacializante não é considerado pela sensibilidade em suas formas pura e a priori.

Este espaço é simplesmente “mapeável, ordenável, quantificável, territorializado empiricamente, por uma ciência de fatos positivamente estabelecida”, portanto, se mostra como investigável segundo os princípios, por exemplo,

de circulação das pessoas e de escoamento de produtos ou de urbanização em sintonia com as necessidades oriundas do aumento vertiginoso da população no interior das grandes cidades (CASANOVA, 2017, p. 233).

A noção fenomenológica-existencial do espaço é

esquecida, assim como o fato de que não há espaço para fora do ser-aí, tampouco categorias e modos de construção capazes de ilustrar a dinâmica originária e espacializante oriunda do processo de existir. Todos nós temos nossos modos de ser no espaço que dependem fundamentalmente do modo como o espacializamos no campo existencial.

A espacialidade apresentada por Heidegger permite ao ser-aí superar a dualidade trazida pela tradição em que homem e mundo se encontram dissociados e que pode ser evidenciada em muitas passagens textuais produzidas por Santos. Heidegger deixa claro que ambos constituem um ao outro e não podem ser pensados como, por exemplo, a água dentro de um copo, o homem dentro do mundo, ou seja, em uma relação na qual dois entes distintos estão sobrepostos. Por ser espacial, o ser-aí destitui a dualidade homem/mundo.

Por outro lado, embora Santos (2014) compreenda que o espaço é resultado direto do homem, da sociedade a que pertence e dos fenômenos que a constituem, ainda os descreve como se estivessem destituídos um do outro, ou seja, tem uma compreensão que muito se difere daquela heideggeriana.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O modo como Milton Santos compreende o espaço

aponta nitidamente as especificidades de uma sociedade capitalista, orientada pela divisão de classes sociais, pela técnica, pelas múltiplas exigências trazidas pela globalização que reinventa as relações sociais, o modo como a natureza é vista e explorada, ampliando os desejos de consumo e acumulação.

É inegável que em decorrência da Revolução Industrial, as relações sociais e a interação do homem com a natureza passaram por transformações profundas. Contudo, tais análises por mais complexas, sistematizadas e renovadoras que se mostrem, ainda permanecem incutidas no bojo da tradição, pautadas em análises ônticas.

Nestas, o espaço é visto de maneira objetivada, como um ente do qual os homens fazem uso de acordo com os recursos e as técnicas disponíveis, que pode ser analisado por meio de suas partes e/ou como constituinte de um todo que se mundializa para atender os fluxos do capital. De um lado, está o homem e de outro o espaço, ou seja, dois entes com funções distintas que resguardam em si a temporalidade que lhes incute marcas do passado e do presente.

Heidegger, por sua vez, apresenta análises ainda mais profundas sobre o espaço, ligadas ao plano ontológico-existencial. Afirma que ele será descoberto na forma de espacialidade, não apenas como algo que pode ser medido, objetivado, determinado por limites físicos e/ou políticos. Afinal, é nele que o ser-aí existe e se descobre em sua vivência cotidiana. O ser-aí vivencia fenomenalmente o espaço porque está no mundo, é um ser-no-mundo que desde sempre descobriu e é lançado de forma originária em sua vivência.

Não podemos negar que Heidegger concorda com as afirmações de Milton Santos de que o espaço pode ser medido e tematizado a partir de diferentes pontos de vista (da técnica,

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do capital, da cultura, da temporalidade). Entretanto, essas análises permanecem no plano ôntico, enquanto a espacialidade abrange o plano ontológico descoberto pela vivência, pelos modos de ocupação do ser-no-mundo que antes de saber “o tamanho do espaço” o compreende por meio de sua existência, pela experiência que faz dele.

Isso é possível porque somos seres espaciais, somos seres-no-mundo constitutivos de uma única unidade ontológica e não dois entes com papéis diferentes que influenciam e são influenciados por uma rede de fenômenos e pela temporalidade. Ao passo em que o ser-aí configura um espaço, ele o espacializa de acordo com a sua ação, ao mesmo tempo em que vive a possibilidade de autocompreensão de sua existência.

A espacialidade corresponde à instância mais originária do mundo, pois dela derivam outros locais ou espaços particulares, como o geométrico, tratado por Santos. Sua ocupação será transpassada pela temporalidade que também se revela na existência do ser-aí. O ser-aí traz para dentro de si o espaço, age por meio dele, rompe com as fronteiras entre o dentro e o fora e torna-se a abertura.

Heidegger, diferente de Santos, não consegue analisar o espaço como algo isolado das circunstâncias da vida fática do ser-aí. Pensa-o também não como um ente cujas partes podem contar com uma representação mundializada, pois os seres-aí que habitam os diferentes espaços mundiais têm sua própria compreensão, constituem sua essência por meio da espacialidade que o torna único, habitável e familiar, embora considere que cada espaço se articula com outros espaços e outros seres-aí.

Entre os elementos pensados de maneira comum tanto pelo filósofo quanto pelo geógrafo, podem ser elencados: a necessidade de pensar continuamente o espaço no qual o ser-aí põe em movimento seu projeto existencial, empregando-lhe elementos do presente e do passado, assim

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Diferentes compreensões...

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como as relações espaciais são compreendidas por meio do agir do ser-no-mundo e da espacialidade fática do mundo no qual está inserido.

REFERÊNCIAS

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___________. A falta que Marx nos faz. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017

FRANCK, D. Heidegger e o problema do espaço. Trad. João Paz. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2013.

SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. 6 ed. 2 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012

___________. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014.

___________. Espaço e método. 5 ed. 2 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014 (A).

___________. Espaço do cidadão. 7 ed. 2 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014 (B).

SARAMAGO, L. A topologia do ser: lugar, espaço e linguagem no pensamento de Martin Heidegger. Rio de Janeiro: PUC-RJ; São Paulo: Loyola, 2008.

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SILVA, A. A. R. da. Relação entre espaço e lugar no pensamento de Martin Heidegger. Revista eletrônica Correlatio, n., julho de 2007, pp. 124-138.

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XVIII

HEIDEGGER E A GÊNESE DA INDICAÇÃO FORMAL

Neusa Rudek Onate

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens No parágrafo 7 do volume 60 de sua Gesamtausgabe1,

Heidegger explica que os conceitos gerais são determinações das objetualidades que, por sua vez, movendo-se em círculo, não ultrapassam tal setor objetual. A partir desta definição, o filósofo se pergunta se é possível descobrir outro sentido histórico em geral que não se aplique às objetualidades, complementando que, se o conceito de histórico fosse questionado como derivação de um âmbito originário, quiçá, se pudesse compreender tal caracterização. Objetualidade (Objekt) e objeto (Gegenstand) são duas noções distintas: as objetualidades são objetos, porém, alguns objetos não são objetualidades, o que permite que, em alguns casos, noções objetuais sejam tomadas por noções objetivas. Sendo tomadas em sentido inverso, pode-se cometer o erro de determiná-las formalmente como considerações objetivas específicas. Heidegger ressalta ainda neste parágrafo que é preciso ter claro que um fenômeno não pode ser considerado objetualidade e nem objeto, mas é “formalmente” um objeto, ou seja, um “algo em geral”. Com tal determinação, nada de

1 O volume 60 da Gesamtausgabe corresponde ao texto intitulado originalmente Phänomenologie des religiösen Leben, o qual foi editado por Klostermann e publicado pela primeira vez em 1995. Faz parte das lições juvenis de Friburgo do semestre de inverno de 1920-1921. Citamos aqui a versão espanhola de Jorge Uscatescu, publicada em 2006, cujo título é Introducción a la fenomenología de la religión.

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essencial foi expressado acerca do fenômeno e é justamente isto que torna a fenomenologia tão difícil. Objetualidades, objetos e fenômenos jamais serão caracterizações semelhantes. A partir destas afirmações, Heidegger pretende explicitar a distinção entre objetualidade e objeto: a objetualidade se aplica ao que está determinado temporalmente e, portanto, é histórico. O filósofo explica que a realidade histórica é modificável devido ao seu caráter de objetualidade, mas o histórico em si mesmo não sofre alteração. O histórico aplicado à realidade humana o determina como objetualidade no tempo. Ser histórico é uma propriedade do homem, mas tal determinação é apenas uma noção comum do sentido de histórico, em outras palavras, uma noção objetual do conceito de histórico.

Nos parágrafos seguintes, ao introduzir a noção de “indicação formal”, Heidegger visa o problema de como se relaciona o histórico com a vida fáctica. No parágrafo 11, o filósofo expõe o sentido geral de histórico evidenciando que sua preocupação no tocante à indicação formal é, especificamente, de que nenhuma opinião pré-julgadora seja introduzida através de conceitos derivados do âmbito de vinculação do ser-aí histórico2. Deve-se ter clareza de que o sentido da indicação formal não pode ser confundido com uma consideração atitudinal ou concebida como uma delimitação regional absoluta. Nas palavras de Heidegger:

[...] o problema da indicação formal pertence à ‘teoria’ do método fenomenológico mesmo e, num sentido lato, ao

2 “[...] a determinação [...] do ‘sentido universal’ de ‘histórico’ no § 11, torna-se, no § 13, ‘indicação formal’. Se o § 11 não especifica exatamente o que se entende por ‘sentido’, o seguinte texto irá mostrar que, pelo menos a indicação formal se encaixa bem dentro do horizonte da questão do sentido, pelo menos o sentido filosófico que vai encontrar o seu bom desenvolvimento, particularmente, na noção de indicação formal” (VILLEVIEILLE, 2013, p. 20).

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problema do teórico, dos atos teóricos, do fenômeno de distinguir (HEIDEGGER, 2006, p. 81).

Ao destacar que o histórico, no sentido comum, se

caracteriza pelo que é temporalmente dado e que é passado, Heidegger propõe uma análise da vida fáctica para verificar em que medida se dá algo de temporal nela, e em que medida ela se torna passado (HEIDEGGER, 2006).

O questionamento acerca do sentido geral de histórico aplicado à vida fáctica, direciona o autor para um avanço em sua argumentação. O caráter “universal de histórico”3 é colocado em questionamento com a seguinte afirmação: “É problemático em que medida este sentido do ‘histórico’ seja geral e se esta forma de generalidade possa ser filosoficamente principal” (HEIDEGGER, 2006, p. 81). Com tal afirmação, de acordo com Rodriguez, Heidegger dá um passo a mais ao questionar o caráter universal (Allgemein) do conceito de histórico e avança com seu questionamento acerca do caráter universal de todo o conceito filosófico. O questionamento aponta para uma universalidade no modo como a filosofia opera desde o seu princípio, aponta para o modo como a filosofia opera em absoluto com universais,

3 “Universal: [...] essa determinação deve ser aplicada indiferentemente a qualquer parte da realidade, especialmente na região da ‘vida fáctica’ que neste contexto é apenas uma das possíveis variações regionais que subsume em uma multiplicidade de outras. Em termos lógicos, os universais obedecem à tipos de regras e a espécies. Isto é, pelo menos, no caso em que o universal está incluído, especificamente, como produto de uma generalização. Mas entre os modos de acesso ao universal, Husserl nos ensina a distinguir a formalização generalizada. Quem diz universalização, diz de fato duas possibilidades muito diferentes: ou voltar para a coisa a uma espécie que subsume esta espécie para sua próxima transição, e assim por diante, até que finalmente um tipo final, que circunscreve uma região da realidade, é determinada (generalização); ou simplesmente extraí da coisa a sua forma, mas não da propriedade de qualquer região (formalização) ” (VILLEVIEILLE, 2013, p. 19).

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para uma univocidade conceitual que possa se abrir à possibilidade de se conceber filosoficamente outras configurações metaconceituais. Esta possibilidade conta com distinções elaboradas no campo fenomênico descoberto pela fenomenologia de Husserl (RODRÍGUEZ, 1997).

Surge, contudo, um problema que seria, dentre outros, um dos primeiros pontos de sua divergência com tal fenomenologia. A filosofia, explica Heidegger, deve lidar com o ente em sentido ontológico e a consciência deve lidar com as leis originárias de sua própria constituição. É deste modo que, para o filósofo, a consciência é, na fenomenologia de Husserl, uma região sujeita a uma determinação regional. Sendo originária e a mais geral, tais designações a colocam como fenomenologia transcendental. A reconstrução crítica que Heidegger apresenta da distinção husserliana, como veremos, pressupõe nela uma pretensão de conformar (Ausformen) determinado campo de objetos. Assim, a consciência transcendental, a qual se constitui como condição de possibilidade das relações lógicas, determina os objetos de conhecimento em geral, de modo que tal conformação seria um problema para a fenomenologia de Husserl (RODRÍGUEZ, 1997).

Dissemos que Heidegger apresenta uma reconstrução da fenomenologia transcendental, pressupondo nela uma conformação de determinado campo de objetos, cujo pressuposto seria um problema para tal fenomenologia. O objetivo da seguinte análise é demonstrar como Heidegger, a partir da crítica à distinção husserliana, traz à luz o conceito de indicação formal. O decisivo agora é que acompanhemos esta reconstrução crítica que o filósofo propõe no parágrafo 12 do referido volume 60.

Ao tomar a distinção husserliana entre generalização (Generalisierung) e formalização (Formalisierung), contrastando-a criticamente de modo negativo, a tarefa que Heidegger se

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coloca é de delimitar e fundamentar as bases desta distinção4 e, a partir desta definição, justificar por que estes modos de operações conceituais são insuficientes para uma investigação fenomenológica, sendo necessário propor um outro modo de operação conceitual mais originário através da noção de indicação formal desenvolvida em sua hermenêutica enquanto método investigativo (RODRÍGUEZ, 1997).

Inicialmente, a distinção é justificada pelo modo como a fenomenologia transcendental constitui para si uma região objetual que lhe é própria, tal modo é, para Heidegger, fundamentado por uma lógica pura da objetividade, uma ontologia formal. No parágrafo 12, o filósofo faz uma análise detalhada de tal distinção, explica que o sentido de generalização sempre foi muito controverso até o surgimento da fenomenologia de Husserl. O que Husserl fez, foi separar a formalização da generalização:5 tal distinção, explica Heidegger, já aparecia de modo implícito na matemática desde Leibniz, mas foi Husserl que inaugurou uma abordagem lógica destacando nela que “a importância da distinção se deve, sobretudo, por parte da ontologia formal e por parte da fundamentação da lógica pura de objetos” (HEIDEGGER, 2006, p. 83). Heidegger faz uma abordagem argumentativa do parágrafo 13 das Ideias I, cuja discussão é retomada das Investigações lógicas, no intuito de mostrar como a generalização tem o mesmo sentido de uma generalização genérica (gêneros e espécies) (HEIDEGGER, 2006).

4 “Heidegger explica no § 12 a diferença de generalização e formalização em dois momentos. A primeira vez, ele mostra que a generalização está relacionada a um ‘estado real’ (Sachgebiet), enquanto a formalização é ‘realmente livre’ (sachhaltig frei). A segunda vez, mostra que os relatos generalizados de uma determinada operação é uma ‘Ordem’ (Ordnen), enquanto que a formalização não se caracteriza como qualquer tipo de ordenação” (VILLEVIEILLE, 2013, p. 22). 5 Esta abordagem sistemática de Husserl se encontra em Logische Untersuchungen, tomo primeiro, capítulo final, e no parágrafo 13 de Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie.

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O núcleo argumentativo que Heidegger estabelece parte do pressuposto de que a condição de possibilidade é inteiramente livre em relação aos conceitos gerais. Por se tratar de uma categoria formal, é independente de uma realidade, isto significa que tal condição de possibilidade remete a um tipo de modulação de ato intencional. Com efeito, a discussão acerca da diferença entre forma e matéria não pode ser tomada como uma simples distinção entre tipos de conceitos. Mas antes, segundo Rodríguez, deve ser tomada através de uma recondução fenomenológica ao campo intencional, justificando-se, assim, como algo muito mais elevado em termos de complexidade no que diz respeito à diferença atribuída por Heidegger (RODRÍGUEZ, 1997).

Isto significa que a diferença não se aplica apenas entre tipos de conceitos, mas antes, à diferença entre as relações intencionais, de cujas diferenças resulta a constituição de tais objetos. É a partir da diferença modal entre os modos de constituição, oriundas de tal inter-relação intencional destes objetos, que é fundada a diferença entre os tipos de conceitos (XOLOCOTZI, 2004).

Em termos objetivos, o correlato intencional de geral é a generalização, e de forma é a formalização. Acompanhemos a seguinte passagem na qual Heidegger, tomando o exemplo de Husserl, desenvolve sua discussão acerca da referida distinção:

[...] o roxo é uma cor, a cor é uma qualidade sensível; a alegria é um afeto, o afeto é uma vivência. Se podem aparecer, continuar: as qualidades em geral, a vivência, o gênero, a espécie, a essência, são objetos. Nos perguntamos, porém: É o trânsito generalizante de “roxo” à “cor” ou de “cor” à “qualidade sensível” o mesmo que o trânsito de “qualidade sensível” à “essência” e o que transita de “essência” a “objeto”? É claro que não! Aqui temos uma ruptura: o trânsito de “roxo” à “cor” e de “cor” à “qualidade sensível” é generalização, o que transita da

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“qualidade sensível” à “essência” é formalização. Cabe perguntar se a noção de “qualidade sensível” determina no mesmo sentido “cor” que a noção de formal “objeto” e qualquer objeto? Claro que não. Assim, a distinção entre generalização e formalização não está totalmente clara (HEIDEGGER, 2006, pp. 83-84).

A partir deste exemplo, Heidegger explica que a

generalização torna possível um modo de acesso ao “objeto em geral”; este, por sua vez, é o último a passar por um procedimento de abstração generalizadora proveniente de processos menos gerais. Este processo de abstração generalizadora avança gradativamente das menos gerais para as mais gerais, o que nos leva a compreender que a predicação “ser-objeto”, por ser a mais geral, é uma caracterização que pode ser aplicada a todo objeto. Convém apontar que a mudança ou transição das determinações gerais, tomando o exemplo supracitado, não se constitui do mesmo modo que a transição destas determinações gerais a objetos, o que caracteriza para o autor uma descontinuidade neste processo de avanço gradual da generalização, e é neste sentido que “ser-objeto” se aplica a todas as etapas de avanço gradual, cuja aplicação é independente de níveis avançados de generalização em relação aos níveis menos avançados. “Ser-objeto” se afasta por completo de tal progressão generalizadora. Assim, “ser-objeto” ou “ser-algo” não se caracterizam como conceitos gerais, sendo apenas uma forma de universalidade. Do ponto de vista fenomenológico, o decisivo é saber de que depende a generalização para acessar o geral em seus diversos graus: Heidegger explica que a execução desta relação a objetos de tipo generalizador depende, sobretudo, de uma determinada região de coisas, de conteúdos quiditativos das coisas (HEIDEGGER, 2006).

Convém observarmos a seguinte passagem na qual Heidegger desenvolve uma definição precisa acerca do que

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depende a generalização para acessar o geral em seus diferentes níveis, o que a caracteriza como generalização ordenadora:

A generalização pode ser caracterizada como modo de ordenar. Ela efetua uma subordinação de determinadas singularizações individuais a um contexto cósmico mais abarcador. Este mesmo contexto está, por sua vez, na possibilidade de ser subordinado a um contexto mais geral e abarcador. Por esta razão, a generalização se executa sempre em uma esfera de conteúdo quiditativo. Sua direção está estabelecida pelo ponto de partida do conteúdo quiditativo. Desta maneira, a generalização só tem sentido em uma atitude teorética, pois o contexto de coisas tem de estar livre, deve haver livre acesso para ordená-lo conforme a sua completa quididade. A generalização é uma determinada ordenação de níveis, e, por certo, uma ordenação de níveis imanentes à coisa, ordenação de determinações que se relacionam reciprocamente de tal forma que a mais geral aponta à última. As determinações que generalizam consistem sempre em determinar um objeto desde o ponto de vista de sua quididade a partir de um contexto distinto, de tal modo que o que determina é introduzido como pertencendo à região de coisas em que está o “o que” que deve determinar (HEIDEGGER, 2006, p. 86).

Podemos entender que a operação de ordem não se

aplica apenas, como sugere a passagem, ao “o que” de alguma determinação, mas ordena o “o que” no sentido de direcioná-lo, de orientá-lo. A ligação entre generalização e ordenação é uma relação executiva própria do ordenar, o que leva Heidegger a concebê-la como uma operação executiva da qual resultam os chamados conceitos de ordem. Assim, a generalização ordenadora se aplica a conceitos taxonômicos, mas convém explicarmos que, para o filósofo, estes conceitos taxonômicos não abrem uma via de acesso fenomenológico a

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problemas como a “história”, pois uma investigação fenomenológica não se constitui pela via da ordenação:

Desta maneira, a generalização só tem sentido em uma atitude teorética, pois o contexto de coisas tem de estar livre, deve haver livre acesso para ordená-lo conforme a sua completa quididade (HEIDEGGER, 2006, p. 85).

O que Heidegger estaria apontando nesta passagem de

forma implícita, é que somente a partir de uma relação intencional básica, a generalização poderia ser executada. Tal relação parte do objeto antes mesmo de toda ordenação tal qual uma atitude teórica (Einstellung) e é deste modo que a formalização torna expresso o estatuto do objeto. Com isso, segundo Rodríguez, não se trata de uma elementar distinção entre operações conceituais, mas antes, de uma hierarquização entre tais operações (RODRÍGUEZ, 1997).

É pertinente destacar algumas observações do intérprete no que diz respeito ao que poderia comprometer a análise heideggeriana: a aparente continuidade dos diferentes níveis da generalização, de acordo com Rodríguez, é um problema que não passa desapercebido pela ampla literatura que trata do tema. O processo de abstração generalizadora em Husserl remete a uma elevada complexidade. Portanto, não é tão simples quanto parece na reconstrução heideggeriana. No que concerne à dependência da generalização de conteúdos quiditativos, a generalização se dirige apenas ao “que” e não ao “como” dos índices ontológicos fundamentais6. No tocante aos conceitos taxonômicos, existem conceitos que não se submetem à generalização e, portanto, não se constituem como conceitos derivados de uma ordenação. Por

6 “O que” e “como” funcionam como índices ontológicos fundamentais. “Que” assinala um conteúdo entitativo; “como”, por sua vez, um modo em que é, ou seja, “exercido”, “atualizado” o ser, isto é, designa a modalidade da performance de ser” (HEIDEGGER, 2008a, p. 18).

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exemplo, os conceitos de “objeto”, “algo” e tantos outros, são provenientes de outro tipo de operação conceitual. Na verdade, estes conceitos são os pressupostos dos conceitos taxonômicos (RODRÍGUEZ, 1997).

Na seguinte passagem, contudo, Heidegger destaca um aspecto decisivo da generalização, ou seja, é que a mesma se caracteriza como a possibilidade de uma conexão de dependência com a formalização. Vejamos:

A generalização está ligada, em sua operação, a um setor temático preciso. A sequência de graus do genérico (gêneros e espécies) está ligada tematicamente. [...] De outro modo se dá a formalização, por exemplo, ‘a pedra é um objeto’. Aqui a atitude não está ligada à temática (Sachhaltigkeit) (a região das coisas materiais, etc.), mas é tematicamente livre. Está livre de toda graduação. Não precisa ter recorrido todas as generalidades inferiores para ascender gradualmente, por exemplo, à ‘suprema generalidade’, ‘objeto em geral’. A formalização não está tematicamente ligada, porém, deve estar de algum modo motivada (HEIDEGGER, 2006, p. 84).

A passagem sugere que a formalização provém de um

sentido referencial captado atitudinalmente, ou seja, captado pelo âmbito da dinâmica operacional a partir de sua referência mesma. Tal sentido referencial deve ser observado como uma operação que conduz ao entendimento da origem do teórico. O sentido referencial não se funda numa quididade em geral, pois o sentido referencial da referência atitudinal é o próprio fundamento daquilo que é a origem do formal. Em outras palavras, a origem do formal se funda no sentido referencial, ou seja, é deste modo que a formalização estaria motivada, como sugeriu a passagem. “Aquela pluralidade de sentidos referenciais que se expressa nas categorias ontológico-formais é a que se circunscreve em seu sentido referencial à atitude teórica própria, mas não em seu exercício originário”

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(HEIDEGGER, 2006, p. 85). Com isto, o autor se pergunta se a palavra formal teria o significado de formalizado ou teria um outro sentido, pois a noção de geral está ligada tanto à generalização quanto à formalização. Porém, a predicação formal não tem nenhuma relação direta com a generalização. O autor explica que o sentido de formal, por se tratar de uma ontologia formal, seria mais originária. A passagem também sugere que a região formal se caracteriza como um setor “temático”, contudo, livre de todas as graduações, mas motivada pelo sentido referencial mesmo; esta seria a conexão de dependência da formalização com a generalização (HEIDEGGER, 2006).

Observemos, agora, mais este exemplo apresentado por Heidegger: a) “Algo é um objeto – pode ser dito de todo e de cada um; b) A vivência em geral, a coisa em geral – são essências – não pode ser dito de cada objeto” (HEIDEGGER, 2006, p. 85).

Tal exemplo estabelece algumas diferenças dentro do formal, mas estas diferenças não estão vinculadas ao sentido de geral; o predicado formal não tem nenhum vínculo com o atitudinal teorético. Não está vinculado ao “o que” de uma determinação, pois tal determinação não passa pelo conteúdo temático, considerando sua determinação somente a partir de sua “dadidade” captada:

O sentido de ‘objeto em geral’ significa só o ‘ao-que’ da referência teórica da atitude. Esta referência atitudinal tem em si uma pluralidade de sentidos que pode explicitar-se [...] enquanto determinação [...] segundo a esfera objetiva (HEIDEGGER, 2006, pp. 86-87).

O sentido referencial não ordena e nem se constitui

como uma região, mas somente de modo indireto através de uma conformação que o converte numa determinação correspondente a uma região. A formalização só pode ser

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considerada uma ordem a partir desta conformação, de modo que, representando a conformação de uma referência, ela determina algo enquanto objeto, mas, segundo o autor, tal modo de operação não seria originária, pois sua função é, exclusivamente, a de conformar o sentido referencial em sua ampla diversidade (HEIDEGGER, 2006).

A condição de possibilidade do predicado de objeto, como já citado, é o que motiva a predicação. Ser-objeto é um predicado independente de conteúdos quiditativos que possibilita os já caracterizados conceitos taxonômicos da generalização, dado que a atitude teorética é o fundamento do caráter objetivo de todo objeto de conhecimento. A origem do caráter objetivo de todo objeto de conhecimento, que, por sua vez, provém do modo próprio de relação (Bezug) referencial, tendo o caráter objetivo como seu correlato intencional, deriva da operação oriunda da formalização. Não obstante, entendemos que “[...] formalizar é certamente universal, mas além do dispositivo de ordenação (Ordnen) que constitui a base da generalização, só pode ser aplicado à região determinada enquanto objeto” (VILLEVIEILLE, 2013, p. 19). A formalização explicita o caráter formal do objeto enquanto tal e a correlação entre teórico e objeto é o que torna possível a formalização. Correlação entre objeto e atitude teorética são, para Heidegger, condições lógicas e ontológicas de toda generalização. A generalização é posterior à formalização, pois o caráter formal de objeto, como já dito, devido ao seu estatuto lógico e ontológico de possibilidade de ordenação taxonômica, é resultado da operação da atitude teorética. Neste sentido, a explicitação dos conteúdos quiditativos só pode se efetivar a partir do puro captar conduzido para o objeto enquanto tal (RODRÍGUEZ, 1996).

Rodríguez destaca que um dos pontos críticos apontados por Heidegger em relação a Husserl seria que esta correlação intencional que estabelece o padrão categorial e formal de todo objeto torna-se um novo campo de objetos de

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conhecimento, o qual pode ser denominado como “região formal”, que, por sua vez, torna-se um novo objeto de estudos para a fenomenologia. Sobre este ponto destacado, o filósofo explica na página 85, que a filosofia movida pela via ontológica opera sempre dividindo o ser em regiões. Neste sentido, surge outra tendência que se pergunta pela experiência de algo na consciência. Com isto, outra região é estabelecida e com ela a tarefa de determiná-la ontologicamente:

Enquanto se pode determinar a consciência em algum tipo de atividade, se pode designar a este lado da consciência como um lado originariamente ativo, dado que o originário da consciência se faz idêntico ao originário na constituição” (HEIDEGGER, 2006, p. 85). É na constituição mesma que se revela a tarefa da

própria filosofia. Outro ponto crítico apontado por Heidegger seria que o estatuto da formalização é, antes de tudo, ordenação somente através de uma conformação regional.

No que se refere ao âmbito originário do formal, ou seja, à intencionalidade enquanto tal, quando explicitada fenomenologicamente, ela recorre a uma forma de conceitos derivados de sua própria origem, que, como já visto, é a atitude teórica. Esta, por sua vez, sendo um modo articulado de sentido de relação e execução, não poderia abordar a si mesma a partir deste mesmo modo. Portanto, não é à formalização em si que o autor dirige sua crítica, mas, precisamente, à atitude teórica que se dá como condição fundamental na correlação intencional em que qualquer objeto é constituído.7 Tal modo de abordar a remete à perda

7 “[...] a relação Husserl-Heidegger se articula em torno de dois polos: continuidade e ruptura. Por um lado, continuidade formal e metodológica e, por outro lado, ruptura em abordagens e em respostas àqueles temas básicos. Será como um pensar desde Husserl contra Husserl em nome de

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de seu caráter originário – de ser uma operação executivo-relacional. É neste sentido que a formalização husserliana, para Heidegger, é insuficiente no aspecto de levar a cabo a referência à origem, desde a qual se expressa o objeto em sentido formal (DE LARA, 2009).

Na seguinte passagem, podemos observar como Dahlstrom, numa discussão com a referida crítica de Heidegger a Husserl, destaca o aspecto decisivo de tal insuficiência originária e como a mesma é denunciada pela derivação de seu caráter formalmente temático:

A lógica formal não é, na sua opinião, realmente formal, uma vez que brota de uma região de objetos que já foi determinada e de um modo correspondente de compreensão – ‘reunindo-se para ordenar’ (Ordnendes Sammeln) uma interpretação ‘formalmente temática’ que faz uso de esquemas ‘vizinhos’ e de noções ‘estabelecidas’, em vez de recuperar o acesso original aos objetos (DAHLSTROM, 1994, p. 784).

Neste sentido, a crítica de Heidegger não se aplica

diretamente à formalização, mas antes, contra a limitação de seu caráter originário. O autor não abandona a formalização, mas a toma no intuito de levá-la a uma radicalização. Tal radicalização se apresenta na formulação de um metaconceito, a “indicação formal”, cujo modo de operação se caracteriza como mais originário. É a partir da crítica à distinção husserliana entre generalização e formalização que a indicação

um início radical e de um retorno às coisas mesmas. A aplicação radical do lema husserliano exige uma crítica interna da fenomenologia da consciência pura para salvaguardar a prioridade do ser. A ontologia emergente perfura as estruturas lógicas da fenomenologia e a autodoação do ser acaba impondo-se sobre a produtividade reflexiva da consciência. Os focos da crítica de Heidegger se concentram no tema da consciência, na questão da redução, na compreensão da intencionalidade e no estatuto da intuição categorial” (ESCUDERO, 2011, p. 225).

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Heidegger e a gênese da indicação formal...

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formal segue em direção a uma originalidade enquanto acesso livre e direto às essências, ou seja, enquanto modalidade de autocaptação metadiscursiva dos conceitos fenomenológicos. REFERÊNCIAS HEIDEGGER, M. Phänomenologie des religiösen Lebens. In: GA 60, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann (1995).

___________. Introducción a la fenomenología de la religión. In: GA 60. Tradução de Jorge Uscatescu, Siruela, México, 2006.

___________. Der Begriff der Zeit (1924). In: GA 64, editado por Friedrich-Wilhelm von Herrmann, 2004.

___________. O conceito de tempo. In: GA 64. Trad. Jesús Adrian Escudero. Bercelona: Herder, 2008a.

DAHLSTROM, D. O. Heidegger's Method: Philosophical Concepts as Formal Indications: The Review of Metaphysics, Vol. 47, No. 4 (Jun, 1994), pp. 775-795 Published by: Philosophy Education Society Inc. Stable URL: http://www.jstor.org/stable/20129578

DE LARA, F. El concepto de fenómeno en el joven Heidegger. In: Acta fenomenológica latinoamericana. Volumen III. Círculo Latinoamericano de Fenomenología Lima, Pontificia Universidad Católica del Perú; Morelia (México), Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo 2009, pp. 377-392.

ESCUDERO, J. A. El joven Heidegger y los presupuestos metodológicos de la fenomenologia hermenêutica. In: Thémata. Revista de Filosofía. Número 44. 2011a. Universidad Autónoma de Barcelona, pp. 213- 238.

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RODRÍGUEZ, R. La transformación hermenêutica de la fenomenologia. Madrid: Tecnos, 1997.

VILLEVIEILLE, L. Heidegger, de l’indication formelle à l’existence Bulletin d’analyse phénoménologique IX 5, ISSN 1782-2041 http://popups.ulg.ac.be/bap.htm Université Paris-Sorbonne (Paris IV), 2013, pp. 1-96.

XOLOCOTZI, A. Fenomenología de la vida fáctica. Heidegger y su caminho a Ser y tiempo. México: Universidad Iberoamericana, 2004.

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XIX

NOTAS SOBRE A NOÇÃO DE SITUAÇÃO EM GABRIEL MARCEL

Paulo Alexandre Marcelino Malafaia

INTRODUÇÃO

Pode-se afirmar que, segundo Gabriel Marcel, a

situação humana é, fundamentalmente, a de um ser-em-situação. Isto posto, o ponto central deste artigo é apresentar que aquela noção é marcada pela tensão “interioridade-exterioridade”, a partir da qual se plasma outras duas considerações importantes a respeito: a condição contemporânea marcada pela morte de Deus e a permeabilidade própria da situação. Deste modo, pretendo aqui perscrutar alguns textos do autor em que estes aspectos aparecem mais reluzentemente. 19.1 A IDEIA DE SITUAÇÃO

A ideia de situação ocupa a preocupação de Marcel

desde o início de seu itinerário filosófico, como se pode ler na anotação do dia 23 de julho de 1918, de seu Diário metafísico. Ali, o autor parte de uma reflexão sobre o que vem a ser a emoção1 e daí estabelece algumas especulações interpretativas sobre a história2, para chegar, finalmente, ao aspecto que interessa aqui:

1 “A emoção não é talvez mais que ação que volta a recordar, ação que não ‘sai’” (MARCEL, G. Journal métaphysique, 23 de julho de 1918, p. 135). 2 “Cabe perguntar também como a situação inicial pode arrastar (dominar) uma situação ulterior, mas não as situações intermediárias. Uma vez mais,

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Outra dificuldade reside no fato de que o que denomino situação não se reduz certamente à consciência que disso adquire um dos “atores” ou a soma dessas consciências: por outra parte, estamos aqui em uma ordem em que não há “adição”, “integração” possível. A unidade desta situação parece essencialmente dada aos “implicados” nela, mas ao mesmo tempo parece permitir e até reclamar sua intervenção ativa. É notável que isto seja verdadeiro a respeito de todo ato de reflexão (de pensamento), qualquer que seja. Há aqui algo que é inerente à função fundamentalmente ambígua do “si mesmo”. Eu sou para mim mesmo uma situação que me ultrapassa e que suscita minha atividade... e o inconsciente não é outra coisa que o símbolo desta transcendência da situação com relação ao situado. Dir-se-á que, apesar de tudo, esta situação se converte em objeto para a consciência reflexiva? – mas aparece a uma reflexão aprofundada como não suscetível de se objetivar integralmente; se fosse totalmente objetiva para mim, deixaria de ser minha; não é minha senão na virtude do que em meu contexto segue sendo “aderente”3.

Longe de pretender detalhar toda riqueza da

passagem, gostaria apenas de enfatizar alguns aspectos que considero primordiais. Situação não se caracteriza pela simples soma dos agentes envolvidos na relação com o sujeito, mas, bastante além disso, implica, em última instância, uma espécie de ultrapassamento da imediatez relacional, para se perceber, inclusive, numa dinâmica dentro-fora, interior-exterior, imprescindível para a compreensão da noção em tela. Aqui, mesmo a noção de “inconsciente” se apresenta como um

a psicologia da imaginação nos mostra que a coisa é possível. E até convirá se perguntar se a situação ulterior (não ainda atual no sentido histórico, mas atual metafisicamente) não determina as circunstâncias que historicamente parecem determináveis. Tenho a impressão muito concreta de que esta hipótese, por estranha que seja, pode permitir captar melhor o que é a história” (Ibidem, p. 136). 3 Ibidem, pp. 136-137.

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símbolo de uma transcendência que ultrapassa essa noção imediata. É o que, junto com a própria atividade reflexiva (ou do pensamento), é possível compreender na “parte de dentro” (ou “interior”) na dinâmica supramencionada. Pode-se ler que o fora é o “material externo” que se me é manifestado, que se me apresenta e que me provoca alguma reação. E nisto podem ser incluídos os eventos que me ocorreram.

Essa ideia de tensão entre a interioridade e a exterioridade parece perpassar alguns estudos presentes em outro texto de Marcel, Da recusa à invocação, republicado mais tarde com o título Ensaio de filosofia concreta. Esta tensão fica evidente na primeira aparição do termo “situação” na obra, em uma passagem do primeiro de seus capítulos – O Ser encarnado, ponto de referência central da reflexão metafísica. Seu contexto é a tentativa de deslindar a relação entre eu e corpo e, a partir daí, emerge a expressão “situação fundamental”. Marcel indica não só usar a ideia à maneira de Jaspers, senão que ela sintetiza e precisa a exposição que vinha desenvolvendo até aquele momento4. Contudo, mais do que remontar a exposição até àquela altura para entender o que Marcel está pretendendo se referir com a expressão de Jaspers, o método de minha exposição aqui será a abordagem dos dois estudos de Marcel nesta obra em que o tema da situação aparece, a saber: os capítulos Perspectivas fenomenológicas sobre o ser em situação e Situação fundamental e situações limites em Karl Jaspers.

Todavia, é mister destacar que, em vez de perscrutar toda a argumentação que o autor realiza visando esclarecer o conceito, o que procurarei fazer aqui é colocar em evidência aquela tensão entre dentro e fora, entre interioridade e exterioridade que parece perpassar a noção, ao mesmo tempo em que esta tensão aponta ao caráter histórico e permeável da

4 “Si je tente de rassembler tout ce qui précède et de préciser se qu'à la suite de Jaspers j'appellerai: ma situation fondamentale, voici ce que je trouve” (MARCEL, G. Essai de philosophie concrète, p. 37).

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própria situação. Serão apresentadas aqui algumas observações a partir das passagens em que estes temas se sobressaem.

A primeira observação que ressalto é a compreensão espacial envolvida da ideia de situação. No entanto, tal compreensão não pode ser entendida como uma dimensão topográfica ou geográfica. Se, por um lado, situação remete à localização, não se pode deixar de ter presente o aspecto entre o interior e o exterior que esta localização implica. Ademais, entre não quer indicar o sentido apenas de algo que está “no meio” do lugar x e y, mas, antes, é necessário enriquecer e aprofundar esta concepção entendendo “entre” como algo que está em meio a outros dois lugares. O “em meio” em questão é, justamente, o caráter situado entre o interior e o exterior, próprio da condição humana e, enquanto tal e por extensão, próprio de sua concretude individual. Além disso, como alerta o próprio Marcel, é muito importante não estabelecer que este lugar, que esta localização, que este entre, que este “em meio” seja algo que possa ser inscrito sob o signo da generalidade abstrata. É, de fato, contra isso que a ideia de situação quer se estabelecer.

Creio que se aprofundarmos o ser-em-situação, deve-se reconhecer nele, não digo a síntese, mas ao menos a união da exterioridade e a interioridade. Um lugar determinado se situa com relação aos sinais que lhe são exteriores – sim, sem dúvida –, mas devemos acrescentar que estes sinais, estas coordenadas entram no enunciado graças ao qual este lugar se torna preciso. Aqui o emprego do pronominal bastará, na verdade, para criar o que me permitirei chamar um lugar para a reflexão ou uma espécie de interioridade virtual. De novo escolhi o caso limite em que a situação não é senão posição espacial. É evidente que quando nós dizemos: o próprio do homem é ser em situação, nós não enfocamos de forma exclusiva, nem mesmo prioritária, o fato de que ele ocupa um lugar no espaço; mas haverá de

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ter lugar aqui de proceder de alguma forma por graduações e mostrar como determinações em aparência puramente espaciais são suscetíveis de serem qualificadas de um modo cada vez mais interno. Tomarei como exemplo aquilo que se exprime mediante a preposição entre: uma clareira entre as árvores, um vale entre as montanhas; viver nesta clareira ou neste vale é, sem dúvida, encontrar-se em uma situação, ou mesmo em uma encruzilhada de situações, nas quais a palavra entre, malgrado as aparências, apresenta-nos já um esquema, senão dinâmico, ao menos pré-dinâmico. Se habito em um vale que separa duas cadeias de montanhas, eu posso ter, de maneira vaga, a consciência de estar comprimido em um ataúde, e sentir a necessidade instintiva de afastar essas massas que, ao se aproximarem, esmagar-me-iam. Mas pode acontecer igualmente que esta posição intermediária que ocupo seja sentida por mim como mediadora, que me apareça como um vínculo entre as duas potências adversas, que me cabe fazer comunicar uma com a outra. [...] Poderíamos submeter a análises análogas as situações que traduzem as expressões ao cabo de (au bout de), à borda de (au bord de), acima de (au-dessus de), etc. Em todos os casos deste gênero, é conveniente estar metodicamente em guarda contra a abstração esterilizante que consiste em tratar o lugar como simples determinação espacial e reconhecer como ela se torna situação qualificada5.

Gostaria, novamente, de frisar este último ponto.

Nesta dinâmica dentro-fora, neste em meio, nesta espécie de simultaneidade que liga o interior e o exterior é que se dá a situação do vivente humano. É sempre situado por certas condições interiores e exteriores que a vida, que a vivência do indivíduo concreto humano se realiza. Cito outra passagem:

Observa-se com justa razão que tais relações apenas podem afetar a este valor ou a este índice em função do vivente

5 MARCEL, G. Essai de philosophie concrète, pp. 130-131.

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enquanto vivente. Os exemplos que acabo de citar somente tem sentido por esta referência, isso é evidente. Somente é necessário notar que é unicamente ao preço de uma abstração viciosa que nós dissociamos este vivente, o fato de que vive, dos esquemas dinâmicos pelos quais se expressa sua situação. Na realidade, tudo isso é, a rigor, inseparável6.

Mais adiante, Marcel oferece outro exemplo bastante

elucidativo que, por um lado, frisa a ideia das condições nas quais um vivente determinado (justamente por ser determinado...) se encontra, mas cuja determinação, por outro lado, não precisa ser circunscrita à ideia de localização. O autor quer frisar que a ideia mesma de situação pode comportar algo que ultrapassa a própria espacialidade e, por isso, reforçar aquela tensão dentro-fora que lhe é típica.

O exemplo é o do uso corrente da expressão “um homem em boa situação”. Neste caso, o que quer dizer não é que este homem está bem localizado, ou, mais diretamente ainda, não se trata, com aquela expressão, de afirmar que tal ser humano está, que ele está em um bom local. Embora algum engraçadinho possa até dizer que a expressão não exclui tal possibilidade interpretativa, costuma-se dizer que um homem está em boa situação, de modo geral, quando se encontra em uma condição privilegiada, de modo geral associada a uma espécie de sucesso na vida e, não raro, a expressão é associada ao sucesso financeiro7.

Ora, não se subverte o uso corrente enfatizando que tal sucesso financeiro é dito não só de pessoas, mas também de instituições que estejam bem. E isto para além do sucesso financeiro. Estar em boa situação parece ser o mesmo que dizer, em muitos casos, gozar de algum privilégio ou mesmo usufruir algum benefício – independentemente de tal

6 Ibidem, p. 131. 7 Ibidem, pp. 133-4.

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privilégio ou benefício passar por algum retorno material ou financeiro.

A partir dessa descrição, apresento eu mesmo outro exemplo que inverte a qualificação dos polos da tensão que Marcel procurou apresentar indicando o uso da expressão referente a um homem em boa situação financeira, mas não feliz: o caso de alguém apaixonado, correspondido, mas que está desfavorecido quanto ao dinheiro.

Também deste é possível dizer que está em uma boa situação. Seu círculo de amizade se congratula com ele por estar passando por esta (magnífica) experiência. Olhar nos olhos de seu amor e encontrar, neste momento, a devida reciprocidade, confirma-lhe a experiência e a justiça da congratulação daquele que lhe é próximo: “Estou, de fato, em uma situação privilegiada!” – nossa personagem pode suspirar para si mesmo ou para seu amor.

Tem-se aqui, por outro ângulo, aquilo que Marcel enfatizava em seu exemplo: é necessário pensar a determinação da concretude individual humana para além da localização espacial, e, mais ainda, que há, nisto tudo, uma dinâmica (ou tensão) própria entre a interioridade e a exterioridade como parte intrínseca do ser-em-situação. É possível estar em boa situação financeira (exterior) e não estar feliz (interior). O contrário também é possível. Pode-se estar amando e sendo correspondido neste amor, o que significa estar em boa situação “interior”, mesmo quando as condições materiais (costumeiramente entendidas como “exteriores”) são desfavoráveis.

Não pretendo, contudo, colocar a ênfase na possibilidade de que a situação possa ser vivida em certa dissonância entre a realidade interior e exterior que é própria da concretude individual humana. Menos ainda é minha pretensão enfatizar o aspecto ético-moral ou mesmo erigir juízos de valores que possam determinar ou precisar a boa ou a má situação dos exemplos supracitados. O que pretendi (e

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creio que esta também era a intenção do exemplo de Marcel) era indicar, através da possível dualidade experimentada pelos personagens dos exemplos (tanto o dele quanto o meu), a dinâmica-tensão entre (em meio, em simultâneo) o interior e o exterior como sendo própria condição mesmo do ser-em-situação (que somos).

Depois de mencionar seu homem em boa situação e, ainda, referir-se a outros exemplos8 que enfatizaram a situação como localização, tudo indica que Marcel pretende concluir que o dado interior é passível de “exteriorização”. O contrário também é verdadeiro. Ao menos em algum sentido, qualificar a situação é qualificar esta dinâmica-tensão mesma que é própria do ser-em-situação: “Tanto num caso como no outro, certas conexões que tendem, inicialmente, a serem julgadas como puramente externas se interiorizam, qualificam-se, por conseguinte; e da mesma forma, qualificam, por sua vez, certa maneira de ser ou de se sentir”9.

8 Acima apareceram dois destes exemplos: a pessoa que vive numa clareira entre as árvores ou em um vale entre as montanhas. Além desses, Marcel oferece mais dois. O primeiro, muitíssimo curioso, parece levar em consideração o momento histórico de alguns Estados e de alguns de seus cidadãos. O segundo, que é o que propriamente justifica esta nota, é o de um hotel do qual se afirma estar mal situado. Preferi não explorá-lo no corpo do texto por julgar que as demais citações dão conta da dinâmica-tensão interior-exterior que gostaria de pôr em relevo. Contudo, a passagem, parece-me, é um exemplo típico da reflexão que, muitas vezes é empreendida pelo autor para procurar esmiuçar e investigar aquilo que está perseguindo. No caso, a situação é entendida, por um lado, como localização, mas, por outro, que não pode ser apenas isso, pois, se o fosse, correr-se-ia o risco de ficar apenas em seu aspecto topográfico e/ou geográfico e não se atinar para outras dimensões encontráveis naquela concepção (Cf. Ibidem, p. 133). Alguns destes exemplos voltam a aparecer na sétima lição de O mistério do ser, I, que aborda, precisamente, este mesmo tema em tela. 9 Ibidem, p. 134.

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19.2 SITUAÇÃO FUNDAMENTAL E SITUAÇÕES LIMITES

Passo agora a explorar o outro capítulo de Ensaio de

filosofia concreta em que o tema aparece, a saber: Situação fundamental e situações limites em Karl Jaspers. Contudo, é importante frisar aqui que a exploração que terá lugar nas próximas páginas, assumirá contornos bastante próprios: logo após breve apresentação da estrutura do texto de Marcel, o que eu pretendo erigir aqui é um esforço próprio de compreensão a partir deste texto de Marcel, recorrendo, ali e acolá, a outras passagens do autor. Ter-se-á, então, mais do que uma verificação exegética do que o autor mencionou ou deixou de mencionar, uma espécie de interpretação e apropriação que deixa a cargo do leitor conferir suas “conveniências” ou “fidelidades”. Para respaldar desde onde estou realizando estas explorações, mencionarei as páginas a partir das quais o texto de Marcel me serviu de base. Digressão metodológica feita, avanço.

Situação fundamental e situações limites em Karl Jaspers está dividido em três partes numeradas (I, II e III), mas é possível ler ainda uma quarta parte que consistiria em uma análise conclusiva. Nesta última parte se lê algumas críticas às concepções que procurou deslindar. Na primeira, encontramos a análise de que sempre se filosofa a partir de uma determinada condição (situação) e que é isto mesmo a medida da possibilidade do próprio filosofar e, ainda, por essa mesma razão, é importante tarefa para a própria filosofia se ocupar desta situação-possibilidade. Eis aqui uma primeira aproximação do que o texto vem a nomear de “situação fundamental”. Fundamental tem duplo alcance. É, de fato, a base, o fundamento a partir do qual se vive. A partir dessa condição mais básica, pode-se afunilar (para) a tarefa do filósofo – repetindo: esta situação fundamental é também a base, o fundamento para o próprio filosofar. Contudo, fundamento também parece

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sugerir não só o dado do qual se parte, mas condição sem a qual é impossível o restante se seguir. Base inescapável, portanto – eis o que parece se configurar a partir da noção em tela10. Contudo, é mister destacar o aspecto dinâmico, processual desta situação, que nos ultrapassa como um fluxo. E aqui a reflexão de Marcel parece se ligar, por outro caminho, à citação do Diário metafísico que se referia à emoção e à história. A primeira, na medida em que também é uma espécie de repercussão ou ressoar daquilo que (se me) afeta (ou afeta a alguém, se se pretende entender o caráter geral da “emoção” – se é que isto é possível...), é também fluxo, dinâmica; é algo que, de alguma forma, passa por mim e que pode (ou não) ser por mim retido, analisado (em uma reflexão de segundo nível). A história, seja enquanto disciplina acadêmica, seja enquanto sucessão de fatos relativos à experiência do vivente humano, parece obedecer a um fluxo parecido: trata-se de um suceder (de eventos, de fatos, de experiências...). E aqui pouco importa se se fala do esforço por compreensão abstrata do “todo” ou da generalidade ou da vivência daquele que se encontra em meio ao turbilhão dos acontecimentos experienciados. No entanto – e eis a grave questão que se nos apresenta –, como se reconhecer como algo que é situado nesta espécie de entre que, como já vimos, é bem mais do que a localização espacial? Temos agora, sem dúvida, mais elementos para apreciar esta questão com mais profundidade. E, por isso mesmo, não é possível deixar de reter esse dado: ser-em-situação é ser em meio a fluxos11. A profundidade e o gigantismo destes pontos são verificáveis se retermos seus ecos na História da Filosofia, seja desde a pretensa dicotomia Heráclito-Parmênides, seja com a contundente análise humeana sobre o eu.

10 Ibidem, p. 328. 11 Ibidem, pp. 328-9.

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Despertar para minha própria existência é despertar para a situação em que fui “colocado”, “lançado” no mundo. Isto é, em uma realidade que, nalguma (ou muita?) medida não depende de mim, e com a qual tenho de, necessariamente, haver-me. Para compreender mais profundamente a mim mesmo (e, por conseguinte, minha situação – ou mesmo minha condição como ser-em-situação) devo explorar esse mundo que me ultrapassa (e, quiçá, em certa medida, explicar, ainda, minha relação com ele). Contudo, ao entender todos esses dados de minha situação não posso pretender como que uma espécie de “objetificação da realidade”, como boa parte da tradição filosófica epistêmica pensou a (dicotômica – e infrutífera...) relação sujeito-objeto. Também não pode se dar aqui a compreensão da relação homem-mundo onde se pretenderia simplesmente inserir a condição humana no espaço macro de uma cosmologia. Nesses dois casos, esquece-se (de focar n)o principal: o ser em situação, por conta dessa sua condição mesma, não pode nunca tratar sua relação com o real que o cerca como se fosse passível de ser construída “desde fora” tal como filósofos ou cientistas pretendem analisar seus objetos de investigação. Repetindo: o ser em situação está inserido necessariamente na condição mesma que ele pretende compreender. A (pretensa) objetividade científica deve ser entendida como situada, e nunca como se o examinador de um objeto qualquer estivesse num céu etéreo acima – superior mesmo! – do próprio examinado e pudesse desde tal lugar ou condição privilegiada simplesmente manifestar as verdades que atinge, afirmando-as sem nenhuma interferência situacional. Para além do problema da imparcialidade ou isenção científica, também está em jogo uma descrição própria da condição do vivente humano: o fato de que ele se encontra sempre situado12. Por

12 Ibidem, pp. 329-330.

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um lado, um binômio restritivo se me impõe: 1) não posso me compreender por completo a não ser desde minha condição histórica e objetiva (a respeito de minha origem, de onde vivo ou me encontro, das condições gerais sob as quais mantenho minha existência, e por aí vai), mas também 2) não me é possível dizer que, a partir disso – isto é, dessas configurações de minha situação –, eu possa compreender exaustivamente o mundo, a realidade que se me circunda. Por outro, aquilo que se configura como minha situação também se encontra, por seu caráter móvel, inserida em outro binômio: 1) participa do mundo do acontecimento, e 2) leva consigo uma livre decisão. Daí que se pode falar de certo ultrapassamento, de uma condição de transcendência que constitui o método de Jaspers (concepção que, parece-me, Marcel relê e reintegra à sua própria concepção filosófica), pois este seria uma espécie de lançamento na busca do ser para encontrar-me. Contudo, é interessante notar como o texto qualifica esta busca: trata-se de uma busca fracassada, pois nunca parte de uma idealidade ou de um em-si, mas sempre e tão somente – e é ilusório que poderia ser de outro modo... – de uma existência possível13. O sentido desta última expressão volta a ser destaque no texto, quando Marcel expõe o caráter triplo do termo “eu”: 1) um determinado “indivíduo empírico” – esta individualidade empírica também pode ser chamada “subjetividade objetivada”; 2) que há algo em comum com todos os outros que, de algum modo, também se identificam como “eus”, e que, ainda, conseguem inteligir os objetos como reais e universalmente válidos, uma espécie de “consciência geral”; e 3) a ideia de que posso me tomar como uma fonte possível de ações reconhecidas como minhas. Esse terceiro aspecto é que vem a ser coadunado com a expressão existência possível. Compreende-se, com isso, a existência de um ser que é

13 Ibidem, pp. 331-332.

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colocado diante de sua própria possibilidade e que em certa medida isto mesmo é a razão para que se exclua que nenhuma outra consciência – nem mesmo uma espécie de consciência em geral –, possa vivenciar ou escolher as possibilidades (de se fazer, isto é, de fazer de si...) que tem diante de si. A existência possível é uma espécie de rompimento do círculo que formariam o eu e o objeto tomados a partir das funções que os constituem. Círculo aqui pode ser entendido como um “circuito fechado”14. De outro modo: a tomada de consciência (de si) como existência possível, tão cara e fundamental à filosofia, faz com o que o eu e o objeto não sejam enxergados, cada um com sua função, com sua funcionalidade, mas integrados em uma situação que os inserem em uma dinamicidade orgânica que constitui certo todo que transcende, inclusive, a “imediaticidade” que as partes podem oferecer. Pensemos por um instante nas inúmeras tentativas de tomar o fragmento pelo todo... Funções, abstrações, descrições físico-matemáticas ou quaisquer tentativas reducionistas nesta direção... Essas podem no máximo sugerir. Diria, ainda assim, que estas sugestões devem ser bem entendidas como tais, isto é, estas sugestões devem ser cônscias de seu caráter parcial...

Sobre aquele tríplice aspecto do eu, abro caminho aqui através de outro texto de Marcel: as linhas iniciais do primeiro estudo de Homo viator. Dado o simbólico do título deste texto faço, questão de registrá-lo: Eu e outro, Moi et autrui. Ali tem lugar uma graciosa ilustração: uma criança colhe flores nos prados e as leva para a sua mãe dizendo: “Fui eu quem as colhi e lhas dou!”. E ainda acrescenta: “Não foi nem minha babá nem minha irmã menor, mas eu mesmo!”:

Evoco neste momento a criança que leva à sua mãe as flores que acabou de colher nos prados. “Olha – exclama

14 Ibidem, pp. 333-334.

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– quem colheu essas flores fui eu!”. Lembremos a entonação triunfal da criança e, sobretudo, o gesto, além disso, talvez apenas esboçado, que acompanha este anúncio. A criança designa a si mesma à admiração e à gratidão: “Fui eu, eu, aqui presente, que colhi estas flores esplêndidas; e principalmente não aches que foi minha babá ou minha irmã que o fez; fui eu, eu e ninguém mais”. Esta exclusão é aqui capital: parece que a criança quer atrair sobre si a atenção quase materialmente, o elogio extasiado, que se extraviaria na forma mais lamentável do mundo se o elogio se dirigisse a outra pessoa, totalmente desprovida de mérito na ocasião. A criança se designa assim, oferece-se ao outro para receber dele um certo tributo. Eu creio que não seria demais insistir acerca da presença do outro ou, mais exatamente, dos outros, que está implicada nesta afirmação: “Sou eu aquele que...”. Há, de uma parte, os excluídos em quem tu deves evitar pensar; e há, por outra parte, esse tu ao qual a criança se dirige e que ele toma como testemunha. [...] Prosseguindo nossa análise, constatamos que esse eu, aqui presente, considerado como centro de magnetização, não se deixa reduzir a um conteúdo especificável que seria “meu corpo, minhas mãos, meu cérebro”; é uma presença global. Presença glorificada pelo magnífico buquê que eu colhi e que eu te trago; e eu não sei se tu deves admirar mais o gosto do qual a criança é testemunha ou a generosidade da qual eu faço prova ao oferecê-lo a ti – eu que poderia muito bem guardá-lo para mim. É assim que a beleza do objeto reflete em certo modo sobre o eu, e se eu faço apelo a ti, novamente é como clamar por um testemunho qualificado que eu convido a se maravilhar sobre o conjunto que formamos o buquê e eu. Porém, não deixemos de observar que esse maravilhamento que espero de ti, que tu me deves, não pode senão vir a confirmar e exaltar a satisfação que experimento ao reconhecer meus próprios méritos. A partir disso, como não chegar a esta conclusão que esse eu aqui presente implica, ademais, uma referência ao outro,

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porém a um outro tratado como ressoador e como amplificador do que se pode chamar minha complacência comigo mesmo?15

15 Homo viator. Ibidem, pp. 15-17. Acima, quando o foco era a ideia de localização e seu “ultrapassamento” a partir da expressão “situação”, destaquei como Marcel se vale de exemplos cotidianos ou mesmo do uso corrente da linguagem para procurar explicitar certos pressupostos que, de modo geral, estão assumidos – ainda que irrefletidamente – no modo com que nos expressamos. Aqui esta capacidade exploratória de Marcel também se faz sentir. O trecho omitido e a sequência da citação trazem mais duas ilustrações que, neste contexto, visam explorar a relação “eu-outro”, como o indica o título mesmo do estudo em tela. O registro aqui vale para que o leitor possa ter contato, por outro viés, com aquela capacidade exploratória do autor: “Esta mesma afirmação feita por um adulto se fará de maneira menos clara; ela se envolverá de um halo de falsa modéstia no qual é possível reconhecer o jogo complexo da hipocrisia social: imaginemos um compositor amador que acaba de cantar em um salão uma melodia desconhecida; diz-se: ‘Mas de quem é isto? Seria uma melodia desconhecida de Fauré?’, etc. ‘Não, é minha, sou obrigado a confessar que...’, etc. Se deixarmos de lado, como é necessário, esta orquestração onde as conveniências sociais estão atuando, reconhecemos a identidade fundamental do ato. A diferença se baseia apenas na atitude adotada ou simulada em relação ao tributo esperado” (Idem, p. 16). “Um pequeno desconhecido estende a mão para apanhar uma bola que eu deixei rolar por terra: eu me insurjo – esta bola é minha. Aqui, ainda, a referência ao outro é fundamental, mas ela toma forma de imperativo: proibido tocar. Não se deve é hesitar em dizer que a experiência da propriedade imediatamente afirmada é, para nosso propósito, uma das mais significativas que se apresentam. Também aqui eu me produzo, eu advirto ao outro para que oriente sua conduta de acordo com a notificação que eu lhe dirijo. Além disso, poder-se-ia observar sem excesso de sutileza, que a experiência da propriedade já estava implicada nos exemplos precedentes, propriedade de um mérito no lugar de uma coisa. Mas agora, mais claramente que antes, o ‘eu’ aparece como presença global e inespecífica: eu, aqui presente, possuo esta bola; talvez eu consinta em te emprestar a bola por alguns instantes, porém, saiba bem que sou eu quem te empresta generosamente a bola e posso, por conseguinte, retirar a bola

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Ora, o eu como indivíduo empírico, tomado como “subjetividade objetivada” está dado na condição do agente: uma criança, que possui mãe, aquela mãe específica a quem ele se dirige e lhe entrega o presente; ele esteve no campo há pouco, uma babá cuida dele, ele tem uma irmã menor, etc. O segundo aspecto pode ser visto na distinção, feita pela criança, entre as flores e todo o restante que estavam no campo em que foram colhidas. E, por fim, temos a compreensão de que há uma integralidade entre o eu, os “objetos” que o circundam (as flores, o campo, o caminho percorrido pela criança até sua mãe...), e mesmo entre os demais – que não são os autores da ação pela qual ele quer o reconhecimento (a babá, a irmã menor) ou ainda a pessoa que ele quer que o reconheça como autor da ação (a mãe). A ênfase no exemplo da criança está na referencialidade do outro como constitutivo fundamental do eu como que ilustrando que só é mesmo possível me afirmar enquanto eu porque me encontro em meio, em relação ou tendo a algum outro por referência. Contudo, as duas primeiras dimensões do “eu” percorrem largo caminho na História da Filosofia, tendo vindo à tona já com Aristóteles. É possível interpretar que, de alguma forma, os dados objetivos relativos ao sujeito empírico estão – pelo menos entrevistos – no binômio substância-acidente(s). Afinal, os acidentes são aquilo que vem a se acrescentar e ficar juntos (symbebekós) a uma substância (aqui o latim é claro: subjectum), “ao que está embaixo”, pronto, apto para receber os dados que lhe são acessórios, e que descrevem, em boa medida, o caráter objetivo daquele indivíduo, daquele subjectum, daquele sujeito. Por sua vez, o caráter de consciência geral é melhor percebido não pela descrição destes dados, mas sim da psyqué, própria, comum a todo subjectum. E daí passamos da condição geral do que Aristóteles chamou ora de “metafísica”, ora de

de ti de um segundo para outro se tal for o meu bel prazer. Eu, déspota; eu, autocrata” (Idem, pp. 17-18).

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“física” (dependendo, justamente, dos objetos investigados...) para o domínio de sua “psicologia”. Esta última tem por objeto o que há de comum como “consciência geral” (o termo aqui só funciona com – muitas?... – aspas), ou melhor (para distorcer menos o estagirita...), o estudo dos dispositivos psicológicos que somos enquanto seres humanos em geral, como uma espécie de “eu abstrato e genérico”. É isto que desemboca neste mesmo tipo de estudo a compreensão de que é possível estudar as condições gerais para o conhecimento (humano). Muito poderia se multiplicar aqui, ao longo da História da Filosofia – ou mesmo das Ciências e da Psicologia como disciplinas do pensamento autônomas em relação à Filosofia – os exemplos de pensadores que julgavam descrever objetivamente o subjectum ou a percepção deste como consciência geral para circunscrever tais descrições como definições do eu. A “aparição” ou a tomada de consciência daquela terceira dimensão – a do eu como existência possível que só pode ser compreendida desde que inteligida como ser-em-situação –, Marcel atribui à contemporaneidade.

Em um significativo trecho de Os homens contra o homem, o filósofo francês afirma que não pode haver filosofia hoje sem que haja uma análise fenomenológica da situação fundamental do homem. Pois bem. Na sequência ele enumera os autores alemães contemporâneos que viram tal necessidade, tal dever: Scheler, P. Lantsberg, Jaspers, Heidegger:

Não pode haver hoje filosofia sem uma análise de essência fenomenológica sobre a situação fundamental do homem. Foi o que viram, mais claro que seus predecessores, os melhores entre os pensadores alemães contemporâneos, um Scheler, primeiro, depois um P. Lantsberg, mas também um Jaspers e um Heidegger16.

16 MARCEL, G. Os homens contra o homem (HCH), Ibidem, pp. 107-108.

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Certamente, ele mesmo está na linha de frente dessa tarefa filosófica da contemporaneidade. O Diário metafísico é de 1927, mesma data de Ser e Tempo. Se não cita a si mesmo, deve ser por modéstia ou porque só quis enumerar os alemães...

A citação acima exige desse percurso investigação uma digressão para que a ideia de uma “filosofia situada” fique mais clara e venha a enriquecer o tema principal em tela. O contexto da passagem é uma reflexão sobre o problema de um existencialismo que se desarticule toda concepção metafísica da essência”; mas também aquela sobre a impossibilidade de adesão a um “essencialismo” de cunho escolástico, porque esse deixa de lado a noção de intersubjetividade17. Uma filosofia situada deve fugir, seja do sartrianismo (que, a partir da morte de Deus, pretende se negar a qualquer possibilidade de postulação filosófica das essências), seja de qualquer essencialismo de cunho escolástico (como é o caso de certo tomismo)18. Contudo, essas duas perspectivas filosóficas contribuem com algo para aquilo que é a tarefa da filosofia atual: deve-se procurar partir da subjetividade (como o existencialismo sartriano o faz), mas também levar em consideração as essências (como o faz a escolástica, mesmo a contemporânea)19. Ora, o que a

17 Ibidem, p. 102. 18 Temas que não aparecem tanto em O existencialismo é um humanismo, de Sartre, como em Sete lições sobre o ser, de Maritain. A escolha deste representante da “escolástica contemporânea” para ilustrar o ponto em tela se encontra perfeitamente justificada, creio, na nota seguinte. 19 Marcel sempre fez questão de frisar as diferenças entre sua concepção filosófica e as de Sartre e mesmo de certo tomismo contemporâneo. Em HCH, isto aparece com bastante força e clareza. Várias são as passagens em que, ali, apresenta os equívocos da posição de Sartre e insinua que as posições deste podem mesmo ser movidas por algo em torno do fanatismo. Para mencionar brevemente suas reservas quanto ao tomismo contemporâneo, creio que basta citar seu contundente parecer, neste

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passagem sugere é que as filosofias que partem da noção de situação fenomenológica cumprem essa dupla exigência20. Marcel parece aqui se afiliar a esta concepção filosófica por possuir alguma familiaridade ou parentesco que seria expressada na coincidência de vários aspectos temáticos e de mesmo de certos traços de seus desenvolvimentos21. No entanto, não obstante essa afiliação, o francês é cônscio das especificidades de seu contributo filosófico para esta discussão, pois assim que o tema é introduzido ele apresenta um traço (já insinuado acima) dessa situacionalidade da qual deve partir o trabalho atual do filósofo que nenhuma outra filosofia de seus louváveis contemporâneos evidencia tanto quanto nosso autor: a intersubjetividade.

É a partir da situação que se entende qual o lugar do filósofo na atualidade: no mundo e fora dele. Mas isto não é próprio apenas do filósofo profissional: é uma dualidade paradoxal presente na atitude filosófica de quaisquer pessoas que assim se dispuserem. Diante do que o mundo atual está erguendo contra o humano, não se pode simplesmente se colocar em marcha com a boiada: a atitude reflexiva, de quem quer que seja, pode mesmo ser lida como uma espécie de contestação, contraposição, e mesmo denúncia e clamor para

mesmo texto, a respeito de um de seus maiores expoentes: “Quando Jacques Maritain afirmava que é possível em rigor ser católico sem ser tomista, mas não é inteligente, a afirmação é de um fanático puro e simples” (Ibidem, p. 134). 20 Além dessa dupla exigência, uma “filosofia situada” é caracterizada pelo seguinte reconhecimento e exploração: “a essência do filósofo que pretende pensar a vida e sua vida é reconhecer a situação, explorá-la quanto possível, sem esperar atingir o conhecimento exaustivo a que se presta o objeto da ciência” (Ibidem). 21 Para compreender melhor as dificuldades e mesmo a originalidade de afiliação de Marcel face à fenomenologia contemporânea, indico dois textos de um de seus mais eminentes alunos: Gabriel Marcel e Karl Jaspers: philosophie du mystère et philosophie du paradoxe e Gabriel Marcel et la phénomenologie, de Paul Ricœur.

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que novas rotas possam aparecer no horizonte atual do mundo. Essa atitude filosófica aparece, por um lado, como a própria situacionalidade: desde o mundo, pois é sempre desde a situação que se filosofa e se realiza qualquer agir humano; mas, por outro, essa mesma atitude filosófica situada é também uma repulsa da própria situação do mundo atual tal como ele está a se constituir diante de nossos olhos, justamente porque o filósofo (autêntico) percebe que o próprio humano está se degradando e, diante disso, não lhe é possível se colocar em marcha com a boiada – e eis o cerne mesmo do paradoxo da atuação do filósofo atual: “Nessa perspectiva, é fácil compreender que o filósofo está ao mesmo tempo no mundo e fora do mundo, e esta dualidade paradoxal está envolvida na sua própria condição; isto não e só verdadeiro do filósofo titulado mas de quenquer que se esforce por adotar uma atitude filosófica”22.

Retomando. O existir ou a existência possível é identificável com o ser-em-situação. Ou, mais ainda: só é possível se referir à existência se ela é entendida como ser-em-situação. Tal situação não pode prescindir da relacionalidade que lhe é intrínseca. Existir é ser com outros seres. É coesse. E não só é ser-com-outros-seres, mas também é estar submetidos, com eles, à dinâmica da duração. Dividimos, pois, a temporalidade e é nela que nossa existência (con-junta) acontece. A duração, contudo, manifesta-se como ocasião para que eu possa exercer minha capacidade de escolha, de decidir, de eleger possibilidades de, enfim, fazer-me acontecer23. Note-se, pois, a importância que a temporalidade adquire aqui. O tempo é o lugar da realização do Eterno, na medida em que é apenas nele que me uno àquilo que ultrapassa a minha própria temporalidade24. Além disso, é no

22 Ibidem, p. 108. 23 MARCEL, G. Essai de philosophie concrète. Ibidem, p. 339. 24 Ibidem, pp. 339-340.

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tempo que me é possível ultrapassar minha própria existência, seja pelas conexões que me (re)ligam aos demais e a tudo aquilo que está em minha volta, mas também porque, repetindo, apenas assim, nesta situação, minha própria existência pode, enquanto tal, fazer ou adquirir sentido ou, ainda, ser portador de algum sentido. Apenas no tempo (e é realmente impossível situar-se fora dele ou mesmo pensar qualquer coisa fora dele) é que posso constituir a existência que sou. Ademais, a historicidade ganha contornos ainda mais existenciais na medida em que a existência possível que sou não pode prescindir nunca nem de minha história, nem de minha origem. Negar minha origem é suicídio espiritual. Porque sou situado, porque sou ser-em-situação, sou temporal, sou no tempo. Meu início no tempo é minha origem. E aqueles que se me lha deram (meus pais) constituem, comigo, parte intrínseca desta minha existência possível com a qual, quer eu queira, quer não, formo uma espécie de comunidade (virtual ou efetiva) cujos participantes estão ligados pelo fato mesmo de existirmos; ou, de outra forma: através de nossas próprias existências. Existo porque eles me transmitiram existência. Formulando de uma terceira maneira: minha existência me foi transmitida por eles25.

Com isto voltamos, por outro ângulo, àquela já mencionada ambiguidade radical que está implicada na ideia mesma de ser. Por mais que eu tente apreender a ideia universal e atemporal de ser, nunca posso fugir da própria condição em que parto para exercitar meu pensamento por este caminho. Pensar o ser é sempre pensar desde um ser determinado (o ser – em-situação – que sou) e/ou sempre pensar em um ser determinado. O exercício de abstração que levou a ontologia clássica (desde Parmênides?...) a pensar o “ser em geral” nos ofereceu não só a identificação entre pensar e ser – pois, o primeiro parece desejar fixar a

25 Ibidem, pp. 354-355.

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mobilidade (no segundo) –, mas também a desacreditar o fluxo por temer o caos. A experiência pode facilmente nos fazer identificar algo que permanece, não obstante os fluxos que perpassam (as coisas e nós). Enquanto redigia este texto, o computador manteve mais ou menos a mesma funcionalidade que dele espero baseada em experiências anteriores (ele não está muito bom das pernas...); e eu mesmo estou conseguindo escrever e respirar... meu humor nem sempre esteve lá estas coisas... e foi desde aí que procurei filosofar e a fazer, em certo sentido, metafísica, ontologia, tentando pensar e refletir que não pode ser de outro modo que aquela pretensão de atingir o “ser em geral” se dá. O existir não é “objetificável”26. E se quisermos falsear o problema pretendendo algo como uma “ontologia geral” que pense o “ser em geral”, é bom nos darmos conta de que esta pretensão é dada de saída ao fracasso. Ou, dito de outra forma, para recuperar uma reflexão posta anteriormente sobre as concepções científicas do mundo: um tratado sobre o “ser em geral” não pode mais que oferecer sugestões (ou mesmo perspectivas) desde as quais posso inteligir certas pistas abstratas. Mesmo através desse viés é-nos impossível dizer o real (o ser) em sua inteireza. – A ontologia se pretendeu, por um bom tempo, ciência em sentido forte.

Entretanto, não se trata de modo algum de menosprezar o papel do conhecimento científico. A menos que “menosprezar” signifique “prezar menos” ou “prezar por menos”. Não é raro encontrarmos ainda hoje pretensões científicas que se pretendam (acima de si mesmas...) dar conta da totalidade do real e de maneira cabal. É neste sentido que a ciência e seus atores devem prezar por menos... Mas é justo dizer que o resultado obtido ao prezar pelos objetos que lhe são próprios tem relevante papel no que tange às possibilidades de leituras sob o “funcionamento” de certos

26 Ibidem, pp. 341-342.

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aspectos da realidade. Tais resultados contribuem, de muitas formas, para que tenhamos uma vida melhor. No entanto, faz-se necessário ter presente que a própria ciência e seus resultados também estão em situação. E é apenas em meio a esta situacionalidade que podemos erguer e constituir nossa existência, que com frequência colide com as próprias situações que nos acometem e que são postas pelos mais variados aparatos e esquematismos que a própria ciência por vezes ajuda a constituir enquanto um dos elementos que influem e circundam minha atuação. A ciência e as explicações esquemáticas de inúmeras ordens são sempre situadas. É possível pensar tal caráter situacional através dos seus aspectos históricos, mas também através dos aspectos existenciais (situacionais) de seus agentes, de seus atores. Por óbvio, isto não significa que estes aspectos sejam imodificáveis (isto seria dizer que a história não muda...). Pelo contrário, isto apenas explica que há sempre um caráter dado, situacional que está em meio às possíveis modificações que pretendemos transferir à realidade ou mesmo à forma com que queiramos que aqueles que dividem conosco esse tempo histórico ou mesmo o espaço sociopolítico que habitamos percebam o real. Propor uma nova configuração nessa rede de relações é propor um novo entrelaçamento entre os pontos e os fios. Modificar isso é modificar a rede: pontos e fios, entrelaçamento, ligação entre esses aspectos que a constituem se modificaram. A rede passa a ser outra. A situação é outra. Mas uma coisa é certa: não se escapa à situação. Outra situação, mas ainda alguma situação27. O pretenso “salto” para alguma universalidade que me permita observar o geral para além da minha situação é um exercício abstrativo quimérico, fantasioso – é ficção28.

27 Ibidem, pp. 347-348. 28 Ibidem, pp. 352-353.

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A História, A Ciência, os padrões culturais podem ser ditos “exteriores”, alheios, “fora” de mim, mas quer queiramos ou não eles “moram”, em alguma medida, em nós. Muitas vezes, contra nós. Exemplo: imaginemos uma pessoa da qual sabemos da boa índole e ainda atestaríamos que procura de bom grado e de boa fé se manter consciente e mesmo (auto)vigilante a respeito dos inúmeros casos de pré-conceitos que a circunvizinha. Não seria totalmente surpreendente, porém, se ela se traísse emitindo um juízo ou reproduzindo alguma expressão qualquer que esteja impregnado de algum tipo de depreciação para com algum grupo social. E, mais ainda, não parece ser totalmente impossível que, diante de algum esclarecimento sobre o fato de que certos juízos prontos ou expressões correntes em nossa língua que são repetidos por aí sem a devida carga crítica se referirem a atribuições pré-conceituosas, nosso personagem pudesse, sinceramente, exclamar: “Puxa! É verdade!? Não sabia!...” Ou ainda: “Nunca tinha pensado nisso!...” Situação exterior: cultura pré-conceituosa; situação interior: estamos impregnados dela. Situação: interior-exterior, a um só tempo. Ressalva importante – aqui parece que estamos em uma espécie de movimento que indicaria algo como “o exterior influencia o interior”. E para fugirmos disso poderíamos pensar em alguém insatisfeito consigo mesmo ou com o tipo de vida que leva e que procura outro emprego. Inverteríamos, portanto, a formulação do clichê, mas não fugiríamos do lugar comum. O ponto crucial é realmente esse: a situação é, a um só tempo, interior e exterior; mas não uma após a outra, ou, menos ainda, uma por causa da outra; e sim, simultaneamente, uma e outra. Nascemos com um fenótipo genital; nossos olhos e cabelos aparecem com uma determinada coloração; temos uma altura e um peso determinado. Podemos dizer que estas condições materiais podem ser alteradas em alguma medida, mas é sempre a partir delas que podemos alterá-las. Troca-se de fenótipo. Muda-se o

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cabelo e os olhos. São estabelecidos hábitos que, via de regra, fazem com que se obtenha determinada altura até o início da idade em que somos considerados adultos. A alimentação e os hábitos influenciam demasiadamente no peso que se tem. Contudo, por favor, mais uma vez: não se confunda aqui esses “dados materiais” com aspectos exteriores da situação. O modo com que me experimento em relação a todas essas realidades é “interior”. Repetindo: isso tudo é, a um só tempo, exterior e interior, interior e exterior. A repetição com a inversão dos termos visa indicar que não há primazia de um polo sob o outro29.

Ademais, existir parece se ligar à execução de uma tarefa – pôr em marcha a minha existência – indelegável, intransferível. E, além disso, uma vez que só eu posso realizá-la, viver é mesmo algo único, apenas eu, de modo único e próprio, posso vivenciar esse meu existir. É-me impossível viver ou existir por outro. Da mesma forma com que é(-me) impossível que outro viva ou exista por mim. Minha satisfação frente ao real e, sobretudo, frente a mim mesmo passa por assumir as régias, por mim mesmo, de minha existência. Passa ainda por saber que ninguém além de mim pode viver-me, ninguém além de mim pode se engajar ou mesmo me engajar pela responsabilidade de fazer-me (ou de me fazer existir, se se preferir)30. Importante frisar: esta situação está diretamente ligada à atuação na situação em que me encontro. Ao invés de partir de condições ideais tomadas como metas que ainda têm não lugar, utópicas (e/ou distópicas?...), e lamentar que elas estejam mesmo muito longe de serem atingidas ou mesmo que sejam inatingíveis, corre-se menos risco de frustração ou mesmo de um embate irreal com a realidade a tomada de consciência da própria situação como ponto de partida efetivo do qual devo projetar minha existência e ação. Qualquer

29 Ibidem, p. 353. 30 Ibidem, p. 335.

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projeto pessoal ou político (na medida em que seja possível tal distinção...) encontrará mais chances de ser efetivado se procurar atuar não só desde a situação, mas também na situação31.

Até aqui, procurei enfatizar a tensão interior-exterior presente na condição do ser-em-situação. A historicidade da situação foi tema explorado, mas ele precisa ser revisitado agora para que possa ser unido, por um outro ângulo, à morte de Deus.

19.3 HISTORICIDADE E PERMEABILIDADE DA SITUAÇÃO, SEGUIDA DE UMA NOTA CONCLUSIVA

Segundo Marcel, a excessiva flexibilidade sintática da

linguagem utilizada por Jaspers faz com que muitas das afirmações deste último sejam ambíguas, o que, por sua vez, é mérito e insuficiência diante da linguagem filosófica francesa. Contudo, tal dificuldade não é permissão para se acomodar, mas, antes, parece exigir um esforço de compreensão de outra ordem32. Exemplo dessa linguagem ambígua é, justamente, a relação entre “historicidade” e “existência”. Uma vez que me movo no plano da existência possível, reconheço o caráter profundamente histórico de minha situação. Tenha-se presente aqui a indissociabilidade já mencionada entre “existência possível” e situação. Esta última é histórica no sentido jasperiano de Geschichtlich, compreendido como a historicidade mesma de minha própria situação. Geschichtlich se refere, pois, à minha história pessoal, à minha biografia. A historicidade de minha própria situação comporta ser um determinado indivíduo, pertencente a uma certa família etc. Trata-se, pois, de minha situação histórica exclusivamente pessoal, irrepetível, insubstituível. Histórico

31 Ibidem, p. 354. 32 Ibidem, p. 337.

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no sentido de tempo ou fato histórico, relativo à sucessão de eventos, ou à época em que se vive, corresponde o termo usual historisch (adjetivo). Historisch está, pois, ligado a certa condição geral. Citando o próprio Jaspers:

No plano da possível «existência» apreendo a historicidade de minha existência que, desde a mera diversidade das realidades cognoscíveis, converte-se na profundidade do existir. [...] Quem quer a justa organização do mundo para sempre não quer nada, mas sim aquele que, em sua situação «histórica» (Geschichtlich) aprendeu o possível como ser33.

À tomada de consciência de sua própria historicidade,

que acontece num plano originalmente pessoal, corresponde o termo Geschichtlich. A tomada de consciência da historicidade de minha situação (Geschichtlich) leva também à tomada de consciência de certo vínculo comunicacional com os demais (selbstein) e, ainda, de certo caráter único das situações e dados temporais em que me encontro (einmalig)34. Daí a natureza imprescindível, tanto dos demais para a constituição da minha existência possível, como também para todo e qualquer salto na direção do mais além dos dados objetivos que constituem minha existência empírica. É impossível estar situado fora da existência empírica; e é sempre a partir dela que compreendo a mim mesmo e o real que me circunda. Contudo, é na direção do mais além da existência empírica que se situa a “exigência de transcendência” que Marcel parece enxergar já em Jaspers. Sempre se parte do dado, ainda que esse dado seja fornecido

33 JASPERS, Karl. Filosofia, I, p. 16. 34 Esses aspectos aparecem reinterpretados em um texto bem posterior: “Há um sentido em que todos somos seres históricos, isto é, vivemos depois de outros seres de quem recebemos muito, e isto de tal forma que nós podemos até nos opor a eles; mas também vivemos antes de outros seres que se encontram lugar, com relação a nós, em uma situação similar à que ocupamos em relação a nossos antecessores” (MARCEL, G. O mistério do ser, II, p. 9).

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pelo real em e por mim. Mas isto, ao que parece, não me é suficiente ou, dito de outra forma, está-me aquém e, por isso, exige-me mais – exige-me transcender os dados empíricos fornecidos por certa dimensão de minha existência. Ora, a situação dramática e histórica do homem contemporâneo se encontra marcada (ou mesmo dilacerada) pela morte de Deus. Pode-se ignorar ou mesmo dar de ombros a isso e pretender erguer uma teodiceia vazia de sentido para a atualidade35. E este parece ser o caso daqueles que continuam a pretender erguer edifícios conceituais para se referir a Deus e ou mesmo a relação entre a divindade e os seres humanos. Marcel, reconhecendo a insuficiência deste discurso, está propondo nova abertura e dinâmica para esta relação. A teodiceia fracassou. Tal fracasso convoca a uma atividade livre que possibilita tanto o desafio como o abandono de si. Desafio, trampolim 36 37.

Interessa aqui ter presente a análise conclusiva do texto, a fim de apresentar a hipótese e a chave interpretativa que terá lugar na sequência. Ela constata que a posição de Jaspers sobre a existência leva a uma rejeição do canônico e da ortodoxia e que isto expressa uma espécie de recusa radical do ontológico como tal. Diante desta recusa, Marcel apresenta duas possibilidades: 1) sancioná-la ou 2) denunciá-la como perversão profunda da razão. Enveredar pela primeira leva à dificuldade de encontrar na atualidade (1933) pensamento mais profundo, flexível e hospitaleiro. A segunda deve levar à

35 Mounier, em texto citado na bibliografia que consta deste artigo, apresenta uma interessante leitura da condição dramática da morte de Deus em Marcel. 36 “Em seu volume sobre a transcendência, Jaspers assinalará como o fracasso da teodiceia se transforma numa chamada a nossa atividade livre que guarda em si a possibilidade do desafio e também, o contrário, a do abandono de si” (MARCEL, G. Essai de philosophie concrète, p. 261) 37 A ideia de desafio e trampolim também aparece em O homem problemático (Primeira parte) ao mencionar o que pode estar no horizonte da morte de Deus.

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revisão de todas as posições de Jaspers e a lhe acrescentar algo que lhe transfigure38. Pois bem. Qual desses caminhos Marcel parece ter adotado para si? Penso que a resposta é: os dois, parcialmente. E, por isso, nenhum dos dois, exatamente. Evidencia certo julgamento favorável a Jaspers o tom elogioso que a descrição de Marcel adquire desde o início de sua exposição, e mesmo o modo tateante com que lhe tece algumas ressalvas na conclusão. Ademais, essa disposição elogiosa para com Jaspers como um importante desbravador contemporâneo que necessita da devida atenção para a tarefa atual da filosofia aparece em outros textos, um deles já mencionado neste desenvolvimento, inclusive. Contudo, Marcel assume para si a necessidade de espraiar o desenvolvimento da ontologia, mas, entendo, o motivo pelo qual o faz não é porque vê em sua “recusa do plano ontológico como tal” uma “perversão profunda da razão”, mas sim porque lê no alemão um caminho aberto para trilhar, a partir de Jaspers, um percurso próprio. Em suma, Marcel é devedor da noção jasperiana de existência como ser-em-situação que procurei apresentar (até) aqui, mas o francês apresenta um desenvolvimento (ontológico) próprio. Explico.

Ao revisitar a noção do ser humano como ser em situação em lição homônima publicada em O mistério do ser, Marcel traça um desenvolvimento próprio e, por conseguinte, bastante independente de Jaspers. Iniciando pela noção de contemplação como “recolhimento em presença de”, mas se

38 “A posição de Jaspers quanto à existência tende inevitavelmente a lhe fazer rejeitar qualquer ideia do canônico e da ortodoxia, e isto mesmo é apenas expressão sobre o plano especificamente religioso de uma espécie de recusa radical do ontológico como tal. Estamos aqui no ponto crucial e com isso concluirei. Penso que se essa recusa é sancionada, será difícil encontrar hoje em dia um pensamento mais profundo, mais flexível e mais hospitaleiro que o de Jaspers; penso também que se aquela recusa é denunciada como uma perversão profunda da razão, é-se levado a revisar todas as posições de Jaspers e a acrescentar à grandiosidade de seu pensamento outra dimensão que transforme totalmente a figura” (Idem, pp. 375-376).

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apressando em matizar uma identificação entre recolhimento e interioridade, a conclusão do filósofo é que o recolhimento permite transpor para uma esfera que em algum sentido é “transliminal” a oposição mesma que não raras vezes se costuma atribuir à noção de experiência. No recolhimento, volta-se para si. E este para si é mesmo a própria situacionalidade revista, repensar, refletida, recobrada; é um entrar em si mesmo que permite olhar a situação por outro ângulo, mas nunca é deixar de ver-se implicado na própria situação. Esse “deixar de ver-se implicado” faria com que o recolhimento se tornasse abstração, uma vez que esta última é sempre “abstrair de”. Ora, se estamos diante da reflexão, isto é, se diante de um voltar-se para si mesmo, tal atitude implica como que uma contradição performática na medida em que aquilo de que pretenderia abstrair é justamente aquele que está implicado na atitude mesma que se quer efetivar. O recolhimento autêntico é cônscio desta dinâmica e assume que é mesmo somente desta forma que a atividade reflexiva pode ter lugar. Trata-se, pois, de assumir nossa situacionalidade na errância e itinerância que lhe é própria, assumindo, inclusive, que as circunstâncias nas quais me encontro são partes próprias das experiências que me constituem enquanto ser (-em-situação). O papel da reflexão, então, pode mesmo ser potencializado com a capacidade de admiração que permite uma atitude criativa e mesmo espiritual perante as próprias circunstâncias e as realidades com as quais (necessariamente) interajo. Neste contexto, a noção de “encontro” adquire especial vigor, na medida em que ela possui uma espécie de índice existencial e, também por isso, não pode ser restrita às meras condições objectuais que configuram a esfera da técnica, da ciência, do problemático, enfim, desculpem o pleonasmo enfático: as meras condições da objetividade e/ou da objetivação. Quanto ao primeiro ponto, é mister recordar o que Marcel afirma em outra obra: “o encontro só interessa à pessoa enquanto pessoa; não é universalizável, não concerne ao ser pensante

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em geral”39. Quanto ao segundo, cabe indicar que é no desenvolvimento criador que o encontro adquire toda potencialidade que lhe é própria, uma vez que, a partir deste desenvolvimento, as existências envolvidas no encontro podem (sempre…) ressignificá-lo e atribuir-lhe, criativamente, a importância e a fecundidade (que lhe é) devida. Mais que isso: é mesmo esta atividade criativa e, enquanto tal, espiritual, que a vida mesmo (longe das objetificações biológicas, mas assumida em seu vigor existencial) pode ser dita como que realmente vivida. O contrário disso é mesmo uma espécie de não-vida40. Na possibilidade de realização da criatividade da própria existência é que se constitui a dignidade própria da vida. Ademais, no seio da íntima relação entre criação e encontro que pode vir à luz a ideia de uma espécie de realização efetiva desta criatividade na direção de uma comunidade. Contudo, mais do uma perda da “identidade pessoal” no bojo de um “todo amorfo” – perigo que Marcel se esforça por denunciar como um dos maiores males do século XX41 –, o que está em jogo nessa realização efetiva, nesse desenvolvimento é um certo (auto) reconhecimento que, tendo origem em um recolhimento, isto é, num voltar-se sobre si, experimenta-se como uma necessidade de responder criativamente a uma espécie de chamado que advém da tensão dentro-fora que constitui nossa situação mesma.

Por tudo o que foi exposto, resulta impossível definir (o que é) a situação. Cabe, pois, a tarefa de, a ela, aproximar-se concretamente. Sem negar os dados objetivos inerentes à

39 MARCEL, Posições e aproximações concretas ao mistério ontológico, p. 270. 40 Uma associação entre uma espécie de “aposentaria da vida” e a ideia de exorbitação da ideia de função explorada na obra mencionada da nota anterior pode, estou certo, gerar uma rica e profunda reflexão que, infelizmente, não posso mais do que sinalizar agora (explorá-la seria ultrapassar (e muito) o escopo do que me propus aqui). 41 Tema central da obra Os homens contra o homem.

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minha situação, mas ciente de que, entre outros motivos já mencionados, por ser minha e por ser situação, ela nunca está totalmente contida nesses dados objetivos, importa concluir que a situacionalidade é mesmo uma espécie de “exposição a”, “abertura a…” Desta forma, é possível caracterizar a situação como permeabilidade. Esta caracterização aponta a situação mesma como uma espécie de incoesão, mas é mister notar que isto não é um defeito, deficiência ou qualidade negativa:

Se o vivente, porque está em situação, está exposto às influências, isto, na verdade, equivale a dizer que é, em algum grau, permeável. [...] A permeabilidade, no sentido mais amplo, está, sem dúvida, ligada a um certo defeito de incoesão, ou, se se quer, de inconsistência. [...] É possível pensar, com efeito, que, malgrado as aparências, o termo incoesão corresponde verdadeiramente a alguma coisa que poderia também ser expressa de maneira positiva: e, inversamente, a coesão que é aqui visada através de seu contrário pode ser olhada como uma qualidade negativa42.

Esta condição indica uma espécie de mútua influência

do interior ao exterior e vice-versa, e, em simultâneo, algo como uma fluidez mútua. Coesão indica tentativa de fechamento. Incoesão, abertura. Tal abertura, acompanhada de uma “atitude espiritual”, permite a receptividade aos demais e àquilo que me cerca de maneira profunda e crítica. O que importa registrar aqui a respeito da permeabilidade é a repulsa de Marcel a qualquer determinismo objetivista, além de reconhecer a condição de exposição-abertura que é própria da situação. Em última instância, a noção de ser-em-situação em Marcel se encontra em uma espécie de tensão que perpassa toda sua obra, a saber: a necessidade de inteligir o ser humano como concretude individual (singularidade) sem que isso

42 Idem, O mistério do ser, I, pp. 134-135.

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signifique abrir mão de caracterizar alguma universalidade que lhe seja própria.

REFERÊNCIAS

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___________. L’homme problématique. Paris: Aubier, 1955. (El hombre problemático. Trad. María Eugenia Valentié. Buenos Aires : Sudamericana, 1956).

Textos de outros filósofos

JASPERS, K. Filosofía. Trad. Fernando Vela. San Juan-Madrid: Universidad de Puerto Rico-Revista de Occidente, 1958-1959, 2 volumes.

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A GESTALT COMO ONTOLOGIA DA CARNE EM MERLEAU-PONTY

Renato dos Santos

Como sabemos, as ontologias tradicionais se

fundamentam, grosso modo, num princípio de identidade ou em uma substancilização do Ser, implicando, assim, nas dicotomias entre uma dimensão e outra, entre “Para-si” e “Em-si”, entre o Ser e o Nada, por exemplo. Estas dicotomias, em especial, são as que compõem a ontologia sartriana e que Merleau-Ponty, na obra O visível e o invisível, não deixa de notar como uma ontologia que reproduz a mesma lógica das filosofias de caráter reflexionante.

Contudo, cabe esclarecer, antes de qualquer coisa, que, a despeito de ser a estrutura a condição de possibilidade para essa nova ontologia, é necessário analisar criticamente os usos e os significados que esse conceito possui, seja no Estruturalismo, na teoria da Gestalt, ou, até mesmo, como empregado por Merleau-Ponty em suas obras iniciais. Não se trata mais de estrutura no sentido epistemológico, como se concebeu na Fenomenologia da percepção, tampouco como a “união” dos opostos.

Conforme esclarece Barbaras1, diferente da obra de 1945, na qual a noção de forma era utilizada unicamente para criticar o pensamento objetivo, desta vez seu uso é encarado de maneira positiva, pois visa justamente superar a crise da filosofia, a qual a própria obra inicial de Merleau-Ponty não deixou de reproduzir, de certa maneira. Ademais, segundo

1 BARBARAS, R. Merleau-Ponty et la psychologie de la forme. Les études philosophiques, n. 57, pp. 151-163, 2001, p. 152.

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Barbaras2, com a reabilitação da estrutura, Merleau-Ponty encontra uma dupla alternativa no que tange ao problema do espírito. A primeira diz respeito em pensar uma noção de cogito diferente daquele proposto por Husserl, isto é, como cogito constituinte; e, ao mesmo tempo, abre caminho para se pensar um Ser diferente do qual foi pensado por Heidegger.

No ensaio De Mauss a Claude Lévi-Strauss, publicado em Signos, Merleau-Ponty analisa como a estrutura é usada pela antropologia estruturalista e, ao mesmo tempo, como esta noção poderia ser extrapolada para a própria filosofia, de modo a, como já comentamos anteriormente, superar o problema do espírito: “É todo um regime de pensamento que se estabelece com essa noção de estrutura, cuja fortuna atual em todos os campos responde a uma necessidade do espírito”3. Ademais, especificamente na filosofia, ela poderá indicar “um caminho fora da correlação sujeito-objeto que domina a filosofia desde Descartes a Hegel”4.

N’O visível e o invisível, essa mesma constatação é descrita da seguinte maneira: “a Gestalt tem a chave do problema do espírito”5. Por conseguinte, cabe aprofundarmos na obra de Merleau-Ponty, em especial O visível e o invisível, de modo a entendermos como a estrutura poderá servir como fundamento para um novo projeto ontológico. Para isso, vejamos brevemente as críticas que o filósofo dirige à ontologia negativista de Sartre, a fim de evidenciar como ela ainda opera a partir do pensamento de sobrevoo.

2 Ibidem, p. 152. 3 MERLEAU-PONTY, M. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 133. 4 Ibidem, p. 133. 5 IDEM. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 183, grifo do autor.

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20.1 A CRÍTICA À ONTOLOGIA SARTRIANA É no capítulo Interrogação e dialética, da obra O visível e o

invisível, que Merleau-Ponty analisa as principais teses da ontologia sartriana, em especial, as desenvolvidas na obra de 1943, O ser e o nada. Segundo Merleau-Ponty, a filosofia de Sartre é bem-sucedida na tarefa de superar a tradição do idealismo subjetivista na medida em que se encaminha para o campo da experiência direta do mundo que nos é desvelado pela fé perceptiva. Para Sartre, o sujeito somente encontra o sentido das coisas nelas mesmas. É no mundo e, mais especificamente, no mundo enquanto totalidade do Ser, que o sentido é encontrado.

A relação entre o sujeito e o mundo é estruturada por Sartre através das noções de Para-si e Em-si. O mundo, o Em-si, “é pleno de si mesmo, e não poderíamos imaginar plenitude mais total, adequação mais perfeita do conteúdo ao continente”6. De fato, enfatiza Sartre, “não há o menor vazio no ser, a menor fissura pela qual pudesse deslizar o nada”7. Por outro lado, o Para-si, a consciência, “é uma descompressão do ser. É impossível, em efeito, defini-la como coincidência consigo mesma”8. Entre minha consciência e uma mesa, exemplifica Sartre, “eu posso dizer que ela é pura e simplesmente essa mesa. Mas da minha crença, eu posso somente me limitar a dizer que ela é crença: minha crença é consciência (de) crença”9.

Sendo o Para-si um nada, será através de um permanente ek-stase em direção ao Ser que ele encontra a possibilidade de ser alguma coisa. Ou seja, o “ego sartreano é pura negatividade. Por isso mesmo, o ek-stase é um

6 SARTRE, J.-P. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 122. 7 Ibidem. 8 Ibidem. 9 Ibidem.

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movimento de uma só direção, uma fuga para fora de si mesmo que dá acesso ao mundo e às coisas”10. Daí resulta que, em Sartre, não encontramos mais um sujeito, no sentido cartesiano, que realiza a reflexão a partir de si mesmo, dado que a consciência é puro vazio, desprovida de qualquer saber.

Considerando que, como vimos anteriormente, a consciência somente encontra o seu poder-ser por meio do movimento em direção ao mundo, e pelas escolhas e projetos que realiza, encontramos, na filosofia de Sartre, uma ressignificação do Ser bruto do pré-reflexivo e, ao mesmo tempo, o desnudamento do contato primário de nós para com o Ser. Trata-se de um acontecimento preponderante, que caracteriza o existir humano, a saber, a facticidade.

A facticidade ocupa uma dupla conotação na filosofia sartriana. Por um lado, ela evidencia que o existir é um fato que independe da vontade, da liberdade de escolha, por parte do sujeito. Isto é, não sou livre de não estar no mundo. Nesse sentido, a facticidade denota o caráter bruto da existência humana, de maneira que ela jamais escolhe a “sua posição”11. Por outro, a despeito de não termos escolhido existir, a facticidade nos revela sua outra face, que consiste em propriamente tornarmos responsáveis pelo que faremos com essa condição. Conforme resume Sartre, a facticidade “é o que faz com que eu me apreenda ao mesmo tempo como totalmente responsável por meu ser, na medida em que sou seu fundamento, e, ao mesmo tempo, como totalmente injustificável”12.

Segundo Sartre, se não houvesse a facticidade:

10 FALABRETTI, E. Estrutura e ontologia na obra de Merleau-Ponty. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, pp. 305-341, jul./dez., 2013, p. 318, grifo do autor. 11 SARTRE, J.-P. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. op. cit., pp. 132-133. 12 Ibidem, p. 133.

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A consciência poderia escolher suas vinculações com o mundo, da mesma forma com que, na República de Platão, as almas escolhem sua condição: eu poderia me determinar a “nascer operário” ou “nascer burguês”. Mas, por outro lado, a facticidade não pode me constituir como sendo burguês ou sendo operário. Ela sequer é, propriamente falando, uma resistência de fato, porque eu lhe conferiria seu sentido e sua resistência ao retomá-la na infraestrutura do cogito pré-reflexivo. A facticidade é apenas uma indicação que dou a mim mesmo de ser que devo alcançar para ser o que sou13.

Dessa forma, como interpreta Merleau-Ponty, a

facticidade é caracterizada pela tese de que, de um lado, o Ser é “plenitude absoluta e uma absoluta positividade”14, e, por outro, o Nada é concebido como totalmente purificado, desprovido de qualquer conteúdo ontológico. No entanto, no instante em que me concebo como pura negatividade e o mundo como pura positividade, “não há mais interação, caminho eu próprio diante de um mundo maciço; entre ele e mim não há encontro nem fricção, porquanto ele é o Ser e eu nada sou”15.

Na perspectiva da ontologia sartriana, fundada na radical oposição entre o puro nada e o puro Ser, o Para-si, que é nada, permanecerá sempre à margem, à deriva, do Ser, “precisamente porque não somos da mesma ordem. Permaneço no centro de mim mesmo absolutamente estranho ao ser das coisas – justamente por isso destinado a elas, feito para elas”16.

Assim, o mundo somente se faz presente para a subjetividade pelo fato de que ela foi inteiramente purificada

13 Ibidem, grifos do autor. 14 MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. op. cit., p. 59. 15 Ibidem. 16 Ibidem.

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e colocada em perpétua transcendência. Ou seja, o mundo se fenomenaliza pela condição de que nada me separa dele, que eu esteja nele e “[...] não em mim, em minhas representações, ou em meus pensamentos, que eu seja nada”17. Entretanto, um leitor de Sartre poderá afirmar que, a partir do momento em que possuo “isto diante de mim não sou um nada absoluto, sou um nada determinado: nem este copo, nem esta mesa, nem este quarto; meu vazio não é qualquer um, e nessa medida, ao menos, o meu nada é entulhado ou anulado”18. Desse modo, o nada enquanto transcendência para o mundo, para o Ser, encontraria um começo de positividade.

Na verdade, observa Merleau-Ponty, “[...] essa pseudopositividade do meu presente é apenas uma negação mais profunda ou redobrada”19. Ou seja, em um instante, e “enquanto eu falava, já teria desaparecido, dando lugar a outro isto, fundindo-se no resto do mundo”. Logo, a transcendência sartriana destitui, definitivamente, qualquer possibilidade de imbricação entre o Ser e o nada: “[...] somos e permanecemos estritamente opostos e confundidos”20.

É lícito notar que uma filosofia que parte da noção de negativismo absoluto, é também um positivismo absoluto. Entre estes não há distância, são sinônimos, pois, afinal de contas:

É a mesma coisa dizer que o nada não é e dizer que existe apenas o ser; em outros termos, que não poderia encontrar o nada entre as coisas que são, como uma dentre elas, e que, portanto, é preciso que esteja apoiado nelas, que é, sem mais, o que faz com que elas não sejam cada uma por sua

17 Ibidem, p. 60. 18 Ibidem, grifo do autor. 19 Ibidem. 20 Ibidem.

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própria conta, que estejam juntas, que sejam um único Ser21.

Desse modo, Merleau-Ponty identifica, na filosofia do

negativo puro e do positivo puro, um “pensamento de sobrevôo, que opera sobre a essência ou a pura negação da essência, sobre termos cuja significação já foi fixada e que mantém em sua posse”22. Não obstante, é verdade que Sartre reconhece na conclusão de O ser e o nada a necessidade de pensar um sentido mais alargado do Ser, que envolvesse, dessa vez, o Em-si e o Para-si. Todavia, isso não significa que a oposição foi superada. Ela “permanece com todo seu rigor; ela é que justifica sua inversão, que triunfa nessa derrota; a paixão do Para-si, sacrificando-se para que o ser seja, é ainda negação por si mesmo”23.

O pensamento negativista, que é também positivista, reativa a estrutura da filosofia reflexionante porquanto “nenhum resultado da reflexão pode retroativamente comprometer quem o opera nem alterar a ideia que fazíamos dele”24. Essa consequência, como avalia Merleau-Ponty, não poderia ser diferente. Se se parte do pressuposto de um negativo puro, nunca haverá a possibilidade de existir algo no horizonte do nada, isto é, por mais que “[...] apercebamos que precisa do Ser, somente precisará dele como vizinhança distante que não o altera”25. Noutras palavras, a devoção que o Nada possui para com o Ser é, precisamente, o que outorga sua condição de ser Nada.

De toda sorte, quando superamos a ideia do Ser como identidade e radicalmente distinto do Nada, “descobrimos no centro das coisas que os opostos são a tal ponto exclusivos

21 Ibidem, p. 71, grifo do autor. 22 Ibidem, p. 74. 23 Ibidem, pp. 74-75. 24 Ibidem, p. 75. 25 Ibidem.

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que um sem o outro nada mais é do que abstração, que a força do ser se apóia na fraqueza do nada, cúmplice seu, que a obscuridade do Em-si está para a clareza do Para-si em geral”26. Deste modo, a célebre questão ontológica “porque há o Ser ao invés do Nada”, perde seu sentido quando pensamos uma ontologia que não se define por meio da pura identidade, ou que procura pensar o Ser e o Nada como partes de uma única estrutura, tal como irá propor Merleau-Ponty.

Ou seja, sob tal ângulo “não há algo ao invés de nada, o nada inexiste (no sentido negativo) e o ser é, e o exato ajustamento de um no outro encerra o assunto. Tudo é obscuro quando não se pensou o negativo, tudo é claro quando pensado como negativo”27. Ademais, conforme prossegue Merleau-Ponty:

Pois então o que se chama negação e o que se chama posição aparecem como cúmplices e até mesmo numa espécie de equivalência. Afronta-se ‘num tumulto ao silêncio semelhante’, o mundo é como essa faixa de espuma no mar, que, vista de avião, parece imóvel e, de repente, porque aumentou de uma tira, compreendemos que, de perto, é marulhar e vida mas também que, vista de muito alto, nunca a amplitude do ser sobrepujará o nada, nem o ruído do mundo, o seu silêncio28.

É oportuno pensarmos, ainda no âmbito da ontologia

do Ser e do Nada, como se dá a relação com outrem. Afinal, pensar como o Nada recebe o Ser, não é unicamente com a finalidade de “compreender minha encarnação, mas também quando se trata de compreender como posso assumir a visão

26 Ibidem, p. 70. 27 Ibidem, grifos do autor. 28 Ibidem.

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que outro tem de mim ou, enfim, nossa comum pertença ao mundo”29.

20.2 A GESTALT COMO CARNE

Na nota de trabalho, datada de fevereiro de 1960,

Merleau-Ponty explicita o itinerário de seu projeto ontológico. Segundo o filósofo, o ponto de partida de sua ontologia está “onde Sartre tem seu ponto de chegada, no Ser retomado pelo para Si – Este é seu ponto de chegada porque ele parte do ser e da negatividade e constrói sua união”30. Ademais, para a ontologia sartriana, que é “uma ontologia do interno, não há que construir a transcendência, ela existe de início, como Ser forrado de nada”31.

Não se trata mais de pensar o Ser enquanto duplicado de Nada, ou seja, como “mistura” entre um e outro, como fez Sartre. Para Merleau-Ponty, desta vez, o negativo não quer dizer absolutamente nada, “e o positivo também não (são sinônimos), e isso não por apelo a uma vaga ‘mistura’ do ser e do nada”. Outrossim, na ontologia merleau-pontyana não há mais a concepção de oposição entre o Ser e o Nada, não há contradição entre um e outro. Contudo, se o Nada não é mais contraditório do Ser, o que será ele então?

Na nota de maio de 1960, Merleau-Ponty assevera: “o sensível, o invisível deve ser para mim a ocasião de dizer o que é o nada – o nada não é nada mais (nem nada menos) que o invisível”32. A relação entre o ser e o nada é, por sua vez, conforme esclarece Moutinho, a relação entre visível e invisível. Porém, com a grande diferença de que o visível não é presença objetiva, “um positivo objetivo, e o invisível uma

29 Ibidem, p. 75. 30 Ibidem, p. 216, grifo do autor. 31 Ibidem, grifo do autor. 32 Ibidem, p. 232.

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negação dele, como em Sartre”33. Para Merleau-Ponty, o invisível não é contraditório do visível. Ao contrário: “o visível possui, ele próprio, uma membrura de invisível, e o in-visível é a contrapartida secreta do visível, não aparece senão nele”34.

É importante notarmos que Merleau-Ponty fala de uma membrura, que é responsável por possibilitar a indissociabilidade entre o visível e o invisível. Quer dizer, a membrura não faz a união de dois polos objetivos separados, mas, ela própria, é a condição de possibilidade para que eles existam, que o visível faça projetar o invisível. É, pois, nessa direção que a ontologia de Merleau-Ponty se encaminha, qual seja, de pensar os polos não mais em termos de contradição, como excludentes um ao outro, mas através da cumplicidade ontológica que os entrelaça por meio de uma estrutura.

A seguir, mostraremos como Merleau-Ponty elabora sua ontologia da carne através da noção renovada de Gestalt. Trata-se de um uso peculiar da noção de estrutura feito pelo filósofo que salvaria definitivamente a filosofia do subjetivismo e do objetivismo. A respeito disso, numa de suas notas de trabalho, o próprio Merleau-Ponty afirma:

[...] a saber, de uma presença a Si que é uma ausência de si, contato com Sigo pela distância em relação a Si – Figura sobre fundo, ‘Etwas’ o mais simples – a Gestalt tem a chave do problema do espírito35.

Desse modo, o uso da noção de estrutura não estaria

somente designando a dimensão epistemológica da percepção – conforme realizado na obra de 1945 –, mas, precisamente,

33 MOUTINHO, L. D. S. O invisível como negativo do visível: a grandeza negativa em Merleau-Ponty. Tras/Form/Ação, Marília, v. 27, n. 01, pp. 7-18, jan./jul., 2004, p. 16. 34 MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. op. cit., p. 200. 35 Ibidem, p. 183, grifos do autor.

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em servir como “princípio explicativo e como a condição do ‘ser no mundo’, pois não apenas percebo uma figura sobre um fundo, mas me encontro no mundo como uma figura sobre um fundo”36.

De acordo com Falabretti, a primeira manifestação da Gestalt que encontramos está na dimensão da passividade, enquanto experiência primordial na qual as coisas e os outros se fazem presentes em nós: “trata-se de uma condição primordial esquecida, na medida em que passamos da ordem do sentir para o pensar e reconhecemos o cogito e as coisas como centros antinômicos destinados a realizar funções distintas”37. A passividade é o momento originário onde não há sobreposição entre uma dimensão passiva e outra ativa. Para Merleau-Ponty, trata-se de conceber as noções

solidárias de ativo e passivo, de tal maneira que não nos coloquem mais diante da antinomia de uma filosofia que explica o ser e a verdade, mas que não explica o mundo, e de uma filosofia que explica o mundo, mas desenraiza do ser e da verdade.38

O exame da passividade nos permite compreender

como a verdade não é despontada de um cogito constituinte ou do mundo das relações objetivas. Ela, na verdade, antes se origina da relação estrutural do Ser e do mundo primordial, fundada por uma circularidade que, primeiro, é “sustentada pelo Ser, e o Ser pela verdade como uma figura, podemos dizer, amparada pelo fundo”39. A passividade, dessa maneira, nos revela que o mundo e o Ser não são constituídos de um

36 FALABRETTI, E. Estrutura e ontologia na obra de Merleau-Ponty. op. cit., p. 321. 37 Ibidem, p. 322. 38 MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. op. cit., p. 51. 39 FALABRETTI, E. Estrutura e ontologia na obra de Merleau-Ponty. op. cit., p. 323.

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polo, ou substância da ordem do Em-si ou do Para-si, mas estruturados, essencialmente, por uma dimensão gestáltica. Conforme esclarece Merleau-Ponty, em uma nota de rodapé, ao analisar a ontologia negativista sartriana:

O ‘núcleo de ser’ duro de que Sartre fala. Não há núcleo com, em torno do [não?] que seria eu (negações, brilho na superfície do ser). O ser é transcendente, quer dizer justamente: é aparências cristalizando-se, é pleno e vazio, é gestalt com horizonte, é duplicidade dos planos, ele é, ele mesmo, Verborgenheit – é ele quem se percebe, como é ele quem em mim fala40.

O que podemos extrair dessa nota é, justamente,

como o projeto ontológico de Merleau-Ponty difere radicalmente dos modelos da metafísica forjados pela tradição filosófica e, finalmente, por Sartre. O Ser não é mais definido como entidade unívoca, no sentido de ser certa substância definida por uma identidade. O Ser, a partir deste momento, é Gestalt, ou seja, “é um princípio de distribuição, o pivô de um sistema de equivalências, é o Etwas de que os fenômenos parcelares serão a manifestação”41.

No entanto, como já havíamos comentado anteriormente, não se trata de uma noção de estrutura entendida como um mecanismo epistemológico, tampouco, conforme a Gestalttheorie concebeu, como realidade objetiva. A noção de estrutura – Gestalt –, aqui, deve ser compreendida como o próprio tecido que constitui o mundo, a realidade sensível. Nessa perspectiva, conforme esclarece Mario Teodoro Ramírez, na obra La filosofia del quiasmo, “[...] pensar rigorosamente a estrutura quer dizer pensá-la como carne, isto

40 MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. op. cit., p. 80. 41 Ibidem, p. 193, grifos do autor.

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é, como originária confusão do sensível e do inteligível, da matéria e do espírito, da objetividade e da subjetividade”42.

Para tanto, cabe esclarecer, antes de qualquer coisa, o que exatamente Merleau-Ponty entende pela noção de carne. O que é, finalmente, esse conceito que “não há nome na filosofia tradicional para designá-lo”43? Segundo o filósofo:

A carne não é matéria, não é espírito, não é substância. Seria preciso, para designá-la, o velho termo ‘elemento’, no sentido em que era empregado para falar-se da água, do ar, da terra e do fogo, isto é, no sentido de uma coisa geral, meio caminho entre o indivíduo espaço-temporal e a ideia, espécie de princípio encarnado que importa um estilo de ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua. Nesse sentido, a carne é um ‘elemento’ do Ser44.

A carne, desse modo, é uma espécie de princípio que

constitui as coisas e o mundo. Ela está em tudo, mas não se reduz a um determinado ente em particular. Para Merleau-Ponty, é preciso compreender a carne “não a partir das substâncias, corpo e espírito, pois seria então a união dos contraditórios, mas dizíamos, como elemento, emblema concreto de uma maneira de ser geral”45. Assim, a carne se configura como nervura do Ser, um estofo de sustentação da condição de possibilidade das coisas, ou como falamos anteriormente, é Gestalt, porquanto “permite a abertura para que o corpo e as coisas sejam visíveis na mesma medida em que são tangíveis e videntes”46.

42 RAMÍREZ, M. T. La filosofia del quiasmo: introducción al pensamiento de Merleau-Ponty. México: FCE, 2013, p. 118. 43 MERLEAU-PONTY, M. op. cit., p. 135. 44 Ibidem, p. 136, grifos do autor. 45 Ibidem, p. 143. 46 FALABRETTI, E. Estrutura e ontologia na obra de Merleau-Ponty. op. cit., p. 336.

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É no capítulo O entrelaçamento – o quiasma, da obra O visível e o invisível, que podemos verificar, de modo mais detalhado, o papel que a noção de carne cumpre no projeto ontológico de Merleau-Ponty. Tomando como ponto de partida a reversibilidade entre senciente–sensível, o filósofo radicaliza a experiência de nosso contato com o mundo revelado pela fé perceptiva. Na experiência da visão, por exemplo, é preciso superar a ideia de que aquele que vê é dotado de uma natureza divergente daquilo que é visto, ou seja, do visível, o que implicaria que o vidente se tornasse um “estranho ao mundo que olha”47.

Ademais, a experiência do “ver” não é uma ação deflagrada pelo cogito, visto que o próprio olhar está enredado pela carne do visível. Não há, aqui, um vidente vazio que se abriria, em seguida, para as coisas visíveis, “mas sim algo de que não poderíamos aproximar-nos mais a não ser apalpando-o com o olhar [...], porquanto o próprio olhar as envolve e as veste com sua carne”48. Nesse sentido, a visão possui essa enigmática característica de envolver as coisas, mas ao mesmo tempo, é também envolvida por elas. As coisas não se encontram de maneira inerte diante de mim, o visível não é estático, entidade pura, mas me envolve e me toca.

Na visão das cores, exemplifica Merleau-Ponty – e aqui, em específico, o vermelho – é preciso compreender que ele não é um “quale, uma película de ser sem espessura, mensagem ao mesmo tempo indecifrável e evidente, [...] em suma, que nada há a dizer”49. O vermelho, ao contrário, antes “emerge de uma vermelhidão menos precisa e menos geral onde meu olhar estava preso e mergulhava antes de fixá-lo”50.

O que constitui a cor não é um aglomerado de átomos que, juntos, formariam o vermelho. A cor, diz Merleau-Ponty,

47 MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. op. cit., p. 131. 48 Ibidem, p. 128. 49 Ibidem, p. 129, grifo do autor. 50 Ibidem, grifo do autor.

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se dá por ligação entre o vermelho da camisa, da bandeira, de uma pintura etc., constituindo, assim, “uma espécie de nó na trama do simultâneo e do sucessivo. É uma concreção da visibilidade, não um átomo”51. Em outros termos, trata-se de uma carne de vermelhidão que contém todas as variantes da cor vermelha, ou, se quiser, uma Gestalt.

Em O olho e o espírito, última obra publicada em vida por Merleau-Ponty, a visão também é pensada a partir dessa radical imbricação com a carne do mundo: “o mundo visível e de meus projetos motores são partes totais do mesmo ser”52. Sendo a visão entrelaçada com aquilo que se vê, ela passa a ser sinestésica, na medida em que ela articula todos os sentidos no momento em que entra em contato com as coisas.

É o que Merleau-Ponty constata, por exemplo, nas pinturas de Cézanne, as quais proporcionam com o que a natureza, as frutas pintadas se mostrem para o olho como “vivas” e, muitas vezes, com a impressão de serem até “comestíveis”, no caso das frutas, pois a visão, aqui, é entendida como aquilo que nos faz “entrar” na coisa vista, em sua carne, por meio da carne do vidente: “nós vemos a profundidade, o aveludado, a maciez, a dureza dos objetos – Cézanne dizia mesmo: seu cheiro”53. Ver efetivamente um quadro que possibilite a abertura para a experiência da sinestesia implica em percorrer pela sua composição harmoniosa das cores, dos objetos contidos em sua profundidade, de maneira que seus signos nos conduzam para “junto deles”, ou seja, nos solicite para junto de sua carne.

Segundo Merleau-Ponty, “é preciso tomar ao pé da letra o que nos ensina a visão: que por ela tocamos o sol, as estrelas, estamos ao mesmo tempo em toda parte, tão perto

51 Ibidem. 52 MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 19. 53 Ibidem, p. 134, grifo do autor.

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dos lugares distantes quanto das coisas próximas”54. Ou ainda, conforme enfatiza Merleau-Ponty: “o olhar, dizíamos, envolve, apalpa, esposa as coisas visíveis. Como se estivesse com elas numa relação de harmonia preestabelecida, como se as soubesse antes de sabê-las, move-se à sua maneira, em seu estilo sincopado e imperioso”55. Desse modo, o mundo, as coisas visíveis, não se encontram diante de mim, não estão como objeto frente a um sujeito. Estou, antes de tudo, envolvido com elas – enquanto quiasma –, preso em seu tecido, do qual também sou constituído corporalmente.

Considerando que o vidente efetiva sua visão a partir da abertura do visível que se almeja, ou seja, que “quem vê não pode possuir o visível a não ser que seja por ele possuído”56, é preciso admitir que o vidente se torna visível, e por imbricação, quem vê se torna, igualmente, visto. Todavia, isso somente é possível pelo fato de que o vidente possui um corpo que é feito da mesma carne do visível. Quer dizer, o corpo é o que torna possível a junção direta entre nós e às coisas pela sua

ontogênese, soldando um a outro os dois esboços de que é feito, seus lábios: a massa sensível que ele é e a massa de onde nasce por segregação, e à qual, como vidente, permanece aberto.57

Assim, como podemos notar, “o corpo interposto não

é propriamente coisa, matéria intersticial, tecido conjuntivo, mas sensível para si. Isso impede, por exemplo, de afirmar que a cor é vista, ou que a superfície é apalpada pelo corpo. Tais afirmações encontrariam sua verdade se o corpo não fosse feito da mesma carne do mundo, e não estivesse encarnado

54 Ibidem, p. 52. 55 MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. op. cit., p. 130. 56 Ibidem, p. 131. 57 Ibidem, p. 132.

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junto às coisas. De sorte que, sendo o corpo um sensível exemplar, ele é “o único meio que possuo para chegar ao âmago das coisas, fazendo-me mundo e fazendo-as carne”58.

Desse modo, o corpo é o que possibilita aquele que o habita e “o sente de sentir tudo o que de fora se assemelha”59. Estando o corpo emaranhado no tecido das coisas, elas próprias o atraem integralmente, incorporando-o, e pelo mesmo movimento se comunica com “as coisas sobre as quais se fecha, essa identidade sem superposição, essa diferença sem contradição, essa distância do interior e do exterior, que constituem seu segredo natal”60.

Assim como na experiência da visão aquele que vê também é visto, no exemplo tátil da mão que toca a outra a consequência da reversibilidade é a mesma. Não há, aqui, dicotomia que faça com que uma das minhas mãos seja objeto para a outra, a qual ocuparia a posição de sujeito. Ambas as mãos são, ao mesmo tempo, tocante-tocada.

Há um círculo do palpado e do palpante, o palpado apreende o palpante; há um círculo do visível e do vidente, o vidente não existe sem existência visível; há até mesmo inscrição do palpante no visível, do vidente no tangível e reciprocamente; há, enfim, propagação dessas trocas para todos os corpos do mesmo tipo e do mesmo estilo que vejo e toco – e isso pela fundamental fissão ou segregação do senciente e do sensível, que, lateralmente, faz os órgãos de meu corpo entrarem em comunicação, fundando a transitividade de um corpo a outro61.

Tanto na experiência da visão quanto do tato, a

estrutura relacional que as assegura é a mesma: o tocante é

58 Ibidem. 59 Ibidem. 60 Ibidem. 61 Ibidem, p. 139.

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tocado e o vidente é visível. Como diz Merleau-Ponty, esse cruzamento, ou entrelaçamento, são entradas do mesmo mundo: “os dois sistemas se aplicam um sobre o outro como as duas metades de uma laranja”62. Ou, se preferir, uma figura sobre um fundo, amparadas no mesmo Ser.

Como comentamos anteriormente, o corpo próprio é de tal modo que permite ser, concomitantemente, vidente e visível. Dirigindo-se ao mundo, ele é invadido pelas coisas, é tocado por aquilo que toca. É coerente observarmos a belíssima passagem na obra O olho e o espírito, na qual Merleau-Ponty retoma uma citação de André Marchand. Diz ele: “Numa floresta, várias vezes senti que não era eu que olhava a floresta. Certos dias, senti que eram as árvores que me olhavam, que me falavam”63. Nessa radical encarnação do corpo com as coisas, com a carne do mundo, do vidente com o visível, “não se sabe mais quem vê e quem é visto”64.

Aquilo que falamos da passividade é retomado, aqui, por Merleau-Ponty. Trata-se da condição estrutural pela qual existimos enquanto sujeitos corpóreos com as coisas do mundo ou, ainda mais radicalmente, com tudo aquilo que pertence a essa imensa carne, da qual também fazemos parte. A respeito disso, arremata Merleau-Ponty:

Visível e imóvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está preso no tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas, dado que vê e se move, ele mantém as coisas em círculo a seu redor, elas são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo mesmo do corpo65.

62 Ibidem, p. 130. 63 MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. op. cit., p. 26. 64 Ibidem. 65 Ibidem, p. 20.

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Sendo assim, não há possibilidade, seguramente, de se pensar uma subjetividade, ou essência, fora do mundo, encarnada com as coisas, numa relação quiasmática. Encontramo-nos presos na estrutura carnal do mundo, como figura-fundo: “não há outro sentido além do carnal, figura e fundo – Sentido = seu deslocamento, sua gravitação (aquilo que eu chamava ‘escapamento’ na Fenomenologia da Percepção)”66. Afirmar que estamos encarnados com as coisas significa dizer que a carne

é pacto de nosso corpo com o mundo e pacto entre as coisas, entre as palavras e as ideias [...]. O quiasma, trabalhando a Carne por dentro, enlaça, cruza, segrega e agrega, reflexiona sem coincidir. Diferenciação.67

No entanto, essa diferenciação somente é possível

pelo fato de que, na ontologia merleau-pontyana, não temos mais um Ser perspectivista, tal como encontramos nas ontologias que se fundamentam a partir da noção do espaço euclidiano. Essa tem, por definição, “[...] o modelo do ser perspectivo, é um espaço sem transcendência, positivo, rede de retas, paralelas entre si ou perpendiculares”68. O espaço topológico, ao contrário, permite estabelecer relações de vizinhanças e envolvimento entre as partes opostas, de modo que “funda o princípio selvagem do Logos – É este ser selvagem ou bruto que intervém em todos os níveis para ultrapassar os problemas da ontologia clássica”69.

A verticalidade, enquanto Ser bruto, oblíquo, é justamente o que possibilita a relação quiasmática entre as

66 MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. op. cit., p. 238, grifos do autor. 67 CHAUÍ, M. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 111-112, grifos do autor 68 MERLEAU-PONTY, M. op. cit., p. 196. 69 Ibidem, p. 197, grifo do autor.

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coisas sem, com isso, suprimir um lado ou outro. É a profundidade quem permite pensarmos em uma ontologia do Ser de indivisão e de diferenciação sem cair na dialética, na medida em que quantidade, qualidade, percepção e ideia “não são contrários, nem opostos, nem momentos de passagem negadora, mas ‘núcleos de sentido’, ‘outras dimensões’ que se interpenetram, passando cada qual pelos poros das outras”70. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Até aqui, procuramos apresentar a arquitetura da

ontologia merleau-pontyana. Mostramos como através da ressignificação da noção de Gestalt, o filósofo encontrou a alternativa para a superação do problema do espírito na medida em que colocou a subjetividade, o cogito, no seu devido lugar, qual seja entrelaçado com as coisas, com o mundo e com outrem. Formando, assim, uma carne, a qual se configura como “coesão sem princípio”, no sentido de não ter uma essência pré-determinada, como encontramos, por exemplo, nas metafísicas tradicionais. Ora, mas essa empreitada se efetiva em virtude de que o Ser bruto é vertical, Ser de profundidade, impedindo que caiamos nas velhas amarras das ontologias clássicas que pensam a presença como identidade e coincidência, ou a dialética da tese-antítese-síntese.

Se é verdade, por um lado, que a carne enquanto tecido que entrelaça as coisas, implicando numa indivisão carnal, por outro lado, é verdade também que isso não dilui, de modo algum, a diferenciação, precisamente pelo fato de ser uma carne gestáltica, e, por isso, impede com que uma possível coincidência dissolva todas as diferenciações. Com efeito, é interessante notarmos outra consequência da renovação ontológica do conceito de estrutura em Merleau-Ponty. Nos referimos, aqui, do envolvimento entre Ser e Nada, algo que

70 CHAUI, op. cit., p. 115.

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nas ontologias tradicionais há sempre sobreposição do Ser em relação ao Nada, precisamente por se pensar o primeiro como pura positividade e o segundo como uma negativo absoluto.

É o caso, por exemplo, da ontologia sartriana, a qual, como vimos, ao pensar um positivo puro e um negativo absoluto, reproduz a lógica do pensamento de sobrevoo, como nota Merleau-Ponty. Para o autor da Fenomenologia da percepção, somente é possível pensar propriamente uma relação entre Ser e Nada quando deixamos de lado a ideia de um puro Ser ou de um puro Nada, e passamos a considerá-los como cúmplices, um entrelaçado no outro, pois, somente assim, veremos como não há um sem o outro, que são, enfim, uma só estrutura carnal. Ora, é essa estrutura que é responsável por possibilitar a indissociabilidade entre o visível e o invisível, não como união de dois polos objetivos separados, mas, ela própria, enquanto condição de possibilidade para que eles existam, que o visível faça projetar o invisível. É nessa direção, portanto, que a ontologia merleau-pontyana se encaminha, qual seja, de pensar os polos não mais em termos de contradição, como excludentes um ao outro, mas através da cumplicidade que os entrelaça por meio de uma estrutura ontológica.

REFERÊNCIAS

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RAMÍREZ, M. T. La filosofia del quiasmo: introducción al pensamiento de Merleau-Ponty. México: FCE, 2013.

SARTRE, J.-P. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

SILVA, C. A. de F. A carnalidade da reflexão: ipseidade e alteridade em Merleau-Ponty. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2009.

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XXI

SOBRE O DESESPERO EM KIERKEGAARD

Rômulo Gomes dos Santos 21.1 O EU E SUA SITUAÇÃO ENQUANTO EXISTENTE

O ser humano é uma síntese de corpo e alma, portanto

de finito e infinito, de temporal e eterno. A relação destes termos dialéticos é o espírito, pelo qual o homem se distingue de todo o resto do mundo. Mas ser uma relação não é ser um eu. (KIERKEGAARD, 2010). Por isso, o espírito, ao relacionar-se consigo mesmo, dá origem ao eu, que é a reflexibilidade da relação e a conciliação das partes da síntese; como explica Farago (2006):

O eu não é, [...] tampouco a relação entre alma e corpo, mas a refletividade da relação que vai desdobrando sua dinâmica no tempo, permitindo que se realize a síntese entre o infinito e o finito, o temporal e o eterno, a liberdade e a necessidade [...] (p. 86).

Contudo, o eu não se estabelece por si mesmo: existe

um terceiro termo, um Autor, que permite ser. Para Kierkegaard, Deus é aquele que estabelece a relação do ser humano. Portanto, não é o homem que dá a si mesmo o seu próprio ser, mas participa desse pela responsabilidade de criar sua existência, que é produto de sua vontade. Deste modo, de acordo com Farago: “O homem participa de sua própria criação”. (FARAGO, 2006, p. 92).

Fazendo uso da sua liberdade, o homem escolhe como dirigir a sua vida, melhor dizendo, como

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“existencializar-se”. A liberdade, para o filósofo, no entanto, não pode ser demonstrada racionalmente. Dessa forma, a primeira coisa a entender é que você não entende (KIERKEGAARD, 2010). A tentativa de explicar logicamente a liberdade é falha, porque a aniquila. Quando se explica algo, fecha-se em um sistema, o que determina; isto é o oposto em relação ao sentido real da liberdade.

A liberdade se torna dessa forma, não um problema da filosofia especulativa, mas algo que se experimenta vivendo, escolhendo segundo as possibilidades que se tem. No entanto, diante das escolhas o indivíduo se angustia (WAHL, 1974; MESNARD, 1986).

Em sua obra O conceito de angústia de 1844, Kierkegaard distingue a angústia em relação ao temor e outros sentimentos que possuem um objeto específico. A especificidade da angústia está em ser um sentimento fora de uma objetividade, ligada estritamente à liberdade, frente às possibilidades. A angústia é o sentimento frente ao indeterminado, aberto. Ela é estritamente humana, pois sendo o homem possível de escolher sobre si, e aberto por se fazer, é ele distinto de todos os animais. Assim confirma Kierkegaard (2011):

Tenho de chamar a atenção sobre sua total diferença em relação ao medo e outros conceitos semelhantes que se referem a algo determinado, enquanto que a angústia é a realidade da liberdade como possibilidade antes da possibilidade. Por isso não se encontrará angústia no animal, justamente porque este em sua naturalidade não está determinado como espírito (p.45).

Desta forma, constata-se que, para o filósofo, o

sentimento do possível é a angústia intimamente ligada ao futuro, porque angustiar-se de uma possibilidade é angustiar-se de algo futuro. A angústia não é a mesma coisa que o temor, pois este possui um objeto definido e externo. A angústia é o

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Sobre o desespero em Kierkegaard

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sentimento que nasce da escolha, é interno ao homem. Já a angústia, é o sentimento que a liberdade causa no homem diante de suas possibilidades, de escolher isto ou aquilo; é o que o homem sente ao se deparar com o mundo externo a si. Todavia, a angústia é o fruto da liberdade, que é interior ao indivíduo, o qual é a realidade da liberdade como possibilidade antes da possibilidade (KIERKEGAARD, 2011).1

O desespero é diferente do sentimento da angústia. Este último sentimento expressa a relação entre homem e mundo; já o desespero é a doença do espírito, que surge da relação do indivíduo consigo mesmo. Na angústia o homem se relaciona com o devir de suas possibilidades, ou seja, com a liberdade, e essa relação é um estado no qual se quer e ao mesmo momento se teme diante do contingente, finito, enquanto, o desespero é uma discordância diante do que é também infinito, é diretamente ligado ao estado que o homem se coloca diante de si e de seu Criador.

Para o filósofo danês, o ser do homem, o espírito é estabelecido por Deus: o divino é o criador de toda complexidade humana, cabendo ao homem uma participação, por meio da escolha de como guiar essa sua complexidade. Segundo o autor, pode-se fugir de si da relação, ou até mesmo traçar um caminho de desarmonia da relação constituinte do homem, o que acarretaria no desespero. Mas para Kierkegaard (2010), fugir disto seria inútil, seria desesperar-se, pois não se tem a possibilidade de deixar de ser o que se é, um espírito. E o não se desesperar é a realização da existência, é ser um autêntico eu, porque há uma aceitação de seu próprio ser.

1 A angústia é uma característica estritamente humana, pois é o sentimento diante da liberdade. Se assemelha ao desespero, sentimento unicamente humano por ser possuidor de espírito, dotado de liberdade de escolha sobre si.

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21.2 A CONDIÇÃO DE DESESPERO Pode-se ver que, o desespero é algo que distingue o

homem do animal, pois só o homem é suscetível a desesperar-se. Assim, o desespero é uma vantage enquanto possibilidade irrealizada. Contudo, é uma miséria enquanto possibilidade atualizada (KIERKEGAARD, 2010).

Dessa forma, convém que se aniquile o desespero enquanto ato e não a sua possibilidade, por que o fim do desespero enquanto possibilidade resulta no fim da liberdade, pois é diante da possibilidade de escolher sobre a formação de sua existência, sobre si, que o homem se desespera (REICHMANN, 1971).

O espírito é uma síntese criada por Deus, e é na discordância dessa síntese que surge o desespero, ou seja, quando o homem, escolhendo mal, não se relaciona de forma harmoniosa consigo mesmo e, consecutivamente, com seu autor. Desta forma, pode-se afirmar que, se não fosse o homem um espírito, não haveria nele sombra de desespero. Diz Kierkegaard (2010):

O desespero está, portanto, em nós; mas se não fôssemos uma síntese, não poderíamos desesperar, e tampouco poderíamos se esta síntese não tivesse recebido de Deus, ao nascer, a sua firmeza (p. 29).

Assim sendo, pode-se afirmar que o desespero surge

na própria síntese, que entra em relação consigo mesma e estabelece uma discordância entre as categorias de sua relação, ou seja, um desequilíbrio entre as partes constituintes da síntese.2 Confirma Kierkegaard (2010):

De onde vem então o desespero? Da relação que a síntese estabelece consigo própria [...]. Esta relação é o espírito, o

2 Infinitude e finitude, possível e necessidade.

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Sobre o desespero em Kierkegaard

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eu, e nela jaz a responsabilidade da qual depende todo o desespero [...] (p. 29). Deus ao criar o homem o dota de liberdade já em sua

constituição polar. Sendo ele uma síntese que está em relação constante entre seus polos, o homem pode percorrer em oscilação de sua relação, estabelecendo a harmonia de forma livre. Caso fosse o homem dotado apenas com um dos polos, não haveria escolha de si, pois não haveria possibilidade de escolha. Ser espírito é o que possibilita ao homem ser livre, mas ao mesmo tempo lhe trás o fardo do desespero, quando decide mal sobre si, se afastando de sua harmonia, de seu eu (KOCH, 1934).

O desespero se diferencia assim, de uma doença comum, que se contrai uma vez e que a origem da doença fica cada vez mais no passado com o passar do tempo. O desespero compete ao espírito e surge na atualização da possibilidade de desesperar-se que pode ocorrer a cada instante. A cura é possível, como também é possível que o saudável de espírito venha a adoecer (KIERKEGAARD, 2010). Contudo, o desespero é uma doença mortal no sentido que ele não termina na morte física, pois é um mal que está no espírito; está naquilo que confere eternidade a cada indivíduo (HOHLENBERG, 1956). O homem, tendo consciência do eterno em si, tem esperança na morte, pois ela não é o fim. No entanto, a morte é motivo de desespero para aquele que a deseja como última possibilidade. Assim, o filósofo sintetiza:

[...] estar mortalmente doente é não poder morrer, mas neste caso a vida não permite esperança, e a desesperança é a impossibilidade da última esperança, a impossibilidade de morrer. Enquanto ela é o supremo risco, tem-se confiança na vida; mas quando se descobre o infinito do outro perigo, tem-se confiança na morte. E quando o perigo cresce a ponto de a morte se tornar esperança, o desespero é o

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desesperar de nem sequer poder morrer (KIERKEGAARD, 2010, p. 31).

Como se vê na citação acima, a morte, não sendo fim,

não soluciona o problema do desespero, visto que esse reside no mais íntimo e eterno do homem, no espírito. É assim que o desespero se mostra como doença mortal. Há, no entanto, quem confie na vida imediata como momento único da existência e deposita a sua confiança nesta; mas se descobre que há um infinito além desta vida, um eterno. Este indivíduo pode passar a esperar na morte não como sendo a última possibilidade da existência (MALANTSCHUCK, 1961).

Quem se desespera por não ser o que almeja, se desespera por não querer ser si mesmo, mas a outrem. Desta forma, o desespero pode ser tido como uma discordância da relação, em não se aceitar como se é. O desespero tende a aumentar quando se toma consciência da síntese dialética que se é. Não se conformar a isso é desesperar-se eternamente, é não se aceitar. A isto Kierkegaard chama de morrer a morte, isto é, não poder morrer:

Porque morrer significa que tudo está acabado, mas morrer a morte significa viver a morte; e vivê-la um só instante, é vivê-la eternamente. Para que se morresse de desespero como de uma doença, o que há de eterno em nós, no eu, deveria poder morrer, como o corpo morre de doença. Ilusão! No desespero o morrer continuamente se transforma em viver (KIERKEGAARD, 2010, p. 31).

Para deixar de ser o que se é, seria necessário que

aquilo que há de eterno no homem também se extirpasse. Mas o desesperado, não conseguindo eliminar o seu eu, justamente por ser eterno, tende a aumentar seu grau de desespero e, além disso, acumula um desespero passado, o de não ter conseguido ser o que queria (BRANDT, 1963).

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Sobre o desespero em Kierkegaard

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Portanto, o desespero pode começar com o desesperar de uma coisa, o que é na verdade um desespero de si, e nisto tenta se libertar de si. Entretanto, o que é insuportável para um desesperado não é não ter algo, ou não conseguir ser aquilo que se deseja. Um desesperado pode alegar querer ser ele mesmo, mas o que acontece é que seu desespero deriva de querer ser um “eu”3 à sua maneira, um eu que não se é (VERGOTE, 1969). Ocorre neste caso que o desesperado não se aceita como criação de Deus, não se aceita como obra daquele que estabeleceu a relação de cada indivíduo e, deste modo, quer se separar de seu Autor. Haverá homem isento de qualquer tipo de perturbação, sem nenhuma sombra de desespero? A esta questão Kierkegaard (2010) responde o seguinte:

Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só existe que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecido ou que ele próprio nem ousa conhecer, receio duma eventualidade exterior ou receio de si próprio; tal como os médicos dizem duma doença, o homem traz em estado latente uma enfermidade, da qual, num relâmpago, raramente um medo inexplicável lhe revela a presença interna. E de qualquer maneira jamais alguém viveu e vive, fora da cristandade, sem desespero, nem ninguém na cristandade se não for um verdadeiro cristão; pois que, a menos de o ser integralmente, nele subsiste sempre um grão de desespero (pp. 38-39).

Nessa passagem fica patente que o desespero,

segundo Kierkegaard, não segue uma definição, como esperaria o senso comum, na qual se é desesperado quando se

3 O “eu” (s) representa um falso eu.

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tem consciência de ser. Para o nosso filósofo, o desespero é uma categoria universal que reflete na existência humana e está na vida de cada homem mais do que se pensa. Deste modo, são muitos os homens que ignoram verdadeiramente seu estado de espírito, e é por isso que nos diz Kierkegaard (2010): “Não é ser desesperado que é raro, o raro, o raríssimo, é realmente não o ser” (p. 38). Apesar disso, são muitos os que se dizem sãos no que se refere ao desespero, mas não conhecem a medicina que estuda o espírito; contudo, um especialista percebe as doenças do íntimo e percebe o desespero. Dessa forma, pode-se dizer que o desespero é dialético, pois aquele que se julga saudável, pode na verdade estar sofrendo da doença mortal.

O que Kierkegaard chama de “doença mortal” pode estar no homem de forma latente, oculta, imperceptível aos olhos desatentos e ignorantes do observador. Ilude-se quem pensa que o ser calmo é o contrário do desespero, antes, tal calmaria pode ser indício de que se é desesperado, apenas o é inconscientemente. O espírito tem um destino, não é um acaso o seu ser, e a inconsciência desse destino, também é desespero (KIERKEGAARD, 2010). De outro lado, a própria felicidade também pode indicar desespero quando se dá como fuga da doença mortal, o que não deixa de ser outra forma de manifestação do desespero. Assim fala Kierkegaard: “[...] não há lugar mais na predileção do desespero do que o mais íntimo e profundo da felicidade” (KIERKEGAARD, 2010, p. 41).

Assim, à luz do pensamento kierkegaardiano a verdadeira felicidade está no curar-se do desespero, que exige consciência de estar doente, pois quem não sabe que está doente, não busca a cura, que nesse caso é alcançada pela fé que liberta o indivíduo de seu grande mal.4 A isso confirma

4 O mal aqui, como no decorrer do trabalho se refere ao desespero, visto como uma doença que precisa de cura.

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Sobre o desespero em Kierkegaard

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Kierkegaard (2010): “[...] o homem que sem imitação afirma o seu desespero não está tão longe da cura, está mesmo mais próximo do que todos aqueles que não são considerados e não se julgam desesperados” (p. 41).

Para o espírito destinado ao infinito, não importa se a vida foi tranquila, cheia de honra e glória, rica ou triste, feliz ou amarga; nada disso é importante para tal destino. O que importa é se, como indivíduo, o homem não se guiou pela massa, mas destacou-se desta para ser um verdadeiro eu, reconhecendo que sofre de um mau espírito,5 do qual busca se libertar pela fé e não pela indignação ou fuga (KIERKEGAARD, 2010).

Deste modo, o caminho feito até aqui, passando pelo idealismo na figura hegeliana, demonstrando seu pensamento, para depois colocar Kierkegaard como interlocutor direto dessa cultura, demonstrando a fatalidade em que o idealismo arremessa o indivíduo no esquecimento de si como ser existente; e o danês como a figura que coloca em debate central a situação do eu no mundo, em relação consigo e com seu criador, supõe-se que a clareza alcançada até então, permite que se avance ao conhecimento e análise do que Kierkegaard diz ser a doença mortal: o desespero humano.

No próximo capítulo, tem-se o objetivo de adentrar mais profundamente no tocante ao conceito de desespero e suas nuanças entre consciência, aceitação ou não de sua relação. De encontro aos fatores da síntese, ver-se-á as nuanças entre o desespero de finitude e infinitude, possibilidade e necessidade; e também tratar-se-á sobre a fuga de si que seria um desespero de desafio, como se o homem desafiasse a si mesmo e a Deus, em vista de ser um eu diferente da relação estabelecida, ou ainda o desespero fraqueza, que seria a fuga de sua composição polar.

5 O desespero entendido como doença do espírito.

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21.3 O INDIVÍDUO E O DESESPERO Se, no primeiro capítulo, buscamos expor o modo

como Kierkegaard se relaciona com a filosofia de seu tempo, estabelecendo contato direto em suas discussões com o idealismo hegeliano, do mesmo modo, evidenciamos que a existência não é reduzida a um sistema, e a história do indivíduo é por ele criada sem haver pretensões gerais e abstratas, vivendo em um movimento de realização do si mesmo que acontece no interior do espaço e do tempo. Assim, com a capacidade de se tornar a si mesmo, o indivíduo se relacionaria com sua consciência para a realização de sua autenticidade. No presente capítulo, pretendemos investigar o indivíduo tendo por base a obra O desespero humano, conhecida também como A doença mortal, escrita sob o pseudônimo Anti-Climacus.

Para iniciar, devemos dizer que Kierkegaard, na referida obra, tem o interesse de motivar, por meio de uma descrição cristã, o despertar do homem para seu caráter de individualidade. É isso que Anti-Climacus torna claro desde o prefácio daquela obra:

Ousar ser a si próprio, ousar ser um indivíduo, não qualquer, mas este que é em face de Deus, isolado na imensidade do seu esforço e de sua responsabilidade: eis o heroísmo cristão confesse a sua provável raridade. [...] Todo o conhecimento cristão, por estrita que seja de resto a sua forma, é inquietação e deve sê-lo; mas essa mesma inquietação edifica (KIERKEGAARD, 2010, p. 18).

A consciência de si mesma como uma relação (como

um ser que é relação), ou seja: síntese de infinito e finito, temporal e eterno, liberdade e necessidade diante do terceiro termo (criador de sua síntese), desperta no indivíduo a ansiedade por autenticidade. Esse sentimento, diante da

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Sobre o desespero em Kierkegaard

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criação de si mesmo, é o desespero; isso porque, ser um eu é um desafio que perturba o indivíduo que tem por missão corroborar com sua criação, através da escolha livre de como guiar seu caminho, realizando-o em todas suas partes. Eis a meta da autenticidade, do existente kierkegaardiano: Eu.

Kierkegaard, para afirmar a autenticidade do indivíduo vai colocar bases em uma construção cristã do Eu. Mas o que seria ser cristão nesse contexto específico? É importante lembrar que o autor está envolto de um cristianismo na sua época, permeado pelas ideias sistemáticas com fundamento último na razão. Ser cristão em Kierkegaard é andar no caminho contrário ao hegelianismo que aponta à objetividade. Ser cristão é ser subjetivo. E isso requer uma transformação radical, pois – vendo o homem terreno e em meio a uma sociedade que absorve o indivíduo num processo externo a si – libertar-se para tornar-se um cristão exige a mais profunda abstração rumo ao eterno. Assim confirma Kierkegaard (1983):

O cristianismo deseja intensificar a paixão ao seu mais alto grau; mas a paixão é subjetividade e não existe objetivamente. […] Pode-se presumir, então, que a tarefa de tornar-se subjetivo é a tarefa mais elevada e uma tarefa proposta a todos os seres humanos; tal como, analogamente, o prêmio mais elevado, uma felicidade eterna, existe apenas para aqueles que são subjetivos; ou melhor, passa a existir para os indivíduos que se tornam subjetivos (pp. 1-2).

Aqui, Kierkegaard esclarece que ser subjetivo é ser

cristão. Reclamar a responsabilidade do existir para si, é uma atitude cristã, nessa busca por decifração do eu. O filósofo deixa claro que a autenticidade se esconde na raiz do cristianismo no ser subjetivo, no ser um eu. Deste modo, o filósofo de Copenhagen escreverá O desespero humano com uma perspectiva cristã, diferenciada de seus contemporâneos que

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se achavam cristãos por teorizarem e tecerem sistemas para a doutrina, “desteologizando” a verdade do cristianismo (PROTÁSIO, 2015).

Para Kierkegaard, o cristianismo não deveria ser apenas uma doutrina, mas a ocasião para uma abertura à possibilidade de relação com a doutrina na qual o indivíduo se depara com sua eternidade e temporalidade, sua finitude e infinitude, possibilidade e necessidade. E é nesse horizonte de relações paradoxais que Kierkegaard analisará o desespero.

O eu, o si mesmo não é em Kierkegaard aquele que se coloca por si, pois há o terceiro termo: o Criador que lhe confere a existência dentro de sua condição dialética de relação de polaridades. Antes, é o existente que se “molda” e se resolve na existência. Com ferramentas nas mãos, na busca por formação, o homem corre o risco de se formar à sua maneira, afastado de sua origem, do seu Criador. Buscando a própria medida, surge o desespero, pois mais uma vez, o indivíduo não pode fugir de si, e nem assegurar sua própria existência, que é mantida, para o cristianismo, por Deus criador e mantenedor do ser. E é por isso que Kierkegaard aponta o cristianismo como meio pelo qual o homem – na dinamicidade da vida – se faz e se guia imitando o exemplo do Cristo.

O cristianismo, assim, exige que o seu seguidor, não apenas faça-se presente nas suas celebrações, e comungue de suas ideias, mas exige que aquele que se fizer chamar cristão, eleve seu ser à medida do Cristo, o próprio Deus encarnado em prol da salvação da humanidade. Diante dessa exigência cristã, o homem se depara com a vivência do eterno em sua temporalidade, esse paradoxo pode fazer com que o indivíduo se escandalize com tamanho desafio de ser um eu tendo como medida o Cristo, o que mais adiante ira se tratar como sendo uma forma de desespero (KIERKEGAARD, 2010).

Ainda com respeito ao argumento acima, Myriam M. Protasio expõe que: “[...] o cristianismo é o fenômeno

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Sobre o desespero em Kierkegaard

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histórico que estabelece uma nova forma de compreensão dos fenômenos da existência” (PROTASIO, 2015, p. 58). Isso conduz a pensar, que Cristo aparece como referência em um novo momento histórico, assim como foi Sócrates para o paganismo. Mas, a pessoa de Cristo aparece desde uma perspectiva diferente, pois é Cristo o Deus-homem (BALTHASAR, 2006). À vista disso, o homem se projeta para a eternidade, na qual os elementos temporais se demonstram insuficientes para tratar sobre o infinito, que o filósofo danês diz haver no homem.

Diante dessa virada de horizonte e verticalidade existencial proposta pelo cristianismo, Kierkegaard elabora uma filosofia onde o homem se depara com o eterno em si, e a possibilidade do desespero que se desdobra em múltiplas facetas, que veremos nesse capítulo. Assim, formularíamos que o desespero é a doença da necessidade que o homem tem de justificar sua existência diante do transcendente que se manifesta no temporal e na necessidade do indivíduo, em sua realidade. Por isso, a perspectiva kierkegaardiana não remete apenas a condições objetivas éticas-morais, mas pede uma decisão singular, individual a que ele chama de “salto”6.

Sendo o homem um ser de liberdade para escolhas acerca de si, e ao mesmo tempo uma complexidade já posta em si, que é a sua relação de finito e infinito, temporal e eterno, necessidade e possiblidade, cabe a ele caminhar e se fazer dentro desses parâmetros que o seu Criador lhe

6 Como se verá mais adiante, Kierkegaard chama de “salto” o ato individual de crer, quando o indivíduo se aceita, aceita seu Criador e vive sua fé, em uma atitude que se difere do conceber especulativo, mas do crer cristão. Crer no absurdo da encarnação divina, absurdo da salvação, absurdo do homem ter como medida o Cristo que é o próprio Deus. Assim, confirma-se nas palavras de Kierkegaard: “Pois tal é a fé: quem suprime a fé suprime a possibilidade do escândalo, como faz, por exemplo, a filosofia especulativa quando substitui o crer pelo conceber”. (KIERKERGAARD, apud REICHMANN, 1971, p. 312).

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permitiu. Nessa busca de realizar-se, Deus permite ao homem a chance de ter um parâmetro pelo qual se guiar, sem, no entanto, perder sua subjetividade, mas equipará-la ao de Cristo, modelo a ser seguido rumo à autenticidade. Nessa busca, como se verá, o desespero se torna um mal necessário, pois só desespera quem busca algo, mesmo que o ideal a se alcançar seja a ausência de tal mal, mas o caminho até o eu não se faz só de acertos para o ser humano imperfeito. Confirma-se, deste modo, a ousadia do ser cristão, para Kierkegaard (2010):

Ousar ser a si próprio, ousar ser um indivíduo, não um qualquer, mas este que é em face de Deus, isolado na imensidade do seu esforço e da sua responsabilidade: eis o heroísmo cristão, e confessemos sua provável raridade (p. 18).

A partir da citação, depreende-se que a autenticidade

e a realização do eu na realização do homem, é o alcance da felicidade proposta pelo cristianismo, que não se dá de uma vez, mas é uma “conquista” que se atinge com a escolha de crer e crendo ser. A libertação do desespero, como diz Protásio (2015): “O movimento não é lógico, não é necessário, pois existir não pode acontecer no abstrato” (p. 84) Nessa existência não há lugar para a lógica, pois nela está o ilógico, o eterno que é parte dessa relação humana. Essa é a proposta trazida pelo cristianismo: levar o homem ao eterno por meio da experiência do Cristo. Assim, o desespero passa a fazer-se dentro de uma ótica da transcendência, da realidade dual humana: “[...] para haver desespero é preciso que haja algo de eterno na existência e, ao mesmo tempo, este eterno precisa aparecer no temporal, ou seja, na existência concreta” (PROTÁSIO, 2015, pp. 84-85).

O cristianismo, portanto, revela que a existência não se esgota apenas na temporalidade, que o existir segue além

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Sobre o desespero em Kierkegaard

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do abismo do desconhecido. O fato do Eterno se fazer no tempo eleva a categoria humana, justificando a sua transcendência. Ao mesmo tempo, apresenta a possibilidade do desespero de não aceitar o Cristo como modelo a ser seguido (e nisso não se aceitar) ou ainda por não aceitar seu Autor.

Kierkegaard não pretende exaurir uma prova da existência do divino transcendente, mas olhar por meio da perspectiva do ser humano num âmbito de fé, onde o si mesmo pode participar da eternidade ou querer fugir dessa, alcançando assim o seu eu, sua autenticidade ou não se aceitando desesperar-se. O que o filósofo aponta é como o homem se porta distante de seus pontos relacionais e de seu Criador e o como participar da eternidade por meio da fé no transcendente que foge das explicações da razão exigindo do indivíduo o salto da fé. Sobre isso, nos diz Kierkegaard (1979), em Temor e tremor (1843): “[...] paradoxo que não pode reduzir-se a nenhum raciocínio, porque a fé começa precisamente onde acaba a razão” (p. 238).

Além da questão do si mesmo em relação com o divino e consigo mesmo, Søren Kierkegaard em O desespero humano (1849) também desenvolve outra questão de fundo, em que um leitor despercebido corre o risco de não entender, no pensamento do danês. É o desenvolvimento do eu com o outro. Kierkegaard, a partir da descrição dos principais tipos de desespero, desenvolve em conexão com o conceito de indivíduo a relação que este tem fora de si, mostra que o desespero da espiritualidade pode ser lido também como descrição crítica da sociedade de seu tempo, que também não deve ser interpretada apenas para a sociedade do século XIX, mas para todo o ser humano que se coloca diante de si mesmo, de Deus e do próximo. Kierkegaard estabelece relações entre a burguesia e a cristandade dinamarquesa do século XIX mostrando a importância de elementos de crítica social, relembrando aqui a sua crítica à uma sociedade que se

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esquece do indivíduo em sua relação complexa consigo e com o outro, projetando a existência em argumentos lógicos, que não tocam o sentido do ser.

No entanto, é evidente também que a reflexão kierkegaardiana não tem foco no outro, isso porque o conceito de indivíduo desempenha papel central na obra de Søren Kierkegaard. E a este conceito, por consequência, estão vinculados outros como angústia, desespero, paradoxo, fé e existência. O conceito de desespero é fundamental para a compreensão da antropologia de Kierkegaard e diz respeito ao indivíduo em sua singularidade. Toda a sua análise antropológica está em torno do conceito de indivíduo. Mas, diante disso parece que a sua antropologia é desvinculada de uma compreensão de seu contexto social. A característica antissocial não pode ser interpretada em uma leitura atenta na obra de Kierkegaard: há uma relação entre a sua compreensão do indivíduo e o que se articula com relação ao outro. Tais conexões serão discutidas especificamente a partir de O desespero humano e em sua análise do desespero e seus estádios existenciais. O importante a se destacar é que sua filosofia se volta para o Eu para depois desdobrar-se em sua complexidade, como a angústia e o desespero, em cujo centro comparece o indivíduo.

21.4 PERSONIFICAÇÕES DO DESESPERO

Como se viu, o eu é uma síntese formada de finito e

infinito, de possível e necessário. A consciência e a harmonia nesse composto dialético, formado por esses polos distantes, são fundamentais para a realização da existência do indivíduo, que depende unicamente, depois da possibilidade oferecida por Deus, de uma escolha íntima e, portanto, pessoal. Deus, autor do homem dá a ele a sua relação, constitui o ser do homem, dotando de possibilidade e necessidade, finito e infinito, temporalidade e participante da eternidade.

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Sobre o desespero em Kierkegaard

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Estabelecendo o homem com ser complexo, o dota de liberdade para estabelecer o equilíbrio e a harmonia de sua dialética. Isso nos confirma Kierkegaard (2010):

[...] o eu é formado de finito e infinito. Mas a sua síntese é uma relação que, apesar de derivada, se relaciona consigo própria, o que é liberdade. O eu é liberdade. Mas a liberdade é dialética das duas categorias do possível e do necessário (p. 45).

Por ser um componente dialético, dividido e ao

mesmo tempo coeso em polos, torna o homem possível, aberto na escolha sobre si; porém, a realização do si mesmo não se dá apenas por si. Kierkegaard fala do terceiro termo, Deus, como aquele que garante a realização do homem:

O que esta fórmula, com efeito, traduz é a dependência do conjunto da relação, que é o eu, isto é, a incapacidade de, pelas próprias forças, o eu conseguir o equilíbrio e o repouso, isso não lhe é possível, na sua relação consigo próprio, senão relacionando-se com o que pôs o conjunto da relação (KIERKEGAARD, 2010, p. 26).

Percebe-se aqui o relacionamento necessário com o

divino para o filósofo. Sem uma relação de aceitação de seu Autor, o homem, cai em uma das formas de desespero. O desespero do escandalizar-se, da não aceitação do terceiro termo.

O desespero faz-se, portanto, no não saber se orientar em sua existência, desarmonizando entre os polos da relação, se distanciando de sua realização originando o desespero. Desta maneira, busca-se fazer uma análise do desespero nas discordâncias possíveis da relação, pelas quais o desespero pode surgir na priorização de uma dessas formas dialéticas, (finito ou infinito, possível ou necessário) desprezando o seu contrário. A priorização de uma das partes da relação e vista

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da outra é chamado por Kierkegaard de carência, por faltar o oposto de um elemento.

As variações do desespero a se apresentar, assim, são formas sintéticas de modos possíveis do existir. O filósofo demonstra que em meio à multiplicidade de formas particulares da existência, o indivíduo pode apresentar alguma forma de desespero, mas mesmo assim, dentro de sua situação existencial, carrega a possibilidade do não desesperar, conquistando o si mesmo, o “Eu” kierkegaardiano (PROTÁSIO, 2015).

Para isso deve estabelecer a harmonia da relação consigo e com seu Autor. Essa harmonia depende do entender-se como ser formados por elementos necessários de finitude, temporalidade, e de outro os elementos possíveis, que diferenciam o indivíduo, tornando-o especial diante da criação, infinitos e eternos, dando-lhe o seu caráter transcendente, abrindo-lhe para que entre em contato com Deus. Nesta perspectiva, a existência humana, que se move pelo espaço e tempo, se depara com algo que vai além de si, e ao mesmo tempo transpassa seu eu. Na oscilação de suas possibilidades, e na liberdade de escolher em sua relação, o indivíduo se desespera e se encontra como único que sofre de doença mortal e ao mesmo tempo possuidor de uma consciência de estar diante de seu Criador.

Sendo assim, passa-se à análise do desespero que sempre se mostra dentro do ângulo de carência do oposto, isto é, a priorização de um dos pontos da síntese, deixando de lado sua antítese, não o vendo como parte constituinte de si.

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21.5 A CONSCIÊNCIA DO DESESPERO Comentadores afirmam que o nível de consciência é

diretamente proporcional ao grau de desespero. Assim, se uma pessoa tem consciência elevada, maior será seu desespero em relação a uma pessoa de menor consciência de ser um eu. Todavia, “Dizia Kierkegaard que o melhor que pode fazer por uma pessoa é torná-la inquieta”. (FARAGO, 2006, p. 110).7 Esta inquietude é fundamental, pois somente a partir da consciência de sua doença mortal a pessoa poderá superá-la e buscar ser a si mesma. O desespero passa a ser desafio, visto que luta em favor do seu eu. Entretanto, há também quem se desespere pelo fato de esforçar-se por ser outrem. Nesse caso, o desespero assume a qualidade de fraqueza; esta, por sua vez, poderá ser consciente ou inconsciente da fuga do próprio eu. Ergo: o homem se torna medida de si mesmo.8

O desespero que ignora o eu,9 é um desespero que ignora a verdade. São muitos os homens que não se conhecem e pouquíssimos aqueles que se preocupam em compreender-se. De acordo com Kierkegaard:

[...] os homens estão longe de considerar como supremo bem a relação com a verdade, a sua relação pessoal com a verdade, como estão longe de concordar com Sócrates em que a pior das infelicidades é estar em erro; neles, o mais das vezes, os sentidos têm mais forças que a intelectualidade (KIERKEGAARD, 2010, pp. 60-61).

7 Citação referente à nota de rodapé. 8 A medida se refere ao que o eu tem diante de si como regra moral, isto é, a medida é a base pela qual o homem orienta a sua vida (Cf. Kierkegaard, 1988, p. 241). 9 Ignorar o eu, significa que não se tem consciência de ser uma relação estabelecida por Deus. Relação que só se realiza quando, crendo, o indivíduo volta-se para seu Criador.

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Deste modo, na inconsciência do eu o indivíduo deixa prevalecer o sensível e vive apenas na categoria estética que lhe agrada os sentidos, se entrega às falsas alegrias, se apega aos prazeres que a finitude propõe e acaba ignorando o eterno que nele habita. Acomodados no finito e nos prazeres que estes oferecem, odeiam todo aquele que os tenta encaminhar para a verdade. Presos aos sentidos e ao prazer de sua sensualidade, os acomodados esquecem-se de seu espírito e, consecutivamente, de seu eu e, deixam de buscar a sua parte mais nobre.

Kierkegaard critica os idealistas, em especial Hegel, ao dar o exemplo de um pensador que elabora um enorme sistema que explica toda a existência humana e a história do mundo; mas este pensador teme encontrar a verdade, de que tudo aquilo que construiu são “palácios” sem sentido, que nem mesmo ele habita (HANNAY,1997).

Pode-se ter consciência da existência e vivê-la, porém, desvendar seu mistério é algo irrealizável. Deste modo, a pretensão do hegelianismo é irrealizável. Pode-se confirmar com as palavras do pensador dinamarquês que:

“Sócrates disse, ironicamente, não sabia com certeza se era homem ou algo diferente. Mas um hegeliano pode dizer no confessionário, com toda a solenidade: ‘Não sei se sou um homem – mas compreendi o sistema’. Prefiro, portanto, dizer: ‘Sei que sou homem e sei que não compreendi o sistema’” (KIERKEGAARD apud REICHMANN, 1971, p. 228).

Para Kierkegaard, não é possível de se explicar a

existência, por meio de uma abstração. O real é um pensar junto com o ser e, a abstração da existência se faz com o próprio agir. Deste modo, há uma grande diferença entre o pensador abstrato, que formula sistemas sobre a existência, em relação ao pensador subjetivo que a vive. Ser consciente

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de sua relação, não é decifrar o enigma da existência, ser consciente e ter a possibilidade em mãos de fazer de si aquilo que lhe é autêntico. Assim, distingue o dinamarquês:

Em lugar da tarefa do pensador abstrato, que consiste em compreender abstratamente o concreto, o pensador subjetivo tem, ao contrário, por tarefa compreender concretamente o abstrato. O pensamento abstrato afasta seu olhar dos homens concretos para considerar o homem geral. O pensador subjetivo compreende a abstração ‘ser homem’ concretamente: ser este homem particular existente (KIERKEGAARD apud REICHMANN, 1971, pp. 252-253).

Aqui se percebe a clara crítica kierkegaardiana ao

sistema lógico que pretende entender a existência, que cai na falha da elaboração de conceitos como nação, estado, povo, humanidade como sendo primordiais na linha de pesquisa. A supervalorização do abstrato, desse homem geral, sem concretude só permite a nebulosidade e o afastamento do indivíduo de si mesmo (GREEN, 1997). Ser um pensador subjetivo é ir contra a ideia abstrata imposta pela corrente lógica sobre a existência, é se afirmar como tal e realizar a compreensão de si nas escolhas, se angustiando e se desesperando, mas buscando alcançar a realização de sua relação (KIERKEGAARD, 2010).

Muitos homens constroem sistemas filosóficos que não passam de falsos palácios, pensam que encontrarão a verdade sobre sua existência, contudo, vivem de mentiras, não vendo o que são. Assim, ignoram o desespero, que é ainda maior, pois além de não ser a si mesmo, são privados da cura por causa da ignorância.

Deste modo, de acordo com Kierkegaard (2010):

[...] o desesperado que se ignora esta realmente mais longe da verdade e da salvação do que o desesperado consciente,

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que se obstina em sê-lo; pois [...] o seu desespero é mais intenso (p. 63).

Estar desesperado e ignorante desse fato é um estado

profundo do desespero, pois o ignorante não busca a sua sanidade. Já o indivíduo que se conscientiza de seu desespero, está mais apto a curar-se; é como um doente que sabendo de sua enfermidade, procura a cura diferentemente de outro que, também estando doente não sabe de sua enfermidade e, portanto, não procura a cura.

Este modo de desesperar é o mais frequente entre os homens: o desespero que se ignora. Ligados ao estético, os homens não têm interesse de conhecer seu desespero, pois sua forma de vida não os auxilia em tal problematicidade, porque o estético carece de uma consciência espiritual (GREEN, 1997).

Infelizmente qualquer homem que não se conhece, por ignorância, ou mesmo como consciência fugitiva de si mesma, acaba por não relacionar-se com seu Criador e, por isso, está longe da salvação (KIERKEGAARD, 2010). Porém, a intensidade do desespero na forma da ignorância não é seu ápice, pois há estados mais avançados de enfermidade como diz o próprio autor: “[...] aquele que permanece conscientemente no desespero está mais longe da salvação, visto que o seu desespero é mais intenso” (KIERKEGAARD, 2010, p. 63). Isto posto, entende-se que o desespero que ignora seu eu não é tão perturbador no indivíduo quanto aquele que conscientemente nega a si mesmo, obstinando-se em ser outro diferente de si, sem, no entanto, poder fugir de sua relação.

Supõe-se que alguém se julgue desesperado. Será que esta pessoa é realmente consciente de seu desespero? Ou saberá ela o que é desespero? Há quem se julgue desesperado, porém, não conhece o que significa o desespero real e que este é mais profundo e mais íntimo do que se imagina ser

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(KIERKEGAARD, 2010). Conforme nosso filósofo, há dois estados extremos do desespero: a consciência e a inconsciência total. Entre esses extremos há aquele que, doente, supõe-se estar sofrendo de algum mal, mas não sabe qual; alguns tentam buscar a solução para o que pensam estarem sentindo, mas buscam-na no exterior, no trabalho, nos estudos de sistemas que pretendem explicar tudo. Desta forma, preenchem as suas vidas com coisas vãs, afastando-se sempre mais da verdade.

No entanto, quanto maior for a consciência do desespero, maior o desespero se torna, pois assim se tem a ideia do tamanho do mal de que se padece. Uma pessoa que comete suicídio, consciente do seu desespero e, portanto, consciente de que comete um crime contra o seu eu, se encontra em um estado de desespero mais profundo do que uma pessoa que se suicida ignorando o seu desespero. Diz Kierkegaard:

[...] quanto mais lucidamente nos conhecemos (consciência do eu) ao suicidar-nos, mais intenso é o nosso desespero, em comparação com o daquele que se suicida num estado de alma indeciso e obscuro (KIERKEGAARD, 2010, p. 68).

Portanto, reforçando, quanto maior for a consciência

em relação ao espírito (e deste modo, da condição de desespero que ele padece), maior será o desespero daquele que busca se alienar de seu ser.

Por vezes, o desespero pode passar despercebido, por outras pode demonstrar clareza; é difícil medir a sua intensidade, porém, é de se imaginar que a consciência de um furto por alguém eticamente correto leva esse alguém a uma perturbação muito maior diante do delito do que aquele que comete crimes costumeiramente e faz isso sem nenhum escrúpulo. Diante desse fato da escolha de si, entre “ser ou

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não ser”, o eu toma a sua decisão livre se escolhe por querer inventar um eu ao seu bem querer, distanciando-se da sua relação, rejeitando, assim, aquilo que lhe foi estabelecido. O desespero se faz, e tão mais grave, se for consciente (GREEN, 1997).

Ser criador de si mesmo, sem ligação e comprometimento com seu Criador por decisão lúcida, leva esse indivíduo a um desespero elevado. Ainda mais se nega aquilo que lhe faz próximo de seu Autor, como a infinitude, a eternidade e a possibilidade; este indivíduo sofre do mal de querer possuir apenas aquilo que lhe limita. Somando elementos (de finitude, de temporalidade e de necessidade), o indivíduo perde seu brilho de existente dopando-se e tornando-se um animal apenas sensitivo, sem escolhas, sem possibilidades. Caminhando neste rumo o desesperado pode assumir duas posições: querer fazer ao seu modo, e por isso, desafiar sua forma dada de existência, ou posicionando-se em um desespero-fraqueza, que é a fuga do seu ser.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A situação do homem é essa: se encontra no mundo,

diante de si mesmo e em frente a seu Criador. Essa é a realidade de sua existência e a partir disso o homem pode se situar ou existencializar-se por meio de três possibilidades ou modos de existir. Esses modos de existência são como estações que se passa por elas sem, no entanto, negar a possibilidade de repassar pelas mesmas.

As nuanças entre os estádios não ocorrem por uma necessidade. Caso assim fosse, perceberíamos que cairíamos no erro hegeliano da evolução constante e sistemática do existir. E nessa liberdade de ser, Kierkegaard desenha em seus escritos numerosos personagens representando a realidade, o sujeito, revelado e não catalogado em suas variáveis situações ou posicionamentos diante da existência. De como vimos, a

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forma literária é usada de forma tática, onde cada leitor se identifica com o personagem, sem se sufocar com escritas sistemáticas e lógicas; a vida em seus dramas é representada em forma de drama pelo filósofo danês.

Viu-se o esteta como um sedutor insaciável de desejo rejeitando o compromisso, movendo-se pelo terreno do prazer. A situação estética é clara quando se define como um estado de satisfação sensível do desejo irrefreado e irresponsável, como a beleza corporal, glórias e riquezas. Percebeu-se que esse modo de se comportar diante da vida se dá quando se desconhece ou não se quer viver ao lado infinito do ser, ou seja, a natureza que leva a proximidade com o divino.

Também vimos que o filósofo aponta outra forma de encarar a vida, a forma ética de ser, que nasce da escolha pela estabilidade, continuidade que o estádio estético em seu incessante desejo exclui na busca da variedade. Aqui o domínio de seus desejos em vista do bem comum é o que caracteriza o ético, que tem mais controle sobre si. Nesse controle, o ético reflete mais sobre si e seus desejos, propiciando um olhar maior para si, o que para o danês demonstra grande avanço. No entanto, o ético ainda está preso na postura que ele tem para com a vida social. Assim, a fé entra como contradição que leva a suspensão dos costumes morais comumente aceitos socialmente. O paradoxo do que crê é, de um lado, visto como aquele que encontra uma intimidade do eu com seu criador, e, por outro, está diante do absurdo do escândalo que o incompreensível carrega em si, a ponto de haver uma negação do ético em vista das exigências da fé.

Vimos que o filósofo não quer negar a importância dos valores éticos, até porque se fosse diferente o amor ao próximo, exigência cristã, não se fundaria no descaso com o outro. Mas, o ato mais excelente está no cumprimento da vontade divina.

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A conclusão que se chega sobre os estádios da existência é que para Kierkegaard é impossível uma mudança existencial de um estádio para outro negando por completo cada um em vista de outro; contudo, há uma escolha pessoal que corresponde a um amadurecimento, alcançado pela tomada de consciência de que se é um espírito.

Sendo assim, um estádio não aniquila o outro, mas o transfigura; o homem não deixa de sentir, de ter paixões a partir do estádio ético, ou passa a ser somente infinito com o salto religioso. O homem continua sendo homem e isso implica em ser uma relação. Essa concepção do filósofo, demonstra uma percepção da complexidade humana, não caracterizando o homem como um ser fechado a uma realidade só, mas aberto diante da multiplicidade de seus polos. (VALLS, 2008).

A leitura que Kierkegaard faz do ser humano dá ao homem uma justificativa para se viver e morrer sem, no entanto, fechá-lo em um sistema que o determine e explique de todo a situação do indivíduo que está no mundo e que se desespera, se angustia, sofre, se apaixona, ama, e que um dia irá desaparecer devido à sua finitude.

Ficou claro, para nós, que para o filósofo danês, em um sistema lógico não poderia existir a liberdade da existência, onde o indivíduo é uma peça do quebra cabeça da realização da razão, ocupando um papel secundário na existência, a qual anula a individualidade e a liberdade em vista da realização da razão. A vida do individuo de fé, é uma vida de uma relação do eu com um absurdo; relação de paradoxo do homem-Deus; diante de uma verdade que depende exclusivamente da crença no absurdo. E é nessa vivência do absurdo, do ilógico que o indivíduo vai se realizar como ser autêntico, como um eu.

Kierkegaard, com seu diagnóstico sobre a existência, tinha esperança que ao anunciar a situação do homem no mundo como ser desesperado, pudesse abrir os olhos do

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indivíduo diante de seu ser e assim buscasse a solução de seu mal, ou ao menos se pusesse a refletir sobre seu ser, pois o importante é fazer o indivíduo escolher e buscar uma verdade para si e vivê-la intensamente.

Como foi dito, o filósofo dá uma compreensão da humanidade: para ele, o ser humano é uma síntese de corpo e alma, de finito e infinito, de temporal e eterno. Aí está a dignidade humana diante do restante. Da relação destes termos dialéticos é o espírito, pelo qual o homem se distingue de todo o resto do mundo. Mas ser uma relação não é ser um eu. Deste modo, o espírito em uma relação consigo mesmo, dá origem ao eu, por meio da reflexão da relação e a conciliação das partes da síntese. Em um desdobramento no tempo, entre escolhas sobre si, o eu se faz na realização da síntese entre infinito e finito, temporal e eterno, liberdade e necessidade.

Ainda foi visto que o conjunto da complexidade humana não surge do nada, nem tão pouco se origina em uma geração espontânea do sujeito, pois para o danês há um terceiro termo, um Autor, que permite ser. Para Kierkegaard, Deus é aquele que estabelece a relação do ser humano. Não é o homem que dá a si mesmo o seu próprio ser, mas participa desse pela responsabilidade de criar sua existência, que é produto de sua vontade.

Na dinâmica das escolhas o homem participa de sua criação e dirige sua vida em suas escolhas. Partindo das escolhas humanas, Kierkegaard fala sobre a questão da liberdade, que como foi visto, escapa à explicação da especulação lógica, pois ela não pode ser demonstrada racionalmente. Sua explicação equivale à sua inexistência: sendo ela livre, não pode ser definida, ou seja, explicar e fechar o que é o oposto em relação ao sentido real da liberdade. Desta forma, Kierkegaard conclui que a liberdade não é um problema da filosofia especulativa, mas algo da experiência viva individual.

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No entanto, as escolhas trazem consigo outra situação propriamente humana: os sentimentos de angústia e desespero, visto que a angústia é o sentimento que a liberdade causa no homem diante de suas possibilidades de escolher isto ou aquilo. Em um mundo externo a si, o desespero, alvo central apresentado nessa dissertação, é a doença do espírito, que surge da relação do indivíduo consigo mesmo. Na angústia o homem se relaciona com o devir de suas possibilidades, ou seja, com a liberdade, e essa relação é um estado onde se quer e ao mesmo momento se teme diante do contingente, finito, enquanto, o desespero é uma discordância diante do que é também infinito; é diretamente ligado ao estado que o homem se coloca diante de si e de seu Criador.

Sendo estabelecido por Deus, não cabe ao homem fugir de si mesmo, o que é inútil, acarretando apenas no desesperar, pois não se tem a possibilidade de deixar de ser o que se é: um espírito. Sendo assim, em meio à liberdade de como dirigir a sua vida, o homem se encontra em uma situação entre escolhas e estabelecimento irreversível do que se é. Cabe a ele a busca do não desesperar, realizando assim, sua existência como um autêntico eu.

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WESTPHAL, M. Kierkegaard and Hegel. In: Cambridge Companion to Kierkegaard. (Org.) Alastair Hannay; Gordon D. Marino. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, pp. 101-124.

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XXII

A MUDANÇA DA VERDADE E O DESENCADEAR DO HUMANISMO

Thiago Ehrenfried Nogueira

Verdade

A porta da verdade estava aberta, / mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. /Assim não era possível atingir toda a verdade, / porque a meia pessoa que entrava /só trazia o perfil de meia verdade. / E sua segunda metade/voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. /Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. /Chegaram ao lugar luminoso/onde a verdade esplendia seus fogos. /Era dividida em metades / diferentes uma da outra. / Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. / Nenhuma das duas era totalmente bela. / E carecia optar. Cada um optou conforme/seu capricho, sua ilusão, sua miopia. Carlos Drummond Andrade (ANDRADE, 2015, p. 865)

O poema de Drummond nos apresenta, e descreve,

duas relações dos homens com a verdade. A primeira é a relação do homem com a porta da verdade, a qual só era revelada meia verdade a cada meia pessoa, e a outra metade da verdade era revelada à outra metade da pessoa, porém elas não se completavam. A segunda relação é quando o homem derruba a porta que revela a verdade, buscando ter posse dela por completo; porém, a verdade continuou tendo duas metades que continuavam sem se completar. Restou a cada homem apenas escolher qual lhe parecia mais bela. A relação com a verdade estabelecida pelo poema de Drummond também pode ser interpretada como a relação do poema com seu leitor, ou, sendo mais abrangente, do leitor com

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qualquer texto, onde a totalidade e completude do texto nunca se apresentam por completo, mesmo se arrancarmos a porta.

Esse nexo entre a verdade e o homem, estabelecido no poema, é análogo ao que o filósofo Martin Heidegger pensou sobre a verdade na tradição filosófica. A mudança de relação com a verdade originária, que Heidegger denomina a partir da palavra grega Alétheia (desvelamento), para a relação com a verdade como adequação. Esse será o tema deste escrito; mais precisamente, tratarse-á como esta mudança de visão em relação à verdade, no interior da tradição, tornou possível o desencadear do humanismo. Humanismo como modo de lida com o ente humano em geral.

Daremos foco ao escrito de Heidegger sobre a verdade em Platão denominado A teoria platônica da verdade, e alguns aspectos da Carta sobre o humanismo. Heidegger inicia o seu escrito falando do não dito em Platão, ou seja, aquilo que permanece no horizonte de sua doutrina, mas que não é declarado expressamente. Isso seria, para o filósofo, a mudança na essência da verdade.

O que permanece não-dito aí é uma virada na determinação da essência da verdade. Que essa virada se realiza,

em que consiste essa virada, o que vem fundamentado por essa mudança da essência da verdade é o que deve ser explicitado por uma interpretação da “alegoria da caverna”.1

O filósofo passa a sua interpretação da alegoria da caverna com o fim de explicitar a virada na determinação da essência da verdade, a qual demonstraremos nos seus pontos principais2. A alegoria da caverna pode ser vista, de acordo com Platão, como análoga à nossa vivência aqui na terra, como ele explica na República, em 517a, 8 até 518d, 7:

1 HEIDEGGER, M. Marcas do caminho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. p. 225. 2 Não há necessidade de fazer uma recapitulação da alegoria aqui, pois, além dela ser amplamente difundida e conhecida, o que importa para nós é a interpretação heideggeriana da mesma.

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A morada em forma de caverna serve de “imagem” para o “âmbito da morada que se mostra à visão que olha à sua volta”. O fogo na caverna, que arde acima dos habitantes da caverna, representa a “imagem” do sol. A abóbada da caverna representa a abóbada do céu. Sob essa abóbada, remetidos à terra e a ela ligados, vivem os homens. O que os circunda ali e o que lhes concerne é “o real”, isto é, o ente. Nessa morada em forma de caverna, eles se sentem “no mundo” e “em casa” e aqui encontram o elemento confiável.3

Portanto, a vivência na caverna constitui o ente e as

coisas que estão fora da caverna, iluminadas pelo sol, aparecem como ideias. Então, “as coisas citadas na “alegoria” e que são vistas fora da caverna, servem, em contrapartida, de imagem para aquilo que constitui o propriamente ente do ente. Segundo Platão, ele é aquilo por intermédio do que se mostra o ente em seu aspecto”4. As ideias fora da caverna são o reflexo, a imagem, por meio do que os entes na caverna aparecem, vem à tona, ou seja, os aspectos por meio dos quais os entes se mostram, representam as ideias fora da caverna. Essa explicação é muito importante para a explicitação da mudança da verdade, mas teremos que seguir na interpretação de Heidegger para que possamos compreender estes elementos.

A alegoria também nos apresenta processos de mudança do homem em relação aos âmbitos em que ele está exposto ao ente. O homem pode sair da caverna, e assim, ganhar um saber mais essencial sobre as coisas, e voltar ao sombreamento e à caverna, onde se encontra o saber presumido como “real”. Essa mudança necessita de tempo e

3 PLATÃO. República. Tradução: Maria Helena da Rocha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. 4 HEIDEGGER, M. Marcas do caminho. pp. 225-226.

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de adaptação do homem, tanto de seu corpo como de sua alma, para se acostumar aos diferentes âmbitos ao qual o ente está revelado ao homem. Essa mudança do homem deve realizar-se lentamente, pois o homem não pode sair da caverna e ir diretamente de encontro às ideias de fora, mas necessita de uma transformação total em seu ser para que possa realizar essa transição.

Mas porque é que em cada âmbito a adaptação deve ser constante e lenta? Porque a transformação concerne ao ser do homem e, por isso, se realiza no fundo de sua essência. Isto significa: a postura, que serve de medida e que deve surgir por meio de uma guinada, precisa ser desenvolvida a partir de um empuxo que já sustenta a essência do homem até atingir um comportamento firme. Esta mudança de hábito e este movimento de se reacostumar da essência do homem com o âmbito que lhe é indicado a cada vez é a essência do que Platão chama de παιδεία.5

Paideia (παιδεία) é a palavra usada em grego para

designar a educação do homem. Embora a significação originária da palavra para os gregos significasse muito mais do que a palavra formação tem para nós no cotidiano6, essa palavra pode ser aproximada à palavra alemã Bildung (formação). A relação entre essas duas palavras ficará mais clara após a exposição da alteração da verdade. Primeiramente, tenhamos em mente que Platão pretende não apenas expor a verdade, mas o modo como o homem vai se transformando em sua essência quando busca a verdade. Passaremos à explicação da mudança da determinação da verdade.

5 HEIDEGGER, M. Marcas do caminho. p. 228. 6 Cf. JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

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Na alegoria, ocorre uma transição entre quatro âmbitos dos quais o ente se revela ao homem. Esse modo de revelação do ente ao homem ocorre a partir da verdade deste ente, ou seja, a partir do momento em que esta verdade se mostra, o que primeiramente não ocorre, pois o ente se mantém sombreado no interior da caverna. Essa verdade que se mostra é tratada por Platão como Alétheia, palavra que se traduz do grego por verdade, que significa desvelamento. Aquilo que desvela o oculto no ente, ou seja, a verdade modifica na totalidade todo o âmbito dos entes, de modo que tudo o que era dado pelo homem como natural e evidente se torna diferente, transformando em conjunto com o homem nesta relação.

No primeiro ambiente, os homens estão amarrados no interior da caverna; assim, estão presos ao ente que se apresenta de modo imediato. Nesta primeira fase o desvelado são apenas as sombras, isto é, o oculto; não há nada de verdade neste ambiente, pois a verdade do desvelamento não se encontra aqui. “Os que estão assim presos também não considerariam o desvelado como sendo outra coisa além das sombras dos instrumentos”.7

No segundo nível existe uma retirada das cordas que amarram os homens, tornando-os livres e permanecendo, porém, dentro da caverna. Aqui os indivíduos conseguem olhar para todos os lados e não apenas para as sombras que eram projetadas na parede. Aqueles que antes estavam em meio à escuridão das sombras, se encontram aqui, “tanto mais perto do ente”8 e conseguem olhar para o fogo da caverna. O fogo da caverna já revela o ente em seu aspecto segundo as ideias, de modo que já se encontra aí um desvelamento onde as coisas aparecem sem sombreamento. Porém, o sujeito ainda

7 PLATÃO. República. 515c,1-2 8 Ibidem, 515 d,2.

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considera este desvelamento como falso, como mentiroso, pois não está acostumado com este âmbito mais desvelado. O natural e evidente antigo aparece como diferente para ele, que precisa mudar sua alma na totalidade para se acostumar com a verdade desvelada.

Por quê? O brilho do fogo, ao qual seu olho não está acostumado, cega o liberto. A privação da vista impede-o de ver o próprio fogo e de perceber como o seu brilho ilumina as coisas e, só assim, as deixa aparecer. Por isso, também, aquele que foi ofuscado não consegue compreender que o anteriormente visto é apenas uma sombra das coisas, à luz deste mesmo fogo. É verdade que agora o liberto vê algo diferente das sombras, porém, tudo num emaranhado sem par, em comparação com o qual as sombras, vistas graças a uma fogueira desconhecida e não vista, mostram contornos firmes. Por isso, para os libertos, a constância que aparente das sombras deve ser, também, “mais desvelada”, uma vez que é visível e desemaranhada. Por isso, a palavra άλήθέφ ocorre, novamente, no final da descrição do segundo estágio e, na verdade, agora no comparativo, άλήθέστερα, “mais desvelado”. A verdade mais própria oferece-se nas sombras, pois mesmo o homem liberto de suas correntes ainda se engana ao avaliar o “verdadeiro”, porque a ele falta a condição prévia do “avaliar”, a liberdade. É verdade que a retirada das correntes traz uma liberação. Contudo, estar desacorrentado ainda não é gozar da verdadeira liberdade.9

A liberdade, propriamente dita, do homem só é

alcançada no terceiro ambiente. “Aqui, aquele que foi liberto das amarras é transposto ao mesmo tempo para o exterior da caverna, “para o espaço livre”10. Neste espaço livre e fora

9 HEIDEGGER, M. Marcas do caminho. p. 232 10 Ibidem.

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da caverna as coisas se mostram como elas são, não mais perante o fogo dentro da caverna, que sobreia, mas “as coisas estão aí na concisão e vinculação de seu próprio aspecto.”11

O aberto e livre, no qual os libertos foram agora transpostos, não se refere à falta de limites de uma mera amplidão, mas antes à ligação delimitadora da claridade que brilha à luz do sol, o qual também é comtemplado. As visões daquilo que as próprias coisas são, as ideias, constituem a essência e cuja luz se mostra todo ente singular como este ou aquele, em cujo mostrar-se aquilo que aparece se mostra primeiramente de maneira desvelada e acessível.12

O homem, quando se encontra no interior da

caverna, já sofre dificuldade para se libertar das amarras e olhar para o fogo da caverna. Então, o libertar-se totalmente e sair da caverna demanda o máximo de empenho e demora em cada âmbito desvelado do ente. A libertação do homem é essa guinada para o que se mostra no ente, o seu aspecto e esse empenho e demora a ele, aprendizado e transformação. Esse é o significado da paideia grega, pensada por Platão, e a relação entre formação e verdade. “A essência da formação tem suas raízes na essência da verdade.”13 A verdade é essa conquista pela luta que arranca o velamento das coisas, conquista que ocorre pela formação do indivíduo:

A παιδεία contém em si esta remissão essencial à ausência de formação. E se a “alegoria da caverna”, segundo a explicitação do próprio Platão, deve dar concretude plástica à essência da παιδεία, então essa concretização plástica terá de tornar visível também e precisamente este

11 Ibidem, p. 233. 12 Ibidem. 13 Ibidem, p. 234.

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momento essencial, a constante superação da ausência de formação. É por isto que a narrativa histórica não acaba, como gostaríamos, com a descrição da chegada ao nível mais elevado da escalada a partir da caverna. Ao contrário, pertence à “alegoria” a narrativa do retorno do liberto para o interior da caverna, para junto daqueles que ainda estão amarrados. O liberto também deve retirar agora estes homens daquilo que é para eles o mais desvelado e conduzi-los para cima para diante do mais desvelado. Mas o liberto já não consegue orientar-se dentro da caverna. Corre o risco de sucumbir à supremacia da verdade que serve ali de medida, isto é, à pretensão da “realidade” comum como sendo a única. O liberto está ameaçado pela possibilidade de ser morto, uma possibilidade que, no caso do destino de Sócrates, “mestre” de Platão, se tornou realidade.14

Portanto, o final da alegoria, e o quarto ambiente que

é descrito por ela, é o retorno para o interior da caverna. A luta entre o que foi liberto e os presos, cegos, que não querem ser livres, completa a narrativa platônica. Veja que aqui, o desvelado continua como tema: “O fato de a “privação”, a conquista do desvelado que o arranca pela luta, pertencer à verdade vem assinalado de modo próprio no quarto nível da “alegoria”. É por isto que também este nível, como acontece em cada um dos outros três níveis da

“alegoria da caverna”, trata da ἀλήθεια”15 (Alethéia). Essa “alegoria” só pode ser efetivamente uma “alegoria” construída a partir da visão da caverna, porque ela é co-determinada de antemão pela experiência fundamental da

ἀλήθεια, do desvelamento do ente, auto-evidente para os gregos. Pois o que é a caverna subterrânea senão algo aberto em si mesma, que permanece ao mesmo tempo

14 Ibidem. 15 Ibidem, p. 235.

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circundada pela abobada e, apesar da abertura, fechada pelas paredes de terra que a circundam. O contorno, aberto em si, que encerra a caverna e o que vem englobado e, portanto, velado remetem ao mesmo tempo para um fora, o desvelado, o que se expande na luz pelo dia afora. É o que inicialmente se pensou, de forma grega,

como a essência da verdade no sentido da ἀλήθεια, o desvelamento ligado ao velado (disfarçado e encoberto), e apenas ele possui uma relação essencial com a imagem da caverna colocada abaixo do dia.16

Terminamos a exposição de como a verdade era

pensada originariamente pelos gregos como desvelamento. Entretanto, na própria alegoria da caverna, ocorre uma mudança essencial em como a verdade é determinada, mudança essa que se encontra em primeiro plano na alegoria, a qual passaremos à explicação. Para Platão, ainda que as relações com o desvelado sejam importantes no interior da narrativa, o que tem mais importância é a visibilidade e a claridade dos entes fora da caverna, o que significa que o desvelado é apenas meio para se alcançar a ideia. A meditação platônica visa a ideia. “A “idéia” é o aspecto que empresta visibilidade àquilo que se presenta.”17

O que está por detrás do desvelado, o que torna visível e revela o velado é a ideia que brilha fora da caverna, ela é a condição para o desvelamento. O sol, que na alegoria é denominado como a ideia do bem, é o que torna possível que as coisas sejam vistas na terra, ele que ilumina as coisas. Mas o homem só vê as coisas em seu desvelamento, na medida em que seu olho está conforme o sol, conforme a ideia do bem; seu olho se entrega à iluminação do sol (ideia) e consegue notar os entes que aparecem:

16 Ibidem, p. 236. 17 Ibidem, p. 237.

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A “alegoria” nomeia o sol como imagem de idéia do bem. Em que consiste a essência dessa idéia? Enquanto idéia, o bem é algo que aparece, enquanto tal, ele é algo que doa visão, e enquanto esse elemento doador mesmo, ele é algo visível e, por isto, cognoscível, e, em verdade, [...] (517 b,8)18 “No âmbito do cognoscível, a idéia do bem é aquilo que leva à consumação todo luzir e, por isto, em última instância, a visibilidade propriamente vista, de modo que quase não é vista propriamente (só com grande dificuldade)”.

O sol, como ideia do bem19, é a ideia suprema que

torna todas as outras ideias possíveis, que ilumina os entes para se mostrarem em seus aspectos mesmos (ideias mesmas). Essa é a concepção de verdade que se encontra hierarquicamente superior à noção de desvelamento na alegoria de Platão. Essa é, portanto, a mudança na determinação essencial da verdade que se inicia com Platão: o desvelamento é subjugado à ideia.

A ἀλήθεια poe-se sob o jugo da idéia. Na medida em que afirma que a idéia é a senhora que permite o desvelamento, Platão está fazendo remissão a algo não dito, a saber, que daí em diante a essência da verdade não se desenvolve propriamente como essência do desvelamento a partir da plenitude essencial própria, mas se desloca para a essência da idéia. A essência da verdade abandona o traço fundamental do desvelamento.20

O não dito expressamente no pensamento platônico, portanto, é a mudança da verdade com vistas à ideia. Essa mudança tem vistas ao olhar sobre o ente, o olhar que

18 Citação da República feita por Heidegger. 19 Não nos interessa, para este escrito, as consequências morais desta ideia, porém ela é denominada como ideia do bem, pois é origem de todos os comportamentos justos e belos do homem. 20 Ibidem, p. 242.

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ilumina de acordo com o sol, que deixa o iluminado aparecer em seu aspecto mesmo. Há aqui, então, uma relação do olhar com as coisas mesmas, relação que deve ser de concordância (retidão). “Por meio desta retidão, o ver e o conhecer tornam-se retos, de tal modo que, por fim, encaminham-se diretamente à ideia suprema, firmando-se nessa “direção reta”.21 A transição dos ambientes de revelação das coisas, no interior da narrativa da alegoria, consiste em tornar o olhar dos homens mais reto, de acordo com a ideia. A partir disso há cada vez mais uma concordância do conhecimento dos homens com a coisa mesma, uma adequação do olhar aos entes revelados.

Platão é o ponto onde se inicia uma alteração no modo como a verdade é determinada, a qual originariamente era desvelamento, vira adequação. Heidegger evidencia isso:

“Desvelamento em grego chama-se ἀλήθεια, palavra que se traduz por “verdade”. E, desde há muito tempo, para o pensamento ocidental, “verdade” significa adequação da representação pensante à coisa: adequatio intellectus et rei”.22 A ideia passa então a ser a medida entre o conhecer e o conhecido. Nesta relação de mediação entre o homem e as coisas a tradição se fez.

Essa mediação é, na tradição, o fator que faz a adequação dos dois polos, homem e coisa. Ela é pensada como razão, representação, imagem, entre tantas outras coisas. Então a mudança da verdade também consiste numa mudança de comportamento em relação a ela, pois antes a verdade estava no ente que se desvelava, mas agora ela está no comportamento humano em relação ao ente. Essa é a ligação mais forte que Heidegger observa no pensamento de Platão: a formação do homem com a verdade. Esta é uma retidão cada vez mais difícil e disciplinada em relação à coisa.

21 Ibidem. 22 Ibidem, p. 230.

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A Paideia é a formação do homem com vistas à sua retidão à ideia, à sua adequação ao correto. Esta ideia na tradição é pensada como imagem do homem, uma imagem perfeita, que este busca alcançar; por isso a palavra alemã para formação (Bildung) vem de Das Bild: imagem, formação. Significa, etimologicamente, a adequação do homem à sua imagem. As raízes da formação do homem moderno se encontram na mudança da verdade propiciada por Platão.

A educação converte-se aqui, pela primeira vez, em formação, isto é, na modelação do homem integral de acordo com um tipo fixo. A importância de um tipo dessa natureza para a formação do Homem esteve sempre presente na mente dos gregos.23

Essa alteração na determinação essencial da verdade

muda não só o comportamento do homem em relação à verdade, mas o lugar da verdade. Verdade passa a ser algo do ente, conhecimento do ente, ao que determina o ente mesmo. A partir de então ocorre o esquecimento do ser. Platão inaugura a metafísica como a procura para as ideias que estão além do desvelado pelas coisas, o fundamento de todas as coisas, o suprassensível só alcançado pelo pensar. A determinação do ser de todos os entes é fixada por Platão como ideia do bem.

As idéias, são o supra-sensível contemplado em um olhar não sensível, o ser do ente que não pode ser apreendido com o instrumental do corpo. E o mais elevado no âmbito do supra-sensível é aquela ideia que, como a ideia das ideias, continua sendo a causa originária de toda a consistência e aparecimento de todo ente. Porque essa “ideia” é deste modo a causa de tudo, ela também é a ideia que se chama “o bem”. [...] Desde a interpretação do ser

23 JAEGER, W. Paidéia. p. 44.

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como ideia, o pensar sobre o ser do ente tornou-se metafísico, e a metafísica tornou-se teológica. Teologia significa aqui interpretar a “causa” do ente como Deus e deslocar o ser para essa causa, que contém em si e dispensa a partir de si o ser, uma vez que é o que há de maximamente ente do ente.24

Essa mudança de lugar da verdade, com foco no ente

é o que colocou o ente humano como ente central, pois a verdade passou a ser localizada no seu intelecto. “A mesma interpretação do ser como ideia, que deve sua primazia à

mudança da essência da ἀλήθεια, exige que se caracterize o olhar para essas ideias. A essa caracterização corresponde o papel da παιδεία, a “formação” do homem. O esforço em favor do ser-homem e a localização do homem no meio do ente domina a metafísica”.25 O começo da metafísica platônica é o começo do humanismo como modo de lida do ente humano em adequação a uma imagem de homem, sendo essa imagem um ser-homem absoluto, supremo:

Seja o que for que aconteça ao homem histórico, isto advém a cada vez de uma decisão a respeito da essência da verdade, que foi tomada anteriormente e que jamais repousa sob domínio do próprio homem. Por essa decisão já sempre se delimitou aquilo que, sob a luz da essência já estabelecida da verdade, se procura e se institui como verdadeiro, mas também aquilo que vem descartado e superado como não verdadeiro.26

Com a ocorrência do esquecimento do ser, e

aparecimento do ente humano tomando lugar do ser o humanismo torna-se uma manipulação do homem, uma dominação deste ente. É isso que torna o humanismo um 24 HEIDEGGER, M. Marcas do caminho. p. 246. 25 Ibidem, p. 247. 26 Ibidem, p. 249.

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modo técnico de lida com o homem, fundado em uma metafísica, como Heidegger aponta na Carta sobre o Humanismo:

Quando o pensar chega ao fim, na medida em que sai do seu elemento, compensa esta perda valorizando-se como “tekhne”, como instrumento de formação e, por este motivo, como atividade acadêmica e acabando como atividade cultural. A Filosofia vai transformar-se em uma técnica de explicação pelas causas últimas. Não se pensa mais; ocupamo-nos de "Filosofia". Na concorrência destas ocupações elas então exibem publicamente como "ismos", procurando uma sobrepujar a outra. O domínio destas expressões não é causal. [...] A linguagem abandona-se, ao contrário, ao nosso puro querer e à nossa atividade, como um instrumento de dominação sobre o ente. Este próprio ente aparece como o efetivamente real, no sistema de atuação de causa e efeito. [...] Por mais que se distingam estas espécies de humanismos segundo as suas metas e fundamentos, a maneira e os meios de cada realização, e a forma da sua doutrina, todas elas coincidem nisto: que a humanitas do homo humanus é determinada a partir do ponto de vista de uma interpretação fixa da natureza, da história, do mundo e do fundamento do mundo, e isto significa, desde o ponto de vista do ente na sua totalidade. Todo humanismo funda-se numa Metafísica ou ele mesmo se postula como fundamento de uma tal. Toda a determinação da essência do homem que já pressupõe a interpretação do ente, sem a questão da verdade do ser, e o faz sabendo ou não sabendo, é Metafísica.27

Desta maneira chegamos ao final do escrito, onde

apresentamos a interpretação de Heidegger sobre a “alegoria

27 HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Coleção os Pensadores. Tradução de Ernildo Stein. 1 ed. São Paulo. Abril Cultural, 1973, pp. 349-351.

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da caverna” de Platão. Retomando, assim, a relação originária com a verdade como desvelamento, e a mudança que o filósofo grego trouxe à determinação essencial da verdade para adequação. A partir daí foi apresentado como isto pode desencadear o Humanismo. Ambas as relações com a verdade podem ser interpretadas no poema da epígrafe de Drummond, que nos apresenta que a mudança da verdade está no modo como os homens se relacionam com ela, assim como podemos encontrar em Platão na relação entre a formação humana e a verdade. REFERÊNCIAS ANDRADE, C. D. Nova Reunião. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.

HEIDEGGER, M. A essência da verdade. In: Marcas do caminho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

___________. A essência do fundamento. In: Marcas do caminho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

___________. A teoria platônica da verdade. In: Marcas do caminho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

___________. Sobre o humanismo. Coleção os Pensadores. Trad. Ernildo Stein. 1 ed. São Paulo. Abril Cultural, 1973.

JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

PLATÃO. República. Trad. Maria Helena da Rocha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

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A CRÍTICA DE HUSSERL AO PSICOLOGISMO E SUA IMPORTÂNCIA PARA A ORIGEM DA

FENOMENOLOGIA

Vitória Brito Prolegômenos à Lógica Pura, volume introdutório das

Investigações Lógicas, publicado originalmente em 1900, tem por objetivo evidenciar e fundamentar a lógica enquanto uma disciplina teorética pura, a priori, cujo caráter equivaleria ao de uma “doutrina das ciências”, ou seja, ao domínio de conceitos fundamentais comuns a todas as ciências e que, portanto, deve ser distinto de quaisquer elementos de natureza fática ou psicológica. A obra é, por isso, um marco no que diz respeito à refutação das teses do principal movimento da época acerca da fundamentação da lógica - o Psicologismo Lógico que, grosso modo, consistia em considerar a lógica como parte/subcampo da psicologia empírica. A crítica realizada por Husserl assume destaque porque não apenas evidencia os equívocos na interpretação psicologista da lógica, como demonstra sistematicamente todas as consequências e contrassensos teóricos originados a partir deste modo de consideração, sobretudo, no que concerne à fundamentação das ciências formais, alertando-nos sobre o risco de incorrer em relativismo. Assim, pode-se dizer que Prolegômenos nada versa sobre uma exposição pormenorizada de conteúdos lógicos: trata-se, antes, de uma investigação rigorosa acerca da epistemologia e filosofia da lógica.

O presente ensaio tem por objetivo apresentar o argumento de Husserl contra o psicologismo e sua importância para o estabelecimento de uma ciência teorética

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pura. De início, será exposto o pressuposto segundo o qual Husserl pretende fundar a necessidade de uma “doutrina das ciências”, bem como os seus atributos necessários. Segue-se com a suposição da lógica como disciplina equivalente à “doutrina das ciências”. No entanto, para consolidar a lógica como tal, deve-se avaliar se, originalmente, a lógica atende às condições necessárias e suficientes de uma disciplina teorética pura. Isto leva Husserl a analisar as definições de lógica predominantes, as quais incluem as definições oferecidas pelos lógicos normativos e as definições oriundas dos adeptos do psicologismo lógico. É neste momento que são apresentados os argumentos contra o psicologismo e apontadas as incorreções do modo de conceber a lógica pelos lógicos normativos.

O argumento anti-psicologista proposto por Husserl consiste em demonstrar que o psicologismo lógico conduz inevitavelmente a contrassensos teoréticos, os quais colocam sob questão a possibilidade do conhecimento (HANNA, 1993). No que diz respeito aos lógicos normativos, Husserl demonstra que ao conceber essencialmente a lógica como disciplina normativa ou como técnica do pensar correto, não só é negligenciado o caráter teorético da lógica, mas também abre margem às interpretações que reduzem a lógica ao nível de uma disciplina técnica. 23.1 A IMPORTÂNCIA DE UMA DOUTRINA DAS CIÊNCIAS ENQUANTO DISCIPLINA TEORÉTICA PURA

Husserl dá início à argumentação justificando a

possibilidade da lógica como doutrina da ciência. A afirmação da tese segundo a qual todo saber científico deve possuir uma unidade de conexão teorética é a base do argumento anti-psicologista. Segundo Husserl, a ciência se diferencia das demais formas de saber pelo fato de que nela a multiplicidade

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de saberes, com os quais são efetuadas operações, encontra-se conectada e sistematizada por teorias ou “Complexos superiores de fundamentações”. É por meio da teoria que a ciência ultrapassa o nível do conhecimento imediatamente evidente, isto é, do que é trivial e visa, deste modo, o domínio da verdade.

O conteúdo das teorias possui, necessariamente, o caráter de estrutura rígida, quer dizer, a partir de axiomas (proposições evidentes), os elos de pensamento não devem se dar de forma arbitrária, ao contrário, têm de ser orientados por uma lei reguladora. Em relação às teorias/fundamentações, Husserl chama a atenção para o fato de que elas assumem uma forma, de modo que:

[...] reside no caminho da fundamentação uma determinada forma, comum a inúmeras outras fundamentações, que está em determinada relação com uma lei universal que autoriza, num só golpe, a justificar todas essas fundamentações particulares. É um fato especialmente significativo que nenhuma fundamentação está isolada (§ 7).

Além disso, o aspecto formal das

teorias/fundamentações não pode ser, tendo em vista sua generalidade, vinculado a nenhum domínio concreto de conhecimento (ou a nenhuma ciência particular). Pois, todas as ciências, ao realizarem inferências, fazem uso de uma estrutura comum e independente de qualquer conhecimento concreto e limitado. Assim, a dependência das ciências quanto aos elementos formais das fundamentações aponta não só para o que está relacionado à possibilidade das ciências em geral, como também para uma doutrina da ciência, cuja especificidade é investigar o que, tomado a partir do aspecto formal, determina a ciência enquanto tal, ou seja, como um conjunto sistemático de teorias, bem como os métodos pelos

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quais são asseguradas suas respectivas validades. Haja vista estes aspectos, Husserl toma inicialmente a lógica(§ 11), ainda em sentido normativo, como doutrina das ciências, embora reconheça, para sua finalidade, que a interpretação vigente da lógica como ciência normativa se mostra incompleta.

23.1.1 Da incompletude das disciplinas normativas: a necessidade de uma disciplina teorética

Uma segunda afirmação deriva das considerações

acima, qual seja: que a existência de uma lógica em sentido prático/técnico e mesmo normativo não exclui a possibilidade que haja, em sua fundação, uma disciplina teorética. Isto quer dizer que, em última análise, as normas que prescrevem como devemos pensar e as técnicas correspondentes ao pensar correto possuem, como fundamento, um conteúdo teorético formalmente distinto de qualquer consideração normativa ou técnica. Isto foi, segundo Husserl, negligenciado pela tradição. Esta negligência abriu margem para interpretações equívocas da lógica, sobretudo, quando tomada no sentido de técnica do pensar (como fazem os psicologistas).

Para demonstrar que as disciplinas normativas em geral pressupõem disciplinas teoréticas, Husserl analisa, levando em consideração o aspecto formal, proposições universalmente válidas de ciências teoréticas como a matemática pura e mostra que originalmente, em relação ao conteúdo, tais proposições nada versam sobre o modo como devemos pensar, tampouco como deve se dar a sua aplicação sobre objetos concretos. As proposições teoréticas em geral apenas garantem, através de sua forma, a validade da proposição independentemente do domínio de objetos ou valoração sobre os quais seja aplicada. No entanto, isto não impede que as mesmas possam ser normatizadas, pois, neste caso, basta alterar a proposição com o acréscimo da partícula

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“deve” ou no caso da negação “não deve”. Desse modo, as disciplinas teoréticas não podem ser consideradas, em sua essência, como disciplinas normativas. O caráter normativo se apresenta, diante do exposto, como uma “vocação” e o estabelecimento da valoração, característico das disciplinas normativas, requer um fundamento teorético, pois é determinado pela fórmula geral “Somente um A que é B é um bom A” que abrange e confere unidade a todas as proposições normativas. Em suma, para que a lógica possa ser concebida como uma disciplina normativa, faz-se necessário pressupor uma lógica pura, à qual pertence o conjunto de proposições universalmente válidas e possíveis de normatização. 23.2 O PSICOLOGISMO: A DOUTRINA E O PORQUÊ DE SE LEVAR AO CONTRASSENSO

23.2.1 A tese psicologista implica num contrassenso Epistemológico

Com a finalidade de demonstrar os contrassensos da

doutrina psicologista, Husserl toma provisoriamente como verdadeira a principal tese defendida pelos psicologistas, isto é, a de que todas as prescrições lógicas têm seu fundamento na psicologia. A psicologia, a despeito das diferentes definições que lhe possam ser oferecidas, consiste indubitavelmente em uma ciência da experiência. Como tal, o que ela fornece, segundo o método indutivo, não são leis exatas ou genuínas, mas “generalizações vagas da experiência” (HUSSERL, 2013, p. 47), ou seja, leis aproximativas. Sendo assim, as leis lógicas, uma vez fundamentadas pela psicologia, perderiam o seu cariz de exatidão, pois seriam resultantes de princípios extraídos da experiência (e.g., das leis de associação de ideias). Daí Husserl afirmar que: “sobre fundamentos teoréticos vagos só podemos fundamentar regras vagas” (HUSSERL, 2013, p. 47).

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No entanto, ao observar as leis que constituem a unidade sistemática da lógica, deparamo-nos com princípios e formulações cuja validade independe de qualquer circunstância empírica. Dito isto, como explicar que leis de caráter absoluto derivem de “regras vagas” da experiência? Apenas negando o caráter empírico da psicologia ou a natureza a priori dos princípios lógicos, logo, incorrendo em um contrassenso.

As leis da natureza são necessariamente conhecidas a posteriori pelo método indutivo. Isso não significa dizer que a indução funda a validade da lei. Antes sim, ela apenas determina a maior ou menor probabilidade dessa validade – o que é dado intelectivamente é a probabilidade, não a lei. As leis lógicas, ao contrário, não encontram sua justificação por meio do procedimento indutivo, mas por “evidência apodítica”, logo, aprioristicamente (HUSSERL, 2013, p. 48).

23.2.2 O contrassenso Modal

As proposições fundamentais da lógica, bem como as

fórmulas silogísticas não afirmam possibilidades, mais claramente, ou são intelectivamente evidentes (no caso dos princípios de identidade e não contradição) ou resultam em inferências necessárias. No que diz respeito às leis da natureza, o que se pode afirmar a priori não é a lei em si, mas o reconhecimento da multiplicidade de leis que poderiam, satisfatoriamente, descrever um mesmo fenômeno natural, levando-se em consideração diversos fatores e circunstâncias. Por isso, as leis naturais não podem ser tidas rigorosamente como “absolutas” ou “necessárias”. Elas deixam, em virtude do seu caráter empírico, margens para imprecisões e corrigibilidade. Assim, Husserl afirma-nos que:

Nada, nem mesmo a mais forte argumentação psicologista, pode rivalizar com a própria verdade que apreendemos

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intelectivamente; a probabilidade não se pode impor contra a verdade, ou a conjectura contra a intelecção. [...] [A] psicologia não fornece, certamente, nada mais [que universalidades empíricas]. Precisamente por isso não pode oferecer estas leis apoditicamente evidentes e, por conseguinte, supraempíricas e absolutamente exatas que constituem o núcleo de toda a lógica (HUSSERL, 2013, p. 49).

Se as leis do pensar são tais quais as leis da natureza,

então, o que elas afirmam não possui valor absoluto, mas probabilístico. Isto nos leva, inevitavelmente, a afirmar que todas as asserções, inclusive a de princípios lógicos, são meras probabilidades e não certezas (pois estão sujeitas a todo tipo de contingência). Nesse sentido, todo o conhecimento estaria fadado à probabilidade. Isto fica evidente se tomarmos em consideração a sentença que expressa a principal consequência do psicologismo, a saber: a afirmação segundo a qual “todo saber é probabilístico” que deve ser também “probabilística”. Portanto, assumiria a possibilidade do contrário, e nem essa nem outra máxima, em virtude da natureza fática das leis do pensar, poderia ser afirmada com absoluto grau de certeza e evidência. Isso já faz transparecer o caminho para o qual a afirmação de tais teses conduz, a saber: o caminho do ceticismo.

23.3 A NÃO DISTINÇÃO ENTRE O REAL E O IDEAL NA RAIZ DO CONTRASSENSO PSICOLOGISTA

Tamanho equívoco por parte dos psicologistas resulta, segundo Husserl, da confusão estabelecida entre as leis lógicas e os atos de juízo. Os psicologistas consideram tudo como atos de juízo e ignoram a distinção entre o juízo (enquanto ato psicológico de julgar) e o juízo como unidade ideal da lógica (como “conteúdo” do próprio ato). Sobre este aspecto, Husserl é categórico:

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Mas, se se confundir a lei com o julgar, e o conhecer da lei, o ideal, com o real, então a lei aparece como uma potência determinante do decurso do nosso pensar. E de maneira facilmente compreensível se segue então uma segunda confusão, a saber, entre a lei como membro da causação e a lei como regra da causação (HUSSERL, 2013, p. 51).

A segunda confusão apontada por Husserl diz

respeito ao fato de que os psicologistas consideram as leis lógicas tanto como “motores impulsionadores” (p. 51) quanto como regentes do pensar. Assim, as regras para o estabelecimento de relações causais serviriam também como causa. As leis psicológicas do pensar exprimiriam, ao mesmo tempo, como o pensar deve ser e como ele acontece. Uma pessoa que pense corretamente operaria o pensar segundo leis reais que dizem respeito ao modo segundo o qual ocorrem as vivências psíquicas. Uma vez garantido que esta pessoa pense segundo tais leis, afirma-se que ela pensa também corretamente. Em caso de uma inferência incorreta, as causas para este ato deveriam ser buscadas e justificadas por alguma influência externa sobre o ato de pensamento. Dado que, de modo normal, todo homem pensa corretamente. Os princípios lógicos não exprimiriam a verdade, mas as condições normais sobre as quais se dá o pensar correto na concepção psicologista.

Para esclarecer o alto grau da confusão psicologista sobre este aspecto, Husserl oferece o exemplo da máquina de calcular. O bom funcionamento da máquina de calcular é garantido pelas leis mecânicas da natureza que ordena e enlaça os algarismos segundo os princípios matemáticos. Alguém que queira entender como opera fisicamente a máquina de calcular não vai, obviamente, recorrer às leis da aritmética. Além disso, a máquina, por si mesma, não compreende o conteúdo/as significações de seus atos por ser destituída de

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pensamento. Logo, a explicação do funcionamento da máquina e a apreensão do significado de suas operações são coisas heterogêneas. Em suma:

Os lógicos psicologistas ignoram as diferenças fundamentais e essenciais, definitivamente inultrapassáveis entre lei ideal e lei real, entre regulação normativa e regulação causal, entre necessidade lógica e necessidade real, entre fundamento lógico e fundamento real. Nenhuma gradação pensável pode introduzir mediações entre o ideal e o real (HUSSERL, 2013, p. 52).

Fica, portanto, justificada, a partir dos Prolegômenos, a

necessidade de um domínio puro, cuja tarefa consiste em investigações puramente teoréticas acerca de objetos ideais, bem como sua relação com o real. Tais investigações seguem no segundo volume das Investigações Lógicas e constituem inicialmente a base para o que ficou denominado por Fenomenologia. REFERÊNCIAS HANNA, R. Logical Cognition: Husserl’s Prolegomena and the Truth in Psychologism. In Philosophy and Phenomenological Research, v. 52, nº 2, 1993

HUSSERL, E. Investigações Lógicas: Prolegômenos à Lógica Pura: volume 1; tradução: Diogo Ferrer; 1º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014

PORTA, M.A.G. Edmund Husserl: psicologismo, psicologia e fenomenologia. São Paulo: edições Loyola, 2013

TOURINHO, C. D. C A “Concessão Dolorosa” de Husserl na Segunda Edição de Prolegômenos: a Ideia de Verdade em

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Si. In Revista de Filosofia Aurora, v.29, n. 39, pp. 563-580, 2014

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OS AUTORES1 Adeilson Lobato Vilhena Doutorando em filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE; mestre em filosofia no programa da UNIOESTE (2017), Toledo-PR. Área de Concentração: Filosofia Moderna e Contemporânea; Linha de Pesquisa: Metafísica e Conhecimento. Possui graduação (Bacharelado e Licenciatura Plena) em filosofia pela Faculdade São Luiz de Brusque-SC e Centro universitário Assunção (UNIFAI) São Paulo-SP. Especialização em Filosofia pela Universidade Regional de Blumenau - FURB. Atuou como professor de Filosofia nas Redes de Ensino Municipal de Brusque e Estadual de Santa Catarina. Seu foco de pesquisa em filosofia tem uma dedicação especial à Ontologia e Teoria do Conhecimento com ênfase nas teorias bergsonianas. É membro dos Grupos de Pesquisas em História da Filosofia da UNIOESTE e Metafísica na Filosofia Contemporânea da UFF. Ademir Menin Doutorando em filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE; mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma - PUG (2013); graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE (1995); graduado em Teologia pela Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma - PUU (1999); pós-graduação em Letras (Estudos Linguísticos e Literários) pela Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP (2010). Atualmente professor colaborador na faculdade de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, campus de Toledo-PR. Publicou: L’analogia tra mondo e musica nel pensiero di Arthur Schopenhauer. Toledo-PR:

1 Súmulas biográficas extraídas do currículo Lattes, exceto quando indicada opcionalmente pelo próprio autor.

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Editora Vivens, 2016; Conhecimento clássico e conhecimento científico. Toledo, PR: Editora Indicto, 2017; Conhecimento e condição humana. Toledo, PR: Editora Vivens, 2016; Conhecimento, gestão e educação. Toledo, PR: Editora Vivens, 2016. Membro do conselho editorial e corpo científico da Editora Vivens. Andrinea Cordova da Rosa Possui graduação em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE (2003) e graduação em Psicologia pela Universidade Paranaense - UNIPAR (2008). É Especialista em Psicanálise Clínica e Cultura pela Universidade Paranaense (2009), atualmente é psicóloga do CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) da Prefeitura Municipal de Pato Bragado Paraná. Atua também na área de atendimento clínico. Mestranda em Filosofia - UNIOESTE, campus de Toledo-PR. Camila Pacheco Gomes Mestranda em filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE; graduação em Psicologia pela Universidade Paranaense - UNIPAR (2011). Especialização em Gestão Social em Políticas Públicas - UNIPAR, Umuarama (2013). Pós-Graduação em Psicologia Organizacional e do Trabalho - FASUL, Toledo-PR (2016). Especialização em Análise Transacional -AT 202 (2018). Cleyton Francisco Oliveira Araújo Graduado em Teologia - Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia (2007) e mestre em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE na área de pesquisa Metafísica e Conhecimento e recentemente cursando, como aluno especial, o programa de doutorado em filosofia (Metafísica e Conhecimento) na UNIOESTE – Toledo-PR. Experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia bíblica e sistemática, atuando principalmente nos

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seguintes temas: teologia, debates, reflexões e filosofia. Nas interações sociais e religiosas, o presente acadêmico participa ativamente em eventos públicos, em prefeituras (área de educação), atividades religiosas em comunidades cristãs e também nos projetos acadêmicos do programa de pós-graduação de filosofia na UNIOESTE, especificamente nas áreas de filosofia da existência e fenomenologia. Atua profissionalmente como professor universitário na Faculdade Adventista do Paraná. Cristiane Picinini Graduada em Filosofia (2011-2014) pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE (campus de Toledo); especialista em Educação Especial (2015) pela Faculdade Alfa de Umuarama. Atualmente é mestranda em Filosofia na UNIOESTE com o projeto de dissertação Sartre, liberdade e má-fé: matizes ético-fenomenológicas, pesquisa que tem por objetivo percorrer o conceito de liberdade até chegar à má-fé sartriana, estudando-as por um viés literário, com uma análise de casos na literatura de Dostoiévski; Membro da comissão executiva da Revista AORISTO - International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics. Eduardo Henrique Silveira Kisse Mestrado em Filosofia pela Ruhr-Universität Bochum-RUB (2017), área de concentração: homem e cultura. Possui graduação (bacharelado e licenciatura plena) em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ (2012). Tem experiência no ensino de Filosofia. Seu foco de pesquisa em filosofia tem uma dedicação especial à filosofia da vida, à hermenêutica e à metodologia das ciências humanas, com ênfase na obra de W. Dilthey. Atualmente membro da comissão executiva da Revista AORISTO - International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics.

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Ezildo Antunes É graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual do Centro-Oeste - UNICENTRO (2002). Possui Especialização em Educação pela Universidade Estadual do Centro-Oeste - UNICENTRO (2004) e graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Centro-Oeste - UNICENTRO (2012). Tem experiência na área de Educação e no ensino de Filosofia. É mestre em Filosofia pela Universidade do Oeste do Paraná - UNIOESTE na área de concentração: filosofia moderna e contemporânea, tendo como linha de pesquisa metafísica e conhecimento. Flávia Neves Ferreira Formou-se em Psicologia pela Faculdade Santana (2014) com especialização em Logoterapia e Análise Existencial pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Atualmente é mestranda em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR. Tem interesse nas áreas: metodologia e pesquisa, filosofia e literatura, filosofia e psicologia, bem como psicologia com ênfase na fenomenologia, ontologia e existencialismo. Jose Milton Lopes Pinheiro Aluno do doutorado do Programa de Pós-Graduação em educação Matemática da UNESP, campus de Rio Claro-SP, Brasil, realizando a pesquisa sobre a percepção do sujeito-encarnado que ao mover-se, movendo, produz e percebe mudanças que se expõem em interfaces de softwares de Geometria Dinâmica.

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Maria Aparecida Viggiani Bicudo Professora Titular em Filosofia da Educação (aposentada) da UNESP campus de Rio Claro e Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, SP, Brasil. Orientadora da pesquisa de doutorado de José Milton Lopes Pinheiro, aluno regular desse programa. Adlai Ralph Detoni Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF. Co-orientador da pesquisa de doutorado de José Milton Lopes Pinheiro, aluno regular do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UNESP - Rio Claro, SP, Brasil. Josieli Aparecida Opalchuka Mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Pós-graduada em Educação Especial com ênfase em Transtornos Globais do Desenvolvimento, pela UNIGUAÇU. Possui graduação em licenciatura plena em Filosofia, pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, campus de Toledo. Bolsista CAPES no curso de Mestrado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, na linha de Metafísica e Conhecimento. Graduação em Filosofia pela Universidade do Oeste do Paraná (2015). Katyana Martins Weyh Formada em Psicologia pela faculdade Anhanguera Educacional, campus Cascavel. Formada em Licenciatura em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, campus de Toledo. Acadêmica regular do curso de mestrado em Filosofia pela Universidade Estadual do

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Oeste do Paraná - UNIOESTE. Área de concentração: Filosofia Moderna e Contemporânea. Linha de pesquisa: Metafísica e Conhecimento. Ênfase de pesquisa: fenomenologia. Leila Rosibeli Klaus Possui graduação em Filosofia Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM (2012), com um semestre de experiência na Alemanha (Universität Trier 2011-2012). Concluiu mestrado em Filosofia (2014) pela Universidade Federal de Santa Maria na área de Fenomenologia e Compreensão. Atualmente é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Paraná - UFPR. Pesquisa principalmente na área de Fenomenologia, com interesse na Metafísica presente na Antropologia Filosófica de Max Scheler. Litiara Kohl Dors Possui graduação em Psicologia pela Universidade Paranaense - UNIPAR (2004), Pós-Graduada em Administração em Recursos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR (2007). Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE (2015). Doutoranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Atuou como docente dos Cursos de Administração e Ciências Contábeis no Centro de Ensino Superior de Realeza - CESREAL entre 2008 e 2012 e no curso de Psicologia da PUC-PR, campus Toledo, entre os anos de 2012 e 2014. Atualmente sua pesquisa envolve o campo da Fenomenologia (em especial, Merleau-Ponty) e sua interface com a Psicanálise (em especial, Freud e Winnicott). Possui experiência nas áreas de Psicologia Clínica e Psicologia Social.

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Luana Borges Giacomini Mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Possui Graduação (Licenciatura) em Filosofia. Desenvolve pesquisas com ênfase em metafísica, fenomenologia. Estuda o autor alemão Martin Heidegger desde o ano de 2014. Marcelo Ribeiro da Silva Mestrando em filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE; Licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR; Bacharel em Teologia pela Faculdade Missioneira do Paraná - FAMIPAR. Especialista em Formação de Presbíteros pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA). Maria Lucivane de Oliveira Morais Licenciada em Geografia e Filosofia. Especializações em: Educação Especial, Metodologia do Ensino de Geografia e História, Educação Métodos e Técnicas do Ensino e Saúde do Professor. Mestranda em Filosofia Moderna e Contemporânea - Turma de 2016 - Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, campus de Toledo. Linha: Metafísica e Conhecimento. Neusa Rudek Onate Mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Possui graduação em Filosofia Licenciatura Plena pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Tem interesse pelos estudos da História da Filosofia Contemporânea, contemplando a área de pesquisa da Fenomenologia, mormente os pensamentos de Edmund Husserl e Martin Heidegger. Sua atual pesquisa tem como escopo, analisar a possibilidade da investigação fenomenológica em Heidegger sob os temas da hermenêutica, tempo, temporalidade originária, finitude, imaginação,

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possibilidade. É integrante do Grupo de Pesquisas da Linha Metafísica e Conhecimento: Fenomenologia, Filosofia da Linguagem e Filosofia da Diferença. Faz parte do Grupo de Estudos Ser e Tempo. É membro da comissão executiva da AORISTO - Revista Internacional de Fenomenologia, Hermenêutica e Metafísica. Paulo Alexandre Marcelino Malafaia Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ, com estágio na Universidade de Coimbra, com tese intitulada Gabriel Marcel e a morte de Deus. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Tem atuado há mais de uma década em diversas Instituições de Ensino Superior e de Ensino Médio no Estado do Rio de Janeiro como professor de Filosofia. Leciona desde 2005 no Colégio Pedro II, também no Rio de Janeiro. Tem se dedicado tanto a pesquisas referentes à Filosofia Medieval e sua relação com a Teologia, a Filosofia da Religião e ao Ensino de Filosofia, assim como pesquisa leituras contemporâneas da própria experiência religiosa. Renato dos Santos Doutorando (Bolsista CAPES) em Filosofia no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR. Rômulo Gomes dos Santos Possui graduação em Filosofia pela Faculdade Padre João Bagozzi (2014). Mestre em filosofia pela Universidade estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, campus de Toledo. Atualmente é professor do Colégio Vicentino Imaculado Coração de Maria – INCOMAR e Fundação Educacional de Toledo - FUNET. Thiago Ehrenfried Nogueira

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Mestrando em Filosofia no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR. Vitória Brito da Silva Bacharel em Geografia (UFRJ); mestre em geografia (UFRJ) com pesquisa na área de teoria da Geografia, ênfase sobre o conceito de Escala. Mestranda e Licencianda em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) com pesquisa na área de Fenomenologia, mais especificamente na obra de Edmund Husserl com ênfase nas Investigações Lógicas.

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OS ORGANIZADORES Claudinei Aparecido de Freitas da Silva Na área de Filosofia, realizou estágio pós-doutoral na Université Paris I/Panthéon-SORBONNE (2011-2012), doutorado na UFSCar (2007), mestrado na UNICAMP (2000) e graduação na UNIOESTE (1994) e no IFA (1990). Foi Acadêmico Bolsista (1992-1994) e tutor (2013-2016) do PET [Programa de Educação Tutorial] do Curso de Filosofia da UNIOESTE, instituição em que atua como Docente na Graduação e Pós-Graduação (Stricto Sensu), na mesma área. Além de organizar 6 livros, é autor de 2 livros, vários capítulos de livros, artigos, resenhas, traduções em revistas especializadas, entre outros trabalhos. É Editor-Fundador da Revista DIAPHONIA e Co-Editor Fundador da AORISTO - International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics, ambas da UNIOESTE e integrante do Conselho Científico de vários periódicos e editoras. É membro da Association International Présence de Gabriel Marcel de Paris, do CEMODECON/IFCH/UNICAMP, do GT Fenomenologia (ANPOF), do GT Fenomenologia, Saúde e Processos Psicológicos (ANPEPP) e de diversas redes ou grupos de pesquisa a partir das seguintes correntes e autores: Tradição Fenomenológica (em especial, Merleau-Ponty) e suas interfaces com a Psicanálise, a neurobiologia (particularmente: Kurt Goldstein) além das obras de Bergson, Gabriel Marcel, F. J. J. Buytendijk, Lévinas e Martin Buber, mantendo, ainda, vivo interesse pela cultura e pensamento latino-americano. Focos temáticos: corpo, desejo, linguagem, ethos, natureza e obra de arte. José Francisco de Assis Dias Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo, RS (1996) e Bacharel em Teologia pela UNICESUMAR (2014); Especialista em Docência no Ensino Superior pela

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UNICESUMAR (2015); Mestre em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (1992); Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2006); Doutor em Direito Canônico também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2005); Doutor em Filosofia também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2008). Atualmente é professor Adjunto da UNIOESTE, no campus de Toledo-PR, onde é Coordenador do curso de Licenciatura em Filosofia; professor permanente do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UNIOESTE; pesquisador do Grupo de Pesquisa ÉTICA E POLÍTICA, da UNIOESTE, CCHS, campus de Toledo-PR; parecerista de revistas filosóficas e juristas. Libanio Cardoso Graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná - UFPR (1993). Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (2009). Professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, onde integra o Grupo de pesquisa em História da Filosofia. Pesquisador do PRAGMA - Programa de Estudos em Filosofia Antiga. Pós-doutorado em Dialética Antiga, Universidad de Buenos Aires (CAPES; Programa para Fortalecimento da Pós-graduação no Mercosul). É Editor-Fundador da Revista DIAPHONIA e Co-Editor Fundador da AORISTO - International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ; Professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, na qual leciona e orienta dissertações e teses para o Programa de Pós-Graduação em

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Filosofia (Mestrado e Doutorado). Membro-associado da Sociedad Iberoamericana de Estudios Heideggerianos - SIEH, Membro do GT Fenomenologia (ANPOF), Membro-efetivo da Sociedade Brasileira de Fenomenologia - SBF, dedica-se aos estudos de Heidegger desde o ano de 1995, assinando capítulos em coletâneas, além de inúmeros artigos publicados em revistas periódicas nacionais e internacionais. Entre seus principais livros estão: Linguagem e método (FGV, 2007); Heidegger & a educação (Autêntica, 2008); 10 Lições sobre Heidegger (Vozes, 2015) e 10 Lições sobre Gadamer (Vozes, 2017). É Editor-Chefe e Fundador da AORISTO - International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics,

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