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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
CURSO DE PSICOLOGIA
UNIDADE SÃO GABRIEL
A FAMÍLIA NA PERSPECTIVA DE ADOLESCENTES DAS CAMADAS
MÉDIAS DE BELO HORIZONTE
Luciana Viana Bossi e Lima
Belo Horizonte
Novembro/2006
Luciana Viana Bossi E Lima
A FAMÍLIA NA PERSPECTIVA DE ADOLESCENTES DAS CAMADAS
MÉDIAS DE BELO HORIZONTE
Monografia apresentada ao Departamento de
Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, unidade São Gabriel, como
requisito parcial para obtenção do título de
Psicólogo.
Orientadora: Márcia Stengel.
Belo Horizonte
Novembro/2006
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, à minha extensa família, a todos
amigos, pois o apoio destes é que me fez
continuar e me deu força para conseguir alcançar
o objetivo final.
À minha orientadora, profa. Márcia Stengel, pela
oportunidade de participar deste projeto e pelo
crescimento acadêmico.
“... Se dar e às vezes se jogar a um desconhecido
qualquer, num gosto antídoto, intenso. Gostar do
atrevimento e do profundo irrompendo. Fazendo-
se viver realmente em dobro. Perceber o que não
se fazia perceber. É um cisco provisório demais.
Não ser radical e inteiro ao que pode o bem. O
bom mesmo é viver a generosidade da entrega”.
Vanessa da Mata
RESUMO
Este trabalho pretende discutir a significação construída por adolescentes sobre a família
contemporânea. É preciso conhecer tal realidade a fim de re-pensar e projetar os novos
arranjos familiares. O pressuposto teórico no qual pauta esta pesquisa é a psicologia social.
Realizou-se entrevistas semi-estruturadas com quatro adolescentes de camadas médias de
Belo Horizonte que, posteriormente, foram analisadas através da análise de conteúdo. A
adolescência se apresenta como uma fase de mudanças fisiológicas e biológicas, tal como
também ocorrem transformações que são construções humanas. Estas se caracterizam por
conceitos que são produções sociais construídas ao longo das formações familiares, culturais,
históricas, econômicas, políticas, entre outros atravessamentos. A família representa um
mecanismo primordial de difusão da cultura, sendo que os primeiros contatos com o mundo
social do ser humano se devem a ela, tal como aquisição de linguagem. Nesse sentido,
entende-se como necessária a investigação da percepção do adolescente sobre sua família de
origem e da família pensada futuramente. Percebeu-se neste trabalho que a visão do
adolescente da camada média tende a reproduzir os valores específicos desta parcela da
sociedade, sendo o amor romântico e a estabilidade financeira os que mais apareceram.
Portanto, o intuito é o de acrescentar mais visões sobre este universo da adolescência, da
família brasileira e da camada média na atualidade.
Palavras-chave: Família, adolescência, camada média, amor romântico, casamento.
SUMÁRIO
1- INTRODUÇÃO............................................................................................................07
2- ARRANJOS FAMILIARES: Uma perspectiva a partir do cenário brasileiro.........10
3- O QUE É A ADOLESCÊNCIA: Uma discussão teórica...........................................18
4- ANÁLISE DE DADOS: O ideal da família de origem e da futura família...............28
5- CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................39
6- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................41
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INTRODUÇÃO
A adolescência se apresenta por conceitos que são produções sociais
construídas ao longo das formações familiares, culturais, históricas, econômicas, políticas,
entre outros atravessamentos. Caracteriza-se como uma fase de mudanças fisiológicas e
biológicas, mas também ocorrem transformações que são construções humanas. Por a
adolescência ser uma criação humana, está intimamente ligada às diferenças culturais
existentes.
Aparecem intensas questões sobre o que é não ser mais criança e ao mesmo
tempo não ser um adulto, ou seja, ‘o que é ser adolescente?’. “O tempo da adolescência é
mais do que um tempo cronológico, ele é o momento da realização das tarefas psíquicas
que levam os adolescentes à elaboração de nova identidade: a identidade de adulto”
(STENGEL, 2004, p. 46).
Essa vivência da adolescência além de passar por questões psíquicas é também
marcada pelas questões sociais. O que estes adolescentes experienciam no âmbito social
se correlaciona com as experiências do meio familiar, juntamente com as transformações
biológicas e psíquicas. Todos estes atravessamentos interagem de uma forma que produz
variados modos de viver e ser adolescente.
Nesse sentido, pode-se pensar que a reprodução dos modelos sociais e
familiares, tal como os conflitos que perpassam a adolescência dizem de uma busca por
afirmações, questionamentos e mudanças por parte dos adolescentes. Isso pode ser visto
pela ótica de que estes adolescentes saem da infância e se deparam com exigências e
problemas antes só direcionados aos adultos. Junto às mudanças psíquicas e sociais,
aparece também a sexualidade que é aflorada não por se tratar somente de uma questão
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biofisiológica, mas igualmente pela interação de todos estes mecanismos que compõe a
adolescência.
O âmbito familiar pode tornar-se um gerador de conflitos ou de reprodução do
modelo proposto pela família na adolescência, sendo que novas dinâmicas familiares
acabam por surgir, pois os filhos não são mais crianças e suas cobranças, desejos e
comportamentos atingem diretamente aos pais de uma forma diferente do que acontecia
na infância. Os pais, tal como os adolescentes que vivem lutos nessa fase transitória,
vivenciam também o luto pela função parental infantil, do corpo do adulto que está
envelhecendo e pela sua identidade (Knobel, 1992). Portanto, a maneira como os pais
passaram por suas próprias adolescências remete ao modo como imaginam as
experiências que seus filhos irão ter e, conseqüentemente, na maneira como agirão como
pais destes adolescentes.
Nessa perspectiva, a família que é entendida aqui como uma formação variante,
uma vez que pensa-se não existir um modelo único de família. Na verdade a família
poderia ser vista como uma linha entre as famílias hierárquicas e as igualitárias, nessa
linha teriam variadas formas de constituições familiares. A família, nesse sentido, aparece
como a mola propulsora para as construções da identidade dos adolescentes, uma vez
que cada modelo de família comunga de hábitos que se diferem. No entanto, estas
variações familiares podem também se encontrar em algum ponto de convergência.
Essas possibilidades são igualmente um meio de troca do âmbito social com o familiar,
entende-se que há uma contínua relação entre ambos e estes atravessamentos que dão
caráter diferente à família, a sociedade e a própria construção da adolescência.
Portanto, diante destes vários modelos familiares, como o adolescente percebe
as construções familiares? Qual o papel deste adolescente frente às mudanças ao longo
dos tempos nas formações familiares? E como estes adolescentes pensam a família de
origem e a futura família? Entende-se, então, que essas questões orientam esta pesquisa
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e serão respondidas ao longo deste trabalho baseado nos referenciais teóricos
juntamente com as entrevistas realizadas com os adolescentes.
Optou-se por dividir os capítulos começando por uma historização da família
brasileira (capítulo 1). Em seguida foram abordadas as características da adolescência
(capítulo 2). Ao final será apresentada uma análise de dados baseada nas entrevistas na
tentativa de correlacionar a temática da família pela ótica dos adolescentes (capítulo 3).
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CAPÍTULO 1 - ARRANJOS FAMILIARES: UMA PERSPECTIVA A
PARTIR DO CENÁRIO BRASILEIRO
Tal como demonstra Cerveny (2000), os conceitos de família apresentados no
dicionário Aurélio (FERREIRA, 1986, p. 287) são os de “pessoas aparentadas, que vivem
em geral na mesma casa, particularmente o pai, a mãe e os filhos; pessoas do mesmo
sangue; ascendência, linhagem, estirpe”. São estes conceitos que embasam o construto
inicial do entendimento de família. A partir destas formas conceituais, pode-se pensar nas
construções familiares que seguem este padrão e/ou as que fogem dele, uma vez que a
família brasileira passou por construções e reconstruções na sua forma.
Existem variados modos de formações familiares, tal como a família a nuclear, as
monoparentais femininas, as monoparentais masculinas, as reconstruídas, entre outras
tantas formas que intercalam entre as dinâmicas hierárquicas e as igualitárias. No
entanto, pode-se perceber modelos que correspondem ao formato mais comum
considerado como ideal, tal como as nucleares, onde a tríade – pai, mãe, filho – se
constitui como a base do modo que as famílias são compreendidas. Neste modelo, os
papéis são definidos a partir de relações embasadas nas diferenças de hierarquia, gênero
e idade. Em contrapartida, as famílias podem também aparecer como nucleares, mas
com os conceitos não de uma família hierárquica, mas nos moldes igualitários. Neste
ponto, pode-se criar diversas formas que conseqüentemente dão um lugar e uma
possibilidade de construção identitária a seus membros, a partir de regras estabelecidas
nessas relações.
A família brasileira, que teve sua construção herdada de um modelo colonial
português, incorporou os métodos e modos destas famílias portuguesas. Estas, por sua
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vez, estavam embasadas em modelos patriarcais, que buscavam preservar tradições e
acima de tudo procuravam conservar a propriedade e consolidar as posses. A partir daí é
que se começa a estruturação da conjuntura familiar brasileira (SAMARA, 1998).
De acordo com a literatura, a família brasileira seria o resultado da transplantação e adaptação da família portuguesa ao nosso ambiente colonial, tendo gerado um modelo com características patriarcais e tendências conservadoras em sua essência (SAMARA, 1998, p. 7).
Diante disso, percebe-se que as formações familiares brasileiras se confundem
com a colonização portuguesa e os modelos trazidos por ela no período colonial. As
casas-grandes abrigavam não só a família nuclear, mas também parentes sanguíneos
mais distantes, afilhados, empregados e escravos. E estas eram consideradas como
famílias patriarcais e extensas. Essa conjuntura se deu bastante devido ao status que era
empreendido aos patriarcas pela idéia de conservação da família, pelo grande número de
pessoas dependentes de seus mandos e pela possibilidade de ascensão política.
A anexação desses elementos e a manutenção de relações entre seus diversos componentes estavam basicamente relacionadas com laços de sangue, parentesco fictício e um complexo sistema de direitos e deveres. Dada a sua importância, a vinculação a esses agrupamentos permitia uma maior participação política, social e econômica na ordem paternalista (SAMARA, 1998, p. 14).
Juntamente a este modelo estava a idéia de que o papel da mulher neste
contexto era a de aceitar e realizar os deveres referentes a cuidados da casa e dos filhos.
“As mulheres depois de casadas passavam da tutela do pai para a do marido, cuidando
dos filhos e da casa no desempenho da função doméstica que lhe estava reservada”
(SAMARA, 1998, p. 14). Esse modelo de família foi repassado e reproduzido de tal forma
até o século XIX que as mulheres passaram a ser vistas como subordinadas e os homens
como soberanos na hierarquia familiar.
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Ao passar da história nota-se que as relações sociais, econômicas, políticas,
entre outras, serviram como propulsoras de mudanças para novas constituições
familiares. Tal como mostra Samara (1998), as famílias extensas e patriarcais do começo
da colonização brasileira não eram modelos únicos, existindo também famílias nucleares,
que eram em sua maioria constituídas por filhos ilegítimos de concubinas ou filhos de pais
solteiros.
Na sociedade brasileira, especialmente no século XIX, os matrimônios se realizavam num círculo limitado e estavam sujeitos a certos padrões e normas que agrupavam os indivíduos socialmente em função da origem e da posição sócio-econômica ocupada. Tal fato, entretanto, não chegou a eliminar a fusão dos grupos sociais e raciais, que ocorreu paralelamente através das uniões esporádicas e da concubinagem (SAMARA, 1998, p. 42).
Isso trouxe outra faceta da sociedade brasileira, a de que a mulher não era tão
submissa, tendo um lugar ainda restrito, porém com alguma autonomia, já que eram mães
solteiras e/ou viviam em concubinagem. Houve como conseqüência mulheres sendo
chefes de família, uma vez que era referência para seus filhos e que os pais pouco ou
nunca participavam da criação e do provento econômico dos filhos. “[...] a própria
natureza do sistema patriarcal e a divisão de incumbências, no casamento, criaram
condições para a afirmação da personalidade feminina, dada a sua influência direta junta
à família” (SAMARA, 1998, p. 57).
A autora usa dados históricos da cidade de São Paulo para demonstrar que o
que ocorria nos modelos familiares das áreas rurais do nordeste não acontecia da mesma
forma na sociedade paulista, uma vez que apareciam formatos diferentes das famílias
extensas e patriarcais. Em São Paulo mostravam-se características que fugiam desta
noção de família, pois se começava a configurar modelos de família nucleares,
monoparentais femininas e/ou masculinas. Diante disso, o que se pode perceber é que as
famílias brasileiras que têm o conceito de ser predominantemente patriarcais foram
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também estruturadas de forma tal que se esquivavam destes padrões e que trouxeram
consigo novos modelos e maneiras de construção familiar.
Atualmente esta constituição patriarcal é possivelmente percebida como uma
instituição familiar que também sofre mudanças na sua organização e no modo como as
relações ocorrem e igualmente como são estabelecidas, já que são vistas formações que
fogem ao modelo patriarcal, tal como também ocorreu na época da colonização brasileira.
Nos dias atuais pode-se citar famílias em que o sustento provém da mulher, casais
homossexuais que constroem famílias, pais e mães solteiros ou separados que criam
seus filhos sozinhos, entre outros tantos modelos de família que vão se configurando no
cenário da sociedade brasileira.
A despeito da aprovação do divórcio em 1977, as relações conjugais não formalizadas legalmente generalizaram-se. As separações e os novos casamentos aumentaram o número de pessoas que viviam com parceiros que não eram os pais ou as mães dos próprios filhos. [...] Além dos casais homossexuais, conquistaram seu espaço as pessoas que viviam sós, livres de estigma de solteirões, as mães solteiras e os descasados de ambos os sexos que, juntamente com o exercício simultâneo de alguma atividade remunerada, assumiram a criação dos filhos sem a presença cotidiana de um parceiro (VAITSMAN, 1994, p. 13).
Estes valores que vêm sendo reorganizados nas constituições familiares
aparecem devido às possibilidades de escolha de como formar uma família, ou até
mesmo pela probabilidade de não se constituir uma família nos moldes vistos como
ideais. A família é um lugar onde os construtos sociais perpassam e com estes surgem
novos arranjos familiares a partir das possibilidades de escolha, mesmo que estas
famílias estejam carregadas de tradições e conceitos arcaicos.
Também na modernidade as famílias foram se modificando e o conceito de
indivíduo foi prevalecendo sobre o entendimento de família, sociedade e coletivismo. As
relações passam a ser marcadas por construções que priorizam o individual, fazendo com
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que a família também sofra modificações. Como demonstra DaMatta (1987), a família por
ser mais um meio de correlação com a sociedade traz consigo não só a capacidade de
individualização, mas também e principalmente de construção de valores. E estes que
também se configuram nos aspectos da individualidade e liberdade de escolha.
O desenvolvimento da individualidade vincula-se ao da sociedade moderna, com a eliminação de barreiras de status, religiosas, o declínio da autoridade paterna e a liberdade de mobilidade, seja social ou geográfica. Ampliou-se o círculo de pessoas que se tornaram passíveis de escolha como parceiros no casamento, ampliando também a liberdade de escolha (VAITSMAN, 1994, p. 34).
Essa possibilidade de escolha faz com que os modos de se pensar e se fazer o
casamento se transformem, podendo ser vistos a partir do amor e da vontade de cada
indivíduo de querer ou não se casar. A probabilidade dos casamentos acontecerem e
igualmente se desfazerem a partir da vontade de querer formar uma família é o que vai se
configurar nesse cenário da sociedade moderna.
Diante disso, houve uma crise na base da formação de família, uma vez que a
probabilidade desse ‘ser feito um para o outro’ poderia não dar certo, conseqüência de
uma instabilidade causada por ideais de liberdade, individualidade e igualdade que se
configuraram na modernidade. Ou seja, diante destes conceitos estabelecidos na
sociedade moderna, a instabilidade do ideal de amor e conseqüentemente da noção de
casamento tornam-se fatos, uma vez que os sujeitos já não tinham a certeza de que havia
um outro que correspondesse a seus desejos à altura dos ideais ditados pela
modernidade. Outros norteadores dessa crise do ideal de amor são citados por Vaitsman
(1994, p. 35): “O tipo moderno de família e casamento entrou em crise porque foram
abalados seus fundamentos: a divisão sexual do trabalho e a dicotomia entre público e
privado atribuída segundo o gênero”.
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A camada média sentiu com as transformações ocorridas não só no âmbito
familiar, mas no contexto social, político, econômico, cultural entre outros uma mudança
no modo como as concepções já estabelecidas estavam sendo reconstruídas e
reformuladas. Essa pesquisa se baseia no recorte da camada média urbana belo
horizontina, que se encaixa nos modelos que vivenciam essas mudanças. Nesse aspecto,
Vaitsman (1994, p. 13) pontua que
Estas transformações difundiram-se entre homens e mulheres urbanos, portadores de valores individualistas, antiautoritários e igualitários, que geralmente cursaram a universidade, comparte um certo discurso e fazem parte de segmentos sociais com uma certa identidade sócio-cultural.
Nota-se que a camada média urbana vive estas transformações justamente por
estas características sócio-econômicas-culturais que a cercam e que a diferenciam de
outras camadas da sociedade brasileira, uma vez que o modo como se vivenciam essas
mudanças estão intimamente ligadas aos valores de individualidade. Existe neste
entendimento uma divisão entre o que é público Χ privado e o que é social Χ subjetivo.
DaMatta (1997) faz uma analogia que exemplifica essa dicotomia entre o público e o
privado, o social e o subjetivo quando traz a noção de rua e casa. Para DaMatta (1997), a
rua é a amostra da dinamização e de novas criações da sociedade, já a casa tem o
caráter de reprodutor de modelos e padrões.
De fato, a categoria rua indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e paixões, ao passo que casa remete a um universo controlado, onde as coisas estão em seus devidos lugares. Por outro lado, a rua implica movimento, novidade, ação, ao passo que a casa subentende harmonia e calma: local de calor (como revela a palavra de origem latina lar, utilizada em português para casa) e afeto. E mais, na rua se trabalha, em casa se descansa [...] Na casa, temos associações regidas e formadas pelo parentesco e relações de sangue; na rua, as relações têm um caráter indelével de escolha, ou implicam essa possibilidade (DAMATTA, 1997, p. 90-91, grifos do autor).
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Frente a essa formulação sobre o público e o privado de DaMatta (1997),
formam-se famílias baseadas nessas dicotomias que, por sua vez, geram valores e
modelos considerados modernos e que buscam igualdade entre os gêneros em todos
âmbitos. Ocorre, então, uma busca por divisões igualitárias não só no contexto familiar (a
casa), mas também no âmbito social (a rua), mercado de trabalho, nas escolas, entre
outros. A sociedade oferece um modelo de família a ser seguido e reproduzido, ao
mesmo tempo em que gera transformações vindas do vai e vem das ruas. Da mesma
forma, as famílias vêm também se reconfigurando e modificando a partir da convivência
no cotidiano dentro da própria casa e de seus entrelaços com as construções sociais.
Acontecem, portanto, várias concepções de família, mas que, contudo, estão
embasadas nas mudanças ocorridas desde a época colonial brasileira. Pois, não se pode
pensar em modelos familiares substituindo uns aos outros, mas sim em interpretações
diferentes ao modo de se relacionar enquanto família. “[...] nas condições de vida atuais
não existe mais um modelo dominante de famílias, pois nenhuma estrutura ou ideologia
surgiu para substituir a família moderna” (STACEY apud VAITSMAN, 1994, p. 52).
Portanto, pode-se perceber que a família, na sociedade brasileira, é como
pontua DaMatta (1997) o local do aconchego, “minha casa é o local da minha família, da
‘minha gente’ ou ‘dos meus’, como falamos coloquialmente no Brasil” (DAMATTA, 1997,
p. 93), mas é da mesma forma o local onde “[...] a casa, como uma totalidade, revela um
conjunto de espaços onde uma maior ou menor intimidade é permitida, possível ou
abolida” (DAMATTA, 1997, p. 91). Isso deixa clara a relação entre a influência das
transformações sociais e as mudanças nos modelos familiares. No entrelace ocorrem
novos arranjos e possibilidades para um entendimento e vivência de família.
Nesse aspecto a adolescência é vista como uma produção deste âmbito familiar
e das relações ocorridas nas interações com a sociedade e a cultura. Desta forma,
entende-se como necessária um estudo sobre a adolescência e a influência que esta
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família de origem tem na constituição deste adolescente e igualmente na extensão que
pode acarretar na idealização de uma futura família.
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CAPÍTULO 2 - O QUE É A ADOLESCÊNCIA: UMA DISCUSSÃO
TEÓRICA
Na modernidade a idéia de adolescência se transformou, uma vez que com ela
veio o ideal de independência, de individualidade e conseqüentemente de uma busca por
uma identidade do adolescente. Essas características dos adolescentes são compatíveis
aos ideais que perpassam na família e na sociedade, já que em ambas, na modernidade,
estes ideais estão presentes. Para Calligaris (2000), “instigar os jovens a se tornarem
indivíduos independentes é uma peça-chave da educação moderna”. A interação entre a
subjetividade dos adolescentes com as construções sociais faz com que cada experiência
vivenciada por estes tenha um significado diferente, uma vez que os contextos culturais,
sociais, econômicos e políticos têm uma importância nos valores, na moral e na ética
construídos. Há também variações em aspectos que tangem a classe, o gênero, a
raça/etnia, a construção do âmbito familiar, entre outras questões que perpassam a
subjetividade dos adolescentes.
No entanto, como essa adolescência criada na modernidade é vista pela
sociedade? Como se estabelece o que é a adolescência? Onde ela inicia e como acaba?
Existem vários autores que priorizam uma visão generalista e universalista que categoriza
a adolescência como uma fase necessária para uma passagem entre a infância e a fase
adulta. Porém, podemos pensar a adolescência
[...] como efeito de uma relação/ação e não como uma substância dada a priori, com características internas e psicológicas dadas, mas construídas a partir de um olhar adultocêntrico sobre ele e das respostas dadas pelos jovens a esse tipo de olhar (MAYORGA, 2005, p.23).
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A partir deste olhar, pode-se entender a adolescência como algo construído
socialmente, ou seja, este conceito veio ao longo da história se modificando de acordo
com as construções ocorridas no meio social, cultural, familiar, político e econômico.
Diante disso, tem-se uma idéia dessa fase que entende que são nas interações sociais
que são construídos os modos de ser adolescente. A adolescência, por sua vez, é uma
atitude cultural, é uma postura do ser humano durante uma fase de seu desenvolvimento,
que deve refletir as expectativas da sociedade sobre as características deste grupo. A
adolescência, portanto, é um papel social. E esse papel social de adolescente pode ser
ou não simultâneo à puberdade.
Erikson (1987), para explicar o momento de incerteza quanto às mudanças que
se fazem presentes na adolescência, postula o conceito de crise de identidade, que é
reconhecida como um momento característico do desenvolvimento humano. Apesar de
identificar oito estágios psicossociais de desenvolvimento, onde a aquisição de novas
habilidades e atitudes são vividas como crises de aprendizagem e de interação social, é
na adolescência que ocorre a integração da identidade psicossocial. Essa integração faz
com que haja uma repetição das quatro crises vivenciadas na infância, assim como dá
base para as três crises que ocorrerão na idade adulta. Diante disso, Erikson (1987)
formula o conceito de moratória, que é o período onde o adolescente pode aguardar a
liberação dos adultos enquanto se prepara para exercer outros papéis na idade adulta.
Nesse sentido Erikson (1987) postula que os adolescentes buscam por uma
continuação do que já havia aprendido, contudo existe agora uma maturidade sexual. Isso
pode acarretar em um retorno as crises da infância para que estes adolescentes possam
incluir novos ídolos e ideais de uma identidade que pretendem que seja a que finalize as
crises. Diante disso Erikson (1987) diz que os adolescentes necessitam da experiência da
moratória como uma forma de integrar estes elementos da identidade que se
embaralharam na transição da infância para a adolescência. Erikson (1987) entende que
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a moratória seria uma forma de elaborar as exigências que vêm dos âmbitos familiares e
sociais. No estado de moratória, os comprometimentos são postergados e os
adolescentes debatem-se com temas profissionais ou ideológicos, pois estão passando
por uma crise de identidade e não definiram suas escolhas.
Eles precisam, sobretudo, de uma moratória para a integração dos elementos de identidade atribuídos nas páginas precedentes às fases da infância; só que, agora, uma unidade mais vasta, indefinida em seus contornos e, no entanto, imediata em suas exigências, substitui o meio infantil: a “sociedade”. Uma recapitulação desses elementos é também uma lista de problemas adolescentes (ERIKSON,1987, p. 129).
Segundo Erikson (1987), o jovem da modernidade se depara com uma
permanência mais prolongada na adolescência, uma vez que a sociedade impõe um
maior tempo de escolaridade e preparação profissional. Isso acarreta em uma mudança
de vivência das fases, pois – de acordo com a abordagem eriksoniana – os jovens
passam a reviver os conflitos do início da adolescência num momento em que se deveria
viver o final desta. Isto porque há uma intensificação e conscientização dos seus conflitos
juntamente com as mudanças fisiológicas e hormonais. Para uns adolescentes, esta
passagem, os acontecimentos de crescimento e esquecimento passam a ser tão difíceis
de aceitar que alguns deles continuam agarrados ao ideal de “uma juventude eterna,
aquela da criança todo-poderosa e triunfante” (HUERRE, 1998, p.17). Segundo Erikson
(1987) os adolescentes buscam estabelecer suas vontades livremente, decidir sobre os
caminhos a serem tomados, uma vez que não pretendem ser forçados a ir por um rumo
que possa fazer com que eles passem por experiências que os envergonhem ou que os
coloque em situações desagradáveis.
Calligaris (2000) pontua que a adolescência teria um começo bem enfatizado se
pensássemos somente na puberdade, que é uma mudança fisiológica, como o início da
adolescência. Na puberdade, ocorrem transformações no corpo do adolescente, há um
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amadurecimento dos órgãos sexuais e também mudanças hormonais. Já na
adolescência, podem acontecer estas mudanças fisiológicas, contudo é também
caracterizada por mudanças psicossociais.
De fato, a transformação trazida pela puberdade é considerável. Tanto do ponto de vista fisiológico quanto da imagem de si que deve se adaptar a essa mudança. Basta lembrar a chegada dos desejos sexuais (que já existiam, mas que são agora reconhecidos como tais pelos próprios sujeitos) e, aos poucos, a descoberta de uma competição possível com os adultos, tanto na sedução quanto no enfrentamento (CALLIGARIS, 2000, p. 20).
No entanto, a adolescência não tem um tempo definido para seu fim, se
caracteriza por um tempo de transformações que não se sabe ao certo quando irão
acabar; a única certeza presente na adolescência é a de que estes adolescentes perdem
a segurança que tinham quando criança e já não têm a garantia do amor e do
reconhecimento dos seus pais. A partir disso, formulam novas formas de ser, procurando
se encaixar nos referenciais da sua infância e do desejo de seus pais. Essa insegurança
pode acarretar em comportamentos que busquem este reconhecimento que tinham
quando criança na tentativa de ter um papel bem delimitado em sua família.
As exigências da sociedade de uma ruptura dos jovens com as experiências da
adolescência/infância e para a passagem definitiva para a fase adulta geram, do mesmo
modo, uma revivência pelos conflitos da infância para a adolescência. Esses conflitos são
gerados por uma moratória imposta pelos adultos aos adolescentes, uma vez que na
infância prepara-se este sujeito para tarefas que só poderão ser realizadas (sem ser
marginalizadas) depois da adolescência. Diante disso, ocorre uma embaraçosa noção de
que há um dilema entre o que os adultos idealizam sobre a adolescência e o que os
próprios adolescentes pensam para suas vidas. Este dilema aparece no sentido do que é
ser um sujeito com possibilidades de amar, trabalhar e produzir, porém a moratória
imposta faz com que essas possibilidades advindas da maturação corporal do
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adolescente sejam barradas e freadas. Isto leva os adolescentes aos conflitos nesse
tempo de moratória.
Enfim, esse aprendizado mínimo está solidamente assimilado. Seus corpos, que se tornaram desejantes e desejáveis, poderiam lhes permitir amar, copular, e gozar, assim como se reproduzir. Suas forças poderiam assumir qualquer tarefa de trabalho e começar a levá-los na direção de invejáveis sucessos sociais. Ora, logo nesse instante, lhes é comunicado que não está bem na hora ainda (CALLIGARIS, 2000, p. 15).
A adolescência, tal como entende Calligaris (2000), é um tempo de moratória,
pois os adolescentes ficam entre realizar o que a sociedade moderna prega como ideal –
que é a liberdade de expressão, independência e individualidade – e ao mesmo tempo,
esperar pelo tempo que a mesma sociedade moderna entende como certo, pois há o
entendimento de que existe a maturação do corpo, mas não se percebe que há
maturidade nos adolescentes.
Por entender a adolescência como um tempo de moratória, pode-se pensar num
momento em que há uma transição entre o que é ser criança e o que é ser adulto.
Entretanto, a adolescência é carregada por idealizações por parte de uma sociedade
moderna que prega valores que às vezes se tornam inacessíveis aos jovens. Desta
forma, cria-se uma idéia de que a adolescência seria uma fase passageira e de que os
conflitos e dilemas tidos nela não passariam ou atingiriam a fase adulta. No entanto, esta
idéia da adolescência formou-se cheia de incertezas e arbitrariedade.
Em outras palavras, há um sujeito capaz, instruído e treinado por mil caminhos – pela escola, pelos pais, pela mídia – para adotar os ideais da comunidade. Ele se torna um adolescente quando, apesar de seu corpo e seu espírito estarem prontos para a competição, não é reconhecido como adulto. Aprende que, por volta de mais dez anos, ficará sob a tutela dos adultos, preparando-se para o sexo, o amor e o trabalho, sem produzir, ganhar ou amar: ou então produzindo, ganhando, amando, só que marginalmente (CALLIGARIS, 2000, p. 15 - 16).
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Essa moratória imposta aos adolescentes gera sentimentos por parte destes que
podem ser considerados como rebeldia, revolta, entre outros adjetivos pejorativos. No
entanto, para Calligaris (2000, p. 24), a insegurança é gerada por uma falta demarcada de
um lugar e um papel na família e na sociedade, pois “por conseqüência, ele não é mais
nada, nem criança amada, nem adulto reconhecido”. Diante disso, grande parte das
dificuldades percebidas entre adolescentes e adultos vem dessa insegurança. Essa
contradição dos adultos em relação à adolescência gera uma confusão para os próprios
adolescentes, pois estes não sabem mais quais referenciais devem seguir para
corresponder aos adultos e até mesmo para sair dessa moratória. Huerre (1998, p. 42)
retoma Winnicott que dizia: “Se a criança deve tornar-se adulta, essa passagem se
realizará sobre corpo de um adulto morto”. Essa passagem contraditória para um
adolescente que tem o corpo preparado para as várias possibilidades de experiências
iguais às vivenciadas pelos adultos, torna-o dessa forma um jovem com corpo de adulto,
mas um adulto que não pode realizar o que lhe é oferecido.
Uma explicação para a contradição presente nos adultos é a tentativa de cercar
o que foi reprimido por eles em suas próprias adolescências, pois a possível rivalidade
existente entre os adolescentes com seus pais pode fazer com que estes últimos tenham
que relembrar e repensar suas próprias experiências e vivências adolescentes. A partir da
falta de respostas por parte dos adultos para os adolescentes, estes começam a
interpretar o que de fato os adultos querem deles e, no entanto, acabam por descobrir
conteúdos reprimidos que, muitas vezes, os adultos não querem ou não estão preparados
para saber. Daí, a repressão e a moratória impostas na tentativa de que nada disso venha
à tona. Em suma, o adolescente é levado inevitavelmente a descobrir a nostalgia adulta
de transgressão, ou melhor, de resistência às exigências antilibertárias do mundo. Ele
ouve, atrás dos pedidos dos adultos, uma realização de seus desejos, em conseqüência
disso, o adolescente atua (CALLIGARIS, 2000).
24
Huerre (1998) entende que as imposições dos adultos sobre os adolescentes
servem como uma maneira de colocar o jovem como o causador do retorno de questões
deixadas no passado. No entanto, este não é um processo definido na vivência da
adolescência, pois as experiências de uma geração a outra sofrem mutações, ou seja,
são vividas de modos diferenciados. Pontua que mesmo havendo as relações e
atravessamentos da sociedade e da família, ambas muitas vezes articulam ou validam as
repetições. Porém, mesmo com as influências recebidas por todos estes atravessadores
na vivência da adolescência, tem que se pensar que há um sujeito ativo neste entrelace e
que este tem a possibilidade e capacidade de mudar, reformular e até mesmo reproduzir
tudo que lhe é repassado. Isso demonstra que o jovem vive essa moratória e é visto como
um sujeito em desenvolvimento, ou seja, ainda está na inércia, vivendo em constantes
transformações. Para Mayorga (2005), estes jovens são vistos como um “estranho”
O adolescente é, em nossa sociedade, o não adulto, aquele que não goza ainda de determinadas qualidades e habilidades e, portanto, privilégios: racionalidade, centramento, maturidade, capacidade, maturação sexual. A relação de poder que se estabelece entre adolescentes e adultos é clara e tem conseqüências [...] de exploração, dominação e deslegitimação desses sujeitos. Para ser tratado como igual esse jovem deve assumir e internalizar os valores e práticas do mundo adulto (MAYORGA, 2005, p. 22, grifos da autora).
Tal como demonstra Huerre (1998), o adolescente quer ao mesmo tempo ser
reconhecido como adulto, podendo, dessa forma, concretizar o que é aceito para os
adultos, tal como a vivência da sexualidade e o trabalho. Por outro lado, quer continuar
tendo a segurança que os pais davam a ele quando era criança. Para Huerre (1998, p.
24), o adolescente “nunca teve tanta necessidade de estar perto deles e nunca teve tanta
necessidade de estar distante”. Então, da mesma forma, as interpretações dos
adolescentes em relação ao que os adultos querem ou não deles são facilitadas a partir
do momento que a sociedade reproduz estes desejos reprimidos dos adultos. A
25
adolescência não é marcada apenas por dificuldades, crises, mal-estares, angústias. Ao
se abandonar a atitude infantil e ingressar no mundo adulto, há uma série de acréscimos
no rendimento psíquico. Pode ocorrer confronto de maneira saudável, o adolescente
internalizará o valor desta experiência de forma positiva, o qual passará a fazer parte de
sua identidade.
Uma sociedade moderna que cultua valores tais como a individualização e a
independência acarretam na adolescência um sentido ambíguo, pois ao mesmo tempo
em que esses ideais são repassados aos adolescentes, estes mesmos são negados a
eles. Essa contradição gera percepções de que diante do que a sociedade oferece aos
adolescentes, este deveria passar por esta fase como um sujeito feliz, uma vez que essa
mesma sociedade proporciona formas infindáveis de consumo. “Uma cultura em que a
autonomia e a independência são os valores centrais e mais exaltados só pode se
transmitir por um duplo vínculo, ou seja, por uma consignação paradoxal e contraditória”
(CALLIGARIS, 2000, p. 28). E sendo o consumo, na sociedade contemporânea, o meio
de realização de muitas frustrações, o adolescente deveria então viver esse momento em
plena felicidade.
Diante disso, Calligaris (2000, p. 18) demonstra que “tal contradição torna-se
ainda mais enigmática para o adolescente na medida em que essa cultura parece
idealizar a adolescência como se fosse um tempo particularmente feliz”. Isso faz parecer
que os adultos requerem dos adolescentes uma autonomia – porém esta lhes é recusada
na moratória – e essa autonomia e independência que não estão à altura dos
adolescentes é o que traria a felicidade nessa fase. Nesse sentido, “o adolescente é
levado a concluir que o adulto quer dele revolta. E a repressão só confirma nele essa
crença, apenas acrescentando a constatação de que o adulto repressor é hipócrita”
(CALLIGARIS, 2000, p. 30). Desta forma, alguns conflitos podem aparecer durante a
construção da identidade do adolescente. O rumo que ele dá para sua vida acaba tendo
26
influências da família e da sociedade, as quais cobram de cada pessoa um papel social,
preferentemente definido e o mais definitivo possível. Numa fase onde a identidade do
adolescente ainda não se completou fica difícil falar em papel social definitivo.
Para o adolescente se constituir como um adulto e, conseqüentemente, tentar ter
a noção do que pode ser e fazer de suas vivências e experiências, este necessita de uma
estrutura familiar que dê embasamento de apoio. Tal como demonstra Huerre (1998),
estes adolescentes são atravessados por desejos e projetos que suas famílias fazem para
eles desde a infância, ou até mesmo anteriormente ainda no patamar da idealização.
Portanto, na adolescência este sujeito terá que distinguir o que é de sua vontade em
busca da sua própria identidade. Os adolescentes tendem também nesse momento da
vida a se rebelar e podem elaborar um conjunto de valores inusitados e, quase
propositadamente, contrário a valores até então tidos como corretos. Pois, quando o
adolescente se depara com forças contrárias, ocorrerá a inevitável disputa para ver quem
pode vencer.
A adolescência, portanto, deve ser compreendida como um processo de
transição biopsicossocial da infância para a idade adulta, onde estão presentes
influências históricas e culturais na constituição do sujeito. As modificações subjetivas dos
adolescentes ocorrem através da reformulação de fatores psicológicos internalizados,
mas com uma forte influência dos aspectos culturais e sociais referentes aos hábitos
urbanos difundidos na sociedade. Sendo assim, parece errôneo falar-se de uma única
fase adolescente, uma vez que a adolescência é antes um processo formulador da
identidade corporal, social, sexual e afetiva, do que apenas um momento de crises e
revoltas.
Desta maneira, a forma como os adolescentes e seus pais se relacionam nessa
fase pode direcionar os adolescentes no que concerne a sua futura constituição familiar,
pois a família moderna reproduz os conceitos de autonomia e independência que são
27
comungados na sociedade. Portanto, os aprendizados experienciados, tanto no âmbito
familiar como na sociedade, dão embasamento às características destes adolescentes.
Uma vez que a família “é a grande porta-voz do duplo vínculo moderno” (CALLIGARIS,
2000, p. 64), o papel que os adolescentes têm na família é construído a partir dessas
relações atravessadas por estes conteúdos sociais, familiares e individuais.
28
CAPÍTULO 3 - ANÁLISE DE DADOS: O IDEAL DA FAMÍLIA DE
ORIGEM E DA FUTURA FAMÍLIA
Este trabalho pretende discutir a significação construída por adolescentes sobre
a família contemporânea, entendendo que é preciso conhecer tal realidade a fim de re-
pensar e projetar os variados arranjos familiares. O objetivo geral é o de identificar e
interpretar como os adolescentes das camadas médias de Belo Horizonte significam a
família contemporânea. Tem como objetivos específicos estudar as transformações da
família contemporânea, compreender a significação atribuída pelos adolescentes a sua
família de origem, investigar a família que os adolescentes pensam para si próprios,
identificar e compreender os pontos de convergência e de divergência entre a família de
origem dos adolescentes e a família que pensam para si mesmos.
Para a realização deste, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com
quatro adolescentes com idade entre 14 e 19 anos das camadas médias de Belo
Horizonte, de ambos os sexos, buscando entender a perspectiva dos adolescentes sobre
a questão da família. Os entrevistados caracterizam-se por estudar em escolas
particulares ou públicas, estarem regulares, e também por comungarem de hábitos
correspondentes aos direcionados ao público jovem urbano. São em sua maioria
pertencentes a famílias nucleares (mãe, pai e filhos) e famílias monoparentais femininas.
Na análise de dados foram usados nomes fictícios para todos os adolescentes, buscando
manter o sigilo e preservar sua identidade. Há, da mesma forma, uma caracterização dos
adolescentes com o intuito de melhor localização das falas.
Dos quatro adolescentes entrevistados, Laura, de dezessete anos, cursa o
segundo ano do ensino médio em escola particular, os pais são casados, mas o pai viaja
29
a trabalho e vem quinzenalmente aos finais de semana, tem dois irmãos mais novos. O
segundo entrevistado é Carlos, de dezesseis anos, cursando o segundo ano do ensino
médio em escola particular, a mãe é solteira, mas vivem na casa onde ela trabalha com
doméstica, foi criado junto com essa família – que é nuclear – desde seu nascimento, não
conhece o pai biológico. Na casa em que ele mora a família é composta pelo pai, a mãe e
dois filhos mais velhos que Carlos. A terceira é Raquel, de dezesseis anos, cursa a oitava
série do ensino fundamental em escola pública, tem uma irmã mais nova, os pais são
casados, porém o pai mora em outra cidade por conta do trabalho e vem a Belo Horizonte
de uma a duas vezes por mês. O quarto é Bruno, de quinze anos, cursa o primeiro ano do
ensino médio em escola particular, tem uma irmã gêmea, seus pais são casados e moram
juntos, há também uma funcionária doméstica que reside na casa.
As entrevistas foram analisadas através do método de análise de conteúdo, que
é entendido como “um método de tratamento e análise de informações, colhidas por meio
de técnicas de coleta de dados, consubstanciadas em um documento. A técnica se aplica
à análise de textos escritos ou de qualquer comunicação (oral, visual, gestual) reduzida a
um texto ou documento” (CHIZZOTTI, 1991, p.98). Além desse entendimento, Bardin
(1997) postula que o método de análise de conteúdo pode ser compreendido não só
como um método uniforme, uma vez que se trata igualmente de um conjunto de técnicas
de análise das variadas formas de comunicação. Diante disso, diz também que a análise
de conteúdo deve não ser vista somente como um instrumento, e sim como “um leque de
apetrechos; ou, com maior rigor, será um único instrumento, mas marcado por uma
grande disparidade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as
comunicações” (BARDIN, 1997, p.31).
Percebeu-se através das entrevistas a perspectiva dos adolescentes sobre suas
famílias e da mesma forma como estes jovens entendem essa travessia da infância à fase
adulta. Para Huerre (1998), tudo o que foi vivido e experienciado na adolescência faz com
30
que o jovem se perca em partes sobre a sua origem e sobre o que é seu e da sua família.
O adolescente então “é como um órfão, em luto pelas imagens dos adultos tais como ele
os via antes, da imagem que ele tinha de si mesmo como criança, e do mundo tal como
ele representava até então” (HUERRE, 1998, p. 60).
Essa passagem acaba acarretando em ideais construídos sobre o ponto de vista
que estes adolescentes têm de suas famílias de origem e também da que pretendem
formar futuramente. Estes ideais perpassam pela noção de família nuclear composta
pelos pais e filhos somente, sendo estes pais os responsáveis pela educação e pelos
possíveis caminhos que estes adolescentes poderão traçar. Laura, quando diz de seu
entendimento sobre família, retoma esse ideal:
Ah! Família assim, o básico assim é pai, mãe, irmãos e uai, consciência, os pais ensinando os filhos, os filhos crescendo, os pais ensinando sobre a vida, né. O que eles passaram pra gente ter uma noção, assim de como começar a viver. Ah! Acho que é isso.
Esta fala demonstra alguns traços da família patriarcal hierárquica, que tal como
mostra Figueira (1987), até por volta da década de 1950 teria prevalecido em nossa
sociedade o ideal de família tradicional, descendente direto da família patriarcal; nela a
identidade dos membros é posicional, ou seja, é determinada pelas suas características
intrínsecas (homem e mulher, pai e filho), que os apresentam como naturalmente
diferentes, o que determina uma rígida delimitação de papéis. As regras de conduta são
definidas externamente por valores dicotômicos, em que certo e errado são muito bem
delimitados.
31
No entanto, esta mesma fala aponta para uma possível amizade entre pais e
filhos, sendo essa característica presente em famílias igualitárias, nas quais os pais têm o
papel de passar conhecimento aos seus filhos, mas em um processo em que os papéis
podem ser modificados, tendo então um espaço para diálogos e conhecimentos vindos de
ambas partes. Outra fala que apresenta esse referencial é a de Bruno quando este diz:
Assim... A gente brinca, a gente conversa também, antes assim, quando a gente era menor não sei se eles conversavam menos ou se resolveram tentar de outra forma, né? Aí eles começaram aos erros que a gente, a gente eu e a minha irmã aí eles começaram a conversar assim... Aí eles começaram assim a conversar, a gente senta aqui na sala e conversa.
Outros adolescentes corroboram da mesma afirmativa e neste aspecto, Carlos
pontua que família é: “Todo mundo é bem junto assim, todo mundo almoça junto, pelo
menos tenta almoçar junto”. Para Raquel a família idealizada vem como um suporte:
“família pra gente é tudo, né! Eu acho que se você perder alguma parte da família, você
se perde totalmente, né! Eu acho que família pra gente é tudo”. Em outro momento, Bruno
diz o que entende por família: “Eu acho que é um ambiente onde se tem os pais, filhos,
avós, avôs que... Onde tem amor, comprometimento, carinho, onde um pensa no outro,
sempre junto, onde fica junto e ajuda nas horas difíceis e comparece nos momentos
bons”.
Estas definições, conforme apareceram nas entrevistas, também correspondem
a como estes adolescentes vêem sua família de origem e como eles correlacionam o que
pretendem como futura família. Nesse sentido, Laura diz: “Eu acho que se for do jeito que
eu quero, eu acho que vai ficar igual minha família de hoje”. Nessa acepção de família
pode-se perceber que estes adolescentes se balizam nas vivências familiares, uma vez
32
que reportam a suas famílias de origem como ideais a seguir. Buscam através destas
relações formar o que futuramente poderia se configurar como a futura família. Diante
disso, percebe-se que essa idealização está baseada no que estes adolescentes
presenciam em suas famílias de origem. Huerre (1998, p. 51) pontua então que
Na adolescência, trata-se justamente de estabelecer ligações novas entre si e os outros, entre suas representações do mundo de ontem e aquelas das quais se tem necessidade para o amanhã. Essas questões encontraram outrora, ou encontram ainda hoje em algumas partes do mundo, modalidades de resolução graças a rituais estabelecidos que balizavam o caminho a percorrer.
Por outro lado, os conflitos também são abordados ora como corriqueiros no
cotidiano familiar, ora como acontecimentos que desestabilizam o convívio familiar. Isso
pode ocorrer pelo fato de que na adolescência acontecem mudanças na estrutura familiar
e no próprio adolescente, fazendo com que a dinâmica mude. As opiniões começam a se
confrontar, os adolescentes agora já conseguem se colocar como agentes de suas vidas
e isso pode gerar conflitos, uma vez que estes adolescentes tendem a modificar suas
visões sobre seus próprios pais e sobre o papel de cada um no âmbito familiar. Carlos diz
que:
Sempre felizes não, isso é meio difícil. Ah... ah de vez em quando eu brigo muito com a [irmã] porque ela é muito nervosa. De vez em quando é até melhor cê ficar quieto quando cê tá falando alguma coisa com ela e cê não concorda. Com o [irmão] eu que acho que assim, a gente não implica muito com o outro, então... Minha mãe, minha mãe é igual toda mãe. Ela sei lá, fica me dando uns conselhos de vez em quando, fala comigo. A [tia] também é tipo uma mãe, sempre preocupada assim... Fala assim o quê que a gente tem que fazer.
Laura fala que o seu modo de ser se diferencia muito dos seus pais e que por
conta disso ocorrem os conflitos.
33
E muito porque igual procê ter noção, meu pai vai ao cinema, ele senta perto da porta porque se tiver um incêndio ele pode sair mais rápido, entendeu? Umas coisas assim. Ele é muito estranho. E eu já quero é pular de body jump, é ir em tourada, uns trem assim, sabe e meu pai ele não gosta.
Nesse aspecto, Calligaris (2000, p. 29) postula que “é normal que ninguém esteja
satisfeito com sua situação e que cada um tente melhorá-la. O adulto moderno transmite
ao adolescente não um estado onde ele poderia se instalar como se herdasse uma
moradia, mas uma aspiração”. Já para Raquel, os desentendimentos são gerados pela
falta de comprometimento de sua mãe com as promessas que faz. Nesse sentido diz que:
Ela promete muita coisa. Ela me promete coisas e não cumpre. Acho que é isso que é o problema. Esse que é o problema, porque ela chega pra mim e fala ‘Ó Raquel, ela tá assim, porque ah, eu vou te dar isso’ e fica, e fica, aí na hora que eu vou cobrar ela não gosta. Ela fecha a cara pra mim e começa a me xingar. Aí eu to assim: é, né, mãe, até arranjei um apelido pra ela, Maria das ilusões, porque ela só me ilude. Ela não cumpre nada. Então é isso, por causa disso. O desentendimento também que eu tenho é por causa de, eu também sou muito respondona e isso, qualquer coisinha que ela fala eu respondo. Qualquer coisinha que ela vem falar comigo, eu falo ‘iii, ó, mãe, não me enche o saco não’. É isso. Mas eu acho que é um pouco disso, porque ela me promete as coisas e porque eu sou muito respondona também. Ela vem me chamar atenção e eu não aceito. É isso.
Neste aspecto, Calligaris (2000, p. 24) pontua que “o adolescente perde (ou,
para crescer, renuncia) a segurança do amor que era garantido à criança, sem ganhar em
troca outra forma de reconhecimento que lhe pareceria nessa altura, devido”.
Então, o que é dito pelo adulto ao adolescente é tido como verdade, como um
contrato. E quando há a quebra deste acordo, o adolescente sente ao mesmo tempo a
desilusão sobre o que havia depositado nesse adulto – e no caso de Raquel era a palavra
dada de sua mãe. Em outros momentos, sente-se livre para designar seus próprios
caminhos, uma vez que o adulto que ele tanto confiava não correspondeu, pensa que foi
abandonado e, portanto, deve seguir sozinho. Para Huerre (1998) essa posição tomada
34
pelos pais reflete em uma forma de não ter de lidar com essa passagem dos filhos da
infância para a idade adulta, pois nesse momento estes adultos tenderiam a reviver seus
próprios conflitos adolescentes. Então para estes adultos
o objetivo é não ter de suportar a inquietação que essa tempestade provoca. Inquietação sentida na época da adolescência pelo próprio adulto na sua relação com seus pais. O adolescente não pode mais contar com o adulto. Ele não tem ninguém mais em quem se apoiar ou com quem se confrontar. Alguém que fosse firme e assim servisse de ponto de referência (HUERRE, 1998, 31).
Outro aspecto recorrente nas entrevistas é a idealização do amor romântico
como sendo um caminho para o casamento e conseqüentemente para a formação de
uma família. Segundo Giddens (1993, p. 56), “O outro, seja quem for, preenche um vazio
que o indivíduo sequer necessariamente reconhece – até que a relação de amor seja
iniciada. E este vazio tem diretamente a ver com a auto-identidade: em certo sentido, o
indivíduo fragmentado torna-se inteiro”.
Na entrevista de Raquel há uma passagem que retrata isso quando esta diz do
casamento que pretende ter: “Eu pretendo só ter um né? Entrevistador: Só um? Raquel:
Só um. Mais não. Entrevistador: Por que não Raquel? Raquel: Ah! Eu acredito nesse
negócio de alma gêmea. Entrevistador: Acredita? Raquel: Acho que eu pretendo achar a
minha. Acho que se eu achar a minha eu vou ser a pessoa mais feliz do mundo. Acho que
é muito bom a pessoa encontrar a sua alma gêmea. Entrevistador: E aí com a alma
gêmea fica até morrer? Raquel: Fica”. Neste sentido, Johnson (1987, p. 79) postula que
“no amor romântico, queremos ser possuídos pelo amor, queremos pairar nas alturas e
encontrar o máximo de significado e de realização na pessoa que amamos. O que
buscamos é a sensação de plenitude”.
Em outro momento Raquel diz que a pessoa que imagina como seu futuro
marido seria sua alma gêmea e para isso ele deveria ter as seguintes características:
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Não precisa ser bonita não, mas precisa ser meu amigo e ter uma cabeça boa e um papo legal. Acho que é só isso que precisa. Não vou casar por causa de dinheiro, tenho certeza, porque cê tem que casar com uma pessoa que cê ama pro seu coração bater forte, acho que é isso que importa. Enfim, eu quero casar com uma pessoa, se for bonito bom demais, também muito bom, se for feio, não posso fazer nada, né. A pessoa que eu escolhi. Uma pessoa que goste de mim do jeito que eu sou e uma pessoa que eu vou gostar dela do jeito que ela é. É isso que importa.
Nesse sentido, para Giddens (1993), o amor romântico aparece como esse
interlocutor das relações amorosas, onde o sujeito desprende toda sua vontade de
completude no outro. “Desde suas primeiras origens, o amor romântico suscita a questão
da intimidade [...] porque presume uma comunicação psíquica, um encontro de almas que
tem um caráter reparador” (GIDDENS, 1993, p. 56). Outro adolescente que retrata isso é
Carlos: “Eu acho que o meu... Eu queria. Eu queria, né? Sei lá. Eu queria, quero um
casamento pra sempre. Eu não sei se... como é que é ficar com uma pessoa pro resto da
vida. Oh, eu espero que eu tenha só, só uma mulher pro resto da vida assim. Fazer
bodas”.
Para Johnson (1987) o amor romântico aparece como uma forma de significação
dos sentimentos que se quer experienciar e de ideais feitos sobre o desejo de saciar a
completude.
O amor romântico não é amor, mas um conjunto de atitudes que dizem respeito ao amor – sentimentos involuntários, reações e idéias. Como Tristão, bebemos da poção e caímos em seu poder: tornamo-nos presas de reações involuntárias e de ardentes sentimentos, em um estado quase visionário (JOHNSON, 1987, 70)
Nesse sentido, o amor romântico aparece como a fantasia e idealização do par
perfeito, do outro que vem como um complemento da essência de si, como se existisse
um sujeito único que viria para preencher tudo aquilo que falta em si. Mesmo na
36
modernidade, com a tendência da sexualização dos relacionamentos, que junto com a
noção de igualdade e individualidade produz outros sentidos para o amor e para as
relações afetivas, pode-se perceber que talvez ainda haja uma procura por este ideal do
amor romântico (JOHNSON, 1987). Esta idealização leva a uma busca por emoções que
trazem outras formas de significações, modos de relações que fomentem o ideal que um
sujeito constrói sobre o outro. O par igualitário enfatiza a importância do companheirismo
e da amizade na relação.
Por tudo isso, a seleção individual é muito mais rígida, um fato e um direito que envolve uma inclinação totalmente pessoal. A convicção de que de toda a humanidade, duas e somente duas pessoas são ‘feitas’ uma para a outra atingiu agora um estágio de desenvolvimento de que a burguesia do século XVIII ainda não ouvira falar (SIMMEL apud VAITSMAN, 1994, p. 34).
Porém, pode-se pensar que estes adolescentes ao idealizarem o amor
romântico ainda experienciam o estágio da fantasia, uma vez que todos os entrevistados
ou estão em sua primeira relação de namoro – e todas com tempos curtos – ou ainda
nem tiveram a experiência de uma relação afetiva-sexual, ou seja, não passaram pelo
conhecimento do furor e do desapontamento das relações amorosas. Segundo Johnson
(1987, p. 74), “este descontentamento lança nuvens sombrias sobre todos os
relacionamentos modernos, pois, frente a um ideal inatingível, ficamos cegos para a
beleza e as delícias do mundo presente”.
Outra análise possível tange ao entendimento dos adolescentes entrevistados
sobre a questão do bem estar financeiro como requisito para formar uma futura família.
Isso pode se dar devido ao fato de pertencerem à camada média e reproduzirem os
mecanismos que formam esta parcela da sociedade. Nesse sentido, a camada média
pode se caracterizar pela individualidade, reciprocidade, hierarquia, valorização da
escolha e liberdade para direcionar suas escolhas (VAITSMAN, 1994). Diante disso, estes
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adolescentes apontam para uma reprodução destes valores na família pensada, pois se
entende que desejar uma estabilidade financeira antes de constituir uma família é
responder aos valores estipulados e idealizados da camada média brasileira. Carlos
exemplifica isso quando diz: “eu espero que eu tenha uma família depois de eu ter
começado uma boa vida profissional assim, sabe, um trabalho garantido, um salário bom.
Não quero casar e ficar... sei lá...”. Para Bruno esse sucesso profissional também é
requisito para casamento e família: “Uma mulher. É... Uma casa. Pretendo ter condições
financeiras pra isso. Ser bem sucedido profissionalmente, ter também, talvez, não, com
certeza ter empregada”.
Para Laura formar uma família tem como pré-requisito a estabilidade financeira,
e entende que esta só será possível depois que fizer um curso de graduação e tiver
estável em um emprego:
Eu quero casar sim, mas depois que eu já tiver formado. Um trabalho assim. Porque quando tiver casada eu pretendo já ter formado, já tá trabalhando e tal, porque aí dá pra mim saber se eu vou ter condições. Por questão, tipo assim, se eu for casada eu vou querer ter meus filhos, eu vou querer, agora se eu for casada e ainda tiver que fazer faculdade e tal, eu ainda vou ter que ir pra faculdade, arranjar um emprego, vou ter que cuidar da casa, vou ter que ficar cuidando deles, então é muita coisa e querendo estabilizar ainda, entendeu? Vou querer muita coisa e não vou conseguir nada,então mais fácil uma coisa assim de cada vez, ai primeiro estuda, ai arruma emprego, se tiver condição eu sei quantos filhos eu vou poder ter e é melhor assim do que ter tudo de uma vez e não conseguir fazer nada.
Isso também aparece na entrevista de Raquel:
Eu acho que o quê te dá dinheiro é o que você conquista. Agora se eu fosse uma fisioterapeuta, o quê, que eu tô fazendo com prazer, cada vez mais eu ia me dedicar à minha profissão e isso vai aumentar clientes, lucros também, então eu acho que o futuro... vai ficar com nome bom, acho que isso que importa. Fazer faculdade, depois uns 24, 25 anos, casar, se a gente achar uma pessoa assim que vale a pena.
38
Este ideal de formação no terceiro grau e estabilidade no emprego é também
referencial comungado na camada média, pois significa a busca do sujeito por continuar a
reprodução dos moldes desta parcela da sociedade, e igualmente de uma noção de que
sem esses requisitos o sujeito provavelmente estaria fadado ao fracasso diante do
modelo esperado para a camada média. Há que considerar que esta preza pelo
individualismo que privilegia, entre vários outros aspectos, também a estabilidade
financeira.
Portanto, pode-se analisar que estes adolescentes tendem ao mesmo a tempo
reproduzir e combater o que já está posto, uma vez que, se apresentam em alguns
momentos confortáveis com o modelo e a dinâmica familiar de origem e em outros estes
mesmos modelo e dinâmica já não lhes interessam. Ora se mostram como sujeitos
desejantes de mudanças, ora permanecem na reprodução dos ideais que circulam na
camada média brasileira.
É possível igualmente perceber que estas famílias podem estar da mesma forma
nessas articulações, sendo em um momento uma família com uma dinâmica igualitária e
em outros corresponderem a uma dinâmica hierárquica. Pois, através das entrevistas
pode-se notar que em alguns momentos os pais destes adolescentes agem no sentido de
estipular o lugar fixo de pais e filhos. E em outros momentos aparecem como amigos
destes adolescentes, fazendo com que estes papéis bem estipulados e demarcados de
pais e filhos possam ser repensados e reformulados. Desta forma, as dinâmicas das
famílias podem variar, ficando isso a cargo da forma das relações e interações entre os
componentes destas famílias.
39
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da pesquisa realizada foi possível perceber como as mudanças ocorridas
na família brasileira podem acarretar diferentes formas de adolescências, modificações
estas que perpassam pela lógica da divisão de camadas, pelos ideais formulados e
repassados, pela idealização do adulto e da adolescência, pela fantasia do amor
romântico, entre outros tantos aspectos que não foram abordados neste trabalho.
Deste modo, entende-se que a família – que está como mais um dos
atravessadores e reprodutores das idéias construídas socialmente – é o primeiro lugar
onde ocorre uma socialização e conhecimento de normas, leis, tradições e valores para
as crianças e os adolescentes. As características da família, dessa forma, têm uma
influência inicial nas características e ideais dos adolescentes e diante disso é que se
pode pensar sobre como essas influências têm sido vistas pelos próprios adolescentes
nos dias atuais. Portanto, se a família da camada média reproduz os modelos colocados
por esta parcela da sociedade, pensa-se que os adolescentes criados nesse meio irão
provavelmente corroborar estes moldes e ideais.
Nesse referencial, o adolescente tem o aspecto familiar como um exemplo a ser
seguido. Se esta família de origem comunga dos ideais da camada média a probabilidade
de que estes adolescentes os reproduzam também é possível. Vaitsman (1994) postula
que as famílias brasileiras estão nesta intercalação entre as formas igualitárias e as
hierárquicas, uma vez que podemos encontrar famílias que estejam em uma formação
nuclear e hierárquica, ou nuclear e igualitária. Estas várias possibilidades podem interferir
no modo como estes adolescentes entendem sua família de origem e de como idealizam
a futura família.
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Nesse sentido, o que foi colhido nas entrevistas é adolescentes que do mesmo
modo que vivenciam modelos familiares que ora reproduzem os valores da camada média
– tal como a estabilidade financeira como pré-requisito para uma formação familiar – ora
vão em contramão a estes ideais. Uma hipótese para estas reproduções e idealizações é
a de que a totalidade destes adolescentes entrevistados ainda não experimentou a
vivência, seja positiva ou negativa, das relações afetivo-sexuais e por extensão, do
casamento. E a partir, disso pensamos que estes adolescentes reproduzem de forma tão
fidedigna o ideal do amor romântico. Outra suposição possível está na questão do bem
estar financeiro e da formação acadêmica como obrigações necessárias antes do
casamento. Pode-se pensar que são valores impregnados na camada média urbana
brasileira, e por os adolescentes pertencerem a esta parcela da sociedade, estariam
somente reproduzindo valores anteriormente estipulados. Essas duas proposições são
algumas das possíveis a se fazer em relação à temática da perspectiva dos adolescentes
sobre a família, porém estas não esgotam este tema e podem ser discutidas com maior
profundidade.
Portanto, o que este trabalho pôde registrar foi essa dinâmica adolescente, que
em alguns momentos idealizava o futuro incerto e em outros estipulava caminhos certos e
definidos para este futuro. Da mesma forma, pode-se pensar que estas famílias das
camadas médias igualmente vivenciam reformulações tanto no âmbito privado quanto no
que permeia o entendimento público. Pode-se entender que a formação familiar e a
adolescência são atravessadas por valores que vêm da própria família, mas que também
vêm da sociedade e da camada social a que pertencem, agregando, dessa forma, valores
que poderiam não estar presentes, ou se destituindo de ideais já estabelecidos. Assim
sendo, entende-se que os entrelaces entre as famílias, a sociedade e a própria
adolescência geram inúmeras formas de ser e de vivenciar estas instâncias.
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