A Família e a Maternidade Como Referências Para Pensar a Política

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A divisão sexual do trabalho relega as mulheres a uma situação inferior em termos de acesso a recursos políticos e as leva a desenvolver represen- tações e vivências da política distintas das masculinas porque marcadas pela localização estrutural de gênero. Neste artigo, este argumento será brevemente discutido do ponto de vista teórico e apresentar-se-ão alguns resultados de investigação qualitativa, relativa a como as representações da política se diferenciam por gênero e como representações de gênero e de po- lítica se inter-relacionam. O foco aqui está na relação entre representações de masculinidade e feminilidade e sua relação com representações sobre política. O argumento de que a maternidade é a característica definidora da feminilidade e referência principal de sua inserção política é debatida à luz de discursos que utilizam estereótipos de gênero para explicar a participação da mulher na política. Trata-se de uma investigação de dife- renças de gênero que se revelam discursivamente, visto que é por meio do discurso que se articulam identidades e se promovem comportamentos, mas que importam sobretudo porque estão na raiz das desigualdades de gênero e políticas. Revista Brasileira de Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro - abril de 2015, pp. 87-120. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0103-335220151605 Daniela Peixoto Ramos * A família e a maternidade como referências para pensar a política ** Family and maternity as references to think of politics * É doutora em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: [email protected]. ** Este artigo foi extraído de tese de doutorado Representações sobre gênero e política no Distrito Federal, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília em maio de 2014.

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A divisão sexual do trabalho relega as mulheres a uma situação inferiorem termos de acesso a recursos políticos e as leva a desenvolver representaçõese vivências da política distintas das masculinas porque marcadaspela localização estrutural de gênero. Neste artigo, este argumento serábrevemente discutido do ponto de vista teórico e apresentar-se-ão algunsresultados de investigação qualitativa, relativa a como as representações dapolítica se diferenciam por gênero e como representações de gênero e de políticase inter-relacionam. O foco aqui está na relação entre representaçõesde masculinidade e feminilidade e sua relação com representações sobrepolítica. O argumento de que a maternidade é a característica definidorada feminilidade e referência principal de sua inserção política é debatidaà luz de discursos que utilizam estereótipos de gênero para explicar aparticipação da mulher na política. Trata-se de uma investigação de diferençasde gênero que se revelam discursivamente, visto que é por meio dodiscurso que se articulam identidades e se promovem comportamentos,mas que importam sobretudo porque estão na raiz das desigualdades degênero e políticas.

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A diviso sexual do trabalho relega as mulheres a uma situao inferior em termos de acesso a recursos polticos e as leva a desenvolver represen-taesevivnciasdapolticadistintasdasmasculinasporquemarcadas pelalocalizaoestruturaldegnero.Nesteartigo,esteargumentoser brevemente discutido do ponto de vista terico e apresentar-se-o alguns resultados de investigao qualitativa, relativa a como as representaes da poltica se diferenciam por gnero e como representaes de gnero e de po-ltica se inter-relacionam. O foco aqui est na relao entre representaes de masculinidade e feminilidade e sua relao com representaes sobre poltica. O argumento de que a maternidade a caracterstica defnidora da feminilidade e referncia principal de sua insero poltica debatida luzdediscursosqueutilizamesteretiposdegneroparaexplicara participao da mulher na poltica. Trata-se de uma investigao de dife-renas de gnero que se revelam discursivamente, visto que por meio do discurso que se articulam identidades e se promovem comportamentos, mas que importam sobretudo porque esto na raiz das desigualdades de gnero e polticas. Revista Brasileira de Cincia Poltica, n16. Braslia, janeiro - abril de 2015, pp. 87-120. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0103-335220151605Daniela Peixoto Ramos*A famlia e a maternidade como referncias para pensar a poltica**Family and maternity as references to think of politics* doutora em Cincia Poltica pela Universidade de Braslia (UnB). E-mail: [email protected]. **EsteartigofoiextradodetesededoutoradoRepresentaessobregneroepolticanoDistrito Federal,defendidanoProgramadePs-GraduaoemCinciaPolticadaUniversidadedeBraslia em maio de 2014.RBCPed16.indd 87 13/04/15 16:0188 Daniela Peixoto RamosDiviso sexual do trabalho e insero polticaAsuposiodequemulheresehomenspensemapolticadeformas distintas est baseada na premissa de que a experincia da marginalizao (Williams, 1998, p. 15), sofrida por mulheres e outros grupos marginalizados imputados sujeitos a padres de desigualdade social e poltica estrutu-rados de acordo com o pertencimento de grupo , capaz de dar origem a perspectivas (Young, 2000, p. 137), isto , formas especfcas e situadas de ver o mundo que caracterizam os membros de tais grupos. Williams julga que tais grupos desenvolvam mesmo uma identidade poltica prpria, des-valorizada pela cultura dominante, o que signifca que h um estigma em relao aos membros desses grupos que limita a agncia dos indivduos (Williams, 1998, p. 16) que os compem. Portanto, mulheres desenvolve-riam vises sobre a poltica marcadas pelas limitaes decorrentes de sua experincia social desfavorecida.A marginalizao feminina decorre da existncia, como argumenta Pa-teman (1989), de uma dicotomia entre esferas pblica/privada, subjacente qual esto diversas outras, de carter igualmente hierrquico (natureza/cultura,irracionalidade/razo),quereforamaexclusodasmulheresda esfera tida como a mais nobre e mais importante da sociedade por enqua-dr-lascomoincapazesdedesenvolverosensodejustiaeracionalidade requerido de cidados plenos. A diviso sexual do trabalho segue as linhas dessa dicotomia por ser derivada dela. Trata-se de uma forma de diviso do trabalho social decorrente das relaes sociais entre os sexos, caracterizada pela designao prioritria dos homens esfera produtiva e das mulheres esfera reprodutiva e, simultaneamente, da apropriao pelos homens das funes com maior valor social adicionado (polticas, religiosas, militares etc.) (Hirata e Kergoat, 2007, p. 599).Comoadefnioacimaimplica,pode-sefalarnoapenasemdiviso sexual do trabalho na famlia, mas tambm em outras esferas, e tambm em diviso sexual de poder e do trabalho poltico, como fazem diversos autores1. Desigualdades dentro da famlia esto alinhadas com desigualdades na eco-nomia e poltica, num crculo vicioso. Burns (2009) prope o entendimento desse processo a partir de um modelo de sobreposio cumulativa de des-vantagens (menor quantidade de recursos de ordens diversas, principalmente 1Ver Sapiro (1984, p. 14) e Miguel e Biroli (2009, p. 74), por exemplo.RBCPed16.indd 88 13/04/15 16:0189 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a polticaeconmica) que culmina no acesso desigual ao poder poltico-institucional. A origem na famlia seria determinante de sua confgurao social tambm em outros mbitos. A desigualdade de gnero, ao contrrio de outras, como asdeclasseeraa,seconstrideformairrefetidaentrepessoasquecon-vivemintimamenteequepossuemlaosfortes,assentadosemvaloresde honra e afetividade, relacionados a cuidar dos flhos e de outros familiares. Trata-se de uma desigualdade sub-reptcia, mascarada e duradoura porque encobertaporrelaesdeamorentabuladasporfamiliareseamigosnum contexto supostamente marcado pelo consenso e altrusmo e desprovido de assimetrias de poder. Dado que o cuidado sequer costuma ser encarado como trabalho, sendo antes caracterizado como um conjunto de atos de amor e devoo, torna-se difcil discutir quem dever executar que frao dele. E, ao se concentrar todo ou uma parte desproporcional desse cuidado sobre a mulher, que se considera ter as disposies naturais para tal, estabelece-se uma diviso de trabalho que expressa a forma mais acabada de organizao familiar. O fato de as mulheres serem as nicas ou principais cuidadoras dos flhos tem, portanto, consequncias enormes para o tipo de pessoas que nos tor-namos, a estrutura do mercado de trabalho e quem detm o poder estatal (Phillips, 2002, p. 75). Esse argumento remete questo das interligaes entre esferas domstica/privada e pblica. Vistas como opostas, as caracte-rsticas de uma adquirem sentido em comparao com as da outra. A esfera pblica , tradicionalmente, a esfera do poltico, onde os homens se renem para discutir as questes da coletividade e exercitar suas mais nobres virtudes ao passo que a privada a esfera da sujeio natural da mulher. No entanto, uma est proximamente ligada outra no sentido de que, por exemplo, o trabalho domstico realizado pela mulher que permite ao homem aceder vida pblica como trabalhador. Quando se torna trabalhadora, a mulher no o faz nas mesmas condies que os homens devido segregao sexual da fora de trabalho (Pateman, 1989, p. 8), que assigna a elas as piores ocupaes em termos salariais e de status, privando-as tambm do desenvolvimento de habilidades cvicas e outros recursos importantes politicamente contatos e renda por inseri-las de modo mais precrio no mercado de trabalho. A partir da famlia, portanto, a desigualdade se estende para as demais esferas sociais, inclusive a poltica, o que garante sua continuidade. O de-senvolvimento da ambio poltica para candidatar-se a um cargo pblico apenas a fase fnal de um processo que se inicia antes e em outras esferas. RBCPed16.indd 89 13/04/15 16:0190 Daniela Peixoto RamosAopassaremporprocessosdesocializaodegneroepolticadistintos efrequentarem,aolongodavida,espaossociaisqueostratamtambm desigualmente,homensemulheresadquiremrepresentaespolticas distintas. A desigualdade inicial exacerbada por outras esferas e institui-es, notadamente a escola, o mercado de trabalho e o campo poltico, que tambm utilizam e recriam representaes de gnero, originadas da diviso sexualdotrabalhonombitodomiciliar,paraalocarhomensemulheres seletivamente e destinar-lhes montantes desiguais de recursos de poder. Por sua vez, indivduos utilizam representaes de gnero para pensar a poltica.H autoras feministas que procuram salientar o aporte distinto que as mu-lheres tm provido poltica a partir de sua localizao estrutural especfca. Feministas do pensamento maternal, como Elshtain (1998), por exemplo, pretendem valorizar positivamente as experincias das mulheres em suas di-ferenas e at mesmo afrmar a superioridade moral das mulheres em relao aos homens, que vista como ensejando uma concepo de poltica prpria e uma forma de poder tambm especfca. Para essa proposta, o feminismo no deveria se espelhar num modelo de comportamento masculino, mas na busca da valorizao da feminilidade e do privado, tradicionalmente asso-ciados a valores como interdependncia, comunidade, conexo, confana, emoo etc. O objetivo valorizar as formas de comportamento, inclusive polticas, que tm sido assumidas pelas mulheres de modo a impedir que elasprecisemsemasculinizarparaalcanarpodernumasociedadeem que este defnido por padres masculinos. A proposta de que as mulheres tm uma viso poltica diferenciada da masculina no necessita, porm, representar uma adeso ao chamado pen-samento maternal ou tica do cuidado, que compreendem a contribuio poltica das mulheres como advinda de uma sensibilidade poltica peculiar para questes relacionadas ao cuidado. Em lugar disso, a razo pela qual se supe aqui que mulheres atuem em uma esfera poltica distinta da tradicio-nal deve-se ao fato de ser, para elas, mais difcil adentrar e ocupar posies nocampopolticoconvencional,restando-lhesocuparoutrosdomnios polticos que as comportem. Mulherestenderiamasermaisativaspoliticamentequandosetrata dequesteslocais,relativascomunidadeeaimportar-semaiscoma poltica do cotidiano (Brito, 2001, p. 293), ou seja, a micropoltica, em oposiopolticainstitucional,relacionadaacontextosmaisformais, RBCPed16.indd 90 13/04/15 16:0191 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a polticacomoparlamentoseeleies.Essetipodediferenadecomportamento dever-se-ia, mais uma vez, diviso sexual do trabalho e consequente internalizao, por parte das mulheres, da ideia socialmente prevalente de que a poltica institucional no um terreno feminino ou que elas no tm as caractersticas requeridas para participar desse mundo masculinizado. Alm disso, essa poltica do cotidiano a que mais se aproxima das funes que lhes so assignadas em virtude da diviso sexual do trabalho, o que explicaria sua maior tendncia a participar de atividades comunitrias e locais. Assim, como prope Randall (1982) a respeito de formas de ao poltica pouco organizadas, que tendem a ser praticadas por mulheres, essa poltica do cotidiano pode consistir em aes no coordenadas, individuais e no se reportar diretamente ao campo poltico. Grupos marginalizados tm suas prprias prticas polticas, no to visveis quanto as formas de participao usadas pelas elites polticas, especialmente quando o conceito de poltica que se tem em mente o de poltica restrita a arenas clssicas. Esse alijamento no se traduziria em um apoliticismo do gnero feminino, masnumainseropolticaalternativa(esubordinada),marcadapelo aproveitamento dos nichos de (menor) poder que estariam disponveis s mulheres num campo poltico hostil.Para explicar como a participao poltica das mulheres latino-americanas moldada, Craske (1999) argumenta que elas compartilham, independen-tementedeclasse,raa/etniaenacionalidade,umaidentidadecomumde mesquetemsidoacionadapoliticamente.Essaidentidade,construda religiosamente2 e dotada de legitimidade social, tem uma dimenso poltica, j que as mulheres a usam para manifestar demandas ao Estado. Portanto, a identidade materna tem um lado empoderador (visto que permite s mu-lheres se mobilizarem sob essa bandeira), mas tambm impe fortes restri-es3. Mes so idealizadas como seres moralmente superiores e abnegados, 2Ver, por exemplo, a discusso sobre marianismo, termo que designa originalmente um movimento da Igreja Catlica de culto Virgem Maria e que foi apropriado pela literatura sobre gnero na Amrica Latina para descrever um complexo hbrido de feminilidade idealizada, o qual ofereceu uma srie de crenas sobre a superioridade moral e espiritual das mulheres que agiu para legitimar seu papel social domstico e subordinado (Chant, 2003, p. 9). Visto como o ethos feminino correspondente ao machismo, ele tem como traos peculiares a exaltao tanto da maternidade, tida como o lao que tornaria as mulheres mais prximas de Deus, quanto da domesticidade, o espao familiar em que as mulheres deveriam exercer sua misso primria no mundo.3A maternidade tem um lado privatizador das mulheres que pode, paradoxalmente, tambm lev-las a interagir com o pblico. A respeito do carter limitador da maternidade, Machado e Barros (2009, RBCPed16.indd 91 13/04/15 16:0192 Daniela Peixoto Ramosmais sensveis s necessidades da comunidade, o que tende a constranger a atividade poltica, no apenas limitando tticas e estratgias, mas tambm restringindo possibilidades de negociao, o que uma parte intrnseca do processo poltico (Craske, 1999, p. 4).Breve descrio metodolgica do estudoAdiscussotericasumarizadaanteriormenteorientouodesenho deumestudodecasoquebuscoucaptarrepresentaessobregneroe poltica por meio de entrevistas domiciliares em profundidade, realizado no Distrito Federal, em 2012, com mulheres e homens de diferentes fai-xas etrias e pertencentes a distintas classes sociais: popular e mdia4. O objetivofoicaptarumadiversidadederepresentaessociais5sobreos temasinvestigados,tentandoestabelecer,naseleodosentrevistados, diferentes estratos sociais, funes e categorias (Bauer e Aarts, 2007, p. 57), como propem, e tentando acessar o fenmeno que se quer explicar a articulao do gnero com a relao de homens e mulheres com o campo poltico a partir do ponto de vista dos prprios atores envolvidos nele. Outra suposio que informa a pesquisa diz respeito interao entre gneroeoutrasvariveissocioeconmicas(classesocialeidade)como fatores explicativos do diferencial de representaes sobre poltica. Gne-ro se soma a outras clivagens estruturais, como classe, escolaridade, raa, idade, composio familiar, religio e outras, para moldar os comporta-mentosecrenasindividuais.Noentanto,dadosoescopodesteprojeto p. 380) ressaltam que o papel materno previne as mulheres de entrarem na esfera pblica na mesma condio que os homens porque aumenta a sua carga de responsabilidade domstica e reduz suas chances de realizar projetos individuais. Por outro lado, a maternidade tem sido idealizada e mobilizada por todas as foras polticas, de direita ou de esquerda. Por exemplo, Molineux (1985), em anlise do papel das mulheres durante a revoluo na Nicargua, argumenta que elas assumiram uma mater-nidade combativa, estimuladas pelos lderes polticos, que procuraram integr-las transformao social que tentavam promover, sem deixar, porm, de recorrer sua identidade tradicional. 4Foram selecionados dois bairros com pers correspondentes a essas duas classes sociais, denidas a partir do nvel de renda mdio de seus moradores.5Refere-seaquiaumconjuntoespeccoderepresentaesque,nocasodegnero,abrangem questes como diviso sexual do trabalho, relao com o trabalho remunerado, relaes de poder intrafamiliares principalmente ligadas chea da unidade domiciliar e tomada de decises , iden-tidade de gnero, relao entre representaes religiosas e de gnero e ao posicionamento a respeito de aborto e casamento homossexual. No caso de poltica, as questes foram: relao com polticos e burocratas, percepo sobre candidatura de mulheres presidncia da Repblica e ao governo do Distrito Federal (DF), prevalncia de homens na poltica, percepo sobre ditadura versus democracia, senso de competncia poltica, atividades polticas, noes de cidadania.RBCPed16.indd 92 13/04/15 16:0193 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a polticaeaslimitaesrelativasconstruodosdados,decidiu-serestringira anlise da interao de gnero com duas outras variveis: classe e idade. Foramanalisadasasdiferenasderepresentaessobrepolticaentre mulheres e homens com diversos perfs em termos de posies de classe e faixa etria no intuito de buscar explicar como as diferenas de papis sociais de gnero, aliceradas na diviso sexual do trabalho e em interao com a estratifcao socioeconmica e geracional, se refetem em termos de representaes sobre poltica.A clivagem entre mulheres e homens de classes sociais distintas bas-tante relevante para essa discusso. Anlises de gnero devem estar atentas sdivisesinternasnosgruposdegnerovistoqueclasseeescolaridade sodeterminantesdevariaessignifcativasemtermosdeformaode identidade e modos de vida. O conceito de classe est sendo entendido aqui como referente a um grupo cujos membros auferem uma renda domiciliar mensal semelhante, frequentemente envolvendo um estilo de vida comum e que se diferencia de outros grupos em termos de poder e status e ainda das chances que seus membros tm de melhorar materialmente de vida (Bradley, 2007, p. 129). No que se refere diviso sexual do trabalho, a varivel classe, operacionalizada em termos de renda, tambm relevante porque determi-na o acesso contratao do trabalho domstico remunerado. Alm disso, classe e escolaridade tm efeitos sobre os nveis de interesse e compreenso cognitiva da poltica (Dalton, 2000). Com relao varivel idade, supe-se aqui que mulheres e homens mais velhos seriam mais conservadores por haverem sido socializados num meio social mais tradicional em termos de gnero e tambm porque, quanto maior a idade, menor a taxa de atividade econmica a partir de determinada faixa etria6. A idade incide de forma diferente sobre o comportamento poltico visto que as variadas pesquisas apontam que homens e mulheres reagem cada um sua maneira s mudanas nos ciclos de vida/faixas etrias. A inteno foi tam-bm levar em conta os efeitos geracionais e sua relao com a socializao de gnero, supondo que pessoas pertencentes a diferentes geraes, por haverem sido socializadas em perodos temporais distintos, tero concepes de gnero 6Na faixa de 50 a 59 anos, a taxa de atividade era, em 2009, de 68,1%, e, na faixa de 60 anos ou mais, a taxa de atividade era de 29,9%; ao passo que as maiores taxas de atividade so vericadas nas faixas etrias de 20 a 29 anos e de 30 a 39 anos (83,7% e 84,6%, respectivamente), segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD-IBGE) 2009.RBCPed16.indd 93 13/04/15 16:0194 Daniela Peixoto Ramose de poltica diferentes. Procurou-se ter uma diversidade de entrevistadas e entrevistados em relao s variveis propostas: classe e idade7.Fez-seumaamostranoprobabilsticaemqueotamanhodependeudo grau de variedade que se pretendia obter e do processo de saturao terica que tende a ocorrer nos estudos qualitativos (dado que se chega a um ponto em que se procede suspenso de incluso de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliao do pesquisador, uma certa redundncia ou repetio, no sendo considerado relevante persistir na coleta de dados (Fontanela, 2008). Inicialmente, associaes de naturezas diversas (de moradores, culturais, comerciais) foram contatadas e alguns de seus dirigentes entrevistados. A inteno era comear o trabalho de campo a partir de algum ponto de referncia e, em seguida, passar a pessoas que residissem nas redon-dezasdasassociaes,masquenoparticipassemdelas.Assim,foipossvel entrevistar pessoas selecionadas aleatoriamente que se encaixavam no perfl buscado (mulheres, homens, de determinada faixa etria e de renda e mora-dores dos dois bairros selecionados) por meio de solicitaes de entrevistas em domiclio. medida que o campo se desenrolou, passou-se estratgia de ir a lugares onde as pessoas com o perfl desejado pudessem ser encontradas com mais facilidade, tais como escritrios de profssionais liberais e universidades. Outro ponto importante diz respeito ao contexto em que esto inseridos osatoresecomoestefoianalisadotendoemvistaoarcabouoterico--metodolgicodapesquisa.Asentrevistasindividuaisforam,emquase todos os casos, domiciliares ou realizadas no local de trabalho/estudo das(os) entrevistadas(os). Como se assume que as representaes sobre poltica no so determinadas apenas por fatores individuais, mas tambm por questes relativas ao contexto em que se inserem os atores sociais, levou-se em consi-derao a questo de como o contexto social (determinados traos peculiares aos bairros, como tempo de existncia, perfl histrico-poltico, proximidade 7A forma de tratar a varivel idade foi dividi-la em duas faixas etrias (a primeira de 21 a 40 anos e a segunda de 41 a 65 anos). A escolha inicial foi trabalhar com pessoas adultas, que j tivessem alguma experincia como eleitores. A seleo dessas faixas foi feita com base em suposies relativas a ciclos de vida e gerao, visto que na primeira faixa que mulheres e homens em geral tm o seu primeiro casamento e lhos. Na segunda faixa etria esto pessoas que tiveram alguma vivncia do regime militar(experinciaquesupostamenteasfazdesenvolverpercepescomparativasarespeitoda ditadura versus democracia) e que tambm j se encontram em outra fase/gerao em relao a seus papis de gnero (algumaspessoas j se tornaram avs, mulheres que deixaram de trabalhar quando os lhos eram pequenos j retornaram ao mercado de trabalho, muitas testemunharam mudanas signicativas em relao ao papel da mulher na sociedade). RBCPed16.indd 94 13/04/15 16:0195 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a polticacom outros bairros com nveis de renda distintos etc.) pode infuenciar as vises sobre poltica dos atores. Ao contrrio do que estudos etnogrfcos sobre a poltica tendem a fazer, esta pesquisa foi conduzida num perodo de interregno eleitoral, isto , dois anos aps as eleies de 20108. Isso signifca que as discusses eleitorais j haviam passado e que a necessidade de decidir em quem votar no se im-punha como preocupao naquele momento. Dessa forma, as pessoas no estavam esperando ter que falar sobre poltica num perodo no eleitoral. No entanto, a memria das eleies anteriores em especial as disputas para presidente e governador ainda estava presente.A conduo da pesquisa num momento em que a relao entre mulheres e poltica podia ser abordada luz dos fatos de que a primeira mulher fora eleitapresidentaequehouveraumamulhercandidataagovernadorano Distrito Federal certamente teve impacto sobre as percepes a respeito de como se compatibilizam feminilidade e poltica. Caso tivesse sido outro o momento da entrevista, antes dessas candidaturas femininas ou aps o man-dato da presidenta, poderiam ter sido outros os resultados9. Assim como as representaes sobre gnero mudam de acordo com o tempo histrico e a cultura, suas articulaes com as representaes de poltica tambm mudam segundo elementos que ressaltam a visibilidade da categoria gnero nota-damente a presena de mulheres no campo poltico. Tal como as etnografas, esta pesquisa insere-se no esforo de desvelar disposies, habilidades, desejos e emoes de uma variedade de atores po-lticos e os signifcados que eles atribuem a suas prticas (Auyero e Joseph, 2007, p. 2), neste caso, de pessoas comuns, que nem sempre se entendem como atores polticos, que nutrem crenas polticas frequentemente con-traditrias, que querem se afastar e ao mesmo tempo se aproximar de um 8No DF, no h eleies para prefeito e vereador. No entanto, alguns reexos da campanha eleitoral que comeava a ser feita em municpios vizinhos a ele, dos quais provm alguns dos(as) entrevistado(as), se faziam sentir. Vrias pessoas mencionam que as cidades de onde elas ou suas famlias migraram estavam mobilizadas politicamente. Outras alegaram que nunca transferiram seu ttulo eleitoral para o DF como razo para o no envolvimento com as questes polticas da cidade. 9ComoconrmamachadosreferentesaosEstadosUnidos(cf.Sapiro,2003,p.610),adependerda presena de mulheres nas eleies estaduais, as diferenas de gnero com relao s eleies presi-denciais podem ser maiores ou menores j que o fato de que o contexto local salienta questes de gnero acaba afetando o posicionamento do(a) eleitor(a) com relao tambm s demais disputas eleitorais. Outras pesquisas tambm apontam que os resultados de interesse relativos a gnero por exemplo, a disposio de mulheres a convencer outrem a votar em seu candidato(a) (Hansen, 1997) variam em funo da existncia de mulheres candidatas.RBCPed16.indd 95 13/04/15 16:0196 Daniela Peixoto Ramoscampo que as repele ainda quando propaga a necessidade de sua participao. Em se tratando de grupos marginalizados, como mulheres e populaes de periferias urbanas em geral10, a pesquisa qualitativa parece ser a mais apro-priada para captar modos de pensar e fazer poltica11.As perspectivas a partir das quais grupos marginalizados veem o mundo no so fxas, mas mutveis histrica e socialmente. A partir delas, tm-se as representaes sociais, entendidas no sentido durkheimiano de crenas culturais,valoresmorais,smboloseideiascompartilhadosporqualquer grupo humano (Durkheim, 1961 apud Bocock, 2007, p. 157). Representa-es no so construdas de maneira individual e solitria, mas transmitidas intergeracionalmenteviaprocessodesocializao,evariamconformeos diversos segmentos sociais. As prticas discursivas revelam no apenas as diferentesmaneirasdearticularalnguautilizadaspelosvariadosgrupos sociais, mas tambm suas representaes e seus desiguais nveis de acesso aos bens sociais, incluindo status e reconhecimento social. A anlise que segue trata de um conjunto de 29 entrevistas12. A Tabela 1 mostra alguns detalhes dessa distribuio.10A populao residente na periferia do DF formada, em grande parte, por migrantes vindos de zonas menos urbanizadas, principalmente do Nordeste (42% dos chefes de domiclio do DF eram naturais da regio Nordeste, segundo dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domiclios 2004), que mantm os valores e modo de vida adquiridos em seus lugares de origem porque as relaes familiares continuam a ser fundamentais para a sobrevivncia dos pobres no meio urbano. No DF, as reas perifricas se notabilizam por uma infraestrutura urbana mais precria que a das reas centrais, pela distncia em relao a estas e por taxas mais altas de violncia. A desigualdade tambm representa um estmulo, segundo Reis (1995), a se restringir ao crculo mais prximo, evitando interaes que fujam a ele e mantendo distncia do espao, devido existncia de uma cultura generalizada do medo, tpica de um meio social com altas taxas de violncia e pobreza.11Em ambos os casos, so famlias formadas por migrantes vindos de zonas menos urbanizadas, princi-palmente do Nordeste (42% dos chefes de domiclio do DF eram naturais da regio Nordeste, segundo dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domiclios 2004), que mantm os valores e modo de vida adquiridos em seus lugares de origem porque as relaes familiares continuam a ser fundamentais para a sobrevivncia dos pobres no meio urbano. Como nota Sarti (2009: 50), frequentemente graas ao apoio recebido da famlia que a migrao torna-se vivel, o que mais um motivo para que ela permanea como uma rede de apoio indispensvel para aqueles que encontram pouco suporte nas instituies pblicas. Alm disso, tanto no DF quanto em So Paulo, as reas perifricas se notabilizam por uma infraestrutura urbana mais precria que a das reas centrais, pela distncia em relao a estas e por taxas mais altas de violncia. A desigualdade tambm representa um estmulo, segundo Reis (1995), a restringir-se ao crculo mais prximo, evitando interaes que fujam a ele e mantendo distncia do espao, devido existncia de uma cultura generalizada do medo tpica de um meio social com altas taxas de violncia e pobreza.12Utilizou-se a recomendao de Gaskell (2007, p. 71), de que se faam ao menos duas entrevistas por tipo relevante de entrevistado segundo as caractersticas selecionadas, que, neste caso, so homensemulherespertencentesaduasclassessociaisdistintaseaduasfaixasetrias(21a40 anos e 41 a 65 anos).RBCPed16.indd 96 13/04/15 16:0197 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a polticaTabela 1: Distribuio das entrevistas por gnero, classe e faixa etriahomem mulherclasse mdiamais jovens (21 a 40 anos) 3 5mais velho/as (41 a 65 anos) 4 3Subtotal 7 8classe popularmais jovens (21 a 40 anos) 3 5mais velho/as (41 a 65 anos) 2 4Subtotal 5 9Total 12 17Fonte: Elaborao prpria.Representaes de gnero e polticaTodaasocializaosegmentadaporgnero,oqueimplicaatrans-misso de padres de conduta e expectativas diferenciadas para homens e mulheres ideais de feminilidade e masculinidade criados por cada socie-dade, como ressalta Gofman (1977). Decorre da que as distintas classes de gnero desenvolvem o que o autor chama de identidades de gnero, isto , um senso de si prprio e uma referncia para o autojulgamento que so dados pelo pertencimento ao gnero que lhes corresponde. Dentre as inmeras maneiras pelas quais poder-se-ia pensar a articulao entre iden-tidades de gnero e insero poltica, optou-se por analisar as assunes de gnero que esto na base dos discursos sobre poltica e ainda as variaes que podem ser atribudas a gnero (e combinao entre gnero, classe e idade/gerao),nasformasdepensarevivenciarapolticaapresentadas por mulheres e homens. Dado que o acesso poltica ou, de forma mais ampla, ao envolvimento social/pblico, requer disposies subjetivas que favoream a viso da pol-tica como algo possvel e desejvel, preciso saber como homens e mulheres variam em sua exposio a informaes sobre poltica bem como em suas oportunidadesdedesenvolverasorientaessimblicasnecessriasao envolvimento poltico e de se posicionar discursivamente sobre poltica. A aquisio de tais disposies se faz socialmente, por meio de uma socializao poltica mediada por instncias tais como a famlia, a escola, o mercado de trabalho e os meios de comunicao. Como argumentam Burns, Schlozman e Verba (2001, p. 8), homens e mulheres so expostos a diferentes tipos de ambiente mesmo que criados em uma mesma famlia ou educados numa RBCPed16.indd 97 13/04/15 16:0198 Daniela Peixoto Ramosmesma escola que os levam a extrair diferentes concluses sobre a rele-vncia da poltica para suas vidas.A importncia da socializao de gnero para o entendimento de como se articulam os discursos polticos fca evidenciada pela forma como a casa e a poltica se inter-relacionam. H uma diviso do trabalho poltico familiar que atribui ao homem o papel de intermedirio entre a famlia e o mundo externo13, assim como h a percepo generalizada de que mulheres se inte-ressam menos por poltica que homens e conversam menos sobre o tema14. esperado15 que se usem princpios e valores empregados em outras esferas tambm na poltica, visto que a exigncia de que a vida faa sentido abrange tambm a esfera poltica ainda que, para muitas pessoas, a poltica per-manea como um campo propositadamente distante e obscuro e preciso responder a essa exigncia aplicando algum princpio explicativo conhecido. Para citar algumas falas que expressam o entendimento da insero dos homens na poltica com base no seu papel domstico, tem-se, por exemplo, arespostadeCamila16,jovemdeclassemdia,aoporqudaprevalncia doshomensnapoltica:Euachoque,porcausaatdasociedade,queo homem comanda: o homem que lidera at a casa. De uns tempos para c que a mulher comeou a aparecer mais. Mas eu acho que por causa disso 13A organizao da famlia de classe popular, segundo Sarti (2009, p. 20), est congurada como uma rededeobrigaesmoraisemqueocoletivoprecedeosindivduos,oqueconfereum padro tradicional de autoridade e hierarquia que segue a clivagem de gnero, assignando a mulher a uma posiosubordinadaeohomemaopolodominante.Ofatodequediversas(os)entrevistadas(os) tenham atribudo ao homem um papel mais ativo e de maior responsabilidade que o da mulher, em especial no que se refere a sair para trabalhar e prover o sustento, sinaliza um reconhecimento de que o enfrentamento do mundo externo ainda cabe primordialmente ao homem.14Os dados provenientes das entrevistas indicam desigualdade de exposio conversa sobre poltica. H uma tendncia, que independe de gnero, em no falar sobre poltica de forma geral e, especial-mente, em no entrar em disputas polticas, o que decorre, em parte, do fato de que a democracia representativa no demanda, nem delas nem deles, um engajamento poltico mais abrangente que o voto. No entanto, segundo Noelle-Neumann (1995, p. 44), as clivagens sociais importam no sentido de denir graus de silenciamento. Dentre as pessoas para quem se perguntou quem tem mais interesse porpolticaecomquemsecostumafalarmaissobrepolticahomensoumulheres,amaioria respondeu que homens se interessam e conversam mais. Havendo esse vis, isto , supondo que essa intuio de que homens gostam mais de conversar sobre poltica seja usada como guia quando se trata de escolher um interlocutor ainda quando as pessoas em geral no pensem sobre os motivos por que isso acontece , decorre que mulheres sejam menos procuradas para tratar desse assunto, o que tenderia a reforar sua menor exposio poltica e, consequentemente, seu maior alheamento.15Sarti (2009, p. 140), em estudo sobre segmentos de classes populares urbanas, argumenta que a famlia, com seus cdigos de obrigaes, uma linguagem atravs da qual traduzem o mundo e que esta especicidade que dene o horizonte de sua ao poltica.16Os nomes utilizados so ctcios. O uso dos pronomes Dona e Seu feito para distinguir as faixas etrias.RBCPed16.indd 98 13/04/15 16:0199 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a polticamesmo:passadegeraoemgerao,homemqueestalinocontrole. Dona Miriam, de classe popular, sublinha a busca de poder na poltica como extenso do poder detido pelos homens em outras esferas: Eu acho que, os homens, para ter mais poder; ele j tem aquele poder por ser homem, n? A, na poltica, dobra mais aquele poder. Tratar-se-ia de um mecanismo que se inicia fora da poltica neste caso, associado essncia mesma da mas-culinidade e que se difunde para ela porque esta a esfera por excelncia de aquisio de poder.Se a admisso de que os papis familiares ainda privilegiam os homens politicamente o que indica uma permanncia h, por outro lado, uma percepodemudana.Amaioriadaspessoasentrevistadasnotaqueas relaesdegneroestomudandoeasmulherescomeandoaentrarna poltica17. A feminilidade, tal como entendida predominantemente, impe obstculos ao ingresso da mulher no campo, mas tambm lhes proporciona recursos polticos, a comear pela maternidade, base da identidade feminina, que pode e tem sido mobilizada politicamente. Mes so agentes polticas eportadorasdereivindicaesaoEstado.NostermosdeCosta(1983,p. 73 apud Santos et al., 2001, p. 58), a valorizao da maternidade imputa mulher a condio de mediadora entre os flhos e o Estado. Mulheres, em especial as mais pobres, interagem mais com agncias pblicas e, argumenta--se, tendem a ter posies mais favorveis proviso de polticas sociais que homens. O trabalho de cuidado lhes oferece uma perspectiva nica sobre o papel do Estado. Dona Cleide faz referncia explicitamente sua condio de me para reclamar a atuao do Estado: Ns, mes, primeiramente, temos queserdecasa.Porqueogovernosmandaaconta,n?Ogovernono sabe o que eu estou passando com ela (sua flha), mas eu sei, ento eu tenho que fazer a minha parte e eles tm que fazer a deles. (...) Porque o governo est deixando a desejar nessa parte. Ele teria que melhorar muito o lado da infncia, ajudar os flhos que pedem socorro. 17 Todas(os) entrevistadas(os) que foram questionadas(os) se haveria maior presena das mulheres na poltica hoje do que antes responderam que sim. Nesse sentido, a poltica um campo mais marcada-mente masculino do que o religioso dado que inexistem dvidas sobre a preponderncia de homens na poltica ao passo que o mesmo nem sempre se d em relao s instituies religiosas. A questo do aparecimento recente de mulheres na poltica no passa despercebida, mas no chega a constituir objeto de reexo ou surpresa. Assim, h respostas que acusam a simples e completa desconsiderao de questes como essa: No sei, no tenho nem ideia; Para mim, tanto faz. Outros posicionamentos sobre esse ponto sero analisados em articulao com os discursos relativos compatibilidade entre feminilidade e poltica.RBCPed16.indd 99 13/04/15 16:01100 Daniela Peixoto RamosA poltica, por constituir um campo alheio realidade cotidiana, requer a analogia com outras prticas sociais para que se possa atribuir-lhe sentido. ComoargumentaSarti(2009,p.39),afamliaconstituiumareferncia simblica para pensar a poltica, o que evidenciado por diversos traos presentes nos discursos analisados na pesquisa. Como exemplo de analogia com a vida familiar, usada para pensar a poltica, entrevistadas(os) propem que ela seja reformada com os princpios morais da boa educao, cultivada em famlia: honestidade, carter, disciplina e hierarquia.A justifcativa dada tanto por homens quanto por mulheres para afastar-se de um campo poltico considerado imoral pontuada por referncias a valores aprendidos com pai/me, como no caso de Fernando: algo que a minha me me ensinou, eu no imagino a possibilidade de algum me pegar come-tendo um tipo de irregularidade. Ento, questo at de formao mesmo. E de Ana: Eu no iria me corromper porque meu pai me ensinou a ser justa e honesta e eu sou. Ento, eu seria jogada de escanteio muito rpido porque eu no aceitaria as coisas e no daria certo. O mesmo raciocnio usado por outras(os) entrevistadas(os) para pronunciar-se sobre como a poltica poderia ser modifcada, o que tambm uma forma de as(os) entrevistadas(os), tanto de classe popular quanto mdia, afrmarem a sua superioridade ao menos a sua, criticando, em alguns casos, o que consideram os maus modos ou a falta de conscientizao do brasileiro mdio em relao aos polticos. Eles se dizem portadores de algo que os polticos no tm: valores morais. Wiliam: Para mudar, eles (os polticos) teriam que ter essa conscientizao. Ensinar as crianas porque elas vo ser os futuros polticos. (...) Eu acho que a nica formademudardessaforma:ensinandoascrianas,asescolas,ospais passando para os flhos. Eu acredito que, se eu entrasse na poltica, eu faria alguma coisa, como voc tambm. Elisabete: A maioria dos polticos tem curso superior, mas falta um pouquinho mais de educao mesmo, carter, honestidade mesmo. Isso a, com estudo, no se adquire, no (risos). Secabefamliaproverosprincpiosmoraisqueseroutilizadosna poltica, alguns concluem que a decadncia da primeira a responsvel pela derrocada da segunda. A ordem social mais ampla e a ordem domstica so vistas como proximamente conectadas. O vnculo que se estabelece entre a casa e a poltica resumido na seguinte fala, de Seu Ricardo: Assim como todo mundo fala que a base de toda sociedade a famlia, se voc tem uma famlia desestruturada, o pas vai ser desestruturado. Homens mais velhos RBCPed16.indd 100 13/04/15 16:01101 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a poltica nesse ponto, a idade mostrou-se uma varivel importante para entender asdiferenasdeposturaassinalammudanasnegativas,comoamaior interveno do Estado no mbito familiar, abalando a autoridade paterna: Se, hoje, voc der um tapa num flho seu, voc est arriscado a ir preso. E tem menino: Se o senhor me bater, eu vou dar parte (risos); O Estado est assumindo essas responsabilidades e no est podendo, no est dando conta. O pai, hoje, no pode reprimir o flho. De forma geral, h um lamento pela perda de uma ordem social que se supe ter havido em tempos passados que entrevistados mais velhos contam ter vivido , em que a criao dos flhos era mais rgida e as leis eram mais cumpridas ou havia menos violn-cia. Seu Mrio, por exemplo, transita, em sua fala, entre o mundo da casa e o mundo pblico como se no houvesse distino: Quando voc perde o respeito dentro de casa, ningum te obedece mais. Seu flho no te obedece. (...) Eu vejo o exemplo de quando eu tinha 18 anos. Era difcil voc ver um jovem dirigindo sem carteira, antes dos 18, porque tinham medo da polcia, porque o pai no deixava, porque o irmo no incentivava. Hoje no, hoje com 12, 13 anos, o moleque est dirigindo e um orgulho para o pai. (...) Est faltando o punho, uma ordem. Aqui, no Brasil, no tem isso. Voc pode pegar uma multa ali, mas voc liga para o parente, que liga para o senador e tira sua multa, o juiz te libera, tira sua multa do sistema. Sempre tem isso. Agora, o pobre no, o pobre paga, que ele no tem esse contato. (...) Falta a lei e falta quem execute a lei. Esse tipo de denncia da falta de ordem est invariavelmente associado, nas entrevistas, a reclamaes relativas a questes que vm sendo bastante discutidas em tempos recentes maioridade penal, casamento homossexual e pena de morte , que no sero aprofundadas aqui. Noes de feminilidade e masculinidade se imbricam com representaes sobre poltica, em especial na medida em que papis familiares femininos e masculinos so usados como referncia para pensar a insero de mulheres e homens na poltica. A esse respeito, h evidncias empricas18 e argumen-18Burns, Schlozman e Verba (2001) argumentam que a famlia tem efeitos indiretos sobre a participao poltica de homens e mulheres, empurrando homens para o mercado de trabalho e para instituies religiosas, o que lhes confere vantagens em termos de recursos e oportunidades de participao, e mantendo as mulheres em casa quando as crianas so pequenas. Alm disso, os autores concluem que a hierarquia domstica fator apontado pela teoria feminista tem tambm impacto negativo sobre a participao, de forma que mulheres so mais ativas quando se expressam livremente em discusses polticas em casa e homens tambm se tornam mais ativos quando controlam em maior medida as decises nanceiras em mbito familiar. RBCPed16.indd 101 13/04/15 16:01102 Daniela Peixoto Ramostos tericos que apontam ter a organizao familiar implicaes polticas. Alm do fato de os domiclios constiturem locais de discusso poltica, o quepodeserpositivoemtermosdeengajamentopolticodasmulheres, h outros fatores referentes organizao familiar que benefciam mais os homens que as mulheres. Se se entende que o papel familiar do homem o impulsiona em direo poltica, o da mulher visto como limitador de seu engajamento poltico. No depoimento de Seu Jos, de classe popular, que preside uma associao, fca explcita a ideia de que as candidatas a cargos polticos enfrentam oposio cerrada em casa: Ela (qualquer mulher) vai sair candidata e o marido no mexe com poltica: o que termina causando separao. Isso a gente j viu muito por a. Na poca de poltica, igual a carnaval, n? Eu vi muitos casa-mentos acabarem em poca de campanha poltica, aqui. Mulher trabalhar na poltica, marido no gostava: aquele negcio, n?. Por outro lado, Fernando, jovem de classe mdia, recorre ao papel maternal feminino para explicar por que seria desejvel que houvesse mais mulheres na poltica: Eu acho que a mulher tem o dom de administrar muito bacana, muito suave. Tiro o exemplo da minha me: administra uma casa, um trabalho, flhos, estudo e tal. S por conta disso, a mulher j mais capacitada que o homem. Na essncia, sem mdia, sem demagogia, acho mesmo. A justifcativa que ele prov para sua opinio a respeito da capacidade de gesto das mulheres o desempenho de sua me na gesto de sua vida profssional e familiar refora o uso do padro de pensar em relaes familiares como bssola para a poltica. Aexistnciadeumachefafamiliartambmdizrespeitoclaramente aumahierarquiadomsticaaindabastantepresente,aqualpermiteque sepensenoquepodehaverdecomumentreambosostiposdepoder:o patriarcal familiar e o poltico. Da mesma maneira com que centram suas ideias sobre as origens dos males polticos em fatores relacionados ao mbito privado/domstico,fazem-seanalogiasentreopapeldosgovernantesna esfera pblica e o papel do chefe de famlia. Falas como a de seu Mrio, que estabelecem uma clara linha de continuidade entre as linhas de comando privadas e pblicas, enfatizam que o pai de famlia deve se fazer obedecer assimcomoogovernantedevesaberimporaordem.Aoserperguntado sobre como avalia, em linhas gerais, o perodo referente ditadura militar, aps falar sobre suas muitas vantagens e poucas desvantagens, ele responde com uma frase que marca o que considera deva ser o princpio de atuao RBCPed16.indd 102 13/04/15 16:01103 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a polticadaquele que bem governa sua casa ou seu pas: Quando voc perde o res-peito dentro de casa, ningum te obedece mais... O papel dos governantes concebido por analogia com o papel do pai de famlia. Essa mesma linha de argumentao pode ser usada para justifcar que cada grupo pais de famlia, de um lado, governantes, de outro fque em seu lugar. O cidado comum faz questo de afrmar a dignidade de seu modo de vida, que gira, em grande parte, em torno de papis privados/domsticos, em oposio indignidade dos polticos. A face poltica da masculinidade19 fca frequentemente em segundo plano. Seu Ricardo, por exemplo, enxerga um dilema entre papis familiares e outros e d precedncia ao papel paterno: Como cidado, que participa das coisas, eu at que gostaria muito. Mas, se eu desviar essa energia que eu tenho para minha vida, para minha famlia, se eu desviar para outra coisa, em uma das coisas eu vou comprometer, n? Voc v que um bom poltico no um bom pai, um bom profssional, ele no um bom marido porque ele vai se dedicar muito empresa e vai deixar a desejar junto esposa, famlia20. Est implcita tambm a ideia, congruente com a de que as razes dos problemas polticos encontram-se na vida cotidiana, de que a proviso de uma boa educao domstica responsabilidade do pai de famlia j uma contribuio sufciente vida poltica.As explicaes relativas predominncia dos homens na poltica e baixa presenademulheresnessaesferafrequentementerecorremaanalogias comnoesmaisamplasdemasculinidadeefeminilidade.Comoargu-menta Gutmann (2003), os modelos hegemnicos de masculinidade esto apoiadossobrerelaesdedominaomasculinanombitodomsticoe nos demais mbitos sociais, reforadas, como sublinham anlises de casos latino-americanos,pelosimpactosdeixadosporanosderegimemilitar, inclusivesobreoimaginriodasociedadebrasileiraarespeitodaordem como valor, como discutido. 19Conforme Fuller (1997 apud Gutmann, 2003, p. 35), a masculinidade entre homens de classe mdia no Peru est congurada ao redor de trs eixos: hombridade (manliness), domesticidade e exteriori-dade (referente ao trabalho e poltica) e que cada homem se depara com as diferentes demandas colocadas por esses eixos ao longo da vida, s vezes privilegiando um ou outro a depender do seu posicionamento no ciclo de vida. 20A fala de Seu Ricardo, um homem que se diz religioso e devoto pai de cinco lhos, ilustra o modelo de masculinidade discutido por Santos et al. (2001), denido em torno da convivncia familiar e da felicidade no lar. Trata-se de uma espcie de privatismo catlico que refora a importncia da pater-nidade, mas no questiona estruturalmente a diviso sexual do trabalho nem a submisso feminina ao homem. RBCPed16.indd 103 13/04/15 16:01104 Daniela Peixoto RamosOutro recurso ambivalente (no sentido de portador de potencialidades e riscos) de que dispem as mulheres, tambm relativo s concepes preva-lentes sobre feminilidade, diz respeito existncia de um esteretipo bene-volente (Sapiro, 2003, p. 616) que, embora redutor e restritivo, dado que constitui um esteretipo, pode ser usado politicamente em favor das mulheres. Sapiro argumenta que a literatura sobre esteretipos de gnero sugere que eles podem ser tanto benevolentes de acordo com os quais as mulheres so mais compassivas e, nesse caso, o esteretipo atua por meio de paternalismo protetivo e cavalheirismo quanto hostis, operando por meio de excluso e classifcando as mulheres como emotivas em excesso. Pensar sobre as mulheres e sua relao com a poltica, tal como a entrevista convida os respondentes a fazer, implica realizar operaes mentais de oposio aos homens. Para Krais (1993, p. 170), a construo da identidade de gnero requer um trabalho de distino, um trabalho que consiste de excluses, simplifcaes, opresso de ambiguidades a respeito do conceito antagonstico de masculino e feminino. Isso quer dizer que as representaes de gnero tendem a opor homens e mu-lheres, assumindo que elas so maternais emotivas, honestas, dispostas a agradar o outro, mais presas moral relacional e ao valor-famlia (Machado e Barros, 2009, p. 371) e homens so o oposto disso. Essa distino segue a linha da tica do cuidado e da poltica tica, j referenciada anteriormente e baseada em autoras como Chodorow e Elshtain. Htrstiposdediscursossobreacompatibilidadeentrefeminilidade epoltica.Tantooprimeiroquantoosegundotipospartemdavisodo esteretipo benevolente, que chamo de feminilidade virtuosa, mas fazem conclusesdistintassobreadesejabilidadedaentradadasmulheresna poltica. O primeiro supe que as mulheres podem aportar caractersticas da feminilidade para o mundo da poltica, transformando-o. Celebra-se a entrada de mais mulheres na poltica por este motivo e tende-se a assumir que no haveria obstculos estruturais ao incremento desse fenmeno. Assim comooutroscampossociais,apolticafoiapenasrecentementeabertas mulheres e uma questo de tempo at que elas atinjam o mesmo grau de presena dos homens. No entanto, h tambm a crena em que, por terem caractersticas distintas do que predomina na poltica, as mulheres a evitam. Nesse caso, haveria uma oposio entre feminilidade e poltica derivada da percepo de que mulheres, percebendo a poltica tal como ela , corrupta e masculina, se intimidam e no a buscam. RBCPed16.indd 104 13/04/15 16:01105 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a polticaO segundo tipo de discurso considera que a poltica muda as mulheres, enoocontrrio.Emlugardetransformarapoltica,melhorando-a,as mulheresquesocorrompidasquandonelapenetram.Porcausadisso, elas tambm evitam a poltica e a poltica as evita, isto , a poltica dispe de um arcabouo institucional ou est inserida num contexto social mais amplo que restringe a participao feminina.Essesdiscursosaparecemnasfalasentremeadosderefernciasaduas candidatas de caractersticas em vrios sentidos opostas: a Presidenta Dilma Roussef e a candidata a governadora nas ltimas eleies no Distrito Fede-ral, Weslian Roriz, esposa do ex-governador Joaquim Roriz, que se tornou candidata aps o impedimento do marido21.Feminilidade e poltica so compatveis e desejvel que o sejam. Essa a viso expressa por mulheres e homens que so convidadas(os) a pensar sobre por que a presena de mulheres na poltica no to grande quanto a de homens e o que pensaram a respeito da candidatura de mulheres para a presidncia da Repblica nas eleies passadas. O raciocnio expresso por muitosconsisteemaplicarpolticaasrepresentaesdominantessobre mulheres o esteretipo benevolente a respeito da feminilidade virtuosa , isto , supor que as mulheres se comportariam na esfera poltica assim como fazememcasa,isto,comomeshonestas,emotivasesensveis.Assim, dado que a presena das mulheres na poltica ganhou propores maiores nas ltimas eleies, a novidade desse fato recebida por muitos a maioria das(os) entrevistadas(os) com bons olhos. Para esse grupo, o gnero pode serconsideradoumatributoquepermitepreverhonestidadenumgrau que muitos no atribuem ao curso superior, por exemplo, embora no haja essa comparao nos discursos. No entanto, vrios dos que julgaram que a educao domstica em geral, provida pelas mulheres mais efetiva em garantir um bom comportamento do que a escolaridade tambm consideram que a maior sensibilidade feminina teria serventia na poltica.21Joaquim Roriz renunciou candidatura aps ter sido impedido pela Lei da Ficha Limpa no Tribunal Superior Eleitoral. No mesmo dia, 2 de outubro de 2010, a candidatura de sua esposa pelo Partido Social Cristo foi lanada. Weslian Roriz notabilizou-se por sua feminilidade convencional, que em nada a favoreceu. Weslian incorporou, na perspectiva dos(as) respondentes, a imagem de mulher tradicional: dona de casa que estava ali apenas para ser leal ao marido e fazer sua vontade, sem nada entender de assuntos pblicos. Esta mulherzinha inspiradora de pena em nada se assemelha imagem pulso rme de Dilma, vista como uma alhada de Lula, mas tambm como uma pessoa de personalidade prpria ou, no mnimo, como algum cujo comportamento no constrangedoramente imprprio do campo poltico. RBCPed16.indd 105 13/04/15 16:01106 Daniela Peixoto RamosAs representaes das mulheres entrevistadas independentemente de classesocialnodistammuitodasrepresentaesmasculinassobreas mulheres. Alm disso, tanto elas quanto eles explicitam suas representaes sempre de forma comparativa, confrmando que a identidade de gnero se constri pelo antagonismo entre feminino e masculino. Dona Renata, por exemplo, afrma que mulher muito voltada para o sentimento. Eu sempre acreditei nisso. Ento eu sempre achei que elas olhariam para o lado da po-breza, da carncia. Eu acho que a mulher pensa mais com o corao. Ento, eu acho que a maioria dos homens muito endurecida, muito prtica com as coisas. Eu acho que as mulheres, mesmo sendo no quesito poltica, eu acho que seria melhor. Camila refora o ponto de que os escndalos polticos em geral no envolvem mulheres: No sei por que, mas eu acho que as mulheres so mais honestas. Na poltica, voc v pouco escndalo envolvendo mulher. (...) Ento, eu acho que mulher tem mais esse lado de honestidade.Nocasodoshomens,argumentossemelhantessoutilizados:menor corrupoassociadasmulheres(Vocjviudeveter,novoudizer que no tem mulher corrupta? Voc j viu envolvida em alguma coisa? muito difcil, no ?; Mulher no tem muito instinto de roubar, no. muito difcil voc ver uma mulher metida em coisa errada) e caractersticas da feminilidade que fariam a mulher agir com mais cuidado (mulher mais centrada, homem mais afoito) ou de forma mais sentimental (A mulher tem mais misericrdia do ser humano, o homem mais duro. A mulher mais amorosa, mais compreensiva) e/ou com maior preocupao pelo bem--estar social: O olhar da mulher, a palavra da mulher, em questes sociais, isso muito importante; Se ela motivada mais pela emoo do que pela razo, ento, ela vai olhar para aquela pessoa que est passando difculdade e vai se colocar no lugar dela e: Eu vou tentar fazer alguma coisa. (...) O homem muito razo: Ah, ele est l? No estou nem a. Eu estou aqui, eu estou bem. E, geralmente, esses que so mais... recebem o preconceito da sociedade. Ento, melhor botar mulher que ela no vai receber o mesmo preconceito, da mesma forma. Porque ela um outro gnero, mas o gnero dela, entendeu? No um homem com gnero de mulher. o gnero dela).Comovisto,osprincipaispontospositivos,elencadospormulherese homens,potencialmenteagregadospelamulherpolticasoahonesti-dade e o olhar para questes sociais. Logo, o lugar que se imagina poderia ser ocupado pelas mulheres na poltica o do social um local de menor RBCPed16.indd 106 13/04/15 16:01107 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a polticaprestgio e poder dentro do campo poltico. Como bem assinala o ltimo entrevistado citado Ivo, jovem de classe mdia , a emotividade e o senti-mentalismo so caractersticas estranhas ao campo poltico e discriminadas por ele. No entanto, ele faz a suposio errnea, segundo Okin (1989) de queessestraospoderiamserbem-vindosemmulheresaindaquenoo sejam em homens. Ootimismoda(os)portadora(es)dessediscursoemboranosejam a(os)nica(os)amanifestartalcrenaa(os)levaa,emmuitoscasos, acreditar que as mulheres podero eleger-se e ocupar uma proporo cada vez maior de postos polticos com base nesse capital advindo do esteretipo da feminilidade. Nesse sentido, a eleio de uma mulher para presidente entendida, por alguns, como prova de que no h mais obstculos s mulheres na poltica quer seja no que se refere sua circulao no campo poltico ou ao seu desejo de entrada nele (e de que, caso mais mulheres queiram, elas podero entrar, sem maiores problemas). A progressiva entrada de mulheres em campos dos quais estavam ausentes o mercado de trabalho, a educao e, agora, a poltica , entendida como um mesmo fenmeno, que tenderia a se intensifcar tambm neste ltimo como tem acontecido nos demais.Os recursos da feminilidade que se supe poder reformar a poltica so, no entanto, os mesmos que podem afastar as mulheres desse campo. Dona Mrcia,declassemdia,consideraqueapresenamaiordehomensna polticasedeveaquenemtodasasmulherestmcoragemdeenfrentar umapolticaequeoshomenstmessacoragemporqueelesjvono pensamento de roubar. Se, para Dona Mrcia, a coragem masculina no louvada, mas desqualifcada, dado que a poltica o que 22, para Gabriela, a falta de coragem e vontade feminina tambm no censurada, apenas vista como um trao distintivo de gnero: s vezes, os homens gostam mais de poltica do que as mulheres. As mulheres gostam de comentar mais sobre poltica, mas o homem gosta de se amostrar mais, ele gosta mais de dizer assim:No,euvouentrar,voutentar.Amulherjnopensaementrar para a poltica, ela gosta mais de falar sobre poltica. S no tem coragem 22Trata-se de um raciocnio um tanto paradoxal que, ao mesmo tempo, comemora a recusa das mulheres em participar da poltica corrupta e destaca as virtudes que elas poderiam aportar. maneira do que fazem Bourque e Grossholtz (1998) em artigo em que lamentam que as mulheres tenham entrado no jogo da poltica masculina, participando dele, e concomitantemente, tecem loas viso feminina mais preocupada com a dimenso moral da poltica, um trao visto como devendo ser incorporado pela poltica dominante.RBCPed16.indd 107 13/04/15 16:01108 Daniela Peixoto Ramosdeentrarparaassumirumcargo.Apolticavistacomoumaatividade que requer agressividade e racionalidade instrumental estrita, mais do que princpios.Dadoquesomenospropensascorrupoquehomens,as mulheres fogem dela.Como regra geral, no h um clamor para que mais mulheres entrem na poltica ainda que se reconheam as qualidades agregadas pelas mulheres ao campo e que a feminilidade possa no ser vista como um empecilho entradanele.Senovistocomoempecilho,porm,tampoucoconstitui um trunfo. O discurso de que mulheres moralizam a poltica ainda que usado por candidatas a seu favor, como afrma Barreira (1998, p. 26) parece construdo para dar conta da singularidade deste novo ator poltico, mas no para orientar a avaliao de eleitora(es) sobre as candidaturas femininas. Se o esteretipo de gnero acionado para responder questo da possvel existnciadediferenasentremulheresehomensnapoltica,issonose conjuga com um potencial desejo de ver mais mulheres ocupando cargos polticos. Isso porque a dimenso de gnero simplesmente no percebida como uma questo para o(a) eleitor(a) comum (para mim, tanto faz, nunca parei para pensar nessa questo, no) ou, ainda, porque no se considera que o gnero seja um critrio legtimo para pautar a ocupao de cargos pblicos. Poder-se-iasuporque,nocasodasmulheres,osdiscursossublinhados indicariam uma tendncia a crer na representao feminina como uma forma de poltica de presena (Phillips, 2001), isto , uma forma de representao que levaria ao campo poltico caractersticas da feminilidade que permitiriam s mulheres identifcar-se com suas representantes, enxergando nelas traos positivosdegnero.Noentanto,hpoucasrazesparacrerquemulheres fariam sua escolha eleitoral com base no gnero das candidatas. Alm disso, os elogios mulher na poltica apenas surgem quando se levanta este tema especfco, mas no quando se questiona a respeito dos polticos e da poltica em geral. Gnero no aparece nos discursos como uma identidade signifcativa, em termos polticos, para as mulheres entrevistadas. H uma condenao moral padro escolha eleitoral baseada no gnero da candidata, o que se verifca pela nfase em afrmar que no se votou em Dilma/Marina/Weslian ou em qualquer outra candidata por se tratar de mulheres, mas por outros critrios que se julgam mais relevantes/aceitveis: (i) competncia e projeto poltico; (ii) no caso de Dilma, e, em maior medida, Weslian, confana na indicao de Lula e Roriz; (iii) fliao religiosa da(o) candidato(a), no caso de Marina. RBCPed16.indd 108 13/04/15 16:01109 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a polticaNo caso da primeira narrativa a que enfatiza a competncia tcnica e/ouatrajetriapolticaemdetrimentodognero,humapreocupao em afrmar que se conhecem e se seguem os cdigos de conduta prprios aocampopolticonosendoodegneroumdeles(aomenosnono caso das candidatas). Assim, Jeremias responde que votaria, sim, em uma mulher, dependendo das propostas dela. E quando perguntado se votara em Marina por ser evanglica, ele responde, com certa indignao: No, o meu voto independe de a pessoa ser evanglica ou no. O que vale, para mim, o carter da pessoa, as propostas das pessoas. A segunda narrativa a que justifca o voto especifcamente em Dilma e Weslian em razo daqueles que so considerados seus padrinhos polticos, que j gozavam de ampla popularidade e identifcao com o eleitorado. No caso de Dilma, observa--se, em alguns casos, uma tendncia a afrmar suas caractersticas prprias masculinas como um fator adicional de reforo ao voto e, no caso de Weslian, suas caractersticas de gnero so citadas como um fator desabo-nador do voto nela, s vezes superado em virtude de seu padrinho/marido. O discurso relativo candidatura de Marina Silva compe a terceira nar-rativa contendo critrios de escolha eleitoral considerados mais legtimos do que o gnero da mulher em questo. A aluso religio de Marina como justi-fcativa para o voto nela citada por cinco mulheres. Nesse sentido, percebe-se que h uma tendncia a admitir que o critrio religioso politicamente vlido aindaquenemtodas(os)as(os)entrevistada(os)quevotaramemMarina sejam capazes de defend-lo abertamente23. Camila no se intimida, porm, e declara em resposta questo de por que escolheu Marina: Porque ela crist e eu sou crist tambm. Eu acho que mais difcil de ela se corromper. E eu a acho muito pulso frme, ela muito inteligente, ela sabe do que ela est falando, do que ela est fazendo, do que ela pretende fazer. Eu achava at que ela era bem mais convicta do que a Dilma. Mas a Dilma pegou a onda do Lula e se benefciou, mas eu preferiria ela. Acho que ela teria mais garra para governar. Em seu discurso, dimenso religiosa acrescentam-se outras, o que sinaliza uma compreenso de que apenas a cristandade de Marina poderia ser considerada uma razo insufciente/ilegtima para guiar o voto. A despeito de que haja uma tendncia a considerar a religio e a poltica comocamposopostossinalizadapelorechaodealgunsideiadeque 23Para Miranda (1999, p. 79), que estudou integrantes do movimento catlico carismtico, a religio se constitui uma forte e, em certos casos quase exclusiva, referncia para pensar a poltica.RBCPed16.indd 109 13/04/15 16:01110 Daniela Peixoto Ramosutilizaramocritrioreligiosoparaguiaraescolhapoltica,observa-se tambm,edeformapreponderante,aimbricaoentreosdoiscampos e uma disposio a usar o princpio religioso mais do que o de gnero. O caso de Marina Silva presta-se de forma particularmente interessante a essa anlise por se tratar de uma mulher evanglica, que conjuga, portanto, duas identidades acionveis politicamente. Ela se benefciaria, assim, de eventuais apostas na sua dupla blindagem contra a corrupo: sua condio de mulher e o fato de ser evanglica.H ainda outro elemento relevante mais encontrado entre os portadores do primeiro discurso: a crena em que mulheres na poltica, mais especifca-mente a Presidenta Dilma, simbolizam a ascenso social de uma minoria as mulheres ao poder. Essa percepo nem sempre sufciente para levar sua portadora a votar numa mulher at porque, como j sugerido, a feminili-dade no comumente vista como critrio poltico vlido. No entanto, no deixa de haver o reconhecimento de que uma mulher poder ter interesse maior em agendas femininas/feministas. A eleio de Dilma consiste numa poderosa forma de representao simblica feminina porque aponta a ca-pacidade feminina de ocupar espaos de poder. A simples presena de uma mulhernumcargotosimblicojevocaalgumsentidodeidentifcao por parte de mulheres. OutradimensodarepresentaofemininadeDilmaestariaemsua capacidadedeatuaremfavordeinteressesfemininos.Nessesentido,a excepcionalidade e a singularidade da presena feminina na poltica levam asuporqueelaprocuraratuaremdefesadaminoriaqueintegra,oque no acontece com os homens em relao aos polticos. A perspectiva so-cial de Dilma a tornaria capaz de entender as mulheres e governar em seu favor numa espcie de solidariedade de gnero, para Michele: Mulher sabe o que as outras mulheres passam. (...) Porque homem, minha flha (risos), homem s quer as coisas para ele, o que eles pensam s para eles. Ento, tendomulher,fcaatmaisfcil.Comojsugerido,porm,essesentido de representatividade, alm de no ser alimentado por todas as mulheres, no considerado uma razo para o voto. Mesmo mulheres que louvam a eleio de uma mulher para a presidncia, como Dona Luzia (Agora tem a presidenta l: eu acho o mximo! Tudo que o homem faz, quando uma mulhercomeaafazer,euacholegaldemais.)afrmanotervotadoem Dilma por causa de seu partido, razo tambm apresentada por Dona Eunice, RBCPed16.indd 110 13/04/15 16:01111 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a polticaque v a ascenso de Dilma como sinal de que as mulheres esto com um crescimento bom na poltica. AdescrenadeIvoemqueDilmapoderiapromoverinteressesfe-mininos, como quer que sejam entendidos, respaldada por outras(os) entrevistadas(os), como Ana: No necessariamente o fato de ser uma mu-lher no poder quer dizer que ela v defender mais ou menos os interesses das mulheres. Dado que no h uma forte identidade poltica de gnero, tambm no se manifesta a crena em que uma presidenta poderia advogar interesses das mulheres. A prpria defnio desse termo improvvel. Ao contrrio do que acontece em relao raa, como argumentam Burns e Kinder (2011), a organizao social de gnero (o fato de que as mulheres esto distribudas entre os homens como j argumentado por Beauvoir24 , ao contrrios dos negros, que tendem a estar mais segregados), impede que as mulheres desenvolvam um senso de identifcao com seu prprio grupotoaltoquantoosnegros.Emdecorrnciadissotambm,como acrescento, as mulheres passam pelos mesmos processos de socializao culturalaquesosubmetidososhomens,oquefazdelasportadoras derepresentaesdegneroquelhesreservamumlugarsubordinado nasociedade.Daamaiordifculdadedelevarasmulheresaseverem comomembrosdeumgrupomarginalizadoimputado,portadorde interesses comuns.A suspeio a respeito da atuao poltica das mulheres marcante do se-gundo discurso, aquele que considera a poltica uma cilada para as mulheres e, portanto, desconfa de que elas poderiam acrescentar algo de positivo a esse campo, tanto porque elas prprias falhariam em manter sua virtude quanto porque o campo as desvirtuaria. Observa-se uma tentativa de apegar-se crenadequeapresenadasmulherespoderiaresultaremalgopositivo para a poltica, porm considera-se essa aposta muito arriscada melhor no faz-la. Encontram-se argumentos como os de que a mulher tem em si a virtude, mas no consegue ou est impossibilitada de faz-la germinar na poltica. A poltica estruturalmente corrupta e no pode ser reformada pela infuso de virtude feita por mulheres, dado que estas so cooptadas e reproduzem o comportamento prprio do campo. 24Beauvoir (2009, p. 20): O lao que a une a seus opressores no comparvel a nenhum outro dado queasmulheres vivemdispersasentreoshomens,ligadas...(aeles)maisestreitamentedoquea outras mulheres. RBCPed16.indd 111 13/04/15 16:01112 Daniela Peixoto RamosO ethos poltico masculino, isto , seus valores predominantes so mas-culinos, da porque se valoriza e se estigmatiza a mudana que a feminilidade poderia trazer. No entanto, no se cr que uma minoria de mulheres seja capaz de modifcar todo o funcionamento de um campo, em que prticas corruptas so percebidas como correntes. Ana otimista, porm duvida: A mulher tem uma outra viso das coisas, de um modo geral. Vejo como uma coisa positiva, mas como eu lhe falei tambm: isso no quer dizer que vai diminuir cor-rupo, roubalheira, que vai diminuir essa coisa horrorosa que, realmente, j est instalada a. um bom comeo, a mulher mais sensitiva, observadora, algumas so mais ticas algumas. (...) Eu acho que j existe um vcio muito grande na estrutura. Mas, h possibilidades. E sobre a Presidenta Dilma, ela ressalva: Eu acho que a Dilma est procurando, de alguma forma, fazer as coisas caminharem. Ela me parece ser bem pulso frme. Mas ela tem assessores, n? Ela no trabalha sozinha. () Mesmo que ela d a ltima palavra, eu no acredito que a ltima palavra seja decidida sozinha. Jeremias ecoa a mesma linha de raciocnio. Em princpio, pondera: As mulheres so mais racionais, a maioria pensa em, realmente, fazer alguma coisa. Talvez no consiga, mas pelo menos tem a inteno. Depois, porm, o pessimismo prevalece: Mas quando entram l dentro, o sistema outro, n? Acho que at pensam em mudar, em fazer coisas que vo benefciar a populao. S que o poltico no muda sozinho, ele depende dos outros. (...) Ento, acaba que fca meio que de rabo preso com os outros polticos. Independe de ser mulher ou homem.A avaliao que fazem da presena da mulher na poltica que elas se comportam tal como os homens, ou seja, perdem as virtudes da feminilidade. Para os portadores desse discurso, o aumento do nmero de mulheres no umasoluoadequadaparaoproblemadacorruponapolticanem para o problema do comportamento oportunista e indigno de confana dos polticos. Mulheres, em suma, podem ser mes dedicadas e at moralmente superiores, mas tambm so seres humanos, ou seja, a mulher tambm pode serbalanadapelointeresse.Amulher,tambm,noaquelaperfeio, nos termos de Seu Ricardo. A esperana de redeno feminina seria, dessa forma, v. Para preservar sua feminilidade/integridade, seria desejvel at que as mulheres se afastassem da poltica, para Fabiana: Poltica um trem to sujo, n? E mulher fca se envolvendo com isso, to feio... H,portanto,umasuposiodequeafeminilidadevirtuosapodeser corrompida por um campo poltico masculinizado. E h tambm um enten-RBCPed16.indd 112 13/04/15 16:01113 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a polticadimento de que a poltica um campo que suprime as diferenas de gnero, igualando mulheres a homens, ainda que no seja permevel aos dois gneros na mesma medida. Se elas no agem diferentemente dos homens, a hiptese da representatividade maior das mulheres cai por terra ao menos no que diz respeito sua capacidade de atuar em benefcio das mulheres. O terceiro discurso minoritrio o nico a romper com o esteretipo dafeminilidadevirtuosa.Nemapolticaascorrompe(asmulheres)nem elas a melhoram. A poltica um campo em que preocupaes de gnero no devem existir porque no se pode saber, a priori, se uma mulher ou um homem far um melhor trabalho na poltica. No porque a poltica seja um campo em que as diferenas de gnero se anulam caracterstica do segundo discurso , mas porque as mulheres no esto mais predispostas a atuar de forma maternal e honesta na poltica. A fala de Paulo sintetiza a ideia: Eu penso o seguinte: humano humano e poltica poltica. (...) Eu acho que gnero no, sexo no defne carter de ningum. E Seu Arnaldo tambm se incomoda com a pergunta se votaria em uma mulher: Eu votaria no poltico que me agradasse, independentemente do sexo. Eu acho um tremendo de um preconceito: Voc votaria numa mu-lher? Voc faria isso com uma mulher? Eu olho o profssional. Eu no me consultariacomumamulher,eumeconsultariacomumprofssionalde sade. (...) Se eu olhar primeiro o sexo, eu j estou errando. Ainda que eles no estejam imunes a representaes de gnero que marcam distines entre homens e mulheres, procuram negar radicalmente que gnero seja usado como critrio para pautar decises politicas e acreditam faz-lo em nome da igualdade de gnero. Em suma, todo o discurso sobre a presena das mulheres na poltica tanto o que o celebra quanto o que desconfa de seus efeitos e o que lhe indife-rentenofazdestaumaquestopoliticamenterelevante.Aindaquando se recebe com bons olhos o crescimento do nmero de mulheres, de uma perspectiva estereotipada dada a perpetuao das mulheres como pessoas maternais e instrumental, ou seja, como algo que poder trazer efeitos ben-fcos para as prticas polticas ou para as polticas pblicas, e no como uma questo de justia de gnero, isto , de incluso das mulheres em condies de igualdade no campo poltico. Exceto pelas poucas falas que mencionam a representatividade descritiva de mulheres que chegam ao poder, de forma geral a identidade de gnero passa ao largo das preocupaes femininas.RBCPed16.indd 113 13/04/15 16:01114 Daniela Peixoto RamosConclusoO conceito de poltica do cotidiano da poltica praticada nas intera-es do dia a dia, em espaos no convencionalmente chamados de pol-ticosoquemaisseaproximadavisodepolticaquemuitosdas(os) entrevistadas(os) nutrem: a poltica baseada em representaes e critrios morais. No porque a poltica seja vista como praticada fora dos gabinetes, mas porque os valores associados poltica esto presentes nas demais es-feras de vida das pessoas e porque a cidadania entendida como referente vida cotidiana.Oentendimentoeaavaliaodapolticainstitucionalcombaseem valoresfamiliaressofeitosextensivamente,comrelaoaosseguintes aspectos:papeldosgovernantes,avaliaodecandidatas(os),prevalncia dos homens na poltica e organizao da ordem social. Como a famlia est ordenada sobre bases no democrticas, o uso dessa analogia para pensar a ordem poltica tende a no resultar em posturas polticas democrticas. Asexperinciasvividasnafamliaconstituemafonteapartirdaqualo comportamento poltico comea a ser moldado, sendo a organizao pol-tica pensada a partir da domstica e papis polticos concebidos a partir de papis domsticos. Nesse sentido, a inter-relao entre valores familiares e polticos, que tenta aproximar a poltica do mbito do cotidiano, no produz a sua democratizao25. Exemplifcando como esse fenmeno se fez notar no caso desta pesquisa, observou-se a avaliao do regime militar com base em analogias com a or-dem privada que servem para ressaltar a ordem reinante naquela poca, em comparao com a desorganizao tpica da multiplicidade de atores polticos de um regime democrtico. Para alguns segmentos, notadamente homens mais velhos, a relevncia da famlia se manifesta especifcamente na perda da autoridade paterna que possuam e, em grande medida, ainda possuem oshomensnumaordemfamiliarquelhesatribuiopapeldeautoridades mantenedoras da ordem moral. A avaliao que eles fazem das transforma-25Autoras que estudaram esta inter-relao percebem a continuidade entre o autoritarismo nas duas esferas. Para Young (2005), num regime de segurana, a relao dos cidados com o mundo poltico pode tomar contornos semelhantes relao estabelecida entre patriarca e subalternos num contexto familiar. A postura de masculinidade protetora e paternalista que o governante assume num regime desse tipo entendida por associao com o cuidado familiar, o que a torna sedutora para os cidados a serem protegidos, estabelecendo-se assim uma relao no democrtica de obedincia baseada no medo. Ao agir dessa forma, o governante emula o papel de pai que infantiliza os cidados.RBCPed16.indd 114 13/04/15 16:01115 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a polticaes no mbito da famlia infuencia tambm sua viso de como a ordem social/pblica est sendo alterada. A maior interveno do Estado na vida familiar, com o intuito de assegurar proteo a indivduos, como crianas e mulheres, que ocupam uma posio de vulnerabilidade, lhes retira parte do poder patriarcal. Isso os leva a acreditar que a autoridade pblica est usurpando funes que no lhe cabem e que a poltica como um todo no funciona to bem quanto antes, em tempos mais ordeiros e pacfcos. Homens e mulheres mais jovens e escolarizados no tm essa memria positiva dos tempos do regime militar e fazem crticas mais incisivas sobre o cerceamento de liberdades imperante no perodo. Por outro lado, tambm esses jovens foram socializados em famlias organizadas de forma ainda tradicional, isto , marcada pela diviso sexual do trabalho e pelas hierarquias associadas a ela. Sua viso dos papis masculino e feminino tanto na famlia quanto na poltica no demonstra uma renovao geracional relevante. As mulheres jovens, de ambas as classes, demonstraram valorizar o trabalho remunera-do como fonte de renda e independncia e mesmo como crescente base da identidade feminina. No entanto, improvvel que o trabalho remunerado possa,porsis,tercomoefeitoatransformaodeprticasfamiliares consolidadas, visto que ele permanece conjugado, predominantemente por mulheres, com o trabalho no remunerado.Asrepresentaesdarelaoentremulheresepolticasimplesmente tendemaenquadr-lasnosesteretiposjconsolidadosdefeminilidade. Os efeitos disso para a entrada das mulheres na poltica so mistos: de um lado, considerado bom que as mulheres, com sua fora moral, entrem na poltica; de outro, considera-se que elas devem manter-se afastadas para no se corromper. O uso de esteretipos advindos da domesticidade para julgar as mulheres acaba reforando, segundo Biroli (2011, p. 86), a natura-lizao de caractersticas e competncias associadas a elas, o que segmenta e restringe sua circulao no campo poltico. , como diagnosticara Sapiro (1984),acontinuadamarginalizaofemininacomocondenaoaoseu pertencimento a dois mundos o privado e o pblico. A participao da mulher na poltica vista na forma de esteretipos, relacionados a uma suposta superioridade moral decorrente da maternidade. Interpretar o discurso maternalista como uma via legtima de entrada das mulheres na poltica implica eterniz-las nessa feminilidade estereotipada queadvmdesuacircunscrioaotrabalhonooumalremuneradode RBCPed16.indd 115 13/04/15 16:01116 Daniela Peixoto Ramoscuidado. O primeiro dos discursos analisados sobre compatibilidade entre feminilidade e poltica o da feminilidade virtuosa que transforma a poltica reproduz o essencialismo de gnero ao pressupor que mulheres so mais maternais e esto predestinadas a se manter assim. Apesar disso, ele pode ser o mais til para a promoo dos interesses estratgicos de gnero, isto , para servir a estratgias eleitorais que justifquem a demanda por maior presena das mulheres na poltica em termos que se coadunem com a imagem que o senso comum atribui s mulheres.O segundo discurso supe que mulheres tendem a adquirir valores pr-prios do ethos masculino ao entrar na poltica e que, so tambm, portanto, sujeitascorrupo.Tende-se,nessecaso,aconsiderarqueosincentivos institucionais que constituem o campo poltico so mais determinantes do comportamento dos(as) parlamentares do que as identidades de gnero, e reconhece-se, assim, que ele autnomo e sujeito a regras de funcionamento prprias,asquaismoldamseusagentes.Diantedisso,oessencialismode gnero pode no se manter, o que representa uma viso menos determins-tica sobre gnero. Jentreosportadoresdoterceirodiscurso,encontradoentrehomens maisjovensedemaiorescolaridade,haomenosapropostadequeo masculinoeofemininonotenhamdesigualdadevalorativa,isto,que sejam intercambiveis porque dotados de igual valor, algo que est no cerne da proposta feminista. No entanto, ele no serve aos interesses feministas porque no faz da paridade de gnero nos espaos de poder uma questo relevante; ao contrrio, deslegitima essa preocupao por no acreditar que gnero deveria ser visto como uma varivel relevante tanto em termos de discriminao quanto de luta por igualdade. Esse discurso, portanto, fecha os olhos para a desigualdade de gnero e, por causa disso, desconsidera a importncia da presena de perspectivas sociais distintas no campo poltico, advindas de estruturas sociais geradoras de desigualdade social de gnero, raa e tantas outras. Hqueseressaltaraindaqueasconsideraessobregnerodas(o)s candidatas(os) no aparecem espontaneamente nos discursos e que, quando estimuladas(os)apensarsobreaimportnciadacategoriagneroparao comportamento dos polticos, a maioria das pessoas rejeita sua legitimidade comocritrioparabalizaraescolhaeleitoral.Considera-se,porisso,que gnero tido como uma varivel invlida em termos eleitorais, ainda que RBCPed16.indd 116 13/04/15 16:01117 A famlia e a maternidade como referncias para pensar a polticaconstitutiva do campo poltico, por no ser visto como um fator de promoo da representao poltica.RefernciasAUYERO, Javier & JOSEPH, Lauren (2007). Introduction: Politics under the ethnographic microscope, em JOSEPH, Lauren, MAHLER, Matthew & AUYERO, Javier. New perspectives in political ethnography. New York: Springer Science. p. 1-13.BARREIRA,Irlys(1998).Chuvadepapis:ritosesmbolosdecampanhas eleitorais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumar.BAUER, Martin & AARTS, Bar (2007). 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A importncia da socializao de gnero para o entendimento de como se articulam os discursos polticos fca evidenciada pela forma como a casa e a poltica se inter-relacionam, isto , como papis e valores familiares/morais so usados para pensar a poltica. As concepes que respaldam a diviso sexual do trabalho no constituem guias apenas para relaes familiares, mas para o entendimento de todo o mundo social. A participao da mulher na poltica vista comumente na forma de este-retipos, relacionados a uma suposta superioridade moral decorrente da maternidade. Palavras-chave: Gnero, representaes, participao poltica, diviso sexual do trabalho, maternidade, famlia. AbstractAssumingthatsexualdivisionoflaborisdeterminantforbothgenderidentitiesand distinct social perspectives that carry political impacts, this research has captured repre-sentations on gender and politics through qualitative interviews with a group of men and women who live in diferent neighborhoods of Brasilia/the Federal District a middle class neighborhood and a lower class neighborhood. The importance of gender socialization for understanding how political discourses are articulated is evidenced by the way home and politics are interrelated, that is, how family/moral values and roles are used to think of politics. The views underlying sexual division of labor guide not only family relations butalsotheentiresocialworld.Thepoliticalparticipationofwomenisseenthrough stereotypes related to their alleged moral superiority stemming from maternity.Keywords:Gender,representations,politicalparticipation,sexualdivisionoflabor, maternity, family.Recebido em 29 de setembro de 2014.Aprovado em 3 de dezembro de 2014.RBCPed16.indd 120 13/04/15 16:01