A face oculta de Machado

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8 | CADERNO DEZ! | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 29/1/2008 NA REAL O ano de 2008 comemora o centenário de morte do mais importante escritor brasileiro, autor de Dom Casmurro A face oculta de Machado VITOR PAMPLONA [email protected] Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. A frase está no livro de Eclesiastes, no Antigo Testamento. Mas é também um espectro a atravessar toda a obra de Machado de Assis [1839-1908], primeiro entre seus pares na literatura brasileira. Seu centenário de morte, em 2008, promete inundar páginas de jornais, programas de TV, seminários de literatura. É desnecessário dizer que vale a pena enaltecer Machado. Mas qual Machado? Há décadas, o primeiro a povoar a cabeça de jovens leitores é o mesmo enfiado goela abaixo por professoras de literatura. Nesses casos, provoca resistências e não sobrevive às questões do vestibular. Torna-se uma lembrança distante, muito maior que o século inteiro a nos separar dele. Os mortos vão-se depressa. Machado foi jornalista, começou quase menino como aprendiz de tipógrafo, foi revisor e depois repórter político e redator. Narrava episódios da vida política e social em crônicas e fazia crítica de teatro e literatura bem antes de se tornar essencialmente escritor, carreira a que pôde se dedicar após entrar para o Ministério da Agricultura, aos 34 anos. Pelo que fez depois, este Machado é compreensivelmente empurrado para os pés-de-página. Mais conhecido é o Machado maduro, romancista e “crítico social”. Deixou em seus 69 anos de vida a imagem de pessimista, cético, melancólico, irônico e calculista. Demoníaco. Mas, ao mesmo tempo, diplomático, comedido e ambíguo. Que “morde e assopra”, e neste jogo perverso, desvenda nuances da sociedade brasileira no Rio de Janeiro da segunda metade do século 19. Tão festejado quanto o escritor é este Machado “sociólogo”. É fácil entender a porquê. Em seus nove romances e mais de duzentos contos desfilam integrantes de corporações militares e ordens religiosas, fazendeiros, banqueiros, comerciantes, funcionários públicos, aristocratas do Império e todo tipo de agregados, escravos ou não. Mas cem anos de leituras deixariam espaço ainda para outro Machado? Um que não seja o “psicológico” de Dom Casmurro [1899], da misteriosa traição de Capitu, nem o “filosófico” de Quincas Borba [1891]? Bombardeada na época de seu lançamento por conter erros históricos grotescos – como chamar de português o ministro José Bonifácio, nascido em Santos [SP] –, a mais recente biografia do bruxo do Cosme Velho responde: o Machado de carne e osso. É este quem aparece em Machado de Assis - Um Gênio Brasileiro [2005], do jornalista Daniel Piza. Os erros, de revisão segundo Piza, foram corrigidos numa segunda edição. Permaneceram os detalhes da vida do escritor até pouco tempo escondidos, como a atividade de censor de peças teatrais, exercida por Machado de maneira “bastante moralista”, diz o autor. Outro petardo: a vaidade de Machado em relação a sua obra. “Há cartas em que fica clara a ambição de os livros sobreviverem a ele. Numa delas, se comparou a Flaubert”, diz Piza. Na vida privada, ao contrário do subversivo Brás Cubas, que dedica suas memórias “em louvor ao verme que primeiro roeu as frias carnes de meu cadáver”, Machado dispensava a anarquia. Burocrata exemplar, mantinha relações com políticos e colheu elogios do imperador. O que não o impediu de, com a pena na mão, fazer troça da vida política do País. Pobre Custódio, dono da Confeitaria do Império em Esaú e Jacó [1904]: mandou pintar uma placa nova mas foi surpreendido pela proclamação da República. Ouviu uma sugestão: “Confeitaria da República”. Não, e se houvesse uma reviravolta política? Melhor “Confeitaria do Governo”, alguém disse. Mas todo governo tem uma oposição, que podia apedrejar a casa. Ficou o nome do dono: “Confeitaria do Custódio”. Para Piza, o analista social não esgota o escritor nem o homem. “Há um Machado que lida com temas universais e arquetípicos como amor, ciúme, egoísmo e orgulho que tem sido esquecido em favor do Machado crítico- da-sociedade-brasileira”. O escritor Hélio Pólvora, colunista de A TARDE e autor de ensaios sobre Machado tem opinião parecida, mas acredita que nem dez séculos de estudos bastarão para desvendá-lo. “Tanto mais se tenta defini-lo, mais Machado de Assis escapará. Nele restará sempre um substrato oculto. Um grande ficcionista será sempre enigmático”. INFÂNCIA - É o enigma do menino Joaquim Maria Machado de Assis, preto, gago e epiléptico, cujo pai era neto de escravos e a mãe emigrou criança dos Açores, e que deu início à sua escalada na vida vendendo doces em colégios, entrou para o jornalismo, viveu 34 anos ao lado da mulher, Carolina, e alcançou a glória em vida, como escritor. Seu Brás Cubas não teve filhos, orgulhava-se de não ter deixado a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. Tremenda ironia de Machado, também não teve filhos, mas seu legado parece não ter fim. ARQUIVO A TARDE Casa na rua Cosme Velho, onde Machado viveu no Rio Machado de Assis foi o primeiro presidente da ABL

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Matéria sobre o centenário de Machado de Assis e o interesse crescente despertado pelo escritor, alvo de diversas interpretações

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8 | CADERNO DEZ! | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 29/1/2008

NA REAL ❚ O ano de 2008 comemora o centenário de morte domais importante escritor brasileiro, autor de Dom Casmurro

A face ocultade MachadoVITOR PAMPLONAv p a m p l o n a @ g r u p o a t a rd e . c o m . b r

Vaidade das vaidades, tudo évaidade. A frase está no livro deEclesiastes, no Antigo Testamento.Mas é também um espectro aatravessar toda a obra deMachado de Assis [1839-1908],primeiro entre seus pares naliteratura brasileira. Seu centenáriode morte, em 2008, prometeinundar páginas de jornais,programas de TV, seminários deliteratura. É desnecessário dizerque vale a pena enaltecerMachado. Mas qual Machado?

Há décadas, o primeiro apovoar a cabeça de jovens leitoresé o mesmo enfiado goela abaixopor professoras de literatura.Nesses casos, provoca resistências enão sobrevive às questões dovestibular. Torna-se uma lembrançadistante, muito maior que o séculointeiro a nos separar dele. Osmortos vão-se depressa.

Machado foi jornalista,começou quase menino comoaprendiz de tipógrafo, foi revisor edepois repórter político e redator.Narrava episódios da vida políticae social em crônicas e fazia críticade teatro e literatura bem antes dese tornar essencialmente escritor,carreira a que pôde se dedicarapós entrar para o Ministério daAgricultura, aos 34 anos. Pelo quefez depois, este Machado écompreensivelmente empurradopara os pés-de-página.

Mais conhecido é o Machadomaduro, romancista e “críticosocial”. Deixou em seus 69 anos devida a imagem de pessimista,cético, melancólico, irônico ecalculista. Demoníaco. Mas, aomesmo tempo, diplomático,comedido e ambíguo. Que “mordee assopra”, e neste jogo perverso,desvenda nuances da sociedadebrasileira no Rio de Janeiro da

segunda metade do século 19.Tão festejado quanto o escritor

é este Machado “sociólogo”. Éfácil entender a porquê. Em seusnove romances e mais de duzentoscontos desfilam integrantes decorporações militares e ordensreligiosas, fazendeiros, banqueiros,comerciantes, funcionáriospúblicos, aristocratas do Império etodo tipo de agregados, escravosou não. Mas cem anos de leiturasdeixariam espaço ainda para outroMachado? Um que não seja o“psicológico” de Dom Casmurro[1899], da misteriosa traição deCapitu, nem o “filosófico” deQuincas Borba [1891]?

Bombardeada na época de seulançamento por conter erroshistóricos grotescos – como chamarde português o ministro JoséBonifácio, nascido em Santos [SP]–, a mais recente biografia dobruxo do Cosme Velho responde: oMachado de carne e osso. É estequem aparece em Machado deAssis - Um Gênio Brasileiro [2005],do jornalista Daniel Piza.

Os erros, de revisão segundoPiza, foram corrigidos numasegunda edição. Permaneceram osdetalhes da vida do escritor atépouco tempo escondidos, como aatividade de censor de peçasteatrais, exercida por Machado demaneira “bastante moralista”, dizo autor. Outro petardo: a vaidadede Machado em relação a suaobra. “Há cartas em que fica claraa ambição de os livrossobreviverem a ele. Numa delas, secomparou a Flaubert”, diz Piza.

Na vida privada, ao contráriodo subversivo Brás Cubas, quededica suas memórias “em louvorao verme que primeiro roeu asfrias carnes de meu cadáver”,Machado dispensava a anarquia.Burocrata exemplar, mantinharelações com políticos e colheuelogios do imperador. O que não o

impediu de, com a pena na mão,fazer troça da vida política do País.Pobre Custódio, dono daConfeitaria do Império em Esaú eJacó [1904]: mandou pintar umaplaca nova mas foi surpreendidopela proclamação da República.Ouviu uma sugestão: “Confeitariada República”. Não, e se houvesseuma reviravolta política? Melhor“Confeitaria do Governo”, alguémdisse. Mas todo governo tem umaoposição, que podia apedrejar acasa. Ficou o nome do dono:“Confeitaria do Custódio”.

Para Piza, o analista social nãoesgota o escritor nem o homem.“Há um Machado que lida comtemas universais e arquetípicoscomo amor, ciúme, egoísmo eorgulho que tem sido esquecidoem favor do Machado crítico-da-sociedade-brasileira”.

O escritor Hélio Pólvora,colunista de A TARDE e autor deensaios sobre Machado temopinião parecida, mas acredita quenem dez séculos de estudosbastarão para desvendá-lo. “Tantomais se tenta defini-lo, maisMachado de Assis escapará. Nelerestará sempre um substratooculto. Um grande ficcionista serásempre enigmático”.

INFÂNCIA - É o enigma do meninoJoaquim Maria Machado de Assis,preto, gago e epiléptico, cujo paiera neto de escravos e a mãeemigrou criança dos Açores, e quedeu início à sua escalada na vidavendendo doces em colégios,entrou para o jornalismo, viveu 34anos ao lado da mulher, Carolina,e alcançou a glória em vida, comoescritor. Seu Brás Cubas não tevefilhos, orgulhava-se de não terdeixado a nenhuma criatura olegado da nossa miséria. Tremendaironia de Machado, também nãoteve filhos, mas seu legado parecenão ter fim.

ARQUIVO A TARDE

Casa na rua Cosme Velho, onde Machado viveu no Rio

Machado de Assis foi o primeiro presidente da ABL

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9| CADERNO DEZ! |SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 29/1/2008

Quadrinhos descobrem o bruxoO universo de leitores de Machadode Assis corre sério risco deexpansão. Mas sem corrida àsbibliotecas. Na sociedade daimagem, é a adaptação de suasobras mais famosas para alinguagem dos quadrinhos queanima as editoras. No final do anopassado, chegou às livrarias pelaEditora Agir a HQ O Alienista,transposição do famoso conto –quase novela – de Machado emque o doutor Simão Bacamartecria um hospício para estudar aloucura, mas acaba ele mesmo seinternando. Autores da novelagráfica, os paulistanos Fábio Moone Gabriel Bá não eram exatamenteleitores de Machado. “No colégio,lemos Memórias Póstumas de BrásCubas, mas nunca tínhamos lido oconto antes da proposta daadaptação”, confessa Fábio.Tiveram que tirar o atraso:“Durante a preparação do roteiro,lemos O Alienista umas trintavezes”.

Da recém-conquistada

familiaridade com o texto surgiu adecisão de transformar algumasnarrações em diálogos. “Para darmais dinamismo à história. Commuita narração fica com cara dehistória ilustrada e não história emquadrinhos”, justifica Fábio.

Não foi pela adaptação de OAlienista feita por Fábio Moon eGabriel Bá, porém, que Machadode Assis foi descoberto pelouniverso HQ. Embora recentes,transposições de obras dele para osquadrinhos são relativamentefáceis de encontrar nas livrarias. Deolho sobretudo no mercadoinfanto-juvenil, algumas editorasjá providenciaram versões doromance Esaú e Jacó e dos contosA Cartomante, Uns Braços, OEnfermeiro, A Causa Secreta e dopróprio O Alienista. Os últimosforam lançados pelo projetoLiteratura Brasileira emQuadrinhos, da Editora EscalaEducacional, que também publicouadaptações de obras de Aluísio deAzevedo [O Cortiço], Lima Barreto

[O Homem que Sabia Javanês eNova Califórinia] e ManuelAntônio de Almeida [Memórias deum Sargento de Milícias].

Antes de começar a produzirsua versão para O Alienista, Fábioafirma ter lido somente umaadaptação de A Cartomante quesaiu pela coleção Domínio Público,editada pela revista pernambucanade quadrinhos Ragú. “Gosteibastante do traço”, diz.

No fim das contas, boa partedos críticos pode não apreciarmuito, mas há mal namultiplicação das versões emquadrinhos? Piza opina: “Ligrandes livros em versõesresumidas, em HQs ou emadaptações para cinema antes deler os originais. Uma coisa nãoimpede a outra”. E, sem respirar,emenda: “Mas é preciso pôr aênfase: depois dessas introduções,vá ao original. Vale a pena! Oproblema é que, quando umacoisa vira moda, as pessoas sesatisfazem com a moda”.

saiba mais

Antes de Machado de Assis- Um Gênio Brasileiro, de2005, outras biografiasfamosas retrataram oescritor. A primeira a serescrita, de Lúcia MiguelPereira, é de 1936. Oex-governador da Bahia LuizViana Filho publicou A Vidade Machado de Assis em1965. Em 1981 foi editada,em quatro volumes, Vida eObra de Machado de Assis,de Raimundo Magalhães Jr.Foi a última publicada antesda escrita por Daniel Piza ❚

Machado também motivoudiversos estudos de sua obra.O advogado e sociólogoRaymundo Faoro desvendouo Brasil da época do escritorem Machado de Assis - APirâmide e o Trapézio. Maisde crítica literária são AoVencedor as Batatas, deRoberto Schwarz, e BrásCubas em Três Versões eMachado de Assis - OEnigma do Olhar, do crítico eprofessor Alfredo Bosi ❚

O alienista Simão Bacamarte, em trecho da HQ inspirada no conto de Machado, faz anotações sobre seus pacientes [esq.]; observações foram transpostas para os quadrinhos [dir.]

EDITORA AGIR | DIVULGAÇÃO

Na Casa Verde, como é chamado o sanatório criada pelo doutor Bacamarte no conto, o interno licenciado Garcia temia conseqüências desastrosas se dissesse algo: loucura da palavra

*“Supondo o espíritohumano uma vasta concha,o meu fim é ver se possoextrair a pérola, que é arazão.”

“O terror acentuou-se.Não se sabia já quemestava são, nem quemestava doido. Asmulheres, quando osmaridos saíam, mandavamacender uma lamparinaà Nossa Senhora.Positivamente o terror.”

Fonte ❚ Graphic novel O Alienista