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1 A FACE EXPOSTA DA LÍNGUA PORTUGUESA Maria Helena Mira Mateus Faculdade de letras Universidade de Lisboa (Rio de Janeiro, 2001) 1. Fonologia e Prosódia Quando alguém fala, produz um contínuo sonoro cuja interpretação não pode ser feita pelo ouvinte sem o conhecimento da língua utilizada. Por isso não somos capazes de distinguir a sucessão de sons que formam uma palavra em línguas que desconhecemos. Esse contínuo sonoro possui determinadas propriedades que estudamos na fonética e que estão presentes em todas as línguas do mundo. O estudo dessas propriedades não explica, no entanto, como podemos reconhecer o funcionamento dos sons de uma língua particular, que sequências constituem palavras, que propriedades fonéticas são usadas com valor informativo. O estudo da fonologia responde precisamente a este desafio: como é que o falante-ouvinte consegue reconhecer, numa infinidade de sons diferentes, o conjunto de cerca de duas dezenas que constituem as unidades pertinentes, ou seja, aquelas unidades que funcionam na língua como unidades do sistema e permitem a comunicação? Durante o processo de aquisição da linguagem, a criança, embora exposta a inúmeras pronúncias diversas das unidades da fala, vai reconhecendo progressivamente os sons com que, na sua língua materna, se constroem as palavras que servem para comunicar com os outros. A pouco e pouco, inconscientemente, ela vai apreendendo as relações que se estabelecem entre os sons e delimitando o campo de funcionamento de cada um. A pouco e pouco, portanto, vai adquirindo o sistema fonológico da língua materna, que corresponde a um exercício de abstracção elaborado a partir da realidade fonética. Os elementos do sistema fonológico são denominados fonemas distinguindo-se neles três grandes classes: vogais, consoantes e glides (ou semivogais). O progressivo domínio do sistema fonológico é antecedido da aquisição do funcionamento dos sistema prosódico da língua que se serve das propriedades inerentes a todos os sons que são a altura, a intensidade e a duração. Na língua

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A FACE EXPOSTA DA LÍNGUA PORTUGUESA

Maria Helena Mira Mateus Faculdade de letras

Universidade de Lisboa (Rio de Janeiro, 2001)

1. Fonologia e Prosódia

Quando alguém fala, produz um contínuo sonoro cuja interpretação não pode ser feita pelo ouvinte sem o conhecimento da língua utilizada. Por isso não somos capazes de distinguir a sucessão de sons que formam uma palavra em línguas que desconhecemos. Esse contínuo sonoro possui determinadas propriedades que estudamos na fonética e que estão presentes em todas as línguas do mundo. O estudo dessas propriedades não explica, no entanto, como podemos reconhecer o funcionamento dos sons de uma língua particular, que sequências constituem palavras, que propriedades fonéticas são usadas com valor informativo.

O estudo da fonologia responde precisamente a este desafio: como é que o falante-ouvinte consegue reconhecer, numa infinidade de sons diferentes, o conjunto de cerca de duas dezenas que constituem as unidades pertinentes, ou seja, aquelas unidades que funcionam na língua como unidades do sistema e permitem a comunicação?

Durante o processo de aquisição da linguagem, a criança, embora exposta a inúmeras pronúncias diversas das unidades da fala, vai reconhecendo progressivamente os sons com que, na sua língua materna, se constroem as palavras que servem para comunicar com os outros. A pouco e pouco, inconscientemente, ela vai apreendendo as relações que se estabelecem entre os sons e delimitando o campo de funcionamento de cada um. A pouco e pouco, portanto, vai adquirindo o sistema fonológico da língua materna, que corresponde a um exercício de abstracção elaborado a partir da realidade fonética. Os elementos do sistema fonológico são denominados fonemas distinguindo-se neles três grandes classes: vogais, consoantes e glides (ou semivogais).

O progressivo domínio do sistema fonológico é antecedido da aquisição do funcionamento dos sistema prosódico da língua que se serve das propriedades inerentes a todos os sons que são a altura, a intensidade e a duração. Na língua

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portuguesa, dois aspectos da prosódia que têm maior importância do ponto de vista fonológico são a sílaba e o acento de palavra.

Embora o "material" fonético que todas as línguas utilizam pertença a um acervo universal, as línguas seleccionam apenas uma parte desse conjunto de sons possíveis criando assim um sistema fonológico particular. Por outro lado, na constituição das palavras, as línguas evidenciam restrições em relação às combinações aceitáveis das unidades fonológicas que seleccionaram. Em Português, por exemplo, a sequência mata constitui uma palavra, mas start é inadmissível, ainda que seja aceite em Inglês. O estudo das sequências possíveis em cada língua e da sua distribuição denomina-se fonotáctica.

Note-se ainda que o facto de se falar em sistema fonológico implica que em cada língua todas as unidades estabelecem com as outras uma relação constante e delimitam de forma diversa o seu espaço relativo, razão por que nem todas possuem o mesmo número de fonemas. Assim, como podemos ver no Quadro 1, enquanto o Francês tem um sistema de 10 vogais orais, o Português (europeu) possui 9, o Espanhol 5 e certas línguas caucásicas servem-se apenas de 3.

FRANCÊS PORTUGUÊS i y u i ˆ u e ø o e o E ç E å ç a a ESPANHOL L. CAUCÁSICAS

i u i u e o

a a

Relativamente aos sistema prosódico, também as línguas utilizam de forma diversa as propriedades de duração (ou tempo), de tom (ou altura) e de intensidade (ou força expiratória) que são intrínsecas aos sons.

O objectivo da fonologia como estudo dos sistemas de sons das línguas é, portanto, o de explicar o funcionamento desses sistemas, enquadrando a explicação numa teoria da linguagem e desenvolvendo métodos e técnicas que permitam determinar os sistemas fonológicos das línguas particulares. Ao estudarmos a fonologia de uma língua com base numa teoria da gramática comum ao estudo de

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outras línguas estamos, ao mesmo tempo, a contribuir para o estabelecimento de princípios universais que organizam o funcionamento de todos os sistemas fonológicos.

O que pode entusiasmar no estudo da fonologia é a descoberta de como é possível, com um número reduzido de elementos, construir um número ilimitado de frases que respondem a todas as nossas necessidades de comunicação.

2. Fonemas e fones

Em todas as línguas existem palavras que têm significados diferentes e se distinguem apenas por um som. Em Português, por exemplo, as palavras bala e pala, com significados diversos, só se diferenciam nas consoantes iniciais que são, respectivamente, [b] e [p] (indicados aqui entre parêntesis rectos por nos estarmos a referir à sua representação fonética). Estes sons que distinguem palavras são unidades distintivas e correspondem a fonemas do Português; os pares de palavras como bala e pala que servem para os determinar são pares mínimos porque só se distinguem numa unidade. O método de substituição (ou de comutação) de um som por outro mantendo a mesma sequência foi aplicado pela escola estruturalista. Utilizando este método de comutação, se formos verificando alterações de significado das palavras poderemos determinar todos os fonemas do Português (os fonemas indicam-se entre barras oblíquas, //). Assim, em sala [sálå] e saca [sákå] identificamos /l/ e /k/, em traça [tráså] e praça [práså] encontramos /t/ e /p/ e em pá [pá] e pé [pE;´;] temos /a/ e /E/.

As realizações fonéticas dos fonemas são os fones (que se representam entre parênteses rectos, []). Nas palavras calo e caldo, que se pronunciam [kálu] e [ká…du], temos duas pronúncias do /l/. No entanto essas duas pronúncias não

correspondem a dois fonemas distintos porque nunca podemos opor esses dois sons num par mínimo. Na realidade, os sons correspondentes ao /l/ em início de palavra ou entre vogais ([kálu]) - ou seja, no início da sílaba - e em fim de palavra ou antes de uma consoante ([ká…du]) - ou seja, no fim da sílaba - são dois fones do mesmo

fonema, dois alofones que se denominam variantes contextuais. Neste caso, as variantes dependem da posição do fonema na palavra; como os dois sons nunca ocorrem na mesma posição - estão distribuídos em diferentes contextos - diz-se que se encontram em distribuição complementar.

Existem ainda variantes que distinguem sociolectos ou dialectos: por exemplo, o /s/ pronuncia-se em certas regiões de Portugal com o ápice da língua junto dos

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alvéolos (é o conhecido s "beirão") e em outras regiões, como Lisboa, a sua pronúncia é dental. No primeiro caso representa-se como [°] e no segundo como [s]. Mas como nunca se podem opor um ao outro no mesmo dialecto para distinguir significados, constituem duas variantes dialectais correspondentes ao mesmo fonema /s/. As diferentes pronúncias que decorrem da diversidade dialectal ou sociolectal designam-se variantes livres por não dependerem de um contexto fonético. Também se designam assim as variantes das diversas variedades da língua.

Os fonemas do português, que constituem o sistema fonológico e são comuns às variedades da língua, embora apresentem algumas diferenças fonéticas entre dialectos, são os seguintes:

Consoantes iniciais

pala /p/ fala /f/ mata /m/ bala /b/ vala /v/ nata /n/ tia /t/ zurra /z/ lata /l/ dia /d/ surra /s/ rata /R/ cato /k/ chá /S/ gato /g/ já /Z/

Consoantes mediais (entre vogais)

ripa /p/ estafa /f/ caro /r/ mama /m/ riba /b/ estava /v/ carro /R/ mana /n/ lato /t/ caça /s/ manha /¯/

lado /d/ casa /z/ mala /l/ vaca /k/ queixo /S/ malha /λ/ vaga /g/ queijo /Z/

Consoantes finais

mal /l/ mar /R/ más /s/

Em posição medial encontra-se o número máximo de consoantes (/¯/ e /¥/ só

ocorrem no início de alguns empréstimos, especialmente dos vocabulários castelhano, africano e brasileiro com origem indígena, como nhandu ou lhano). No fim de palavra, como é habitual na maior parte das línguas, o número de consoantes admitidas é muito reduzido.

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A pronúncia de /s/ em posição final merece uma referência especial: se a palavra anteceder uma pausa, o fonema realiza-se como [S]; se for seguida de outra palavra, a sua realização será [z] se anteceder uma vogal (más aves [máz ávˆ S]) e [Z] ou [S] conforme a consoante que se seguir for sonora ou não sonora (más bolas [máZbç;´;låS], más passas [máSpásåS]).

Vejamos agora as vogais do Português:

Vogais

pira /i/ tela /E/ tulha /u/ pera /e/ tola /ç/ talha /a/ tola /o/ telha /å/

As vogais acima indicadas são orais e todas são acentuadas ou tónicas. O Português europeu possui ainda uma outra vogal que só ocorre como não acentuada: a vogal [ˆ] que se pode identificar no par mínimo pelar [pˆlár] / pular

[pulár]. Veremos adiante que esta vogal está em distribuição complementar com as vogais /e/ e /E/ acentuadas ([pE;´;lu] / [pélu] / [pˆlár]). O [ˆ] é portanto um alofone dos fonemas /e/ e /E/.

Em Português também existem vogais nasais que constituem um aspecto caracterizador da língua, visto que grande parte das línguas do mundo não possuem este tipo de vogais.

Vogais nasais

pinte /i;~/ mando /å;~;´/

pente /e;~;´/ mundo /u;~;´/ ponte /o;~;´/

Além das vogais e consoantes, em português também existem glides ou semivogais. Foneticamente encontram-se próximo das vogais, mas fonologicamente distinguem-se por nunca poderem receber acento tónico e por ocorrerem sempre junto de uma vogal formando com ela um ditongo. As duas glidesdo português, /j/ e /w/, têm valor fonológico porque se podem opor entre si (p.ex. pai [páj] / pau [páw]) ou opor-se a uma consoante (p.ex. pai / par [pár]). Junto de uma vogal nasal e formando ditongo com ela, a glide recebe a nasalidade da vogal: mãe [må;~;´j;~], mão [må;~;´w;~].

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Para melhor exemplificação de como os fonemas podem apresentar variantes no português europeu e brasileiro, vejamos a representação fonética da mesma frase nas variedades de Lisboa (adiante PE) e do Rio de Janeiro (adiante PB), com distinção de registos (pausado e rápido):

"A Maria faltou ao teste de psicologia"

(1) [å måríå fa…tó aw tE;´;Stˆ dˆ psikuluZíå] (pausado PE)

(2) [å måríå fa…tó aw tE;´;St d psikluZíå] (rápido PE)

(3) [a maríå fawtów aw tE;´;StSi dZi pisikoloZíå] (pausado PB)

(4) [a maríå fawtó aw tE;´;StSi DZi pisikoloZíå] (rápido PB)

Analisemos em pormenor as diferenças:

Vogais

a) A vogal átona [ˆ] só ocorre no registo pausado e silabado de PE (cf. (1)); a

mesma vogal é suprimida no registo rápido (cf. (2)) e ocorre como [i] no PB (cf. (3) e (4));

b) A vogal correspondente à grafia o, quando átona, manifesta-se como [u] em PE (cf. (1) e (2)) e como [o] no PB (cf. (3) e (4));

c) a vogal ortografada a quando átona apresenta-se como [å] em PE e como [a]

em PB, excepto em posição final;

d) o ditongo [ow] reduz-se à vogal [o] em PE e no registo rápido de PB (cf. (1), (2) e (4)), e apenas se manifesta na pronúncia pausada de PB (cf. (3));

Consoantes

e) A consoante correspondente à grafia l na palavra faltou é velarizada, […], em

PE (cf. (1) e (2)), e semivogal [w] em PB (cf. (3) e (4));

f) As consoantes [t] e [d] seguidas de [i] tornam-se respectivamente [tSi] e [dZi]

em PB (cf. (4));

g) O grupo de consoantes [ps] que não constitui em português um 'grupo próprio' (denominação tradicional atribuída a outros grupos como [br], consoante oclusiva seguida de líquida), manifesta, em PB, a inserção de um [i] designado epentético (cf. (3) e (4));

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h) O s gráfico ocorre como [S] antes de uma consoante não-sonora (e em final

de palavra) em PE e PB .

As constatações acima feitas merecem algumas considerações.

(a) As vogais átonas que distinguem as duas variedades da língua ([ˆ] / [i], [u] / [o] e [å] / [a]) podem considerar-se alofones dos mesmos fonemas. Contudo, esta

simples verificação não nos permite explicar que se trata nos três casos de processos relacionados que caracterizam as duas variedades. O mesmo sucede com a sequência [tˆ] (PE) e o seu alofone [tSi] (PB). Para os relacionarmos entre si

teríamos de partir de um único fonema, comum às duas variedades, e ver o que sucedeu nos vários casos. O mesmo processo devia ser seguido para a explicação da supressão das vogais [ˆ] e [u] átonas em PE e da inserção de [i] em [pisikoloZía].

(b) As variantes [l] e […] / [w] estão em distribuição complementar, ocorrendo

respectivamente antes de vogal e antes de consoante ou fim de palavra. Este contexto é mais bem entendido se tivermos em conta a sílaba, visto que [l] se encontra em início de sílaba e […] / [w] no fim de sílaba. Por aqui vemos já que a

consideração da sílaba é importante.

Finalmente, a diferença existente entre dois ou mais fonemas da língua pode desaparecer em certos contextos, isto é, pode ser neutralizada. As palavras bola [bólå], bola [bç;´;lå] e bula [búlå] distinguem-se pelos três fonemas do português /o/, /ç/ e /u/. Em posição átona, contudo, esta diferença neutraliza-se em português europeu e só encontramos [u] (bolinha / bulinha [bulí¯å].

Nesta breve apresentação da fonologia e da prosódia do português tive que, obrigatoriamente, fazer uma selecção dos aspectos a tratar. Escolhi uma questão fonológica e duas prosódicas que apresentarei resumidamente. São elas: o sistema das vogais átonas no português europeu, o acento de palavra e a sílaba.

3. Vogais átonas no PE

Disse atrás que a diferença entre /o/, /ç/ e /u/ fica netralizada em sílaba átona.

Vejam-se os seguintes exemplos:

Tónicas Átonas

p[ç;´;]rta p[u]rteiro

s[ó]pa s[u]peira

f[ú]ro f[u]rar

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Mas não são apenas estas vogais que sofrem neutralização em sílaba átona. Vejam-se os exemplos abaixo:

f[E;´;]sta f[ˆ]stejo

d[é]do d[ˆ]dada

Nestes casos uma terceira vogal substituiu as outras duas: a vogal reduzida [ˆ].

Finalmente, eis o que sucede com as outras vogais tónicas /a/, /i/ e /u/:

m[á]r m[å]rinho

m[í]lho m[i]lheiral

f[ú]ro f[u]rador

A vogal /a/ realiza-se sempre como [å] em sílaba átona. As vogais /i/ e /u/ não sofrem alteração.

Para entendermos que se dá, nas vogais em sílaba não acentuada do PE, uma alteração regular que constitui o processo sistemático do vocalismo átono do português europeu, temos que classificar as vogais relativamente ao seu grau de abertura e ao ponto de articulação. Nesta classificação consideram-se vogais altas, médias e baixas, e recuadas ou não recuadas, de acordo como se apresenta no quadro 1:

Quadro 1

i ˆ u altas

e o médias

å

E ç baixas

a

não recuadas recuadas

Perante este quadro, e tendo presentes as neutralizações das vogais em sílaba átona, verifica-se que se dá, em português europeu, um processo de elevação: as

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baixas e médias passam a altas, e as altas não sofrem alteração. As vogais altas são, por natureza, mais reduzidas que as outras, e por isso pouco audíveis. Podemos dizer que a fase última deste processo é a supressão das vogais altas, facto que se constata habitualmente na fala coloquial, sobretudo em relação à vogal neutra [ˆ]. A vogal central /a/ também se eleva mas realiza-se como média, [å], e por isso resiste

mais facilmente à supressão.

Finalmente, verifica-se ainda que as vogais não recuadas passam a recuadas por um processo de recuo que é também característico do português europeu. Os processos a que estão sujeitas as vogais átonas do português resultam assim da aplicação de duas regras fonológicas gerais de elevação e de recuo.

Quadro 2

i ˆ u altas

e o médias

å

E ç baixas

a não recuadas recuadas

4. Nível prosódico: a Sílaba e o Acento

4.1. Sílabas

Numa palavra como calo não encontramos apenas os fonemas que a constituem e

que podemos identificar por oposição a outras palavras (cabo, talo, colo, etc.). Um

falante do Português sabe que pode dividir essa palavra em duas partes (ca-lo), as suas

duas sílabas. A sílaba é uma construção perceptual, isto é, criada no espírito do ouvinte.

Argumentos para considerar a existência da sílaba:

- Intuição do falante (utilização, na alfabetização, do ‘sentimento’ da existência

real das sílabas)

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- Lapsi linguae (metáteses de constituintes silábicos como em *aminal por animal,

*zagolina por gasolina e *mánica por máquina, *camalidade por calamidade,

*escândola por escândalo, *ragafa por garrafa, *burruçado por rebuçado)

- Existência de escritas silábicas;

- Reduplicação na linguagem das crianças (exs.: mamã, papá…)

- Jogos de palavras e linguagens secretas (língua dos ‘pês’, linguagem dos

estivadores de Alfama, em Lisboa – ujamfi por fujam, édrapi por pedra)

- Poesia e ritmo (contagem de sílabas, rima silábica).

As sílabas mais frequentes nas línguas do mundo são constituídas por uma consoante e uma vogal (CV) e são também as mais frequentes em Português. Nesta forma canónica da sílaba, a consoante e a vogal correspondem à sua grande divisão interna: o ataque e a rima. Mas porque uma sílaba pode ser constituída apenas por uma vogal (como na primeira sílaba de a-bre, p.ex.), esta é o seu elemento mais importante, que funciona como centro e se denomina núcleo. No caso da primeira sílaba de a-bre, núcleo e rima coincidem. Em Português os núcleos silábicos são sempre vogais, mas existem muitas línguas em que certas consoantes podem ocupar esse lugar, como o [l;] silábico da segunda sílaba na palavra inglesa bottle [´bowtl;], o [r;] silábico do sérvio krv [´kr;v] ('sangue') ou o [n;] silábico do inglês button [´b√tn;]. Normalmente, essas consoantes são apenas /l/ e /r/ (as líquidas) e as

nasais; contudo, palavras como psst mostram que, em certas circunstâncias, até uma fricativa como [s] pode ocupar o centro silábico.

As glides nunca podem funcionar sozinhas como núcleos de sílabas e esse é o aspecto que principalmente as distingue das vogais. No entanto, ao formarem ditongos com as vogais, as glides integram-se no núcleo, como nos exemplos seguintes:

(1) fiéis [E;´;j] judeu [éw]

mãe [å;~;´j;~] faliu [íw]

A sílaba situa-se num nível diferente do segmento. Os constituintes da sílaba são:

Ataque: consoante que antecede a rima

Rima: sequência do núcleo e da consoante que se lhe segue

Núcleo: qualquer vogal

Coda: consoante final da rima

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Estes constituintes estão hierarquicamente organizados no interior da sílaba,

sendo a rima o único constituinte obrigatoriamente preenchido. Assim, da unidade

‘sílaba’ dependem o ataque e a rima, e desta última dependem o núcleo e a coda.

Representação das sílabas da palavra patas.

(2) Representação das sílabas da palavra ‘patas’

σ σ

A R A R

N N Cod

p a t a s

O Ataque da sílaba

Todas as consoantes isoladamente podem ser ataque de sílaba, no início ou no meio da

palavra (excepto, como se vê em (3), as consoantes [¥], [¯] e [ R ] no início de palavra).

(3) pa-pa [p-p] fo-fa [f-f] li-lás [l-l] ca-ro [ -R]

ba-ba [b-b] vi-ve [v-v] ta-lha [ -¥] ca-rro [ -{ ]

te-ta [t-t] sen-so [s-s] ra-ro [{- ]

de-do [d-d] zon-za [z-z] ma-mar [m-m]

co-ca [k-k] cho-cho [S-S] ni-nar [n-n]

ga-go [g-g] je-jum [Z-Z ] se-nha [ -¯]

Os ataques constituídos por sequências de consoantes têm restrições. Em (4) estão

incluídas sequências aceitáveis em Português por serem constituídas por uma consoante

oclusiva seguida de uma líquida, ou seja, uma oclusiva seguida de uma vibrante ou de

uma lateral.

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(4) (a) Oclusiva+vibrante

[pR] - prato [pR] - comprar [bR] - branco [bR] - abraço [tR] - trapo [tR] - retrato [dR] - droga [dR] - sindroma [kR] - cravo [kR] - acre [gR] - graça [gR] - regra

(b) Oclusiva+lateral

[pl] - plano [pl] - repleto [bl] - bloco [bl] - ablução *[tl] [tl] atleta *[dl] *[dl] [kl] - claro [kl] - recluso [gl] - glande [gl] - aglomerar

Estas sequências de oclusiva seguida de líquida (também chamadas tradicionalmente

“grupos próprios”) respeitam o Princípio de Sonoridade a seguir definido:

(5) Princípio de Sonoridade:

A sonoridade dos segmentos que constituem a sílaba aumenta a partir do início até

ao núcleo e diminui desde o núcleo até ao fim

A sonoridade intrínseca dos segmentos permite a elaboração de uma escala, aqui

apresentada no sentido crescente.

(6) Escala de sonoridade:

consoantes oclusivas (não-vozeadas, vozeadas) < fricativas (não-vozeadas,

vozeadas) < nasais < líquidas (vibrantes, laterais) < glides < vogais (altas, médias,

baixas).

Assim, um ataque formado por uma fricativa seguida de uma oclusiva, ou de duas

consoantes com o mesmo grau de sonoridade, infringem o princípio acima definido.

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Em função do que fica dito sobre o princípio de sonoridade, as seguintes sequências não

deveriam ser aceitáveis. Elas ocorrem, no entanto, no nível fonético do Português

Europeu.

(7) (a) Fricativa+vibrante (b) Fricativa+lateral [fR] -frio [fR] - refrescar [fl] - flor [vR] - palavra

(c) Oclusiva+oclusiva (d) Oclusiva+fricativa [pt] - captar [ps] - psicologia [bd] - abdómen [bs] - absurdo [kt] - pacto (e) Oclusiva+nasal (f) Fricativa+oclusiva [pn] - pneu [dm] - admirar [ft] - afta [tm] - ritmo [gn] - gnomo

Estas violações verificam-se no nível fonético do Português Europeu, mas não se

verificam no nível fonológico. Pelo contrário, neste último nível existem núcleos de

sílaba não preenchidos entre as duas consoantes, ou seja, núcleos vazios que não têm

realização fonética. Esta hipótese baseia-se nos seguintes argumentos:

(a) Na translineação (divisão gráfica de uma palavra) constatam-se dificuldades de

divisão das ‘sequências violadoras’, decorrentes da dificuldade de distribuição

das duas consoantes pelas duas sílabas a que pertencem. Por exemplo, em

palavras como admirar, a hesitação entre ad-mirar e a-dmirar deve-se a duas

interpretações: uma etimológica, ad+mirare, e outra silábica a – dmirar. Se dm

fosse um grupo próprio, o falante saberia que não podia separar as duas

consoantes e que ambas pertenciam ao ataque da sílaba, pelo que não hesitaria

na divisão ortográfica da palavra.

(b) Durante a aquisição da linguagem, as crianças inserem frequentemente vogais

nas sequências não admissíveis (e.g. *peneu [pˆnéw] por pneu ou *afeta [áfˆtå]

por afta), o mesmo se passando quando se “soletra” uma palavra com estas

características.

(c) Em muitos dialectos do Português brasileiro encontra-se uma vogal introduzida

(normalmente [i]) entre consoantes que não formam um ataque aceitável,

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passando então a constituir duas sílabas (exemplos em (8)). A vogal inserida

denomina-se epentética.

(8) pneu [pi-néw]

gnomo [gi-nç;´;mu] psicologia [pi-sikoloZíå] absurdo [abi-súRdu] captar [kapi-táR] pacto [páki-tu] afta [áfi-tå]

Esta vogal epentética nunca ocorre entre consoantes que formam grupos próprios (p.ex.

prato nunca se realiza como *[pi-Rátu], branco, não ocorre como *[bi-Rå;~;´;ku],

palavra não se pronuncia *[palá-vi-Rå],).

Além das sequências indicadas, ainda existem, no nível fonético do Português Europeu,

mais sequências que violam o princípio de sonoridade em consequência da supressão da

vogal átona [ˆ] na fala coloquial. Ver exemplos em (9) e (10).

(9) [S] ou [Z] inicial de palavra seguido de consoante

[St] estar [StáR] [Zd] esdrúxula [ZdRúSulå] [Zv] esvair [ZvåíR] [Zl] eslavo [Zlávu] [Zm] esmagar [ZmågáR]

(10) Supressão de [ˆ] entre consoantes mediais (a) grupos de duas consoantes

pequeno [pkénu] decifrar [dsifRáR] seguro [sgúRu] meter [mtéR] soterrar [sut{áR] cometer [kumtéR]

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(b) grupos de mais de duas consoantes

telefone [tlfç;´;n] merecer [mRséR] depenicar [dpnikáR] rememorar [{mmuRáR] despegar [dSpgáR] despregar [dSpRgáR] desprestigiar [dSpRStiZiáR]

Nestes exemplos encontram-se, no nível fonético, sequências de 3 consoantes (e.g.

depenicar [dpn] - oclusiva+oclusiva+nasal), de 4 consoantes (e.g. despegar [dSpg] -

oclusiva+fricativa+oclusiva +oclusiva), de 5 consoantes (e.g., despregar [dSpRg] -

oclusiva+fricativa+oclusiva+vibrante+oclusiva) e, mesmo, de 6 consoantes (e.g.

desprestigiar [dSpRSt] - oclusiva+fricativa+oclusiva+vibrante+fricativa+oclusiva.

Esta característica é responsável por um dos aspectos mais peculiares da diferença de

ritmo entre o Português Europeu e o Português brasileiro.

4.2. A Rima da sílaba

Como se disse, a rima integra obrigatoriamente um núcleo, e opcionalmente uma coda.

Apresenta-se e discute-se em seguida a estrutura interna destes dois constituintes.

O núcleo

Todas as vogais orais e nasais podem ser núcleo de sílaba em Português, como se

comprova nos seguintes exemplos: vi, lê, pé má, da, mó, avô, tu, fim, pente, irmã ponte,

fundo. Nestes casos, trata-se de um núcleo simples. Os núcleos complexos ou

ramificados são constituídos por um ditongo decrescente (um “verdadeiro” ditongo)

formado por vogal e glide. Vejam-se exemplos em (11) em que se relaciona a posição

os ditongos com a acentuação da palavra.

(11) (a) Ditongos acentuados (b) Ditongos pré-tónicos queixa [kå;´;j-Så] queixume [kåj-Sú-mˆ] papéis [på-pE;´;jS]

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bairro [báj-{u] bairrista [baj-RíS-tå] rói [{ ç;´;j] boi [bój] boiada [boj-á-då] azúis [å-zújS] cuidado [kuj-dá-du] viu [víw]

deus [déwS] endeusar [e;~;-dew-záR] véu [vE;´;w] pauta [páw-tå] pautar [paw-táR]

mãe [må;~;´;j;~;]

cem [så;~;´;j;~;]

põe [po;~;´;j;~;] mão [må;~;´;w;~;] (c) Ditongos pós-tónicos fáceis [fá-såjS]

batem [bá-tå;~;j;~;]

falam [fá-lå;~;w;~;]

homem [ç;´;-må;~;j;~;]

sótão [sç;´;-tå;~;w;~;]

Os dois elementos dos ditongos pertencem ao núcleo. Nos ditongos nasais a sua

integração no núcleo é comprovada por ambos os segmentos serem nasalizados em e

pertencerem ao núcleo da sílaba. A glide é marcada lexicalmente com a indicação de que não pode ser acentuada, e tem

que ser precedida de outra vogal. Foneticamente, a pronúncia da glide é mais breve do

que a da vogal. Do ponto de vista silábico, a glide não pode constituir um núcleo de

sílaba independente e agrega-se à vogal precedente para formar um núcleo complexo.

Há outras vogais /i/ e /u/ que estão igualmente marcadas no léxico como não-

acentuáveis (p.ex. o [i] de dúvida [dúvidå] ou o [u] de estímulo [Stímulu]) mas não se

realizam como glides por não serem precedidas de vogais. Quando as vogais /i/ e /u/

estão antecedidas de outra vogal mas não são marcadas lexicalmente como não-

acentuáveis, elas não se tornam glides e recebem o acento de palavra (p.ex. Luís [luíS],

concluído [kõkluídu], país [påíS]).

Por outro lado, se uma vogal /i/ ou /u/ preceder outra vogal e não receber acento, poderá

ocupar sozinha um núcleo de sílaba ou agregar-se à vogal seguinte constituindo um

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ditongo “crescente” no nível fonético, o que dá lugar a duas realizações possíveis como

as de pião ([piå;~;´w;~] ou [pjå;~;´w;~]), suar ([suáR] ou [swáR]), miúdo ([miúdu] ou

[mjúdu]), ou criais ([kRiájS] ou [kRjájS]). As duas pronúncias correspondem a dois

registos do discurso: pausado no primeiro caso, coloquial ou rápido no segundo. Nas

sílabas que integram ditongos crescentes, a glide faz parte do ataque e não do núcleo,

visto que ela não é nasalizada antes de uma vogal nasal (e.g. pião [pjå;~;´w;~], criança

[kRjå;~;´;så], coentros [kwe;~;´;tRuS]). Pelo contrário, nos ditongos decrescentes em que

a glide integra o núcleo, se for precedida de vogal nasal ela é obrigatoriamente

nasalizada (e.g. mãe [må;~;´j;~]).

O facto de a glide integrar o ataque na realização de certas palavras, quando se passa de

um registo pausado para um registo rápido, significa que também o ataque de uma

sílaba pode ser vazio no nível fonológico, vindo a glide a preencher esse vazio. Em (12)

estão as representações das alterações silábicas dos dois registos de pião ([piå;~;´;w;~;]

/ [pjå;~;´;w;~;]) e criais ([kRiájS] / [kRjájS]).

(12) Sílabas de pião e criais em registo pausado (a) e em registo rápido (b)

(a) σ σ (b) σ

A R A R A R

N N ⇒ N

p i å;~;´ w;~; p j å;~;´

w;~;

(a) σ σ (b) σ

A R A R ⇒ A R

N N Cod N Cod

k R i á j S k R j á j S

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Nestas representações pode observar-se que:

as palavras pião e criais têm duas sílabas no registo pausado e apenas uma no registo

rápido;

o ataque da segunda sílaba, que não tem segmento associado na pronúncia pausada

(portanto é vazio), integra a glide fonética passando a ser um ataque ramificado.

A coda

Como na maioria das línguas, só um número reduzido de consoantes pode ser coda de

sílaba. Em Português, as consoantes em coda são apenas três, as fonológicas /l/, /R/ e /s/

com diferentes realizações fonéticas. Em (13) encontram-se alguns exemplos das codas

permitidas.

(13) Codas de sílabas par /paR/ - [páR] parte /paRte/ [páR-tˆ] mal /mal/ - [má…] falta /falta/ [fá…-tå] más /mas/ - [máS] peste /pEste/ [pE;´S-tˆ] mesmo /mesmo/ [méZ-mu] No Português Europeu, a supressão de [ˆ] depois de consoante e antes de final de

palavra provoca, no nível de superfície, a ocorrência de todas as consoantes em coda

(p.ex. bate [bát], leve [lE;´;v], pode [pç;´;d], etc.). Não se trata aqui de um núcleo vazio,

nem a consoante fica em coda na representação lexical. Na realidade, uma das provas de

que existe uma vogal a nível subjacente mesmo que, normalmente, nunca ocorra em

superfície encontra-se nas sequências do tipo mexe bem [mE;´;S bå;~;´;j;~;] ou mexe

assim [mE;´;S åsi;~;´;]: se a consoante estivesse em fim de palavra ficaria sujeita à

regra de assimilação do traço de vozeamento da consoante seguinte – e teríamos *[mE;´;

Z bå;~;´;j;~;] – ou realizava-se como [z] antes de vogal – e seria *[mE;´;z åsi;~;´;]. É

isso que sucede quando a consoante está em posição final no nível subjacente, por estar

no final de palavra (p. ex. lápis brancos [lápiZ bRå;~;´;kuS], lápis amarelos [lápiz

åmåR E;´;luS]), por ser morfema do plural (p. ex. os bons [uZ bo;~;´;S], os azuis [uz

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åzújS]) ou por ser morfema da flexão verbal (p. ex. vais lá [vájZ lá], vais assim [vájz

åsi;~;´;]). O facto de estas regras não se aplicarem nos exemplos atrás referidos deve-se

à presença da vogal subjacente.

5. O acento de palavra

Na discussão das alterações das vogais átonas falámos diversas vezes em sílaba

tónica (ou acentuada) e sílaba átona. As sílabas tónicas de uma palavra são sentidas

pelo falante como mais proeminentes porque a vogal que é núcleo da sílaba

acentuada possui, normalmente, as propriedades de intensidade, duração e altura em

grau superior ao das outras vogais da palavra, e essa proeminência atinge toda a

sílaba em que ela está integrada. O Português e todas as línguas Românicas, bem

como as línguas Germânicas, utilizam as diferenças de posição do acento na palavra

e as suas variações para distinguir significados e para marcar unidades rítmicas- são

línguas acentuais. Em outras línguas, como a maioria das línguas africanas, o

contraste entre as diferenças de altura das vogais (ou diferenças de tom) tem uma

importância fonológica semelhante à do acento.

O estudo do acento de palavra em fonologia tem como objectivo identificar as regularidades que estão subjecentes à atribuição de prominência a uma determinada sílaba. Os exemplos (a) e (b) são nomes e adjectivos do Português constituídos pelo radical separado do morfema de classe (cf. (a)), ou só pelo radical (cf. (b)):

(1)(a) 'mes+a (b) me'sinh+a re'vist+a revis'teir+o mo'del+o mode'lad+o 'leit+e leita'ri+a 'sai+a sai'ot+e 'lind+o lin'dez+a pe'sso+a provo'cant+e sin'cer+o sinceri'dad+e

(2) ani'mal (3) ca'fé

pesso'al a'vó gramati'cal chami'né a'mor domi'nó

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lavra'dor alva'rá ra'paz java'li alti'vez ro'bô portu 'guês pe'ru ju'iz ba'ú co'lher

(4) cara'pa+u (5) ir'mã

cha'pé+u jar'dim pig'me+u co'mum fari'se+u

(6) (a) ir'mã+o (b) 'bem

nata'çã+o des'dém tu'fã+o re'fém

Como vemos nestes exemplos, os nomes e adjectivos regulares do Português têm o acento na última vogal do radical, ou seja, na última sílaba quer essa sílaba contenha ou não um ditongo. Quando qualquer destas palavras entra como base numa derivação, o radical da palavra primitiva constitui, com o sufixo derivacional, um radical derivacional que apresenta as mesmas características acentuais.

(c) mesinha [mˆzí¯+å]

leitaria [låjtårí+å]

amoroso [åmuróz+u]

revisteiro [{ ˆviStå;´;jr+u]

segredinho [sˆgrˆdí¯+u]

altivez [a…tivéS]

pessoal [pˆsuál]

produtor [prudutór]

(7) (a) 'júbil+o (b) 'órfã+o 'árab+e vi'agem lin'guístic+o ga'ragem ca'tástrof+e catas'trófic+o (c) 'frágil calo'rífer+o 'útil

conten'tíssim+o 'cônsul 'móvel

a'çúcar 'lápis

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Alguns nomes e adjectivos têm o acento na penúltima sílaba do radical, como dúvida [dúvid+å], ópera [ç;´;pˆr+å], açúcar [åsúkar]; alguns derivados têm também

o acento na penúltima sílaba do radical derivacional, como democrático [dˆmukrátik+u]. Estas são as únicas excepções à regra geral acima indicada. As

palavras em que a última sílaba do radical não pode ser acentuada são marcadas no léxico como excepções, e como tal são aprendidas pelos falantes.

Verbos No que respeita à acentuação, os tempos verbais em Português classificam-se em três

grupos:

(i) Tempos do Presente – Presentes do Indicativo e do Conjuntivo,

Imperativo e Gerúndio.

(ii) Tempos do Passado – Imperfeito do Indicativo, Perfeito e Mais-Que-

Perfeito do Indicativo, Imperfeito e Futuro do Conjuntivo, Infinitivo e Particípio

Passado.

(iii) Tempos do Futuro – Futuro do Indicativo e Condicional.

Nos Tempos do Presente o acento incide sempre na penúltima vogal da palavra

(exemplos em (8)).

Nos Tempos do Passado o acento incide sempre na vogal temática, ou seja, na vogal

que se segue ao radical e que com ele forma o tema (exemplos em (9)).

Nos Tempos do Futuro o acento incide sempre na primeira vogal do sufixo. (exemplos

em (10))

(8) Presente do Indicativo Presente do Conjuntivo

'falo 'bato 'parto 'fale 'bata 'parta

'falas 'bates 'partes 'fales 'batas 'partas

fa'lamos ba'temos par'timos fa'lemos ba'tamos par'tamos

(9) Pretérito perfeito

fa'l+e+i ba't+e+u par't+i+u

fa'l+á+mos ba't+e+mos par't+i+mos

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Pretérito imperfeito

fa'l+a+va ba't+i+a par't+i+a

fa'l+á+va+mos ba't+í+a+mos par't+í+a+mos

Pretérito mais+que+perfeito

fa'l+a+ra ba't+e+ra par't+i+ra

fa'l+á+ra+mos ba't+ê+ra+mos par't+í+ra+mos (10) Futuro e Condicional

fala+'rá bate+'rá parti'+rá

fala+'re+mos bate+'re+mos parti+'re+mos

fala+'ria bate+'ria parti+'ria

fala+'ría+mos bate+'ría+mos parti+'ría+mos

Verifica-se em (8), (9) e (10) que a sílaba acentuada pode ser a última da palavra, a

penúltima ou a antepenúltima porque não é a sua posição que determina a acentuação

mas sim a estrutura morfológica, tal como sucede nos nomes e adjectivos. No entanto,

tendo em atenção os diversos constituintes em que ocorre o acento nas formas verbais,

não é possível formular uma regra que capte a generalização desejável.

Em consequência da acentuação das palavras estar relacionada com a sua constituição morfológica, o Português pode considerar-se o que tradicionalmente se designa como uma língua de acento livre, por oposição às línguas de acento fixo, cujas palavras são sempre acentuadas numa determinada sílaba, independentemente do constituinte morfológico a que pertencem.

Certas palavras derivadas com um tipo especial de sufixos (os sufixos iniciados por z como zinho, zito, zote, e o sufixo mente) têm um acento secundário que é o acento da palavra primitiva. Esse acento secundário manifesta-se, entre outros aspectos, no facto de a vogal acentuada na palavra primitiva não ficar sujeita às regras das vogais átonas quando se forma a nova palavra derivada. Compare-se, por exemplo, bela [bE;´;l+å] / beleza [bˆléz+å] mas belamente [bE;´;l&+me;~;´;tˆ]; devagar [dˆvågár] / devagarinho [dˆvågår+í¯u] mas devagarzinho [dˆvågár+zí¯u].

A análise da acentuação nos sistemas nominal e verbal em Português mostra que a constituição morfológica da palavra permite predizer a atribuição do lugar do acento. Em consequência desta relação com a estrutura morfológica, o Português

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considera-se uma língua de "acento livre" (como o são também o Inglês ou o Alemão), por oposição às línguas de "acento fixo" (como o Francês, o Checo ou o Swahili) em que as palavras são sempre acentuadas numa determinada sílaba, independentemente do constituinte morfológico a que pertencem.