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    A experincia de violncia domstica e suas repercusses no cotidiano de uma

    mulher vtima de agresses.Andria Colpo

    1

    Jefferson Silva Krug2

    Universidade do Auto Uruguai e das Misses URI Campus Santiago

    Resumo

    A violncia contra as mulheres uma questo complexa e multiforme. Pesquisas

    apontam que a agresso produzida no mbito domstico elicia uma mistura desentimentos gerando confuso, revolta, acomodao e culpa. Todos estes sentimentosmovidos pela relao entre marido e mulher geram ainda estruturas de medo e ameaa.Neste sentido, o presente estudo buscou investigar de maneira abrangente a experinciade uma mulher vtima de violncia domstica e as repercusses desta vivncia em seucotidiano. Realizou-se um estudo de caso atravs de uma entrevista semi-estruturada.Os dados coletados foram analisados atravs da tcnica de Analise de Contedo,gerando cinco categorias de anlise intituladas caractersticas da relao agressor-vtima, evoluo do relacionamento, avaliao do agressor por parte da vtima,conseqncias da agresso e sentimentos despertados pela agresso. Por fim,discute-se cada uma das categorias, buscando aprofundar a vivncia da vtima de

    violncia.

    Palavras-chave: Violncia Domstica, Violncia de Gnero.

    INTRODUO

    O cenrio da violncia de gnero hoje est presente nos mais diferentes

    contextos. Dentre estes, salienta-se a violncia contra a mulher, violncia esta que

    assola os mais diferentes segmentos. Diversos autores conceituam o termo gnero como pensamento de que somos iguais, e que temos os mesmos direitos e deveres, que

    apenas devemos nos utilizar deste termo para compreender melhor como este se

    constitui dentro das relaes e suas complexidades.

    1Acadmica do Curso de Psicologia da URI.2Psiclogo, Mestre em Psicologia Clnica (PUCRS), Professor do Curso de Psicologia da URI.

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    No entanto, observa-se que as diferenas no so tratadas como na proposta

    acima descrita, j que evidenciamos diariamente situaes onde as mulheres so

    submetidas a agresses, na maioria das vezes ocorridas dentro de seus prprios lares.

    Pesquisas ainda apontam que as agresses so cometidas, na maioria das vezes, por

    seus companheiros e maridos, fazendo com que suas mulheres se submetam a este tipo

    de violncia por medo de serem discriminadas pela sociedade. A falta de perspectiva

    propulsiona fatores que geram sentimentos de medo e ameaa, j que a agresso

    uma situao corriqueira dentro da rotina das mulheres que so expostas a este tipo de

    relao violenta.

    Partindo do contexto acima descrito verificamos que ser uma mulher vitima deviolncia domstica uma questo ainda presente em nossa sociedade. Neste sentido, a

    presente pesquisa se deu em forma de estudo de caso. Atravs de uma entrevista semi-

    estruturada buscou-se conhecer a experincia de uma mulher vtima de violncia

    domstica e as repercusses desta vivncia em seu cotidiano.

    FUNDAMENTAO TERICA

    Levando-se em conta as intensas mudanas ocorridas na ltima metade do sculo

    no contexto scio-cultural, econmico, religioso, jurdico, psicolgico, deparamo-nos com

    a profundidade do tema. Neste contexto, busca-se elucidar questes prticas ocorridas

    no ambiente domstico, analisando-se a situao da violncia de gnero. A psicologia

    defini o termo gnero como elemento usado para compreender as relaes entre as

    pessoas. Segundo Scott (1990 PAGINA), gnero constitu-se no meio de decodificar o

    sentido e de compreender as relaes complexas entre as diversas formas de interao

    humana.Scott (1990) nos reporta ao pensamento de que somos iguais, e que temos os

    mesmos direitos e deveres, que devemos apenas nos basear na palavra gnero para

    compreender melhor como este se constitu dentro das relaes e de suas

    complexidades, e no como um meio de discriminao e opresso que assola as

    mulheres nos mais diferentes mbitos.

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    Na maioria das vezes as opresses dispostas para as mulheres ocorrem dentro do

    mbito familiar, j que pesquisas apontam que esta violncia praticada pelos seus

    prprios companheiros, maridos, fazendo com que esta se submeta violncia. Como

    nos lembra Grossi (1994, p. 52), opresses se manifestam no apenas nos maus tratos

    que elas experinciam nas mos dos prprios companheiros, mas no fato de que suas

    necessidades bsicas de sobrevivncia como alimentao, habitao, vesturio, e

    cuidados com a sade, trabalho e renda freqentemente desatendida.

    Segundo Basted, apud Grossi (1997) a psicologia caracteriza como inferioridades

    as desigualdades enfrentadas pelas mulheres que apenas tornam-se superficiais quando

    equipa naturalmente estas para serem excelentes em seus papis de esposas e mes.Para Simois (1993), para a sociedade em geral so boas as mulheres que toleram a

    infidelidade, os maus tratos, o abuso, a deteriorao da prpria sade ou a violncia,

    uma mulher que no pense em divorciar-se nem abandonar ao pai de seus filhos,

    mantendo unida a famlia. So boas as mulheres que trabalham e mantm a seus pais,

    filhos e irmos; as que so capazes de renunciar a seus gostos e prazeres. O requisito

    bsico que faam tudo para o bem dos demais. Esse discurso assimilado pelas

    mulheres, recriando um modo de vida e constituindo assim um conselho social (Simois,

    1993, p. 56).

    Para Marodin apud Strey (2001) existe uma contradio entre aquilo que

    ensinado s mulheres e a dura realidade que elas enfrentam, j que estas aprendem que

    devem temer a rua e que em casa encontram o seu refgio seguro, mas a realidade

    outra e nos mostra que elas devem ter muito medo de seus pais, de seus irmos, dos

    homens conhecidos, principalmente dentro de casa, e dentro deste aspecto encontram

    dificuldades em se libertarem deste cenrio violento. Existe uma dificuldade em libertar-

    se deste contexto violento, em buscar uma forma de escapar deste cenrio, impostopelos maridos e companheiros. Basted, apud Grossi, (1997, p.68 ) coloca que existe uma

    dificuldade em pr um fim a violncia sofrida, pois no momento em que elas transgridem

    o modelo de obedincia, da resignao do papel bem tradicional atribudo a uma mulher

    casada, so submetidas a atos de violncia domstica, pois os universos particulares do

    homem e da mulher tiveram evoluo desigual.

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    Para Guimares apud Strey (2001), a discriminao entre homem e mulher

    acompanha a histria da civilizao. Apesar da igualdade formal garantida h sculos

    quase nenhuma igualdade material, de efetiva aplicao, observou-se. A famlia

    patriarcal a partir do interesse econmico desvalorizou a mulher, confinando-a no espao

    privado do lar, quase como uma propriedade do marido, levando a construo de uma

    identidade do marido, e de uma identidade psicolgica de submisso, repetida de

    gerao em gerao.

    O medo da intimidade, pelo receio de uma relao submissa a outro, parece estar

    tambm no cerne da negativa de muitas das mulheres em voltar a estabelecer uma

    relao afetiva com outro homem aps se separarem, principalmente quando implicamorarem na mesma casa. Devemos, portanto, levar em conta que uma extensiva

    reestruturao dever ser realizada no mago da organizao familiar em setores

    econmicos da sociedade no sentido de favorece-la, para que homens e mulheres

    compartilhem da mesma valorizao social e se relacionem em posio de desigualdade

    e de respeito mtuo (Zuwick apud Mattos, et al, 2001, p.37).

    Para Strey (1998), as diferenas sexuais so fsicas as diferenas de gnero so

    socialmente construdas, o respeito (ou o medo) ao marido (mesmo com tudo o que

    sofrem) um valor cultural sedimentado. Entrar nessa discusso questionar uma forma

    de viver e todas as barreiras que impedem de ter uma outra vida, ignorar, uma situao

    desse tipo, to ntima, cotidiana, que causa sofrimento, infelicidade, doenas, amarguras,

    fofocas o mesmo que compactuar com ela.

    Como as mulheres mesmo falam, difcil se libertar, mas difcil no se libertar.

    doloroso usar tantas artimanhas, inclusive na cama, reprimir os prprios sonhos, para

    conseguir viver nesse pacto do morrer (Strey,1998). Estas idias nos remetem a

    explorao da experincia de violncia domstica, que apesar de estar envolta de todos

    os aspectos anteriormente citados, ganha uma roupagem especial de acordo com cada

    caso.

    MTODO

    Tipo de estudo

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    Para melhor leitura do problema proposto foi utilizado o mtodo estudo de caso.

    Esse mtodo caracterizado por ser um estudo intensivo (Fachin, 2001, p.43).

    Segundo Fachin (2001), este mtodo dado na obteno de uma descrio e

    compreenso completas das relaes dos fatores em cada caso, sem contar o nmero

    de casos envolvidos.

    Dentro deste mtodo de estudo utilizou-se a pesquisa qualitativa que responde a

    questes muito particulares. Ela se preocupa, nas cincias sociais, com um nvel de

    realidade que no pode ser quantificado (Minayo, 1999, p. 50), buscar ainda dentro

    deste contexto se utilizar os mtodos de abordagem (dialtico), j que este se prope

    abarcar o sistema de relaes que constri, o modo de conhecimento exterior ao sujeito,

    mas tambm as representaes sociais que traduzem o mundo dos significados.

    Local e populao

    O local sugerido para realizao deste trabalho foi residncia da vitima, a qual

    preferiu por se sentir mais vontade. O presente estudo se constituiu com a populao

    formada por uma vtima de violncia domstica.

    Tcnica de coleta de dados

    Os dados foram coletados atravs de entrevista semi-estruturada, por se tratar de

    um importante componente da realizao da pesquisa qualitativa. A entrevista o

    procedimento mais usual no trabalho de campo, atravs dela, o pesquisador busca obter

    informes contidos na fala dos atores sociais (Minayo,1999, p. 54).

    Ela no significa uma conversa despretensiosa e neutra, uma vez que se insere

    como meio de coleta de fatos relatados pelos atores, enquanto sujeitos-objetos da

    pesquisa que vivenciam uma determinada realidade que est sendo focalizada, neste

    caso o problema proposto no estudo.

    Tcnica de Anlise de Dados

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    Aps a coleta de dados, a fase seguinte da pesquisa foi a anlise e interpretao

    dos dados. Minayo (1994) enfatiza que somos partidrios do posicionamento de

    compreender a anlise num sentido mais amplo, abrangendo a interpretao, por

    acreditarmos que a anlise e a interpretao esto contidas no mesmo movimento: o de

    olhar atentamente para os dados da pesquisa.

    A anlise e interpretao dos resultados desta pesquisa foram realizadas de

    maneira qualitativa, baseada no mtodo de Anlise de Contedo de Bardin (1979).

    Consideraes ticas

    Com relao s questes ticas deste estudo, a participante teve direito ao

    anonimato e pde desistir de responder a entrevista sem nenhum prejuzo. Esta tambm

    foi esclarecida sobre o artigo que seria escrito com base na sua entrevista, e ainda teve

    acesso ao termo de consentimento livre e esclarecido juntamente com o entrevistador. O

    estudo se deu inicialmente com o consentimento da universidade.

    Os objetivos deste trabalho foram explicados e as dvidas quanto pesquisa foramesclarecidas.Os resultados foram divulgados ao sujeito participante da pesquisa, o qual

    pde ter acesso s discusses tema violncia de gnero.

    ANLISE E DISCUSSO DOS RESULTADOS

    Aps a anlise dos dados da entrevista constru-se o seguinte quadro de categorias:

    Figura 1: Quadro de categorias.Cat 1- Chantagem emocional

    Cat 2- Intimidao

    Cat 3 Agresso Verbal

    Cat 4 - Ameaa

    Cat 5 Ridicularizao

    Cat 6 Culpa

    Cat A

    CARACTERISTICAS DA RELAOAGRESSOR - VTIMA

    Cat - 7 Divergncia de opinies

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    Cat - 8 DesconfianaCat 9 Sensao de estar sendo

    prejudicadaCat- 10 Questionamentos

    Cat 11 Retomadas da relao

    Cat 12 Conceitos referentes apossib ilidades de agresso degnero.

    Cat 13 Comeo das discusses

    Cat 14 Trmino

    Cat B

    EVOLUO DO RELACIONAMENTO

    Cat 15 ArrependimentosCat 16 Opinio da vitima sobre o

    companheiroCat 17 Possib ilidades deagressoCat 18 Machismo

    Cat C

    AVALIAO DO AGRESSOR PORPARTE DA VITIMA

    Cat 19 Tentativa de justificativa

    Cat 20 Mudanas de habito

    Cat 21 Frustrao

    Cat D

    CONSEQUENCIAS DAAGRESSO Cat 22 Decepo

    Cat 23 Estado de Choque

    Cat 24 MedoCat 25 Impotncia

    Cat E

    SENTIMENTOS DESPRETADOS PELAAGRESSO Cat 26 Humilhao

    A primeira categoria engloba todas as passagens do relato do sujeito que

    apontam as caractersticas da relao agressorvtima. relatada pela participante da

    pesquisa que a relao vivida era permeada por chantagens, constantes ameaas,

    intimidao, como demonstram as afirmaes da mesma durante entrevista:(...) ameaava-me dizendo depois que tu fizer tudo o que eu mandar vou te picar

    todinha.

    (...) agredia-me verbalmente dizendo sua vagabunda, vagabunda.

    (...) ele dizia: porque tu nunca gostaste de mim, sempre esteve envolvida pelo teu ex-

    marido"

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    Dentro deste aspecto ainda salientado pela vitima que a relao tambm se

    caracterizava por agresses fsicas desencadeadas por sentimentos de desconfiana,

    por divergncias de opinies, como disposto pela mesma nas seguintes passagens:(...) chegava sorrateiramente como se quisesse me surpreender com algum, e isto me

    incomodava muito, bastava para comearem as discusses.

    (...) e quando eu me dei por conta ele ergueu a mo e me deu um tapa na cara, mas

    daqueles de derrubar.

    Todo este discurso que a vitima traz na categoria A nos remete ao pensamento

    de que durante um certo perodo de tempo ela suportou a idia de que a mulher deve se

    submeter autoridade do homem, no se impondo frente suas decises e opinies.Desta forma, a mulher deveria seguir sua maneira de pensar para que no venha a

    sofrer as conseqentes agresses por parte do companheiro e represso da sociedade

    em geral.

    Segundo Meneses (2001), pensar sobre a prpria liberdade parece difcil e

    doloroso, j que significa ir contra uma estrutura de pensamento previamente

    estabelecida em nvel religioso, moral, econmico, psicolgico e social. Mexer com a

    dominao do homem sobre a mulher significa desarticular um sistema de crenas,conceitos antigos de dominao. Articulando este modelo de pensamento s afirmaes

    da vitima nos deparamos com o discurso do autor citado acima, onde este ratifica que

    em uma sociedade patriarcal, o cenrio exibido de que o companheiro exerce a

    condio de dono do poder.

    Para Scott (1990) a ideologia de gnero legitima o poder masculino e justifica a

    supremacia do mesmo, explicando porque e como os homens e mulheres so diferentes

    e devem, por isso, ter os mesmos direitos, obrigaes, restries e recompensas

    diferentes e freqentemente desiguais. Subentende-se a partir de tais embasamentos

    que estas caractersticas apontam que o relacionamento aqui analisado caracterizado

    por elementos que eliciam de maneira clara a violncia de gnero.

    Seguindo a anlise dos dados que compem esta pesquisa, observa-se que na

    categoria B a vitima trata da evoluo do relacionamento. Para esta o relacionamento

    evolua com muitos questionamentos, j que a mesma dizia no entender determinados

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    comportamentos de seu companheiro. Isto por si s eram fortes elementos que

    compunham uma srie de dvidas na vitima.

    Este tipo de sentimento propulsionado pelos questionamentos, pela possibilidade

    de agresso e pelo sentimento de culpa imposta sobre a vitima desencadeavam

    preocupaes na mesma, j que seu relacionamento era inconstante com trminos e

    recomeos. Esta ainda coloca que as agresses verbais eram freqentes e seguidas de

    arrependimento por parte do agressor, como mostra a seguinte passagem, na qual

    podemos observar que a vitima se sente perdida, sem entender o que acontece, j que

    seu companheiro se contradiz.

    (...) daqui a pouco ele voltou e [disse] que eu era a mulher ideal para vida dele.

    Essa situao levou a entrevistada a no estranhar mais tais agresses, chegando

    a consider-las normais. Pode-se pensar que este comportamento da participante da

    pesquisa deva-se a presso exercida pela sociedade, que impe as mulheres um papel

    de ser boa e aceitar como atitudes normais todos os comportamentos agressivos de

    seu companheiro. Segundo Simois (1993), para sociedade em geral, so boas as

    mulheres que toleram a infidelidade, os maus tratos, o abuso, a deteriorao da prpria

    sade ou a violncia: uma mulher que no pense em se divorciar nem abandonar ao pai

    de seus filhos, mantendo unida a famlia. So boas as mulheres que trabalham e

    mantm seus pais, filhos e irmos, as que so capazes de renunciar a seus gostos e

    prazeres, que trabalham para sustentar suas famlias. O requisito bsico que faam

    tudo para o bem dos demais, e desta forma jamais sero violentadas. Esse discurso

    assimilado pelas mulheres, recriando um modo de vida e constituindo assim o contexto

    familiar desejado e idealizado pela sociedade em geral.

    Essas idias so reforadas pela constatao de que a participante imaginava queapenas sofria violncia quem provocava e levava seu parceiro ao extremo. Podemos

    verificar tal conceito na seguinte afirmao:

    (...) sabe, era uma coisa que eu jamais pensava passar porque eu pensava que s

    apanhava quem fizesse por merecer, ou seja, que provocasse o homem at o extremo.

    Conforme Janecy T.S Lopes apud Marlene Strey (2000), a cultura exerce uma

    presso sobre as mulheres, confirmando a idia de que a mulher s pode ser medida

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    que exerce suas funes sociais em relao aos outros. Esse papel ainda continua

    sendo idealizado como algo sublime que impede a visualizao do outro lado da moeda,

    onde existe a restrio das potencialidades e do crescimento pessoal da mulher.

    Na categoria C observamos que feita pela vitima uma avaliao do agressor e

    como esta o descreve. Podemos perceber que dentro deste quadro a vtima afirma que

    seu companheiro podia realmente ter coragem de agredi-la, j que esta comeava a se

    deter em observaes mais detalhadas de determinados comportamentos, comentrios e

    atitudes que a levavam a crer na possibilidade concreta de que seu companheiro podia

    de fato cometer atos de violncia contra sua pessoa. Podemos verificar nas afirmaes

    da vitima que esta tinha conscincia do risco que corria, e que demonstrava suadecepo quanto ao relacionamento. Isto fica claro ao relatar tais possibilidades:

    (...) depois de muito relutar e com muita dor eu senti que era bem possvel ele me agredi,

    j que eu no tinha nenhum valor pra ele.

    (...) ele dizia: mulher que no obedece a gente tem que pegar e bater.

    (...) t, esse da bate, ser que este louco no vai me matar?

    Existem autores que acreditam que a sociedade tem sua parcela de culpa nesta

    situao. Isto acontece quando as regras sociais do ao agressor plenos poderes para

    que estes venham desempenhar papeis de dominadores onipotentes. Para as mulheres

    apenas sobram a submisso a tais comportamentos, atitudes e comentrios, para que

    assim sejam reconhecidas no seu meio de convvio. Isto ratificado por Navarro (1998) e

    Lerner (1990,), apud Strey (2000), quando estes colocam que por definio, nas

    sociedades onde existe a estratificao de gnero, os homens possuem poder superior

    sobre as mulheres. Isto existiria como um acordo generalizado de que essa situao

    normal e que sempre teve tal configurao.

    Partindo ento da anlise das categorias anteriores, na qual foi exposto que o

    relacionamento entre vitima e agressor era muito irregular, permeado por ameaas,

    agresses verbais, intimidao, entre outros, percebemos que todos estes elementos

    das categorias A, B e C levam a vitima a comear criar formas de se defender das

    situaes de agresso, eliciando os contedos relacionados na categoria D, na qual a

    mesma faz meno a situaes em que ameaada pelo agressor.

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    A vtima refere que foi intimidada pelo mesmo que a ameaava, dizendo que iria

    lhe bater muito. Para no sofrer as agresses, a participante desta pesquisa relata que

    fugir serviu como um meio de se defender, sem ter que acabar seu relacionamento e ter

    que passar por todas as represses que sabia que teria que passar se viesse a pblico

    sua separao. Nota-se que o comportamento aqui disposto pela vitima mais uma vez

    vai ao encontro da citao acima, onde os autores colocam que o papel da sociedade no

    estabelecimento de relaes de poder determinante, e este ainda compe o cenrio

    recriminador das mulheres, atribuindo aos homens a razo.

    A afirmao abaixo demonstra o comportamento, utilizado como meio de defesa

    por parte da vitima:(...) um dia ele me encerrou l dentro do apartamento dele e me disse todas as

    obscenidades possveis e eu fugi com medo de apanhar, mas sai quieta para ningum ver,

    ele era muito querido por todos.

    As idias anteriormente citadas tambm se relacionam com o que dito por Yll e

    Bograd (1998). Segundo estes, a sociedade ensina a mulher que esta deve ser

    submissa, passiva e compreensiva, satisfazendo assim as expectativas tradicionais dos

    papis de gnero feminino.Aps tantos trminos e recomeos, discusses e agresses, a vtima tambm se

    utiliza da recusa como forma de proteo, j que percebendo os comportamentos

    estranhos de seu companheiro, esta comea a recusar convites de tentativa de

    aproximao. O companheiro inconformado com tais atitudes a retribui com ameaas e a

    agride verbalmente, sempre reforando sua supremacia de ser homem e de tudo poder.

    Neste fragmento da fala da vitima que segue, percebe-se a recusa como tentativa de

    trmino do relacionamento:

    (...) ele ento me liga depois da fuga e me prope um churrasco e eu respondo: eu no

    quero mais saber dessas histrias de churrasco, porque eu para l e tu para c e

    comea tudo de novo e eu no quero mais saber disso.

    Como conseqncia desta vivncia, vrios sentimentos so desencadeados na

    vitima. Esta afirma que os mesmos teriam sido resultados deste relacionamento

    conturbado. Dentre os sentimentos despertados, a vitima refere em diversas falas que

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    teve que mudar seus hbitos dirios para que no fosse novamente surpreendida pelo

    agressor como era de costume. Podemos observar nas falas que seguem as mudanas

    de hbito que a vitima se submeteu como forma de proteo, para que no houvesse

    nenhuma possibilidade de aproximao.

    (...) no abro mais as janelas da casa para ele no inventar de se aproximar de mim.

    (...) no fico mais sozinha em casa, e nem saio nas ruas s.

    Para Cardoso (1997) apud Strey (2000), a mulher submetida violncia domstica

    passa por sentimentos de culpa e vergonha pela situao em que vive, por medo,

    impotncia, debilidade e mitos sociais como o de que a mulher tem prazer em apanhar,

    por isso no se separa. Este mito colocado pela prpria mulher como auto-justificativa

    de no conseguir libertar-se dessa situao, j que no existe o no-querer como uma

    condio de liberdade.

    Dentro deste contexto podemos evidenciar que vrios so os sentimentos

    desencadeados, cada um cumprindo uma funo determinante no comportamento da

    vitima, como foi disposto acima. Ela ainda coloca que o medo era constante, e o atribui a

    impunidade imposta ao agressor pela justia, que trata os casos de violncia domstica

    como atos normais dentro do cenrio familiar, j que este tipo de violncia recente nosautos da justia. Podemos evidenciar tal comentrio nas passagens que seguem, onde a

    mesma coloca que o medo presena ativa em sua rotina:

    (...) em vrios aspectos eu passei a sentir medo constante, j que eu sei que o agressor

    faz o quer com as vitimas e continua ai livre sem ningum fazer nada.

    (...) tenho medo constante, e sempre estou atenta. Interessante foi que esses dias atrs

    eu estava deitada, j era meia noite mais ou menos e eu escutei um barulho e o

    cachorrinho da vizinha estava muito bravo e eu entrei em pnico de tanto medo que fosse

    ele aos arredores da minha casa, tomei coragem pois parecia que ele estava caminhando

    aqui em roda, abri a janela e era um boi, ento minha vida agora esta, evito abrir as

    janelas, ficar com as portas abertas, no vou mais em bailes por medo de encontra-lo e

    no fico mais sozinha nem em casa nem na rua.

    Como lembra Davidson, apud Archer e Lloyd (1992) a violncia dos homens

    contra suas esposas tem acontecido h milhares de anos, e s agora tem sido admitida

    pelas leis. Para Carrilho (1997) ainda hoje muitos homens continuam a achar que bater

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    ou punir fisicamente suas mulheres um direito, e essa atitude apoiada por algumas

    crenas religiosas que acreditam que o submetimento da mulher a golpes e ataques

    sexuais no lar tem que acontecer, j que estas se assemelham s formas reconhecidas

    de tortura admitidas por estas. Tal situao tem sido freqentemente flagrada nos

    processos criminais de homicdios em que maridos ou companheiros, que assassinaram

    suas mulheres, surgem como as vitimas inocentes de uma mulher culpada que os

    levou ao desespero do ato criminoso.

    Para exemplificar essa situao to rotineira na rea do Direito, Grossi e Teixeira

    (2000) citam uma situao na qual, no Rio Grande do Norte, maridos assassinos ainda

    so absolvidos em jri popular sob alegao de legitima defesa da honra. Conformelembra Baested (1997), quando a participao da vtima analisada luz de perspectiva

    do gnero, pode ser visto que a cultura delega aos homens e mulheres diferentes

    padres de moralidade e valores, que levam discriminao das mulheres. Ela afirma

    que quando se tem uma vida autnoma de seu marido, isto , trabalha fora, tem horrios

    prprios, a mulher vista como tendo comportamentos preparatrios a um possvel

    crime de adultrio (ou seja, uma mulher que escapa ao controle de seu marido mais do

    que provvel que ir fazer algo que no deve). O crime considerado contra organizao

    familiar, o ato do marido de agredir a vitima, ou at mesmo mata-la, seria uma espcie

    de legitima defesa no s da honra pessoal como da famlia. Esse mesmo raciocnio

    no feito quando tais comportamentos so praticados por um homem e, portanto, no

    se justificaria nenhuma ao preparatria por parte da mulher.

    Partindo ento da impotncia da vitima frente ao agressor, e do descaso frente a

    violncia domstica, a vitima coloca as conseqncias da agresso. Ela enfatiza de

    forma muito clara a frustrao e reafirma que esta determinante em sua vida aps o

    trmino do relacionamento. Lembra que muitas vezes deixou de querer ver realmente asintenes de seu companheiro para no deixar que seus planos construdos com o

    agressor fossem jogados fora. Para poder continuar arquitetando plano junto e baseado

    nestas tentativas de renovao que eram constantes em suas vidas, a entrevistada

    refere que tentou muito acobertar todos os comportamentos agressivos do companheiro,

    mas no conseguiu:

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    (...) porque no inicio tu faz projetos, planos e acaba jogando todas estas deformaes de

    carter para de baixo do tapete se apoiando na idia do amor, mas agora chega eu no

    vou mais jogar para debaixo do tapete.(...) assim, como que eu vou te explicar, era uma coisa de atrao, uma coisa diablica

    que no uma relao de amor, era uma relao de dio e atrao.

    Percebe-se que ela conceitua seu relacionamento de forma desarmoniosa,

    permeada por sentimentos negativos que geram agresses de vrios tipos e estas

    resultam em conseqncias que eliciaram os temas abordados pela categoria E. Nesta

    esto includos os sentimentos resultados desta agresso que so citados e enfatizados

    pela vitima de forma consciente com percebemos nas seguintes frases:(...) tu te sente impotente, se sente um ningum, que foi usada a pessoa que tu idealizava

    te arrebenta te destri a alma.

    (...) e se frustra muito mais j que tu tem que esquecer todos os momentos bons que tu

    viveu com ele, esquecer os projetos que vocs construram juntos, destruir aquele

    castelinho que junto com ele tu construiu.

    Constatou-se que os sintomas mais comuns desencadeados na vitima de

    violncia domstica foram medo, impotncia e estado de choque frente agresso.Alm desses sintomas despertados pela situao de agresso, foram ainda geradas

    mudanas em seu comportamento como isolamento, mudanas em seus hbitos,

    opinies, todos despertados pela situao de agresso, de maneira geral.

    A vitima atribui seu estado de choque, sua frustrao, seu medo, seu estado

    paranico, s situaes impostas pelos comportamentos agressivos de seu

    companheiro. Aps ser agredida de forma brutal e degradante, a entrevistada enfatiza

    que ficou destruda, que precisou de ajuda psicolgica e que ainda precisa para poder

    tentar reconstruir sua vida e sua rotina, como podemos visualizar nas seguintes

    afirmaes:

    (...) da comea os questionamentos os porqus de tudo o que aconteceu, e tenho que

    tentar ser feliz, mas claro que sempre me acompanham os questionamentos e ento vou

    na psicloga e sigo minha vida de uma maneira ou de outra.

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    (...) minha maior frustrao e decadncia saber que nunca mais serei a mesma, e

    talvez nem queira mais ningum na minha vida, por isso vou a psicloga para tentar

    superar tudo isso.

    (...) ai tu tem que tentar superar, juntar os caquinhos e te organizar sozinha.

    Consideraes finais

    Observando os objetivos e articulando-os a anlise, percebemos que a vivncia da

    violncia domstica acarreta diferentes repercusses na vida de uma vtima, atingindo

    nveis sociais e psicolgicos profundos. Diversas reas do convvio social so afetadas,assim como inmeros sentimentos so despertados pelas situaes de agresso.

    A vitima afirma que seu relacionamento era inconstante, permeado por cobranas

    de ambos, por chantagens emocionais e por culpa, quando este recomeava. Salientou

    que sentimentos foram desencadeados pela agresso, quando cita as mudanas

    ocorridas em sua rotina e em seus hbitos, em funo do medo, e das ameaas

    dispostas pelo companheiro agressor.

    A entrevistada deixa claro em seu relato que as agresses cumpriram um papeldeterminante em sua vida, j que a vitima relata a mudana em seus comportamentos,

    em sua rotina e em seus hbitos desencadeados pela situao conflitiva.

    Todos estes dados analisados durante o trabalho nos levam a concluir que este

    tema de profunda relevncia e que merece total ateno. Ressaltando assim a

    importncia deste estudo, uma vez que verificando as estatsticas da violncia

    domstica, pode-se afirmar ainda h muito que se debater sobre suas conseqncias.

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