A Evolução Histórica Da Sociedade Conjugal e Da Situação Jurídica Da Mulher Casada

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    1. A evoluo histrica da sociedade conjugal e da situao jurdica da mulhercasada

    A famlia considerada a primeira unidade social da Humanidade. O instinto deautoconservao levou o Homem a desde cedo se relacionar com os seus pares, criando-se assim

    relaes de auxlio mtuo que tendiam preservao da espcie. Estas unies, verdadeirosembries do casamento, deram origem s primeiras sociedades humanas organizadas1por via dasentidades familiares que criavam, baseadas em laos sanguneos de parentesco. As posies dosintervenientes daquelas unies tm sido alvo de uma evoluo sociolgica e jurdica milenar e sobre essa que nos iremos debruar.

    1.1Antiguidade Clssica

    Na cidade-estado de Atenas o casamento servia sobretudo fins polticos e econmicos e opropsito da perpetuao da famlia atravs da procriao. Os casamentos eram normalmentemongamos j que a poligamia era proibida e considerada uma prtica brbara. O noivado formalera celebrado sobre a forma de um contrato (engye), na presena de testemunhas de ambos osnubentes. Um dote era entregue pelo pai da noiva ao futuro marido, j que constitua uma dascondies do contrato celebrado, ainda que no obrigatria. Em caso de morte, o dote iria serherdado pelos filhos da noiva. O casamento consistia no ato de vida em conjunto e aconteciavrios anos aps o noivado. A noiva mudava-se para casa do noivo e tornava-se assim parte dasua famlia.

    O homem era o chefe (kyrios) da casa (oikos) tendo tambm um papel na polis e por isso seocupando da bio politikos. A mulher, apesar de ter o estatuto de cidad no possua quaisquerdireitos de cidadania. Desprovida de direitos polticos no podia ocupar qualquer funo nogoverno j que no dispunha de forma plena da parte racional da sua alma, o logos2,pelo que a

    ela cabia-lhe apenas o controlo da vida familiar na oikos. Esta posio de inferioridade deixava amulher confinada aos seus aposentos (gynaikonitis)e submissa ao marido.

    O homem casado podia ter relaes homossexuais, amantes e pagar a prostitutas. Contudo,no Direito Grego, o adultrio (moikheia) feminino era sempre punido j que representava umacontestao autoridade do marido. O adultrio masculino apenas era punido se envolvesse aesposa de outro homem j que isso era considerado uma afronta ao chefe do oikos.Consequentemente, o marido podia lidar com o adltero (moikhos) da melhor maneira queentendesse. O divrcio era um poder exclusivo do marido e consistia no repdio da esposa.

    1Anteriores organizao do Homem em comunidades sedentrias, estas primeiras entidadesfamiliares lideradas por um progenitor comum a todos os descendentes, smbolo da unidade daentidade social, compartilhavam uma identidade cultural e patrimonial que dava origem aos cls.2Isto leva-nos imediatamente de volta natureza da alma: nesta, h, por natureza, uma parte quecomanda e uma parte que comandada, s quais atribumos qualidades diferentes, ou seja, a qualidadedo racional e a do irracional. () o mesmo princpio se aplica aos outros casos de comandante ecomandado. Logo, h por natureza vrias classes de comandantes e comandados, pois de maneirasdiferentes o homem livre comanda o escravo, o macho comanda a fmea (). Todos possuem as

    diferentes partes da alma, mas possuem-nas diferentemente, pois o escravo no possui de formaalguma faculdade de deliberar, enquanto a mulher a possui, mas sem autoridade plena (). Devemos

    ento dizer que todas aquelas pessoas tm a suas qualidades prprias, como o poeta (Sfocles) dissedas mulheres: O silncio d graa s mulheres, embora isto em nada se aplique ao homem

    (Aristteles, Poltica I).

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    Na Roma Antiga, a famlia (famlia) era composta pelo ncleo familiar os cnjuges, osseus filhos e os seus escravosbem com a propriedade que possuam.3O casamento continuavaa servir propsitos reprodutivos visando gerar filhos legtimos. Numa primeira fase era umprivilgio que apenas aos patrcios cabia, acabando depois por ser alargado aos cidados romanos.

    A validade de um casamento dependia de alguns requisitos: as partes teriam de ser cidadosromanos ou possuidoras de capacidade jurdica matrimonial (conubium), a idade mnima para osrapazes era os 14 anos e para as raparigas os 12 anos e era necessrio o consentimento das partes.O casamento entre familiares prximos era proibido bem como o casamento de escravos j queestes no possuam quaisquer direitos sobre a propriedade e os filhos.

    O casamento romano era um ato privado e secular assente no consentimento inicial dosnubentes. Para tal, era necessria a unio de vida de homem e de uma mulher com a inteno deformarem uma unio perptua. Ao Direito apenas cabia aferir da legitimidade de uma criana oque dependia da existncia de um casamento vlido. Um dote (dos) era ele prprio mais umindicador da natureza matrimonial daquela relao. Os dotes eram requisitos morais mas no

    legais.

    possvel distinguir duas formas jurdicas de casamento quanto aos seus efeitos: o in manumaritu e osine manu. No casamento in manu maritu, a mulher passava da autoridade (potestas)4do seu pai para a do marido (manus). J parte final da repblica, a mulher permanecia sob a tutelado seu pai (sine manusem controlo) enquanto aquele fosse vivo e no era integrada na famliado marido. A confarreatio era a forma mais antiga e mais solene de casamento e que por issotornava o divrcio virtualmente impossvel. No entanto no existiam quaisquer proibies quantoao divrcio nem era associado nenhum estigma social ao cnjuge divorciado.

    Ao marido era permitido divorciar-se da mulher com base no adultrio daquela (um crime

    grave) mas o inverso no era possvel j que as relaes extraconjugais masculinas eramsocialmente aceites. Mais tarde a infertilidade da mulher passou a ser considerada uma vlidarazo para o divrcio.

    Os divrcios e os segundos casamentos eram comuns. Para as vivas o segundo casamentoera inclusive uma obrigao para o Direito Romano. Entre as classes mais altas o casamento,divrcio e os segundos casamentos eram frequentemente utilizados como expedientes polticos.

    Na vida quotidiana as mulheres eram excludas da vida pblica, no poderiam ser magistradasou votar nas eleies. O poder poltico era exercido apenas se fossem esposas ou familiaresprximos de algum no podere no possuam qualquer direito sobre os filhos. Todavia, no perodo

    final da repblica as mulheres adquiriram uma maior liberdade j que podiam gerir os seusprprios negcios e assuntos financeiros. Com exceo daquelas que tinham casado em regimein manu, podiam ser herdeiras e dispor da propriedade e, no caso de terem trs filhos, tornavam-se independentes.

    1.2poca Medieval

    3Neste sentido, a Famlia no direito romano podia ser definida como o conjunto de elementos pessoaise patrimoniais sujeitos autoridade do chefe: o pater famlias (patria potestas)(Leandro, 2006)

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    O casamento nos sculos IX e X era essencialmente visto como um modo de unir famlias epropriedades, verdadeiros casamentos-aliana, que permitiam dar continuidade s linhagens e amanuteno de estatutos sociais. Desta forma cabia a todos aqueles responsveis pelo futuro dafamlia, ou seja, os homens a quem assistiam pretenses sucessrias e ao chefe da famlia, o deverde casar os seus filhos.

    A unio matrimonial era ento um verdadeiro pacto celebrado entre os pais dos nubentes,onde o consentimento de ambos os noivos era irrelevante, que obedecia a uma srie de etapas aolongo de vrios anos.

    1) Petitiopedido da noiva pelos pais do noivo2) Desponsatioo acordo das famlias quanto ligao dos seus filhos3) Dotatioacordo quanto ao dote54) Traditioentrega da jovem ao seu noivo pelos seus pais65) Publicae nuptiaecerimnia de casamento6) Copula carnalisunio carnal

    A interveno eclesistica na regulamentao do casamento era ainda inexistente peloque a etapa mais importante para a sua validade era a ltima, a copula carnalis.O objetivo daunio matrimonial era o aumento da riqueza das famlias e o consequente aumento do seu poderde influncia social.

    O sculo XII imps como forma solene de casamento o casamento cristo, celebrado napresena de um sacerdote baseado no consentimento mtuo do casal.7Na realidade, apesar de oconsentimento ter sido consagrado requisito essencial, a rejeio do homem por parte da noivaera inadmissvel j que era vista como uma afronta ao poder patriarcal. O casamento passou a servisto como um sacramento e a sua regulamentao um monoplio da Igreja. Surge o Direito

    Matrimonial integrando regras de origem eclesistica8

    onde a validade do casamento seconfirmava pela comunho carnal.9

    No matrimnio no havia lugar para o amor carnal ou a paixo. Este era antes visto comouma instituio estvel que servia o propsito da reproduo e unio de riquezas dandocontinuidade estrutura social. A proclamao da procriao10como fim do casamento permitia Igreja a soluo do problema da devassido dos leigos reprimindo o mal. O prazer nas relaessexuais era condenado e o casamento, visto como um mal menor, restringia aquelas ao propsitoda procriao dentro do vnculo matrimonial.

    5 de salientar que na desponsatio eram desde logo estipuladas sanes pecunirias para o caso de ocasamento no se realizar por desistncia de um dos nubentes.6A entrega da jovem (traditio) acontecia anos aps a concluso das trs primeiras etapas geralmentequando aquela atingia os seus 12 anos.7"Telogos, cannicos, moralistas, todos os pensadores dos anos 1100 - 1140, raramente unnimes noresto, concordaram pelo menos, maioritariamente, neste ponto: o consentimento era absolutamente

    prioritrio quer aos ritos sagrados, quer publicidade, at mesmo cpula" BERNOS, Marcel; LCRIVAIN,Philippe; RONCIRE, Charles de La; GUYNON, Jean. O fruto proibido. Lisboa : Edies 70. p. 1088A proibio do casamento entre parentes e a proibio das relaes sexuais em dias sagrados eramexemplos de algumas destas regras.9O Arcebispo Hincmar de Reims desenvolveu a primeira teoria materialista do casamento considerando

    que um casamento no consumado no poderia considerado um casamento plenamente vlido10Homem e mulher os criou, e Deus abenoou-os dizendo-lhes: Crescei e multiplicai-vos e enchei aTerra (Gen. 1,28)

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    A mulher, identificada com o pecado original preconizado pela Igreja, devia ao maridouma total obedincia estando numa posio de inferioridade face ao marido11. O seu corpo e almapertenciam a Deus mas, por virtude do casamento, o marido passava a gozar de posse sobre oprimeiro ficando a mulher obrigada ao debitum12. O incumprimento deste dever conjugallegitimava o adultrio masculino.

    A Reforma Protestante, e a consequente rutura da unidade religiosa da Europa, veioquestionar o casamento catlico como sacramento. Em A Vida Conjugal (1522), Lutero veiodefender a dignidade da mulher e a importncia do casamento reprovando a tese do casamentocomo forma de represso do mal e combate fornicao. Ao mesmo tempo, a exaltao dasoberania e ascenso das concees absolutistas do poder rgio reclamaram para o soberano aexclusividade da regulao em matria matrimonial.

    Numa atitude reacionria a Igreja Catlica tomou no Conclio de Trento (1545 a 1563)importantes medidas em matria de casamento. Pelo Decreto Tametsi (1563) consagrou ocasamento um contrato solene veiculado observao de vrias formalidades. Os casamentos

    clandestinos tornaram-se nulos j que a sua celebrao tinha de ser efetuada in face ecclesiae.Mantiveram-se apesar de tudo algumas das caratersticas basilares deste instituto: aindissolubilidade dos votos e a necessidade do consentimento parental do lado da nubente para avalidade do ato.

    1.3Idade Moderna

    O advento da poca moderna como consequncia das Revolues Liberais trouxe consigo asconcees individualistas frutos do Humanismo e do liberalismo politico, o paradigma do EstadoConstitucional e significativas mutaes no plano institucional e social do casamento. O homem assim colocado no centro do universo, usufruindo de autonomia do esprito, liberdade da razo

    e exerccio da vontade. livre na busca da sua felicidade e o casamento surge como uma formade exerccio da sua autonomia privada.

    O casamento moderno pressupe a vontade dos nubentes, livre da ideia de aliana entregrupos sociais, passando a ser um instituto tambm regulado pelo Estado. O Cdigo Napolenicoconsagrou o casamento como um contrato civil no seu artigo 7

    Todavia, esta libertao do indivduo das amarras do absolutismo no foi estendida mulher.Esta continuou presa ao domnio privado da domus familiaris,numa posio de inferioridadesocial, que no plano jurdico se traduzia numa situao de incapacidade (Varela, 1999).

    Le mari doit protection sa femme, la femme obissance son mari13

    O instituto jurdico da incapacidade assenta numa falta de qualidades psquicas deentendimento, ou do poder de autodeterminao, necessrias para o indivduo reger a sua pessoa

    e gerir autonomamente os seus bens14. De acordo com esta tese, a mulher, pelo simples facto deter contrado matrimnio, tornava-se juridicamente incapaz ficando assim impedida de se

    11As mulheres casadas estejam sujeitas a seus maridos como ao Senhor. Porque o marido a cabea damulher, como Cristo a cabea da Igreja () Vs, maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a

    Igreja S. Paulo (Ef. 5, 22-32)12O dbito conjugal traduz-se na obrigao de cada um dos cnjuges de manter relaes sexuais com o

    outro13Artigo 213 do Cdigo Civil francs na sua redao primitiva14(Varela, 1999)

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    autodeterminar e de administrar quaisquer bens seus ou do casal, devendo ainda obedincia aoseu marido.

    Com o sculo XIX e, medida que o Estado se foi consolidando sendo capaz de assegurar aordem pblica, a solidariedade familiar foi se tornando desnecessria. A famlia passa a ser vista

    como um ncleo que podia apenas preencher-se com a sociedade conjugal, surgem as famliasmonoparentais fruto do divrcio e a filiao extramatrimonial.

    O sculo XX, mais concretamente a partir do seu segundo quartel, iniciou um fortemovimento de repdio da tese da incapacidade mulher casada. As legislaes modernasacolheram a tese da diferenciao de funes com base na distino biolgica dos cnjuges e asua complementaridade natural abolindo a incapacidade da mulher casada.

    mulher atribudo o governo domstico, o Schlsselgevaltou poder das chaves15, a direomoral da famlia e a realizao de todos os atos ligados economia da casa. A mulher assumia achefia do reino dos 3 K (Kche, Kinder, Kirche). Pelo contrrio ao marido cabia a chefia dasociedade conjugal, j que era ele o responsvel pelo sustento da mulher e dos filhos,administrao os bens do casal e era ele quem detinha o poder decisrio nos casos de desacordoquanto a assuntos do interesse comum.

    necessrio fazer um reparo: este poder de deciso atribudo ao marido em casos dedesacordo dos cnjuges em matrias de interesse comum no surgia de uma conceopreconceituosa baseada na superioridade do sexo masculino. Ao invs, derivava das conceestradicionalmente aceites sobre o papel funcionalmente diferenciado dos cnjuges dentro do lar epermitia manter a autonomia do casal. O foro ntimo da realidade familiar ficava assim protegidodo escrutnio estadual atravs dos Tribunais.

    O final do sculo XX (sobretudo a partir da dcada de setenta), os ideais de democratizaoda famlia permitiram a libertao da mulher do estatuto de desigual para lhe conferir um estatutode igualdade perante a sociedade e a lei.

    A emancipao econmica da mulher, a sua entrada em massa no mercado laboral, a aberturado ensino superior a ambos os sexos, a divulgao do uso de meios contracetivos e o impacto dosmovimentos polticos feministas dos anos 60, contriburam para o abandono progressivo daestrutura diferenciada da famlia. Iniciou-se um processo de democratizao da vida familiar(Coelho & Oliveira, 2003), sendo a igualdade dos cnjuges uma consequncia da afirmao dosdireitos fundamentais e das transformaes inerentes maior independncia da mulher.16

    Temos, finalmente, dois parceiros conjugais iguais que, no mbito dessa mesma igualdade,

    procuram a sua realizao pessoal e satisfao dentro da comunho de vida. Cada um procura asua diferena e formula as suas prprias pretenses (Pedroso & Branco, 2008).

    Atualmente so mltiplos os novos cenrios de famlias onde o casamento e assume novosmoldes, mais flexveis onde a tendncia para a privatizao, desinstitucionalizao e

    15A expressopoder das chaves compreendia 3 realidades: a dos armrios, do cofre e dos celeiros16Com a democratizao da famlia, a mulher, que at ento, estava sujeita vontade do marido, queassumia o estatuto de chefe de famlia e de provedor do lar, libertou-se do estatuto desigual a que o

    modelo anterior a confinava, o que resultou numa relao feita de dois parceiros conjugais que, mais do

    que amantes, querem converter-se nos legisladores da sua prpria forma de vida, escapando

    institucionalizao da sua vida pessoal(Pedroso & Branco, 2008)

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    contratualizao das relaes familiares. O casamento deixa de ser um instituto social orientadopara a comunidade e unidade da famlia, para ser visto como um meio para o indivduo conquistara sua felicidade individual que, por isso, pode ser revogvel quando tal no alcanada ou atingidaem pleno. Parafraseando Carbonnier (1979), a cada qual a sua famlia, a cada qual o seu direito.

    2. Evoluo no Direito Portugus

    Tal como a nvel mundial, o paradigma do casamento em Portugal refletiu as vrias mutaesno pensamento social e jurdico daquele instituto.

    O Cdigo Civil de 1867 refletia o modelo patriarcal traado pelo Cdigo Napolenico ondea mulher devia obedincia ao marido e surgia como uma verdadeira incapaz no plano jurdico. Oartigo 1185 incumbia ao marido a obrigao de proteo e defesa da pessoa e bens da mulher aqual lhe devia obedincia.

    Nos artigos subsequentes eram definidas uma srie de limitaes ao poder da mulher casada:a obrigao de acompanhamento do marido (artigo 1186); a proibio de administrao dos bensdo casal (artigo 1189); a proibio de adquiri ou alienar bens ou contrair obrigaes sem aespecial autorizao do marido para cada um daqueles atos (artigo 1193 e 1194).17O monopliode poderes do marido estava tambm presente na regulao do poder paternal. Ainda que oCdigo reconhecesse a participao da me naquele, era ao pai que, como chefe de famlia nainstncia do matrimnio, competia dirigir, representar e defender seus filhos menores, tanto emjuzo como fora dele(artigo 138).

    O Decreto-Lei n1, de 25 de Dezembro de 1910, com a proclamao legal dos princpios daigualdade e liberdade no seu artigo 39 introduziu a primeira mutao institucional no paradigma

    do casamento portugus. Todavia, esta igualdade de cnjuges no alcanou plenamente asociedade conjugal j que a mulher continuava sujeita a quase todas as limitaes consagradas nodireito anterior.

    Em 1966, com a aprovao da nova redao do Cdigo Civil, foi eliminada por completo atese da mulher casada incapaz, que passa a ser vista pelo Direito como tendo igual dignidadeindividual e social que o marido. Os direitos e as obrigaes dos cnjuges foram distribudos combase no sistema da diferenciao de funes. Assim, o homem assumia a chefia marital (artigo1674) e a mulher o governo domstico entendido por alguns autores como o poder patrimonialmais importante na economia do casal (Varela, 1999).

    Tal como na anlise anterior foi explicitado, o poder de deciso final do marido nos assuntosde interesse comum j no era justificado em concees preconceituosas masculinas daincapacidade da mulher mas tinha a principal funo de preservar a autonomia e unidadeinstitucional da famlia, protegida da interveno dos tribunais. A ratio estava alicerada naimportncia do casamento enquanto instituto social e nuclear da relao familiar e da necessidadede entendimento dos cnjuges para a manuteno de um vnculo que se apresentava comosocialmente perptuo.

    As relaes patrimoniais foram o principal mbito de inovaes introduzidas pelo Cdigo de1966 que mais alargou o poder da mulher casada. Passou a poder ter residncia prpria, semprejuzo das restries impostas pelo dever fundamental de coabitao (artigo 1672); foi abolida

    17 http://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/Codigo-Civil-Portugues-de-1867.pdf

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    a necessidade de autorizao do marido para o exerccio de qualquer profisso ou atividadelucrativa (artigo 1676); foi ampliado o seu poder de contratar e contrair dvidas sem oconsentimento do marido (artigo 1690); passou a poder dispor plena e livremente de todos osseus bens, presentes e futuros sempre que o regime de bens aplicvel fosse o da separao (artigo1735); foi-lhe dada a possibilidade de definir na conveno antenupcial o direito de administrar

    no s os bens prprios, como tambm os bens comuns por ela levados para o casal ou adquiridosgratuitamente aps o casamento (artigo 1678, n2). O marido tinha como direito prprioo poderde administrao dos bens prprios e comuns por ele adquiridos na constncia do casamento oupor ele levados para o casal j que, aqueles que a mulher tinha definido como objeto da suaadministrao na conveno antenupcial, apenas lhe cabiam a ttulo supletivo.

    Com o 25 de Abril de 1974 e a consequente aprovao da Constituio Poltica de 1976, asituao da famlia, e em concreto da sociedade conjugal, em Portugal foi completamenterevolucionada. O princpio da igualdade dos cnjuges foi constitucionalmente consagrado no n3do artigo 36 os cnjuges tm iguais direitos e deveres quanto capacidade civil e poltica e manuteno e educao dos filhos, o que provocou a necessidade de reformulao do CdigoCivil e da legislao extravagante diretamente ligada.

    Neste sentido, o Decreto-Lei n 496/77, de 25 de Novembro, concretizou aquele postuladoconstitucional na que denominada como a Reforma de 1977 do Direito da Famlia. A igualdadede cnjuges passou a estar de forma expressa includa no Cdigo no seu artigo 1671, e com o n2 do mesmo artigo surgiu um novo princpio: o da co-direo.18Foi eliminado por completo omodelo da sociedade conjugal diferenciada em funo da sua diversidade de sexos ecomplementaridade natural. A famlia passou a ser encarada como uma sociedade indiferenciada,ou pelo menos, no tipicamente diferenciada, uma sociedade assexuada (Varela, 1999). Oscnjuges partilham uma igualdade e simetria no papel que assumem no seio familiar, a afetividade

    valorizada como elemento essencial do casamento, o que levou ao reconhecimento da unio depessoas do mesmo sexo, e a tendncia principal a da desjudicializao e democratizao dasrelaes conjugais. As relaes familiares e em especial a sociedade conjugal esto assimpermeveis a um mundo onde os tradicionais modelos de famlia se revelam inadequados face smutaes provocadas pelas prticas sociais (Commaille, 1991).

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    18A direco da famlia pertence a ambos os cnjuges, que devem acordar sobre a orientao da vidaem comum tendo em conta o bem da famlia e os interesses de um e outro.

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