A ÉTICA E A ESTÉTICA DA DOR: um olhar para Fogo Morto , de ... · concepção de Lessing com a...
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A ÉTICA E A ESTÉTICA DA DOR: um olhar para Fogo Morto, de José Lins do Rego
Natasha Alves Carvalho de Castro Rüb
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Literatura Comparada)
Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins
Rio de Janeiro Junho de 2009
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A ÉTICA E A ESTÉTICA DA DOR: um olhar para Fogo Morto, de
José Lins do Rego
Natasha Alves Carvalho de Castro Rüb
Orientador: Professor Doutor Ronaldo Lima Lins
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-
graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal
do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da
Literatura (Literatura Comparada).
Examinada por:
___________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins
___________________________________________
Prof. Dr. Luiz Edmundo Bouças Coutinho - UFRJ
___________________________________________
Profa. Dra. Iza Terezinha Gonçalves Quelhas - UERJ
___________________________________________
Prof. Dra. Teresa Cristina Meireles de Oliveira – UFRJ, Suplente
___________________________________________
Prof. Dr. Mario Cesar Newman de Queiroz – FAETEC, Suplente
Rio de Janeiro
Junho de 2009
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Rüb, Natasha Alves Carvalho de Castro.
A ética e a estética da dor: um olhar para Fogo
Morto, de José Lins do Rego/ Natasha Alves Carvalho de
Castro Rüb. - Rio de Janeiro: UFRJ/ CLA, 2009.
xi, 150f.
Orientador: Ronaldo Lima Lins
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ CLA/ Programa de Pós-
graduação em Ciência da Literatura, 2009.
Referências Bibliográficas: f. 136-150.
1. Ética 2. Estética 3. Dor 4. José Lins do Rego I.
Lins, Ronaldo Lima. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Departamento de Ciência da Literatura
(Literatura Comparada). III. A ética e a estética da
dor: um olhar para Fogo Morto, de José Lins do Rego.
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RESUMO
A ÉTICA E A ESTÉTICA DA DOR: um olhar para Fogo Morto, de
José Lins do Rego
Natasha Alves Carvalho de Castro Rüb
Ronaldo Lima Lins
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura
(Literatura Comparada), Faculdade de Letras, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).
A partir dos conceitos de ética e estética podemos
delinear as representações da dor na arte. A ética é
estudada e por vezes entendida como “moral”. Essa mesma,
representada na arte, delineia o conceito de estética, que
vem sofrendo grandes transformações ao longo dos séculos. A
experiência estética que valorizava o belo, como valores
morais e físicos, agora, concerne tudo que suscite algum
tipo de epifania ao sujeito receptor. Em meio a essas
definições, no romance Fogo Morto, de José Lins do Rego,
podemos ver as formas de dor e de sublimação de seus
personagens mergulhados na paisagem e na condição de vida
precárias.
Palavras-chave: ética; estética; dor; Fogo Morto
Rio de Janeiro
Junho de 2009
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RÉSUMÉ
L’ÉTHIQUE ET L’ESTHÉTIQUE DE LA DOLEUR: um regard sur Fogo
Morto, de José Lins do Rego
Natasha Alves Carvalho de Castro Rüb
Ronaldo Lima Lins
Résumé da Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura
(Literatura Comparada), Faculdade de Letras, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).
À partir des concepts de l’éthique et de l’esthétique
nous pouvons tracer les représentations de la doleur dans
l’art. L´éthique est étudié et par fois comprise comme “le
moral”. Celle-ci, représentée dans l’art, trace le concept
de l’esthétique, qui est en train de souffrir grandes
tranformations pendant les siècles. L’expérience esthétique
qui valorisait le beau, comme des valeurs moraux et
physiques, de nos jours, concerne tout qui suscite quelque
type d’épiphanie à l’individu récepteur. Dans ces
définitions, dans le roman Fogo Morto, de José Lins do
Rego, nous pouvons apercevoir les façons de la douleur et
de la sublimation de ses personnages plongés dans le
paysage et dans la condition de vie précaires.
Mots-clés: éthique; estéthique; douleur; Fogo Morto
Rio de Janeiro
Junho de 2009
6
À minha mãe que me ensinou a viver socialmente e ao meu pai que me deseducou e me ensinou a sonhar.
7
Agradecimentos
Agradeço:
Primeiramente a Deus, que, com certeza, ouviu minhas
preces e concedeu-me muita serenidade.
Ao Ronaldo Lins, meu orientador querido - por vezes
pai - pela insistência em mim, por sempre acreditar no meu
potencial. Pela paciência, compreensão, pelas broncas muito
necessárias, pelas palavras confortadoras e pelas mais
duras nas horas em que pensei que nada fosse pra frente.
Pelas indicações bibliográficas, pelos encontros de estudo.
E, principalmente, pela amizade.
Ao Capes, que me concedeu uma bolsa de estudos,
ajudando-me muito na compra de livros e no desenvolvimento
do meu trabalho.
Aos meus pais, que mesmo sem compreenderem a
totalidade do meu esforço, sempre me apoiaram, do jeito
deles. Amo-os muito, do meu jeito.
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A minha família, que mesmo que não entendam nada do
que estudo, apóiam-me em tudo que eu fizer, simplesmente
por me amar.
A todos meus amigos, sem exceção, que me escutaram por
longas noites, longos dias, meses e anos.
A meus amigos, mais caros, que me ouviram chorar nos
prazos finais, me deram apoio e sempre acreditaram em mim.
Aos que entenderam minha ausência, que me fizeram sorrir
quando precisei e me fizeram retomar a confiança em mim
mesmo, quando achei que não mais conseguiria.
A todos que passaram na minha vida, durante esse tempo
de dissertação. Todos que puderam ver minhas
transformações, meus problemas e ainda assim continuaram do
meu lado.
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“Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei.
Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma.”1
1 PESSOA, Fernando. Fernando Pessoa – Antologia Poética. TUTIKIAN, Jane (org.). Porto Alegre: Leitura XXI, 2006.
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SUMÁRIO
1 - Introdução ---------------------------------------- 12
2 – A estética e a ética no campo filosófico ---------- 22
2.1 – A ética ------------------------------------ 22
2.1.2 – As concepções da ética -------------- 24
2.2 – A estética --------------------------------- 29
2.2.1 – A história da estética -------------- 31
3 – A dor --------------------------------------------- 43
3.1 - A ética da dor ----------------------------- 46
3.1.1 - O sujeito e sua vontade ------------- 50
3.1.2 - O mal-estar ------------------------- 52
3.1.3 - Do Tabu ao Totem -------------------- 55
3.2 – A estética da dor -------------------------- 58
3.2.1 – A dor sem o belo -------------------- 62
3.2.2 - As implicações do feio -------------- 64
3.2.3 - Traçando um paralelo entre Lessing
e Dostoiévski ------------------------------- 68
3.2.3.1 – Crime e Castigo -------------- 68
3.2.3.2 – Lessing e Dostoiévski -------- 74
4 - Fogo Morto, de José Lins do Rego ------------------ 81
4.1 - O movimento modernista --------------------- 81
4.2 - Fogo Morto e José Lins do Rego ------------- 84
4.2.1 – Sobre José Lins do Rego ------------- 85
4.2.2 – O ciclo da cana-de-açúcar ----------- 88
11
4.2.3 – Fogo Morto -------------------------- 92
4.3 – A dor entre o regional e o psicológico ----- 94
4.4 – O paralelo da dor de Lessing e de
Fogo Morto --------------------------------------- 96
5 - A estrutura de Fogo Morto ------------------------- 99
5.1 - Os anti-heróis ---------------------------- 100
5.2 - Primeira parte – O mestre José Amaro ------ 102
5.3 - Segunda parte – O engenho de Seu Lula ----- 107
5.4 - Terceira parte – O capitão Vitorino ------- 114
5.5 – As mulheres do romance -------------------- 119
5.5 - A ética e a estética em Fogo Morto -------- 121
6 - Conclusão ---------------------------------------- 124
7 – Bibliografia ------------------------------------- 136
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1 - Introdução
“O começo da elaboração crítica é a consciência do que realmente somos, quer dizer, um conhece-te a ti mesmo como produto do processo histórico desenvolvido até agora, e que deixou em ti uma infinidade de marcas recebidas, sem benefício do inventário. É preciso efetuar, inicialmente, esse inventário.”2
No limite entre os conceitos de estética e ética, a
dor aparece na literatura com suas inúmeras formas
possíveis de representação.
Cabe definir os valores da estética e a definição
ética na construção subjetiva da arte e de seus receptores.
Os valores morais e os subjetivos são definidos e
representados de acordo com as concepções de beleza
vigentes em dado período. A arte concebe toda a natureza do
real e do fantástico, importa saber o que vale em sua
exposição.
O desconforto catártico traz algum tipo de satisfação
ao receptor da arte. Não vale só acompanhar os sentimentos
que circunscrevem a obra, mas aprendê-los. A construção
dessas sensações provoca o interesse pela psicologia do
indivíduo e suas formas de representação. Como a dor nasce,
desenvolve-se e por que sua apreensão suscita qualquer
coisa de interessante para nós?
2 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2004.
13
Embora o sentimento de dor seja inerente à criação do
Homem, desde o mito do pecado original, a boa forma de
representá-lo artisticamente é permanente motivo de
discussão ainda nos dias de hoje. A interpretação de suas
dimensões varia de acordo com cada sociedade e com o
momento histórico em que se encontra. Apesar de estar
inserida em uma categoria universal, a dor não é expressa
do mesmo modo em todas as culturas e talvez não seja
sentida de forma idêntica por todos os indivíduos. Seu
limiar varia não somente de um indivíduo para outro, mas
também de acordo com sua cultura, ou seja,
independentemente de suas bases anatômicas e fisiológicas.
A dor parece ter fundamento cultural e social. A partir
dessa concepção, é pertinente a investigação de suas formas
de representação e aparição na arte, aliada às normas
estéticas.
Contudo, o conceito de estética constituiu-se sempre
em uma questão polêmica, sofrendo, de maneira progressiva,
grandes mudanças ao longo de sua história. Este, sempre
correlacionado às postulações éticas, dita as formas da
arte e da representação de todos seus elementos.
O belo era matéria fácil a retratar, mas a dor, como
forma inconveniente à beleza, precisava de regras, de
trato. Esse foi o olhar dos artistas durante muitos
14
séculos: o fazer a dor não doer na arte. Sua forma expressa
deveria ser compensada por algo para que a tornasse bela,
como, por exemplo, as características virtuosas dos heróis.
Dessa forma, a beleza deveria traçar um paralelo com
os valores morais. No entanto, com o Renascimento, a figura
de Deus atada a ela desfez-se e deu-se relevo ao
relativismo estético, à concepção da geometria e das formas
perfeitas.
Diversas são as diferenças dessa concepção para a
descrição das personagens que tanto inquietam a
modernidade. A partir da constante evolução social e
cultural, pensemos um pouco sobre a necessidade da
transformação dessa forma de expressão. O crítico Lessing
desenvolve seus conceitos estéticos baseado nessa concepção
de belo. A beleza das formas perfeitas aliada aos valores
morais. Contudo, devemos entender a distância entre a
concepção de Lessing com a arte plástica e a poesia, para a
prosa – motivo de nossa discussão – dos dias atuais. Suas
teorias funcionam como base para o entendimento de nossas
inquietações.
Em seu livro Laocoonte ou sobre as fronteiras da
pintura e da poesia, o crítico elabora suas discussões
sobre a representação de Laocoonte no mármore e na poesia
de Virgílio. O que está em pauta para ele é a representação
do seu sofrimento. Lessing aborda a forma que este pode ser
15
transposto para a arte sem afetar a beleza estética. Para o
crítico o belo consiste em representar a verdade da
natureza. Mas a dor e o sofrimento só se tornarão belos se
vierem acompanhados da virtude. O feio, para o crítico,
está fora dos domínios da arte.
Contudo, Lessing só abrange a pintura e pouco da
poesia. Para termos uma maior dimensão da teoria da dor na
literatura, citamos Fogo Morto, de José Lins do Rego, como
exemplo. Seus personagens passam por uma contaminação da
dor e da angústia, durante sua existência precária. Suas
representações, antes esculpidas no mármore, em Laocoonte,
são as mesmas que encontramos na consciência das
personagens. Considerando a prosa como forte manifestação
de arte nos dias de hoje, o conceito do belo e de suas
representações muda bastante em relação ao Lacoonte.
Os valores morais ligados à beleza nos trazem a
atenção para outro ponto pertinente de pesquisa: o conceito
de ética. Seus primeiros estudos, com Aristóteles,
trouxeram à tona o conceito de homem virtuoso, aquele que
deveria ser bom, mostrando-se forte e cheio de virtudes.
Contudo, os valores éticos também sofreram transformações
ao longo de séculos. Kant e sua filosofia do “agir moral”
nos deram uma nova perspectiva de interpretação do homem,
agora, completa, entendido como sujeito dotado não só de
racionalidade, mas também de sentimento. Vemos-nos, então,
16
inseridos em uma sociedade legisladora de sua ética, ao
mesmo tempo em que somos empreendedores dessa mesma.
O estudo das diversas formas de composição do conceito
ético, desde seus primórdios até os dias atuais, encaminha-
nos certamente a uma definição segura.
Dessa forma, torna-se fundamental convergir os
conceitos propostos, pois a estética e a ética nos parecem
indissociáveis, na medida em que se complementam em suas
formulações. Porém, nossa matéria de estudo pertinente são
as formas de representação da dor, desde seu início até seu
desejo de sublimação. Sendo assim, cabe-nos elaborar uma
ética da dor, pautados na idéia da noção de dever, para
podermos analisar suas representações estéticas.
Em meio ao nosso estudo da definição de moral, surge o
pensamento singular de Sartre e suas formulações
existencialistas. O filósofo começa por ressaltar a
importância da alteridade e seu reconhecimento, mediante a
explicação dos conceitos de liberdade, de dor e de
angústia. Para o autor de La Nausée, somos todos
responsáveis pela existência do outro, e, da admissão dessa
responsabilidade, nasce a angústia da preocupação sobre
nossos atos.
Essa angústia, advinda da identificação e incorporação
da alteridade, é gerada também, e principalmente, pela
castração dos desejos do sujeito. Os interesses pragmáticos
17
da vontade são teorizados por Schopenhauer e seu Mundo como
vontade e representação. Ele defende o indivíduo como
produto unicamente de seus desejos, capaz de passar sua
vida atrás de algo que julga bom para si. Entretanto,
mediante a conquista desse bem, o mesmo tende a cair na
insatisfação do tédio, consumindo-se na dor do nada, do
objeto conquistado, na satisfação finita.
Esse desejo permanente, defendido por Schopenhauer, é
mostrado também nos estudos de Freud sobre as pulsões do
subconsciente do indivíduo. Em seu Mal-estar na
Civilização, o psicanalista define conceitos de pulsão,
recalque, castração, id, ego e superego, delineando o
comportamento do homem inserido e perante um dado meio
social. O processo civilizatório provoca o tolhimento dos
desejos inerentes ao indivíduo, causando uma dor
dilacerante. A realização e satisfação das pulsões ficam
divididas entre consciente e inconsciente, moral e
instinto, causa da angústia insuportável da existência do
Homem.
Portanto, o indivíduo necessita criar caminhos que
levem à sublimação da dor, à amenização de sua existência.
O conceito de tabu e totem, discutido também por Freud, nos
ajuda a entender alguns dos processos de libertação tão
buscados por todo indivíduo. Ao mesmo tempo em que o Homem
se sente acuado em meio ao dever e ao instinto, ele deve
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buscar formas de canalizar seus recalques, suas dores
latentes, para que possa encontrar-se em uma unidade como
indivíduo.
A partir de todas as hipóteses levantadas, das
críticas expostas e da convergência dos três conceitos
latentes em nossos estudos – ética, estética e dor –
voltamos o olhar para o romance Fogo Morto, de José Lins do
Rego, como corpus, motivo de análise e texto comprobatório
de nossas discussões.
Romance que se destaca em meio à obra regionalista de
Lins do Rego, Fogo Morto é concebido como obra prima por
muitos críticos. Dentro das concepções inovadoras do
Modernismo, José Lins do Rego conquista seu lugar em meio à
vertente intimista com seu romance.
O Modernismo foi o momento em que demos “nova cara” à
tão buscada nacionalidade brasileira. Movimento, advindo de
influências culturais e revolucionárias da Europa,
impulsionou uma vasta produção artística de qualidade no
Brasil do início do século XX. Em meio às produções da
época, podemos dividir as obras e seus autores em duas
linhas: uma regionalista e outra intimista.
José Lins do Rego enquadra-se, primeiramente, na
vertente regionalista e retrata o sertão nordestino em seus
textos. O autor classifica seus romances em ciclos, e Fogo
Morto está inserido no da cana-de-açúcar.
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O cultivo da cana era de grande importância para a
economia brasileira da época, que exportava o açúcar como
produto valioso, de enriquecimento do país e de seus
senhores de engenho. Contudo, com a implementação, cada vez
maior, das indústrias no Brasil, os engenhos foram perdendo
sua força e tradição, até sucumbirem.
Em sua série de romances do ciclo da cana, José Lins
do Rego descreve a história do país. Contudo, Fogo Morto
apresenta-se de maneira diferente ao restante da obra. Sua
aura subjetiva o classifica como um romance ímpar dentre os
textos do escritor e a literatura brasileira.
Fogo Morto é dividido em três capítulos e apresenta
três personagens principais, que os nomeiam.
O primeiro mostra a história de José Amaro, seleiro
pobre, insatisfeito com a mesmice de sua vida pacata. Sua
esposa, Sinhá e sua filha convivem com a degradação desse
homem, que tenta de todas as formas mudar sua realidade e
destino.
O segundo fala do coronel Lula de Holanda, dono do
engenho de Santa Fé e frustrado devido a sua falta de garra
em gerir seus negócios. Sua mulher e filha sofrem com
castrações impostas pelo coronel, como única maneira que
este encontrou para mostrar sua força.
Por fim, o terceiro capítulo trata do capitão Vitorino
da Cunha, o “papa-rabo”. Figura caricata e de força no
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romance. Embora considerado louco, Vitorino é o personagem
mais importante da obra, pois consegue sublimar sua
condição precária.
Assim, devemos analisar separadamente cada capítulo e
convergi-los em uma análise maior: a representação da dor
em suas diferentes formas, pautadas nos conceitos vigentes
e estudados de ética e estética. Os personagens principais
e secundários têm sua importância bem definida e mostram
seus diferentes caminhos em direção a uma sublimação, como
única forma de amenizar sua existência dilacerante.
Diante destas formas de dor e sublimação distintas,
alcançadas pelos personagens, podemos costurar os conceitos
e hipóteses apresentados, baseados no estudo dos caminhos
até suas conquistas, degradações e loucuras. Seguiremos
mergulhados na literatura de José Lins do Rego e guiados
pela filosofia do indivíduo, da angústia e da alteridade.
Em meio à evolução textual, observamos claramente, em
Fogo Morto, o conceito de anti-héroi, tão discutido pela
modernidade. Os personagens não possuem mais a capa do
homem virtuoso colocada por preceitos aristotélicos. Eles,
agora, mostram-se como indivíduos precários, dotados da
mesma humanidade que nós. Deparamo-nos com sujeitos
semelhantes à nossa existência, e o que nos importa, no
momento, é a forma de passagem, de cada um, por todas as
crises e mazelas da individualidade e do ser social.
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Sendo assim, a estética comporta, nos dias de hoje, a
mais completa definição do belo. A arte deve ter por
objetivo nos suscitar algum tipo de catarse, e para isso
deverá representar o mais íntimo de nossos sentimentos. Não
se repugna mais o choque, é ele que nos envolve pela
experiência artística. A descoberta da ética do
caleidoscópio humano, do mosaico de caracteres e vozes que
compõem o indivíduo, não nos permite mais repugnar o feio.
Nossas formas devem coexistir na arte.
Através desse inventário, pautados em nossas hipóteses
e caminhos a serem investigados, pretendemos dar relevância
à importância dos conceitos estéticos e éticos para a
melhor compreensão das veredas da arte. E, mergulhados
nessas concepções, delinear a representação das formas da
dor, perpassando Fogo Morto, de José Lins do Rego, como
obra prima da subjetividade nos meandros do Modernismo.
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2 – A estética e a ética no campo filosófico
2.1 – A ética
A palavra “ética” é originada do grego ethos, e possui
duas variantes possíveis. Com o e curto pode ser traduzida
por costume, com o e longo, significa modo de ser, caráter.
A primeira serviu de base para a tradução latina “moral”,
enquanto que a segunda, de alguma forma, orienta a
utilização atual que damos à palavra.
Em filosofia, ética significa o que é bom para
determinado indivíduo e sociedade, e seu estudo contribui
para estabelecer a natureza de deveres no relacionamento
entre esses. Moral e ética não devem ser confundidos.
Enquanto a primeira é normativa, a segunda é teórica,
buscando explicar e justificar os costumes de uma
determinada sociedade, bem como fornecer subsídios para a
solução de seus dilemas mais comuns. A ética também não
deve ser confundida com lei, embora com certa freqüência a
lei tenha como base princípios éticos. Ao contrário do que
ocorre com esta, nenhum indivíduo pode ser compelido, pelo
Estado ou por outros, a cumprir as normas éticas, nem
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sofrer qualquer sanção pela sua desobediência; por outro
lado, a lei pode ser omissa quanto a questões compreendidas
em seu propósito.
O Homem vive em sociedade, convive com outros
indivíduos e, portanto, cabe-lhe pensar sobre sua conduta
perante estes. A ética é o julgamento do caráter moral de
uma determinada pessoa. Como doutrina filosófica, é
essencialmente especulativa e, a não ser quanto ao seu
método analítico, jamais será normativa, característica
esta, exclusiva do seu objeto de estudo, a moral. Portanto,
a ética mostra o que era moralmente aceito na Grécia
Antiga, possibilitando uma comparação com os valores
atuais. O que indica, através da comparação, mudanças no
comportamento humano, nas regras sociais e suas
conseqüências, detectando, a partir daí, problemas e/ou
indicando caminhos. Ao contrário da moral, que delimita o
que é bom e o que é ruim no comportamento dos indivíduos
para uma convivência civilizada, a ética é o indicativo do
que é mais justo ou menos injusto diante de possíveis
escolhas que afetam terceiros.
A partir dessa definição inicial sobre ética, faremos
um estudo sobre as concepções desta no campo filosófico.
Para tal, passaremos por Aristóteles, pela concepção
utilitarista e por Kant.
24
2.1.2 – As concepções da ética
No campo da reflexão sobre o agir humano, destacam-se
hoje três grandes tradições filosóficas. A primeira
reporta-se aos escritos de Aristóteles que situou a sua
“ciência das virtudes” entre a Física e a Política. A
rigor, as ciências filosóficas da práxis deveriam ser três:
a Ética, centrada no agir individual, a Economia, que
deveria estar voltada para a práxis doméstica ou familiar,
e a Política, idealizando as relações humanas dentro do
universo da cidade/Estado e das cidades entre si. O que
caracteriza a ética aristotélica, e a dos seus seguidores,
é o estudo do agir a partir de uma concepção do homem como
um animal político que possui linguagem e que age
logicamente, necessitando desenvolver-se dentro de uma
sociedade concreta - num dado período de tempo e dentro das
formas do governo de uma cidade.
O ideal de Aristóteles é o do homem virtuoso, dotado
de força, de vigor, de uma excelência relacionada aos
valores práticos e intelectuais da existência. O mais
virtuoso seria o mais capaz de realizar-se como indivíduo,
atingindo assim a felicidade, meta procurada por todos.
25
Esta felicidade supõe certo equilíbrio de bens, pois o
homem, ser complexo, não busca simplesmente um único.
Precisa de ar para respirar, de comida, de saúde, de
dinheiro, de amigos, de reconhecimento público e respeito
por parte da sociedade, e precisa também ter algum tempo
para poder dedicar-se às reflexões filosóficas,
metafísicas. Como podemos ver, o comportamento ético,
estudado pela filosofia da práxis dos aristotélicos, inclui
não somente as reflexões especificamente “morais”, mas
supõe também certa sabedoria ou prudência para o trato com
o mundo.
A segunda grande tradição ética, de estilo mais anglo-
saxônico, é a corrente do utilitarismo. Os seguidores deste
modo de pensar são muito pragmáticos, de certo modo
imediatistas (contentando-se com uma moral provisória).
Menos especulativos, seu maior valor ético deve consistir
em procurar o maior bem possível para o maior número
possível de homens. Esta formulação é útil e prática, pois
tem a vantagem de não perder tempo em especulações que
acabam atrapalhando, ou mesmo substituindo, o agir.
Entretanto, não há dúvidas de que no campo da moral ou da
ética as palavras jamais conseguem substituir as ações.
Porém, pode-se objetar que a corrente utilitarista não
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define exatamente o que seria este bem final para os
homens.
A terceira grande tradição filosófica, que atua e
vigora até hoje, é a da linha kantiana, centrada sobre a
noção de dever. Parte das idéias da vontade e do dever
discorre sobre a liberdade do homem, cujo conceito não pode
ser definido cientificamente, mas postulado sob pena do
homem rebaixar-se a um simples ser da natureza. Kant também
reflete sobre a felicidade e a virtude, mas sempre em
função do conceito de dever. É famosa, em sua obra, a
formulação do chamado “imperativo categórico”, que conduz o
indivíduo a agir de maneira que sua vontade possa valer
como princípio de uma legislação universal. Kant estava
apenas preocupado em fornecer-nos uma forma segura de agir.
Sua ética é formal, também chamada por alguns como
formalista.
Kant nos forneceu, na prática, um critério para o
“agir moral”. Se a intenção é agir moralmente (isto é,
racionalmente), o homem deve agir então de uma maneira
realmente universalizável. Este é o cerne da ética
kantiana: a universalização das nossas máximas - em si
subjetivas. A moral kantiana, de certo modo, pressupõe um
conceito de homem como um ser não somente racional. Este se
constitui, portanto, em um ser livre, ao mesmo tempo que
27
perturbado por inclinações sensíveis, que fazem com que o
“agir bom” se apresente ao indivíduo como uma obrigação que
a sua parte racional terá de exercer sobre a sensível, como
certa coação.
O dever obriga, força-nos a fazer o que talvez não
quiséssemos ou o que, pelo menos, não nos agradaria, porque
o Homem não é perfeito, e sim dual. Mas o dever, quando nos
força, obriga a fazer aquilo que favorece a liberdade do
indivíduo, pois, também, somos seres autônomos. A liberdade
humana, no sentido positivo, consiste em poder realizar o
que vemos ser o melhor, o mais racional. Essa realização
significa causar por vontade própria um efeito no mundo, ao
lado das causas naturais que pertencem ao mecanismo da
natureza. O Homem, neste sentido, é legislador e membro de
uma sociedade ética. Legislador porque é ele que vê o que
deve ser feito, e membro ou súdito, pois obedece aos
deveres que a sua própria razão lhe formula. Neste sentido,
o indivíduo não tem um preço, mas uma dignidade, e é por
isso que a segunda fórmula do imperativo categórico diz
para agirmos de modo a não tratar jamais a humanidade tão
somente como um meio, mas também como um fim em si.
A corrente kantiana é extremamente atual. A ética do
dever é moderna porque confia no homem, na sua razão e na
sua liberdade. Mostra-o como empreendedor, o que coincide
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com o surgimento e a ascensão da sociedade industrial e
capitalista. De certo modo, esta corrente é estranha ao
capitalismo consumista, na medida em que não dá grande
valor ao gozo dos prazeres, acentuando privilegiadamente os
deveres. A felicidade de que Kant fala é a da consciência
do dever cumprido, a tranqüilidade da boa consciência. Em
relação à busca dos bens materiais, o filósofo considera
que ser feliz, neste aspecto, é um dever do homem, uma vez
que frustrado ele faz mal a si e aos outros. Temos, pois,
obrigação de fazermos tudo para sermos felizes, desde que
seja tudo o que poderia ser universalizável, dentro do
respeito aos demais. Não é a felicidade a qualquer preço.
A ética, enquanto moral fundamentada por uma reflexão
- seja ela mais espontânea ou mais sistematizada -, sempre
tem um respaldo argumentativo. Ela procura mostrar-se
racional, sempre em busca da universalização, quer dos
interesses, quer de uma natureza comum, ou de um agir
segundo máximas que possam constituir-se em leis
universais. A busca da argumentação fundamentadora é
extremamente importante numa situação de pluralismo de
valores e de globalização da sociedade. Os interesses do
grupo, do clã, ou da família ou corporação não podem mais
dizer a última palavra, assim como a moral de uma confissão
29
religiosa não pode ser imposta aos que não compartilham
desta.
2.2 – A estética
O conceito de estética vem da palavra grega aisthésis
ou percepção, sensação. Constitui-se em um ramo da
filosofia que tem como objeto o estudo da natureza do belo
e dos fundamentos da arte. Estuda o julgamento e a
percepção do que é considerado belo, o conceito de obra de
arte e de criação, suas diferentes formas bem como do
trabalho artístico.
Na antigüidade, especialmente com Platão e
Aristóteles, o conceito estético3 era estudado juntamente
com a lógica e a ética. O belo, o bom e o verdadeiro
formavam uma unidade com a obra. A essência do belo só
seria alcançada criando um paralelo com o que seria bom,
tendo em conta os valores morais. Porém, na Idade Média,
surgiu a intenção de estudar os conceitos estéticos
independentes de outros ramos filosóficos.
3 Digo conceito, pois a palavra “Estética” só seria usada séculos mais tarde.
30
Estes conceitos adquiriram autonomia como ciência,
destacando-se da metafísica, da lógica e da ética, com a
publicação da obra Aesthetica do educador e filósofo alemão
Alexander Gottlieb Baumgarten. Foi a primeira vez que se
usou a denominação Ética. Baumgarten traz uma nova
abordagem ao estudo da obra de arte, considerando que os
artistas deliberadamente alteram a Natureza, adicionando
elementos de sentimento a realidade percebida. Assim, o
processo criativo estaria espelhado na própria atividade
artística. Compreendendo então, de outra forma, o conceito
grego que entendia a arte como mímesis da realidade.
“Quando os alemães criaram o conceito de estética, estavam, como uma boa parte dos intelectuais de sua época, interessados no saber. Queriam instrumentos que agilizassem e aprofundassem os conhecimentos, acreditando que, com eles, criariam um mundo melhor.”4
A estética assumiu características de uma metafísica
do belo, que se esforçava para desvendar a fonte original
de todas as belezas sensíveis: reflexo do inteligível na
matéria (para Platão), manifestação sensível da idéia (para
Hegel), o belo natural e o belo arbitrário, dentre outras.
Mas, este caráter metafísico e conseqüentemente dogmático
da estética transformou-se posteriormente em uma filosofia
4 LINS, Ronaldo Lima. A construção e a destruição do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p.49.
31
da arte, onde se procurou descobrir as regras da arte na
própria ação criadora (Poética) e em sua recepção, sob o
risco de impor construções a priori sobre o que é o belo.
Neste caso, a filosofia da arte tornou-se uma reflexão
sobre os procedimentos técnicos elaborados pelo homem, e
sobre as condições sociais que fazem certo tipo de ação ser
considerada artística.
A partir do estudo proposto sobre estética,
delinearemos sua história e nos pautaremos, nos capítulos
seguintes, na obra de Lessing, Laocoonte ou sobre as
fronteiras da pintura e da poesia, com o objetivo de
colocar em pauta a representação da dor na arte, passando
por suas diversas formas.
2.2.1 – A história da estética
Podemos dividir a história da estética em três fases.
Primeiramente caracterizou-se pela sua compreensão como a
teoria do belo, em seguida, como a teoria do gosto e
atualmente pode ser identificada como a filosofia da arte.
Platão preocupou-se em formular um conceito sobre o
belo para um melhor entendimento da estética. Para ele era
32
impossível desvinculá-lo do mundo das idéias, ou seja, o
belo existe num plano superior e não no mundo físico. A
arte limitava-se a ser uma cópia imperfeita da natureza e o
belo transcendia o homem. Este era o bem, a verdade e a
pura perfeição.
Aristóteles, apesar de seguir a doutrina platônica,
foi mais longe em sua definição. Ele concebeu a arte como
uma criação especificamente humana, acreditando que o belo
era inerente ao Homem. Todavia, separou a beleza da arte.
Isto porque, muitas vezes o feio, o estranho ou o
surpreendente converte-se no principal objetivo da criação
artística. Assim, o filósofo separou a arte em dois tipos:
a que possui uma utilidade prática, que completa o que
falta na natureza; e a que imita a natureza, mas que também
pode abordar o que é impossível e irracional. Aristóteles
introduz, então, as regras da ordem, de grandeza, de
simetria, de determinação e de unidade.
Durante a Idade Média, o cristianismo, difundiu uma
concepção de beleza que se fundamentava na identificação de
Deus, o bem e a verdade. Dois nomes que se destacam nessa
época é o de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino.
Santo Agostinho concebia a beleza como a harmonia do todo,
ou seja, com unidade, número, igualdade, proporção e ordem.
A beleza do mundo não era mais do que o reflexo da suprema
33
beleza de Deus, de onde tudo emana. A partir da beleza das
coisas poderíamos chegar à suprema. Já para São Tomás de
Aquino esta era identificada com o bem. As coisas belas
deveriam possuir três características: a perfeição, a
harmonia e a luminosidade.
No Renascimento os artistas adquirem a dimensão de
verdadeiros criadores e começa-se a desenvolver uma
concepção elitista da obra de arte. Entre as novas idéias
estéticas que então se desenvolvem podemos destacar o
relativismo estético: a beleza ligada à simbologia
geométrica e aos números, inspirada no pitagorismo e
neoplatonismo, e o estabelecimento de normas e regras fixas
para a produção e apreciação de arte.
Na segunda metade do século XVIII, a sociedade
européia atravessa uma profunda convulsão. Por sua vez, o
começo da revolução industrial, a guerra da independência
Americana e a revolução Francesa, criaram um clima propício
ao aparecimento de novas idéias sobre o belo. O
Neoclassicismo foi o principal movimento artístico deste
período, inspirado na Grécia antiga e em Roma. A arte
neoclássica foi usada de forma propagandística durante a
revolução Francesa e no Império napoleônico.
34
É neste contexto que o conceito de estética passa a
ser entendido como teoria do gosto. Para os filósofos do
século XVIII é no campo do subjetivismo que vamos encontrar
resposta para o problema do belo. A teoria do gosto nos
atenta ao fato de que o que é belo para uns pode não
significar nada para outros. Assim, o problema central
passou a ser o de saber como justificar os nossos gostos.
Kant, Descartes, Leibniz e Burke tornaram-se alguns dos
mais importantes seguidores dessa teoria.
“É um período marcado pela preocupação com a cultura clássica, como atesta o livro de Lessing, o Laocoonte, no qual o mesmo efetua um trabalho de definição dos terrenos da expressão humana. Pensava-se na arte como uma forma de harmonizar diferenças, dado que a beleza constituía, na mentalidade dominante, a diretriz principal na criação. A idéia de perfeição, junto com o entendimento do Belo, implicava em algo semelhante a uma proposta à gravidade dos problemas e dos conflitos.”5
Kant foi considerado como o último grande filósofo do
início da era moderna. É famoso, sobretudo, pela sua
concepção conhecida como idealismo transcendental, ou seja,
todos nós trazemos normas e conceitos a priori para a
experiência do mundo, os quais seriam de outra forma,
impossíveis de determinar. A filosofia da natureza humana
de Kant é historicamente uma das mais determinantes fontes
5 LINS, Ronaldo Lima. A construção e a destruição do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p.49.
35
do relativismo conceitual que dominou a vida intelectual do
século XX. Para o filósofo, os nossos juízos estéticos têm
um fundamento subjetivo, não se podem apoiar em conceitos
determinados. O critério de beleza que neles se exprime é o
do prazer. Apesar de subjetivo, o juízo estético, aspira à
universalidade.
Nos últimos dois séculos, ocorreram importantes
mudanças no entendimento da própria arte, em resultado de
múltiplos fatores, como a integração no domínio da arte de
novas manifestações criativas, que permitiu atenuar as
fronteiras entre arte erudita e arte para grandes massas.
Todos os conceitos são contestados e todas as fronteiras
entre artes são postas em causa. Ocorre uma dessacralização
da arte, tornando-se freqüentemente um mero produto de
consumo. Com isso, apareceram inúmeras teorias que defendem
novos critérios para sua apreciação.
A estética passou a ser então identificada como
filosofia da arte, o que levou ao questionamento do que
seria esta e do seu valor. Quando classificamos determinada
obra como arte, não temos em conta sua qualidade ou nosso
gosto, apenas pretendemos dizer que ela cabe na extensão de
um conceito pré-determinado. Com isso, nascem duas
definições: as implícitas e as explícitas. A primeira é as
que estão subentendidas no próprio conceito, que mais
36
facilmente se definem com atos do que com palavras. Mas
muitas das nossas definições implícitas deixam-nos
insatisfeitos. Temos a necessidade de saber mais acerca dos
conceitos definidos, algo que seja relevante para a
compreensão deste e que nos informe acerca das propriedades
mais importantes dos objetos que fazem parte da sua
extensão. Para satisfazer este desejo, recorremos às
definições explícitas. Estas, ou teorias essencialistas,
são as que defendem que existem propriedades comuns a todas
as obras de arte e que só nelas se encontram.
A teoria da arte como imitação é uma das mais antigas.
Segundo esta, uma obra é arte somente se produzida pelo
homem e ter por função imitar algo. Sua característica
própria não reside no fato de defender que uma obra de arte
deve ser produzida pelo homem, mas na idéia de que para ser
arte deve partir da mímeses. Contudo, esse conceito nos
levaria à exclusão de inúmeras expressões artísticas, pois
apesar de muitas obras serem imitações, inúmeras são
aquelas que não se incluem nesse conceito. Ficamos, deste
modo, com uma teoria que não responde aos requisitos
anteriormente expostos acerca do que deve ser uma definição
explícita, pois defende a mímesis como única condição
necessária para a arte.
37
Insatisfeitos com a teoria da arte como imitação,
muitos filósofos e artistas românticos do século XIX
propuseram uma definição que procurava se libertar das
limitações da teoria anterior, ao mesmo tempo em que
deslocava para o artista, ou criador, a chave da
compreensão da obra. Trata-se da teoria da arte como
expressão. Segundo esta, uma obra só é arte se exprime
sentimentos e emoções do artista. São muitos os testemunhos
destes que reconhecem a importância de emoções sem as quais
as suas obras não teriam certamente existido. Mais do que
isso, se é verdade que a arte provoca em nós determinadas
emoções, então é porque estas existiram no seu criador e
deram origem a tais obras.
Em relação ao critério de classificação temos os
mesmos problemas dos da teoria da mímesis, a diferença é
que, neste caso, uma maior quantidade de obras pode ser
classificada como arte, mas continuamos a não abranger
todas.
Verificando que a diversidade de obras é bem maior do
que as teorias da imitação e da expressão, uma mais
elaborada e também mais recente, conhecida como teoria da
forma significante ou formalista, decidiu abandonar a idéia
de que existe uma característica comum que possa ser
encontrada em todas as obras de arte. Esta, defendida,
38
entre outros, pelo filósofo Clive Bell, considera que não
se deve começar a procurar aquilo que define a arte na
própria obra, mas sim no sujeito que a aprecia. Isto não
significa que não haja uma característica comum a todas,
mas que podemos identificá-la apenas por intermédio de um
tipo de emoção peculiar, a que chama emoção estética, que
elas e só elas, provocam em nós. Uma obra é arte se provoca
nas pessoas emoções estéticas.
Segundo esta teoria, as obras de arte provocam
emoções, mas diferentemente da teoria da arte como
expressão. A formalista centra as atenções em quem as
aprecia e nos seus sentimentos. Tendo em conta a definição
dada, reparamos que a característica de provocar emoções
estéticas constitui, simultaneamente, a condição necessária
e suficiente para que um objeto seja uma obra de arte. Mas
se essa emoção peculiar chamada “emoção estética” é
provocada pelas obras, e só por elas, então deve haver
alguma propriedade também peculiar a todas elas, que seja
capaz de provocar tal emoção nas pessoas. Segundo Clive
Bell essa característica é a forma significante.
Mesmo sendo abrangente, esta teoria apresenta muitos
problemas. Uma dificuldade é a de conseguir explicar em que
se consiste realmente a tal “forma significante”,
responsável pelas emoções que sentimos. Clive Bell,
39
referindo-se apenas ao caso da pintura, diz que a forma
significante reside numa determinada combinação de linhas e
cores, mas não a refere especificamente. A idéia que fica é
que a forma significante não serve para identificar nada, e
mesmo que na pintura seja a combinação de cores e linhas,
nas restantes formas de arte teria obrigatoriamente de ser
outra coisa, e então não temos uma propriedade comum, mas
várias propriedades.
Podemos concluir que nenhuma destas teorias responde
de forma satisfatória à definição de arte. Alguns filósofos
optaram então por outras não essencialistas e alguns
decidiram simplesmente abandonar a idéia de que esta pode
ser definida.
Observemos que há uma dificuldade em definir a arte
por métodos objetivos, o que nos leva a entrar em sua
psicologia, no intuito de direcionar nossa atenção para a
sensibilidade estética.
O caráter estético de um objeto não é a sua qualidade,
mas sim a atitude que assumimos em face desse, a relação
subjetiva entre o expectador e o objeto. As representações
artísticas são tão diversas que não podem ser estudadas em
sua unidade. Só o conhecimento do espírito, da consciência
estética face à obra, permite atingir a universalidade
40
necessária. Os momentos estéticos podem ser divididos em
três partes: a contemplação, a criação e a interpretação.
Proust e sua literatura defendem que o verdadeiro
sentido do prazer diante de uma obra dá-se quando esta pode
suscitar impressões em seu receptor, capáveis de fazê-lo
reestruturar o sentido de sua existência. As conclusões do
autor não representam um trabalho pronto para o receptor,
elas são somente ferramentas para sua própria experiência
existencial.
Às impressões que movem nossos sentimentos
convencionou-se chamar de sentimentos estéticos. Cada um de
nós sente o seu prazer estético onde o encontra, de acordo
com o gosto pessoal. A contemplação não é exclusiva do
receptor, o artista contempla a obra antes sequer de criá-
la. O artista começa por observar, por idealizar, antes de
conceber, sendo assim o primeiro a passar pela experiência
da observação.
Tendo por base a subjetividade estética, podemos dizer
que existem três maneiras de reagir diante da arte, ou
seja, de ter uma consciência desta. A primeira faz com que
o objeto apenas provoque indiferença ou um simples agrado;
a segunda com que provoque um prazer real, mas extremamente
subjetivo, que depende da nossa disposição e predisposição;
41
e a terceira com que nos faça sentir uma alegria interior
ao ser contemplado, que nos oferece a arte como êxtase.
Contudo, o homem não se limita a contemplar, ele
também cria, procura não só expressar as suas emoções, como
as mostra de forma com que os outros as possam experimentar
quando as contemplam. Esta predisposição para produzir e
também para valorizar em termos emotivos os objetos e as
situações, constitui o que se designa por atitude estética.
A função social da estética ocupa uma posição
importante na vida do indivíduo e da sociedade. Qualquer
objeto ou qualquer ação, seja um processo natural ou uma
atividade humana, podem chegar a serem portadores da função
estética, não precisando por isso ser arte. Sabemos também
que os limites que separam o estético do extra-estético
variam de um indivíduo para outro. Mas quando substituímos
o ponto de vista individual pelo do contexto social,
verificamos que apesar de todos os matizes individuais e
fugazes, existe uma localização consideravelmente
generalizada da função estética no mundo dos objetos e dos
processos. Quando pensamos quer no tempo, quer no espaço,
ou mesmo de uma formação social para a outra, chegamos à
conclusão de que com estas transformações muda também a
localização da função estética e a delimitação da sua
esfera.
42
Como já foi dito, o belo e o gosto são conceitos muito
subjetivos. Mesmo que existam normas e regras, elas são
frágeis e podem ser quebradas. Apesar do estudo da estética
implicar teorias e argumentos, cada um de nós avalia, julga
e sente de formas diferentes, e, no final, aquilo que nos
une é o prazer estético que sentimos.
As ambigüidades estéticas são provocadas no sujeito
quando suscitados sentimentos contraditórios, como o prazer
e o desconforto, atração e repúdio, tristeza e êxtase.
Estes podem ser provocados simplesmente pela desordem ou
pelo conteúdo da mensagem que a obra nos transmite. Na
pintura podemos observar obras belas e ao mesmo tempo
desconfortáveis, assim como na fotografia as imagens de
catástrofes não deixam de ser belas, como a erupção de um
vulcão ou imagens de pobreza ou sofrimento. Na literatura,
também, e, sobretudo, nos deparamos muitas vezes com esse
desconforto ambíguo.
43
3 – A dor
Do latim dolore, dor significa sensação desagradável,
variável em intensidade e em extensão, produzida pela
estimulação de terminações nervosas ou por sofrimento
moral, mágoa, aflição. A dor pode ser provocada por agentes
externos ao corpo ou internos à consciência. Sendo que, por
muitas vezes, a dor física parte de uma dor moral.
A dor convencional faz parte de um sistema de alarme
do corpo. Ela nos alerta para o fato de que alguma coisa
está nos machucando, nos compelindo a solicitar ajuda. Sua
definição nem sempre é feita de forma satisfatória. Alguns
a definem como a experiência sensitiva provocada pelo
estímulo que lesa os tecidos ou ameaça destruí-los,
experiência definida introspectivamente por cada um. Essa
definição é insatisfatória, pois a relação entre a dor e a
lesão é tão variável que não se poderia definir a primeira
exclusivamente em termos de lesão. Com isso, estaríamos
ignorando a maior parte dos fatos clínicos e psicológicos
conhecidos e não considerando a dimensão afetiva, a
motivação e a cognição, como partes integrantes da
experiência.
A noção de dor como resultante e causadora de uma
perturbação global do indivíduo está presente na cultura
44
Oriental, enquanto no Ocidente esta visão foi esquecida até
recentemente. A medicina chinesa, através da Acupuntura,
guarda fortemente desde sua origem o princípio que, para
ser eficaz ao se tratar a dor, é necessário reconhecer,
considerar e tratar o indivíduo em sua totalidade.
Outra definição a apresenta como uma sensação pessoal
íntima do mal, ou até mesmo como um estímulo nocivo que
assinala uma lesão atual ou eminente. Porém, esse tipo de
definição confunde a causa e a experiência, o fato físico e
o processo psicológico complexo. Uma melhor apresentação
seria baseada no reconhecimento explícito do caráter antes
flutuante da relação entre dor e lesão, e na integração da
dimensão afetiva da experiência dolorosa, que se junta à
sensorial. Temos que pensar na dor como algo que implica
não só o campo físico, mas a miséria, a angústia, o
desespero e o sentimento de urgência que fazem parte de
certas experiências.
Pelo fato de ser uma sensação íntima e pessoal,
impossível conhecer com exatidão a dor do outro. Assim pela
diversidade das experiências dolorosas, explica-se porque
tem sido impossível, até hoje, encontrar uma definição
satisfatória.
A palavra “dor” representa uma categoria de fenômenos,
compreendendo uma multidão de experiências diferentes e
únicas, tendo causas diversas e caracterizadas por
45
qualidades distintas, variando segundo certo número de
critérios: somato-sensoriais, viscerais, afetivos,
culturais e cognitivos. Ela possui várias intensidades,
denominadas pelo próprio indivíduo. Esta sensação pode ser
rápida, desconfortante, desolante, horrível e atroz. Para
algumas culturas, este sintoma também pode ser associado à
expiação de culpa.
“(...) o mundo interior depende do exterior, numa espécie de influência mútua (...) Se a destruição se proclama fora, terá lugar na interioridade de cada um, determinando atitudes que a pessoa, diante de si mesma, custa a reconhecer.”6
A dor física, muitas vezes, caracteriza-se num
prolongamento da psicológica. Ela é gerada no inconsciente
do sujeito e sem encontrar nenhum ponto de fuga, é
somatizada pelo corpo. A dor da alma nasce da angústia do
sujeito, esta advinda de algum sentimento de culpa. A
expiação, que gera o transtorno, é principalmente advinda
dos cânones religiosos ou familiares. Uma pessoa sofre não
apenas pelos danos físicos que possui, mas também pelas
conseqüências emocionais, sociais e espirituais que a vida
as submete.
6 LINS, Ronaldo Lima. A construção e a destruição do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p.21.
46
3.1 - A ética da dor
Vimos no estudo anterior que a ética kantiana é
pautada sobre a noção de dever. Podemos concluir que o
“agir de forma boa” do indivíduo é baseado nesse dever, e
que isso pode significar certa castração da parte racional
à sensível. A busca e o alcance da felicidade, também
refletida por Kant, devem, assim, passar pelo
reconhecimento da alteridade. Sendo assim, veremos o que
Sartre diz sobre a felicidade e a responsabilidade perante
os outros indivíduos.
“O outro é o estranho, o desconhecido, a ameaça constante, o risco, a impossibilidade da paz. É o motivo que nos leva a desejar conhecê-lo, considerando o conhecimento uma forma de domínio capaz de espantar fantasias de insegurança e construir (quem sabe?) um mundo interior menos inquieto.”7
Muitas teorias mostram a questão da dor, alimentada
por uma angústia da condição humana que nos é refletida na
literatura. Dentre outras, optamos por levantar as questões
de Sartre e do existencialismo.
Em O Existencialismo é um Humanismo vemos o homem como
único responsável por suas ações. Sartre defende que o
sujeito primeiramente existe, se descobre, surge no mundo,
7 LINS, Ronaldo Lima. A construção e a destruição do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p.31.
47
e só depois se define. Ele é como se concebe, como se
deseja, não é nada mais do que o que faz. Para o filósofo,
nada existe anteriormente a este projeto, o homem será o
que tiver projetado ser. Assim, o indivíduo tem a total
responsabilidade pela sua existência.
A escolha do homem implica numa escolha coletiva, o
reconhecimento do outro. O sujeito não é responsável pela
sua restrita individualidade, mas também por todos os
outros indivíduos. A partir do momento que ele escolhe um
parâmetro, uma moral para si, está de alguma forma
pormenorizando o que encontrar fora disso. É a criação de
uma imagem do homem como julgamos que ele deve ser.
Dessas questões existenciais, Sartre define o conceito
de angústia, ou seja, o reconhecimento da alteridade e da
responsabilidade perante o outro. Sendo esta última em
proporções muito maiores do que podemos supor, pois ela
envolve toda a humanidade. O homem torna-se angustiado
quando se vê ligado a um compromisso, que não é apenas o de
escolher ser, mas também o de legislar, pronto para
escolher a humanidade inteira.
Segundo essa filosofia, a angústia não leva jamais ao
quietismo ou à inação. Ela é a condição de sua ação. Numa
pluralidade de possibilidades deve-se fazer uma escolha, a
angústia faz parte da ação. O existencialismo é justamente
oposto ao quietismo, visto que declara que só há realidade
48
na ação. O homem não é senão o seu projeto, só existe na
medida em que se realiza, não é, portanto, nada mais do que
o conjunto dos seus atos.
A descoberta da alteridade e a condição angustiante
desta levam à dor dilacerante, que implica sua
responsabilidade não somente com suas escolhas e fracassos,
mas perante todos que o cercam. A angústia surge como
opressão interior advinda do reconhecimento da
responsabilidade de construir não apenas a si, mas também a
toda humanidade. Eu, como um prolongamento da sociedade e
de seus participantes, não posso me preocupar somente com
minha individualidade. É a inquietação conseqüente da
escolha projetada no nada.
"A angústia é de fato a experiência do Nada e, portanto, ela não é um fenômeno psicológico. É uma estrutura existencial da realidade-humana, nada mais do que a liberdade tomando consciência de si mesma, como sendo seu próprio Nada." 8
Cito também Kierkegaard como complemento das idéias
anteriores:
"A relação da angústia com seu objeto, com uma coisa que não é nada (e dizemos também de um modo
tópico que estamos angustiados por nada)" 9
8 SARTRE, Jean-Paul. Diário de uma Guerra Estranha: novembro 1939, março de 1940/ Jean-Paul Sartre; tradução Aulyde Soares Rodrigues e Guilherme João de Freitas Teixeira. – 2 ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p.357. 9 KIERKEGAARD, S. O conceito de angústia/ Sören Kierkegaard; tradução Torrieri Guimarães. – São Paulo: Hemus, 1968, p.85.
49
A Náusea10, romance de Sartre - como exemplo ao que
discutimos -, nos apresenta um personagem central que
mergulha em angústias originadas no desconforto com o "eu",
sofrendo com suas atitudes ou falta das mesmas. Escrito em
forma de diário, o romance, através de seu narrador, nos
oferece um discurso suturado por conceitos existenciais que
apresenta a angústia como a incessante reflexão humana
sobre o agir, através de atitudes gratuitas, em direção ao
Nada. A solidão de Roquentin frente à responsabilidade de
suas escolhas faz com que a presença do outro e o seu
reconhecimento seja objeto fundamental para impedir sua
queda no abismo existencial.
Podemos conceber o romance de Sartre como uma
apresentação da dupla face da angústia: o mostrar do ser
abandonado no mundo, responsável pela suas decisões; e do
temor, que se reflete como essa angústia. As opções
ultrapassam o limite do sujeito, atingem conseqüências, que
escapam do nosso controle e trazem a inquietação pelo
futuro vazio que anuncia.
Podemos observar em romances de Sartre a preocupação
em apresentar um enredo que provoque o pensamento do
leitor, ao mostrar não apenas uma simples ficção, mas
também um laboratório filosófico em que personagens
10 SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
50
constroem o discurso do mundo e revelam em ações as
principais discussões do autor.
3.1.1 - O sujeito e sua vontade
O reconhecimento da alteridade e a necessidade da
convivência com o outro num âmbito social preconiza o
seguimento de regras e tabus que geram cada vez mais dor,
na medida em que castram, de alguma forma, a realização do
desejo do indivíduo.
“O sentido mais próximo e imediato de nossa vida é o sofrimento, e se não fosse assim, nossa existência seria o maior dos contra-sensos, pois é um absurdo imaginar que a dor infinita, que nasce da necessidade essencial à vida, da qual o mundo está pleno, é meramente acidental e sem sentido. Nossa receptividade para a dor é quase infinita, mas o mesmo não ocorre com a nossa receptividade para o prazer, que tem limites estreitos. É a infelicidade geral que é a regra.”11
Schopenhauer é o filósofo que afirma que o princípio
metafísico passa a ser regido por um poder completamente
irracional. Este criou uma filosofia baseada no
irracionalismo sistemático, onde sua teoria baseia-se na
máxima de que a inteligência humana é essencialmente um
instrumento dos interesses pragmáticos da vontade. O mundo,
na sua essência, independente da consciência, é vontade. O
11 SCHOPENHAUER, Arthur. Da morte/ Metafísica do amor/ Do Sofrimento do Mundo. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004, p.113.
51
conhecimento imediato do meu corpo, a minha intimidade,
revela-se a mim como vontade. Meu corpo me é concebido de
duas maneiras diversas, uma como representação, submetido
às leis de todos os fenômenos que me aparecem; e como algo
imediatamente conhecido que se define por meio do termo
"vontade". Ele nada é senão a vontade que me aparece
exteriormente em forma de corpo. Sei-me, intimamente, como
um ser que quer, que deseja, e que nunca deixa de querer e
de desejar.
O mundo, como Vontade e Representação, é um só, visto
de dois lados: um, pela intimidade real, como ela me é dada
na intuição imediata do meu próprio corpo, outro, da
exterioridade fenomenal ou aparente, segundo as formas
subjetivas da minha inteligência. O mundo é, portanto, na
sua essência, vontade. Porém, irracional e cega, pois a
inteligência é só uma manifestação tardia dessa. Um mundo
que, na sua essência, é vontade de viver, é também de
sofrimento e dores, pois essa vontade irracional não
encontra, fora de si, nada que seja último fim onde pudesse
cessar. O próprio ser da vontade é um querer incessante e
eterno, um ansiar que nunca pode ser satisfeito, pois a
satisfação seria a própria contradição lógica desta.
Todo desejo é sofrimento, pois é a expressão de algo
que nos falta. E enquanto esse desejo é infinito e eterno,
a satisfação é limitada e breve. Do desejo satisfeito já
52
nasce outro, e uma vez que alcançamos um estado de
saciedade, surge o tédio, tortura de igual grandeza.
A teoria de Schopenhauer demonstra um grande
pessimismo, já que a vontade não possui metas e gera dor. A
felicidade seria apenas uma interrupção temporária de um
processo de infelicidade maior, pois não existe satisfação
durável.
Dentro de nossa linha de pesquisa, podemos dizer que
essa vontade e sua satisfação encontram barreiras na vida
social do sujeito, que as deve reprimir em vista a sua
responsabilidade em relação ao outro. A castração gera dor
e conseqüente angústia nas escolhas diárias do indivíduo em
direção à liberdade e a conseqüente premonição do Nada. A
fuga necessária dessa dilaceração anunciada é a busca de
uma forma de sublimação dessas rupturas do desejo. Essa
sublimação é oferecida de diferentes formas por essa mesma
sociedade castradora ou pelo subconsciente do próprio
indivíduo.
3.1.2 - O mal-estar
Em Mal-estar na Civilização, Freud mostra os vários
aspectos psicológicos trazidos ao ser selvagem pelo
processo civilizatório que o torna Homem. O delírio
coletivo que introduz a cultura ao selvagem, por meio do
53
que hoje se pode reconhecer como aparelhos ideológicos de
Estado, priva o homem da satisfação de parte dos desejos e
pulsões. Ao mesmo tempo, gera satisfação ou mal-estar pela
identificação (ou não) com o outro, o reconhecimento de si
como sujeito e a preservação da própria vida e da dos
demais da espécie.
A cultura, que dá ao bicho o nome de humano, leva o
ex-selvagem à noção de si (sujeito) e do outro (objeto).
Cria-se o desejo - no lugar das pulsões instintivas - e
seus objetos, como o amor, a felicidade, a tristeza, a
frustração, a doença, a saúde, dentre outros. Reprime a
agressividade, inventa a culpa, e gera doenças na alma e no
corpo. Destrói e constrói dando sentido à vida, já que dela
passa a ter consciência. Daí é formado, então, o aparelho
psíquico: o superego, consciência da lei externa, que
introduz o princípio de realidade; o ego, que faz a
mediação entre os mundos externo e interno; e o id, mundo
instintivo das pulsões, mediado pelo segundo e reprimido
pelo primeiro.
O custo do processo civilizatório, portanto, é o
sofrimento do dar-se conta dos sentimentos, sem dar conta
necessariamente de todos eles. Evitar o sofrimento ou o que
o gera coloca o alcance do prazer em plano inferior. A
energia investida pelo ego à satisfação de seus desejos, ao
encontrar a interdição do mundo externo, é reinvestida na
54
busca de medidas paliativas e construções auxiliares.
Dessas podemos citar, como exemplo, o otimismo da religião;
satisfações substitutivas, como a sublimação oferecida pela
arte; e o uso de substâncias tóxicas, que dão acesso a um
mundo fantástico e prazeroso, em lugar do mal-estar
provocado pelo princípio de realidade.
A civilização é um delírio ao qual aderimos
involuntariamente ao nascermos. Portanto, somos
constituídos pelos fragmentos dos outros. Nossa busca
eterna e que causa dor está no que nos constitui de
verdade, e o que é a noção de verdade e do real.
Vimos em Schopenhauer que o homem vive enquanto
deseja, e que se a conquista dessa paixão a faz findar,
logo esta deverá ser substituída por outra. Em Mal-estar na
Civilização, Freud desenvolve a teoria da relação entre
pulsão e civilização, delineando assim, os destinos do
desejo na modernidade. O filósofo preocupou-se em estudar o
estatuto do sujeito nela, circunscrevendo seu mal-estar.
Ao pensar nas ameaças naturais sofridas pelo homem e
nos horrores que podem ser gerados nas suas relações com os
outros, podemos delinear uma imagem de fragilidade do
sujeito que leva ao desamparo. Esse sentimento, para
Birman, é algo de ordem originária para o indivíduo, o que
marca para sempre a subjetividade humana de maneira
55
“indelével e insofismável”12. O desamparo seria aquilo que
instaura o mal-estar na modernidade, como a figura de
Medéia, que mata e engole os próprios filhos. Sob sua
força, o indivíduo se encontra diante da pressão constante
das forças pulsionais, que o perpassam de diferentes
formas. Para suportar tanta dor advinda da angústia das
pulsões e do desamparo, o sujeito é obrigado a constituir
um campo de objetos capazes de oferecer um possível
horizonte de satisfação, ou seja, ele deve constituir
efetivas possibilidades de sublimação, através da
construção de uma forma singular de existência.
3.1.3 - Do Tabu ao Totem
Partiremos dos conceitos de Tabu e Totem, também
preconizados por Freud, para entender melhor o caminho da
libertação buscada por todos nós.
“O apagamento da angústia não se consuma por inteiro. Sobram bordas de inquietação e de susto, levando-nos à sensação de que seguimos à beira de um abismo, num equilíbrio que tem os dias contados.”13
Para Freud, as restrições do tabu diferem-se das
proibições religiosas ou morais. Não são baseadas em
12 Denominações dadas por Birman. 13 LINS, Ronaldo Lima. A construção e a destruição do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p.18.
56
nenhuma ordem divina, mas impõem-se por sua própria conta.
As proibições não têm fundamento e são de origem
desconhecida. Embora sejam ininteligíveis para nós, para
aqueles que por elas são dominados são aceitas como coisa
natural. O tabu, em sua tradição, nada mais é que o temor
objetivado do poder demoníaco que se esconde em um objeto,
fazendo-se proibido qualquer ato que possa provocar esse
poder. Ao que tudo indica, o tabu foi, gradativamente,
transformando-se numa força com uma base própria,
independente da crença em demônios.
“Peu à peu le tabou devient une puissance indépendante, distincte du démonisme. Il devient la contrainte imposée par la tradition et la coutume et, en dernier lieu, par la loi.”14
O tabu consiste nas coisas e acontecimentos que nós
não soubemos “digerir”, por algum motivo desconhecido à
consciência, e que permaneceu recalcado no inconsciente,
podendo, em muitas vezes, ser trazido à tona por
acontecimentos cotidianos. Também pode caracterizar-se - e
agora fazendo uma analogia à idéia dos demônios – em certos
medos “canonizados” pela sociedade, que infere na vida de
cada indivíduo participante dela.
Outro conceito também usado por Freud e que
funcionaria como a “cura”, a libertação do tabu, é o totem.
14 FREUD, Sigmund. Totem et Tabou. Paris: Éditions Payot, 1980. p.35.
57
Culturalmente, o totemismo caracteriza-se como um sistema
que ocupa o lugar da religião entre certos povos primitivos
da Austrália, da América e da África, provendo a base de
sua organização social.
Freud acredita que, provavelmente, em alguma ocasião,
a cultura totêmica em toda parte preparou o caminho para
uma civilização mais adiantada, representando, assim, uma
fase de transição entre a era dos homens primitivos e a era
dos heróis e deuses. O totem constituía-se numa classe de
objetos materiais que indivíduos de determinada crença
encaravam com supersticioso respeito, acreditando existir
entre ele e todos os membros da classe uma relação íntima e
inteiramente especial. A vinculação entre um homem e seu
totem é mutuamente benéfica, o totem protege o homem e este
mostra seu respeito por aquele de diversas maneiras.
Essa idéia cultural, tanto como algo material ou
religioso, transformou-se para Freud em seu conceito
psicanalítico de sublimação. Chegar ao totem é transpor as
barreiras do tabu através da canalização das energias por
outra via, que seria o processo da sublimação de algum
recalque inconsciente, de algum tolhimento sofrido pelo
indivíduo.
Através desses conceitos freudianos que permeiam a
psicanálise, podemos dar um novo olhar ao conceito de dor e
angústia, antes perpassado pela teoria de Sartre e o
58
existencialismo. Há grandes tabus em nossa sociedade e cada
indivíduo precisa passar por eles da forma mais amena que
lhe é possível. A sublimação das castrações do nosso desejo
pode tomar diferentes formas em nossa sociedade atual. A
busca pela religião, a devoção a certo tipo de atividade, a
total entrega ao trabalho e até mesmo a loucura são opções
de desvio do desejo. A busca incessante do indivíduo é pelo
desprendimento da dor insuportável da existência, e passar
desta à liberdade da alma.
Valemo-nos da teoria de Lessing, em sua obra
Laocoonte, para exemplificar a figuração da dor nas
representações da arte. Sua crítica envolve a escultura
grega, em um episódio da guerra de Tróia, e as teorias
estéticas sobre a beleza e o feio.
3.2 – A estética da dor
Diante do conceito de estética, posteriormente
apresentado e da concepção de belo, discorreremos, agora,
sobre a teoria de Lessing, a propósito da representação da
dor na poesia e nas artes em geral, baseada na sua
comparação entre as duas representações de Laocoonte - no
mármore e no papel. Lessing se utiliza da imagem de
Laocoonte, representada pela poesia de Virgílio e pela
59
escultura, para traçar uma analogia entre essas duas
últimas manifestações da arte.
O grupo de Laocoonte é uma escultura em mármore, hoje
em dia exposta no Museu do Vaticano, em Roma. A estátua
representa Laocoonte e seus dois filhos, Antiphantes e
Thymbraeus, sendo estrangulados por duas serpentes. Esse
episódio dramático da Guerra de Tróia é também relatado na
Ilíada, de Homero e na Eneida, de Virgílio. Laocoonte,
pressentindo o perigo que o cavalo de madeira representava
para a cidade, protestou contra a idéia de levá-lo para
dentro das muralhas. Sua desconfiança atrai a cólera de
Minerva que o lança uma dor horrível, fazendo-o ficar cego.
Já que, mesmo cego, ele não pára de aconselhar a destruição
do cavalo, a deusa envia duas serpentes que atacam apenas
os dois filhos de Laocoonte, que, estando cego, não os pode
ajudar. As serpentes dilaceram as crianças e enfiam-se de
volta na terra.
Em seu prefácio, o autor fala de um efeito semelhante
entre a pintura e a poesia, quando ambas representam para
nós tanto a aparência como a efetividade, elas nos iludem e
a ilusão gera prazer. Ao penetrar no interior desse prazer,
descobrimos que elas fluem da mesma fonte: a beleza, que
abarca regras gerais. Refletindo sobre o valor e a
repartição dessas regras, podemos notar que umas competem
mais à pintura e outras à poesia. Devemos, aqui, ressaltar
60
que Lessing compreende sob o nome de pintura as artes
plásticas em geral.
O autor utiliza-se de uma definição de Voltaire que
diz que a pintura seria uma poesia muda e a poesia uma
pintura falada, para apontar o erro de muitos críticos de
arte quando tentam encaixar a poesia nas fronteiras
estreitas da pintura, ou deixam esta preencher toda a larga
esfera da poesia. O equívoco está em compreender a mesma
concepção de certo e errado para ambas.
Em seu livro, Lessing pretende trabalhar esses juízos,
que em sua concepção, são infundados e errôneos.
O autor nos mostra a teoria de Winckelmann, que vê
como um ponto distintivo das obras gregas uma nobre
simplicidade e uma grandeza silenciosa, tanto no
posicionamento como na expressão do ser representado. Esta
grande e plácida alma expressa nas figuras dos gregos é
vista no Laocoonte. Apesar do sofrimento extremo, a dor que
se revela em todos os músculos, exterioriza-se sem nenhuma
fúria. A tolerância da dor engrandece a alma, e Laocoonte
sofre como um grande homem. Para Winckelmann, aqui o
artista ficou abaixo da natureza e não atingiu o patético
da dor, o que faz parte de uma sabedoria especial.
Para Lessing, no que compete à falta de fúria no
semblante de Laocoonte e ao brilhantismo do artista, a
teoria de Winckelmann está correta, mas é divergente quando
61
afirma que os gregos sentiam e temiam, que externavam suas
dores e aflições. A expressão de uma alma grandiosa não
pode ser a causa para que o artista não imite o grito no
mármore. Virgílio, em seu poema, expressa esse grito com o
melhor propósito, comprovando que o gritar como forma de
dor corporal pode coexistir inteiramente com a grandeza da
alma. É assim que Lessing acusa Winckelmann de conceber sua
teoria se afastando da representação poética.
“O grito é a expressão natural da dor corporal. Os guerreiros de Homero não raro caem no chão aos gritos. A Vênus arranhada grita alto, não para a expor com esse grito como a deusa branda da volúpia, mas antes para fazer justiça à natureza sofredora. (...) Por mais que Homero, de resto, eleve os seus heróis acima da natureza humana, eles permanecem, no entanto, sempre fiéis a ela quando se trata das sensações de dor e de ofensa (...) Segundo os seus atos trata-se de criaturas de tipo mais elevado; segundo os seus sentimentos, verdadeiros humanos.”15
A pintura é uma arte que imita corpos em superfície. O
artista grego pintava apenas o belo, como um exercício, seu
deleite era o êxtase provocado aos seus observadores. Nos
antigos a beleza era a suprema lei das artes plásticas. O
que é compatível deve ao menos estar subordinado a ela, o
que não for, deve ser descartado. Ao contrário, os artistas
modernos não se preocupam com o belo, com o que está
representando, mas com a forma perfeita da imitação.
Lessing defende que há graus de paixões que se mostram
através de manifestações feias e nos colocam em posições
15 LESSING. Laocoonte. p.84-85.
62
tão violentas que anulam qualquer traço de beleza. Com
isso, os artistas antigos se abstinham completamente dessas
ou se colocavam em posição inferior. A cólera era reduzida
à seriedade. O encobrimento é um sacrifício que o artista
ofereceu à beleza. Não só conduziram a expressão sobre os
limites da arte, mas antes a submeteu à sua primeira lei: a
beleza.
Em Laocoonte visou-se a suprema beleza sob as
condições aceitas da expressão da dor. Esta foi obrigada a
reduzir-se, a suavizar-se. O grito transformou-se em
suspiro, para que o rosto não tomasse a forma do feio e do
desprezível.
3.2.1 – A dor sem o belo
A arte nos tempos modernos conquistou fronteiras
incomparavelmente mais amplas. A lei primordial seria a
verdade e a expressão, o belo torna-se apenas uma pequena
parte. Assim, o mais feio da natureza é transformado num
belo da arte.
A realização do efeito da arte exige um espaço para o
desdobramento do pensar. Mostrar o extremo significa atar
as asas da fantasia, por não conseguir escapar da impressão
sensível, ocupando-se de imagens fracas sobre as quais a
imaginação teme a plenitude da expressão como sua
63
fronteira. A obra de arte deve fazer com que o espectador
queira ver mais, sem se abrir completamente.
“Quando, portanto, Laocoonte suspira, a imaginação pode escutá-lo gritar; se, no entanto, ele gritasse, ela não poderia nem subir um degrau acima na sua representação, nem descer um degrau abaixo, sem olhá-lo num estado mais tolerável e, portanto, mais desinteressante. Ela o escuta apenas gemendo ou já o vê morto.”16
Lessing fala do efeito da beleza corpórea na poesia.
Aquela advinda da perfeição constitui um dos meios menos
importantes que o poeta pode utilizar-se para tornar seus
personagens interessantes para nós. As qualidades do herói
devem nos ocupar de tal forma que nem sequer pensaremos na
sua figura corporal. Quando Laocoonte de Virgílio grita,
não pensamos se ele precisa de uma boca grande e se essa o
tornará feio. Os clamores constituem um traço sublime ao
ouvido, por mais que sua face apresente qualquer falta de
beleza.
O Lacoonte que grita é justamente aquele que já
conhecemos e nos afeiçoamos como o patriota mais cordato e
o pai mais afetuoso. Os heróis devem mostrar sentimento e
exteriorizar a sua dor, permitindo que a simples natureza
atue sobre eles. Se derem mostras de adestramento ou
pressão, nos deixarão indiferentes e poderão, no máximo,
suscitar admiração.
16 LESSING. Laocoonte. p.100.
64
Extrapolando a visão de Virgílio, como um poeta
narrador, o autor decide falar também do dramático. O drama
é destinado à pintura vivaz do ator, devendo, por isso,
ater-se de modo mais rígido às leis da pintura material.
“Quanto mais o ator se aproxima da natureza, tanto mais sensivelmente os nossos olhos e ouvidos devem ser violentados; pois é irrefutável que eles o são na natureza, quando ouvimos manifestações da dor tão altas e violentas.”17
Ainda com o pensamento da descrição do indivíduo
voltado para a verdade da natureza, Lessing não se
preocupou com o sujeito como pluralidade. O conflito
existencial do homem será tratado por outros filósofos, o
que mudará ainda mais o conceito de beleza. Ainda que
Lessing trate o belo como um retrato fiel da natureza, ele
o alia à virtude, característica essa que não predominará
em heróis da modernidade.
3.2.2 - As implicações do feio
Lessing discorre também sobre o feio e suas
implicações na arte. O crítico afirma que uma única parte,
não apropriada, pode destruir o efeito harmonioso de outras
que tendem para a beleza. Sendo assim, o feio não poderia
ser um objeto da poesia. Contudo, Homero expõe a feiúra
17 LESSING. Laocoonte. p.106.
65
extrema no Tersites, o que pode ser justificado por Lessing
que propõe que nas descrições do poeta o feio torna-se uma
aparição de imperfeições corpóreas menos repugnantes, o que
deixa de ser feiúra, pois se torna utilizável pelo poeta. O
que este não pode usar por si mesmo ele utiliza como um
ingrediente para gerar e reforçar certos sentimentos
mistos, com os quais deve entreter na falta de sentimentos
puramente agradáveis. E esses sentimentos mistos são o
ridículo e o terrível.
Tersites torna-se ridículo, não somente pela feiúra,
mas pelo contraste entre perfeições e imperfeições. Um
corpo mal formado e uma bela alma são para Lessing como
óleo e vinagre, por mais que se misturem, permanecem
separados ao paladar. Somente, quando o corpo deformado é
ao mesmo tempo delicado e doentio, desgosto e comprazimento
coexistem. Em Tersites vemos a feiúra e o inofensivo, que
juntos geram o ridículo. Assim como o terrível vem da
feiúra prejudicial.
Lessing leva a questão do uso da feiúra das formas
pelo poeta ao campo da pintura. A pintura enquanto destreza
imitadora pode expressar o feio, mas enquanto bela arte não
o quer mostrar. Nem todos os sentimentos desagradáveis
despertam gosto na imitação. As representações de medo,
tristeza e terror podem excitar somente desprazer na medida
em que tomamos o mal como algo permanente. A feiúra
66
violenta contraria nosso gosto pela ordem e harmonia, e
desperta repugnância sem levar em consideração a existência
efetiva do objeto no qual nós a percebemos.
A feiúra de Tersites desagrada menos, pois possuímos a
faculdade de abstrair o feio e nos deleitar simplesmente
com a arte do pintor. Mas, para Lessing esse deleite será
interrompido a todo o momento pelo pensamento de como a
arte foi utilizada de modo ruim. Aristóteles dá outro
motivo para esse prazer, quando diz que o gostar é
proveniente da ânsia universal de saber dos seres humanos.
Porém, esse prazer que surge da satisfação da nossa ânsia
de conhecimento é momentâneo, e o desprazer que acompanha a
visão do feio é permanente.
Segundo Lessing, a feiúra das formas não pode ser por
si, e em si mesma, objeto da pintura enquanto bela arte. O
sentimento desagradável não se torna contrário graças à
imitação. Portanto, o feio não pode ser útil para a arte
enquanto ingrediente para fortalecer outros sentimentos,
como vimos no caso da poesia.
“Na poesia, a feiúra das formas perde quase totalmente o seu efeito desagradável através da transformação das suas partes coexistentes em sucessivas; desse ponto de vista ela como que deixa de ser feiúra e pode, portanto, ligar-se tanto mais intimamente a outras aparições para produzir um novo efeito particular. Por outro lado, na pintura a feiúra possui todas as suas forças reunidas e não atua de modo muito mais fraco que na natureza mesma. A feiúra inofensiva não pode, consequentemente, permanecer muito tempo ridícula; o sentimento
67
desagradável predomina e o que de primeiro era divertido torna-se na seqüência simplesmente repugnante. Não se passa de modo muito diferente com a feiúra prejudicial; o terrível perde-se mais e mais e apenas o amorfo resta, só e imutável.”18
Lessing mostra a visão do crítico de arte Mendelssohn
que encontra entre as paixões desagradáveis e o asco uma
notável diferença. As paixões desagradáveis podem
frequentemente agradar o ânimo, não só na imitação como na
natureza mesma, pois elas nunca excitam um desprazer puro,
mas antes misturam a sua amargura com volúpia. No asco a
alma não reconhece uma mistura perceptível de prazer, o
desprazer é o sentimento máximo adquirido.
O crítico utiliza-se da teoria do asco para
classificar o sentimento do feio das formas. Aqui também
não há mistura de prazer, assim, não há um estado em que o
ânimo não devesse retroceder com desgosto a sua
representação. Mendelssohn ainda afirma que somente os
sentidos mais obscuros: o paladar, o olfato e o tato seriam
expostos ao asco, e que não existiria nenhum objeto
asqueroso sentido somente pela visão. O autor de Laocoonte
o contraria dizendo que podemos reconhecer tais objetos,
que não seriam repugnantes nem ao olfato, nem ao tato, mas
sim à visão. O asco relaciona-se com a imitação, da mesma
forma que o feio. Seu efeito desagradável pode tornar-se
18 LESSING. Laocoonte. p.261.
68
objeto da poesia ou da pintura, pois ele é suavizado graças
à expressão.
A pintura e a poesia querem o asqueroso não somente
devido ao sentimento de asco, mas para reforçar com ele o
ridículo e o terrível. Os riscos que se correm em eleger
esse tipo de representação é que, ao passo que a surpresa
do impacto se desfaz, assim que o primeiro olhar ávido for
satisfeito, o asco se separa completamente do ridículo, ou
do terrível, e resta somente na sua própria figura crua.
Lessing, portanto, não discorre sobre a prosa, como
forma de arte. Por isso, para que possamos entender as
proposições do filósofo, agora baseadas em nossa ferramenta
principal de trabalho, propor-nos-emos em fazer um breve
estudo sobre Dostoiévski e seu romance Crime e Castigo.
3.2.3 - Traçando um paralelo entre Lessing e Dostoiévski
3.2.3.1 – Crime e Castigo
O romance Crime e Castigo gira em torno do crime de
Raskólnikov. Para ele, os indivíduos que moldam a história
da humanidade são considerados extraordinários, e seu crime
passa a ser uma espécie de auto-teste de seus limites.
69
Aliena Ivanovna era uma velha odiada por muitos, por ser a
pessoa que penhorava jóias ou objetos que possuíam mais do
que um valor comercial para seus donos. Por isso, nenhum
peso seria gerado na consciência de Raskólnikov se ele a
matasse, pois se não fizesse isso, outro faria em seu
lugar. E esse foi o conforto que teve ao matar a velha, mas
pouco depois do crime, teve que fazer o mesmo com a irmã de
Aliena, Lisavieta, que havia aparecido e visto tudo.
No decorrer do romance, Raskólnikov descobre que
Lisavieta já havia costurado uma roupa sua, e a certeza de
que ela era uma boa pessoa torna-se o começo de sua
angústia interna. Se sua consciência já parecia perturbada
antes de cometer o crime, agora será o ponto crucial de
todo o seu tormento em relação ao crime cometido, o que
leva a um questionamento da existência ou não de uma moral
no cosmos. Em certa ocasião, o personagem conhece Sônia
que, sem escolha, sustenta sua família com a prostituição,
o que a caracteriza em uma figura angelical, pela qual
Raskólnikov se apaixona. Ela será uma peça importante no
processo de conversão do personagem, que, porém, não se dá
em totalidade até o final da obra.
No romance, o inspetor Porfiri Pietróvitch representa
o determinismo quando pensa em conseguir pegar Raskólnikov
pela análise psicológica do discurso. Visto que o homem em
Dostoievski é visto como inacabado, por representar um ser
70
do infinito (da polifonia), este recurso de Porfiri tende
ao fracasso. Depois de uma queda, esse infinito,
característico do sujeito, é vivido como um inferno
constante, a imagem projetada no espelho passa a ser o
niilismo. A única salvação do homem está em atravessar esse
infinito perturbador, a experiência da liberdade em
Dostoiévski vem da experimentação pós-queda.
O sofrimento psicológico é revestido de certa
sacralidade, pois é ao passar pelo inferno da polifonia
interna que encontramos o sentido construtivo da travessia.
É este caminho que fará o indivíduo estar mais próximo de
ser o que ele realmente é, um ser “sobrenatural”19. O
caráter constante de polifonia do personagem nos remete ao
conflito e à angústia da travessia. A ânsia de Raskólnikov
pela busca de um significado é tão intensa, que o vagar lhe
traz febres, é um momento de “desalienação”. Tal movimento
de travessia produz um autoconhecimento, uma constante
“descoisificação”, por meio da eterna polifonia consigo
mesmo. Cito uma passagem de Crime e Castigo, que ilustra o
estado de consciência de Raskólnikov ao pensar no crime que
iria cometer:
“E de repente voltou a si.
19 Adjetivo atribuído por Luiz Felipe Pondé, em seu livro Crítica e Profecia.
71
‘Depois daquilo – exclamou ele, arrancando-se do banco -, ora, por acaso aquilo vai acontecer? Será possível que vá mesmo acontecer?’ Abandonou o banco e saiu, quase correndo; quis voltar, para casa, mas esse ‘para casa’ lhe deu um súbito e terrível asco: fôra lá, no canto, naquele terrível armário que amadurecera tudo aquilo havia já mais de um mês, e ele saiu sem rumo. Seu tremor nervoso transbordou em um tremor algo febril; chagou até a sentir calafrio; ficou com frio em meio a todo aquele calorão.”20
O crítico Luiz Felipe Pondé vê a teoria de Maquiavel
na insistência de Raskólnikov em divagar sobre a figura de
Napoleão, ao longo do romance. Para ele, não há na história
um personagem que se identifique tanto com o Príncipe. E,
na linguagem de Maquiavel, o homem extraordinário é o
indivíduo que possui virtù. Para ele o ser humano é um caos
de paixões, medo, interesse e fraquezas, e qualquer outra
coisa, além disso, é metafísica, construção e não empiria.
Um bom príncipe é aquele que sabe observar o ser humano
naquilo que ele realmente é. Portanto, alguém que não
perceba que o indivíduo é incapaz de se organizar, não
serve para príncipe, pois se permitir que ele seja “livre”
e faça o que tiver vontade, a única coisa que vai conseguir
é destruir-se sem nenhuma legitimidade. Assim, o sujeito
que possui virtù é aquele que está acima dos outros, pois
consegue se reconhecer como vítima das paixões, que não
deve dar muita atenção aos seus desejos, porque se o fizer
eles o levará a destruição.
20 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Crime e Castigo. p.68.
72
“Maquiavel afirma que o príncipe deve ser extremamente competente no uso da violência, isto é, se ele tiver de matar alguns milhares de pessoas em determinado momento, o que determina a avaliação de seu ato, não é um código moral anterior, mas o resultado desse ato em termos da manutenção do Estado. Mas o que é ‘estado’ senão ‘estar’ no particípio ou um ‘estando’ contínuo, no sentido de ser igual a si mesmo durante algum tempo? É o que falta ao ser humano, segundo Maquiavel: a capacidade de ser ‘estado’, isto é, ter e ser continuidade e estabilidade, enfim, sustentar uma ‘identidade’.”21
Maquiavel é radical ao falar do comportamento humano,
para ele não há nenhum sentido cosmológico nisso. O que se
vê é um espetáculo do desejo destruindo a todos e que se
alguém, por acaso, possui virtù poderá manter um estado
precário, mas, em algum sentido, melhor do que os outros,
pois o sujeito precisa desse Estado para existir, isso o
faz menos caótico do que ele realmente é.
Contudo, para Dostoiévski há a presença do niilismo
nisso tudo. Seu projeto de liberação da modernidade é de
base niilista, e diz que o ser humano vai chegar ao
absoluto e ao nada em tudo, como se isso fosse sua
liberdade. E, quando se achar na contingência absoluta,
começará a culpar os outros e eximir-se de suas
responsabilidades. Assim, podemos, de alguma forma,
aproximar Maquiavel do niilismo, pois ao dizer que o
ajuizamento sobre o valor da vida humana é o resultado da
21 PONDÉ, Luis Felipe. Crítica e Profecia.
73
morte num contexto político, é afirmar que a vida humana
não é nenhuma fonte de valor.
Isto é o que está na base do pensamento de
Raskólnikov, a ideologia que o leva a fazer o que ele faz.
Seu desespero e sua agonia estão em não conseguir se
convencer daquilo que queria. No final do romance, ele
acaba se convencendo de que matou aquela mulher porque
queria e nada mais, e não por nenhuma teoria. Não foi uma
causa humanística, porque a velha era má com todos, e sim
porque ele teve seu momento de maldade voluntária. É
importante que o indivíduo faça todo o trajeto da miséria
para perceber que existe o mal sim, e que este está
hospedado nele. Isso nos mostra que existe algo de
sanidade, pois atrás da recusa da substancialidade do mal
está a sua denegação.
Indivíduos que fracassam como Raskólnikov, de alguma
forma se salvam. Mas para tanto, ele tem que pagar pelo seu
crime, e, por conseqüência, vai para a cadeia. Na
realidade, a salvação de Raskólnikov foi perceber que não
consegue se convencer de que ele é um indivíduo
extraordinário. Ele não tem virtù, não é Napoleão e não
consegue estar além da mísera condição humana, do caos que
o ser humano é, da manipulação das paixões. Para
Dostoiévski o caminho não seria negar o caos de paixões,
mas atravessá-lo, e é isso que Raskólnikov consegue ao se
74
reconhecer fraco. Talvez o erro do pensamento religioso
moderno seja ter pulado o sofrimento para ir diretamente ao
remédio, há que retornar uma reflexão sobre a condição
humana para conseguir atravessar o mal e não somente
superá-lo.
Raskólnikov se julgou extraordinário e matou, pois
indivíduos extraordinários são capazes de fazer o que os
outros não fazem, não por serem melhores, mas por serem
hipócritas e mentirosos. Assim, percebe que não é
extraordinário, senão não estaria passando pela angústia do
crime cometido. Pavel Aristov, que o personagem conheceu na
prisão, é um indivíduo extraordinário de fato, pois está
acima da moral, conseguindo estabelecer o clímax do mal.
Podemos perceber isso na forma em que Raskólnikov fica
impressionado quando seu companheiro de cadeia fala dos
crimes cometidos, com completa isenção de sentimento e
culpa.
3.2.3.2 – Lessing e Dostoiévski
A expressão da dor em Dostoiévski apresenta alguns
aspectos distintos da discutida em Lessing, mas sua
essência permanecerá a mesma. Nesta última, vimos a
comparação da dor de Laocoonte em dois tipos distintos de
arte. Atendo-nos à poesia, Lessing nos mostra uma forma
75
mais ampla de mostrar os sentimentos, pois, munidos da
palavra, podemos fazer com que o nosso leitor tenha um
poder maior no exercício de sua imaginação. A escrita nos
daria uma maior possibilidade de expressão, que estaria
limitada nas formas de arte visual. A imaginação fomentada
pela palavra teria um poder maior ao da visão imediata.
Em Laocoonte a dor é física, causada pela maldição de
Minerva. As serpentes que se enrolam em Raskólnikov são
psicológicas, criadas pela sua angústia da consciência. A
intensidade da dor pode ser a mesma, tendo em vista que
Laocoonte também sofre pela culpa de seus filhos estarem
sendo esmagados. A culpa aqui é a força motriz e o
dilaceramento maior da angústia desses dois personagens. O
que Virgílio e Homero mostram no corpo de Laocoonte,
Dostoiévski mostra na consciência de Raskólnikov. Cito uma
passagem do romance em que o personagem reflete sobre a
natureza do crime:
“Segundo sua convicção, ocorre que esse eclipse da razão e esse abatimento da vontade se apossam do homem como uma doença, evoluem gradualmente e chegam ao ponto máximo um pouco antes do cometimento do crime; continuam da mesma forma no próprio momento do crime e algum tempo depois dele, dependendo do indivíduo; em seguida passam da mesma forma como passa qualquer doença. Mas a questão: é a doença que gera o crime ou o próprio crime, por sua natureza específica, de certa forma é sempre acompanhado de algo como uma doença?”22
22 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Crime e Castigo. p.85.
76
Na era do humanismo renascentista, Lessing fala do
paragone entre a pintura e a poesia. A preocupação do
crítico era produzir uma comparação entre essas duas formas
de arte, tendo em vista o Renascimento que se caracterizava
pela expressão perfeita dos corpos no mármore e na tela.
Lessing defende, em seu texto, a poesia como arte superior
à pintura. A primeira, ao trabalhar com a linguagem, possui
um campo mais amplo capaz de induzir o leitor a percepções
muito além do que as produzidas pela simples visão de uma
cena talhada ou pintada. E também, a figura reproduzida só
contará com um momento, enquanto a linguagem trabalhará com
diversos. Os corpos, objeto da pintura, contam apenas com o
espaço, já as ações, referentes à poesia, ilustram espaço e
tempo.
Ao analisar o romance Crime e Castigo, estaremos
observando outra forma de arte: a prosa. Esta, como a
poesia, também se utilizará da linguagem, o que lhe dará um
amplo recurso para o jogo de percepções do leitor. A dor,
tanto comparada por Lessing, não será expressa da mesma
forma, pois, saímos da era física do Renascimento e
passamos à era psicológica. O que veremos agora não é mais
a angústia do sofrimento físico, mas a da consciência. As
serpentes que se enrolam em Laooconte ainda existem, mas
ganham novas formas subjetivas, viram a alegoria da
castração e do medo, em personagens que não serão mais
77
caracterizados como os heróis gregos. Aqui, eles não terão
mais a virtude como sua principal característica, mas serão
indivíduos como nós, impregnados de defeitos.
As serpentes sufocarão Raskólnikov quando ele
encontrar-se em meio à angústia do crime cometido. Minerva
aqui será sua consciência, que o lançará um doloroso
castigo. Enquanto Virgílio e Homero cantam a dor física de
Laocoonte, através de sua expressão e de seu grito,
Dostoiévski escreverá a angústia de seus personagens, pela
luta interna do sujeito e suas múltiplas vozes. Os
primeiros mostrarão um herói, cuja dor o eleva a uma
condição superior ao dos outros homens, o segundo tratará
da condição precária do ser humano, que se encontrará
perdido em meio as suas ações. Cito uma passagem onde
observamos uma descrição da angústia de Raskólnikov:
“Assim ele se atormentava e se provocava com essas perguntas, até com algum prazer. Aliás essas questões todas não eram novas, nem repentinas, mas antigas, remotas, nevrálgicas. Fazia muito que elas haviam começado a atormenta-lo e lhe tinham atormentado o coração. Há muito tempo essa melancolia de hoje surgira nele, crescera, acumulara-se e ultimamente amadurecera e se concentrara, assumindo a forma de uma pergunta terrível, absurda e fantástica, que lhe atormentara o coração e a mente, exigindo irresistivelmente uma solução. (...) Precisava decidir-se a qualquer custo, fosse lá pelo que fosse, ou... Ou renunciar totalmente à vida! – gritou de repente com furor -, aceitar docilmente o destino como ele é, de uma vez por todas, e sufocar tudo em mim, abrindo mão de qualquer direito de agir, viver e amar!’”23
23 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Crime e Castigo. p.61.
78
A dor não mais engrandece o homem, ela só o reafirma
em sua condição de sujeito precário, vítima da não
consciência de sua multiplicidade. Aqui, a linguagem
textual também se colocará como superior às artes visuais.
Algumas pinturas e esculturas da era moderna tentarão
representar a angústia psicológica do homem, mas esta não
será tão bem refletida como fizeram os autores da
subjetividade.
O grito de Laooconte pode ser sentido na consciência
de Raskólnikov. Suas diferentes vozes gritam querendo
sobrepor-se umas as outras, lutando por uma saída de suas
ações.
“Vez por outra apenas resmungava alguma coisa com seus botões, pelo hábito de monologar que ele mesmo acabara de reconhecer de si para si. No mesmo instante reconheceu que suas idéias às vezes se embaralhavam e que estava muito fraco.”24 “Mas não conseguia traduzir a sua perturbação nem em palavras, nem em exclamações. O sentimento de um asco sem fim, que começava a oprimir-lhe e angustiar-lhe o coração(...) Caminhava pela calçada como um bêbado, sem notar os transeuntes e esbarrando neles, e só se deu conta quando já estava na rua seguinte.”25
Dostoiévski, como Homero, não ameniza a dor para que
esta não se torne incômoda aos olhos do leitor, o que
também se caracteriza como uma diferença que não sentimos
mais em relação às artes visuais. Enquanto Laooconte foi
lapidado no mármore com a boca entreaberta para que seu
24 Ibdem, p.20. 25
Ibdem, p.26.
79
grito não chocasse as pessoas, as artes modernas, em
oposição, abusam de expressões, cores e recursos que mexam
profundamente com os sentimentos. Agora, a dor e a angústia
devem ser passadas de maneira genuína, não somente pela
visualização do momento do personagem, mas na impressão que
a obra causa no interior dos seus espectadores.
Em Dostoiévski teremos o constante incômodo, ao ter
que conhecer a vida, as angústias e a precariedade de seus
personagens. Raskólnikov nos parecerá asqueroso,
primeiramente pela sua apatia perante os acontecimentos que
lhe ocorrem na vida, depois por sua atitude ao ver-se sem
escolha e cometer o assassinato, e por último pela sua
perturbação decorrida do ato cometido.
Os autores subjetivos não terão mais a preocupação com
a beleza, a preocupação será apenas no reflexo do sujeito
como ele é realmente. Os heróis agora são providos de
imperfeições e medos. A condição latente do indivíduo causa
náusea em quem a ela é exposto. Ler esses personagens é
ver-se como tal, é descobrir-se com o mesmo aspecto
terrível, possuidor da mesma multiplicidade angustiante.
Perceber-se como ser humano feio traz à tona o sentimento
de asco, de repugnância. E esse é um dos principais
objetivos de autores como Dostoiévski, fazer o leitor
reconhecer-se como indivíduo precário. A dor extrapola o
campo do texto e dos personagens, passando a ser o nosso
80
sentimento, o do leitor que se depara com o espelho da sua
alma.
No capítulo seguinte, trataremos do romance escolhido
como foco principal de nossas hipóteses: Fogo Morto, de
José Lins do Rego, para melhor exemplificar - de maneira
mais completa - a trajetória angustiante da dor de existir
e da conscientização do outro como responsabilidade do
sujeito que vive. Romance composto de três personagens
nucleares, narra em cada capítulo de sua trama a trajetória
de cada um desses em uma pequena cidade do sertão
nordestino. Aqui veremos histórias de dor, angústia, tabus
e busca da sublimação.
81
4 - Fogo Morto, de José Lins do Rego
4.1 - O movimento modernista
No decorrer da primeira década do século XX a Europa
assistiu à queda de todo seu sistema vigente. Os jovens
reagiam aos padrões da sociedade, aspirando destruir os
valores tradicionais. Semelhante reação aparentava-se à
posição socialista radical ou ao niilismo filosófico de
seus responsáveis, em uma atitude devastadora, denominada
vanguarda. A participação brasileira naquele conjunto de
idéias mostrou-se tardia. Tivemos de adaptá-las à nossa
maneira, dentro da nossa forma geográfica e histórica, e às
peculiaridades mentais aqui vigentes. O Modernismo surgiu,
a partir de tal encaminhamento, após a Semana de Arte
Moderna, e atuou como força renovadora na literatura. Após
1922, todas as tentativas de reforma foram etapas de
evolução, de condicionamento aos costumes e cultura locais.
“Quanto ao termo “modernista”, veio a caracterizar, cada vez mais intensamente, um código novo, diferente dos códigos parnasiano e simbolista. “Moderno” inclui também fatores de mensagem: motivos, temas, mitos modernos. Com o máximo de precisão semântica, dir-se-á que nem tudo que antecipa traços modernos será modernista; e nem tudo o que foi modernista parecerá, hoje, moderno.”26
26 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. pg: 331.
82
Os intelectuais do início do século absorviam a
cultura trazida da Europa, de seus vários anos de estudos
fora do Brasil. Tentavam adaptar os costumes e as
tendências às cidades brasileiras, quando decidiram por
revolucionar e instaurar de vez a era do Modernismo no
país. O marco da difusão e da solidificação do movimento
aconteceu com a cerimônia da Semana de Arte Moderna, em São
Paulo. Esta representou a confluência das várias tendências
de renovação que vinham ocorrendo na arte e na cultura
brasileira antes de 22, cujo objetivo era combater a arte
tradicional.
Após o evento, eclodiram publicações de livros,
revistas e manifestos que buscavam a consolidação do
movimento e das ideologias. A preocupação estava em acertar
o passo com a modernidade intelectual dos países europeus e
dar relevo às raízes brasileiras, à criação de um produto
nacional que se distinguisse da ideologia romântica de
outrora.
A primeira fase do Modernismo caracterizou-se por
idéias relacionadas à visão nacionalista, porém crítica, da
realidade brasileira. Os autores dessa fase se propõem a
defender a reconstrução da cultura brasileira sobre bases
nacionais, promovendo uma revisão crítica do passado
histórico-social e das tradições culturais, eliminando de
vez o complexo de “colonizados”.
83
Em sua segunda fase, ao lado dos problemas de um
Brasil em crise, o Modernismo deu rumo a novos estilos de
ficção marcados por uma volta ao naturalismo e pela
captação objetiva dos fatos. Tínhamos antes, uma ficção
impregnada de um realismo marcado pela idéia do
“científico” e do “impessoal”, descartado por romancistas
da década de 30. Estes amadureceram a compreensão de que o
peso da tradição se remove e se abala pela vivência sofrida
e lúcida das tensões que compõem as estruturas materiais e
morais do grupo em que se vive. Compreenderam que cada
situação devia ser expressa de maneira nova, baseando-se na
realidade nacional. A partir de então, a ficção moderna de
nossos escritores passou a dividir-se em duas grandes e
importantes linhas temáticas: a regional e a intimista.
O interesse pelo regional nasceu com Gilberto Freyre e
suas proposições do Movimento Regionalista. Formou-se uma
preocupação em descrever a região, no que compete ao
recorte geográfico, à sociedade e à cultura, imersos,
agora, em uma visão crítica das relações sociais. Essa
realidade muitas vezes se apresenta menos áspera e mais
acomodada às tradições do meio, mas em outras, podemos
observar a dureza do testemunho individual.
84
4.2 - Fogo Morto e José Lins do Rego
Na produção de José Lins do Rego, o ponto principal
corresponde ao chamado ciclo da cana-de-açúcar. Partindo de
experiências autobiográficas, o escritor encontra na
memória o fundamento de seus romances, nos quais fixa
melancolicamente a decadência do engenho-de-açúcar,
substituído pela usina, como modo de produção.
O Manifesto Regionalista, assinado por Gilberto
Freyre, em 1926, contém fundamentos sociológicos e
tendências à crítica social, colocando em primeiro plano os
problemas de classe e os aspectos ultra-individuais da vida
regional. Porém os romances acabaram por absorver a
estrutura do documentário, em virtude do vezo naturalista
com que alguns autores o trataram. Terminaram
transformando-se em monografias sócio-econômicas. Na ânsia
da mímeses, o reflexo estilístico da realidade cedeu lugar
à simples retratação pitoresca.
As obras de José Lins do Rego nos mostram um caráter
regionalista de descrição social. A par disso, Fogo Morto
aparece como ponto mais alto de sua criação, onde o autor
consegue, em perfeita confluência, mostrar o enlace entre o
social e o indivíduo participante deste. Incluso ainda no
ciclo do açúcar, o romance nos traz a figura da dor e das
85
inquietações humanas em plano principal ao da terra.
Romance singular demonstra um afastamento da concepção
regionalista e socialista do chamado universo “coletivo”.
Sua preocupação primeira não é a de marcar os caracteres de
uma sociedade, mas a força do personagem. José Lins do Rego
vê agora o nordestino não somente como um indivíduo
assimilado à sua realidade social e ecológica, mas ao
complexo humano integrado em circunstâncias peculiares.
José Américo de Almeida conclui que, no romance
regionalista, há “uma ausência de atmosfera introspectiva”
a favor da “massa que espontaneamente, rudemente, passa a
vibrar ao toque da arte”27, o que se torna inválido para
Fogo Morto que, na década de 40, se inscreve no estilo
regionalista – psicológico, tornando-se um romance ímpar da
obra de Lins do Rego.
4.2.1 – Sobre José Lins do Rego
José Lins do Rego publicou doze romances, um volume de
memórias (Meus Verdes Anos), um de literatura infantil
(Histórias da Velha Totônia), além de livros de viagem,
conferências e crônicas. Seus romances são normalmente
27 ALMEIDA, José Américo de. “Gilberto Freyre, Nova Forma de Expressão”. in: Gilberto Freyre: sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte. Ensaios sobre o autor de Casa Grande e Senzala. Publicação comemorativa. Rio de Janeiro, 1962, p. 25.
86
classificados em "ciclos", séries de obras versando sobre
os mesmos temas.
Em 1932, o autor publicou seu primeiro livro, Menino
de Engenho. Custeado com seus próprios recursos, o livro
recebeu críticas favoráveis e tornou-se um grande sucesso.
No ano seguinte, publicou seu segundo romance, Doidinho. A
partir daí, José Lins do Rego tornou-se um escritor de
prestígio, estimado pelo público. Passou a publicar um
romance por ano: em 1934, Bangüê; em 1935, O Moleque
Ricardo; em 1936, Usina; em 1937, Pureza; em 1938, Pedra
Bonita; e em 1939, Riacho Doce. O autor consagrou-se como
mestre do regionalismo.
As obras do chamado “ciclo da cana-de-açúcar” são as
mais importantes. Partindo de experiências autobiográficas
– a vida no engenho do avô –, o escritor encontra na
memória o fundamento de seus romances, nos quais fixa
melancolicamente a decadência do engenho de açúcar,
substituído como modo de produção pela usina. Participante
ou pelo menos observador deste processo, José Lins do Rego
esforça-se para registrar a verdadeira revolução social
desencadeada pela nova tecnologia de produção açucareira
que, em pouco tempo, levou um grande número de senhores de
engenho a mais completa bancarrota econômica. As
características marcantes desse ciclo são: o memorialismo,
a visão de mundo sob a ótica do senhor de engenho, a
87
linguagem espontânea e certa consciência crítica em relação
à miséria e ao subdesenvolvimento do Nordeste. No prefácio
de Usina, o próprio José Lins do Rego delimitou seu “ciclo
da cana-de-açúcar”:
“A história desses livros é bem simples: comecei querendo apenas escrever umas memórias que fossem as de todos os meninos criados nas casas-grandes dos engenhos nordestinos. Seria apenas um pedaço da vida o que eu queria contar. Sucede, porém, que um romancista é muitas vezes o instrumento apenas de forças que se acham escondidas no seu interior.”28
Publicado em 1943, Fogo Morto é a última obra-prima do
regionalismo neo-realista surgido no Brasil durante a
década de 30. Obra-prima, pois percorre uma vereda
intimista que o difere e destaca dos outros textos de José
Lins do Rego. Prevalece uma narrativa direta, sem as
ousadias formais de romances como de Oswald de Andrade ou
de Mário de Andrade. Os regionalistas de 30, como Jorge
Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego, enfatizam,
assim como o modernismo inicial, o uso da linguagem
coloquial, popular, na obra de arte literária.
Fogo Morto é também o último suspiro da série de
romances a que o próprio autor haveria de chamar de “o
ciclo da cana-de-açúcar”, que tem como matéria básica o
engenho Santa Rosa, do velho José Paulino. Fogo Morto acaba
por ser a maior obra deste ciclo, pois, ao minimizar o
28 REGO. José Lins do. Usina.
88
caráter autobiográfico e nostálgico das obras precedentes,
o romancista paraibano acrescenta a sua extraordinária
facilidade de narrar a objetividade e a consciência
compositiva que o caráter sentimental e espontâneo das
obras anteriores encobria. Em Fogo Morto, portanto, o
romancista maduro e consciente se sobrepõe ao memorialista
nostálgico para construir sua obra ímpar em síntese,
aprofundamento e condensação de todas as outras.
4.2.2 – O ciclo da cana-de-açúcar
O ciclo da cana-de-açúcar foi a primeira atividade
economicamente organizada do Brasil. A partir da fundação
do primeiro engenho de cana-de-açúcar por Martins Afonso de
Souza, em 1532, e por mais de dois séculos o açúcar foi o
principal produto brasileiro, convivendo, contribuindo e,
às vezes, resistindo às mudanças sócio-político-culturais
deste período. Muitos engenhos se proliferaram pela costa
brasileira. O Nordeste, principalmente o litoral
pernambucano e baiano, sorveu a maior parte da produção
açucareira da colônia.
A necessidade de colonizar a terra para defendê-la e
explorar suas riquezas fizeram com que o Governo de
Portugal instalasse engenhos produtores de açúcar no nosso
89
litoral, essa cultura foi escolhida por se tratar de um
produto de alto valor no comércio europeu e por seu consumo
crescente na Europa. Logo, após as dificuldades de sua
implantação, o açúcar tornou-se o principal produto
brasileiro e foi a base de sustentação da economia e da
colonização do Brasil durante os século XVI e XVII.
Ao lado do canavial, nascia a agricultura de
subsistência, para atender a crescente necessidade de
alimentos para a casa grande, a senzala e a pequena parcela
de assalariados livres. A propriedade rural, verdadeiro
feudo, era formada da seguinte maneira: primeiramente, o
posto mais elevado na complexa sociedade açucareira cabia
ao senhor de engenho, o qual desfrutava de admirável status
social. Os engenhos eram formados por amplas propriedades
de terras ganhas através da cessão de sesmarias - lotes
abandonados cedidos pela coroa portuguesa a quem se
comprometesse a aproveitá-los para o cultivo. O senhor e
sua família moravam na casa-grande – local onde ele
desempenhava sua autoridade junto aos seus, cumprindo seu
papel de patriarca. Em segundo lugar vêm os negros escravos
que viviam nas senzalas, alojamentos nos quais conviviam
cruelmente, tratados como animais expostos aos mais atrozes
e violentos castigos. Também existia a capela que era o
local sagrado no qual aconteciam as mais belas sagrações
religiosas, e nas suas horas vagas exercia igualmente o
90
papel de centro social, onde os homens livres do engenho e
das vizinhanças se reuniam. No engenho ficava ainda a
moenda, onde a cana-de-açúcar era moída.
À mulher cabia a incumbência de administrar seu lar,
devendo conservar-se recolhida fiscalizando o trabalho dos
escravos domésticos. O serviço escravo, realizado nas
lavouras canavieiras, era supervisionado pelos feitores,
que tinham a tarefa de vigiar os escravos e lhes aplicar
punições. Outros trabalhadores livres também trabalhavam no
engenho, iam de barqueiros, canoeiros, pedreiros,
carreiros, vaqueiros, pescadores e lavradores que, além de
cuidarem do cultivo da cana, também se dedicavam às
pequenas roças de milho, mandioca ou feijão, as quais
auxiliavam na subsistência, garantindo alimentação para a
casa grande, senzala e assalariados livres.
Do século XVIII ao XIX o açúcar continuou a ter
importância na economia do nosso país, embora o café viesse
a se tornar o principal produto brasileiro. Mas pouco a
pouco o açúcar perdeu mercado e foi deixando de ser a base
de sustentação da nossa economia. Outros acontecimentos que
prejudicaram o açúcar brasileiro foram: o bloqueio de
Napoleão Bonaparte contra os navios ingleses
transportadores de açúcar do nosso continente para o
mercado consumidor europeu; e o aparecimento do açúcar de
beterraba, o chamado “açúcar alemão”. Esse novo produto foi
91
utilizado pelos países consumidores como substituto ao
açúcar da cana, ocorrendo o agravamento da crise e os maus
efeitos decorrentes da monocultura latifundiária em nossa
economia.
Com todos esses problemas e com o descaso do Governo
de Portugal em relação a sua colônia ocorreu a
desarticulação da economia açucareira no Brasil. A partir
de meados do século XVIII e durante todo o século XIX, o
preço do açúcar permaneceu reduzido à metade.
Os engenhos do Nordeste eram, originalmente,
estabelecimentos agrícolas destinados à cultura da cana e à
fabricação do açúcar. Com a ascensão das usinas, que
passaram a comprar dos engenhos sua produção bruta (a cana
de açúcar ainda não processada) a maior parte desses
engenhos foi, aos poucos, deixando de moer a cana para a
fabricação do açúcar. Passam, então, apenas a vender a
matéria prima às usinas, tornando-se engenhos "de fogo
morto". Perdem, assim, boa parte de seu poder, tornando-se
reféns dos preços pagos pelas usinas. É como se encontra,
ao final de Fogo Morto, o decadente engenho Santa Fé.
4.2.3 – Fogo Morto
O romance se passa no município de Pilar, na Zona da
Mata paraibana, às margens do Rio Paraíba. A maior parcela
92
da ação se desenvolve nas terras do engenho Santa Fé, nos
arredores do Pilar. Na cidade, passa-se boa parte da última
seção da obra. O desenrolar dos acontecimentos dá-se
durante os primeiros anos do século XX, com uma regressão
temporal à época da fundação do engenho Santa Fé, em 1850.
E, embora seja traçada rapidamente a história do engenho
até o momento narrado, as ações em si não duram mais do que
alguns meses.
O romance é narrado em terceira pessoa. É externo o
ponto de vista do narrador, pois este não participa dos
acontecimentos narrados. Ele é onisciente, mostra o
pensamento dos personagens, suas dúvidas, problemas e
devaneios do povo dos engenhos nordestinos.
Fogo Morto é dividido em três partes. Cada uma delas
traz no título o nome de um dos três personagens principais
do romance. Porém, essas se entrecruzam, com o aparecimento
desses mesmos personagens ao longo de todo o livro. Cada um
deles, na verdade, sintetiza certa classe da população,
todas as três envolvidas por um cenário de miséria,
superstição e doença. Os três personagens nucleares são: o
mestre José Amaro, seleiro pobre e com vários conflitos
psicológicos e familiares; o coronel Lula de Holanda,
senhor de engenho inepto e decadente; e Vitorino Carneiro
da Cunha, o “papa-rabo”, herói quixotesco, defensor
estabanado dos oprimidos. É esse mesmo Vitorino, misto de
93
Dom Quixote e Sancho Pança, em suas andanças e na sua busca
ingênua de justiça, quem estabelece as relações entre todas
as personagens, servindo como ponto central da narrativa.
Os fatos, dentro de cada uma das três partes, ocorrem em
ordem cronológica. As rememorações, em fluxos de
consciência, fluem do pensamento dos personagens. As
referências ao passado contribuem para um retardamento do
tempo narrativo e ajudam ao leitor na caracterização dos
personagens e de suas relações com o meio ambiente,
tornando-se evidente o momento histórico em que se situam.
A estrutura episódica do romance centra-se nos três
protagonistas que se inter-relacionam e com os demais
personagens, juntando-se no desfecho. As mulheres, embora
estruturalmente mostradas de maneira secundária,
representam um papel muito importante nessa obra. Os
personagens principais e secundários são apresentados na
exposição do enredo para se desenharem com mais perfeição
no decorrer da trama. O enredo complica-se gradativamente,
em cada uma das três partes atingindo o clímax.
4.3 – A dor entre o regional e o psicológico
As condições social e particular do indivíduo caminham
juntas na literatura, mesmo que por hora uma apareça em
94
plano superior à outra. A explicação de uma sociedade dá-se
pelo reconhecimento de seus indivíduos. A partir desse
estudo é que escolhemos a obra de José Lins do Rego, para
ilustrar e aprofundar as nossas pesquisas. Em Fogo Morto
encontramos grande expressividade das questões humanas.
Antonio Candido, um dos maiores críticos da literatura
brasileira, vem em seus textos nos mostrar a ligação entre
o social e a subjetividade. Em Vários Escritos, Candido
afirma que perscrutar leis mentais e sociais é não só
explorar o espaço como um registro. Aqui ele nos aponta
para a necessidade de irmos além do simples espelhamento de
uma região.
Nossa cultura é feita da pluralidade, da miscigenação,
por isso não poderíamos ter textos que não fossem baseados
na mistura, na fusão. Se a idéia principal de uma
literatura genuína era que ela pintasse as formas de seu
povo, então o homem multiperspectivado deveria refletir uma
literatura de vários lados, influências e rostos. Cito
Bosi:
“Da cultura brasileira já houve quem a julgasse ou a quisesse unitária, coesa, cabalmente definida por esta ou aquela qualidade mestra. (...) Ocorre, porém, que não existe uma cultura brasileira homogênea, matriz dos nossos comportamentos e dos nossos discursos. Ao contrário: a admissão de seu caráter plural é um passo decisivo para compreendê-la como um ‘efeito de sentido’, resultado de um processo de
95
múltiplas interações e oposições no tempo e no espaço.”29
A subjetividade é a ferramenta que o escritor utiliza
em seu romance para mostrar e explorar a perspectiva da
personagem. Freqüentemente a narrativa dá-se em primeira
pessoa, mostrando a voz da consciência do sujeito. O que
vemos em Fogo Morto é o desdobramento dessa voz em muitas
outras. O que caracteriza a intersubjetividade é a certeza
de que há um múltiplo de vozes opostas e complementares
dentro da consciência de um único indivíduo. E, uma de
nossas tarefas em Fogo Morto é a de mostrar como ocorre a
coexistência dessas personalidades dentro do sujeito e a
representação da dor causada pela impotência dos
personagens diante do múltiplo que angustia. O romance
reflete a sensação do não-estar, em um mundo que não faz
sentido as suas necessidades.
4.4 – O paralelo da dor de Lessing e de Fogo Morto
José Lins do Rego e Lessing mostram em Fogo Morto e
Laocoonte ou as fronteiras da pintura e da poesia,
respectivamente, aspectos distintos acerca da expressão da
dor. Contudo, podemos apreender uma linha comum que
percorre ambas. Voltando a destacar as observações feitas
29 BOSI, Alfredo. Cultura Brasileira. p.7.
96
por Lessing sobre a poesia, o crítico a trata como uma
forma mais ampla que o artista tem para pintar sentimentos.
Utilizando, agora, de palavras como ferramentas, podemos
dar ao nosso leitor um poder e oportunidade maior de
trabalhar sua imaginação. Antes como uma forma de expansão
ao contrário de oposição, a escrita vem imbuída de um poder
maior de expressividade em comparação a arte visual, de
antes. A imaginação alimentada por ela nos possibilitaria
uma amplitude maior ao da visão imediata.
A intensidade e a voracidade da dor aparentam ser as
mesmas em Laocconte e nos personagens de Fogo Morto, mas
encarnadas em níveis diferentes. No primeiro a dor é
física, causada pela maldição. Contudo, no segundo, as
serpentes vestem seu caráter de alegoria, passam a
psicológicas, criadas pela sua angústia da consciência. A
culpa do fracasso é, em Fogo Morto, o que desencadeia o
dilaceramento maior da angústia desses personagens. Aqui, o
corpo e a consciência sofrem da mesma forma, o que varia é
sua causa, desenvolvimento e conseqüência.
Como já vimos em Dostoievski, o romance Fogo Morto,
dá-nos a dimensão da prosa, como outra possibilidade de
arte, não citada por Lessing. No entanto, esta, como a
poesia, é também construída por palavras e utiliza-se
dessas como suas ferramentas. Ao sairmos da era física, tão
cultuada pelo Renascimento, conhecemos o psicológico. A dor
97
de Lessing e seu Laocoonte teve que se adaptar, ou melhor,
que se estender à consciência. Antes de aflorar ao corpo,
ela nasce do interior do indivíduo. As serpentes e o
castigo de Minerva tomam a forma da castração e do medo,
enrolando-se e sufocando personagens dotados, agora, de
problemas humanos. É o reflexo de nossa precariedade, mais
do que nunca, cantada pelos artistas de nosso tempo.
Enquanto Virgílio e Homero cantam a dor física de
Laocoonte, através de sua expressão e de seu grito, José
Lins do Rego escreverá a angústia de seus personagens, pela
luta interna do sujeito e suas múltiplas vozes, e pela
consciência dilaceradora da sua responsabilidade pelo
outro. Os primeiros mostrarão um herói, cuja dor o eleva a
uma condição superior ao dos outros homens, o segundo
tratará da condição precária do ser humano, que se
encontrará perdido em meio as suas ações. Cito uma passagem
onde observamos uma descrição da angústia de José Amaro:
“José Passarinho se calara. A tarde era triste com o vento desembestado no mundo. O capitão Vitorino Carneiro da Cunha era mais homem do que ele. Estava com medo do povo. Não saía de casa com medo do povo. Os homens tinham feito dele um traste infeliz. O negro Floripes inventava coisas. Laurentino falava por toda parte. Era um homem perdido, sem filha, sem mulher, só no mundo como se fosse um condenado. Lobisomem. Homem do demônio. Aquela canalha queria reduzi-lo a nada. E ele não tinha coragem, não tinha forças para sair de casa (...) ”30
30 REGO, José Lins. Fogo Morto. p.315.
98
A dor não mais engrandece o homem, ela só o reafirma
em sua condição de sujeito precário, vítima da não
consciência de sua multiplicidade. Aqui, a linguagem
textual também se colocará como superior às artes visuais.
Algumas pinturas e esculturas da era moderna tentarão
representar a angústia psicológica do homem, mas esta não
será tão bem refletida como fizeram os autores da
subjetividade. Aqui, a dor e a angústia devem ser passadas
de maneira genuína, não somente pela visualização do
momento do personagem, mas na impressão que a obra causa no
interior dos seus espectadores.
99
5 - A estrutura de Fogo Morto
Fogo Morto é constituído de três capítulos que, mesmo
podendo apresentar caráter individual, complementam-se,
tecendo uma malha de intrigas que dão vida ao texto.
O romance não possui personagem principal, ou melhor,
divide seu foco em três personagens nucleares. Cada
capítulo narra a trajetória de um desses sujeitos,
intercalando, conseqüentemente, os dois outros como
coadjuvantes. Essa intercalação mostra três tipos
diferentes que possuem um ponto vital em comum: a dor. A
vida de cada um percorre rumos diferentes, tanto no nível
social, econômico e psicológico, mas uma característica
parece estar sempre em suas vidas, como força motriz que as
movimentam. A dor se mostra em suas diferentes formas e
sintomas, intrínseca nas personagens principais, nas
pessoas de sua convivência, no próprio meio em que vivem.
José Lins do Rego se preocupou em retratar a história
de vida das pessoas do engenho da cana, levando em
consideração suas condições de seres humanos envoltos em
angústias e dores geradas pela atmosfera que os cerca. Mas,
para além disso tudo, o autor nos mostrou formas de
convivência com essa dor que assola e atormenta. Veremos
aqui as sublimações que seus personagens encontraram como a
única saída para suas existências.
100
5.1 - Os anti-heróis
Os personagens de Fogo Morto são tipos, na medida em
que representam uma determinada estrutura sócio-econômica.
Embora os personagens se cruzem para formar o todo da obra,
podemos afirmar que o enredo se arma em torno de três
principais que se completam no decorrer da narrativa. As
personagens que sofrem mudança substancial possuem mais
densidade psicológica, sendo por isso, chamadas de
esféricas. As três principais do romance se constituem
dessa forma, pois toda a trama decorre das transformações
de seu estado psicossocial. Quanto mais ambígua a
personagem, mais rico o seu significado. Elas se
caracterizam como anti-heróis.
Enquanto protagonista da história narrada ou encenada,
o anti-herói reveste-se de qualidades opostas ao cânone
axiológico positivo. Por vezes não se encaixa no
estereótipo da beleza, da força física e espiritual, da
destreza, do dinamismo e da capacidade de intervenção, da
liderança social e das virtudes morais. A avaliação do
herói assume sempre aspectos subjetivos, uma vez que, a
vida e os acontecimentos apresentam uma constante
ambigüidade de pontos de vista, que se inscrevem no caráter
dialético da condição humana. Qualquer reação do
101
protagonista é sempre suscetível de interpretações
antagônicas. Por outro lado, a ideologia do leitor
condiciona sempre a leitura do comportamento dos heróis
épicos. É, todavia, com a paródia que a figura do anti-
herói se afirma, rompendo com o retrato exemplar da
tradição da epopéia. O romance realista e naturalista
acentua, no século XIX, o distanciamento do escritor em
relação à sociedade romântica e pós-romântica, com os seus
paradigmas e clichês. No século XX, personagens grotescas e
conflituosas configuram uma visão deformada do mundo
contemporâneo, contestada pelo herói.
Os personagens de José Lins do Rego, em Fogo Morto,
demonstram essa oposição ao estilo tradicional. Os heróis
contemporâneos ou anti-heróis, como apresenta o autor em
seu romance, são dotados de uma aura humana, ou seja,
representam toda a condição do indivíduo imerso em seus
conflitos e dores. Diferentemente dos heróis tradicionais,
os da modernidade se aproximam de nós, se mostram na mesma
condição precária de seres humanos.
Nesse momento, nos preocuparemos em analisar mais
profundamente o romance, tratando cada um de seus
capítulos, primeiramente, de forma individual e,
conseqüentemente, do ponto de vista do conjunto da obra.
Lançaremos mão de todos os conceitos expostos até aqui, com
a preocupação de entrelaçar nossas hipóteses às teorias
102
estudadas. Focar-nos-emos na análise dos personagens
principais e de seus reflexos nos indivíduos de sua
convivência e no seu meio, perpassando as teorias da ética,
da estética, da dor e da sublimação. Levaremos a diante a
descoberta de um regionalismo ímpar, a arte de José Lins do
Rego em desenhar uma região pelo reflexo do interior de
seus viventes.
5.2 - Primeira parte – O mestre José Amaro
A primeira parte do romance centra-se na casa do
Mestre José Amaro, à beira da estrada no engenho Santa Fé.
Seleiro orgulhoso e machista, que se recusa a ser dominado
por qualquer um. José Amaro vive na zona da mata, onde as
pessoas são, praticamente, posses de outras, onde o
escravismo deixou seus vincos na atmosfera dos costumes. O
Mestre vive de fazer artefatos de couro e pequenos
consertos. Isso se torna seu direito à liberdade,
especialmente de afirmar-se livre, de contestar pelo
discurso a ordem opressiva, instituída pelos hábitos
patriarcais. José Amaro tem uma alta consciência de seu
valor humano.
103
“Ele queria mandar em tudo como mandava no couro que trabalhava, quer bater em tudo, como batia naquela sola.”31
Contudo, não lhe falta o lado íntimo da desgraça. Sua
filha se torna louca, vive chorando pelos cantos da casa;
sua mulher não o compreende e por fim o abandona. O seleiro
está sozinho em sua revolta. Essa solidão — ainda que em
meio a pessoas que o visitam e convocam — é o que o faz se
voltar para o cangaceiro Antônio Silvino, perseguido pela
volante estadual. Descrente de sua importância como ser
humano, Zé Amaro precisa mostrar a si mesmo que pode
reconstruir-se como sujeito ativo de uma vida relevante. O
Mestre torna-se um colaborador secreto do famoso
cangaceiro, e seu fim estará ligado a esse pacto.
Grande parte deste trecho da obra constrói-se através
dos diálogos travados por José Amaro com os passantes.
Entre estes está o compadre Vitorino Carneiro da Cunha, seu
amigo e um dos personagens de maior importância do romance.
O Mestre cria desavença com o Coronel Lula de Holanda,
dono das terras em que mora, e que sempre vê cruzando a
estrada em seu cabriolé, sem jamais parar para cumprimentá-
lo. Vai adiando, portanto, atender ao chamado do Coronel
para encontrá-lo na casa grande. Seu caráter fechado e
ranzinza lhe vale a fama de se transformar em lobisomem, o
que causa medo às pessoas. Aqui, é o começo da
31 REGO, José Lins do. Fogo Morto. p. 55-56
104
externalização de seu “monstro”, de sua condição interna.
Esta se torna tão insuportável e incômoda, que Zé Amaro
passa a refletir seu interior mais decadente.
Por fim, tem que mandar a filha para o hospício em
Recife, sua primeira perda, e acaba por atender ao chamado
do coronel Lula, que lhe ordena que se retire de suas
terras, sua segunda perda. Sua imagem derrotada se
reafirma, é o velho seleiro frustrado, que mora com a
mulher e filha nas terras de engenho de Santa Fé, cujo dono
é o Coronel Lula de Holanda. É um desiludido com a
profissão, com a vida familiar, com sua filha solteira
sempre chorando pelos cantos e sua mulher a resmungar.
Símbolo da decadência do artesanato rural, do respeito ao
cangaço, enquanto proteção aos pobres e castigo aos maus.
Mestre José Amaro apresenta-se como um dos (anti-)
heróis do romance. Seu personagem é descrito como um
indivíduo feio por dentro e por fora, de uma vida arruinada
e sem futuro. Ainda assim, sua figura desperta certo
carisma. Talvez por sua condição de pena ou por algum
vestígio de pureza em sua descrição. Mesmo quando Zé Amaro
se junta ao cangaceiro Antonio Silvino, ele não adquire
nenhuma característica de vilania, sua aliança é uma forma
de tentar modificar sua condição de vida.
Sua dor se desenvolve a partir de sua pobreza e de
algumas complicações que essa condição traz a sua vida. Zé
105
Amaro tinha tudo para viver bem, em sua vida simples, com a
família. Mas a revolta nascida diante desta condição o faz
degradar-se enquanto sujeito, levando-o a amargura. O gosto
acre de sua alma o faz externar suas angústias e dores mais
intensas, o que pode ser observado também na sua
fisionomia, que se transforma ao longo da narrativa. Esposa
e filha afastam-se cada vez mais de sua dor. A filha Marta
entrega-se a loucura como a única forma de fuga àquela
condição de infelicidade. Isso aumenta ainda mais a dor de
Sinhá, que vê o marido maltratar a filha, por não encontrar
outro jeito para a cura. Sinhá tenta ajudar o marido, mas a
cada dia que passa consegue menos reconhecê-lo atrás do
ódio que o mestre cultiva. Por vezes diz até que vê o diabo
em sua face.
“Então a velha Sinhá viu o que nunca vira em sua vida: Zeca num pranto de menino apanhado. O soluço rouco do marido era um partir de coração. Parada, ficou olhando para aquilo, enternecida. Ele não podia falar. Só tinha os olhos para exprimirem a dor profunda. Por fim, num esforço medonho: - Sinhá, ela está doida. Não pode chegar-se para perto do marido. (...) Um nojo terrível tomou conta dela. Era como se estivesse pegada a um defunto fedendo.”32
Ainda, ao longo do romance, presenciamos as crises de
consciência de Zé Amaro. Tudo em sua vida começa a
complicar-se quando recebe a notícia que o coronel Lula de
Holanda quer vê-lo. Sem saber ao certo o que o coronel
32 Ibdem, p. 170-171.
106
deseja, mas já prevendo que será algo ruim, Zé Amaro
desenvolve sua narrativa.
Ao descobrir que terá que deixar sua casa, a história
de Zé Amaro entra no seu clímax. A casa representa para ele
a lembrança de seu pai, a única coisa que lhe restou de sua
história, que ainda o constitui como sujeito. Ao perder
tudo: esposa, filha, casa, não lhe resta mais nenhum traço
de identidade. Perdido em sua história, em sua vida, a
única forma de sublimação para sua dor foi a morte, a única
maneira de ainda preservar um resquício de sua identidade,
na memória.
“O mestre ia calado, pisando no chão como se estivesse com o corpo quebrado. (...) O mestre parou por debaixo do pé de pitomba. E ali ficou por uma porção de tempo. Tudo estava vazio, o poleiro, o chiqueiro de porcos. Empurrou a porta, e veio lá de dentro um bafo de coisa podre. (...) O mestre não dava uma palavra. (...) Quando foi mais tarde ouviu uma coisa como de choro. Não quis se levantar, mas acertou bem os ouvidos. Era o Mestre José Amaro chorando. Deu-lhe um nó na garganta e também chorou. De madrugada saiu para tomar a fresca da aurora. Andou pela beira do rio e lá para as seis horas voltou para ver o mestre. Entrou de sala adentro e viu a coisa mais triste desse mundo. O mestre estava caído, perto da tenda, com a faca de cortar sola enterrada no peito.”33
Em certos momentos da narrativa, o narrador nos mostra
através da descrição dos lugares e das situações, as
características de José Amaro. Nesse momento da morte do
mestre, podemos observar que seu ambiente familiar
degradava-se junto com ele. A casa cheirava a podre, o
33 Ibdem, p.401-402.
107
seleiro estava calado, não tinha mais voz, nem identidade.
Morreu com o instrumento que também lhe deu direito à vida,
a faca que usava para trabalhar. Trabalho que, por um lado,
concedeu-lhe sua identidade, e que, por outro, não satisfez
suas ambições.
5.3 - Segunda parte – O engenho de Seu Lula
No início da segunda parte do romance, temos uma
regressão temporal. O narrador retorna a 1850 para contar a
fundação do engenho Santa Fé, pelo Capitão Tomás Cabral de
Melo. Mudando-se para a região antes de 1848, o capitão
compra as terras e funda o engenho que acaba por fazer
prosperar. Casa sua filha Amélia com Lula de Holanda, seu
primo, que pouco interesse ou aptidão tem para dirigir o
engenho. Adoentado, deixa sua mulher, D. Mariquinha,
dirigir seus negócios. Após sua morte, Lula entra em
disputa com a sogra e acaba por tomar-lhe as terras e o
poder. Castigando os escravos com requintes de crueldade,
andando com seu cabriolé por todos os lados, Seu Lula vai
se afastando cada vez mais do povo do Pilar e seu engenho
entra em total decadência quando vem a Abolição e seus
escravos debandam. Autoritário, impede os homens de se
aproximarem da filha. Epilético, tem um ataque dentro da
igreja e passa a se dedicar com fervor à religião.
108
Empobrecido, gasta até as últimas moedas de ouro que lhe
deixou o sogro. Sente uma inveja enorme de seu vizinho José
Paulino e de seu engenho Santa Rosa.
Coronel Lula de Holanda é representante da
aristocracia arruinada dos engenhos. Não perdeu o orgulho
feudal e despótico, mas o poder econômico. Incapaz, arruína
o Santa Fé, que se torna “fogo-morto”, expressão com que se
denominam os engenhos paralisados. Não aceitando tais
condições, refugia-se em Deus, no amor ao passado, não
abandonando suas ambições e vaidades. Humilhado diante da
decadência e sofrendo as pressões do cangaço, acaba se
confinando em total isolamento. Simboliza a recusa ao
progresso. Sublima seu orgulho em um misticismo
supersticioso.
“A figura de Seu Lula continuava, para a crendice do povo, como de homem, marcado pelo demônio. Viam a piedade, a cara de tristeza, a cabeça baixa do senhor de engenho, quando se levantava para a mesa da comunhão, tudo não passava de artimanha. De solércia, de hipocrisia. Lá dentro de seu coração estava à peçonha venenosa, o ódio contra todos os homens.”34
Lula de Holanda e José Amaro compartilham um ponto em
comum: os dois se degradam, individual e socialmente.
Desde o início de sua história, o coronel não
apresenta nenhuma característica heróica. Por vezes
demonstra aspectos de vilania, mas logo mostra que seu
34 Ibdem, p.
109
personagem é fraco, que nunca poderia ser um vilão real. As
atitudes mais brutas e desaprováveis de Lula de Holanda vem
acompanhadas, ao longo do texto, com sua descrição de
fracasso e epilepsia.
“Não era um senhor de engenho. O carro parou na porta, e a lua iluminava os números do portão: 1850. Era a força do Capitão Thomas. 1850. Tempo de fartura, de força. Entraram, e o cheiro de mofo da sala de visitas era como um bafo de morte. O piano, os tapetes, os quadros na parede, o retrato de olhar triste de seu pai. O capitão Lula de Holanda pegou no braço da cadeira, e a sua vista escureceu, um frio de morte varou-lhe o coração. Caiu no chão, estrebuchando. A mulher e a filha pararam estarrecidas perto dele, que batia com uma fúria terrível. Era o ataque.”35
Na ficção, o vilão tem como principal característica o
mal que ele exerce sobre os heróis. Ele cumpre seu papel de
antagonista às forças do bem. Geralmente apresenta-se como
uma figura ardilosa, que utiliza suas habilidades com o
intuito de prejudicar o outro ou conseguir algo que deseja
de forma escusa. Muitas vezes utiliza-se de planos, que são
aplicados ao longo da trama, a fim de prejudicar o
protagonista. Percebemos que, mesmo que o coronel tente de
alguma forma prejudicar as pessoas - principalmente José
Amaro, que se constitui como um dos personagens principais
– ele se mostra fraco e desarticulado, o que não o enquadra
nas características vilanescas. O Coronel Lula de Holanda é
mais um coitado que um vilão.
35 Ibdem, p.266.
110
Vimos anteriormente que Fogo Morto, como um romance
modernista, não apresenta heróis épicos. Sua formação
comporta anti-heróis, que refletem a mais pura condição
humana. Em vista disto, não encontramos vilões ao longo do
texto. Dentre os três personagens principais, o coronel
Lula de Holanda é o que mais se aproxima dos caracteres da
vilania, contudo suas maldades não são o bastante pra
classificá-lo dessa forma. Esta não é formada somente de
ações perversas e desaprováveis, ainda assim o personagem
deve ser imbuído de uma força – que por vezes desperta até
o carisma entre os leitores – para ser consagrado com o
titulo de vilão. O coronel é vazio dessa força. Não pode
ser herói pela sua conduta desaprovável e também não se
encaixa na roupa de vilão por falta de força interior. Lula
de Holanda poderia ser classificado como anti-vilão, em
oposição aos anti-heróis José Amaro e Vitorino. Aqui a dor
apresenta-se na angústia do vazio de Lula. O homem não
conseguiu ser nem senhor de engenho, nem bom marido, nem
bom pai e nem um homem ameaçador, a não ser pelo seu
fracasso.
O conceito do belo é completamente destruído ao longo
da descrição de Lula de Holanda. No início do capítulo ele
é visto pelo capitão Tomás Cabral de Melo como um homem
bonito e requintado, completamente capaz de fazer sua filha
Amélia feliz.
111
“Não queria para Amélia um marido assim como Tomás, homem que só tinha corpo e alma para o trabalho. Homem devia ser mais alguma coisa para melhor do que era Tomás.” (...) “Era um rapaz cerimonioso, de boa aparência, trato fino. Chamou-o logo de Lula, e quis que fosse tratado em sua casa como filho. (...) O primo Lula tinha aquela barba negra de estampa, de olhos azuis, o ar tristonho, e fala mansa.”36
Após o casamento de Lula e Amélia, o capitão começa a
desconstruir a imagem que antes tinha do genro. Lula de
Holanda não parece ter a força e a vontade que deveria para
gerir o engenho do Santa Fé.
“- Olha, Tomás, este teu genro sabe onde tem as ventas. O diabo era ele não tomar gosto pelo engenho. O que seria do Santa Fé sem ele, sem o tino do velho Tomás que lhe conhecia as entranhas da terra, que lhe dera nome, que o criara do nada? E começou o capitão a sofrer pelo futuro do Santa Fé. Ele sabia o que era uma propriedade sem senhor de fibra, tomando conta de tudo.”37
Com a morte de Tomás de Melo, Lula demonstra sua real
problemática, quando entra em conflito com a sogra e começa
a maltratar os escravos. Sua aparência bela é degradada
pelas suas atitudes. O rompimento com os preceitos éticos
desconstrói a estética atribuída ao personagem.
“A morte do capitão deu briga séria do genro com a sogra. Seu Lula fez exigências no inventário. Reclamou o dinheiro do ouro, quis botar advogado para obrigar a sogra a dizer ao juiz o que tinha guardado o capitão, em moedas antigas. A mulher enfureceu-se com o marido. Ali não devia haver divergências de espécie alguma. Seu Lula, porém, terminou dominando-
36 Ibdem, pg. 215, 218, 219. 37 Ibdem, pg. 229.
112
a. (...) Nos dias de domingo o cabriolé saía com seu Lula e a mulher para a missa do Pilar. Olhava-se para ele como para um ambicioso. Viera para se casar com o dinheiro do capitão, queria roubar a viúva. Era um infeliz.”38
Lula de Holanda não se transformou em um homem mau,
simplesmente fez transparecer sua real essência. Não era
maldade o que fazia com a sogra e a esposa, Lula queria de
alguma forma transformar-se no verdadeiro capitão que um
dia almejou ser.
Sua consciência o atormentava, a dor da impotência o
rasgava a alma, o que o fazia ter atitudes imprudentes e
desmedidas com as pessoas e o engenho.
“Seu Lula parecia humilhado. (...) Veio-lhe então a lembrança do pai, noites e dias no meio das matas de Jacuípe, vivendo como um animal, assassinado, por fim, como um bandido perigoso. Morrera, pelo chefe Nunes Machado. Então seu Lula, naquele ermo sertão, por debaixo do umbuzeiro, com os negros e o sogro deitados na mesma terra, viu que não era nada, que força nenhuma tinha para ser como fora o pai, Antonio Chacon. O que ele fora até ali?”39
Para fugir de sua dor, o capitão preocupava-se em
aparentar o que não era, e agarrava-se a uma rotina que lhe
parecia confortadora. Todos os domingos, ele passava na
companhia da esposa e filha, com seu cabriolé – objeto de
luxo para a cidade – pelo Pilar em direção a igreja, onde
se mostrava um homem religioso, rico e de família
estruturada.
38 Ibdem, pg. 243. 39 Ibdem, pg. 235.
113
Sua filha, Neném, era sua maior riqueza, e a única que
ainda o admirava. Temeroso da solidão total, Lula se
apoderou do amor da filha e a fez prisioneira de seus
caprichos. Logo, castrando todos os desejos de Neném, a fez
minguar, como o engenho do Santa Fé e todos que ali
moravam.
Com a morte da sogra e a Abolição, os escravos foram
embora, e as terras do engenho produziam cada vez menos.
Sua falsa imagem não se promoveu como sublimação à dor
insuportável que sentia. Sua vida definhava como a produção
da cana. A epilepsia que o atacou, fez o capitão se afastar
da sociedade e Lula se apegou ainda mais a sua casa e a
religião.
Todos da casa isolaram-se de si mesmo e do mundo, a
única que encarava a verdade era D. Amélia. Sua irmã Olívia
enlouquecera, antes mesmo da decadência; sua filha e marido
criaram mundos pra si próprios como uma forma de apagar a
verdade.
“Felizmente que aqueles dias de Lula furioso dentro da casa, aos gritos, como tigre, haviam passado. A paz que reinava ali dentro de casa era uma tristeza, mas, muito melhor assim que com os sobressaltos dos outros tempos, com a peitica do marido, atormentando a filha, descobrindo namorados, inventando fugidas. Tudo havia passado. Tudo era agora aquela mansidão, a pobreza de uma casa-grande que se escondia das vistas dos outros. Sim, todos ali viviam a se esconder dos ricos e dos pobres. E ela mesma é quem mais força fazia para que vivessem longe de tudo. Lula era como se não soubesse das dificuldades por que passavam. Só ela tinha os olhos para ver o Santa Fé como estava, na petição de miséria em que vivia. Lula, naquela devoção, no seu rezar, era como um homem de outro
114
mundo, fora de tudo que fosse da terra, indiferente ao seu tempo. (...) Mas ela via tudo, sentia tudo. Todos os pedaços de miséria que a família sofria, era ela quem mais sofria. Todos em sua casa pareciam de um mundo que não era o seu.”40
A personagem Amélia, que fazia papel de coadjuvante no
início do capítulo, toma agora dimensões importantes e
torna-se (anti-) herói em oposição a Lula, fracassado em
sua condição de herói e vilão, fadado ao vazio de sua dor
existencial. D. Amélia não encontra formas de sublimar sua
dor, mas a vive e a ameniza na função de única capaz de
cuidar da família.
Como sua própria estrutura, dividida em partes, Fogo
Morto está o tempo todo intercalando a função e a
importância de seus personagens.
5.4 - Terceira parte – O capitão Vitorino
Com Capitão Vitorino da Cunha, personagem central da
terceira parte do romance, fecha-se o ciclo dos engenhos,
que vai da fartura ao fogo morto. A história de Vitorino
contrapõe-se à individualidade angustiada de José Amaro e
ao despotismo do senhor de engenho Lula de Holanda. É de
sua boca ferina e consciente, aliás, que sai a pergunta
emblemática que mede o grau de transformação pela qual
passaram na época as regiões, cuja economia dependia dos
40 Ibdem, pg. 287.
115
engenhos de cana de açúcar. “– E o Santa Fé quando bota,
Passarinho? – Capitão, não bota mais, está de fogo
morto”41. Este é o retrato que Vitorino nos mostra, do
tempo implacável que deteriora tudo e todos.
Nesta terceira e última parte do romance predomina a
ação. O capitão Antônio Silvino invade a cidade do Pilar,
saqueia as casas e lojas. Invade o engenho Santa Fé, ameaça
os moradores em busca do ouro escondido. Tentando defender
o engenho, Vitorino é agredido e só a intervenção de José
Paulino faz com que os cangaceiros desistam. Vitorino
apanha também da polícia, José Amaro e seus companheiros
são presos e agredidos. No final, após serem libertados,
Vitorino e o mestre José Amaro seguem rumos diferentes. O
primeiro pensa em influir politicamente na região. O
segundo, abandonado pela mulher, com a filha louca e
expulso de sua casa, acaba por cometer o suicídio.
Considerado por muitos uma espécie de Quixote
sertanejo, aprisionado em um mundo de ilusões, o capitão
Vitorino da Cunha vai muito além deste contorno simplista.
Sua luta em favor dos humilhados e ofendidos, ainda que
insensata, está longe de ser um sonho, um simples devaneio,
consiste-se, sobretudo, como resultado da realidade brutal
que o rodeia e uma necessidade premente, da qual ele se
ocupa sem vergonha.
41 Ibdem, p.403.
116
No lombo de sua burra, o Capitão sai pelos engenhos de
açúcar a insurgir-se contra a prepotência dos senhores
rurais, a ousadia da polícia e a crueldade dos cangaceiros.
À sua volta, porém, depara-se com a ignorância, a penúria,
a incompreensão e a zombaria. Seu método firma-se numa
ironia estóica e na oportuna consciência de que na vida, e
em especial nas regiões inóspitas como o sertão nordestino,
tudo se transforma para um fim irremediável. Antes de mais
nada, para Vitorino importa conquistar a liberdade de agir
e falar, conforme o que é justo e melhor para o homem.
Mesmo que não se alcance nenhum efeito decisivo, houve,
contudo, um ganho em grandeza humana.
A figura de Vitorino da Cunha representa o herói
pícaro, aquele dotado de humor e lirismo. Idealista e
sonhador, ele lembra os cavaleiros andantes da Idade Média,
em sua errância pelos sertões, sem uma ocupação definida,
em luta quixotesca contra as injustiças sociais. É o eterno
oposicionista, simplório, que aceita todas as lutas, sempre
ao lado dos mais fracos. Sua personalidade é composta por
um misto de plebeu e aristocrata. Seu parentesco distante
com o Coronel José Paulino autorizou a que se outorgasse o
título de Capitão. Poderíamos considerá-lo como um
representante das camadas médias que começam a surgir.
Montado em seu cavalo velho, vestido de terno surrado
e com aparência sisuda e louca, Vitorino não aceita as
117
perseguições e amo1ações dos moleques, que o apelidam de
“Papa-rabo”.
“Vitorino falou para o homem num tom agressivo: — Tenente, por aqui é que o senhor não encontra o bandido. Era por aqui que andava o major Jesuíno, atrás dos cangaceiros, e nunca disparou um tiro. — Não estou pedindo sua opinião, velho. — Sou o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha. - Não estou perguntando o seu nome. - Mas eu lhe digo. - Então passe de largo e siga o seu caminho. - Não me faz favor, tenente. - Cala a boca, velho besta. — Só quando a terra comer, tenente. Vitorino Carneiro da Cunha diz o que sente. — Pois não diz agora. — Quem me empata? O Senhor? Ainda não nasceu este.”42
O Capitão Vitorino, cujas ações se pautam pelo desejo
de justiça, irmana-se a José Amaro, mas é radicalmente
contra a alternativa oferecida pelo cangaço. É também
contra o governo, mas não admite a subversão da lei. Em
rigor, é um aventureiro do sonho. Estabelece o elo entre
ricos e pobres, fracos e fortes. Para ele, o homem mais
valente do mundo é ele mesmo. Não obstante, emprega a
valentia apenas no auxílio do próximo. Trata-se de uma
paródia muito convincente de Dom Quixote. Por isso, sua
figura resulta numa mescla de momentos sublimes com
momentos ridículos. Apesar dos percalços, surras e prisões,
é a única personagem gloriosa no romance.
“Vitorino fechou os olhos, mas estava muito bem acordado com os pensamentos voltados para a vida dos
42 Ibdem, p. 323-324
118
outros. Ele muito tinha que fazer ainda. Ele tinha o Pilar para tomar conta, ele tinha o seu eleitorado, os seus adversários. Tudo isso precisava de seus cuidados, da força do seu braço, de seu tino. Lá se fora o seu compadre José Amaro, o negro Passarinho, o cego Torquato. Todos necessitavam de Vitorino Carneiro da Cunha. Fora à barra do tribunal para arrasta-los da cadeia. (...) Ele era homem que não se entregava aos grandes. (...) As feridas que lhe abriam no corpo nada queriam dizer. Não havia força que pudesse com ele. Os parentes se riam de seus rompantes, de suas franquezas. Eram todos uns pobres ignorantes, verdadeiros bichos que não sabiam onde tinham as ventas.”43
Vitorino Carneiro da Cunha traz no sangue a
característica dos anti-heróis de Cervantes. Nele há um
irresistível pendor à bravata, ao contrário de seu
compadre, tenso e sóbrio, embora eloqüente. Vitorino é
radical na ação momentânea - é espalhafatosa, embora bem
intencionada -, mas moderado no pensamento político. O
capitão ainda acredita numa virada política para ares
liberais, ainda crê que o problema central da política é de
ordem puramente moral, e põe enorme fé nos poderes da
justiça. Neste terceiro capítulo, é mandado para a prisão
com seu compadre José Amaro. Os maus tratos sofridos
constituem o fundo trágico em que se modulam os perfis
definitivos de Zé Amaro e Vitorino Carneiro da Cunha.
“Os soldados, sentados por debaixo do tamarineiro, abriram na gargalhada. - O homem é brabo mesmo – disse um . – É verdade, o tenente já foi com ele aos tabefes, mas viu que é um aluado. Os gritos que vinham agora do fundo da cadeia eram um gemido rouco. - Eles matam o velho.
43 Ibdem, p.395-396.
119
- Quem manda ele estar dando guarida a cangaceiro? A agitação de Vitorino não o fazia parar. E quando o juiz saiu para casa, acompanhou-o. Tinha que tomar uma providência. Ele, Vitorino Carneiro da Cunha, não podia se calar. - Doutor, faça para mim o negócio da petição. Preciso tomar uma providência. E na sala do juiz, com a sua letra trêmula, devagar, parando de vez em quando, como se estivesse numa caminhada de léguas, escrevia o capitão Vitorino as palavras que pediam liberdade para os pobres, para o compadre, para o cego, para o negro.”44
Em relação a esta estrutura, não se pode negar que é a
presença de Vitorino que lhe assegura a unidade e evita que
a narrativa se enfraqueça, que por assim dizer, recomeça
três vezes, e articula a mesma em três seções. Fogo Morto,
então, se desenvolve em três tempos, sendo José Amaro, o
Coronel Lula de Holanda e Vitorino Carneiro da Cunha a
tônica de cada uma. A estrutura episódica do romance
centra-se nos três protagonistas que se inter-relacionam
entre si e com os demais personagens, juntando-se no
desfecho. Os personagens principais e secundários são
apresentados na exposição do enredo para se desenharem com
mais perfeição no decorrer da trama.
5.5 – As mulheres do romance
Embora Fogo Morto seja formado por três personagens
principais, ao longo do romance, podemos observar que as
mulheres também vestem o papel de protagonistas. As filhas
44 Ibdem, p.378-379.
120
de Tomás Cabral de Mello e José Amaro apresentam uma
interessante simetria. Olívia e Marta se entregam à
loucura, como única forma de sublimação de sua dor, dor
essa advinda do convívio com a degradação da vida em sua
volta. A loucura as dá o direito de agir como querem e de
falar o que querem.
“A casa-grande estremeceu com a fúria do coronel Lula de Holanda. Quis falar com a filha e ela estava chorando no quarto. D. Olívia falava como se estivesse respondendo ao capitão Tomás. Aos gritos do seu Lula, ela gritava: - Cala a boca, meu pai. Eu estou costurando a tua mortalha, velho. (...) D. Olívia cantava soturna: ‘Serra, serra, serrador, serra a madeira do Nosso Senhor.’ - Manda esta infeliz se calar, Amélia. - Cala a boca, meu pai. Estou costurando a tua mortalha.”45
A mulher surge como quem sofre as ações desencadeadas
desses homens, degradados e que fazem questão de mostrar
sua suposta superioridade. As filhas demonstram maior
fraqueza e são as que mais sofrem. Neném, filha de Lula de
Holanda, não enlouquece, mas permanece fadada a cuidar do
pai, pois este a aprisiona, castrando seu desejo de formar
uma família. Nada pode prosperar ao lado desses sujeitos
infelizes.
As mulheres, companheiras desses personagens
principais, constituem-se nas verdadeiras heroínas do
romance. D. Mariquinha, D. Amélia, Sinhá e Adriana são
45 Ibdem, p.271-272.
121
personagens conscientes de todos os problemas, de toda a
degradação. Elas não temem os acontecimentos e tomam suas
atitudes baseadas no que acreditam como certo e não por uma
convenção. D. Mariquinha briga com o genro, Lula de
Holanda, por seus direitos na fazenda; Sinhá abandona o
marido, Zé Amaro, por não conseguir mais reconhecê-lo como
um homem; enquanto que D. Amélia e Adriana defendem e
apóiam seus maridos sempre quando necessário.
A força dessas mulheres e sua representação na vida
dos homens centrais do romance as concedem um patamar maior
do que uma simples coadjuvante. Elas são as responsáveis
pelos finais destinados a eles. Um exemplo disso é a morte
de Zé Amaro, o único abandonado pela mulher.
5.6 - A ética e a estética em Fogo Morto
A teoria estética defendida por Lessing muda de foco
quando transposta para a literatura. Lessing pauta suas
hipóteses na representação de Laocoonte esculpida em
mármore, ou seja, na escultura como forma de arte. No campo
da literatura os valores da representação mudam. A dor que
podíamos ver claramente no rosto e corpo da escultura, como
mímeses da realidade, nos é oferecida de formas diferentes.
Os valores estéticos, tanto discutidos por Lessing, como o
122
belo, permanecem os mesmos, mas agora representados de
outra forma.
Os valores do belo estão aqui ligados às formas de
concepção da ética, antes discutidas por nós. De acordo com
o ideal aristotélico, o herói literário aproxima-se muito
ao dos textos medievais ou ao da primeira fase romântica
brasileira. O homem deveria ser virtuoso, isento de
conflitos internos, pois era sua força e inteligência o que
o tornava belo. Com a aparição do Realismo e das correntes
literárias que vieram após, principalmente o Modernismo, os
autores começaram a pensar o homem como ser complexo, o que
não alimentava mais o ideal de Aristóteles. Na arte moderna
o belo não perde seu lugar de importância, mas sua
definição abrange outras acepções.
Lessing fala do feio como algo que pode ser feito na
arte, simplesmente com o intuito da mímeses, mas que deve
ser evitado, pois causa desprazer. O conceito de belo para
Lessing abrange tudo que nos causa prazer e deleite,
dispensando assim a aparência do “mal”. Contudo, a teoria
kantiana defende a subjetividade de nossos juízos
estéticos. A visão da complexidade humana nos leva a
diferentes critérios de beleza e prazer. Com isso, a
tradição filosófica de Kant é a que melhor define o (anti-)
herói da modernidade, mergulhado em todos seus conflitos
pessoais.
123
O retrato do (anti-) herói moderno nos apresenta
imagens de deformações psicológicas. Ao mesmo tempo em que
a tristeza e a dor nos causam, em um primeiro momento,
desconforto, elas são o estopim que precisamos para uma
reflexão mais profunda de nossa existência. O que
caracteriza esse sujeito como belo para a modernidade é a
sua aproximação com a realidade subjetiva, a clareza de sua
complexidade.
Nesse momento a ética se entrelaça com a estética,
quando a primeira se preocupa com as ações dos indivíduos,
e a segunda trata, de acordo com essas ações, do que é
aceitável como beleza ou não na manifestação artística e de
como é transcrita para a literatura.
124
6 - Conclusão
O conceito de estética e a importância do belo para a
arte é algo ainda hoje revisitado e discutido por seus
realizadores e receptores. A representação estética sempre
esteve interligada, de alguma forma, com a idéia de ética,
no que concerne ao comportamento humano.
O belo e a virtude caminharam de forma paralela – às
vezes entrecruzando-se – ao longo de muitos séculos,
pautados na visão grega de perfeição. Como teoriza Lessing,
até mesmo a dor deve ser representada pela arte de forma
agradável. Aprazível será ela, quando aliada à virtude do
indivíduo representado.
Embora a história tenha narrado a dor de Laocoonte
como algo insuportável, ela jamais se tornou monstruosa aos
olhos de seus receptores, simplesmente pela sua causa.
Laocoonte, que tentava interceptar a entrada do cavalo de
madeira na cidade de Tróia, é castigado por Minerva,
ficando cego e tendo seus filhos mortos. Castigo esse
sofrido por aconselhar a população, devido a algum
pressentimento de perigo. Sendo assim, por sua coragem e
lealdade, Laocoonte se enche de virtude, o que torna sua
dor grandiosa e bela. A representação, pois, no mármore,
deveria apresentar os traços do sofrimento de maneira
sutil. Nenhuma expressão deveria ser exagerada, o
125
equilíbrio e a sutileza, juntamente com a virtude,
previamente conhecida, trariam conforto aos receptores da
obra.
Essa idéia do ser virtuoso que engrandecia a arte e
moldava os heróis perpetuou-se por séculos e foi motivo de
discussão e estudo de diversos filósofos. O conceito de
virtude foi evoluindo, desde a Grécia Clássica, com a
contribuição pioneira de Aristóteles, até as formas
assumidas nos dias de hoje. A preocupação com a educação do
caráter, central na teoria ética da virtude, desenvolveu-se
no Ocidente. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, definiu,
com precisão, o conceito de virtude, como a disposição
voluntária que visa a excelência, a perfeição. Esta, por
sua vez, é ainda associada ao justo meio, ou seja, à
exigência do caráter para que o indivíduo encontre o
equilíbrio certo entre dois extremos: o excesso e a
deficiência. Sendo assim, nada que não encaixasse nos
parâmetros do belo não poderia ser considerado arte.
No entanto, com a evolução das culturas, ocorreram
mudanças no entendimento de beleza e arte, advindo
principalmente da aceitação no seu domínio de outras
manifestações, que fizeram diminuir as altas fronteiras
entre o domínio intelectual e a massa. A mímeses, que
prescreve a obra como imitação, de maneira a apreender a
verdade, excluía inúmeras expressões artísticas que não
126
partiam dessa máxima. Contudo, a busca de novas formas de
entendimento levou a uma dessacralização da arte.
Acolhemos, então, a teoria de Kant e um novo conceito
de ética, no qual nossos juízos estéticos apresentam um
fundamento subjetivo, impossibilitando conceitos
determinados. Agora, o critério de beleza é intrínseco ao
do prazer. A ética kantiana pauta-se sobre a noção de
dever, o “agir de forma boa”. A busca e o alcance da
felicidade passam pelo reconhecimento do outro, em meio à
sociedade.
Aliados a isso, observamos também uma evolução do
estudo da psicanálise, que inaugurou uma nova forma de ver
o homem e seu meio. O sujeito passou a ser visto não mais
como uma unidade, mas como um mosaico de personas. Esse
“encontro” com a essência humana abalou o conceito da
virtude. O Homem, então, não poderia mais ser
essencialmente virtuoso ao passo que possui várias faces.
Se mais nenhum indivíduo é capaz de ser classificado como o
herói dotado somente de virtudes, o conceito de belo
deveria mudar. O conflito humano tornou impossível a
descrição do equilíbrio e da harmonia.
Em meio à isso, a literatura acolheu o conceito de
anti-herói, que caracteriza os personagens das obras
modernas, mergulhados em conflitos. Dessa forma, a arte
passou a ficar mais próxima de nós. Não tínhamos mais
127
Deuses nem cavaleiros medievais, que só nos inspiravam
orgulho. Agora, os homens eram nossa real imagem, sofriam
de doenças, de dúvidas, eram feios, deformados e tinham seu
lado mau. Se o belo deve ser considerado como a verdade da
natureza, a modernidade e sua nova forma de ver o homem
trazem ao domínio da beleza outros conceitos repugnados
pelos clássicos de antes, como por exemplo, a dor, em sua
pior forma.
O Homem passa pelo sentimento da dor todo o tempo. Sua
impossibilidade de se reconhecer múltiplo o leva a uma
eterna busca ignorante e incansada pela convivência
pacífica na sociedade, ou ao isolamento. Nenhuma de suas
escolhas o leva a real felicidade, e o fracasso causa dor,
apresentada de inúmeras formas e intensidade.
Relacionado a isso, Sartre, movido pela influência da
angústia e do vazio espiritual do seu tempo, funda o
existencialismo, construído em parte sob os ecos das duas
grandes guerras mundiais. Em O Existencialismo é um
humanismo, o filósofo descreve o homem como responsável
pelas suas ações. Primeiramente tem-se a existência do
indivíduo, depois a essência: o homem nasce e só depois se
constitui como indivíduo, baseado em seus atos. No entanto,
a escolha do sujeito passa pelo reconhecimento do outro.
Ele só pode se desenvolver em direção à felicidade se
128
reconhecer que faz parte de uma sociedade e que todos seus
atos influenciam as pessoas em sua volta.
Em contraponto, a responsabilidade pelos outros priva
a liberdade do indivíduo, o que causa angústia e dor. Em
Mal-estar na Civilização, Freud mostra o processo
civilizatório do Homem como algo castrador das pulsões e
desejos. Sendo sujeito múltiplo, o tolhimento de uma de
suas partes faz com que o sujeito sofra. Se segue às normas
sociais sofre pelo castramento, pela não satisfação de seus
desejos, por desejar o que imagina não dever e por não
saber como sublimar essa dor. Quebra-se uma norma, padece
por não ser o que deveria, por se individualizar ou por
culpar-se pela dor do outro. Assim, o Homem será fadado a
um sofrimento dilacerante e eterno. Sua única saída é
encontrar formas de sublimá-lo, buscar seu totem.
Segundo Freud, o homem encontra ao longo de sua vida
várias formas de sublimar sua dor. A mais confortável para
muitos, ao longo de milênios, é a religião. A divindade é
garantia e fundamento de sentido do universo e da
existência humana. Deus é o apoio eterno da imutabilidade
das leis físicas, do funcionamento perene da maquinaria
universal. Se Deus garante a permanência das leis naturais
e funda a estabilidade do universo, ele também dota a
existência humana de sentido. As leis morais, as direções a
serem tomadas na vida, derivam do simples fato de que Deus
129
existe. Daí vem a máxima de Dostoiévski que afirma que se
Deus não existisse, tudo seria permitido, pois na sua
ausência o sentido da existência e da ética tornar-se-iam
questões exclusivas do âmbito humano. E dessa forma, a vida
seria certamente mais difícil e dolorida.
Para Sartre estamos solitários e entregues à própria
sorte, e devemos extrair, por esforço próprio, um sentido
para essa existência. Assim surgem outras formas de
sublimação. Fora das explicações da existência divina, a
maior parte delas pode ser considerada trágica pelos olhos
da sociedade, como por exemplo, a morte e a loucura.
Em meio a essa indefinição conflituosa do sujeito, de
novos valores éticos e do comportamento do Homem perante
eles, a beleza na era moderna toma formas diferenciadas. O
belo não nos causa prazer, como antes. Agora, tudo o que
possa ser representado em arte como a face da verdade da
natureza é considerado belo. O prazer é conceitual, ele não
vem necessariamente na forma do agradável, mas como algo
que nos cause algum tipo de epifania, de inquietação
crítica.
Não foi a condição humana que mudou. Desde os
primórdios da humanidade o sujeito se comporta como tal. O
que ocorreu foi a constante transformação em direção à uma
nova visão, um novo conceito estipulado, uma nova aceitação
do caráter humano.
130
Em vista disso, na literatura temos um elenco de
textos intimistas e subjetivos (como os de Dostoiévski,
Proust, Joyce, dentre outros) que apresentam a polifonia de
seus (anti-) heróis, cada vez mais conflituosos. A
subjetividade é a escolha que o escritor faz em sua obra de
mostrar e explorar a perspectiva da personagem.
Freqüentemente a narrativa dá-se em primeira pessoa,
mostrando a voz da consciência do sujeito. O que vemos
nessa literatura é o desdobramento de uma voz em muitas
outras. O que caracteriza a intersubjetividade é a certeza
de que há um múltiplo de caracteres opostos e
complementares dentro da consciência de um único indivíduo.
E uma das tarefas da literatura subjetiva é a de mostrar
como ocorre a coexistência dessas personalidades dentro do
sujeito.
No Brasil, inauguramos esse gênero com Machado de
Assis e suas teorias sobre o sujeito. O autor caracteriza-
se por estar à frente da literatura do seu tempo. Seu jeito
peculiar de testemunhar o humano o fez um predecessor na
literatura brasileira. Seu legado deu frutos no Modernismo.
A partir desse período, nascem inúmeros escritores e obras
que fazem do retrato da consciência de seus personagens a
arte e a beleza da literatura universalista.
Assim, José Lins do Rego, em seu romance Fogo Morto,
nos dá a dimensão de um texto intimista e da nova forma de
131
representação da ética e da estética na arte. Seus três
personagens principais mostram, cada um, diferentes formas
dilacerantes da dor, que convergem naquele engenho e vida
falidos. Todos, ao longo do texto, procuram por uma forma
de sublimação desse sofrimento e é essa que os distingue ao
fim do romance.
De acordo com as definições de ética que estudamos,
podemos delinear os motivos das angústias dos anti-heróis
de Fogo Morto. Os personagens de José Lins do Rego
apresentam muitas diferenças do homem virtuoso, pregado por
Aristóteles. Zé Amaro e Lula de Holanda não podem se
realizar como indivíduos, pois não apresentam força nem
vigor, o que os fada à infelicidade, à ruína de suas metas.
Já Vitorino da Cunha apresenta um impulsionamento diferente
dos dois primeiros. Ele é corajoso e forte, mas seus traços
quixotescos e sua loucura não o permitem encaixar-se no
ideal aristotélico.
Sob a luz de Kant, a condição de sensibilidade, em
oposição à racionalidade, insere os personagens em uma
determinada conduta ética. Suas angústias e dores nascerão
justamente desse conflito entre o racional e o sensível. O
“agir bom” os coage, levando-os à castração de seus
desejos, o que os faz buscar, a todo momento, um estado de
sublimação.
132
Todo desejo é sofrimento. E os personagens de Fogo
Morto estão sempre ansiando por algo que não têm, seja
riqueza, reconhecimento ou até mesmo paz. Com Zé Amaro
podemos observar a efemeridade da satisfação do desejo. O
personagem recebeu de herança de seu pai o ofício e a casa,
casou-se com uma boa mulher e teve uma filha. Ele poderia
viver satisfatoriamente com sua condição, mas o vazio do
querer infinito esvaziou de sentido suas conquistas e o fez
almejar mais. Da vontade de uma vida simples, surgiram
outras e, com essas, o tédio da condição presente. A
vontade incessante e impossível de realização plena de José
Amaro, como dos outros do romance, causa dor. Alguma forma
de fuga se mostra necessária para essa tortura anunciada.
Ao dar-se conta de sua responsabilidade com o próximo,
José Amaro sofre ainda mais com a loucura de sua filha e a
insatisfação de sua mulher. Igualmente, Lula de Holanda
preocupa-se em como dar conta desse dever. Enquanto o
primeiro não sabe o que fazer, o segundo castra os desejos
de suas mulheres (esposa e filha), como forma de castigo e
solução para seus recalques. Essa é a imagem que podemos
fazer dos estudos de Freud e Birman sobre a fragilidade do
sujeito e do desamparo como conseqüência. O Homem entre o
desejo e a culpa, eternamente castrado e pressionado por
seus instintos, que surgem e se manifestam de diversas
maneiras.
133
Como em Dostoiésvki, os homens de Lins do Rego
apresentam-se como inacabados, polifônicos, formados de
diversos caracteres. Seu inferno se constitui na não
aceitação dessa condição plural. A única salvação é
atravessar esse infinito inquietante.
Com isso podemos compreender que as serpentes de
Laocoonte também sufocam os anti-heróis de Fogo Morto. Aqui
a dor psicológica transpassa também à física. Ela
apresenta-se dilacerante e intensa. Zé Amaro transforma
suas feições e passa a ser visto como lobisomem, enquanto
que Lula de Holanda sucumbe em convulsões. Vitorino da
Cunha parece ser o único a não se sentir degradado. Embora
sua aparência seja maltratada, ele mostra viver muito bem
com sua loucura. Esta surge em Vitorino como a única forma
de sublimação que logrou sucesso, no romance. Seu caráter
audaz o faz viver diante de toda a miséria, sem abalar-se e
sempre rumo às conquistas, contra as opressões. É o único
que mostra querer lutar.
O conhecimento é a mola que impulsiona a dor, o
desconforto. O saber de sua condição precária assombra a
vida dos anti-heróis de Fogo Morto. No Caso de Vitorino da
Cunha, certa ignorância da fatalidade dessa precariedade o
faz diferente. Sua loucura ou a esperança imortal de uma
dignidade não o faz enxergar a realidade como Zé Amaro e
Lula de Holanda. O meio torna-se o reflexo do sujeito. Ele
134
está ou não disposto a ver o que o cerca, ou melhor, ele
fornece o sentido que o compraz a esse meio.
***
A estética de Fogo Morto, assim como a da modernidade,
encaminha-nos a nova concepção de beleza. O belo toma seu
caráter de epifania, e tudo que nos suscitar reflexão faz
parte da experiência estética. O que vale agora é a real
imagem do ser humano, mergulhado em sua natural
precariedade.
O receptor tem como função digerir toda dor, angústia
e sentimento presentes na obra, e transformar em produto de
sua individualidade, como experiência estética. Devemos
deglutir o estranho e transformá-lo em produto nosso, como
prescreve Oswald de Andrade em seu manifesto antropófago.
Talvez o auto-conhecimento, a sublimação individual, passe
pelo cuidado em filtrar o novo. Reconhecer esse processo é
também dar-se conta que somos feitos de “plural”, e que
esse “diverso” é envolto e costurado pela nossa essência.
O conhecimento da ética funciona como o primeiro passo
para o delineamento dos personagens e da arte, de sua
condição subjetiva. As concepções de estética vêem dar o
aval para a representação do indivíduo co-movido pela
ética. A dor é somente a conseqüência desses diversos
135
conceitos postulados pela sociedade, e sublimação, a
certeza de que somos múltiplos e, portanto, incapazes de
viver sozinhos.
136
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